Faeriewalker Shadowspell

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Capítulo 1

Sair com o namorado tendo um guarda-costas a tiracolo é uma droga.

OK, tecnicamente não era bem um encontro desse tipo. Pelo menos é o que continuo a dizer para mim. Ethan é só um amigo. Um amigo absolutamente sexy que faz com que meus hormônios saiam dançando de alegria, mas ainda as-sim, só um amigo. E se eu soubesse o que era bom para mim, as coisas continuariam desse jeito.

Depois de um punhado de traições que me magoaram mais do que eu gostaria de admitir, Ethan arriscara a vida para salvar a minha, e eu concordei em zerar o placar. O pro-blema é que não é tão fácil assim reconquistar a confiança perdida, especialmente quando ainda tenho tantos motivos para não confiar totalmente nele.

Por três semanas depois de ele ter salvado a minha vida, procurei manter distância, mas isso não pareceu desencorajá--lo. Ele telefonou, mandou e-mails e torpedos me pedindo um bilhão de vezes para sair com ele até que, enfim, acabei

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cedendo. Ele queria sair para jantar e depois pegar um cine-ma. Isso me pareceu muito um encontro romântico, por isso negociei com ele, concordando só com o cinema.

Enquanto eu me sentava na sala escura ao lado dele, per-cebi que minhas técnicas de negociação precisavam melho-rar. O jantar teria sido muito mais seguro que o filme. Tentei ser sutil ao olhar por sobre o ombro a fim de ver a que distân-cia Finn, meu guarda-costas, havia se postado para me vigiar.

Para meu alívio, vi que ele fizera a cortesia de se sentar três fileiras atrás – longe o bastante para me dar a ilusão de priva-cidade, mas perto o suficiente caso ele precisasse vir me salvar.

Não me surpreendi ao ver que eu tinha toda a atenção de Finn, apesar da distração do filme. Ele é um Cavaleiro de Faerie e leva o trabalho muito, muito a sério – o que era uma boa coi-sa, visto que as duas rainhas de Faerie queriam me ver morta.

Virei para frente de novo. Ethan levou o saco de pipocas na minha direção, e eu enchi a mão, sujando-a de sal e man-teiga derretida.

– Guardanapo? – pedi, esticando a outra mão.– Desculpe-me – ele disse, e o canto da boca se ergueu em

seu conhecido sorriso. – Esqueci-me de pegar guardanapos.Eu lancei meu melhor olhar irado, não acreditando nem

um pouco na expressão inocente dele. Talvez ele quisesse me ver lambendo os dedos, mas eu não lhe daria essa satisfação. Eu mesma teria ido buscar os guardanapos se não tivesse de passar por três pessoas para chegar ao corredor. Além disso, o filme já tinha começado – não que eu estivesse prestando atenção.

Com um resmungo de resignação, peguei mais pipoca e me afundei um pouco mais no assento.

De algum modo, o braço de Ethan tinha encontrado uma brecha sobre meus ombros. Tentei me soltar, embora uma parte de mim quisesse se aninhar.

– Este não é um encontro, lembra? – sussurrei para ele, tentando soar aborrecida em vez de ansiosa. Fui bem clara

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a esse respeito quando nos falamos pelo telefone, e Ethan tinha concordado com as minhas condições. Claro, só por-que ele concordou não significava que pretendia submeter--se a elas.

Mesmo no escuro da sala de cinema, o sorriso de Ethan era devastador.

– Eu me lembro. Mas eu nunca disse que não flertaria com você.

– Shh! – alguém da fila de trás reclamou antes que eu con-seguisse responder.

Irritei-me um pouco enquanto o braço de Ethan se aco-modava melhor ao redor dos meus ombros. Seria muito mais fácil resistir se ele não fosse tão... irresistível. Ele era sensual mesmo para um feérico, com longos cabelos loiros e lindos olhos azuis-petróleo. O ligeiro calombo no nariz, sugerindo que ele havia sido quebrado, afastava-o da perfeição – e o tornava ainda mais sexy.

Lembrei a mim que ele só poderia ir até certo ponto com Finn nos observando como um gavião. Um guarda-costas com propensão a dama de companhia. Ethan era terrivel-mente arrogante, mas sempre demonstrou um respeito salu-tar pelo Cavaleiro.

Mastiguei a pipoca e tentei prestar atenção no filme. Ethan não ajudou muito quando começou a afagar meu om-bro com os dedos. Senti que deveria dizer a ele que parasse com aquilo, mas eu gostava dos arrepios que as carícias dele me causavam. Ele se aproximou ainda mais de mim e eu senti o aroma da loção pós-barba dele se misturando à pipoca e à manteiga. Antes que eu percebesse, minha cabeça estava se apoiando no ombro dele.

Se eu estivesse tentando reforçar a ideia de que aquilo não era um encontro, não estava sendo muito bem-sucedida.

Perdi completamente a vontade de comer, por isso não protestei quando ele deixou o saco de pipocas no chão. Não

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achei de bom-tom limpar a mão engordurada no jeans, mas lamber os dedos me parecia meio... cafona demais. Além dis-so, já tinha decidido a não dar essa satisfação a Ethan.

Ethan resolveu meu dilema pegando minha mão e guian-do-a para a boca dele. Eu sou estúpida o bastante para não ter percebido o que ele ia fazer até que a boca se fechasse ao redor do meu indicador. O som que emiti ficou em um meio termo entre um arquejo e um guincho.

Meu cérebro mandava que eu puxasse a mão para longe da boca de Ethan, mas ela não deu ouvidos.

Ethan sugou meu dedo com gentileza, a língua macia e suave lambeu todo o sal e a manteiga. Minha boca secou, e eu tive dificuldades para fazer com que o ar enchesse os pul-mões. Eu acreditava que ter um cara que não era meu namo-rado lambendo o meu dedo fosse algo nojento – só para ter ideia do pouco que eu sei.

Ethan terminou o que fazia com o indicador e passou para o dedo médio. Eu senti como se fosse entrar em combustão instantânea. Senti o rosto queimar e o coração bater em algu-ma parte perto da garganta. Minha convicção de que aquilo não deveria ser bom rapidamente desaparecia.

Aquela parte torpe e desconfiada do meu cérebro que di-zia que eu nunca deveria confiar em Ethan depois de ele ter lançado um feitiço sedativo em mim uma vez piscou em aler-ta máximo, procurando por sinais de que minha reação fosse causada por magia e não em decorrência dos meus próprios desejos. No entanto, por mais que minha pele formigasse, era um formigar de prazer que fazia os dedos dos pés se curva-rem e não o choque elétrico da magia.

Ethan soltou minha mão e eu me peguei virando na dire-ção dele, na esperança de ser beijada. Os lábios dele estavam úmidos por conta da manteiga, e eu sabia que praticamente me afogaria naquele sabor. Lábios entreabertos, ele se incli-nou na minha direção.

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Antes que os lábios dele encostassem-se aos meus, uma pipo-ca bateu na ponta do nariz dele. Nós dois nos viramos para trás.

Não vi Finn comprando nada – de certa forma, isso pa-recia algo estranho para um Cavaleiro feérico fazer –, mas ele segurava outra pipoca e nos olhava com severidade. Acho que ele não conseguiu ver o que Ethan esteve fazendo antes, do contrário, nós provavelmente já estaríamos, àquela altura, enterrados em pipoca.

Senti a face arder, mas Ethan só riu de leve e se recostou em seu assento. Não acredito que uma sucessão de mísseis de pipoca o tivesse detido se ele quisesse mesmo me beijar, mas eles de certa forma atrapalhavam o clima.

O que é bom, eu me lembrei. Eu já havia permitido que Ethan dominasse meu juízo antes, e me queimei com isso. Ele dizia que gostava mesmo de mim, mas eu ainda não con-seguia acreditar. Um cara como ele não tinha problemas para atrair garotas mais bonitas – e mais fáceis de ceder – do que eu. Não fazia sentido ele querer me namorar entre tantas ou-tras pessoas. A menos que tivesse motivos secundários.

Houve um dia em que eu me considerava uma garota re-lativamente normal, ainda que o alcoolismo da minha mãe tornasse impossível que eu fosse normal do jeito que eu que-ria. Eu me cansei das bebedeiras dela e fugi de casa, vindo para Avalon – o único lugar onde Faerie e o mundo mortal se cruzam – a fim de encontrar meu pai. Foi aí que descobri que eu sou uma faeriewalker – um indivíduo raro que pode andar livremente entre Faerie e o mundo mortal, com o bô-nus especial de ser capaz de levar magia ao mundo mortal e tecnologia para Faerie. O último faeriewalker antes de mim morreu uns 75 anos atrás, e eu me vi como a corda indefesa de um cabo de guerra político. Com Ethan e o pai dele em uma das pontas.

Por isso, era muito bom que, além de guarda-costas, Finn estivesse dando uma de dama de companhia. A última coisa

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que eu preciso é me apaixonar por Ethan, não importando o quão tentador ele seja. Não enquanto eu não tiver certeza quanto ao que ele, de fato, quer de mim.

Passei o resto da sessão me defendendo dos avanços sutis de Ethan. Os olhos dele cintilavam de humor enquanto eu relampejava, e percebi que aquilo tinha se tornado um jogo para ele. Com o que ele poderia se safar? O que poderia fazer sem que Finn notasse? Eu poderia ter me ofendido pela sua recusa em não aceitar meu “não” como resposta se eu não estivesse tão ciente dos sinais incongruentes que eu enviava. Sim, eu o repelia, mas ele não tinha como deixar de perceber que eu sempre demorava um pouco para fazê-lo.

– Você está agindo como um cretino – eu lhe disse em certo ponto ao pegar a mão dele, afastando-a da minha coxa. Do alto da minha coxa. Minha voz estava sôfrega demais para ser convincente, e eu tinha permitido que a mão dele subisse mais do que eu pretendia.

O braço dele – que persistia ao redor dos meus ombros – me deu um apertão.

– Estou agindo como um perfeito cavalheiro – ele sussurrou no meu ouvido. – Não vou fazer nada que você não queira.

É, bem... ali estava o problema. Eu queria coisas que não tinha o direito de querer. Ou que, pelo menos, não era sensa-to eu querer. E tudo o que deixei que ele fizesse lhe dava mais motivos para tentar algo mais até eu o repelir.

No fim do filme, eu estava tão excitada que era um mila-gre eu não ter começado a arrancar as roupas em público. Se Finn não estivesse logo atrás, eu teria de contar somente com minha força de vontade, e quem sabe que tipo de estu-pidez eu não teria feito. Eu tinha a sensação de que estava além dos meus limites com Ethan, mas não sabia o que fazer a respeito.

Saímos do cinema de mãos dadas. Tenho certeza de que Ethan teria me acompanhado até a minha casa se ele pudes-

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se, mas atualmente eu vivia em uma casa subterrânea secreta no meio da montanha em que Avalon se situava. Seria possí-vel contar em apenas uma mão as pessoas que sabiam onde ela ficava – e Ethan não estava nessa lista.

Debaixo da marquise, ele levou minha mão até seus lábios e beijou os nós dos dedos. Uma garoa leve caía, deixando as pedras do pavimento brilhantes com o reflexo da luz da rua.

Ethan soltou minha mão, e eu imediatamente lamentei a perda do calor daquele toque enquanto ele me ajudava a vestir a capa de chuva. Ele olhou por cima da minha cabeça, presumivelmente para Finn, que esperava logo atrás.

– Você vai me socar se eu lhe der um beijo de boa-noite?– Provavelmente – Finn respondeu seco. Ele não era de

falar muito.Eu poderia ter mandado Finn recuar naquela hora. Ele

não era meu pai, e “dama de companhia” não fazia parte da descrição do trabalho dele. Acho que ele não gosta muito de Ethan, mas eu tinha quase certeza de que gostava de mim, e um beijo de boa-noite seria relativamente inocente. Contu-do, eu já tinha permitido que Ethan fizesse muito mais do que deveria, e estava na hora de estabelecer meus limites.

– Isto não é um encontro – repeti pela milionésima vez. – Você não poderia me beijar mesmo que Finn consentisse.

Ethan me lançou um sorriso triste e, ao mesmo tempo, descrente.

– Certo – ele disse. – Eu me esqueci. Não é um encontro. Entendi – ele esticou a mão e ajeitou o meu capuz. Os dedos dele “acidentalmente” afagaram meu rosto antes de se afastar.

Não consegui evitar um tremor de prazer.– Talvez possamos dar um jeito nisso na próxima vez – ele

sugeriu. – Quer ser meu par na festa de Kimber?A irmã de Ethan, Kimber, era a minha melhor amiga. A

festa de aniversário dela seria na sexta-feira seguinte e eu es-tava muito ansiosa para ir.

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– Bela tentativa, Romeu – eu disse, ainda que suspeitasse que não tivesse soado tão sofisticada quando eu tentava ser. – É Kimber quem tem o direito de ser o centro das atenções, e não você.

Ethan revirou os olhos.– Obviamente, você nunca foi a uma festa da família Lei-

gh. Mas entendi o que quer dizer. Só me reserve uma dança, está bem? – e lançou mais um sorriso. – Amigos podem dan-çar juntos, não?

Gemi por dentro. Tive a nítida sensação de que dançar com ele seria mais uma batalha de desejos – meu anjinho em um ombro contra um diabinho no outro.

– Claro – eu disse. – Contanto que você guarde suas mãos para si.

Ele levantou uma sobrancelha, e me lembrei do modo ri-dículo com que reforcei essa regra naquela noite. Acho que corei de novo, mas sustentei, da melhor forma possível, o olhar de desafio dele.

A travessura cintilou naquele olhar quando ele piscou para mim e deu um puxão no meu nariz como se eu fosse uma garotinha, antes de sair para a chuva, sem se importar por não ter guarda-chuva nem casaco.

Observei-o, sem conseguir me virar, até ele dobrar a esqui-na no fim do quarteirão.

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Capítulo 2

Ethan representava problemas para mim, mas se ele fosse o único problema que eu tivesse de enfrentar agora que eu vivia em Avalon, tenho certeza de que teria lidado com ele com muito mais facilidade.

Vim para cá com a falsa impressão de que a vida com meu pai seria mais próxima do normal do que com minha mãe. Que piada! Só estava em Avalon há poucas semanas e já olha-va para os dias em que fui a guardiã de minha mãe com algo parecido com saudades – e, na época, eu realmente detestava minha vida.

Na escola fui uma absoluta solitária, não por essa ser mi-nha inclinação natural, mas porque minha mãe nos obriga-va a mudar a cada um ou dois anos no máximo para evitar que meu pai nos encontrasse, e também porque eu não po-dia correr o risco de que meus colegas de classe ou amigos em potencial descobrissem que mamãe era uma alcoólatra. Aprendi isso do jeito mais difícil em uma das minhas escolas menos prediletas, onde fui ridicularizada incansavelmente.

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Eu também tive de agir como a adulta da família porque minha mãe costumava estar embriagada demais para se im-portar com pequenas coisas como pagar as contas e fazer compras. E nem vamos mencionar o tanto que tive de cuidar para que ela não fosse para trás do volante estando completa-mente alcoolizada!

Nunca em um milhão de anos eu teria me imaginado lem-brando essa época com nostalgia. Mas também, não havia um único aspecto da minha vida em Avalon que preenchesse as expectativas e desejos que tive quando decidi vir para cá.

Em vez de morar em uma casa bacana e normal na linda cidade de Avalon, eu vivia praticamente em uma caverna, lo-calizada nas profundezas da montanha. Minha casa tinha to-das as conveniências modernas, tais como eletricidade, água corrente e conexão com a Internet. Era bem decorada, e se você conseguisse superar a total ausência de janelas, poderia dizer que até era confortável. Mas, para mim, aquilo ainda se parecia com uma prisão, completada com uma guarita locali-zada entre a minha suíte e a entrada.

Acredito que meu pai preferia que eu permanecesse na casa segura 24 horas por dia, sete dias na semana, mas – graças a Deus – ele parecia entender que eu enlouqueceria se não pudesse sair com certa regularidade. Eu nunca saía sozinha – sempre tinha Finn ou meu pai ao meu lado –, mas ao menos eu não era uma prisioneira constante. Ainda assim, eu passava metade do tempo à beira da loucura. Entendia a cautela de papai e não queria me arriscar a morrer, mas detestava viver em tal isolamento. Às vezes era muito difícil não odiar meu pai por isso, não importando o quanto eu compreendesse toda aquela situação.

Sentimentos controversos ou não, quando meu pai apare-ceu inesperadamente no domingo ao meio-dia e levou a mim e à minha mãe para almoçar, fiquei tão feliz com a perspecti-va de sair que eu poderia tê-lo abraçado. Refreei o impulso, porém. Ele se portava com a típica reserva dos feéricos mais

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antigos, o que significava que um tapinha no ombro era uma enorme demonstração de afeto segundo seus preceitos. Tal-vez ele nem soubesse o que fazer com um abraço...

Minha mãe era outra história. Assim que me viu, lançou os braços ao meu redor e me abraçou como se não me visse há anos. Só fazia três dias desde que ela veio me visitar, mas mamãe era tão prisioneira de papai quanto eu, visto o modo como ele manipulou a corte de Avalon para declará-la legal-mente incapaz. Fora um truque sujo, mas com um resultado positivo. Enquanto ela estivesse sob os cuidados de papai, ele lhe negaria acesso a qualquer bebida alcoólica. Desde que me lembro, esse foi o seu maior período de sobriedade, e eu tinha enorme dificuldade em me zangar com papai pelo que ele fez.

Ele nos levou a um dos melhores restaurantes da cidade, tendo reservado uma mesa na varanda. Só para variar, era um dia lindo em Avalon, e a vista da nossa mesa era espetacular. Ou seria, se eu tivesse coragem de admirá-la.

Por ser uma faeriewalker, quando olho além da fronteira de Avalon, vejo uma imagem dupla, desorientadora e nausean-te – chamada de Glimmerglass – tanto do interior da Inglater-ra quanto das florestas de Faerie. Portanto, mantive o olhar para dentro da fronteira, o que já era bem agradável.

As ruas e as casas pitorescas de Avalon se estendiam aos meus pés. A rua principal que espiralava da base da monta-nha até o pico era feita de asfalto, mas quase todas as demais ruas eram de pedra. As luminárias dos postes se pareciam com as antigas, movidas a gás, e muitos dos edifícios existiam mais ou menos da mesma forma há séculos, dando à cidade uma atmosfera antiga, apesar de uma ou outra loja mais moderna.

A montanha era densamente povoada; os residentes de Avalon tinham construído a quantidade possível de prédios no espaço limitado, ainda assim conseguindo manter áreas verdes. Todos pareciam ter parapeitos transbordando flores nas janelas, e as trepadeiras se aproveitavam de cada fresta

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não pavimentada para criar raízes e subir pelas fachadas dos prédios mais próximos. Praticamente cada centímetro da ci-dade era um cartão postal.

Por causa da vista desimpedida, eu conseguia ver até o fos-so que circundava Avalon, cruzado pela ponte que conduzia até o Portão Oeste. Daquela altura, o fosso parecia pitoresco como todo o resto, apesar da cor amarronzada. Entretanto, poucas semanas atrás, minha tia Grace tinha me lançado na-quele fosso, e eu descobri que ele era habitado por Bruxas das Águas – monstros malévolos e asquerosos. Nunca mais consegui olhar para o fosso sem me lembrar da sensação de ser agarrada e arrastada para baixo. Não acho que tia Grace tivesse mesmo tentado me matar quando me jogou. Ela havia inventado um esquema meio doido de usar meus poderes para assassinar Titânia, a rainha da Corte Seelie, e quando seus planos fracassaram, ela me jogou na água, distraindo a atenção dos outros enquanto fugia para Faerie.

Meu pai tinha bom gosto para restaurantes. A comida estava fantástica. A conversa... nem tanto. Eu sabia que meus pais se amaram um dia, mas isso foi há muito tempo. Embora meu pai entendesse os motivos que levaram mamãe a me manter em segredo, ele não conseguia perdoá-la. E mamãe não conseguia perdoá-lo por uma série de coisas, a sobriedade forçada sen-do uma delas. Àquela altura, eles não conseguiriam concordar nem que o céu era azul, quanto mais entrar em acordo sobre coisas mais importantes, como o atual ponto de discussão.

Mamãe queria que eu fosse para a escola regular no outo-no como qualquer outra garota. Papai declarou que a escola seria um risco grande demais e que eu deveria ser educada em casa. Nenhum dos dois parecia se importar com o que eu pensava – nem se preocuparam em perguntar –, mas eu sabia que, no fim, a vontade dele seria a lei. Afinal, ele era meu guardião legal, mesmo que mamãe não tivesse qualquer intenção de admitir esse fato.

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Eu me desconectei deles, tentando aproveitar a bela refei-ção, o tempo e a vista. Sem querer, meus olhos acabavam sem-pre parando no fosso, para a ponte que o atravessava, apesar das lembranças desagradáveis que traziam à tona. Eu me es-forçava para desviar o olhar, mas ele sempre voltava.

Mais uma vez, eu fitava o fosso quando percebi que alguém corria, distanciando-se do portão a toda velocidade. Era um homem feérico, vestido em uma túnica verde e calças cola-das como se fosse um figurante de um filme de Robin Hood. Mesmo daquela distância, eu conseguia ver o terror nas fei-ções do rapaz, o sangue escorrendo da testa. A visão me fez arfar, e os outros ao meu redor devem ter seguido a direção do meu olhar, pois logo começou um burburinho entre os outros clientes que estavam na varanda.

O feérico já devia ter transposto um terço da ponte, continuava correndo, derrubando os pedestres em seu ca-minho, quando finalmente vi do que ele fugia. Uma porta grande se abriu e uma figura vinda de um pesadelo irrom-peu de lá.

Ele estava totalmente vestido de preto, com o rosto es-condido por uma máscara preta grotesca com uma boca de presas e esgalhos afiados malévolos. O corpo inteiro estava recoberto por uma armadura preta brilhante salpicada por espinhos perigosos. Ele cavalgava sobre um enorme cavalo negro, também coberto por placas de armadura. Talvez fosse algum tipo de ilusão de ótica, mas eu podia jurar que vi cha-mas saindo das narinas do animal.

Em toda a minha volta, as cadeiras se arrastaram no chão conforme as pessoas se punham de pé, e o burburinho se ele-vou a sussurros cheios de alarme. O cavaleiro deslizou uma espada da bainha atrás das costas e o alarde aumentou.

– Oh, não – pensei ter ouvido meu pai dizer, embora fosse difícil escutar o que ele dizia em meio às vozes alteradas dos outros clientes.

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Atrás do homem de preto, vários outros cavaleiros surgi-ram da porta – o que deduzi, um pouco tardiamente, ser a entrada para Faerie –, cada um deles vestido de uma forma ligeiramente mais branda do que o líder. Eles se espalharam em uma formação em V e galoparam pela ponte atrás dele. Havia diversos carros na ponte, mas os cavaleiros feéricos não pareceram se importar, os cavalos desviavam a uma velocida-de sobrenatural, ou simplesmente passavam por cima como se eles fossem brinquedos, enquanto freios guinchavam e bu-zinas soavam alto.

– Os Caçadores Bárbaros! – alguém gritou.– O Erlking... – outra pessoa disse com a voz gélida de terror.Eu estava de pé me segurando ao gradil da varanda sem

nem ter percebido que havia me levantado. Ouvia meu pai me chamando, mas eu estava com a atenção totalmente volta-da no que acontecia e não podia responder.

O líder dos cavaleiros rapidamente se aproximava do feérico fugitivo. As pessoas abriam caminho e não havia sinais de que a patrulha da fronteira fizesse o mínimo esforço para detê-lo ou ao resto dos cavaleiros. O homem de preto chegou perto do feérico. Levantou-se sobre os estribos, mantendo o equilí-brio com facilidade apesar da velocidade impressionante do cavalo. Alguém gritou quando a espada reluziu no sol e co-meçou a descer na direção do feérico.

Não vi o que aconteceu em seguida porque minha mãe se aproximou por trás e cobriu meus olhos com a mão. Mas os gritos e arquejos ao meu redor me deram uma boa ideia sem que eu precisasse ver com os meus próprios olhos.

Minha mãe me virou a fim de que eu ficasse de costas para o gradil. Papai jogou um punhado de notas sobre a mesa e agarrou tanto meu braço quanto o de mamãe, arrastando-nos para fora.

– Temos que ir – ele disse com urgência, e eu não tenho como descrever como foi aterrorizante ver o medo em seus olhos.

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Até onde eu podia dizer, meu pai não tinha medo de nada, e se ele tinha, era mestre em esconder isso. O que significava, então, que naquele instante eu via o medo dele?

As pessoas de dentro do restaurante forçavam o caminho para a varanda para ver o que estava acontecendo. Meu pai abria caminho em sentido contrário em meio à multidão, usando algum tipo de magia para derrubar as pessoas que apareciam na frente. Eu teria me oposto a tal brusquidão, mas lembrar do cavaleiro negro com espada em punho me fez querer correr e me esconder.

Meu pai deu uma centena de telefonemas enquanto me arrastava de volta à casa segura. Mamãe caminhava ao meu lado com o braço ao redor dos meus ombros. O rosto dela estava muito pálido e os olhos um tanto arre-galados demais.

– O que está acontecendo? – perguntei enquanto meu pai continuava com os telefonemas. – Quem são aqueles caras? – o que eu mais queria era que eles dessem meia-volta e vol-tassem correndo para Faerie depois de terem... Tentei não pensar no que havia acontecido.

Minha mãe balançou a cabeça.– Aqueles eram os Caçadores Bárbaros – ela disse em um

sussurro resfolegante, como se dizer as palavras em voz alta fizessem os Caçadores se materializarem do nada.

Esperei por uma explicação, mas ela não disse nada. Tal-vez eu devesse saber de cabeça quem eram esses Caçadores Bárbaros, mas havia muito que eu não sabia sobre Faerie. Ma-mãe nasceu e foi criada em Avalon, e às vezes ela se esquecia de que Avalon não era como os outros lugares.

– O que são os Caçadores Bárbaros? – perguntei.Entramos no sistema de túneis que me levaria de volta à

casa segura e acho que papai deve ter ficado sem sinal, por-que finalmente largou o telefone.

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– São o pesadelo de Faerie – ele disse em um tom tenso e entrecortado. – Um bando de cavaleiros que vivem de caçar feéricos e mortais. Dizem que o líder – o Erlking – é o único homem temido pelas rainhas de Faerie.

– Esse seria o cara com a espada? – perguntei baixinho.Papai assentiu, abaixando o queixo.– Sim. Todos os Caçadores são perigosos, mas ninguém é

mais do que ele.Franzi o cenho ao perceber as nuances do que meu pai

acabara de dizer.– Espere um instante. Você disse que as rainhas de Faerie

o temem, no plural. Mas ele é unseelie, não? – Toda Faerie é dividida em duas Cortes, cada uma com a sua rainha. A Corte Seelie tinha a reputação de ser a dos camaradas (tia Grace, contudo, era seelie, portanto ficava claro que essa reputação nem sempre era verdadeira). A Corte Unseelie era a corte dos monstros e dos bandidos, mas essa também era uma ge-neralização. Ethan e Kimber eram unseelie, e eles eram gente boa na maioria das vezes. O Erlking parecia se encaixar no estereótipo unseelie à perfeição e se ele é unseelie, por certo a rainha unseelie não tem medo dele.

– Ele não é seelie nem unseelie – meu pai disse. – Ele não pertence às Cortes, é um poder por si só. Ele se considera rei, ainda que não tenha um reino.

– E ele tem permissão para entrar quando bem entender em Avalon para matar pessoas em plena luz do dia? – eu já tinha tido provas de que a fronteira entre Avalon e Faerie era perigosamente porosa, mas eu tinha esperanças de que ao menos fosse um pouco melhor defendida do que aquilo.

– Não. Ele não tem permissão para caçar em Avalon. Ele só pode vir para cá se quem ele estiver perseguindo atravessar a fronteira.

Nós estávamos caminhando tão rápido que eu estava come-çando a ficar sem fôlego, por isso decidi refrear as minhas per-

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guntas por enquanto. Quando passamos da área mais povoada dos túneis e entramos no caminho sem iluminação que nos le-vava à minha casa, papai lançou um feitiço que criou uma bola de luz que pairou sobre nossas cabeças e nos mostrou o ca-minho. Minha nuca formigava, e eu continuava olhando para trás. Não que de fato eu antecipasse que o Erlking aparecesse com seu temido cavalo negro, mas eu estava completamente apavorada. Eu jamais admitiria, mas fiquei feliz por minha mãe ter encoberto meus olhos. Eu já vi coisas o bastante em Avalon que me atormentavam o sono. Não precisava de mais uma.

Quando por fim chegamos à casa segura, papai pediu à mi-nha mãe que nos preparasse chá enquanto ele e eu esperávamos pela chegada de Finn na guarita. Aquilo soou mais como uma ordem do que como um pedido, mas minha mãe não se opôs.

A guarita não era agradável como a sala da minha suíte, mas ao menos havia uma área de descanso confortável. Larguei-me no sofá, mas meu pai estava agitado demais para se sentar.

– OK – eu disse. – Qual é a história desse Erlking? Por que tivemos de nos esconder assim que você o viu? Você disse que ele não tem permissão para caçar em Avalon.

– É complicado.Bufei.– Como se qualquer coisa neste lugar fosse simples. Va-

mos, pai. Conte o que está acontecendo. Eu não tenho o di-reito de saber?

Ele soltou um suspiro frustrado, o que pareceu liberar um pouco da sua tensão. Ele olhou para o chão ao falar, e o esfor-ço deixava sua mandíbula tensa.

– Muito tempo atrás, o Erlking e seus Caçadores Bárbaros eram o flagelo de Faerie. Isso foi há muito, muito tempo. Eles ca-çavam os membros das duas Cortes, matando-os conforme sen-tiam vontade. Aqueles que eles não matavam eram obrigados a se juntar ao bando, escravos das vontades do Erlking. Às vezes, o bando invadia Avalon e criava o caos entre os mortais que aqui

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viviam. Os mortais forçados a se juntar aos Caçadores invariavel-mente morriam, seus corpos se dilaceravam à medida que ten-tavam acompanhar o ritmo imposto pelos demais Caçadores...

Minha mãe entrou na guarita, trazendo uma bandeja com o chá. Eu era uma garota ligada em café, mas o povo de Ava-lon, aparentemente, não conseguia viver sem seu precioso chá. Eu estava aprendendo a tolerá-lo a fim de ser educada. Mamãe apoiou a bandeja na mesinha de centro e depois ser-viu três xícaras conforme meu pai continuava.

– ... até que um dia as rainhas de Faerie conseguiram selar um acordo com o Erlking; um acordo selado com magia. O Erlking concordou que não caçaria mais os membros de qualquer das Cortes sem a permissão das rainhas. Desde então, ele e os Caça-dores se tornaram os assassinos das rainhas de Faerie, seus exe-cutores. Ele ainda é um pesadelo, mas um pesadelo controlado.

Franzi o cenho enquanto pensava no assunto.– O que o Erlking conseguiu com esse acordo?Papai misturou o chá com intensidade calculada.– Ele recebeu o privilégio de caçar os exilados das Cortes.O meu franzir se intensificou.– Mas ele já os caçava, certo?Meu pai não respondeu.– Acredito que haja mais nesse acordo – minha mãe disse

surpreendendo-me. – O Erlking vive para caçar. É parte da sua natureza Elemental, e mesmo assim ele permitiu que as rainhas impusessem limites. Ele deve ter conseguido alguma vantagem com isso. No entanto, parece que os feéricos anciões o bastante para se lembrar disso estão sob uma injunção e não podem falar nada a respeito.

– O que é uma injunção?– É uma condição reforçada por magia. O feitiço foi lan-

çado pelas duas rainhas e se estende a todos os membros das suas Cortes. Os feéricos com idade o bastante para se lembrar de verdade não podem falar a respeito.

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Papai continuou a mexer o chá, dando voltas e voltas com a colher. Fiquei olhando dele para mamãe.

– Você tem idade o bastante para se lembrar? – perguntei a ele.

Ele assentiu, mas não disse nada.– E não tem permissão para falar sobre isso?Ele virou a cabeça, me olhou, mas ainda não disse nada. Ele

nem mesmo assentiu ou desmentiu com um aceno de cabeça.– Deve ser uma injunção bem poderosa – minha mãe dis-

se. – Eles nem podem dar voltas ao redor da verdade. Não podem sequer admitir que a injunção exista, ainda que todos saibam que ela deva existir.

– E ninguém faz ideia do que eles estão escondendo?Mamãe balançou a cabeça.– Há diversas teorias, mas não acredito que uma seja mais

provável que a outra.Digeri tudo isso por um tempo, frustrada por não enten-

der a história toda. Obviamente, vi mais do que o suficiente para provar que o Erlking era um cara bem assustador. Ainda assim, não entendia porque papai reagiu como se o homem fosse uma ameaça direta a mim.

– Se o Erlking não pode caçar em Avalon – me voltei a ele –, por que, então, você está tão preocupado com isso?

Papai finalmente sorveu um gole do chá tão bem-misturado.– Ele não pode caçar em Avalon. Isso não significa que ele

não possa matar. Ou pior. Há uma injunção sobre ele que o proíbe de atrair qualquer um dentro dos limites da cidade – com exceção das pessoas de Faerie que ele persegue. Contu-do, a injunção não o proíbe de se defender, e ele é livre para fazer o que quiser com quem for tolo o bastante para atacar a ele ou a qualquer um dos seus Caçadores.

– Ainda não entendo – eu disse. – Quem é estúpido o bas-tante para atacá-lo quando se sabe que ele terá permissão para matar nesse caso? – por certo eu não, o que significa que ele não

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representa uma ameaça para mim. – Além disso, ele não vai voltar para Faerie agora que a... a caçada dele acabou? – mais uma vez tive de lutar contra a imagem do cavaleiro negro levan-tando a espada para matar um homem indefeso e desarmado.

– O Erlking tem a habilidade singular de provocar as pessoas a agir contra seus interesses. E não, duvido muito que ele volte para Faerie. Toda vez que persegue alguém até Avalon, ele fica pelo menos algumas semanas. Ele até tem uma casa aqui.

Balancei a cabeça. Havia muitas coisas em Avalon de que eu gostava – mesmo que com certa relutância –, mas os detalhes esquisitos de seu tratado com Faerie não estavam entre elas.

– Para começar, por que permitir que ele entre na cidade? – perguntei. – Vocês não permitem que spriggans e outros monstros cruzem a fronteira, e ele parece bem mais ame-drontador do que qualquer um deles.

O sorriso de papai se mostrou cansado.– E ele é mesmo. E é esse o motivo pelo qual a cidade teve de

fazer um acordo com ele. Ou concordávamos com os termos per-mitindo que ele entrasse em Avalon, ou entrávamos em guerra contra ele. A maioria dos feéricos é imortal e, portanto, não mor-re de causas naturais. Mas até onde qualquer um pode afirmar, o Erlking é verdadeiramente imortal. Nos tempos em que a guerra corria livre entre ele e as Cortes, um Cavaleiro Seelie conseguiu decapitá-lo. O Erlking apanhou a cabeça, colocou-a de volta no pescoço e matou o Cavaleiro. É do interesse do povo de Avalon não fazer inimizade com um homem que não se pode matar.

Entendi a situação, mas isso não queria dizer que deveria gostar dela. Parecia-me que deveria existir uma solução me-lhor (esqueça o fato de eu não conseguir sequer imaginar qual ela seria). Concluí que se levássemos em consideração o poder que o Erlking detinha, nós tínhamos bastante sorte de haver qualquer tipo de limitação sobre ele.

O que será que as rainhas de Faerie deram a ele para per-suadi-lo a parar de caçar as pessoas? O que quer que fosse,

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devia ser algo muito importante. E eu duvidava seriamente que fosse algo bom.

Papai pousou a xícara na mesa e se virou para mim no sofá. Ele não tinha o rosto mais expressivo do mundo, mas de imediato tive aquela sensação “ai, meu Deus” antes mesmo de ele abrir a boca. Apertei a xícara entre as mãos e prendi o fôlego.

– Não é impossível que uma ou ambas as rainhas possam ter enviado o Erlking para matar você – meu pai me disse, e eu senti o fundo do estômago despencar.

Certo, eu já sabia que as rainhas queriam que eu morresse. Quero dizer, Titânia, a rainha seelie, cuja Corte eu tecnica-mente era afiliada – eu me recusava a dizer “pertencia” –, ficaria satisfeita se eu saísse de Avalon e nunca mais voltasse. Mas visto que Mab, a rainha unseelie, me caçaria até o fim dos meus dias quer eu partisse ou ficasse, meu pai havia de-cretado que eu deveria ficar. Elas se preocupavam que meus poderes de faeriewalker – como, por exemplo, minha habi-lidade de levar uma arma para Faerie – representassem um perigo para seus tronos. Levando-se em conta que minha tia Grace quis me usar para assassinar Titânia e usurpar seu tro-no, as rainhas não eram simplesmente paranoicas.

Mesmo sabendo que as rainhas me queriam morta, ainda era um choque ouvir que elas talvez tivessem enviado aquela aterrorizante criatura imortal – e seu bando de Caçadores – atrás de mim. Eu só era uma garota, pelo amor de Deus! Era como usar um canhão para matar uma mosca.

Infelizmente, meu pai ainda não tinha terminado.– Sei que isso será uma... inconveniência, mas acho que é

melhor para todos os envolvidos se você permanecer na casa segura pelo tempo que o Erlking ficar aqui.

– Não! – a palavra escapou antes que eu tivesse a chance de pensar ou moderar minha reação. Pulei de pé e me afastei o quanto pude do meu pai.

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– Seamus – minha mãe começou a falar –, talvez nós possa-mos... – a voz dela sumiu com o olhar frio que ele lhe lançou.

Estava começando a parecer que qualquer coragem que ela tivesse só era disparada pelo álcool. Naquele instante, de-sejei ter a teimosa alcoólatra de volta.

Balancei a cabeça e cruzei os braços diante do peito.– De jeito nenhum você vai me manter trancada aqui pelo

tempo que o Erlking decidir ficar zanzando por aí! – consegui deixar de gritar, embora meu tom ainda estivesse perto disso.

– É para a sua própria segurança – ele disse, tentando usar comigo o mesmo olhar frio que acabara de lançar para mamãe.

Minha força de vontade sempre foi mais forte que a dela, e seria preciso mais do que um simples olhar para me fazer recuar.

– De jeito nenhum! – repeti. – Você mesmo disse que ele não pode atacar as pessoas a menos que elas o ataquem pri-meiro. Se acha que vou atacar aquele cara, ficou louco. Ele não pode me ferir, e você não pode me trancar nesta mas-morra como uma prisioneira.

A raiva cintilava nos olhos dele, mas a voz permaneceu inalterada.

– Posso e vou fazer isso – ele se levantou, olhando-me do alto. – Quando você tiver tempo para refletir, verá que será melhor assim.

– Isso não vai acontecer! – normalmente eu conseguia re-frear meu temperamento perto dele muito melhor do que isso. Em parte porque ele sempre estava calmo, e também porque tinha tanta autoridade sobre mim que era um risco enfrentá-lo. Mas aquilo era demais. – Você mesmo disse que não terá qualquer poder legal sobre mim depois que eu fizer 18 anos. E quer que eu fique para sempre em Avalon. Se me mantiver prisioneira aqui em baixo, juro que vou embora de Avalon no segundo em que eu me tornar maior de idade.

Eu não sou de choramingar, mas não me importava de usar um pouco de manipulação. Em vez de afastar as lágrimas

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como eu sempre costumo fazer, deixei que elas escorressem pelo rosto. Papai fez o que pôde com seus poderes para tor-nar a casa segura um lugar confortável e agradável. Mas o fato permanecia: aquilo era uma maldita masmorra, e nenhuma quantidade absurda de bela decoração esconderia esse deta-lhe por completo.

Claro que eu não queria morrer. Não sou uma idiota com-pleta. Por isso não reclamei de ter de viver ali embaixo. E não reclamei – muito – por sempre ter um guarda-costas por per-to. Mas, honestamente, eu não achava que poderia aguentar se papai me forçasse a ficar ali até que o Erlking decidisse que era hora de ir embora, e também não considerava o Erlking uma ameaça significante para mim.

Meu pai não era exatamente a pessoa mais fácil com quem se negociar. No mínimo, ele tinha séculos de experiência e também tanta confiança em si e em suas decisões que, quan-do estabelecia alguma coisa, não tinha a remota intenção de recuar. Nunca.

Ele olhou para mim por um bom tempo, e eu quase con-seguia ver os pensamentos indo e vindo em sua mente. Talvez estivesse pensando se existiria algum argumento perfeito que mudasse a minha opinião. Ou talvez estivesse refletindo se o que eu disse era para valer.

No fim, ele suspirou e baixou os ombros.– Está bem – ele disse, como se as palavras tivessem sido

arrancadas sob tortura. – Não vou insistir para que permane-ça na casa segura permanentemente. Insistirei, porém, que não saia sem ao menos dois guardiões poderosos e que fale comigo antes de sair.

Eu estava começando a relaxar, pensando ter vencido a batalha, quando ele lançou a bomba:

– Todavia, acredito que sob essas circunstâncias, você terá de faltar à festa de aniversário da sua amiga. Seria uma bre-cha de segurança muito grande.

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Cerrei os dentes para segurar o protesto que queria es-capar da minha boca. Eu sabia que papai nunca se mostrou entusiasmado com a ideia de eu ir à festa de Kimber. Não só por Kimber ser um membro da Corte Unseelie, visto que ele é seelie, mas também por ela ser filha de Alistair Leigh, o maior rival político de papai.

Avalon é governada por um Conselho de seis humanos e seis feéricos. O décimo terceiro membro do Conselho – o Cônsul – é quem desempata e, portanto, de muitos modos, é a pessoa mais importante em Avalon. O posto de Cônsul muda de mãos entre feéricos e humanos a cada dez anos, e tanto meu pai quando o pai de Kimber almejam esse posto. Meu pai acreditava que a minha ida à festa teria possíveis im-plicações políticas, e já havia deixado bem claro que preferia que eu não fosse. Eu também deixei bem claro que não per-deria a festa por nada neste mundo. E agora parecia que os estúpidos Caçadores Bárbaros davam a papai exatamente a desculpa que ele tanto precisava para me proibir de ir.

Ele estava esperando meu protesto. Eu via isso no olhar dele, no modo rígido com que se continha. Os instintos me diziam que ele já havia recuado o máximo que podia, e que era praticamente um milagre que ele tivesse cedido.

Com papai, eu sabia que tinha que escolher minhas bata-lhas, e eu escolhia somente aquelas que eu tinha esperança de vencer.

– Talvez os Caçadores tenham partido até sexta à noite – eu disse, tentando transmitir esperança, ainda que ultima-mente eu jamais esperasse que minha vida fosse fácil. Note como deixei de concordar com os termos dele...

Papai relaxou, e acho que não notou minha evasão.– Só nos resta esperar – ele disse em um tom que deixava

evidente que não havia como aquilo acontecer.Eu mal o ouvi porque já começava a maquinar como ir à

festa de Kimber sem a sua permissão.

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