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FACULDADE TEOLÓGICA BATISTA DE SÃO PAULO FUNDAMENTALISMO PROTESTANTE: DIFICULDADES DE INTERAÇÃO E DIÁLOGO COM A CULTURA BRASILEIRA Alcides Barbosa de Amorim SÃO PAULO 2015

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FACULDADE TEOLÓGICA BATISTA DE SÃO PAULO

FUNDAMENTALISMO PROTESTANTE: DIFICULDADES DE INTERAÇÃO E DIÁLOGO COM A CULTURA BRASILEIRA

Alcides Barbosa de Amorim

SÃO PAULO

2015

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Alcides Barbosa de Amorim

FUNDAMENTALISMO PROTESTANTE: DIFICULDADES DE INTERAÇÃO E DIÁLOGO COM A CULTURA BRASILEIRA

Monografia apresentada como requisito final no Curso de Pós-Graduação em História e Teologia do Protestantismo no Brasil da Faculdade Teológica Batista de São Paulo.

Orientador: Professor Dr. Jorge Pinheiro.

S Ã O P A U L O

2015

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FACULDADE TEOLÓGICA BATISTA DE SÃO PAULO

Alcides Barbosa de Amorim

FUNDAMENTALISMO PROTESTANTE: DIFICULDADES DE INTERAÇÃO E DIÁLOGO COM A CULTURA BRASILEIRA

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SÃO PAULO

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Resumo

Este trabalho destaca o conceito de cultura e etnocentrismo, faz uma breve análise da relação entre protestantismo e cultura brasileira herdada de nossas matrizes étnico-culturais, a branca, a indígena e a negra. Faz um histórico da Igreja Católica portuguesa e o seu papel “civilizador” entre os indígenas e negros, do trabalho do protestantismo de missão como anticatólico e seu evangelismo “aculturador”, da origem do pentecostalismo e neopentecostalismo, com destaque às Assembleias de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus. Destaca como o crescimento do pentecostalismo e neopentecostalismo e principalmente sua atuação na mídia e na política cooperaram para aumentar os estereótipos e oposições de alguns setores da sociedade aos evangélicos, mas por outro lado, também cooperado para tornarem-se notórios os casos de intolerância com alcunha de “evangélicos fundamentalistas”. Propõe que a busca da interação e diálogo pelo caminho da tolerância aconteça, pois como seres sociais e culturais, ocupando os mesmos espaços, não há outro caminho senão a boa convivência entre protestantes e não-protestantes, obedecendo os limites e a liberdade das escolhas de cada um. Termina afirmando que é possível ao protestante continuar vivendo sua fé, anunciar sua mensagem, a revelação, portanto supra cultural, num contexto cultural bastante diversificado como o da sociedade brasileira e com menos atritos de ideias e sem conflitos.

Palavras-chave: Cultura – Igreja Católica – Etnocentrismo – Protestantismo – Fundamentalismo – Pentecostalismo – Neopentecostalismo – Intolerância – Diálogo.

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SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................. 05

1. Cultura e Etnocentrismo ....................................................................................... 08 1.1. Cultura: criação humana e padrões socioculturais ....................................... 10 1.2. Como opera a cultura: o homem condicionado pela cultura ......................... 12 1.3. Cultura e religiosidade: a busca do homem pelo transcendente ................... 12

2. Etnocentrismo cultural religioso e brasilidades no Brasil Colônia ........................ 14 2.1. O Destino manifesto católico na formação de Portugal ................................ 14 2.2. Portugal, Igreja Católica e os índios no Brasil Colônia .................................. 16 2.3. Portugal, Igreja Católica e os negros no Brasil Colônia ................................ 19

3. Etnocentrismo protestante e fundamentalismo .................................................... 23 3.1. O Destino manifesto norte-americano e seus reflexos no Brasil ................... 23 3.2. O fundamentalismo protestante: sua teologia e aplicação no Brasil ............. 26

4. Pentecostalismo e Neopentecostalismo: etnocentrismo e intolerância ............... 31 4.1. Protestantes, evangélicos ou crentes? ......................................................... 31 4.2. Pentecostalismo: sua origem e presença no Brasil ...................................... 34 4.3. As Assembleias de Deus e sua mudança de estilo ...................................... 39 4.4. Neopentecostalismo: origem, mídia, intolerância e misticismo ..................... 42

5. Protestantismo e interação cultural-religiosa: uma busca necessária ................. 49 5.1. Protestantismo e (in) tolerância religiosa X diálogo multicultural .................. 50 5.2. Dizendo “sim” a Deus sob a lente da cultura brasileira ................................. 57

Considerações finais ................................................................................................ 61

Referências bibliográficas ........................................................................................ 63

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Introdução

A cultura é um ramo de atividade que está estritamente vinculado à criação ou

invenção do homem e que é compartilhada com outros indivíduos que conjuntamente

vivem em sociedade. Por isso, ela é também um elemento de interesse de estudo das

disciplinas humanistas, incluindo a Teologia. Mas ao mesmo tempo serve de “lente”

para os indivíduos olharem o mundo que os cerca. E entre estes indivíduos estão os

protestantes com suas múltiplas facetas e cosmovisões. E a Teologia, objeto de nosso

estudo em nível de pós-graduação e desta monografia, se propõe a estudar, senão

profundamente, pelo mesmo entender os vários ramos ou “sub-ramos” nos quais

estes “protestantes” com suas múltiplas visões estão inseridos e como também eles

entendem o seu mundo ao redor, considerando os vários elementos que identificam

nossa cultura e sociedade brasileiras.

Eu, como estudante de História e de Teologia e que também professo a fé

protestante, com visão ou lente de um assembleiano, tenho visto com preocupação

ou problema o fato de grupos protestantes, principalmente pentecostais e

neopentecostais não considerarem a grande diversidade cultural brasileira e, muitas

vezes, por desconhecimento ou não, entrarem em atritos constantes com diversos

grupos como católicos, adeptos de religiões afros, indígenas, não-religiosos e outros

e não atentarem para o fato de que num Estado laico, todos dividem diversos espaços

com a política, imprensa, escolas, empresas, feiras, supermercados, igrejas, terreiros,

e outros setores que são parte de suas comunidades.

A hipótese proposta neste trabalho FUNDAMENTALISMO PROTESTANTE:

DIFICULDADES DE INTERAÇÃO E DIÁLOGO COM A CULTURA BRASILEIRA, é a

de que uma melhor compreensão e busca de diálogo com os elementos e diversidade

culturais que marcam o povo brasileiro, incluindo os diversos grupos sociais-

religiosos, mesmo de oposição – mas não inimigos – que ocupam os mesmos espaços

sociais e geográficos que nós protestantes, além do entendimento dos conceitos de

fé, cultura, liberdade de expressão e tolerância, se não eliminarem, pelo menos

amenizam os estereótipos e preconceitos com os quais taxamo-nos e também somos

taxados por estes.

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A interação cultural é necessária e premente, porque somos parte de um

mesmo povo e vivemos no mesmo país. E como evangélicos ou protestantes

podemos conciliar as questões relativas à nossa fé sem infringir os direitos e escolhas

do outro que não pensam e não querem ser como nós. É por este caminho que

procuramos, nos capítulos a seguir, desenvolver, com base em leituras de estudiosos

do assunto, um breve histórico do protestantismo brasileiro desde a chegada dos

primeiros grupos, na condição de “corpo estranho” num país católico, até o status de

notoriedade em que se encontra hoje, chegando a trazer, inclusive, para a sociedade

brasileira como um todo, algumas confusões em relação ao entendimento dos

diversos grupos ou subgrupos existentes no Brasil atual.

Mas, primeiramente, como fizemos no primeiro capítulo, procuramos conceituar

a cultura como criação humana em seus aspectos materiais e imateriais, como seus

elementos podem ser vividos, modificados e compartilhados ou não por outros grupos,

nesse processo podem surgir choques culturais ao defrontarem com sociedades que

veem sua padronização ou conjunto cultural superior aos demais e agem de forma

etnocêntrica.

No segundo capítulo, procuramos destacar as nossas matrizes étnico-raciais,

indígena e negra e como elas foram vítimas do etnocentrismo acompanhado de

preconceitos e violência da Igreja Católica, religião do Estado português, que como

um “destino manifesto”, veio para sua colônia com uma missão civilizatória sem

considerar a diversidade cultural destes povos enquanto também os explorava através

do Padroado e da ação dos jesuítas.

A presença protestante no Brasil a partir do século XIX, principalmente o

protestantismo de missão, como batistas e presbiterianos, surge também como uma

espécie de “destino manifesto” norte-americano protestante, e com o objetivo de

“evangelizar” ou civilizar além de indígenas e negros, também os católicos – pois para

eles, a Igreja Católica não se caracterizava como uma igreja cristã – através de uma

mensagem fundamentalista ou de verdade absoluta, de uma cultura superior para um

povo de maioria analfabeta.

Destacamos no quarto capítulo, a presença pentecostal e neopentecostal com

destaque a duas igrejas: Assembleias de Deus e Universal do Reino de Deus, sendo

a primeira, uma igreja de pobre pregando para pobres, analfabetos e semianalfabetos,

começando pelo nordeste brasileiro, e a segunda, a pregação da teologia da

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prosperidade, já no final do século XX, um misto de cultura afro, católica e – às vezes

– cristã. Enquanto o pentecostalismo, apesar de sua boa aceitação, entra em choque

com grupos sociais, incluindo as igrejas que chegaram antes, principalmente por sua

mensagem escatológica, moralismo exacerbado e grande comoção ou barulho, o

neopentecostalismo ganha oposição de católicos e principalmente das religiões afros,

ao pregar uma mensagem de intolerância a grupos como afros e católicos.

A questão é que no final do século XX e início do XXI, a confusão que se faz

do termo “evangélico” é muito grande, e o problema – como falta de diálogo,

constantes atritos e casos de intolerância – é muito maior nestes últimos 30 anos. Por

isto é que no quinto e último capítulo, procuramos defender a necessidade, apesar

das dificuldades, de uma interação cultural-religiosa entre protestantismo e a

sociedade brasileira como um todo. Defendemos que por meio da educação e do

diálogo, mas reconhecendo os limites de liberdade e responsabilidade de todos –

seres culturais e livres –, é possível uma boa convivência num ambiente de abertura,

recolhimento, remoção de preconceitos, pregação do Reino de Deus, mais do que o

exclusivismo de determinada igreja, numa sociedade de grande diversidade cultural

como a nossa.

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1. Cultura e Etnocentrismo

“Toda a experiência de um indivíduo é transmitida aos demais, criando assim um interminável processo de acumulação”1

“A cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo”2

Em estudos de disciplinas humanistas como Pedagogia, História e Teologia,

áreas nas quais tenho me envolvido há algum tempo, o palpitante conceito de cultura

emprestado da Antropologia, é muito enfatizado, dado sua importância e por estas

ciências estarem voltadas para o ser humano, sobretudo o homem em sociedade, no

convívio uns com os outros de seu grupo.

Ao falarmos do conceito de História para meus alunos do ensino básico, por

exemplo, costumo definir esta ciência como sendo um resgate da memória das

sociedades humanas através dos tempos, enfatizando, entretanto, que isto só é

possível por causa do aspecto cultural herdado destas sociedades. Cada sociedade

deixa seu legado a outras, ao qual podemos chamar de contribuição ou contribuições

culturais que muito auxiliam a História no estudo e entendimento dos diversos grupos

sociais.

Ao se tratar do estudo da Teologia, como finalidade última deste trabalho, o real

entendimento da cultura como uma criação humana socializada, passível de

transformação e abrangente em questões espirituais ou metafisicas, torna-se um

desafio e uma necessidade prementes.

1.1. Cultura: conceito, origem e padrões socioculturais

Dentre os diversos conceitos de cultura, podemos ficar com o proposto por

Edward Tylor como sendo “... todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte,

moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem

como membro de uma sociedade”.3

1. LARAIA: 2014, p. 52. 2. Ruth BENEDICT. O crisântemo e a espada. Apud LARAIA: 2014, p. 67. 3. Edward TYLOR. Apud LARAIA: 2014, p. 25.

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Como se percebe, nesta definição citada por Laraia, a cultura envolve aspectos

imateriais, como “crenças”, “moral” e também aspectos materiais, no que se refere às

invenções de diversos objetos ou instrumentos que se transformam em “hábitos

adquiridos” e, portanto, socializados pelo homem ou seu grupo social. São as criações

ou invenções humanas que fazem estes seres (humanos) ser diferentes dos animais

irracionais à sua volta. Criando meios de sobrevivência, o homem conseguiu romper

com suas próprias limitações e passou a exercer domínio sobre a natureza, “... por

ser o único que possui cultura.” (LARAIA: 2014, p. 24).

Ampliando este conceito, podemos ainda destacar o que afirma Alfred Louis

Kroeber4:

A cultura, mais do que a herança genética, determina o comportamento do homem e justifica suas realizações (...) [o homem] age de acordo com os seus padrões culturais (...) A cultura é o meio de adaptação aos diferentes ambientes ecológicos. Em vez de modificar para isto o seu aparato biológico, o homem modifica o seu equipamento superorgânico5 (...) [Por isto] foi capaz de romper as barreiras das diferenças ambientais e transformar toda a terra em seu habitat (...) Adquirindo cultura, o homem passou a depender muito mais do aprendizado do que a agir através de atitudes geneticamente determinadas. (Apud LARAIA: 2014, p. 48).

Por ser racional e adaptável ao meio ambiente, é inegável a capacidade do

homem de criar meios que o auxiliem na sua sobrevivência. E esta criação dá origem

a outras formas culturais, e estas, por sua vez, a outras ainda, até que o homem seja

dependente cada vez mais de sua própria aprendizagem. A cultura é dinâmica porque

o homem é capaz de criar, desenvolver e aperfeiçoar e até desfazer o que foi criado.

Jaime PINSKY relaciona as primeiras civilizações como sendo o resultado do

desenvolvimento da agricultura. Com o sentido etimológico de campo ou território

(ager) e cultivo (cultura), ou seja, “cultivo do solo”, a agricultura serviu para fixar o

homem no campo e dar origem às primeiras cidades, com o sentido de civilização

(civita). Portanto, as técnicas agrícolas faziam parte dos “hábitos adquiridos” e

desenvolvidos pelos homens desde seus primórdios.

Mas Pinsky define o termo civilização num sentido mais amplo, como sendo:

4. KROEBER, Alfred. O Superorgânico. Apud: LARAIA: 2014, p. 48. 5. A ideia de "o superorgânico", título do livro de Alfred Kroeber – antropólogo americano –, escrito em

1949, é a de que “graças à cultura a humanidade distanciou-se do mundo animal”. (Apud LARAIA: 2014, p. 36)

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uma organização política formal com regras estabelecidas para governantes (mesmo que autoritários e injustos) e governados; implica projetos amplos que demandem trabalho conjunto e administração centralizada (como canais de irrigação, grandes templos, pirâmides, portos, etc.); implica a criação de um corpo de sustentação do poder (como a burocracia de funcionários públicos ligados ao poder central, militares, etc.); implica a incorporação das crenças por uma religião vinculada ao poder central, direta ou indiretamente (os sacerdotes egípcios, o templo de Jerusalém, etc.); implica uma produção artística que tenha sobrevivido ao tempo e ainda nos encante (o passado não existe em si, senão pelo fato de nós o reconstruirmos); implica a criação ou incorporação de um sistema de escrita (os incas não preenchem esse quesito, e nem por isso deixam de ser civilizados); implica, finalmente, mas não por último, a criação de cidades.” (PINSKY: 1994, p. 46).

Destacamos aqui o conceito de civilização como continuidade e extensão da

cultura por tratar-se de um conjunto formal que abarca uma série muito grande de

elementos culturais, aproveitados pelos primeiros Estados, que por sua vez, estes

elementos serviram e servirão como legado para outros.

Os elementos culturais que são padronizados pelo Estado formam a base do

comportamento legal, moral, jurídico, familiar, religioso etc.. São elementos

institucionalizados que marcarão e caracterizarão determinado “povo”, reino ou país

e são repassados aos seus membros mediante a escrita e a prática.

1.2. Como opera a cultura: o homem tona-se condicionado pela cultura

Voltando à frase de Ruth Benedict acima, segundo a qual “a cultura é como

uma lente através da qual o homem vê o mundo”, podemos afirmar que o homem cria

e ao mesmo tempo é condicionado pela sua criação, a cultura. Os homens, como

seres sociais que influenciam e são influenciados, são também seres pensantes,

seletivos, críticos, discordantes e livres para se separarem uns dos outros, quando

querem ou acharem necessário. E ao seguirem por caminhos distintos dos demais,

aproveitam os aspectos culturais herdados de aprendizados anteriores e modificam-

nos quando julgarem oportuno. Assim, “... cada geração tinha [ou tem] que encontrar

formas de passar à outra o conjunto de conhecimentos já adquiridos e codificados.”

(Ibidem: p. 57).

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E, ao seguirem outros caminhos, os homens criam novos objetos ou valores

que se transformam em novos “padrões culturais”, próprios, que os norteiam, e

aperfeiçoam os já existentes, enquanto outros grupos fazem o mesmo, através do

tempo e espaço. “Não resta dúvida que grande parte dos padrões culturais de um

dado sistema não criados por um processo autóctone, foram copiados de outros

sistemas culturais. A esses empréstimos culturais a antropologia denomina difusão”

(Ibidem: p. 105).

A difusão – empréstimos culturais – está relacionada à forma como a cultura é

desenvolvida. Desta forma, via de regra, segundo Laraia, a cultura opera, entre outras

formas:

condicionando a visão de mundo de cada grupo social;

levando cada grupo social a usar “lentes diferentes” para ver as coisas do seu

modo;

fornecendo aos grupos um “comportamento padronizado”, por isso, pessoas do

grupo que agem diferentemente são discriminadas por estarem fora do padrão

cultural do seu grupo;

através do ensinamento/educação do padrão cultural...

Os empréstimos culturais podem englobar um padrão cultural já definido ou

apenas parte de seu todo. E sua “difusão”, aliada às novas invenções de forma

dinâmica e com suas próprias lentes, a tendência natural – como veremos – é certos

grupos considerarem seus padrões culturais “superiores” aos demais e discriminarem

outros comportamentos, considerados desviantes, não-civilizados, bárbaros ou

selvagens. Desta forma, “comportamentos etnocêntricos resultam também em

apreciações negativas dos padrões culturais de povos diferentes. Práticas de outros

sistemas culturais são catalogadas como absurdas, deprimentes e imorais” (Ibidem:

p. 74).

Acontece, portanto, o etnocentrismo6 “... quando os outros são pensados e

sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições. [...] Como

uma espécie de pano de fundo da questão etnocêntrica temos a experiência de um

choque cultural.” Por ora, queremos destacar como determinada expressão religiosa,

6. ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo? Ed. Brasiliense, 1984. Apud. GUADAGNIN: 2012, p.

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que nasce e cresce com um determinado grupo social, pode ser mal compreendida

por outro grupo que impõe sua cultura e sua “outra” religião, como aconteceu com

nossos nativos e com os negros.

1.3. Cultura e religiosidade: a busca do homem pelo transcendente

Cada sociedade ou povo define um “padrão cultural” a ser seguido pelos seus

membros ou indivíduos. Mas alguns elementos ou grupo minoritário deste conjunto,

quando se distanciam ou se depreendem do todo, são chamados de “subculturas”.

As crenças de um povo são exemplos de subculturas porque, via de regra,

representam uma subdivisão dentro de uma cultura dominante.

As crenças exercidas pelos povos desde os seus primórdios eram – e

continuam sendo no presente – uma forma de aproximação (ligação) com o

transcendente, o divino. Na Pré-história e Antiguidade, as crenças aconteciam,

quando exercidas em grupos, normalmente, sob as intervenções e/ou manipulações

de uma classe religiosa privilegiada, a dos sacerdotes.

Na Antiguidade, apenas o povo hebreu – em se tratando de civilização7 – por

volta do segundo milênio a.C., praticava uma crença monoteísta e isso se deveu ao

fato de sua religião ter sido uma revelação dada pelo próprio Deus, o que implica, ao

meu ver, um aspecto “supra cultural” da religião daquele povo, por ter sido produto de

revelação e não criação/invenção humana.

O Cristianismo e o Islamismo, religiões originárias do Judaísmo – a religião dos

hebreus –, também são tidas por seus adeptos como “revelações”, portanto supra

culturais, ou seja, “estão” acima das culturas e de outras religiões, por isso surgem os

conflitos, os fundamentalismos e os casos de intolerâncias, quando da sua divulgação

ou pregação, como objetos de imposição, dos quais falaremos mais à frente.

Mas a religiosidade, como a busca do homem pelo divino, representa um de

seus “símbolos” fundamentais por ser a afirmação de seu significado, conforme

enfatiza o professor Faustino TEIXEIRA, ao afirmar que a religião serve de “... potente

referencial contra o terror da anomia (...) A religião exerce um singular papel de

7. Refiro-me à civilização, ou Estado – com base na definição de Jaime Pinsky, Op. Cit. – pelo fato de

que há registros na Bíblia de casos particulares da prática monoteísta antes mesmo da chamada de Abraão. Mas como esta se deu em meio ao politeísmo mesopotâmico, somente depois da formação do Estado de Israel é que se adotou o monoteísmo como religião oficial do Estado hebreu, o Estado de Israel.

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integração das experiências anômicas, facultando um significado para as crises

biográficas (...) Diante do quadro de precariedade e limitação que envolve a situação

humana, a religião funciona como um dossel sagrado protetor do nomos...”

(TEIXEIRA: 2014, p.15).

A religião ocupa um lugar importante para o homem na sociedade. O “dossel

sagrado”8, de BERGER, citado por Teixeira, apresenta o papel da religião como uma

espécie de ‘edifício de representação simbólica’ que protege os homens contra o caos,

a falta de regras ou de leis, a luta contra o vazio... E este pensamento não é diferente

em muitas culturas e, para compreendê-las melhor, a religião constitui ‘o explicador

mais usual e, muitas vezes, o mais acreditado”9 dos seres humanos na busca pelo

Sagrado e Protetor.

A religião constitui uma necessidade e interesse dos seres humanos para:

suportar e vencer suas dificuldades de existência;

buscar os deuses (ou um Deus) que os podem salvá-los dos perigos terrenos;

buscar proteção e esperança contra as incertezas da vida, num outro mundo;

falar, ser ouvido e receber os deuses em seu próprio corpo...

A religião constitui uma “tessitura social” (afirma TEIXEIRA: 2014, p. 23),

apresentando o Brasil, na atualidade, como exemplo, influenciado socialmente, pelos

exemplos das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), da Igreja Católica; das

religiões afro-brasileiras, e da ‘fermentação do pentecostalismo’10 e

neopentecostalismo (em especial a Igreja Universal do Reino de Deus) entre as

massas brasileiras. A religiosidade constitui, portanto, uma força dinâmica, uma

expressão cultural, mas regada de “fé” (uma “dose” de alento supra cultural) que

marca as diversas subculturas de uma sociedade.

No próximo capítulo, falaremos sobre a religiosidade de nossos nativos

indígenas e dos negros, e como o etnocentrismo europeu levou-os à sua

descaracterização cultural, acompanhada da opressão e dizimação.

8. BERGER, Peter. O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião. Apud.

TEIXEIRA. Op. Cit, p. 15. 9. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Apud. TEIXEIRA. Op. Cit,, p. 17.

10. Interessante o exemplo destacado por TEIXEIRA (Op. Cit., p. 24), acerca dos pentecostais, fazendo uma comparação destes com a descrição do “dossel sagrado”, ao afirmar que “... os cultos pentecostais têm um singular papel de reconstrução do significado ‘de tantas vidas ameaçadas pelo caos, paralisadas pela perplexidade, mergulhadas na dor e acossadas pela iniquidade, pelo Mal’” (Cf. pesquisa feita na favela do Acari, Rio de Janeiro, 1995-1996...

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2. Etnocentrismo cultural religioso e brasilidades no Brasil Colônia

“As armas e os Barões assinalados / Que da Ocidental praia Lusitana / Por mares nunca de antes navegados / Passaram ainda além da Taprobana, / Em perigos e guerras esforçados / Mais do que prometia a força humana, / E entre gente remota edificaram / Novo Reino, que tanto sublimaram”11

“... a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa... porém... o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente.”12

O etnocentrismo cultural religioso no Brasil Colônia, séculos XVI a XIX, tem

como principal represente a Igreja Católica. E a inserção da mesma, por mim, neste

trabalho sobre o Protestantismo se dá, pelo fato, de este último assumir uma postura

defensiva e anticatólica, entre outros fatores, no final deste período e do período

seguinte, quando sua presença é notável por aqui. E também, por muitas vezes, o

Protestantismo usar práticas semelhantes às do catolicismo, como a utilização de

escravos por parte de ricos protestantes e alguns elementos de sua base doutrinal,

por exemplo. Além disso, falar da Igreja Católica no Brasil é também afirmar a sua

relação muito forte com o Estado de Portugal.

Portugal já nasceu católico e carregou em sua veia cultural a missão de levar a

religião às regiões e povos que conquistassem. Por outro lado, o Protestantismo já

nasceu anticatólico e também tem como um de seus objetivos a missão de

“descatolicizar”, com sua mensagem, a sociedade onde atua. E isto tem sido motivo

de muitos desentendimentos e intolerâncias de ambas as partes.

2.1. O Destino Manifesto católico na formação de Portugal

Portugal teve sua origem no contexto da Guerra da Reconquista, uma luta

histórica ocorrida entre os reis católicos Leão, Navarra, Castela e Aragão contra os

mouros, negros africanos convertidos ao Islamismo, que por volta do século VIII,

11. Trecho de Os lusíadas, Canto I. disponível em: <http://www.citi.pt/ciberforma/ana_paulos/ficheiros

/lusiadas.pdf>. Acesso em 26/08/2015. 12. Fragmento da Carta de Caminha. Disponível em <http://www.culturabrasil.org/zip/carta.pdf>. Acesso

em 26/08/2015).

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dominaram a península Ibérica. A Reconquista visava a expulsão dos mouros da sua

região e durou cerca de sete séculos, tendo como principais consequências a criação

de dois Estados Nacionais: Portugal e Espanha.

Quanto a Portugal, sua origem está relacionada à formação do Condado

Portucalense, região cedida ao nobre francês Henrique de Borgonha, por Afonso VI,

rei de Leão, em pagamento, por ter libertado suas terras do domínio mouro.

Em 1139, Afonso Henriques, filho de Henrique de Borgonha, declarou a

independência do condado, nascendo, assim, o Reino de Portugal e dando início,

também, à dinastia de Borgonha. Esta dinastia, também chamada Afonsina, em razão

do grande número de soberanos com o nome de Afonso, durou até 1383, sendo

sucedida pela dinastia de Avis, que dá um forte impulso às grandes navegações.

Portugal, já no momento de seu nascimento se vê como um reino eleito por

Deus para estabelecer o seu Reino, o catolicismo, por onde chegasse, além dos

“mares nunca dantes navegados”13. E seu fundador, o rei Afonso Henriques, coroado

como um ato sagrado do próprio Deus, em 25 de julho de 1139, é considerado uma

espécie de “messias” lusitano. Com seu senso místico aguçado, compara a si mesmo

e o seu grupo de soldados aos “300 de Gedeão”, ao lutarem contra os mouros e

saírem vencedores.

Afonso Henriques, que marchava com um pequeno exército para o Alentejo, para combater contra os mouros, teria tomado a Bíblia nas mãos e batido os olhos no texto da convocação que Iahweh fazia a Gedeão para a guerra e a sua vitória com apenas 300 soldados diante do exército numeroso de quatro reis midianitas (SILVA & RIBEIRO: 2007, p. 78).

Faz parte também deste imaginário messiânico de Afonso Henriques, o relato

do rei de que, após um dado momento que foi vencido, temporariamente, pelo

cansaço e pelo sono, acabara sendo acordado por um dos soldados de um “velho”,

de venerável presença e de ‘resplendor formosíssimo’, que o animara e garantira sua

presença nas lutas contra os mouros.

Na observação de Antônio BRANDÃO, citada por Ribeiro, no meio do

resplendor, visto por Afonso Henriques, foi visto o “... sinal da cruz, e nela encravado

o redentor do mundo (Ibidem: p. 78). Ou seja, Portugal nasceu com uma missão

13. Trecho de Os lusíadas (Canto I), 1572.

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“catequizadora”, na figura de seu primeiro rei, de levar a fé católica ao mundo, “...

como que por um destino manifesto, típico do próprio mito fundante da nação

portuguesa, elaborou-se o projeto colonial que, sob a direção do rei, impôs o

catolicismo como religião dominante, combatendo os hereges e inimigos da fé

católica” (Ibidem: p. 79).

Portanto, segundo a missão que julga ter-lhe sido dada por Deus, Portugal se

reconhece como seu enviado; tem a obrigação de ser um reino católico; deve civilizar

por meio e propagação da fé; as caravelas portuguesas são de Deus; os portugueses

são anjos de Deus; os soldados e os missionários, ministros de Deus...

Em toda a terra ou nação portuguesa, a união entre o poder espiritual,

simbolizado pela cruz, e o poder temporal, simbolizado pela espada (força militar) foi

passada para o regime do Padroado.

O Padroado régio remonta ao ano de 1493, um ano após a chegada de

Cristóvão Colombo à América. O papa Alexandre VI, atendendo aos apelos de

Portugal e Espanha, concede-lhes o direito de “cristianizar” os povos a serem

conquistados em suas novas terras. Então, o instaurador do Padroado foi o próprio

papa que, em 1501, um ano após a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil,

corrobora-o, confirmado depois por outros papas como Júlio II e Paulo IV,

completando “... a legislação do Padroado que se instaurou de forma definitiva no

Brasil permanecendo como sistema de sustentação da cristandade colonial até fins

do século XIX quando a Igreja passou então por um processo de romanização”

(Ibidem: p. 84).

2.2. Portugal, Igreja Católica e os índios no Brasil Colônia

O Reino de Portugal e os portugueses, com seus “padrões culturais” definidos

e portadores da “missão civilizatória”, ao encontrarem aqui os povos nativos, sentem-

se na obrigação de “salvar essa gente”, conforme observa Pero Vaz de Caminha com

a “lente cultural” de um católico de final do século XV. Mas que gente era aquela?

Havia apenas um grupo étnico no Brasil? Contudo, era preciso, por meio do processo

de aculturação, levar aqueles povos a aceitarem a fé, tornarem-se católicos.

Ainda que alguns sociólogos não defendem a absorção total de uma cultura por

outra, senão em casos extremos, não resta dúvida de que, por meio do processo de

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catequização/aculturação a Igreja Católica, em nome do Estado português, assumiu

o papel da conversão dos nativos brasileiros.

Já na celebração da primeira missa no Brasil (26/04/1500), a fé católica começa

a ser divulgada, contando com a presença de alguns índios, mas a incumbência de

efetiva catequização dos mesmos foi dada aos jesuítas, ordem religiosa e, ao mesmo

tempo militar, recém-formada no âmbito dos objetivos da Contrarreforma, que

começaram seus trabalhos por aqui no governo de Tomé de Souza (1549).

Com o monopólio da educação religiosa dos índios do Brasil, os jesuítas14

conseguiram obter poder hegemônico e até tentaram lutar por maior independência

em relação ao Padroado. Chegaram a possuir fazendas e escravos (como veremos)

e, mesmo interrompidos pelos reformados franceses e holandeses (séculos XVI e

XVII), conseguiram permanecer no Brasil até sua expulsão, por Marquês de Pombal

em 1759.

Mas, voltando à questão da aculturação da brasilidade indígena, a subcultura

religiosa dos vários grupos aqui existentes, pode remontar, segundo Jorge

PINHEIRO15, há mais de mil anos antes da chegada dos portugueses. Ele cita dois

grupos, o dos Tupinambá e o Tupi-Guarani, como exemplo direto. E com base em

leitura francesa do século XVI, estes grupos devotavam crença por Monan, que se

assemelha ao Deus judaico-cristão, e tinham recebido diversos ensinamentos como

a prática da agricultura (principalmente o cultivo da mandioca), segredos das plantas

alimentícias e medicinais, noções de legislação e ética, técnicas de construção etc.,

de certo herói chamado “Pai Çumé” (ou Sumé), ou seja, Tomé, um dos apóstolos de

Cristo. Tomé teria também proibido a poligamia e a antropofagia, fatos que

provocaram oposição por parte de alguns que acabaram ateando fogo à sua casa,

alvejaram-no com flechadas e até o jogaram no rio.

Além dos Tupinambá, “... os tupis [também] acreditavam que Çumé partiu

caminhando sobre as águas do Atlântico, mas prometeu voltar um dia para continuar

sua obra civilizatória. Quem sabe a profecia se cumpriu e Çumé retornou com a

chegada dos jesuítas?” (PINHEIRO: 2014, p. 104). Há outras “possíveis” referências

sobre Tomé também na Bahia, Peru, Bolívia...

14. Cf. HOORNAERT. Apud SILVA & RIBEIRO: 2007, p. 86/87. 15. PINHEIRO: 2014, p. 102/109.

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Bem, o mito de Çumé, segundo Pinheiro, “... constitui elemento para se estudar

a questão dos heróis civilizadores. E tal discurso sobre os heróis civilizadores nos

remete à questão do sistema religioso dos indígenas do Brasil” (Ibidem, p. 105). Uma

questão, por exemplo, é o fato de que o estudo sobre os indígenas brasileiros foi mal

interpretado, pois

... os missionários, no afã de reduzir os indígenas a fé cristã, interpretavam apressadamente as suas figuras míticas nos padrões da teologia católica, identificando, por exemplo, Tupã com Javé e Anhangá com o demônio (...). Desta forma, é difícil definir o sistema religioso de nossos indígenas, e só por alto podemos enquadrá-lo nas formas estereotipadas de animismo, totemismo, xamanismo. Preferimos, por isso, descrever os elementos religiosos que mais chamam a atenção dos estudiosos, sem lhes dar uma interpretação definitiva. (Ibidem: p. 106/107).

Por estes exemplos e outros percebe-se o distanciamento e a não

compreensão das crenças dos índios por parte dos jesuítas e depois por missionários

protestantes. Com efeito, toda riqueza cultural indígena foi “... impactada pelo

processo de colonização, que combinou expropriação e extermínio, levou à extinção

de sociedades indígenas, quer pela ação das armas, quer pelo contágio de doenças

trazidas pelos brancos, quer pela aplicação de políticas visando a assimilação...”

(Ibidem: p. 108).

Cabe destacar aqui uma experiência, embora breve e diferente da prática dos

jesuítas: a relação entre os protestantes reformados holandeses e os índios do

Nordeste brasileiro, no século XVII. Ribeiro16 afirma que a presença dos holandeses

no Brasil colaborou para uma série de “avanços” no Nordeste brasileiro, como por

exemplo:

educação de líderes nativos na Holanda;

desenvolvimento da economia, das ciências, das artes, de uma ética

irrepreensível e de certa liberdade religiosa;

observância do domingo, lei que beneficiou também os escravos negros;

16. Cf. SILVA & RIBEIRO. Op. Cit., p. 92/95. Mario Bueno Ribeiro, com base em textos como os de

Antonio Gouvêa MENDONÇA, Eduardo HOORNAET, Jean de LERY, entre outros, chamam a experiência holandesa no Nordeste, juntamente com a presença dos huguenotes franceses na França Antártica, (no século anterior) de ‘invasores da religião’. São momentos de grande preocupação para os jesuítas e para a Igreja Católica, no aspecto religioso. Tanto na Guanabara (Rio de Janeiro) quanto no Nordeste, os protestantes “invasores” foram vítimas de intolerância religiosa.

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acompanhamento da esposa do escravo, em caso de ele ser vendido;

esforço e o zelo ético-religioso;

alfabetização e criação de uma nova mentalidade nos nativos;

hábito na prática das orações e da religiosidade reformada...

Mas estes avanços logo foram apagados pela ação dos jesuítas.

2.3. Portugal, Igreja Católica e os negros no Brasil Colônia

“Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura... se é verdade / Tanto horror perante os céus?! (...) Quem são estes desgraçados / Que não encontram em vós / Mais que o rir calmo da turba / Que excita a fúria do algoz? / Quem são? Se a estrela se cala, / Se a vaga à pressa resvala / Como um cúmplice fugaz, / Perante a noite confusa...”17

Em diversos textos que tratam da relação de Portugal e da Igreja Católica com

os negros no Brasil Colônia, percebe-se quão triste foi a vida dos africanos escravos,

começando pelos navios negreiros, depois nas feiras de escravos, e em seguida nos

engenhos, na mineração, nas senzalas, nos convívios sociais, nos terreiros, nas

capelas, nos quilombos...

O Professor Sérgio Sezino Douets Vasconcelos, em seu texto sobre a relação

da Igreja Católica frente à escravidão e à religião africana no Brasil, inicia afirmando

que na América Latina, onde os jesuítas atuaram, a presença do cristianismo, em sua

relação com os milhares de homens e mulheres, barbaramente escravizados, foi

marcada por grandes “ambiguidades”. Uma destas ambiguidades foi o fato de a Igreja

ter sido conivente com a escravidão e a utilizar, ela própria, da “... mão-de-obra

escrava para a sua sustentação econômica e ter também servido de base ideológica

para a justificação religiosa da escravidão” (VASCONCELOS: 2005, p. 34/35). E no

Brasil, a base ideológica da Igreja estava em perfeita consonância com a política

econômica do Estado português, como foi descrita por Caio Prado Júnior18, que

resumia em fazer uso do Brasil como um potencial fornecedor de matérias-primas e

17. Trecho de Navio Negreiro, de Castro ALVES, o poeta dos escravos, que “... conseguiu, com o seu

Navio Negreiro, colocar em poema a dor de Deus” (Ricardo Gondim). Disponível em: <http://www.ricardogondim.com.br/meditacoes/senhor-deus-dos-desgracados/>. Acesso em

28/08/2015. 18. Cf. PRADO JR, Caio Prado. Formação do Brasil contemporâneo. Apud VASCONCELOS, p. 35

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produtos tropicais, em larga escala, produzidos nos grandes latifúndios, sob um

governo patriarcal, o senhor de engenho, e sustentados sob a mão-de-obra escrava

negra, para enriquecimento da Metrópole. Portanto, os escravos eram “... os pés e as

mãos do senhor de engenho”, como afirmava André João ANTONIL, jesuíta italiano e

também proprietário de engenhos e de grande número de escravos no Brasil. Para

ele,

no Brasil não é [era] possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo, como se há com eles, depende tê-los bons ou maus para o serviço. Por isso é necessário comprar cada ano algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas.19

Alicerçados nos “padrões culturais” do europeu (gente branca, civilizada,

católica, culturalmente mais evoluída que os índios e os negros), os portugueses ao

virem para o Brasil, traziam o seu “mundo cultural” e, aqui, apesar da distância de sua

terra, e viverem agora, nos latifúndios, era apenas uma extensão do mundo europeu.

“Na intimidade da casa dos senhores portugueses, os valores e o estilo de vida são,

na maioria das vezes, a cópia da vida em Portugal” (VASCONCELOS: 2005, p. 37).

Mas, para os negros, a realidade era muito diferente. O Brasil, para eles,

representava um “habitat” estranho, um “mundo horrível”, depois de terem sido tirados

de suas aldeias, suas várias regiões, seus vínculos sociais, sua religiosidade... e

estarem, agora, submetidos a “senhores” sem escrúpulos que lhes impõem outra

cultura: língua portuguesa; religião católica; capitalismo focado no lucro (apenas para

os senhores, obviamente) e, por isso, sustentado pela escravidão; descaracterização

de sua cultura... E também, muitos deles, “... serem capturados, já batizados na África

ou, imediatamente, nos portos brasileiros, antes de serem vendidos e levados para os

engenhos de açúcar... [Serem] marcados a ferro-quente com o símbolo da coroa

portuguesa (...), marca [que] servia também como certificado do batismo cristão.”

(Ibidem: p. 40).

Quem são estes “desgraçados”?, perguntava Castro Alves! Se a classe

dominante crê no “Senhor Deus”, assim como eles, após se tornarem “cristãos”, como

seus algozes, porque eles sofriam “tantos horrores perante os céus”? Mesmo sendo

cristãos, eles não podiam nem participar das missas nas capelas, por “... serem as

19. Cf. PINHEIRO (2014), Op. Cit. Nota 137, p. 195.

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igrejas pequenas e escravos andarem nus; e, pelo mal cheiro, não os deixam os seus

senhores e Portugueses estar nem dentro nem fora das igrejas” (In: Ibidem: p. 43).

Eram batizados, tornavam-se cristãos, mas continuavam escravos. A catequização

ministrada aos negros baseava-se na pedagogia do medo e do castigo. Eles, agora

batizados, precisavam se esforçar para decorar as orações e ensinamentos, mesmo

porque, antes disto, suas almas eram habitadas pelo demônio20.

No seu artigo, escrito por ocasião do centenário da assinatura da Lei Áurea,

1988, Eduardo HOORNAERT (Op. Cit.) destaca que a Igreja Católica “fez pouco,

muito pouco” em relação aos horrores da escravidão. Mesmo os padres que se “ ...

sensibilizassem diante da dor e desgraça dos africanos aqui despejados pelos navios

negreiros, não tinham força nem vontade de mudar a ordem das coisas que entravam

na lógica interna do sistema colonial”21. Isto porque, como temos enfatizado, a igreja

tinha o mesmo modo de pensar do europeu e o projeto europeu de colonização e

como sustentáculo e “base de legitimação”, a Igreja Católica. Com isto, os

afrodescendentes católicos, e mesmo os que desejassem seguir o sacerdócio,

deveriam pensar como o europeu.

As Constituições do Arcebispado da Bahia, de 1707, que foram durante os séculos XVIII e XIX a Carta Magna da Igreja no Brasil, proibiam o sacerdócio a mulatos, a não ser por indulto papal. Essa ordem jurídica nem sempre foi obedecida, de sorte que houve casos de mulatos claros no clero e até no episcopado, sobretudo no século XIX. Mas os mulatos que conseguiram subir tão alto na sociedade tiveram todo o cuidado em conformar-se com o modo de pensar reinante na classe dos brancos, e esquecer, por assim dizer, a cor de sua pele. O Brasil mulato e negro não conheceu líderes religiosos que defendessem seus direitos e a dignidade de sua raça, como aconteceu no protestantismo norte-americano, onde pastores negros e mulatos defendiam os direitos dos fiéis de sua cultura e origem. A Igreja católica no Brasil nunca conheceu uma figura como, por exemplo, a do pastor Martin Luther King, defensor dos negros protestantes (e outros) nos Estados Unidos (HOORNAERT: 1988).

Precisamos fazer justiça às “vozes proféticas” católicas que se colocaram

contrárias à escravidão no período colonial. Hoonaert cita três principais, no século

20. VASCONCELOS: 2005, p. 41 e 42. 21. HOORNAERT: 1988, p. 21-26.

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XVI, os padres jesuítas Miguel Garcia e Gonçalo Leite, e no século XVIII, a figura de

Manuel Ribeiro da Rocha. Este último, influenciado pelo iluminista Montesquieu,

condenava o “tráfico negreiro” e defendia a libertação dos negros.

Portando, excetuado estas e outras figuras honradas, que agiam como “vozes

que clamavam no deserto”, o etnocentrismo cultural do homem europeu, católico,

civilizado, portador da moral e do padrão ideal de beleza se impõe sobre os negros

no Brasil Colônia, principalmente até o século XVIII, em nome de um cristianismo

desvirtuado e carregado de práticas escravistas, além da descaracterização de sua

cultura. Por isso, reconhecer este passado afro-brasileiro, além da compreensão da

religiosidade e demais elementos culturais do negro, é indispensável para um diálogo

inter-religioso e sem intolerância, como veremos adiante.

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3. Etnocentrismo e fundamentalismo protestantes

“É possível que, no futuro, esquecidos os preconceitos históricos e cessada a propaganda ideológica fundamentalista, surja neste campo religioso uma prática religiosa popular comum, enraizada na tradição cristã e estruturada na cultura brasileira”22

Como dissemos, o Padroado régio foi a base do Destino Manifesto Católico,

iniciado em Portugal e que tomou as rédeas do evangelismo cristão no Brasil, através

dos jesuítas, principalmente até meados do século XVIII, quando estes são expulsos

do Brasil por Marquês de Pombal, em 1759. Nesta época, verifica-se também a

influência da Ilustração23, como o Iluminismo passa a ser conhecido no Brasil. Assim,

apesar do Padroado durar ainda até o final do Império, a Igreja Católica, sem a ação

dos jesuítas e sob a influência das novas ideias liberais, perde parte de sua força como

Igreja estatal portuguesa. Pouco tempo depois, outras igrejas cristãs dividirão espaços

no Brasil com a Igreja Católica.

3.1. O Destino manifesto norte-americano e seus reflexos no Brasil

A presença protestante no Brasil tem origem com os chamados “invasores da

religião”24, como já dissemos, no Rio de Janeiro e no Nordeste, séculos XVI e XVII,

respectivamente. Mas, o início do Protestantismo25 no Brasil, se dá, de fato, a partir

da abertura dos portos, por D. João VI, após sua chegada aqui, em 1808.

Em 1810, há um acordo, assinado entre Portugal e a Inglaterra, o Tratado de

Comércio e Navegação, com a finalidade de estreitar as relações de aliança entre os

22. MENONÇA, Antonio Gouvêa. Apud. PINHEIRO: 2008, p. 7). 23. Nesta época, final do século XVIII, “ ... a Igreja não estava bem armada para enfrentar a perversidade

desses espíritos. Não tinha armas para enfrentar os filósofos, enciclopedistas, poetas, dramaturgos e reformadores sociais (...). O ataque dos deístas [e ateísta, ou seja, questionadores das ideias liberais] contra o catolicismo converteu-se em ataque contra os jesuítas...” (HUGUES, Philip. Apud SILVA & RIBEIRO. Op. Cit., p. 102/103.

24. Cf. Nota 16. 25. Dizemos “protestantes”, todos os cristãos, que têm ligação direta ou indireta com a Reforma e são

genericamente conhecidos, atualmente, como “evangélicos”. Mas, reconhecemos como afirma Antonio Mendonça, que “... o conceito traz consigo enorme confusão, a não ser para aqueles que, mesmo trabalhando com categorias científicas, insistem em colocar sob a mesma categoria todos os grupos cristãos não católicos”. (MENDONÇA: 2005, p.50). Sobre isto, falaremos um pouco mais no capítulo 4...

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dois reinos, o que acabou favorecendo a vinda também de integrantes da igreja

inglesa, com base formalizada no acordo, de que os ingleses que para cá viessem

não fossem perseguidos por motivos religiosos:

... que os vassalos de sua majestade Britânica, residentes nos seus territórios e Domínios, não serão perturbados, inquietados, perseguidos, ou molestados por causa da sua religião, mas antes terão perfeita liberdade de consciência e licença para assistirem e celebrarem o serviço divino em honra ao Todo-Poderoso Deus, quer seja dentro de suas casas particulares, quer nas suas igrejas e capelas...26

Assim, tem início, no Brasil, ao que Mendonça (Op. Cit., p. 52) chama de

“período de implantação: de 1824 a 1916” do protestantismo no Brasil, com o

pioneirismo da Igreja Anglicana. Vê-se, nesta relação Portugal/Inglaterra, um acordo

para que os protestantes aqui residentes, não fossem “perseguidos” por causa de sua

religião. Tratava-se de uma mudança bastante favorável a estes primeiros cristãos

não católicos, e uma porta aberta a outras vertentes do Cristianismo Reformado.

Em 1824, chegam os primeiros luteranos que, juntamente, com os anglicanos,

vão formar o chamado “Protestantismo de Imigração”, cujos missionários atuarão em

suas colônias inglesas e alemãs. Mas, para efeito de nosso tema proposto, queremos

destacar o “Protestantismo de Missão”, representado, na ordem, pelas Igrejas

Congregacional (1855), Presbiteriana (1859), Metodista (1867) e Batista (1871). Estas

igrejas, como afirma a professora Rute Salviano Almeida, “...eram semelhantes em

suas principais crenças e diferentes em seu governo administrativo e estratégias

evangelísticas” (ALMEIDA: 2014, p. 160).

O histórico27 e as características de cada uma dessas igrejas, são destacadas

por ALMEIDA (p. 160 a 185), mas queremos enfatizar aqui o ponto comum de todas

elas, que foi sua origem para o Brasil: os Estados Unidos, país que desde a chegada

do Mayflower, em 1620, se tornou palco de fundações de diversas comunidades

religiosas.

26. REILY, Duncan Alexander. História Documental do Protestantismo no Brasil. Apud. SILVA &

RIBEIRO. Op. Cit., p. 117. 27. Este histórico, em ordem cronológica de chegada dos protestantes no Brasil é destacado, conforme

registra Almeida, também em: “Cronologia das igrejas protestantes no Brasil”. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Cronologia_das_igrejas_protestantes_no_Brasil>. Acesso em 04/09/2015.

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Neste caso, achamos por bem, voltarmos um pouco à história deste país,

enfatizando o que o historiador Justo L. GONZALEZ destaca como os grandes

“avivamentos” ocorridos naquele país.

Em meados do século XVIII, em “O Grande Avivamento”, merecem destaques

os pregadores Jonathan Edwards (calvinista) e Jorge Whitefield (anglicano). Suas

pregações provocaram um sentimento fortíssimo de perdão, conversão e alegria

espiritual nas pessoas que os ouviam, sentimento este que irradiava para outros

grupos. “As pessoas arrependiam-se dos pecados em meio a lágrimas, davam gritos

de entusiasmo pelo perdão alcançado e algumas até desmaiavam” (GONZALEZ:

2011b, p. 208). Este avivamento alcançou principalmente metodistas e batistas

(Ibidem: p. 210), e se estendeu às 13 colônias, que seriam os futuros Estados Unidos,

com um senso de comunidade e de novas ideias voltadas aos direitos humanos.

Neste avivamento, referido por Gonzalez, as repercussões surgem a partir da

Universidade Yale, com o pregador Timothy Dwigt, neto de Jonathan Edwards, que

resultaram num compromisso de atender às missões estrangeiras. Em 1816, foi

fundada a Junta Americana de Comissionados para Missões Estrangeiras. “Quando

um dos missionários enviados por essa organização, Adoniram Judson, se tornou

batista, os batistas norte-americanos sentiram-se chamados a deixar um pouco de

lado o seu congregacionalismo e organizar uma convenção geral cujo propósito

original era apoiar missionários batistas em outras partes do mundo” (GONZALEZ:

2009, p. 27/28).

Além do despertamento missionário, outros grupos se envolveram em questões

sociais como a abolição da escravatura, guerra contra o álcool e outras, as quais

acompanharam, também, à Marcha para o Oeste, com “... a fé vibrante que as

primeiras fases do avivamento haviam despertado, e em seus novos lugares de

residência procurara manter viva essa chama” (Ibidem: p. 28). Portanto, os

avivamentos faziam parte dos diversos “horizontes”, estudados por Gonzales e que

coincidem com o período de “implantação” do protestantismo no Brasil, referido por

Mendonça.

Faziam parte, também, do “Destino Manifesto”, dos Estados Unidos, resumido

na “... convicção dos brancos norte-americanos de que o seu país tinha um objetivo

assinalado pela divina providência de guiar o resto do mundo nos caminhos do

progresso e da liberdade”. (Ibidem: p. 31/32). Os Estados Unidos, mediante o destino

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de ‘anglo-saxonizar’ a humanidade, “... tinham a responsabilidade de civilizar as raças

mais ‘atrasadas’ do resto do mundo” (Ibidem: p. 44). E isto implicava em pregar contra

o catolicismo que representava um modelo atrasado de civilização e religiosidade.

E no Brasil, o “Destino Manifesto” protestante se transformou no modelo do

“Protestantismo de Missão”, ou na visão de Gedeon Alencar, no ‘protestantismo de

conversão’; da mudança de vida; do proselitismo. Mas também, afirma Alencar,

ser protestante neste momento histórico é também ser tecnologicamente superior, pois é fazer parte da religião do livro (...); é uma religião de letrados, num país de analfabetos. De música clássica com pianos, órgãos e hinários cifrados – culturalmente estrangeiros; é assumir o ‘estilo americano de vida’ (...). Ademais, dentro do caldo ideológico do ‘destino manifesto’ e etnocêntrico, se propõe a ser um modelo cultural superior. É uma cultura letrada, numa terra de cultura oral; é uma mensagem de participação comunitária numa terra de religião clerical (catolicismo) ou marginal (afro); é uma leitura bíblica de responsabilidade pessoal para um ethos messiânico; é uma religião que ergue escolas mistas e modernas numa terra onde a alta burguesia ainda vai para a Europa estudar. É o top da modernidade. (ALENCAR: 2007, p. 42/43)28

O modelo de protestantismo de missão norte-americano, implantado no Brasil

vai se firmar através de um “fundamentalismo” anticatólico e de muito pouca

aproximação com a cultura brasileira, dificultando, desta forma, uma aproximação com

pessoas de outros credos, mediante o diálogo sadio e amigável com estes grupos,

como veremos na sequência.

3.2. O fundamentalismo protestante: sua teologia e aplicação no Brasil

“O protestantismo veio para o Brasil a fim de resolver um problema: o catolicismo. Sua missão é converter católicos ao protestantismo... (Rubem Alves)”.

Em outro, de seus muitos livros, no capítulo sobre “horizontes intelectuais: a

teologia protestante”, Justo L. GONZALEZ (2009) destaca o século XIX como uma

época de grandes desafios para o Cristianismo. Esses desafios foram notáveis em

novas correntes do pensamento liberal, em decorrência do impacto da Revolução

28. ALENCAR sintetiza as ideias de vários pensadores como Bastides, Mendonça, Reily, Tillich,

Cavalcanti, Ribeiro, Alves, Campos, César... constantes em sua bibliografia.

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Industrial na Economia e em todos os aspectos da vida, como migrações,

principalmente rurais, rompimento dos laços de família, crescente individualismo e

egocentrismo (o tema do ‘eu’) que passou a ocupar a literatura da época. O olhar para

o futuro, sob a ideia do progresso, contrariava a forma de pesquisa que adotava até

então. “Até pouco antes, a opinião mais comum era de que as ideias eram certas

quanto mais antigas fossem” (GONZALEZ: 2009, p. 91). Agora, muitos dos

intelectuais que enfatizavam o “futuro”, motivados pelo progresso, em detrimento do

passado, vão pôr em dúvida o que se tem dito até então, em matéria de “verdades”

histórica e religiosa. E neste sentido, a “... Teoria da Evolução, de Darwin, é uma

expressão dessa confiança no progresso” (Ibidem: p. 91). Progresso este, teorizado

por Augusto Comte, fundador da Sociologia Moderna, que seguia as etapas da “...

‘teológica’ à ‘metafísica’, e desta à ‘científica’. (...) No campo religioso, estes estudos,

aplicados à Bíblia, produziram fortes abalos e extensos debates” (Ibidem: p. 93). E

nos Estados Unidos, a teoria de Darwin e outras também de relevância defesa do

progresso, repercutiram em forma de “teologia liberal” que tentava “... harmonizar o

cristianismo com a modernidade, caso contrário, a fé cristã se tornaria uma religião

irrelevante e sem sentido nos tempos modernos” (SOUZA, Org.: 2013, p. 52). Apesar

de não ter sido um “movimento monolítico”, segundo GONZALEZ (2009, p. 48), o

liberalismo foi considerado uma ameaça à fé cristã, e exigiu uma resposta da “ala

conservadora” de reação “antiliberal”, que defendia os “fundamentos da fé”.

Estes fundamentos da fé, difundidos por institutos bíblicos e pela publicação,

“... entre 1909 e 1915, de uma série de panfletos intitulados The Fundamentals”

(SOUZA, Org.: 2013, p. 45 e TEIXEIRA: 2014, p. 104), somados às confissões de fé

(dogmas) das igrejas presbiterianas e batistas do sul dos Estados Unidos, resumiam

assim suas principais defesas:

a infalibilidade e inerência das Escrituras;

a divindade de Cristo e seu nascimento virginal;

a remissão dos pecados da humanidade pela crucificação de Jesus;

a ressurreição corpórea de Jesus como um fato histórico;

a volta iminente de Jesus à Terra...

Depois da formulação deste conteúdo e sua divulgação, “... nascia, assim, uma

contraofensiva fundamentalista a um modernismo em curso no mundo protestante,

que estaria interpretando os conteúdos essenciais da fé numa problemática

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perspectiva histórico-crítica. Em oposição a tal modernismo, firmavam-se conteúdos

considerados Fundamentais, ou seja, verdades absolutas e intocáveis, que deveriam

estar preservadas dos ares dissolventes da ciência e da relativização moderna”.

(TEIXEIRA: 2014, p. 104).

Outros estudos como os das sete “dispensações”, formulados por Nelson

Darby29, e da publicação da “Bíblia de Scofield” passaram a ter grande popularidade

no meio fundamentalista30 da época, e posso afirmar, ainda hoje31.

Cabe ainda destacar o surgimento do “evangelho social” que, embora baseado

no liberalismo, tentava “... compreender a fé cristã, de tal modo que ela se mostrasse

compatível com aquelas ideias. (GONZALEZ: 2009, p. 48) e era formado por uma

classe média instruída, preocupada com os graves problemas das massas urbanas.

No entanto, enquanto “...um pequeno núcleo dedicou-se com afinco a mostrar as

relações entre as exigências do evangelho e as condições deploráveis em que viviam

as massas urbanas”. (Ibidem: p. 50), a maioria não seguiu o mesmo caminho.

No Brasil, portanto, as igrejas fundamentalistas presbiterianas e batistas,

seguiram as mesmas diretrizes de suas igrejas coirmãs norte-americanas, difundindo

uma religiosidade muito distante da realidade cultural brasileira, segundo os

sociólogos.

... os missionários eram frutos do avivamento fundamentalista norte-americano e traziam no bojo de seu discurso uma visão anticatólica, afirmando ser o catolicismo romano uma deturpação do cristianismo ou até mesmo paganismo. Dentro desse imaginário missionário, diga-se de passagem, quase todos o possuíam, fazia-se necessário desconverter os brasileiros cultural e religiosamente e introjetar-lhes uma nova

29. Cf. SOUZA, Op. Cit., p. 50 e 51 e GONZALEZ, OP. Cit., p. 50. As sete dispensações são: Inocência,

Consciência, Governo Humano, Abraâmica ou Patriarcal, Lei, Graça (atual) e Milênio. 30. Cf. GONZALEZ: 2009, p.50. 31. Será que sou fundamentalista? Quando me tornei protestante, em 1980, eu tinha (e ainda tenho) a

preocupação de ler comentários bíblicos feitos por líderes (apologistas) que demonstram cuidado nas defesas dos muitos textos bíblicos de difíceis interpretações. Afinal, ficar apenas com a ideia da “livre interpretação”, de Lutero, acho muito perigoso. Bem, uma Bíblia com comentários que encontrei na época em livrarias cristãs foi a BÍBLIA SAGRADA, Edição Revista e Atualizada, com as referências e anotações de Dr. C.I. Scofield. Comprei minha bíblia, uma edição de 1987. E para mais informações acerca destes assuntos – dispensações e escatologia, comprei um livro chamado O Plano Divino Através dos Séculos: estudo das dispensações”, de OLSON, Nelson Lawrence. Rio Janeiro. CPAD, 1981. E lembro-me, também, que havia um mapa que acompanhava o livro, para ilustrar as dispensações. Nunca achava, até a leitura dos livros que compõem a bibliografia deste trabalho e aulas recentes, que este tipo de estudo das Escrituras, através de dispensações, bem como a Bíblia de Scofield fazem parte de leitura “fundamentalista”.

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cultura, protestante, burguesa, branca, anglo-saxã. (SILVA & RIBEIRO: 2007, p. 141).

A partir destes e outros textos, relativos à questão da relação do protestantismo

de missão – e posteriormente, de forma parcial, com os pentecostais e

neopentecostais –, com a cultura brasileira, podemos afirmar (sem entrar no mérito

do dogmatismo teológico ou análise sociológica, apenas destacando o meu parecer

em relação ao que estudiosos32 do assunto dizem a respeito), que sua teologia em

relação à cultura brasileira foi/é etnocêntrica em vários pontos, por ser:

anticatólica – como os protestantes encontram as matrizes brasileiras indígena e

afro já aculturadas por católicos, seu trabalho constitui, entre outros, o de

“descatolizar” estas etnias e pregar sua fé aos próprios católicos, pois na visão dos

missionários, estes também são “pagãos”;

escatológica – a ideia literal de que o protestante “não é deste mundo” tem

contribuído para uma não (ou pouca) inserção e diálogo entre negros e índios; ao

se converterem os protestantes passaram a ser vistos como ‘pessoas estranhas’

no seu meio social;

antissocial – o viver neste mundo e não ser deste mundo tem gerado um

distanciamento entre o protestante e as pessoas de outros credos, ou seja, “... o

protestante tem preconceito de ser social”33; ser convertido é ser afastado do

mundo;

visionária/defensora de um mundo maniqueísta – como o trabalho missionário é

espiritual, voltado para Deus e não ao mundo, a postura protestante foi a de não

envolvimento com as questões políticas e sociais de negros e índios e outros

grupos;

exclusivista, na defesa da verdade – por serem herdeiros do fundamentalismo

norte-americano, os protestantes brasileiros não souberam lidar com a relação

entre seus “cinco” pontos de fé34 – suas verdades – e a realidade cultural brasileira,

impedindo um diálogo sadio com a mesma;

32. Cf. ALENCAR: 2007, p. 70-73 e GONÇALVES: 2011, p. 128-129. 33. Como já mencionamos acima, os cinco pontos de fé fundamentalista são: a infalibilidade e inerência

das Escrituras, a divindade de Cristo e seu nascimento virginal, a remissão dos pecados da humanidade pela crucificação de Jesus, a ressurreição corpórea de Jesus como um fato histórico e a volta iminente de Jesus à Terra...

34. GONÇALVES: 2011, p. 130.

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pré-milenista – a defesa do pré-milenismo cooperou para um recuo na ideia social

brasileira de progresso, provocando um “... progressivo distanciamento entre a

Igreja e o mundo, incompatibilizando-a com projetos de melhoria social.”

Este etnocentrismo centrado na “legitimidade” da pregação da Palavra e na

ordem dada por Jesus para “conversão” das almas, com base no “ide a todo mundo”,

tem se distanciado da realidade cultural das matrizes de nossa brasilidade, uma vez

que os missionários, por exemplo, não souberam “interpretar” os sistemas religiosos

tanto dos índios, quanto dos negros, e suas respectivas contribuições culturais para o

Reino de Deus, além do choque teológico com os católicos. Ademais, além da não

compreensão de suas religiosidades e aproveitamento de suas contribuições ou parte

de seus padrões culturais, os protestantes, ao se colocarem como “mensageiros” das

boas novas do Evangelho – a pregação que só Cristo salva –, não souberam dialogar

com estas culturas no sentido de evitar muitos atritos como os estudiosos têm

mencionado em seus estudos. E é óbvio que a convivência com o “outro” pressupõe

alguma discordância, mas o saber conviver com as diferenças é o caminho para a paz

entre os contrários, como veremos em outro capítulo.

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4. Pentecostalismo e Neopentecostalismo: etnocentrismo e intolerância

“Levar a Boa Notícia – Evangelho – não significa exportar cultura, criar dialeto ou forçar critérios morais. Na evangelização, fica implícito que todos podem continuar a costurar, compor, escrever, brincar, encenar, como sempre fizeram. O evangelho convoca à pratica da justiça; cria meios de solidariedade; procura gestar homens e mulheres distintos; imprime em pessoas o mesmo espírito que moveu Jesus a praticar o bem.”35

A realidade do protestantismo brasileiro mudou bastante após a implantação

da República. A Igreja Católica, que até então, teria sido a “religião oficial” do Império,

com base na Constituição de 1824, agora, após a Constituição Republicana de 1891,

ela deixa de ser oficial, o Padroado deixa de existir, e os caminhos para outros credos

religiosos são abertos num Estado laico e livre.

As igrejas protestantes também mudam bastante, tendo que dividir espaço com

outras correntes, chamadas pentecostais, que surgem no seio destas mesmas igrejas,

e destas, surgem ainda, as neopentecostais, que marcarão presença no Brasil e

ingressarão ao quadro dos chamados “evangélicos” brasileiros. O conceito, um breve

histórico, suas ideologias, além dos consequentes casos de intolerância recebidos ou

praticados por estas igrejas, falaremos a seguir.

4.1. Protestantes, evangélicos ou crentes?

“[O] estabelecimento ficava entre duas igrejas evangélicas (...). ‘Na foto vemos três típicos estabelecimentos comerciais, apenas o do meio paga impostos’ (disse, um internauta)”36

35. GONDIM, Ricardo. In: Deus nos livre de um Brasil evangélico. Disponível em:

<http://www.ricardogondim.com.br/meditacoes/deus-nos-livre-de-um-brasil-evangelico/>. Acesso em 20/09/2015.

36. O curioso caso do Bar do Araújo, em Palmas – TO, que ficou famoso por estar entre duas igrejas: uma, Deus é Amor e a outra, Universal do Reino de Deus. Disponível em: <http://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2015/06/famoso-nas-redes-sociais-bar-do-araujo-nao-resiste-e-muda-de-local.html>. Acesso em: 04/10/2015.

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Com a diversidade de inúmeros grupos cristãos originados nas igrejas

reformadas que vão surgindo de tempos em tempos, os termos/conceitos também vão

se confundindo. Daí a necessidade de conceituação e diferenciação.

Cabe perguntar: ser protestante, evangélico ou crente quer dizer a mesma

coisa? E os pentecostais e os neopentecostais são também protestantes? Estes são

cristãos e consideram os católicos e os ortodoxos também como cristãos? E,

considerando que todos se identificam como cristãos e seguidores (espera-se) do

mesmo Cristo, como estes agem em relação aos demais membros ou participantes

de outros credos religiosos ou não, agnósticos ou ateus, por exemplo? E quando

pessoas destes grupos denominam-se a si próprios como “salvos”, para diferenciar-

se dos demais, os “perdidos”? São inúmeras situações relacionadas aos inúmeros

títulos ou conceitos – podemos afirmar –, que trazem em seu bojo uma carga de

preconceitos, isolamentos ou distanciamentos que os separam de outros,

individualmente ou em grupos, e até de igrejas ou denominações que, na prática,

deveriam ser tratadas como coirmãs.

Considerando os cristãos resultantes da Reforma Protestante do século XVI e

suas ramificações, ficamos com a definição dada por Mendonça, de que podemos

considerar protestantes “... aquelas igrejas que se originaram da Reforma ou que,

embora surgidas posteriormente, guardam os princípios gerais do movimento. Estas

igrejas compõem a grande família da Reforma: luteranas, presbiterianas, metodistas,

congregacionais e batistas” (MENDONÇA: 2005, p. 51). Mas os anglicanos e os

batistas37 preferem ser chamados “evangélicos”, ao invés de “protestantes”, e como

eles guardam os princípios da Reforma, não há necessidade de se “... criar uma

categoria à parte. São integrantes do protestantismo chamado tradicional ou histórico,

tanto do ponto de vista teológico como eclesiológico” (Ibidem, p. 51).

As igrejas surgidas como divisões destes cinco ramos, provenientes da

Reforma, ditas acima, são chamadas por Mendonça de “sub-ramos” e, por

37. Um batista que me evangelizou, lá pelos idos do final dos anos 70, já dizia preferir o termo

“evangélico”, ao invés de “protestante”. Por algum tempo, eu também defendia esta bandeira, mas com o passar do tempo, tendo em vista a grande mistura e confusão que o termo “evangélico” carrega em si, passei a preferir o termo protestante, embora sendo assembleiano, por causa da história que este ramo reformado do Cristianismo representa. A professora Rute, que é batista, também afirma, citando HAHN, Carl Joseph, que “... a palavra ‘evangélico’ é, desde o início, mais usada e preferida. A palavra ‘protestante’ é às vezes empregada pelos escritores católicos romanos, mas quase nunca pelos próprios protestantes. Isto é verdade não somente no Brasil, mas em toda a América Latina”. (Apud ALMEIDA: 2014, p. 148).

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generalidade, também são protestantes, pois seus membros professam uma crença

individual, inspiram-se na Bíblia, através de uma interpretação direta e pessoal,

embora, via de regra pelo viés literal e fundamentalista.

Mas estes ‘sub-ramos’ protestantes estão cada vez mais se subdividindo e, por

conseguinte, trazendo cada vez mais confusão à sociedade, de modo que a maioria

dos “crentes” ou membros destas igrejas é posta no mesmo “saco” ou “status” e

tratada da mesma forma. E ao ouvirem falar de um “ato falho”, caso de confusão de

termo, por exemplo, de determinado líder midiático ou de algum caso de escândalo, a

impressão que se tem é a de que todos pagam por alguns. E à medida que estes

grupos ou novas igrejas surgem, sejam quais forem suas motivações, a tendência é

que as generalizações também aumentem. Na verdade, “evangélico” é um termo

extremamente singular dentro de uma pluralidade.

Em tempos de campanhas políticas, as generalizações “crentes/evangélicos”

viram notícias constantes na mídia e, em contrapartida, adjetivações como

homofóbicos, fundamentalistas, retrógrados, radicais, conservadores etc., ocupam

muitos espaços nas redes sociais, numa discussão sem fim. E os motivos de tudo isto

são, entre outros, o fato de os “evangélicos”, hoje, terem crescido muito em número,

ocupado espaços na mídia, principalmente através de pastores que julgam

representar o “povo evangélico” e de uma bancada, também “evangélica” que

compram brigas, muitas delas desnecessárias, com outros segmentos sociais.

Na campanha política do ano passado, a Revista Carta Capital, de tendência

comunista/socialista, fez justiça – a meu ver – à classe “evangélica” quando, no calor

das discussões políticas, publicou um artigo do jornalista, de confissão batista,

Ricardo ALEXANDRE38, que teve a oportunidade de escrever sobre a diversidade de

pensamento que se originou da Reforma, redundando em diversidades de igrejas, os

evangélicos, hoje “micro divididos” e muitos até sem lideranças reconhecidas.

Embora, os “evangélicos” não conseguiram, por enquanto, eleger um candidato que os

represente, por causa de sua pluralidade, o certo é que muitos, dentre os quais, fazem muito

barulho e provocam muita polêmica, sem falar nos escândalos.

38. ALEXANDRE, Ricardo. Afinal, quem são ‘os evangélicos’?. Disponível em:

<http://www.cartacapital.com.br/sociedade/afinal-quem-sao-201cos-evangelicos201d-2053.html>. Acesso em 19/09/2015.

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Aliás, o título “protestante”, até onde tenho acompanhado, é um termo pouco

mencionado nestes debates, exceto, por exemplo, por católicos, também

fundamentalistas39, que ocupam tempo e espaço na mídia com debates e discussões

de ordem teológica, principalmente sobre dogmas que apontam divergências entre

suas opiniões e a dos “reformados”. São fundamentalistas de ambos os lados no meio

de um tiroteio de ideias, sem fim e sem sentido.

Mas, atualmente, tendo em vista o grande crescimento de igrejas pentecostais

e neopentecostais e a presença destas na mídia, o que boa parte delas fala acaba

sendo muito marcante e passando, via de regra, a ideia para a sociedade, como se

todos os evangélicos pensassem da mesma forma. Ou seja, são segmentos que se

assumem “evangélicos”, mas que representam apenas parte de um todo, e deste

(todo), uma maioria que não pensam da mesma forma. E, como vimos no exemplo

acima, as igrejas “evangélicas”, em quase todas as ruas das (até pequenas) cidades

disputam espaços com os bares e outros estabelecimentos comerciais, muitas vezes

servindo de “chacota” perante a sociedade, por cobrarem dízimos e não pagarem

impostos e, em contrapartida, vender “falsas” esperanças para o povo.

4.2. Pentecostalismo: sua origem e presença no Brasil

O movimento pentecostal brasileiro, a exemplo do protestantismo de missão,

também teve sua origem40 nos Estados Unidos, no início do século XX. Podemos

destacar, primeiramente, o caso da escola teológica do metodista Charles Fox

Parham, fundada em 1901, na antiga “mansão de Topeka”, em Kansas. Nesta escola,

concluíram que a “... a glossolalia era uma evidência física do ‘batismo no Espírito

39. Exemplo disto é a rotulação de “protestante” feita, pejorativamente, por diversos sites católicos. Mas

quero destacar, em especial, o caso do Padre Ricardo, da arquidiocese de Cuiabá, e líder de um programa semanal, chamado “Resposta Católica” (site: <https://padrepauloricardo.org/programas/a-resposta-catolica>), criado com o objetivo de responder a seus alunos e visitantes. Só que suas respostas são tão intransigentes e intolerantes quando se tratam de “protestantes” que, apesar de ser muito culto, trata os protestantes (no caso, os evangélicos), em geral, como se todos fossem iguais, indoutos, desprezíveis, mal-agradecidos à “Igreja mãe”, a Igreja Católica (de onde saíram), hereges... É um personagem que representa bem o lado fundamentalista e intolerante da Igreja Católica.

40. Quero me deter aos movimentos “pentecostais”, norte-americanos, do início do século XX, sem retroceder ao Metodismo de João Wesley, na Inglaterra, por exemplo, ou ao montanhismo do século II, como acredita, por exemplo, Nilo Tavares SILVA (Op. Cit., p. 46). Para este, o pentecostalismo norte-americano tem suas raízes neste movimento montanista e já significava um desafio para o Cristianismo porque “confrontava com a ortodoxia cristã”.

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Santo’, sendo uma experiência pós-conversão41. Depois, em 1906, na ‘Azuza Street’,

em Los Angeles, um antigo templo da Igreja Metodista Africana foi ocupado por

centenas de crentes liderados pelo pregador leigo e negro, William Joseph Seymour,

que tinha acompanhado o movimento de Topeka, mas sem envolvimento por causa

de sua cor e das leis segregacionistas. Em Azuza Street, Seymour deu

prosseguimento ao movimento chamado “pentecostal”, mas de uma forma incomum,

onde negros, mas “... não só os negros tinham espaço, como também as mulheres

exerciam liderança e ainda pregavam. William Seymour era um homem de carisma, e

ele na Azuza Street Mission popularizou o pentecostalismo para todo o mundo,

quebrando barreiras de preconceitos”42. E um terceiro momento, o avivamento

desencadeado em Chicago por Willian Curhan. Deste movimento, saíram os

missionários, o italiano Luigi Franscescon, e os suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg,

fundadores, respectivamente, das Igrejas Congregação Cristã no Brasil, em 1910, e

Assembleia de Deus, em 1911.

Como afirma Alencar, o pentecostalismo se origina nos Estados Unidos, mas

migra para o Brasil sem o modernismo do “wasp” (branco, protestante e anglo-

saxônico). Os missionários Francescon, Vingren, Berg e os demais missionários que

virão em seguida, chegam aqui com uma

... mensagem de pobres para pobres e incultos (...), pois é um movimento que surge entre os negros nos EUA (...) mediado pelo discurso dos imigrantes – estes também pobres e marginalizados – atinge, obrigatoriamente, os pobres e marginalizados (...) atingem ex-escravos e seus descendentes, nordestinos e seringueiros desempregados, que retornam a seus municípios de origem levando a mensagem e, em menos de 20 anos, atinge todo o país (ALENCAR: 2008, p. 46).

No Brasil, estas igrejas, apesar de sua origem nas denominações

conservadoras e fundamentalistas, vão tomar rumos bastante diferentes. Luigi

Francescon era presbiteriano, portanto, sua igreja, a Congregação Cristã no Brasil,

sai da Presbiteriana, enquanto Gunnar Vingren e Daniel Berg eram batistas e,

consequentemente, sua igreja, sai de sua antiga igreja. Além disso, os missionários

41. In: O pentecostalismo e o racismo: A quebra de preconceitos. Disponível em:

<http://www.teologiapentecostal.com/2009/09/o-pentecostalismo-e-o-racismo-quebra-de.html>. Acesso em 21/09/2015.

42. Ibidem, Nota 42.

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assembleianos passam a ter a preocupação de dar um preparo rápido a seus obreiros,

e muitos, até analfabetos e semianalfabetos, começam a trabalhar no Brasil,

começando pelo Norte, passando pelo Nordeste e sempre envolvendo pessoas muito

simples como trabalhadores rurais e urbanos, mulheres, negros, ex-escravos, pardos

etc. em seu rol de membros e “obreiros”, cuidando da “doutrina e também dos dons”43.

Aliás, a educação não formal e formal na Assembleia de Deus faz parte da tese de

mestrado de Rubineide Oliviera Lima FERNANDES44. Ela afirma que

... nas primeiras décadas a AD não se preocupou com a educação formal. Seu desenvolvimento foi baseado apenas na educação informal. Havia uma considerável rejeição por parte dos suecos no aprendizado formal (...) Os suecos admitiam apenas o modelo de Pethrus, de escolas bíblicas de poucas semanas que tinham como objetivo difundir aos fiéis e principalmente aos líderes, princípios doutrinários que ratificavam a visão do Pentecostalismo” (FERNANDES: 2006, p. 97).

Os primeiros institutos bíblicos foram criados sem a vontade dos suecos e

tiveram como um dos primeiros incentivadores, o Pastor João P. Kolenda45, que

fundou o IBAD (Instituto Bíblico das Assembleias de Deus) de Pindamonhangaba, em

1959.

Mas, a Congregação Cristã no Brasil, que inicia seu trabalho em São Paulo,

numa colônia italiana, nunca teve a preocupação de formar seus obreiros, ficando

restrita à “busca da Palavra”, dada pelo Espírito Santo, nos cultos, que (até hoje) tem

uma liturgia muito simples e sempre da mesma forma, com ênfase em hinos

tradicionais, inspirados em clássicos europeus e muito bem tocados; mas sem admitir

ordenação de pastores; pregação sobre dízimos, evangelismo em praças ou de casa

43. Parte da música Assembleia de Deus, autoria de Vanilda Bordieri e Célia Sakamoto, gravada por

ocasião dos 100 anos das Assembleias de Deus no Brasil. 44. FERNANDES, Rubineide Oliviera Lima. Movimento Pentecostal, Assembleia de Deus e o

Estabelecimento da Educação Formal. UNIMEP, Piracicaba-SP: 2006. Disponível em: <https://www.unimep.br/phpg/bibdig/pdfs/2006/ALFTDYXGHISV.pdf>. Acesso em: 23/09/2015.

45. “O casal [Ruth Dorris Lemo e João P. Kolenda] fundou o Instituto Bíblico das Assembleias de Deus (IBAD) em março de 1959. Portanto, somente quando as Assembleias de Deus completaram 48 anos é que esse bravo casal conseguiu estabelecer o primeiro seminário teológico assembleiano. Na época, muitos pastores tinham tanta ojeriza pelo estudo sistemático que defendiam a exclusão do casal pela denominação”, afirma Gutierres SIQUEIRA. In:

http://www.teologiapentecostal.com/2012/12/morre-joao-kolenda-lemos.html. Acesso em

23/09/2015.

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em casa, como faziam os assembleianos. Como da Igreja Congregação Cristã não

sabemos quase nada46, uma vez que seus membros não se confrontam com a

sociedade, por serem mais “calvinistas do que o próprio Calvino”, ou seja, por

acreditarem que os chamados à graça virão para sua igreja mesmo sem a

evangelização, ficaremos com o principal exemplo do chamado pentecostalismo

clássico, isto é, a Igreja Assembleia de Deus.

Esta igreja, segundo Alencar,

não tem ligação com a ideologia do ‘destino manifesto’, então muito cedo começa a ter uma liderança nacional e os estrangeiros [suecos] só dominaram nos quarenta primeiros anos. A liderança é formada e forjada não em instituições de ensino (de uma teologia importada), mas na própria prática eclesial de muita pobreza e perseguição. Um projeto de igreja brasileira que sempre, até hoje, tem uma forte liderança nordestina. (Ibidem, pp. 46 e 47).

Podemos afirmar que a Assembleia de Deus (ou Assembleias de Deus, como

ficará conhecida depois, esta igreja, devido os seus muitos ministérios), é uma igreja

genuinamente brasileira e é a que mais tem se aproximado da nossa cultura, embora

com sua mensagem escatológica, carregada de moralismo (santificação), no cuidado

com os dons e a doutrina47. O moralismo assembleiano está intimamente ligado à

conservação do Batismo no Espírito Santo e dos dons. E, ao dirigir-se para os cultos,

com bíblias nas mãos, prática também dos demais evangélicos, todos percebem que

os “crentes” estão indo para suas atividades no templo, ou ponto de pregação, ou

culto ao ar livre, ou visita aos lares, ou visita a presídios etc. Na Assembleia de Deus,

todos têm alguma coisa a fazer. A propagação do Evangelho implica na mobilização de todos os membros da igreja (...). Quem entra numa igreja da Assembleia de Deus não fica parado por muito tempo como expectador; todos os membros participam dela, ativamente. Durante o culto, espera-se que todos orem, deem testemunho de como Jesus Cristo agiu em suas vidas, e

46. ALENCAR (Op. Cit., p. 46, Nota de Rodapé) afirma que como esta igreja “... não publica (por razões

teológicas) nenhum material conceitual, apenas um relatório anual com informações sobre construções e membresia, tudo o que se diz sobre ela é impressão de alguém de fora”.

47. “Doutrinas”, nas Assembleias de Deus, geralmente eram (hoje não muito) confundidas ou tratadas como sendo bons costumes, boas maneiras, com aquilo que conhecemos como “ética”, como não tomar bebida alcoólica, nem fumar, ter cuidados com o modo de se trajar, as mulheres não deviam cortar seus cabelos, nem os homens deixarem o cabelo e a barba crescerem... Normalmente, os chamados “cultos de doutrina” eram efetuados com portas fechadas, apenas para os membros e congregados, onde eram/são tratados de casos de indisciplina.

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cantam de modo que toda gente ouça (...). Todos devem aprender a ler, de forma que possam ler e estudar a Bíblia por si mesmos...” (READ: 1967, p. 133).

A informalidade e a liberdade que os membros têm de se expressarem nos

cultos assembleianos têm sido alguns dos fatores de adaptação às classes humildes,

juntamente com o incentivo à busca do “batismo” com o (ou no) Espírito Santo e dos

dons, “status espiritual” que iguala a todos48 e que os prepara para o ministério.

Mas os “crentes” assembleianos têm sido vítimas de críticas e intolerância,

além de católicos, também de outras igrejas coirmãs49 tradicionais. No seu estudo

sobre o crescimento do protestantismo no Brasil, em 1967, Read (Op. Cit.) já

destacava alguns casos de críticas feitas à Assembleia de Deus, por parte de outras

igrejas protestantes. Dentre suas motivações (p. ex. p. 141 a 144) estão o fato de a

Assembleia:

fazer proselitismo, isto é, “roubar” ovelhas de seus rebanhos;

perder um grande número de ovelhas, pois muitos voltam para o “mundo”, sem

serem percebidos;

possuir costumes dissolutos, muito dos quais, que provocam escândalos;

ser muita emocionalista, levando os seus vizinhos a se queixarem do barulho,

por exemplo;

atingir apenas as classes inferiores;

ter uma teologia errônea, pois interpreta a Bíblia literalmente;

possuir um ministério pouco preparado;

priorizar a quantidade ao invés da qualidade...

48. Eu, como assembleiano, membro do Ministério do Ipiranga, em São Paulo, tornei-me membro desta

igreja, em 1980, e até hoje, por não ter demonstrado a “evidência” externa do batismo no Espírito Santo, o falar em “línguas estranhas”, ainda não fui (mas também não faço questão de ser) escolhido/separado para ser diácono, que é o primeiro cargo ministerial. Depois, vêm os cargos de presbítero, evangelista e, finalmente, pastor.

49. A expressão “igreja coirmã” é muito usada nas Assembleias de Deus. Apesar do distanciamento (na forma de cultos, orações em voz alta, sem preparo antecipado do sermão etc.) com outras igrejas, os assembleianos são normalmente ensinados/orientados a não se acharem que a salvação é exclusiva de sua igreja. Todos os “crentes” de outras igrejas, provenientes da Reforma e até neopentecostais e membros da Congregação Cristã são tidos como irmãos em Cristo. Este é, a meu ver, a maior virtude desta igreja.

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Estudiosos como Osiel Lourenço de CARVALHO afirma que para os

fundamentalistas a ênfase dos pentecostais na experiência do falar em “línguas” era

motivo de negação da razão que estaria a serviço da comprovação da fé cristã.

Sendo assim, os pentecostais foram acusados de fanáticos e supersticiosos e, alguns fundamentalistas chegaram a dizer que o movimento pentecostal era o último vômito de Satã; a reação do fundamentalismo ao pentecostalismo foi violenta. Todavia os pentecostais abraçaram a doutrina pré-milenarista e anos mais tarde também os discursos conservadores do fundamentalismo (Apud: SOUZA: p. 67).

Mas estes casos de críticas feitas ao pentecostalismo clássico – assembleiano

– por cristãos de outras igrejas de origem reformada, serve para repensar, a partir

destas considerações estereotipadas, sobre o “estilo pentecostal de ser”. Os

pentecostais assembleianos apresentam em seu meio muito do que a cultura

brasileira oferece, principalmente do que diz respeito aos aspectos relacionados com

a sua negritude, seus ritmos alegres aproveitados nas orações, pregações e

principalmente, nos louvores como corinhos, músicas espirituais (chamadas de hinos)

com características regionais, sertanejas, com sotaques africanos... Contudo, sua

teologia escatológica – pregação do pré-milenismo – como afirma Carvalho acima, e

outros, o pouco envolvimento com as questões sociais e política (até anos atrás), seu

anticatolicismo, a exemplo das igrejas de missões, o moralismo nos trajes (uso de

paletós em pleno verão, para os homens e de saias para as mulheres em pleno

inverno, por exemplo), desconhecimento ou pouco conhecimento da cultura

brasilíndia e afro-brasileira, relação quase antissocial ou pouco amistosa com as

demais pessoas que não professam a mesma fé... provocam um certo distanciamento

e atritos com os demais (os outros), perante os quais as virtudes desta igreja são

ofuscadas pelos seus “defeitos”, sociologicamente falando.

4.3. As Assembleias de Deus e sua mudança de estilo

“Onde tem Coca-Cola, Correios e Bradesco, tem Assembleia de Deus”50

50. Frase que é sempre dita por José Wellington, Presidente da CGADB, em relação à presença da

denominação em todos os lugares do Brasil. Mas também sintetiza o espírito capitalista de alguns “pastores-chefes” que liderarão alguns ministérios desta igreja, em tempos futuros, como presenciamos, hoje, sendo o próprio Jose Wellington, um deles.

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A Assembleia de Deus, uma igreja bem próxima do estilo brasileiro de ser,

começa a mudar no decorrer dos tempos. Desde 1967, Read já tinha percebido o fato

de algumas igrejas da Assembleia de Deus – entenda-se “ministérios” – terem tomado

aspectos de ‘igreja-mãe’ e serem

dirigidas por pastores de personalidade forte e individualista (o pastor presidente). Em muitos casos a autoridade final permanece com o pastor chefe (...) Há vinte anos [isto lá em 1967], havia tantas ‘igrejas’ quanto o número de Estados (vinte e um), mas agora existem mais de cem ‘igrejas-mães’, cada uma tendo mais de 500 membros comungantes” (Ibidem: p. 137).

Pulando um pouco na história, em aula de teologia sobre pentecostalismo, no

final dos anos 80, um de meus professores definiu a Assembleia de Deus,

considerando seu credo comum, como uma igreja cristã, protestante, fundamentalista,

dispensacionalista e pré-milenista. E por isto mesmo, conforme já mencionei (nota

31), eu estou envolvido ou “enquadrado” nesta visão teológica. Mas ser

fundamentalista e ser intransigente ou intolerante são situações díspares. O

fundamentalismo enfatizado pelo professor, em referência, bem como nas nossas

leituras semanais, como nas aulas de escolas dominicais, por exemplo, é definido no

sentido de preservação ou manutenção das verdades teológicas, doutrinas bíblicas

(basilares e em conformidade com os “solas”51 da Reforma, uma vez que esta igreja

é também herdeira do Protestantismo do século XVI. E nos últimos anos têm ocorrido

no seio das Assembleias de Deus (em seus muitos ministérios) muitas mudanças52

que vêm cooperando para aumentar e reforçar o fundamentalismo, nos moldes como

que já vimos anteriormente. E isto muito se deve ao fato de pastores que estão, hoje,

51. Os cinco pilares que diferenciam o protestantismo do catolicismo: “Sola Scriptura, Sola Christus, Sola

Gratia, Sola Fide, Soli Deo Gloria”. 52. Eu entendo que estas mudanças têm iniciado, principalmente depois da morte de pastores “chefes”

como Cicero Canuto de Lima, Ministério do Belém-SP, em 1982, Paulos Leivas Macalão, Ministério do Madureira-RJ, também em 1982, e, por último, Alfredo Reikdal, Ministério do Ipiranga-SP, em 2010, entre outros.

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na mídia e na política53, brigando com outros políticos, jornalistas54 e até mesmo com

colegas também pastores55 ..., demonstrando sua intransigência e intolerância no

formato de suas pregações no trato com as classes minoritárias, como costumam

dizer os chamados políticos de esquerda56... Desta forma, líderes assembleianos

midiáticos, políticos e até presidentes de ministérios que criticam outros em suas

igrejas e na TV têm servido para descaracterizar os assembleianos, “crentes” ou

evangélicos, gente da gente e bons brasileiros, como tantos outros protestantes sérios

que não estão envolvidos e querem estar bem longe desta briga. Aproveitando que os

assembleianos são considerados defensores de uma teologia escatológica, quero

mencionar com certa tristeza, que tem aumentado bastante – digo pelo que vejo dos

comentários, no dia-a-dia, de colegas assembleianos57 em geral – o número dos que

clamam por “reforma” nas Assembleias de Deus e até encabeçam o jargão contra a

CGAD58: “sai dela, povo meu”, expressando um sentimento de que nesta convenção

não acontece (mais) como acontecia na Igreja de Atos, por exemplo, cujos apóstolos

podiam afirmar “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós...” (Atos 15.28). Ou seja, não

há uma conformidade entre o que os “líderes” que fazem parte desta convenção

querem e o que o Espírito Santo poderia ter a oportunidade de orientá-los a fazer.

53. P. ex.: Silas Malafia, que segundo ele, está “há mais de 30 anos na TV”. Como ele afirma, é um dos

líderes evangélicos, mas devido sua influência midiática passa a ideia para a sociedade brasileira como se fosse o principal líder e representante dos evangélicos. Do lado político, o deputado assembleiano Marco Feliciano é também outro líder que, por causa do uso da mídia e suas defesas intransigentes dos princípios cristãos (mas não necessariamente para todos), tem travado muitos embates, principalmente com homossexuais...

54. Podemos citar apenas um caso que teve muita repercussão, o choque entre Malafaia e o jornalista Boechat em junho de 2015, devido o caso de uma garota espirita que foi agredida por intolerantes “evangélicos?” (<https://www.youtube.com/watch?v=-x22pcQ7Uaw>. Acesso em 03/10/2015). Há diversos vídeos que mostram, também, embates “desnecessários” entre Malafaia, Feliciano (cito estes por serem assembleianos) contra o deputado e homossexual Jean Wyllys...

55. Em rede nacional, Silas Malafaia costuma falar de colegas pastores e da própria CGADB. No vídeo, a seguir, por exemplo, ele comenta, até com ar de “deboche”, aumentando o escândalo da Convenção assembleiana, de onde saiu, sem se importar com a repercussão de suas palavras diante da sociedade (<https://www.youtube.com/watch?v=C1W_THHhmDM>. Acesso em 03/10/2015).

56. Estas minorias estão relacionadas aos homossexuais, à prática de aborto etc., que entre outros, são temas bastante polêmicos...

57. Por exemplo, no site <http://www.teologiapentecostal.com/> há bons artigos e textos com opções de comentários e opiniões de assembleianos que apresentam o mesmo sentimento que tenho. Um destes textos, que tem como título “A morte da CGADB”, fala do desapontamento do autor com esta convenção, enquanto outro, só para citar mais um exemplo, com o título “CGADB é notícia na grande mídia do Brasil, mas pela pior forma possível!”, faz menção à notícia de Veja, de 5 de junho de 2010: “rumo aos 1000 templos”, na qual destaca os escândalos com tesoureiros da entidade e a saída de Malafaia da mesma..

58. Convensão Geral das Assembleias de Deus do Brasil. Há ministérios como o do Silas Malafaia e do Braz, por exemplo, que nem estão ligados à Convenção.

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Se há uma confusão tremenda para entender os termos “protestantes”,

“evangélicos” e “crentes”, esta confusão aumenta, ainda mais, quando há

Assembleias de vários “estilos teológicos/doutrinários”. Se há igrejas para todos os

gostos, há também “Assembleias” para vários gostos. E tudo isto, por causa da

“cabeça” dos líderes destas igrejas ou ministérios. Uns são mais liberais, outros

continuam conservadores; uns são mais cultos, enquanto outros preferem continuar

indoutos, acreditando que a “letra mata”; uns de igrejas centralizadas, são menos

exigentes em relação a usos e costumes, enquanto outros, de igrejas localizadas nas

periferias das cidades ou no campo, acham que precisam continuar firmes nos marcos

assembleianos – o cuidado com a doutrina... E assim, temos uma miscelânea

assembleiana que deixa muitos “de fora” estupefatos e querendo mais distâncias de

tudo isto.

E as demais igrejas pentecostais?

São inumeráveis as igrejas pentecostais que existem hoje no Brasil. Apenas

para citar alguns dados do “Censo IBGE 201059”, o número de “evangélicos” apontado

naquela pesquisa, foi de 42.275.440 pessoas ou 22,2% da população brasileira, sendo

60% deste total, o número formado por pentecostais. Mas o IBGE considera como

pentecostais também os que chamamos de neopentecostais. Se tirarmos então deste

total, as Assembleias de Deus e a Congregação Cristã que, juntas somam 14.604.044

pessoas ou 35,5% deste total, restam apenas 24,5% a serem divididos entre as

demais, talvez milhares de pequenas igrejas. Por isso, preferimos ficar apenas com a

maior igreja do segmento pentecostal, as Assembleias de Deus.

4.4. Neopentecostalismo: origem, mídia, intolerância e misticismo

“Chamar o bispo Macedo de protestante é de fazer tremer o Muro da Reforma, em Genebra, e os ossos de Lutero e Calvino em seus túmulos”. (CAVALCANTI: 2008. Op. Cit.)

59. Cf. dados do IBGE, disponíveis em: <http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/06/numero-de-

evangelicos-aumenta-61-em-10-anos-aponta-ibge.html>. Acesso em 24/09/2015.

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O sociólogo Paul FRESTON60 chama de “três ondas” ou fases de implantação

do pentecostalismo no Brasil. Ele afirma que a primeira “onda” começa com a

Congregação Cristã no Brasil (1910) e as Assembleias de Deus (1911), as quais

dominam o campo pentecostal durante quarenta anos, portanto até os anos 1950. A

segunda “onda” marcou os anos 50 e 60 com o surgimento de outras igrejas como

Igreja do Evangelho Quadrangular (1951), Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para

Cristo (1955) e Igreja Pentecostal Deus é Amor (1962), todas voltadas de modo

especial para a cura divina. E a terceira “onda” começou no final dos anos 70 e ganhou

força na década de 80, com igrejas como Igreja Universal do Reino de Deus (1977),

Igreja Internacional da Graça de Deus (1980), Igreja Renascer em Cristo, Comunidade

Sara Nossa Terra, Igreja Paz e Vida e outras.

Para nosso propósito, queremos destacar a atuação, principalmente da Igreja

Universal do Reino de Deus (IURD), seu misticismo, o uso da mídia e seus reflexos

na sociedade e cultura brasileiras.

A IURD foi fundada em 1977, por Edir Macedo e seu cunhado Romildo Ribeiro

Soares, depois que ambos se desligaram da Igreja Cristã Nova Vida, no Rio de

Janeiro. A primeira igreja foi fundada no Jardim Méier, depois de Edir Macedo ter

realizado as primeiras reuniões num coreto do bairro. Mas, em 1980, seu cunhado

Romildo, que passa a ser conhecido como R.R. Soares, separa-se dele e funda a

Igreja Internacional da Graça de Deus ( IIGD).

Ao contrário de muitos outros pastores fundadores de igrejas pentecostais, Edir

Macedo chegou a fazer graduação em Matemática, na Universidade Federal

Fluminense, e Estatística, na Escola Nacional de Ciências e Estatísticas, embora não

tenha concluído estes cursos. Ele afirma ser formado em Teologia.

O viés “teológico” da prosperidade material de Edir Macedo foi herdado,

originalmente, de sua ex-igreja, precursora na pregação da Teologia da Prosperidade

no Brasil, cujo fundador, o canadense Walter Robert McAlister “… no constante

combate com o diabo, nos ataques às religiões afro-brasileiras e na valorização da

prosperidade material” (BARBIER JR.: 2007: p. 23), tornou-se o embrião da pregação

neopentecostal brasileira, apesar de não se deslanchar. Mas, apesar disto, a Igreja

60. In: MATOS, Souza de. O movimento pentecostal: reflexões a propósito do seu centenário. Disponível

em: <http://www.mackenzie.br/6982.html>. Acesso em 24/09/2015

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Nova Vida teve papel fundamental na formação teológico-religiosa de Macedo e de

seu cunhado.

O fracasso da Igreja Nova Vida, que visava alcançar principalmente pessoas

da classe média, serviu de base para Edir Macedo criar condições para o surgimento

da “Terceira Onda”, marcada pela Teologia da Prosperidade.

A separação entre Edir Macedo e R.R. Soares, em 1980, se deu, entre outros

fatores, por causa da implantação da IURD em Nova Iorque, decisão que contrariou

este último. Aliás, “Macedo acreditava que Nova Iorque poderia ser a nova Roma,

como na antiguidade” (Ibidem: p. 24). Depois disto, a IURD adotou um governo

eclesiástico episcopal, concedeu o título de bispo ao seu auxiliar e fundador da igreja

em São Paulo, Roberto Augusto Lopes, que o retribui consagrando-o também bispo.

Em pouco tempo, a IURD se expande por todo o Brasil e por vários países,

como Estados Unidos – neste país houve pouca aceitação –, Portugal, Moçambique,

Angola, Argentina e África do Sul, entre outros.

Segundo o Censo Demográfico do IBGE – 2010, o número de adeptos da IURD

era de 2.101.887. E apesar de ser bem menor em quantidade de membros, se

compararmos às Assembleias de Deus, por exemplo, ela tem conseguido muita

notoriedade no Brasil, sobretudo por causa da mídia e de sua teologia da

prosperidade.

A IURD conta com cerca de 2000 templos no Brasil e cerca de cinco cultos

diários. Embora, as atividades dos templos sejam acompanhadas por quem os

visitam, as campanhas e/ou temas ali abordados são divulgados em rádios, tevês,

jornal, sítios da internet etc. e estão disponíveis para conhecimento de todos. Ou seja,

estes meios de comunicação são estratégias de divulgação de suas doutrinas e

“evangelismo” aos seus moldes. O uso dos meios de comunicação tem sido a principal

característica da IURD, desde sua fundação, e representa a concretização de um

sonho e obsessão de Edir Macedo: ser dono da mais importante rede de meios de

comunicação do país.

A trajetória da rede de comunicação61 pode ser assim resumida:

61. Conforme inserção na minha Resenha sobre Evangélicos, pentecostais e carismáticos na mídia

radiofônica e televisiva. CAMPOS: 2004 (Op. Cit.), utilizando fontes como: ACIDIGITAL. Igreja Universal do Reino de Deus. Lima-Peru (Online) e ARCA UNIVERSAL (Site Oficial da IURD); BABIERI

Jr (Op. Cit.); CAVALCANTI. Robinson. Pseudo-pentecostais: nem evangélicos, nem protestantes. Ultimato. Viçosa-MG, 2008.

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Nos anos 80, a IURD começou a se apropriar das primeiras rádios para divulgação

de suas atividades.

Em 1989, Macedo comprou a TV Record, com 25 repetidoras em todo o país,

veículo que mistura programas religiosos, noticiários e entretenimento como

novelas, programas de auditório e reality-shows. Atualmente, a Record é a principal

rival da Rede Globo.

Em 1990, Macedo amplia os tentáculos radiofônicos, contando com uma rede de

cerca de 40 emissoras nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Rio

Grande do Sul, Bahia, Goiás, Minas Gerais e Ceará.

Em 1999, Edir Macedo efetua a compra da rede UHF TV Mulher, batizada em

seguida de TV Família e tinha o objetivo de alcançar áreas não cobertas pela TV

aberta – VHF.

Atualmente, a IURD contabiliza 78 emissoras de rádio (AM e FM) tem uma área de

abrangência de 75% no espaço nacional, principalmente, através da Rede Aleluia

de Rádio.

O principal sítio da IURD é a Arca Universal, onde o internauta tem acesso à vasta

programação da igreja e do “império” de Edir Macedo; o seu principal instrumento

escrito da IURD é a Folha Universal e conta, também, com a Line Records (Record

Produções e Gravações).

Mas na mídia, são feitas as propagandas das “bênçãos da prosperidade” e nos

diversos templos-palácios são efetuadas as “vendas” destas bênçãos, como acontece

no mais novo e famoso templo, o “Templo de Salomão”, construído no bairro do Brás,

em São Paulo, por exemplo.

A loja oficial da Universal vende restos das pedras importadas para a construção do templo gravadas com o nome da igreja por até RS 100. Símbolos do judaísmo e até um quipá – um tipo de chapéu redondo usado por judeus – camuflado escrito ‘exército de Israel’. (...) Dentro da nave central, as imagens judaicas, adornos dourados e os efeitos de luzes dão o tom do maior templo evangélico já construído no Brasil...”62.

62. Informações extraídas de “o Globo”. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/em-abertura-do-

templo-de-salomao-fieis-podem-pagar-no-credito-ou-no-debito-13705555>. Acesso em 25/09/2015.

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Neste e nos diversos templos, onde trabalham seus pastores, estes são muito

bem informados do roteiro a ser seguido nas “campanhas”63.

Observe que o jornal “O Globo” cita o Templo de Salomão como “maior templo

evangélico já construído no Brasil” (grifo meu), reforçando o que boa parte da

sociedade acredita ser a IURD, de fato uma “Igreja Evangélica”. E, deste modo, da

mesma forma que anglicanos e batistas (como já vimos) preferem a expressão

“evangélicos”, os pastores e bispos da IURD, incluindo Edir Macedo, também a

preferem. Daí algumas perguntas óbvias: é a mesma coisa? A teologia e as

ministrações da IURD são semelhantes às de batistas e anglicanos? Também pode

ser caracterizada como uma Igreja Pentecostal? Fico com as excelentes e oportunas

observações feitas por Robson CAVALCANTI. Para ele:

um grande equívoco cometido pelos sociólogos da religião é o de pôr sob a mesma rubrica de 'pentecostalismo' dois fenômenos distintos. De um lado, o pentecostalismo propriamente dito, tipificado, no Brasil, pelas Assembleias de Deus; e do outro, o impropriamente denominado 'neopentecostalismo', melhor tipificado pela Igreja Universal do Reino de Deus. Um estudioso propôs denominar essas últimas de pós-pentecostais: um fenômeno que se seguiu a outro, mas que com ele não se conecta, pois 'neo' se refere a uma manifestação nova de algo já existente. Correntes de sociologia argentina já os denominaram de 'iso-pentecostalismo': algo que parece, mas não é (...) [A IURD] não é uma Igreja protestante ou evangélica, por não ter nenhuma relação teológica, confessional ou ética com qualquer das expressões da Reforma, mas se constitui em uma seita para-protestante (…) Não é uma igreja pentecostal, e não deve ser chamada de neopentecostal, porque além dos pentecostais serem protestantes, não há qualquer semelhança entre os dois grupos, antes posições até antagônicas.” (CAVALNTI, 2008).

63. No menu virtual do universal.org, encontramos, por exemplo, no site Arca Universal (O.C.), algumas

campanhas, somente para citar algumas: − Reunião da Prosperidade: o direcionamento de Deus para as finanças dos seus filhos. − Sessão do Descarrego: solução para as doenças de ordem espiritual. − Reunião de Libertação: parecida com a anterior. − Jejum das Causas Impossíveis: para superação de todos os obstáculos que a vida impõe. − Noite da Salvação: como proceder para alcançar a Salvação. − Encontros do (sic) Raabe: destinados às mulheres que sofrem abuso doméstico, físico, sexual ou

emocional…

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Enquanto a IURD não seja posta na classificação “seita para-protestante”,

continua sendo conhecida como uma igreja evangélica, e a sociedade (continua)

misturando os discursos religiosos de todos.

E em parte dos discursos da IURD são patentes os casos de discriminação e

intolerância religiosa. Intolerância esta, que podemos observar, contra os católicos, os

afros e até a (outros) “evangélicos”. Um exemplo, apenas para ilustrar, de intolerância

contra os católicos, podemos citar o caso do ‘chute na imagem da santa’, pelo bispo

Sérgio Von Helde, “... ocorrido no dia 12 de outubro de 1995, dia consagrado a Nossa

Senhora Aparecida” (TEIXEIRA: 2014, p. 60). Contra os cultos afros (aliás, estes são

os que mais sofrem com a intolerância neopentecostal) são diversos exemplos

expostos na mídia, como o livro de Edir Macedo “Orixás, caboclo e guias. Deuses ou

Demônios?”, publicado em 1990, e em campanhas como “Sessão do Descarrego” e

outras. E, em relação aos “evangélicos”, podemos citar, por exemplo, um vídeo

disponibilizado no YouTube, onde Edir Macedo ataca pastores e cantores evangélicos

(não iurdianos), afirmando que 99% dos cantores “gospel” são endemoninhados64. A

cantora Ana Paula Valadão foi a principal vítima deste ataque.

Mas, o que falar do sincretismo iurdiano? Ao mesmo tempo em que a IURD

ataca outros grupos, principalmente os cultos afros, com mensagens carregadas de

ódio, numa verdadeira batalha espiritual, ela, em seu sincretismo religioso, se serve

dos elementos destes cultos. “O pastor não só ‘ataca’ os guias e orixás como também

lhes confere credibilidade.” (TEIXEIRA: 2014, p. 62), num ‘paradoxo’ próprio de seu

estilo, utilizado num projeto de ‘fagocidade religiosa’ ou ‘antropofagia da fé inimiga’,

bem ao modelo próprio de “... ‘abrasileiramento’, de um segmento importante do

pentecostalismo brasileiro” (Apud TEIXEIRA (Op. Cit., p. 62). Aliás, como Ari Pedro

ORO descreve em seu artigo, este estilo religioso da IURD, o seu sincretismo, é uma

clara evidência deste paradoxo: de um lado, condena as práticas dos cultos afros,

enquanto, de outro, utiliza prática dos mesmos. Daí a adjetivação da mesma como

uma “igreja macumbeira”, título de seu artigo. Ela “... se apropria e reelabora

elementos de crenças de outras igrejas e religiões, mormente das afrobrasileiras

64. Edir Macedo afirma que “grandes cantores” que fazem “grandes sucessos nas igrejas” são

promovidos pelo Diabo, dentro das igrejas. Afirmações disponíveis em: <https://www.youtube.com/watch?v=TDbMKJKmM8w>. Acesso em 02/10/2015.

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(candomblé, umbanda, quimbanda, macumba)... (ORO: 2005-2006, p. 320), prática a

que ele chama de ‘religiofagia’. Mas ao mesmo tempo ela exacerba esses

elementos de crenças e das práticas ritualísticas tomadas dessas organizações religiosas. Juntas [a religiofagia e a exacerbação], ambas vão revelar a ‘face macumbeira’ da Iurd, que aparece sobretudo em determinados rituais, como nas Sessões Espirituais de Descarrego, em que se observa que, quanto mais ela constrói um discurso e procede a uma ritualística de oposição às religiões afro-brasileiras, paradoxalmente mais delas se aproxima e se assemelha”. (Ibidem: p. 320).

Por esses e outros (diversos) exemplos podemos afirmar que chamar Edir

Macedo de bispo protestante e sua igreja de “igreja protestante” é “… fazer tremer o

Muro da Reforma, em Genebra, e os ossos de Lutero e Calvino em seus túmulos”

(CAVALNTI, 2008).

Concluindo este capítulo, em que citei dois exemplos “clássicos”, um do

pentecostalismo, as AD, e um do neopentecostalismo, a IURD, queremos afirmar que

estas, na esteira, sequencialmente, de milhares de outras igrejas pentecostais ou

“gospel” e outras várias neopentecostais, sintetizam o “jeitinho” da nossa brasilidade

religiosa. O pentecostalismo é o segmento que mais se aculturou e é “a expressão

mais brasileira do protestantismo” (ALENCAR: 2007, p. 84), a “... cara do Brasil

sincrético” (In: Ibidem: p. 85), o que está “... mais entranhável na cultura brasileira”

(Ibidem: p. 86). Mas, por sua influência, e seguida pelos seus líderes midiáticos,

muitas destas igrejas também se sincretizam e formam o “samba do crioulo doido” (ou

do “teólogo” doido), do arraial evangélico, que por sua vez, também constitui um

grande desafio para as igrejas protestantes, dado ao grande estrago criado por estas

chamadas igrejas “renovadas” ou “carismáticas”.

Voltando ao que disse GONDIM (Nota 35), as pessoas que evangelizam não

precisam “... exportar cultura, criar dialeto ou forçar critérios morais”, e as que são

alcançadas pela evangelização continuam suas atividades como gente/indivíduos,

que vivem num mesmo contexto social, mas que “... cria meios de solidariedade;

procura gestar homens e mulheres distintos; imprime em pessoas o mesmo espírito

que moveu Jesus a praticar o bem” em favor de todos.

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5. Protestantismo e interação cultural-religiosa: uma busca necessária

“O diálogo religioso instaura uma comunicação e o relacionamento entre fiéis de tradições religiosas diferentes, envolvendo partilha de vida, experiência e conhecimento. Esta comunicação propicia um clima de abertura, empatia, simpatia e acolhimento, removendo preconceitos e suscitando compreensão mútua, enriquecimento mútuo, comprometimento comum e partilha da experiência religiosa” (TEIXEIRA: 2014, p. 215).

A notoriedade dos “evangélicos” aumentou grandemente a partir dos anos 80.

E isto coincide com os novos rumos da política brasileira, depois de anos de ditadura.

A promulgação da Constituição de 1988 colaborou para a consolidação da democracia

nos anos 90 e, consequentemente, surgiram diversas reivindicações por atendimento

de direitos não contemplados, como o das mulheres, empregados domésticos,

classes minoritárias de modo geral, além da pluralidade de partidos políticos e

candidatos, incluindo gays, defensores de aborto e até a formação da chamada

“bancada evangélica”. Esta, em Brasília, a “ilha da fantasia”, onde ficam os políticos

que julgam estar acima dos demais – os mortais –, ganha apoio de renomados

pastores e, por consequência, também de milhares de evangélicos por todo o país.

Mas estes políticos “evangélicos” não são em nada diferentes dos demais.

Alguns, inclusive, ganhando de lavada – para usar a expressão futebolista, como a

perda do Brasil por 1 X 7 da Alemanha na Copa de 2014 – de outros políticos “não-

evangélicos” em matéria de corrupção. Por isto, aquilo que poderia ser benéfico para

os protestantes ou evangélicos, acreditando que estão sendo representados em

Brasília, acaba se tornando motivo de muita chacota e rejeição por parte,

principalmente dos não-cristãos. Aqui fora da “ilha” os pastores midiáticos

intransigentes (muito mais do que fundamentalistas conservadores), ao apoiarem os

“projetos” dos políticos desta bancada e atacarem os opositores, acabam ganhando,

destes, sua antipatia (e até o ódio) que, numa espécie de efeito dominó, acaba

atingindo a todos os crentes evangélicos “mortais” que, por sua vez, também

cooperam, ignorantemente – ao meu ver – para aumentar estas rivalidades.

Mas, num país que “precisa” atender a todas as classes sociais, tendo cada

uma delas seus estilos culturais, religiosidade ou não, o que fazer? Como os diversos

segmentos culturais podem conviver e em que medida os protestantes podem agir no

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meio de todo este “tiroteio” de ideias, opiniões e crenças? Como partilhar “ ... vida,

experiência, conhecimento, favorecer um clima de abertura, empatia, simpatia e

acolhimento, removendo preconceitos e suscitando compreensão mútua,

enriquecimento mútuo, comprometimento comum e partilha da experiência religiosa”

(TEIXEIRA: 2014, Op. Cit.)? São reflexões que pretendemos enfatizar neste último

capítulo de nosso trabalho.

5.1. Protestantismo e (in) tolerância religiosa X diálogo multicultural

“Todos são iguais perante a lei... [e] é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de

culto e a suas liturgias” (CF/1988, art. 5º, inc. VI).

“... a mensagem do evangelho não é exclusiva de uma cultura em particular, mas, sendo de caráter universal, pode e deve ser vivida na particularidade de cada cultura especifica.” (Alfredo T. VARELA. In: GONZÁLEZ: 2011, Op. Cit., p. 9).

O falso conceito (ou generalização) de “fundamentalismo” como é entendido na

sociedade ajudou e ajuda as pessoas não e anticristãs a verem os “evangélicos” como

extremistas radicais e favoráveis ao estabelecimento de uma religião de Estado, em

nosso país, com governantes “evangélicos” no poder. Por isto, até o próprio título de

“pastor” a um deputado, por exemplo, já soa mal aos ouvidos destas pessoas, por

parecer que os “evangélicos” anseiam por uma espécie de “Estado teocrático”. Daí as

constantes lembranças ou reivindicações dos opositores de que vivemos num “Estado

laico” ou “secular“. Se num Estado laico, o cristão tem liberdade de crença e de

expressão, o ateu, o afro, o católico, o muçulmano, o budista etc., também tem. É o

Estado laico que, não se opondo às questões religiosas ou não-religiosas, portanto

agindo de modo imparcial, “atua” para que todos tenham seus direitos assegurados –

embora, nem sempre cumpridos.

Como já referimos, o artigo 5º da nossa atual Constituição defende a “liberdade

de consciência e de crença”, mas até onde vai esta liberdade? Para determinar um

limite à liberdade de religião e de pensamento e conceituar o que pode ser uma ação

de intolerância ou não, em 1995 a Conferência da UNESCO aprovou a Declaração de

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Princípios sobre a Tolerância. E os quatro primeiros artigos desta declaração

merecem destaques (Apud SILVA & RIBEIRO: 2007, p. 25 e 26 – adaptado):

tolerância, respeito, aceitação e apreço da riqueza e diversidade das culturas;

a tolerância é a harmonia na diferença, não só dever de uma ordem ética, mas uma

necessidade política e jurídica;

a tolerância torna possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma

de paz;

mais do que concessão, condescendência ou indulgência, a tolerância deve ser

uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos universais das pessoas

e das liberdades fundamentais do outro;

a tolerância, como sustentáculo dos direitos humanos e do pluralismo cultural,

implica a rejeição do dogmatismo e do absolutismo;

praticar a tolerância não significa tolerar a injustiça social, nem renunciar às

próprias convicções, nem fazer concessões a respeito, mas aceitar que o outro

desfrute da mesma liberdade...

Destacamos estes princípios, embora para os protestantes, estes estejam, com

devidas adaptações, em harmonia com sua história de luta contra a intolerância desde

o seu nascedouro no século XVI até hoje. Mas, em tempos de fundamentalismos de

toda ordem, faz-se necessário lembrar que estes princípios servem para todos dentro

de um mesmo espaço com uma grande variedade de elementos culturais, incluindo

suas crenças religiosas ou não. Destarte, podemos afirmar que a minha convivência

com o outro não diminui minha fé e assim, podemos ter uma relação harmoniosa com

o mesmo, respeitar suas diferenças, sem diminuir em nada o que eu sou, exceto o

meu preconceito.

Mas a compreensão do “outro” com seu arcabouço cultural nem sempre

acontece de forma harmoniosa, pois isto exige despojar-se de algum sentimento hostil

ou pré-julgamento, cuja via se dá pela educação. É mediante o processo educativo

que se “previne” a “intolerância” (art. 4º, Op. Cit.). E nos últimos tempos este assunto

– reflexão sobre a (in) tolerância – era tratado entre os chamados “temas transversais”,

ou seja, assuntos que cooperam para a formação cidadã do estudante, porém à parte

do conjunto de disciplinas que compõem a grade curricular do ensino básico

Fundamental e Médio, embora atualmente, há uma preocupação de educadores para

que este e outros assuntos sejam mais discutidos como parte integrante de um todo,

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um conjunto de saberes que tentam dirimir ou amenizar a questão da intolerância nas

escolas.

As nossas escolas, principalmente as públicas são compostas por pessoas de

várias tendências ou origens culturais que ocupam os mesmos espaços e às vezes

se digladiam entre si por conta do que trazem em suas mentes, aprendem ou

“desaprendem” em casa, através de introjecções de crenças e/ou hábitos culturais.

Os currículos escolares são ou devem ser preparados visando alcançar a “todos” os

educandos e buscar atender as necessidades de boa convivência entre as pessoas,

principalmente porque nestas escolas estão, via de regra, pessoas de diversos estilos

culturais, incluindo seus credos, e são compostas de brasileiros que falam para

brasileiros, mas de várias origens, tanto educadores quanto educandos.

Como exemplo disto, podemos citar um texto que é parte da proposta do

Ministério da Educação e Cultura – MEC e que serviu/serve de base para reflexão em

horários coletivos de equipes de professores. Depois de enfocar o conceito de

“cultura”, os autores do texto propõem que os educadores levem em conta as diversas

tendências ou roupagens culturais que os educandos trazem para a sala de aula, pois

“… quando um grupo compartilha uma cultura, compartilha um conjunto de

significados, construídos, ensinados e aprendidos nas práticas de utilização da

linguagem. A palavra cultura implica, portanto, o conjunto de práticas por meio das

quais significados são produzidos e compartilhados em um grupo.” (MOREIRA &

CANDAU: 2008, p. 27).

A ideia de “significante” e de “significado”, segundo os autores, é parte da

evolução do conceito de cultura, e como ela é entendida nos nossos dias, isto é, “…

a cultura como prática social, não como coisa (…) ou estado de ser…” (Ibidem: p. 27).

Com a ajuda das ciências humanas como Antropologia e Sociologia, por exemplo, é

possível e necessário construir um conjunto de práticas (significantes) que podem ser

compartilhados entre todos.

Mas como prática social a cultura é dinâmica e exige um grande esforço para

trabalhar com este dinamismo, fruto de várias tendências. E entre estes desafios estão

questões como o das classes minoritárias, lutas dos negros, das mulheres, dos índios,

e de “tabus” como o dos que defendem o aborto ou o casamento de pessoas do

mesmo sexo; mas também de “evangélicos” que queiram insistir em demonstrar suas

“convicções” absolutas e intransigentes, sem atentarem para o fato de que numa

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sociedade laica, onde todos têm seus direitos, a convivência com os contrários torna-

se uma necessidade. Constitui, portanto, como parâmetro, para o MEC, definir um

currículo que atenda a multiculturalidade da sociedade brasileira e defenda escolas

democráticas que cooperam para a redução (ou eliminação) de discriminações e

preconceitos.

Muitas vezes, a prática educacional tem sido conduzida pela ótica do educador

sem levar em conta as várias facetas do currículo escolar. Por isso “... a ruptura do

daltonismo e da visão monocultural da dinâmica escolar é um processo pessoal e

coletivo que exige desconstruir e desnaturalizar estereótipos e ‘verdades’ que

impregnam e configuram a cultura escolar e a cultura da escola“ (Ibidem: p. 32). Esta

é uma situação que envolve muitos lados, mas a preocupação do MEC, como vimos,

é evitar a doutrinação ou imposição de alguma ideologia. Acontece que a omissão no

enfoque de algumas questões também não é saudável e demonstra um certo

preconceito. É o caso de um trabalho de pesquisa relacionado ao direito dos negros

no estado da Bahia que tem constatado o não cumprimento da lei 10.639 – que trata

da obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” nas escolas –, por

parte de professores evangélicos65. Logicamente, há nesta recusa, tanto a falta de

informação acerca da cultura afro e da história de seu continente, quanto o

desconhecimento do próprio livro sagrado, a Bíblia, que relata muitos casos de boa

convivência entre os hebreus – povo da Bíblia – com os reinos africanos, os cuxitas,

por exemplo66. A cultura de um povo não se resume em sua religiosidade e/ou práticas

de seus cultos. Além do mais, estudar a religiosidade dos africanos é de suma

importância para a boa convivência e diálogo com os mesmos. Não basta para mim,

protestante, conhecer bem e praticar minha fé, preciso também conhecer – e bem,

65. Cf. Professores evangélicos são entrave a ensino de cultura afro, diz pesquisadora. Disponível em:

http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2014-11-19/professores-evangelicos-sao-entrave-a-ensino-de-cultura-afro-diz-pesquisadora.html. Acesso em 26/10/2015.

66. Apenas para citar alguns exemplos desta relação entre Israel e o Reino de Cush: Moisés, grande legislador hebreu, que formou-se em toda ciência do Egito, foge para Midiã (Arábia Saudita) e lá casa-se com Zípora (Êx 2.21); em Números 12.1, encontramos referência de um (“segundo”) casamento de Moisés com uma mulher cuxita; em Isaías 45.14, os cuxitas são tratados como uma nação “militar e comercialmente poderosa”, coincidindo com o Império Kush, que teve seu apogeu entre 1700 a.C. e 300 d.C.; na época do esplendor deste império, a rainha etíope (Rainha de Sabá) visitou o rei Salomão (dos hebreus) para ouvir a sua sabedoria (1Re 10.1-6); em Atos 8 encontramos referência a mais uma rainha etíope. Parece que, diferente de outros povos, na Etiópia as mulheres tinham direitos iguais aos dos homens. Um de seus príncipes, eunuco de Candace (uma espécie de dinastia das rainhas guerreiras da região), ouve o evangelho através de Filipe; depois disto é batizado, seguindo o seu caminho, levando as boas novas para sua região (Atos 8.26 a 39).

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sempre que possível – o outro e a vestimenta cultural que o reveste. Como afirma

Martin Buber: “o homem se torna EU na relação com o TU”67.

Mas, e quando acontece a prática de “doutrinação” por parte de determinado

professor no sentido de conduzir seus alunos à sua ideologia política, filosófica,

religiosa ou não-religiosa, por exemplo? Se num país laico não deva existir uma

imposição religiosa, tampouco a fé religiosa de quem quer que seja deva ser

desprezada e desrespeitada. Por isso, há debates, hoje, no sentido de evitar qualquer

tipo de doutrinação nas escolas, pois esta contraria o verdadeiro objetivo da

educação. Enquanto a “doutrinação” pressupõe uma imposição de ideias, a

“educação” favorece a análise, o julgamento e aceitação ou não destas mesmas

ideias.68 Ora, este assunto é delicado tanto para quem deseja implantar ensino

religioso nas escolas, o que pressupõe um exemplo deste tipo de doutrinação, com o

risco do exclusivismo de determinada seita ou igreja, quanto o anticlericalismo ou

antirreligiosidade de quem o impede. No artigo da pesquisadora Marília De Franceschi

Neto DOMINGOS (2009), ela destaca que o Estado laico não é “antirreligioso”, mas

“arreligioso”, ou seja, o Estado laico é neutro em matéria de religião, mas espera-se

que as religiões cooperem para a “... igualdade na diversidade, o respeito às

particularidades e a exclusão dos antagonismos“ (Op. Cit., p. 50). O que o laicismo

propõe é que a “fé” de quem quer seja fique no campo do privado e não do público, o

que não tem acontecido com igrejas estatais como na Alemanha e Inglaterra, mesmo

após a Reforma, e no Brasil, até 1889. E “mais do que a recusa do controle religioso

sobre a vida pública, o que a laicidade implica, necessariamente, é o reconhecimento

do pluralismo religioso, a possibilidade do indivíduo viver sem religião e a neutralidade

do Estado, que não privilegia nenhuma crença, religião ou instituição religiosas”.

(Ibidem: p. 51).

67. BUBER, Martim. Apud TEIXEIRA: 2014, p. 214. 68. CHAVES, Eduardo. “Educação sem Doutrinação” e “Escolas sem Partido”. Conforme ele, “Quem

doutrina, ao contrário de quem educa, está interessado em que seus alunos simplesmente venham a aceitar (acreditar em) os pontos de vista que ele adota e esposa [expõe] (...) Quem educa, ao contrário de quem doutrina, está interessado em que seus alunos venham a examinar os fundamentos dos diferentes pontos de vista sobre um determinado assunto, e, assim, venham, em consequência desse exame, a compreender o assunto...“. Disponível

em: <http://escolasempartido.org/artigos/289-educacao-sem-doutrinacao-e-escolas-sem-partido>. Acesso em 28/10/2015.

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Mas, como afirmamos acima, que a “educação” favorece a análise, o

julgamento e aceitação ou não de ideias, isto exige um bom (senão excelente) preparo

intelectual de quem o faz. Por isso cabe aos pastores ou líderes protestantes, darem

este preparo a seus membros e congregados (falo sob a ótica de um “assembleiano”)

no sentido de separar os assuntos próprios da sua igreja na esfera da fé e, portanto,

estritamente espirituais, dos assuntos gerais que abrangem a todos, visando a

“particularidade” na “diversidade”. Eles precisam saber que os assuntos ou

ensinamentos que dizem respeito à sua fé podem não servir para os demais, que

também têm o direito de escolha. E esta decisão (de escolha) deve ser feita sem

atritos com colegas de classes ou professores. O ensino cristão e a preparação para

que os membros de nossas igrejas saibam agir com prudência em meio à diversidade

cultural e sem intolerância, tem que ser dado de fato, ao meu ver, nos púlpitos, estudos

bíblicos sistematizados e em classes de escolas bíblicas dominicais bastante

dinâmicas e abertas aos argumentos e discussões, com objetivos de “educar” mais

do que “doutrinar”. Temos observado, como professor de escola dominical há alguns

anos, que muitos de nossos jovens “crentes”, alunos em nossas classes de escolas

dominicais têm tido poucos conflitos em sala de aulas “seculares”, principalmente nas

faculdades, por procuraram o caminho do diálogo e/ou afastaram-se de questões

polêmicas que para nada aproveitam. O problema é que a frequência às classes de

E.B.D. é muito baixa diante da multifacetada comunidade evangélica, além do

despreparo de muitos que os pastoreiam e/ou lideram.

O diálogo com a multiculturalidade brasileira, incluindo a questão inter-religiosa

é possível? É possível e necessário, na medida que somos seres sociais, falamos o

mesmo idioma da maioria e ocupamos os mesmos espaços. E é nesta direção que

FAUSTINO (2014, p. 71-76) destaca a “arte de compreender” o outro, citando alguns

“eixos” deste “diálogo inter-religioso” e, ao mesmo tempo, sugerindo algumas pistas

como:

A consciência da humildade – reconhecimento de seus próprios limites e da

vulnerabilidade, procurando romper as fronteiras de um mundo “monocromático”

(daltonismo) para comungar com novos horizontes.

A abertura ao valor da alteridade – o outro é diferente e precisa ser reconhecido e

respeitado como tal, pois o outro é um patrimônio de mistério contínuo, mas não

deve haver um “muro de indiferenças” entre o que dialoga e o mesmo.

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A fidelidade à própria tradição – o diálogo inter-religioso deve vir acompanhada de

um certo “ancoradouro referencial”, sendo sua âncora, sua própria religião, pois

somente quem está domiciliado na sua própria religião está capacitado para o

encontro com uma outra, enriquecendo, com isto o diálogo. “Para melhor dialogar,

ninguém precisa romper com a religião de sua própria cultura e herança” (Ibidem:

p. 74).

A busca comum da verdade – é necessário que os interlocutores aprendam e

recebam os valores positivos presentes nas tradições religiosas de ambos e

busquem a “verdade” que os envolvem. Esta verdade, “aletheia” (permanente

desvelamento), pode oferecer aos interlocutores a capacidade de captação de

certos aspectos ou dimensões do mistério divino que escapa à sua visada ou

observação, uma vez que “o que dificulta o diálogo é a incapacidade de

compreender que a realidade última não pode estar limitada às imagens

particulares das crenças”. (Ibidem: p. 76).

A ecumene da compaixão – profundo desejo de remediar todas as formas de

sofrimento que corroem a humanidade. Todas as religiões são convocadas no

sentido de assumirem a responsabilidade global de afirmação do humano e de

garantia da dignidade da criação. Desta forma, um “kairós hermenêutico” que

aponta para o diálogo das religiões pode ser uma conduta ética de compaixão

social e de sensibilização de todos diante do sofrimento humano.

Em suma, todas as pistas sugeridas para o diálogo inter-religioso, propostas

por Teixeira são bem-vindas para o protestantismo, que deve seguir o caminho da

“profundidade”, proposto por Paul TILLICH, procurando superar as tentações de

absolutismo de sua crença religiosa ‘fragmentada’ e ‘inacabada’, reconhecer a

necessidade de abertura para o “outro” e tomar consciência de que “... na

profundidade de toda religião viva há um ponto onde a religião como tal perde sua

importância e o horizonte para o qual ela se dirige provoca a quebra de sua

particularidade, elevando-a à uma liberdade espiritual que possibilita um novo olhar

sobre a presença do divino em todas as expressões do sentido último da vida

humana”. (Apud TEIXEIRA: 2010, p. 30).

Dialogar com outros vieses culturais/religiosos pressupõe também um olhar de

acordo com a cosmovisão de quem o faz, sem necessariamente, se perder nesta

iniciativa de diálogo.

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5.2. Dizendo “sim” a Deus sob a “lente” da cultura brasileira

“O que esperamos, os que cremos em Jesus Cristo, não é o dia em que as diferenças culturais desapareçam, nem as diversas línguas, nem os povos ou as nações, mas o dia em que todos juntos – nações, tribos, povos e línguas – possamos cantar louvores ao que assenta no trono, o Cordeiro.” (GONZÁLEZ: 2011, Nota de Capa)

Busquei e propus nas linhas abaixo, antes de minha conclusão, uma tentativa

de resposta teológica para a questão da inserção e diálogo protestante com a cultura

brasileira. Como já foi afirmado a “cultura é como uma lente através da qual o homem

vê o mundo” (Nota 2). E o homem protestante ou evangélico, como ele pode ser fiel a

Deus e, ao mesmo tempo, conviver de forma sociável e receptível em seu espaço,

onde as pessoas – seus concidadãos e/ou compatriotas – são originárias e portadoras

dos mais diversos elementos culturais?

O Pacto de Lausanne, resultado do conclave que representou o ‘cristianismo

reformado’, realizado naquela cidade suíça, em junho de 1974, segundo Jorge

PINHEIRO (2014, p. 20) “... tem um significado normativo e prático, já que a partir de

definições teológicas abrangentes chegou-se a propostas objetivas para a

evangelização do mundo”. Por isto, os “quatro mil delegados” (Ibidem: p. 19)

presentes naquele conclave tiveram que definir teologicamente “cultura”, uma vez que

precisavam alcançar os povos (com seus elementos culturais como usos e costumes)

com o Evangelho. E em parte de sua definição destaca-se que “... a cultura deve

sempre ser julgada e provada pelas Escrituras. Porque o homem é criatura de Deus,

parte de sua cultura é rica em beleza e em bondade; porque ele experimentou a

queda, toda a sua cultura está manchada pelo pecado, e parte69 dela é demoníaca”

(STTOT: 2003, p. 93).

Bem, ALENCAR (2003, p. 71) questiona: “... como delimitar o que seja

‘inspiração’ diabólica? É fácil ser contra o que, em tese, todos são (...) mas temos

diversas outras manifestações sociais que, para alguns é de ‘inspiração’ demoníaca

e para outros apenas cultural”. Acho que temos que correr o risco da busca da

69. Em outro texto sobre O Pacto de Lausanne diz: “... parte dela [cultura] é de inspiração demoníaca”

(Cf. O evangelho e a cultura – Série Lausanne 3. São Paulo: ABU Editora: 1985, p. 8), grifo meu. Stott tirou a expressão “inspiração” do texto e afirmou categoricamente “demoníaca”

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resposta teológica para a cultura, e não somente da antropológica e sociológica,

apesar do perigo do dogmatismo e do absolutismo ideológico-religioso.

Se cultura é tudo que é criado pelo homem e este, por sua vez, é criatura de

Deus, então a cultura faz parte do “propósito” de Deus. Mas como afirma Justo L.

GONZÁLEZ (2011a, p. 79) “... a forma atual [pós-queda do homem] em que as culturas

se apresentam sempre carrega o selo do pecado”. E até Gênesis 11.1, não haviam

“culturas” (no plural), porque todos viviam num mesmo lugar, falavam uma mesma

língua e compartilhavam dos mesmos costumes. Foi após a confusão das línguas em

Babel, que os grupos, ao seguirem novos rumos e se adaptarem em novas regiões,

levaram consigo seus conhecimentos e criaram outros, conforme suas necessidades.

Na verdade, o episódio de Babel, mais do que a confusão das línguas como castigo

de Deus, o que na verdade aconteceu “... foi uma ação libertadora da parte de Deus”

(Ibidem: p. 82). A cultura, no singular, traz soberba a um determinado grupo que tende

a exercer domínio sobre outros, enquanto a diversidade cultural serve de “freio” a esta

tendência. Desta forma, “... apesar de todas as dificuldades que a diversidade de

culturas pode criar, a existência de uma única cultura criaria problemas ainda maiores,

problemas de uma soberba idolátrica semelhante à dos construtores da torre de

Babel” (Ibidem: p. 83).

O contrário de Babel ocorreu no Pentecostes (Atos 2) onde todas as pessoas

presentes em Jerusalém, mas provenientes de várias regiões e, logicamente, de

várias culturas, entenderam a mensagem do Espírito Santo, em sua própria língua (v.

8). A partir dali, “... a cultura e língua dos discípulos seriam elemento inseparável (sic)

da pregação da mensagem, e a posição de autoridade dos discípulos e de seu povo

e cultura estaria assegurada”. (Ibidem: p. 86). O milagre do Pentecostes serviu para

que a mensagem não estivesse sob o controle dos discípulos – apóstolos, ou bispos,

como aconteceu no início da Idade Média –, mas sim, disponível àqueles que após

ouvirem em sua própria língua a mensagem, pudessem espalhá-la ou divulgá-la aos

seus conterrâneos em sua cultura.

A mensagem que os discípulos conheciam de sua cultura religiosa e a que

também foi aprendida do Mestre Jesus que vinha do Pai e dada aos mesmos (Jo

15.15), além da que os representantes das várias nações presentes no Pentecostes

ouviram, estava – acreditamos – em consonância com seu Livro Sagrado, a Bíblia. E

esta, diferentemente dos ortodoxos muçulmanos que defendem que “... o verdadeiro

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Corão está e tem de estar em árabe” (Ibidem: p. 87), para os cristãos, a Bíblia, mesmo

“... traduzida [para qualquer língua e em qualquer cultura] continua sendo a Bíblia”

(Ibidem: p. 87). Por isto, a mensagem de Deus, cumprindo seu propósito para as

culturas, não é “centrípeta”, ou seja, voltada para o centro, e sim “centrífuga”, que se

afasta do centro e não deve estar restrita a um grupo de discípulos nem a uma cultura.

“... O Espírito que, como o vento, sopra onde quer, [...] ao longo da história, fez e

continua fazendo com que cada um escute o evangelho em sua própria língua, em

sua própria cultura, em seu próprio contexto”. (Ibidem: p. 92). Para reforçar esta ideia,

González comenta a etimologia da palavra “catolicidade”, sendo um de seus

significados, além de “universalidade”, também o de “diversidade”. E é com este último

significado que “... o católico no bom sentido não é o que pertence a uma igreja ou a

outra, mas o que reflete a grande multiplicidade de culturas, experiências, interesses

e perspectivas a partir dos quais diversos grupos se aproximam do evangelho. A

verdadeira catolicidade não pode ser propriedade de ninguém, pois, por sua própria

natureza, ela implica multiplicidade.” (Ibidem: p. 96).

Mas, como já vimos no primeiro e segundo capítulos, tanto católicos romanos

quanto protestantes fundamentalistas agiram como se tivessem o monopólio do

Evangelho e da “verdade”, e vieram para o Brasil “civilizar” ou “salvar” sua gente, pois

para eles, principalmente para os católicos que chegaram primeiro, tudo que havia

aqui era ignorância e superstição. Por isso os habitantes do Brasil precisavam da “pura

fé cristã”, e passaram a “doutriná-los” sem levar em conta sua diversidade cultural.

Portanto, dizer sim a Deus, sob a lente da cultura brasileira, significa, em última

análise, viver o “princípio protestante” proposto por Paull Tillich e Jorge Pinheiro, “...

numa ética do amor-companheiro, daquele que parte e reparte o pão, tem uma postura

crítica diante da ordem social que se apoia na opressão e na exclusão social (...)

(PINHEIRO: 2008, p. 123). E neste sentido, nossa tarefa deve combinar mudanças

espirituais e transformações econômicas e sociais, estar inserido no reino de Deus

que está acima dos “dogmas” de alguma confissão particular ou das igrejas, quando

esta ou estas perdem seu referencial de “catolicidade” como diversidade cultural.

Ademais, ser uma voz que se manifesta contra a “absolutização” relativa e em favor

da “emancipação” ideológica e dogmática, pregando uma “práxis” de libertação e em

favor da cultura e do povo brasileiro. E se, como propõe Pinheiro, “... não devemos

temer a multiculturalidade brasileira, mas consciente reconstruir raízes e memória”

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(Ibidem: p. 126), esta tarefa aparentemente utópica poderá ser revertida numa

realidade, não do desaparecimento das diferenças culturais, mas da prática do diálogo

e interação, uma vez que Jesus, o Cordeiro de Deus, veio buscar para si pessoas de

todas as nações, tribos, povos e línguas, incluindo a nação e a cultura brasileiras...

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Considerações finais

Como eu disse na introdução deste trabalho, o meu olhar sobre a falta de

diálogo e interação com as matrizes culturais brasileiras, é parte da bagagem cultural

que me envolve e de minha cosmovisão como protestante assembleiano, mas

também como estudante de História e Teologia.

Embora tenho falado de fundamentalismo protestante, relacionando-o à

dificuldade de interação e diálogo com a diversidade cultural brasileira, considero

necessário separar entre o fundamentalismo, considerado conservador, que preserva

seus fundamentos doutrinários diante das mudanças constantes, mas sem muito atrito

com a sociedade, daquele fundamentalismo, no sentido absolutista e dogmático,

intolerante com quem não pensa como tal. E é com esta adjetivação que se percebe

quando alguns segmentos da sociedade esbravejam contra os “evangélicos

fundamentalistas” entendendo que todos são iguais. Historicamente, pentecostais e

neopentecostais não são fundamentalistas, no entanto, estes últimos, principalmente,

são os que mais provocam atritos com a diversidade cultural brasileira.

Também descrevemos o protestantismo fundamentalista como sinônimo de

etnocentrismo, pensando como um estudante de História ou Antropologia. Refiro-me

ao fundamentalismo representado pelas igrejas batistas e presbiterianas,

principalmente, advindas do protestantismo de missão, que chegaram ao Brasil no

século XIX. Aqui, taxaram ou julgaram a forma de pensar e os valores dos brasileiros

a partir de seus modelos ou padrões culturais norte-americanos e com o objetivo de

descatolicizar, para depois aculturar a sociedade brasileira, porém através de uma

interpretação apressada sobre a cultura dos indígenas e do negro, inclusive com a

utilização de mão-de-obra deste último, em seu benefício, além da prática da ideologia

do ocultamento da escravidão.

Entendo, porém, que os atritos entre os “evangélicos” e os outros segmentos

sociais estão de certa forma ligados à abertura democrática e a notoriedade política,

numérica e midiática destes evangélicos nos últimos 30 anos. Mas por que a maioria

protestante paga por alguns? Isto, de certa forma, tem relação com uma espécie de

ecumenismo cultural protestante que é passado via mídia através de músicas,

novelas, literatura, vídeos de “pregações” e mensagens, bíblias com comentários de

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toda sorte, como se os comentários destas bíblias fossem mais importantes do que o

texto sagrado, shows e espetáculos “gospel” que ultrapassam o espaço das igrejas e

se tornam conhecidos na TV, internet etc. E isto, logicamente, demonstra uma certa

influência cultural, embora deturpada, dos evangélicos na sociedade, representada

principalmente pelos segmentos pentecostal e neopentecostal que assumiram a cara

do “Brasil sincrético”.

Mas o protestantismo segue sua marcha em meio a multiculturalidade

brasileira. E aos protestantes, também são aplicadas normas sociais como direitos e

deveres, princípios contra a intolerância religiosa e étnico-racial e muitas outras,

algumas delas entrando em choque com os seus valores. Cabe então o caminho do

diálogo, da educação sem doutrinação, da busca e anunciação da verdade que

ultrapassa as visões particulares de cada um, enfim, cabe viver a mensagem do Reino

de Deus universal no contexto da diversidade cultural.

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FICHA CATALOGRÁFICA