Familia

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Deparamo-nos então com

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A estrutura familiar atual, centrada na afeição e na intensificação das relações entre pais e filhos na privacidade de suas casas, é uma invenção relativamente recente na história do homem ocidental, ganhando contornos mais nítidos a partir do século XVII na Europa.

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Compilação de Felix J Lescinskiene

Publicação desenhada para ser lida também em dispositivos móveis.

2014

Créditos na ultima pagina

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O conceito de família Poucos conceitos evoluíram e modificaram-se tanto, através dos tempos, como o de famí-lia. A etimologia refere-se a dois vocábulos:

família (conjunto de escravos e servido-res de uma pessoa) e

famulus do latim (servidor, escravo do-

méstico). O termo é encontrado nas línguas latinas (família, famille), já no século XIV e na língua inglesa (family) no início do século XV. Nas sociedades ocidentais da atualidade, a noção mais generalizada de família está, pre-dominantemente, ligada à idéia de um casal e seus filhos, isto é, à família nuclear.

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Murdock (1976) conceitua a família como um agrupamento social caracterizado por resi-dência comum, cooperação econômica e re-produção. Para o autor, à família competiri-am as funções sexuais, econômicas, reprodu-tivas e educacionais. A estrutura familiar atual, centrada na afeição e na intensificação das relações entre pais e filhos na privacidade de suas casas, é uma in-

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venção relativamente recente na história do homem ocidental, ganhando contornos mais nítidos a partir do século XVII na Europa. Estudo clássico de Ariés – História social da criança e da família – retrata com detalhes o processo histórico que resultou na constitui-ção dos costumes e valores da família mo-derna. Na sociedade medieval não havia condições objetivas para a constituição de uma noção de privacidade e de intimidade entre os indi-víduos em suas habitações. As famílias eram grandes agrupamentos compostos não apenas por parentes consan-güíneos, mas também pelos servidores e pro-tegidos. Nos casarões, nos espaços onde as pessoas se alimentavam, também dormiam, namoravam, dançavam, trabalhavam e recebiam visitas.

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Nesse período a duração da infância era re-duzida a seu período mais frágil. A passagem da família medieval para a mo-derna implicou numa lenta e insidiosa cons-trução de um novo “sentimento de família”. Essa transformação foi possível porque a fa-mília modificou suas relações e atribuições com a criança. A presença constante da criança na escola sob intervenção do Estado, da Igreja e das re-ferências do mundo “psi”. Então simultaneamente ao fortalecimento da escola, a casa da família foi perdendo seu ca-ráter de espaço social aberto, para se fechar em sua privacidade. Nos séculos XVIII e XIX vai aos poucos se constituindo a típica família moderna, forma-da pelo homem provedor financeiro...

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O conceito cível (1916) define: “a família compreende as pessoas unidas pelo casa-mento, as provenientes dessa união, as que descendem de um tronco ancestral comum e as vinculadas por adoção. Em sentido restrito corresponde aos cônjuges e aos filhos”. Adotaremos o conceito de família em seu as-pecto nuclear, e parentes ou agregados que coabitam e, principalmente, interagem, carac-terizando uma dinâmica psicossocial estrutu-rada.

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Muitas questões estão implicadas nessas de-finições: espaço e tempo compartilhados, formação e manutenção de laços, hereditari-edade, adoção, legitimação, transmissão e le-gados. Tudo isso regido por leis que organi-zam as relações e situam os indivíduos em uma linhagem. Durante o decurso de sua vida, é na interação com a família e com a sociedade que o ser humano obtém as condições necessárias para seu o desenvolvimento biopsicossocial. Não apenas o recém nascido sucumbe diante do abandono dos demais, mas o equilíbrio emocional, os processos de subjetivação, a realização dos ideais de vida, o aprendizado e a adaptabilidade ao meio só são possíveis graças aos circunstantes, com os quais o ho-mem convive obrigatória e permanentemen-te.

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A subjetividade se dá sempre na presença de um outro. É a partir de alguém que me reco-nheça que sinto minha própria existência. Poderíamos brincar com Descartes e dizer “o outro existe, logo existo”. É o outro que dá re-ferências sobre minha existência. A importância da família A família envolve uma organização de espa-ços e tempos. Seu presente traz sempre regis-tros do passado e continuamente prepara o futuro. Como tudo o que acontece em família, as di-versas vivências, compartilhadas ou manti-das em segredo, não permanecem como pro-priedade exclusiva do indivíduo. Há constan-temente um processo de mútua influência. Dessa forma, tudo o que se passa em família deixa marcas, cujos traços atravessam gera-ções, determinando, inconscientemente, res-postas e condutas.

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Ao pensarmos na pré-maturidade do bebê humano, a finalidade primeira da família é assegurar sua sobrevivência e protegê-lo tan-to de condições naturais quanto daquelas ex-ternas e adversas. No entanto, é notadamente no CAMPO PSÍ-QUICO que a família se revela indispensável, já que o psiquismo humano se constitui a partir de um tecido psíquico grupal (Käes, 1976) – por consangüinidade ou adoção – que permite em condições suficientemente boas, a emergência de aparelhos psíquicos individuais. Familidade Para Meyer (2002), a tarefa básica da família é auxiliar os indivíduos que a compõem na travessia de uma situação de absoluta de-pendência para uma gradativa autonomia. Ao falar de “familidade”, o autor aborda uma parte da vida mental que se vê continuamen-

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te estimulada e ativada pela interação famili-ar, com a função de lidar com tal experiência e organizá-la. A família também fornece ao indivíduo um aspecto de sua identidade que faz com que ele, internamente, se veja como participante dessa organização. Sentimento de pertença Todo processo de subjetivação é um processo de HUMANIZAÇÃO que, portanto envolve o outro. A possibilidade de vir a ser nós é o anseio de ser de cada ser humano. É uma expansão da integridade de si, de ser UM em COMUNIDA-DE. “A nossa família” (Safra, 2009). Tudo Começa em Casa Winnicott (1983) destaca uma dimensão fundamental da condição humana: a impor-tância dos fatores ambientais desde o início

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da vida, desde a concepção do feto, ou até mesmo antes (expectativas dos pais). A importância do ambiente Levar em consideração o ambiente, na consti-tuição e estruturação psíquicas fundamentais do ser humano, é vislumbrar a importância do fator dependência (característica do início de todos os seres humanos): dependência da figura materna, da figura paterna, dependên-cia dos outros componentes da família, dos valores culturais da época e inclusive das normas correntes, por exemplo, da medicina, e da psicologia da época (pediatria, puericul-tura, psicologia do desenvolvimento). Mãe ambiente Para Winnicott, a vida psíquica começa com uma experiência de fusão → existe apenas um corpo e um psiquismo para duas pessoas (u-ma unidade indivisível).

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“Mãe universo” Para o bebê, sua mãe e ele próprio constitu-em uma única pessoa. Embora ele já seja um ser separado, com suas capacidades inatas, cujas potencialidades ainda não se realiza-ram, o bebê não tem consciência disso. A mãe não é ainda um “objeto” distinto, ela é um ambiente total, uma “mãe-universo” e o bebê não passa de uma pequena parcela dessa i-mensa unidade. (Winnicott, 1983) Winnicott (1993) afirma que não existe bebê sem mãe e que não existe mãe sem bebê, “e-xiste apenas uma unidade”. Dessa forma, o autor estabelece a importância do meio am-biente (mãe) para o desenvolvimento do in-divíduo. Será somente por meio dos cuidados dessa figura (ou alguma substituta, desde que, com um mínimo de constância) que o psiquismo do bebê poderá se desenvolver, gradativamente, por seus estados e estágios naturais.

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A relação constrói a subjetividade, não exis-tindo a possibilidade do si mesmo sem esse contato. Nesse momento de vida do bebê, a devoção materna é fundamental pois é a possibilidade desse bebê existir num lugar seguro e aco-lhedor. Na relação mãe-bebê, os pais podem ter so-nhos em relação a ele, mas é importante. que esses sonhos não saturem o espaço de modo que a singularidade do bebê fique achatada. É impte. que esses anseios sejam ensaios da possibilidade de poder receber a criança que chega. Devoção e função especular Não poder viver uma experiência dessa (“preocupação materna primária”), significa a impossibilidade de ter entrado no mundo do humano. Devoção é abertura para o outro, é um certo esquecimento de si, é dar lugar para que o inédito do outro possa acontecer e tor-

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nar-se uma experiência constitutiva do hu-mano. A “função especular”, da mãe reflete aquilo que ela vê no bebê. A mãe espelha o bebê como ser, não é um espelho que joga o bebê num plano bidimensional, ela reflete o que ele é, reflete alteridade, reconhece o que o bebê é, e o bebê é peculiar, é singular desde o princípio. O ser humano tem a necessidade de ser reco-nhecido pelo que ele é. Tem a necessidade de reencontrar o que lhe é singular no rosto da mãe, na fala da mãe. A realidade de si mesmo é dada pelo olhar do outro o que, portanto emoldura a própria singularidade. A pessoa que não pode ser reconhecida pelo outro naquilo que lhe é singular, vive uma experiência de INVISIBILIDADE, o que faz com que ela não se sinta real.

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Holding Winnicott fala da necessidade do meio ambi-ente de sustentação para que o processo de “continuidade de ser” possa se desenvolver numa criança. A função principal da figura materna, o hol-ding é reduzir de modo significativo as inva-sões (impingements) traumáticas, pois de ou-tra maneira, a criança experienciará o aniqui-lamento do ser pessoal, um terror que Winni-cott chama de “agonia impensável”. A alterna-tiva a ser é reagir, e reagir interrompe o ser e o aniquila. Há um colapso no âmbito da con-fiabilidade. Nesse momento, o fracasso nas tentativas de integração levam o indivíduo a viver a desin-tegração, um estado muito doloroso, que sig-nifica o abandono aos impulsos incontrolá-veis e, portanto a vivência do caos.

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Inúmeros autores já pesquisaram os proces-sos pelos quais a personalidade da criança estrutura-se, gradativamente, de acordo com os padrões de conduta de seus pais, irmãos e familiares próximos, formando uma base pa-ra a sociabilidade. Segundo as palavras de Abdo e Meleiro (1992): “é no seio familiar que se desenvolvem as sensações de segu-rança, auto-estima, confiança e auto-preservação”.

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Navarro (1974), citando Ackerman, afirma que à família compete: 1. assegurar a sobre-vivência física e da espécie. 2. Desenvolver o basicamente humano no homem: a) provisão de alimento e brigo; b) ligação afetiva; c) i-dentidade pessoal; d) desenvolvimento da aprendizagem e da criatividade. Família e pós modernidade Vivemos numa sociedade que privilegia cada vez mais o individualismo e o imediatismo. Cada hoje já se tornando ontem.

Potência do tecnológico

x Condição do pensar

Imagem Contemplar Prazer Simbólico

Presenciamos a família num contexto sem re-gras estáveis, tendo que absorver as vicissi-tudes da vida moderna.

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É um excesso que na verdade denuncia a falta É a valorização do presente e do futuro em detrimento do passado. Há um desprezo pelo antigo, havendo uma ruptura na cadeia gera-cional impossibilitando uma das tarefas mais importantes da família que é a “transforma-ção dos conteúdos psíquicos através das gera-ções”. Hoje vivemos um borramento de papéis, a função paterna diluída, famílias chefiadas por mulheres, famílias reconstituídas. O modelo da família nuclear mudou muito. Família e adoecimento Portanto, se consideramos a família como a unidade básica de crescimento e experiência, nesse sentido, ela é também a unidade básica de saúde e doença (Ackerman, 1978).

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Já que ela é a principal responsável pela for-mação da identidade do indivíduo, torna-se então fundamental entender o transtorno mental como um processo familiar, questio-nando-se a eficácia de qualquer tratamento que não leve em consideração a síntese total desse indivíduo (devendo necessariamente incluir sua família). Segundo alguns autores (Bowen, Eiguer - 4,5) a família é a principal responsável pela for-mação da identidade do indivíduo que dela faz parte e, torna-se fundamental entender a doença mental como um processo familiar, questionando-se a eficácia de qualquer tra-tamento que não leve em consideração a sín-tese total desse indivíduo (devendo necessa-riamente incluir sua família ). O estudo criterioso do desenvolvimento dos vínculos familiares permite elucidar o modo como o aparecimento de uma doença deses-trutura a dinâmica de funcionamento da fa-mília e, também, como interações familiares desajustadas favorecem ou precipitam o apa-

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recimento de doenças em um ou mais de seus membros. Os papéis que o paciente desempenha na fa-mília e esta, em relação a ele, adquirem for-mas muito peculiares que dependem de uma rede muito extensa de articulações. A inequívoca importância dos determinantes sócio-familiares no desencadeamento e evo-lução dos quadros clínicos indica, claramente, que a abordagem do paciente psiquiátrico deve incluir intervenções com a família e com o meio social. Longe de responsabilizar as interações sócio-familiares como únicas determinantes pela eclosão dos transtornos mentais estamos simplesmente considerando até que ponto tais interações podem dificultar, ou mesmo impedir, uma adequada evolução do ser hu-mano no desenvolvimento dos seus papéis ao longo da vida.

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É preciso assinalar, também, que existem consideráveis indícios que demonstram os benefícios da participação da família no tra-tamento. Segundo Winnicott (1958), quando somos chamados a intervir em situações de desor-ganização da dinâmica familiar, devemos procurar compreender os “fatores subjacen-tes ao problema manifesto” para que nossa ajuda possa ser a mais adequada possível. O sofrimento da população que procura a-tendimento numa instituição deve ser enten-dido numa estrutura mais ampla, como uma experiência contínua de integração emocio-nal com seu ambiente, seu grupo familiar e sua interação com eles, focando principal-mente no entendimento do contexto no qual este indivíduo se encontra. O equilíbrio dinâmico do indivíduo e do gru-po influencia:

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A precipitação da doença O curso da mesma A possibilidade de recuperação O risco de recidiva.

Esta estabilidade depende de um padrão de-licado de equilíbrio e intercâmbio emocional no qual cada membro é afetado por todos os outros. Segundo Ackerman (1978), “a família é a unidade básica de crescimento e experi-ência” e nesse sentido, ela é também a unida-de básica de doença e saúde (Tommasi, 1996). Funcional X Disfuncional Parece que de fato não existem famílias ide-almente saudáveis, mas apenas aquelas que são ou predominantemente saudáveis ou predominantemente doentes. Entende-se a-qui por famílias doentes, aquelas que pro-gressivamente não conseguiram levar adian-te suas funções familiares e que em estágios mais graves foi-se observando sinais de de-

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sintegração emocional os quais dependendo das circunstâncias acabavam culminando na desorganização dos vínculos familiares e no surgimento de diferentes psicopatologias. Famílias desintegradas Então, é frequentemente nessas situações, nessas famílias socialmente caóticas que apa-recem formas múltiplas de doenças psiquiá-tricas e desajustamento social. Na maioria das vezes, as famílias que chegam ao hospital já estão nesse processo de desintegração, e como veremos adiante o paciente na maior parte dos casos mostra-se como o sintoma emergente de toda esta dinâmica. Sendo assim, um dos objetivos do atendimen-to às famílias é capacitá-las para lidar com essas adversidades. Entende-se a família co-mo CUIDADOR PRIMÁRIO desse paciente. Aborda-se o clima afetivo do ambiente fami-liar, a sobrecarga e o desconforto emocional destes familiares e as características destas

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famílias que propiciam novas recaídas no quadro psiquiátrico de seu familiar. Nas intervenções Institucionais desejamos que os cuidadores sejam mais tolerantes às mudanças pelas quais o membro doente pas-sa e mais realistas quanto às expectativas em relação ao tratamento (Scazufca, 2000). Necessidades básicas No entanto, deve-se levar em conta que mui-tas vezes, os perigos que essas famílias en-frentam são reais. Não é um perigo neurótico imaginado, são privações muito básicas como fome, falta de dinheiro e de moradia. Em al-guns países desenvolvidos é muito comum que antes de iniciar qualquer tipo de inter-venção terapêutica com as famílias, elas se-jam primeiramente supridas em suas neces-sidades mais básicas (Bleandoum, 2). Ajuda Adequada Segundo Winnicott(16), quando somos cha-mados a intervir em situações de desorgani-zação da dinâmica familiar, devemos procu-

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rar compreender os fatores subjacentes ao problema manifesto para que nossa ajuda possa ser a mais adequada possível. Intervenção psicanalítica Em linhas gerais, as intervenções psicanalíti-cas privilegiam a resolução de conflitos inter-pessoais a partir da elucidação das motivações inconscientes dos membros da família. A pre-sença do terapeuta é dirigida à elucidação do significado inconsciente do funcionamento do grupo parental, examinando sua natureza, suas origens e o papel que desempenha na manutenção de um certo nível de estabilida-de da estrutura (Melman, 9). Etiologia: mãe Esquizofrenogênica Um dos primeiros trabalhos importantes nessa área foi elaborado por Reichman, em 1948, que ao estudar a relação do paciente esquizofrênico com sua família, formula o conceito de mãe “esquizofrenogênica”, atri-buindo, desta maneira, a explicação etiológica

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da esquizofrenia à relação mãe e filho. A au-tora descreve essa mãe como sendo uma pes-soa autoritária, dominadora, ambivalente, que seria complementada por um pai passi-vo, indiferente e ausente. Duplo Vínculo Dentre os vários grupos de pesquisa que se organizaram nessa época, o grupo de Gregory Bateson, cujo trabalho foi desenvolvido em Palo Alto, teve como resultado, em 1956, a primeira publicação em trabalho clínico com família; o artigo clássico intitulado “Towards a Theory of Schizophrenia” onde é formulado o conceito de duplo vínculo:

Duas pessoas com alto nível de envol-vimento

Um paradoxo infringido pela mãe ao

bebê (vítima)

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Repetição da experiência que passa a ser habitual

Impossibilidade da “vítima” escapar Na Argentina, no final da década de 50, Pi-chon-Rivière inclui a família na sua compre-ensão de doença mental. O autor desenvolveu a noção do paciente co-mo emergente de um grupo familiar doente (bode expiatório), assumindo a função de de-positário e porta-voz da patologia de toda a família. Sob essa perspectiva, o adoecimento de um membro do grupo passou a ser entendido como um pedido de ajuda e como uma forma de “preservar” o restante do grupo da situa-ção destrutiva (Pichon-Rivière, 11).

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O Paciente Identificado É comum observar que na maioria das famí-lias comprometidas, a doença psiquiátrica de um membro representa o resultado sintomá-tico da necessidade dos diversos outros membros se protegerem. Uma parte da família tenta manter-se intacta às custas de outra parte. Nesse sentido, visto que a história pessoal de cada um é de algum modo única, e que a vul-nerabilidade correspondente é diferente, o membro mais frágil teria maior probabilida-de de tornar-se o paciente identificado (Skyn-ner, 13) e, criança ou adulto, ele vai revelar-se freqüentemente um emissário disfarçado de um grupo familiar emocionalmente de-formado. Resistência à Mudança Para muitos terapeutas familiares de orienta-ção psicanalítica, todos os membros de uma

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família estão conscientemente de acordo em ajudar a superar os sintomas incômodos da pessoa doente. Mas esse movimento esconde, muitas vezes, um desejo inconsciente de não modificar o equilíbrio familiar, mesmo que insatisfatório. Qualquer mudança pode ser forte geradora de resistências, temores de que o sistema grupal possa se desintegrar. Segundo esse modelo, a cada pessoa dentro de uma dinâmica familiar são atribuídos pa-péis e funções. O paciente, ao carregar o pa-pel de doente do grupo, permite que os ou-tros caminhem relativamente bem e se en-contrem protegidos dos sintomas mais gra-ves. O fato de ter “um paciente” na família dificul-ta a diluição da problemática entre todos os membros. Observamos uma força que vai contra essa possibilidade. A chance deles perceberem que por traz da-quele “quadro clínico”, esconde-se um ser

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humano com dificuldades que eventualmente eles próprios apresentem, é muito desestru-turante. Existem famílias cujo paciente já está doente há dez anos e não se sabe nada a respeito de sua doença, muito menos dessa pessoa que sofre. A negação é muito comum, e apesar de em alguns momentos funcionar como um re-curso protetor frente a essa situação muito assustadora e desgastante, torna-se um im-portante obstáculo à qualquer possibilidade de melhora. Deparamo-nos então com famílias fragilmen-te estruturadas num equilíbrio muitas vezes precário, na iminência de uma ruptura. Nes-ses ambientes familiares predominam a baixa qualidade das comunicações, a violência ob-jetiva ou encoberta e a pobreza material e/ou afetiva.

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Famílias Indiferenciadas Essas famílias apresentam-se indiferencia-das, funcionando através de vínculos simbió-ticos e alianças extremamente rígidas. Essas alianças caracterizam-se pelo super-envolvimento emocional e seguidas invasões. Os familiares mostram-se incapazes de per-ceber a qualidade e a intensidade das críticas que um exerce sobre o outro, observando-se

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também a dissimulação de fortes sentimen-tos de rejeição entre eles. Além do que, são famílias cuja comunicação é absolutamente atrapalhada onde um não escuta o outro, ou quando escuta, deturpa a fala sob seu ponto de vista. Comunicação No atendimento a uma família cuja paciente matriculada no hospital tem diagnóstico de transtorno de personalidade borderline o-correu uma situação que ilustra o que foi di-to:

Assim que entraram na sessão (como sempre) a mãe pede para a filha come-çar a falar... Ela começa a reclamar da mãe e diz que ela é uma louca, pois ficou tocando a campainha dos portões e não aparecia no porteiro eletrônico e ficava pra lá e pra cá! A mãe – por outro lado - refere que estava aflita para que não a-trasassem no atendimento (pois ela foi

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andar no parque) e como não atende-ram num portão... Ela foi no outro!

Família - equipe Nesse sentido, deve-se observar que estes comportamentos repetem-se não só na famí-lia mas na relação com o terapeuta e também na relação com a equipe de saúde mental. A família reproduz padrões de funcionamen-to doentios (extrema rigidez, indiferenciação e impermeabilidade) que interferem direta-mente na atuação dos profissionais. Portanto o atendimento a famílias gravemen-te disfuncionais torna-se condição para me-lhor evolução daquela situação específica.

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A terapia de Família é concebida como um processo que visa à mudança de situações de sofrimento não só através de fazer consciente o inconsciente familiar, mas de restabelecer de forma saudável e diferenciada a ligação entre os elementos familiares. Famílias disfuncionais As famílias patológicas (disfuncionais) de-monstram grande intolerância a conflitos.

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Não tendo tido condição de fazer face às an-gústias inerentes ao desenvolvimento preva-lecem padrões narcísicos de interação. Ocorre um curto-circuito nos processos de simbolização e a comunicação familiar cos-tuma se apresentar bastante deficiente. Funcionam de acordo com o princípio do nir-vana, buscam nível zero de tensão interna. Nessas famílias os mitos encontram-se rigidi-ficados e se apresentam como cânones, com as diferenças não sendo toleradas. Prevalecem angústias narcísicas (de abando-no, de desassistência), angústias persecutó-rias (de prejuízo e injustiça) e angústias ca-tastróficas (de deixar de ser, com medo da morte psíquica através do enlouquecimento). Os mecanismos de defesa nessas famílias são caracterizados pela massificação e intensida-de. Visam certo equilíbrio psíquico, ainda que patológico.

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Qualquer intervenção é, portanto, ameaçado-ra, porque esse equilíbrio é muito precário e teme-se um desmoronamento a partir do contato com uma realidade psíquica tida co-mo muito estragada. Tarefa básica Segundo Recamier (1988) existem duas tare-fas básicas que cabem a todo ser humano rea-lizar: fazer face à angústia e ao luto funda-mental. Angústia: própria da natureza humana, pre-sente desde o início da existência. Luto fundamental: perdas, afastamentos e desilusões inerentes ao processo de separa-ção e individuação que não cessam nunca por serem inerentes ao desenvolvimento e à vida (separação psicológica da mãe e perda da ilu-são de onipotência).

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Considerando-se a importância que a família possa ter nessas tarefas universais, podemos simplificadamente dizer que quando elas se apresentam suficientemente saudáveis, aju-dam seus membros a superá-las, individual e conjuntamente. Famílias com potencial patológico obstinam-se em evitar, a todo custo, o vivido da angús-tia e a dor do luto. Segundo Meyer (2002), frente às ansiedades suscitadas por essas tarefas universais – já que nelas estão implicadas experiências do-lorosas de separação, exclusão, perda, com todos os sentimentos penosos e contraditó-rios que são o cerne mesmo dessas experiên-cias – o grupo familiar tende a buscar modos de se livrar da dor psíquica, como principal-mente a cisão e a projeção dos aspectos insu-portáveis.

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Mecanismos de defesa Os sistemas defensivos familiares aparecem como mecanismos matriciais para garantir a permanência desse grupo-família. Em certa medida são necessários para a sobrevivência do grupo. Contudo quando utilizados em ex-cesso revelam famílias cristalizadas e fragil-mente estruturadas. Ruffiot (1982) nos fala sobre mecanismos de defesa familiares:

Identificação projetiva familiar: con-siste no esforço para expulsar para o ex-terior tudo que é vivido como estranho, não aceitável e não assimilável. Em ge-ral são aspectos rejeitados que confor-me a gravidade do funcionamento fami-liar sugerem a intensificação de vivên-cias persecutórias e também mecanis-mos de cisão, negação e controle onipo-tente.

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Recusa da dependência: assinala um funcionamento familiar autárquico, com a impossibilidade de trocas e de reno-vação. Esta recusa quando extrema faz com que a família evite o reconhecimen-to da diferença das gerações.

Cisões internas familiares: a família se

apresenta com grupos tidos como “bons” e “maus”. Isso se dá em qualquer família em menor grau e com menos so-frimento. Quando intenso – paciente i-dentificado.

Introjeção familiar: tendência arcaica

à incorporação que se particulariza pela sua massificação e crueza, tomando um caráter de vampirização ou aspiração.

Em resumo... Há famílias com capacidade para enfrentar seus conflitos e superá-los. Seus membros es-tão suficientemente diferenciados, a comuni-

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cação dá-se com suficiente fluidez, há recur-sos para reparação e elaboração. Diante de alguma dificuldade maior, procuram ajuda, estabelecem trocas, buscam saídas, trans-formam. Nas famílias disfuncionais, o conflito original não foi superado, prepondera a confusão en-tre os membros com padrões paradoxais de interação. Nessas famílias “viver junto é im-possível, mas separa-se é mortal”. Padrões de interação Poderíamos agora tentar assinalar a preva-lência de certos padrões de interação, sem propor uma tipologia familiar, com esquema-tizações redutoras. Alguns parâmetros podem nortear: a com-preensão da sintomatologia familiar, uma possível indicação terapêutica e os aspectos prognósticos a serem considerados. Famílias Psicossomáticas

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São famílias que dão uma ênfase excessiva nos papéis de cuidado funcionando melhor quando alguém está doente (fisicamente). Minuchin (1982) comenta que famílias psi-cossomáticas são caracterizadas principal-mente pela falta de definições de limites, por fronteiras difusas e tendência a apoiar a ex-pressão somática dos conflitos. Famílias Psicossomáticas Famílias com sintomatologia psicossomática apresentam uma vida de fantasia empobreci-da, com maior propensão ao raciocínio con-creto, preocupação com o sucesso e disposi-ção para falar de sintomas corporais. A fanta-sia predominante nessas famílias é a de um corpo único, portanto inseparável. Bruch (1973) ressalta a presença de figuras parentais muito controladoras e em geral in-trusivas.

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Famílias com funcionamento perverso Famílias com funcionamento perverso têm como característica predominante a passa-gem ao ato, também decorrente de uma falta de simbolização. Caracterizam-se pela dinâ-mica violenta, agressiva e destrutiva, seja ela física, moral e/ou sexual, ainda que não ne-cessariamente explícita. Segundo um estudo comparativo entre famí-lias de pacientes com transtorno de persona-lidade borderline, com esquizofrenia para-nóide e funcionamento neurótico constatou-se que:

As famílias de pacientes com transtorno de personalidade borderline (TPB) e-ram mais distintas do que as outras du-as do grupo controle.

Ambas as figuras parentais eram mais doentes e menos funcionais em compa-ração com os outros grupos

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Os fatores utilizados para essa diferen-ciação foram: psicose materna, coloca-ção pobre de regras, ausência de envol-vimento maternal e tendência a ver um dos filhos como o bom e o outro como mau.

Mãe de pacientes com transtorno bor-derline tem menos condições de obter gratificação na relação com os filhos.

Essas famílias são melhor caracterizadas pela intensa rigidez do vínculo conjugal do que pela falta de atenção, suporte ou proteção em relação aos filhos. Segundo o autor (Gunderson, 1980), esse a-chado corresponde às observações de Kern-berg (1992) sobre a tendência dos pacientes com TPB perceberem seus pais como um “grupo muito unido”. Ou seja,

Investimento na relação conjugal em de-trimento da função parental

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Os pais (fathers) dos pacientes com TPB

eram menos dominantes e menos efeti-vos em suas funções do que os pais dos outros dois grupos.

Punições inadequadas em relação ao

comportamento dos filhos. Família e o Funcionamento Obsessivo Compulsivo Nas famílias com interações obsessivo-compulsivas observa-se um intenso envolvi-mento dos familiares com o transtorno do membro portador, inclusive com a participa-ção em seus rituais, que acabam se transfor-mando em rituais familiares. Há uma concordância familiar como meio de evitar conflitos: separação e individuação são assim evitadas, porque ninguém pode fazer nada sozinho.

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Observa-se também excessiva rigidez dos progenitores, controle muito acentuado e grande preocupação com a ordem e a meticu-losidade, o que pode contribuir para o apare-cimento de disfunções comunicacionais. Família e o Transtorno Obsessivo Compulsivo A superproteção e a falta de afeto também influenciam no desenvolvimento desse tipo de transtorno. O modelo de evitação, cuidados excessivos e medos predispõe uma criança mais vulnerá-vel a desenvolver sintomas obsessivos com-pulsivos. Pais que reforçam interpretações temerosas do mundo contribuem para o transtorno. Em geral são famílias com pouca flexibilidade e capacidade de adaptabilidade diante das adversidades.

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Em famílias de pacientes com transtornos a-fetivos é comum observar dois tipos de fun-cionamento:

A família vive a depressão junto com o paciente, com prostração e paralisação diante da vida ou;

Reage maniacamente quase que negan-

do as condições de sofrimento do fami-liar.

É muito comum a crença de que o paciente pode controlar seus sintomas e o nível de crí-tica e exigência em relação a ele é muito alto. Essa postura reflete na verdade um forte sen-timento de impotência diante do paciente deprimido. Famílias Enlutadas Nas famílias enlutadas, a depressão é pela experiência de uma perda real e significativa.

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Para que essa situação evolua de forma satis-fatória, a família tem que estar razoavelmen-te diferenciada e portanto ser capaz de um cuidar da dor do outro e da própria dor sem vínculos de co-dependência. Observa-se que muitas vezes uma situação de luto mal resolvida vai eclodir em gerações seguintes e, em geral como um elemento im-peditivo da aquisição da autonomia. Famílias de esquizofrênicos Em famílias de pacientes esquizofrênicos é comum observar-se um funcionamento sim-biótico entre todos os membros. Observando-se muitas vezes pais distantes e indiferentes. Bowen em 1954, a partir de estudos sobre a esquizofrenia, observou que “a fusão emo-cional entre a mãe e o filho(a) pode assumir a forma de um vínculo dependente afetivo ou uma luta conflituosa”. A dinâmica básica sub-jacente a essa fusão seria a alternância entre a ansiedade de separação e de incorporação.

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Comunicação Observa-se que a comunicação em geral se estabelece através da identificação projetiva. Entende-se aqui por comunicação, a possibi-lidade da criação de um campo de linguagem que propicie o conhecimento e a compreen-são de cada um dos membros da família (Mi-nuchin, 10). A fala “...não dê ouvido para essas vozes...”, revela a angústia da família e a impossibili-dade dela em acolher a situação de crise (a-lém de certa concretude sobre o assunto). Es-se movimento, na verdade revela mais uma forma da família entrar em contato com esta situação, pois essa fala aparentemente apazi-guadora para o paciente, na verdade serve muito mais ao familiar, para ele próprio ten-tar se tranqüilizar. A família está em crise e a internação surge para resolver a crise - “...o médico, Graças a Deus, internou ele para mim...”.

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Esse desejo de que o paciente fique internado (que muitas vezes é ambivalente) acaba im-pedindo que se criem possibilidades para o retorno do mesmo e a família acaba “atuan-do” o tempo todo para uma atmosfera per-turbadora com conseqüente piora do pacien-te e maior permanência deste numa enferma-ria. Nos casos desses pacientes internados, os familiares tendem a esperar que o terapeuta e a Instituição desempenhem o papel de Deus. Há a exigência de uma proteção mágica. Contam com a possibilidade de “reaver” um membro que era dado como caso perdido, como se o hospital fosse “devolvê-lo” comple-tamente curado. É possível também que esta fantasia seja fruto de uma postura da Institu-ição, esta atuando como favorecedora deste tipo de vínculo. Nesse caso tem que se ter muito cuidado com a comunicação estabele-cida entre a família, a Instituição e o paciente.

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Em contrapartida o hospital psiquiátrico é associado a muitos medos e estigmas e a ten-dência de algumas famílias é sentirem-se me-lhor quanto mais longe possível puderam fi-car. Nesses casos, os profissionais devem “bata-lhar” pela possibilidade do atendimento (sem desconsiderar a importância de um compro-metimento da família). Nos casos de internação fica muito mais fácil manter a dinâmica do “bode expiatório”. Não é incomum ver a família responsabilizar o paciente pela oscilação de seu próprio estado. Ou seja, quando o paciente não está bem, ninguém está, todos ficam mal. Cria-se um peso muito grande, uma responsabilidade enorme para o paciente pois dele depende o bem estar da família toda. Esse comporta-mento pode caracterizar uma família com importante indiscriminação (11).

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Algumas mais indiferenciadas expressam verbalmente este aspecto “...eu só vou ser fe-liz quando você ficar bom...”, “...quando ele sente-se em pânico, se recolhe, fica com raiva e despeja tudo nos outros, eu fico igualzinha a ele...”. Podem até sentir-se melhor, mas na verdade estão colocando um peso enorme nas mãos do paciente, muitas vezes contribu-indo para o aumento de sua ansiedade e pos-sível piora. Observa-se muita dificuldade de aceitação da doença, condição essa que implica à família, principalmente aos pais, entrar em contato com uma ferida narcísica extremamente do-lorida “...quebrou nosso orgulho...”. É a constatação de que esses pais falharam, de que erraram. Surge um sentimento de im-potência muito grande principalmente nas mães que sempre cuidaram dos filhos, sempre foram capazes de curar qualquer doença. En-tão, como se deparar com algo que foge abso-lutamente ao controle e é totalmente desco-nhecido? É muito desestruturante.

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Foi relatado um caso de um paciente que fi-cou um ano isolado em casa sem tratamento e sua mãe só levou-o ao hospital quando o mesmo passou a ficar muito agitado. Esta si-tuação ocorre com freqüência, pois enquanto o paciente está quieto, “sem dar trabalho, bonzinho”, mesmo que fique horas na cama, parece que para a família está tudo bem. A maioria das famílias tem a concepção de que o indivíduo só está doente quando está agressivo, gritando e espumando. Nessas si-tuações os familiares acabam procurando a-tendimento quando a doença já tem anos de evolução. A aceitação da doença é fundamental tanto por parte da família quanto por parte do pa-ciente. O fato é que esses transtornos colo-cam em cheque uma série de teorias que as famílias tem a respeito das relações e da edu-cação. É um assunto que não corresponde a nenhuma lógica, não faz sentido, deixando a todos muito angustiados.

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De fato as famílias chegam ao hospital com as teorias mais variadas possíveis a respeito do que é um transtorno mental. Cada família di-vide uma série de crenças e valores por ve-zes funcionando até como um sistema de de-fesas. Através de suas falas observam-se essas fan-tasias: “...meu filho sempre foi muito bom menino, só as vezes faz malcriação...”, “...é uma determinação de Deus e só ele mesmo pra curar...”, “...é deficiência de um líquido que não chega no cérebro...”, “...pegou esqui-zofrenia no baile...”, “...ai se eu tivesse no lu-gar dele, eu faria esse tratamento...”. Surgem também muitas expectativas de solu-ções mágicas “...porque a senhora não des-perta a inteligência de seu filho...” , “...eu sei que se ele casasse tudo se resolveria...”, al-gumas mães inconformadas, “..ele foi super desejado, foi super querido, primeiro neto, sempre teve tudo...”.

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Observa-se também o quanto essas famílias têm medo de enlouquecer e o quanto em al-guns momentos elas se misturam com a situ-ação do próprio paciente. A irmã de um paci-ente em certa ocasião falou: “...nosso quadro familiar...”, ou “...nosso grupo é só de esquizo-frênicos?”. Constata-se então, que essas pessoas acabam trazendo de forma muito rica como lidam com a situação e que poucas famílias tentam (e podem) compreender o que acontece, en-quanto a maioria procura se afastar ou então se encontram tão desorganizadas que se fun-dem à loucura do paciente e atuam juntamen-te com ele. As expectativas são muito altas, como já foi dito, chegando a níveis de pensamentos má-gicos, super-compensatórios. Em dada ocasi-ão uma senhora já de muita idade falou a respeito de seu filho “...é que nem uma gulo-dice, a gente quer que sare logo!”.

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Contudo quanto mais altas essas expectativas mais freqüentemente o contato com o pacien-te torna-se fonte de inúmeras frustrações, principalmente no caso de pacientes crônicos (3). Em um dos atendimentos um pai comen-tou “... sinto-me como um rato que entrou numa ratoeira e não tem mais retorno...”. Outro aspecto importante observado nos a-tendimentos é a dificuldade no estabeleci-mento dos limites. As famílias em geral con-fundem cuidar com cada uma faz o que quer. Não há parâmetros a serem estabelecidos. A questão é quando dar “colo” e quando colocar limites. Por exemplo, havia uma mãe, cujo filho esta-va internado, em surto psicótico, com graves distúrbios alimentares, não tinha limites para comer, alimentava-se de tudo o que havia na sua frente e após, vomitava. Essa mãe, em to-das as visitas trazia um bolo (tipo Frapé) o qual obviamente o paciente comia inteiro.

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Ao ser abordado esse assunto na sessão (pela irmã) a mãe dizia que sentia muita pena do filho, pois ele estava nessa enfermaria horrí-vel, sozinho e magrinho e que um “pouqui-nho” de bolo na visita poderia alegrá-lo. Nem sequer passava pela sua cabeça que ela pode-ria dar outras coisas ao seu filho, que não comida, ou que ela poderia alegrá-lo e preen-chê-lo também com palavras, ou até com um simples olhar. Em outras ocasiões vemos que o discurso do paciente é veementemente rejeitado “... isso é

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papo de louco...”, ou que muitas vezes ele é excluído de decisões e problemáticas da famí-lia. Contudo, por mais frágil que esta família se encontre ela ainda é o único ponto de refe-rência deste indivíduo. É o seu único elo de ligação com o meio externo, com suas raízes, sua identidade. Ocultar algumas situações e emoções ao paciente é compactuar com sua alienação e conseqüentemente com sua lou-cura. É deixar de fazer a ligação (ainda que precária) de seu mundo de fantasias com o mundo real. Delirante ou não, naquele mo-mento é só o que o paciente tem a oferecer. É nesta relação “tão delicada” que as famílias criam pré-concepções a respeito dos pacien-tes, como forma de diminuir a angústia frente a este desconhecido. É como se já o conhe-cessem e conseguissem prever todas as suas atitudes sentindo-se mais seguros para lidar com eles. Contudo, acaba surgindo uma barreira no contato com o mesmo não permitindo um o-

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lhar mais amplo e a percepção de novos mo-vimentos do mesmo. O paciente por outro la-do, acaba sentindo-se amarrado a esses rótu-los e acaba atuando de acordo com eles. A família traz um discurso taxativo e posses-sivo “...só eu o conheço, só eu que sei...”. É também uma maneira de impedir qualquer possibilidade de aproximação e trabalho. O papel que o paciente desempenha perante a família e esta em relação a ele adquire for-mas muito peculiares que vão depender de uma rede muito extensa de articulações. Como já mencionamos, muitas vezes a doen-ça é necessária em determinada família que por uma série de motivos só mantém sua co-esão diante da necessidade de cuidar de al-guém, o que pode significar, cuidar da sua própria loucura da qual esse paciente é o por-ta voz.

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