Feira Popular, Requalificação Urbana e Turismo: quando a higiene suprime sentidos

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FEIRA POPULAR, REQUALIFICAÇÃO URBANA E TURISMO: QUANDO A HIGIENE SUPRIME SENTIDOS MARCUS VINÍCIUS DE OLIVEIRA SILVA 1 MARTA CERQUEIRA MELO 2 Resumo: Este trabalho visa explorar as repercussões de processos históricos, políticos e sociais nas formas de relação estabelecidas pelos sujeitos no âmbito da sociedade ocidental com os dejetos, detritos e lixo que produzem socialmente. As reflexões assentam-se numa incursão não etnográfica no contexto de execução do projeto de requalificação da Feira de São Joaquim, que acontece na cidade de Salvador. Enquanto medida de promoção de reparos na infraestrutura, na salubridade e numa qualificação da feira para a exploração do seu potencial turístico, o projeto de requalificação evoca a reflexão sobre as implicações de elementos como a pertença étnico-racial e de classe social dos trabalhadores e frequentadores da feira, diante dos discursos higiênico- sanitários e da produção de novos ordenamentos espaciais. Palavras-chave: desenvolvimento social; cultura; higiene. I. Oficialmente inaugurada em 08 de dezembro de 1964 no bairro do Comércio, situado entre a Bahia de Todos os Santos e a Avenida Oscar Pontes, a Feira de São Joaquim conta com 7500 feirantes distribuídos em mais de quatro mil boxes, os quais vendem alimentos típicos (rapadura, camarão-seco, tapioca, etc.), temperos, artigos religiosos - principalmente de candomblé -, artesanato de palha e cerâmica, frutas, verduras, 1 Professor aposentado da Universidade Federal da Bahia. Possui experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Pública, atuando principalmente com temas tais como Reforma Psiquiátrica e Saúde Mental, Clinica Psicossocial das Psicoses, Psicologia e Direitos Humanos, Desigualdade Social e Subjetividade. E-mail: [email protected] 2 Graduanda pela Universidade Federal da Bahia, integrante do Grupo de Estudos em Interculturalidades e América Latina do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura UFBA. E-mail: [email protected]

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Este trabalho visa explorar as repercussões de processos históricos, políticos e sociais nas formas de relação estabelecidas pelos sujeitos no âmbito da sociedade ocidental com os dejetos, detritos e lixo que produzem socialmente. As reflexões assentam-se numa incursão não etnográfica no contexto de execução do projeto de requalificação da Feira de São Joaquim, que acontece na cidade de Salvador. Enquanto medida de promoção de reparos na infraestrutura, na salubridade e numa qualificação da feira para a exploração do seu potencial turístico, o projeto de requalificação evoca a reflexão sobre as implicações de elementos como a pertença étnico-racial e de classe social dos trabalhadores e frequentadores da feira, diante dos discursos higiênico-sanitários e da produção de novos ordenamentos espaciais.

Transcript of Feira Popular, Requalificação Urbana e Turismo: quando a higiene suprime sentidos

  • FEIRA POPULAR, REQUALIFICAO URBANA E TURISMO:

    QUANDO A HIGIENE SUPRIME SENTIDOS

    MARCUS VINCIUS DE OLIVEIRA SILVA1

    MARTA CERQUEIRA MELO2

    Resumo: Este trabalho visa explorar as repercusses de processos histricos, polticos e

    sociais nas formas de relao estabelecidas pelos sujeitos no mbito da sociedade

    ocidental com os dejetos, detritos e lixo que produzem socialmente. As reflexes

    assentam-se numa incurso no etnogrfica no contexto de execuo do projeto de

    requalificao da Feira de So Joaquim, que acontece na cidade de Salvador. Enquanto

    medida de promoo de reparos na infraestrutura, na salubridade e numa qualificao da

    feira para a explorao do seu potencial turstico, o projeto de requalificao evoca a

    reflexo sobre as implicaes de elementos como a pertena tnico-racial e de classe

    social dos trabalhadores e frequentadores da feira, diante dos discursos higinico-

    sanitrios e da produo de novos ordenamentos espaciais.

    Palavras-chave: desenvolvimento social; cultura; higiene.

    I.

    Oficialmente inaugurada em 08 de dezembro de 1964 no bairro do Comrcio, situado

    entre a Bahia de Todos os Santos e a Avenida Oscar Pontes, a Feira de So Joaquim

    conta com 7500 feirantes distribudos em mais de quatro mil boxes, os quais vendem

    alimentos tpicos (rapadura, camaro-seco, tapioca, etc.), temperos, artigos religiosos -

    principalmente de candombl -, artesanato de palha e cermica, frutas, verduras,

    1Professor aposentado da Universidade Federal da Bahia. Possui experincia na rea de Sade

    Coletiva, com nfase em Sade Pblica, atuando principalmente com temas tais como Reforma

    Psiquitrica e Sade Mental, Clinica Psicossocial das Psicoses, Psicologia e Direitos Humanos,

    Desigualdade Social e Subjetividade. E-mail: [email protected]

    2 Graduanda pela Universidade Federal da Bahia, integrante do Grupo de Estudos em

    Interculturalidades e Amrica Latina do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura

    UFBA. E-mail: [email protected]

  • legumes, carnes, peixes e at animais vivos, trazidos de diversas partes do Recncavo

    Baiano (GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA, 2010).

    Tendo a sua origem referida antiga Feira de gua de Meninos que foi

    completamente destruda aps incndios ocorridos em 1964 -, as condies histrico-

    sociais do seu surgimento atrelam-se, inevitavelmente, quelas relativas ao fim desta

    ltima. Com os seus mais de 40 anos de histria e extenso de mais de 60 mil metros

    quadrados, a Feira guarda, ainda, ntima relao com o processo de modernizao por

    que passava a cidade de Salvador em decorrncia da descoberta e explorao de

    petrleo a partir de meados do sculo XX e o processo de xodo rural verificado no

    estado da Bahia poca3.

    No por acaso a Feira ainda recebia, no fim da dcada de 60, a alcunha de mercado dos

    pobres: a diversidade que comporta e que, ao mesmo tempo, lhe atribuda enquanto

    caracterstica primordial no apaga a expresso da desigualdade social que tambm

    emerge em seu interior. Ela exerce, portanto, grande importncia no cotidiano das

    populaes dos bairros populares que nela tinham e tm a oportunidade de garantir o

    sustento familiar atravs do trabalho autnomo, bem como podiam e podem encontrar, a

    preos mais razoveis, os produtos imprescindveis manuteno das rotinas

    domsticas dirias (PAIM, 2005).

    II.

    Encarada atualmente sob perspectivas diversas econmica, social, cultural, etc. a

    Feira de So Joaquim tem passado por um processo de requalificao desenvolvido a

    partir do Plano de Reabilitao Participativo do Centro Antigo de Salvador, iniciativa

    do Governo do Estado da Bahia, sob a coordenao da Secretaria de Cultura do Estado,

    iniciado em 2010.

    3 Em decorrncia de problemas relacionados s dificuldades oferecidas manuteno da vida no

    interior dos estados nordestinos, muitos homens e mulheres migraram para a capital baiana,

    estimulados pelo descobrimento do ouro negro na regio. Nesse perodo ganharam fora as

    medidas de urbanizao e modernizao da cidade de Salvador que, espelhadas em cidades

    como Rio de Janeiro e So Paulo, urgiam a inscrio no circuito do desenvolvimento atravs da

    promoo do controle e da disciplina das populaes que ento aumentavam, bem como dos

    espaos e das relaes que neles estabeleciam (PAIM, 2005).

  • O Plano tem a finalidade de corrigir as limitaes da ltima revitalizao por que passou

    o Pelourinho na dcada de 90, contemplando a sustentabilidade econmica, social,

    urbanstica e ambiental desse importante stio. Como Aes Prioritrias, estabeleceu-se

    a reviso da iluminao pblica e de monumentos, o reforo na segurana da rea, a

    melhoria da limpeza pblica, a valorizao da cultura local, a qualificao do

    atendimento aos visitantes e a eficcia na comunicao. (GOVERNO DO ESTADO DA

    BAHIA, 2010).

    Ainda segundo o documento oficial, no que concerne Feira de So Joaquim, o projeto

    tem o objetivo de melhorar a salubridade, a higienizao e a acessibilidade, respeitando

    suas caractersticas histricas e culturais de feira livre, e implantao de novo modelo de

    gesto. Ademais, visa inseri-la no Circuito Turstico-cultural da Cidade Baixa, uma vez

    que tem despertado a ateno de alguns visitantes, sobretudo estrangeiros, interessados

    no turismo tnico, e de agncias de viagem que j esto incorporando este atrativo nos

    seus roteiros tursticos definidos para Salvador.

    Atendendo s condies estruturais de que necessita a Feira para o seu melhor

    funcionamento, as reformas em vigncia assumem um papel de grande relevncia,

    sobretudo porque j poca da sua inaugurao, na dcada de 60, estavam previstas

    amplas reformas das instalaes hidrulicas, eltricas e sanitrias do espao, que,

    todavia, teve a sua liberao aos feirantes no obstante as precrias condies de que

    dispunha.

    Por outro lado, evocam a reflexo a respeito dos sentidos que as reformas podem

    adquirir do ponto de vista da inscrio da Feira num cenrio mais amplo, no que

    concerne espacialidade urbana e s suas implicaes socioeconmicas e culturais. Ela

    constitui-se enquanto campo de relaes, reduto das classes populares, zona em que as

    pertenas de classe e tnico-culturais, apresentam-se enquanto recursos-chave para a

    compreenso do papel que a diversidade sociocultural cumpre no estabelecimento de

    marca e distino social.

    A Feira de So Joaquim trata-se, assim, de um espao de frequentao de diversos

    atores sociais, que interagem desde as diferenciadas formaes culturais de que

    dispem; diferenciaes que assinalam no somente as peculiaridades que permeiam os

    mais diversos setores da sociedade, mas tambm a desigualdade a partir da qual se

    verifica o acesso aos recursos materiais e simblicos que condicionam o seu devir social

    (CANCLINI, 2009).

  • III.

    Compreender o modo como culturalmente mantemos contato com a sujeira, impele-nos

    compreenso da maneira com que nos relacionamos com o corpo (individual e

    socialmente) e o meio fsico que nos rodeia. Convida-nos elucidao das

    transformaes de mentalidades e sensibilidades que, ao longo dos processos histricos,

    elegeram aquilo que deve ser considerado lixo e, consequentemente, as medidas de

    contorn-lo, atravs das prticas higinico-sanitrias adequadas. Num sentido mais

    amplo, impele-nos a reconhecer as razes que, fixadas em solo europeu, atrelam-nos a

    um passado marcado pelo colonialismo e por violncias ancoradas num sistema

    fundamentado na ideia de raa e de uma hierarquia etno-racial globalizada.

    Nesse sentido, os discursos e as medidas modernizantes destinadas produo de novos

    ordenamentos no espao em que acontece a Feira transcendem os limites da

    racionalidade tcnica que predominantemente impera sobre projetos e obras de

    infraestrutura. Eles se inscrevem, por assim dizer, num cenrio marcado por

    condicionantes histrico-sociais que se relacionam no apenas com a dinmica scio-

    poltica, cultural e econmica da cidade de Salvador, mas tambm com todas as

    implicaes dos processos de dominao que, ancorados nas mais profundas razes

    moderno-coloniais, historicamente lhe atravessam e constituem4.

    As noes de higiene e sujeira, tomadas, assim, como dimenses do discurso de

    justificao e legitimao de projetos de requalificao como este, por que passa a Feria

    de So Joaquim, conduzem-nos reflexo acerca do papel da assepsia e das prticas

    (individuais e coletivas) de higiene que tiveram efeito sob o contexto de formao das

    sociedades urbanas5. Sociedades que, possibilitadas a partir do processo de

    desenvolvimento e mundializao do sistema capitalista, encontraram nas medidas de

    gerenciamento de suas populaes, alternativas para os problemas sociais decorrentes

    da dinmica econmica ento verificada.

    Conforme aponta Foucault (1979) ao investigar os impactos da vida urbana decorrentes

    do processo de industrializao disparado nas naes europeias, as transformaes

    4 Sobre os temas dos grupos de prestgio, da discriminao e desigualdade raciais na cidade de salvador

    ver AZEVEDO, 1996, GARCIA, 2006 e BACELAR, 2001.

    5 LEFEBVRE, 2002.

  • scio-polticas ocorridas nesse cenrio destacaram uma srie de problemas sociais

    derivados do processo de estabelecimento do modo de produo capitalista. Problemas

    relativos ao desordenamento do crescimento populacional, mobilidade urbana, e,

    especialmente, s condies de sade das populaes frente ao caos urbano sob esse

    contexto instaurado e que, de modo radical, inauguram uma necessidade de promoo

    da administrao dos corpos e de gesto calculista da vida (FOUCAULT, 1985, p.

    131).

    Transformaes que expressam, desse modo, processos histricos disparadores de um

    treino voltado produo de sensibilidades, que emerge no seio das sociedades

    europeias entre os sculos XVI e XVII - aprimorado na segunda metade do sculo

    XVIII com o surgimento da medicina urbana (FOUCAULT, 1979) -, e posteriormente,

    trasladado para as colnias atrelado ao discurso civilizatrio. A constituio de uma tal

    sensibilidade inauguradora da Modernidade, todavia, no pode ser compreendida seno,

    ao ser referida transio operada durante o Renascimento, separando os novos modos

    de vida tpicos das sociedades europeias daqueles que caracterizaram as possibilidades

    da existncia urbana no perodo histrico convencionalmente conhecido como medievo.

    Nas sociedades medievais verifica-se a presena de uma estreita relao estabelecida

    entre as dimenses do csmico, do social e do corporal e da consequente produo de

    sentidos existncia naquele contexto. O corpo, compreendido como um todo, formado,

    inclusive, por aquilo que se passou, em seguida, a considerar como um aspecto

    dissociado de si, a saber, os seus excrementos. Corpo ainda no tomado como objeto de

    controle moral, sobre o qual ainda no imperavam os tabus lingusticos que promovem

    uma economia da nomeao das suas partes.

    O corpo medieval era totalmente diferente daquele que surgir no

    ambiente aristocrtico-capitalista. Era um corpo de orifcios dotados

    de liberdade de expresso, de aberturas que falam, que podem usar de

    sinceridade. Nos corpos medievais, os orifcios no estavam

    absolutamente condenados ao silncio semitico. Era o corpo da boca

    que cospe, que vomita, que arrota, que exala hlito. Era corpo do nus

    que expele gases, do nariz que escorre... No era um corpo contido

    pela musculatura. Nada dessa couraa muscular que oprime os

    orifcios para que no se manifestem em pblico, para que se

    retenham, para que se escondam. Nada de uma rigidez que separa o

    interior corporal do exterior, que desenha os limites do corpo,

  • restringindo-os sua corporalidade individual (RODRIGUES, 1999,

    p. 84).

    Mudana poltico-econmica, mas tambm cultural: o ser humano passa a ser

    hegemonicamente imaginado enquanto um ser racional; passa a ser concebido desde

    uma perspectiva universalista que, no obstante, conserva um determinado gnero, uma

    etnia e uma origem social muito bem definidas. O Iluminismo, nesse sentido, exerce

    considervel influncia estabelecendo-se enquanto marco dessa multifatorial transio

    histrica. Mais do que uma mudana, o enaltecimento da razo marca uma ciso entre

    as dimenses da existncia predominantes at ento (RODRIGUES, 1999).

    Processos traduzidos sob a forma de concepes que chegam s colnias europeias e

    que se materializam desde uma perspectiva poltico-cultural amplamente disseminada.

    Concepes que, no entanto, assumem uma perspectiva refratria quando aplicadas a

    contextos como o Brasil ou como qualquer outro pas atravessado pela colonizao

    europeia, uma vez que foram disseminadas desde a adoo de um universalismo que

    no encontrou condies de adequao e que, portanto, constituiu-se a partir de um

    modelo de humanidade qual a maior parte dos agentes sociais no correspondia e, que

    por estarem imiscudos num cenrio marcado pela mestiagem, para a qual

    concorreriam apenas aqueles que abdicassem e renegassem os componentes no-

    brancos da sua constituio.

    A eleio de zonas dignificantes do corpo resulta, automaticamente, na produo de

    uma espcie de hierarquizao das suas partes. Os excrementos, dessa maneira, deixam

    de ser concebidos enquanto uma extenso, enquanto uma parte integrante do corpo,

    tornando-se no mais do que a sua resultante fisiolgica. Tornam-se sobras daquilo que

    produzido pelo corpo, e que ele no aproveita. Sobras que, inclusive, podem fazer mal

    quando no devidamente afastadas do espao de convvio individual e social. Tal como

    o lixo, matria que j no pode ser aproveitada socialmente, os excrementos e secrees

    humanas assumem posio tambm simblica na cultura, daquilo que deve ser

    distanciado das reas de convvio social.

    Movimento de distanciamento do lixo que, inevitavelmente, o aproxima de algum,

    daqueles que esto margem dos centros de poder, comumente mais distantes da

    poluio. Lixeiros, residentes em zonas perifricas, pobres, parcela da populao qual

    a modernizao ainda no chegou; aqueles, que na geografia citadina, so os que

  • dificilmente contam com sistemas de saneamento bsico e de recursos que, de maneira

    geral, os possam afastar dos dejetos socialmente produzidos.

    Movimento que transcende a materialidade do lixo bem como as suas dimenses tcnica

    e objetiva, e o envolve numa seara de implicaes polticas, econmicas e sociais,

    tornando inevitvel, nesse sentido, a considerao, numa cidade como Salvador, dos

    aspectos relacionados s pertenas tnicas e de classe social na sua abordagem.

    IV.

    As medidas de requalificao urbana, que inscrevero a Feira no Circuito Turstico-

    cultural da Cidade Baixa, podem tambm ser apreciadas como referidas num projeto de

    racionalizao urbana, movido por interesses exgenos, com vistas a potencializar a

    instrumentalizao econmica da cultura como recurso de desenvolvimento social

    (YDICE, 2004) manejado desde as lgicas tecnocrticas e etnocntricas, que

    permitem uma limitada expresso dos modos de vida dos grupos sociais que

    historicamente ofereceram sustentao existncia da Feira.

    Pem a Feira de So Joaquim numa condio em que favorece o exame de aspectos que

    envolvem os hbridos processos de modernizao das sociedades perifricas, nas quais

    os aspectos de constituio da interculturalidade (CANCLINI, 2009) dialogam

    intimamente com as lgicas que assinalam a desigualdade social e possibilitam o

    exerccio e a manuteno das estruturas de poder que garantem a vigncia de fluxos

    hegemnicos de interveno direcionados a uma dada realidade.

    Atestam a diferenciao de tipos humanos a partir da maneira como se relacionam

    com o espao da Feira ou dos usos que dele fazem, avivando o debate sobre a relevncia

    das diferenciaes vinculadas a fatores tais como a pertena tnica, a classe social, o

    lugar que ocupam na sociedade e a opo por sanar o desconforto que gera aos

    turistas bem como aos visitantes em geral o modo de vida dessas pessoas que convivem

    em meio aos resduos gerados pela atividade que desempenham.

    Medidas promotoras da adequao do espao a fim de potencializar a sua frequentao

    pelo pblico proveniente do circuito turstico; forma atravs da qual se realizar o

  • asseio, produzindo a pulcritud6 (KUSCH, 1962) do espao, medida que visa extirpar

    os odores, texturas, umidades tpicas das feiras populares que se contrapem aos

    padres asspticos hegemnicos na urbe.

    Assinalam, portanto, o desconforto de que fala Kusch; o desconforto que nos invade em

    decorrncia do confronto com a pobreza, com a sujeira, com a incivilizao, com o

    hedor7, esse signo que no diz respeito to somente aos cheiros, mas tambm aos

    lugares e s pessoas a que nos voltamos e que nos despertam um sentimento especial,

    um desconforto ou averso que em vo tentamos dissimular.

    No contexto da feira o hedor se expressa atravs dos ordenamentos espaciais e dos

    dejetos provenientes da atividade ali desenvolvida. Experincia que nos impacta e nos

    invade os sentidos; sentimento que, numa perspectiva mais ampla, fala-nos de um

    hedor de america, um sentimento que nos brota a partir da experincia que

    adquirimos na comodidade da urbe em relao quilo que ainda no logrou equiparar-se

    a ns e aos nossos modos. O hedor de america , assim, a prpria feira tal como ela

    se nos apresentada; so os feirantes e a maior parte das pessoas que fazem dela um

    espao de viabilizao da vida no plenamente inscrito na lgica de funcionamento

    hegemonicamente estabelecida. O estar na feira diante de toda aquela mistura e dos

    dejetos que dela derivam, , em ltima instncia, uma forma de adentrarmos num

    mundo que j no o nosso (ns: indivduos, racionais, urbanos), porque j estamos

    devidamente treinados para o exerccio da pulcritud.

    REFERNCIAS

    AZEVEDO, Thales de. As elites de cor numa cidade brasileira: um estudo de

    ascenso social & grupos de prestgio. Salvador: EDUFBA: EGBA, 1996.

    BACELAR, Jeferson. A hierarquia das raas: negros e brancos em Salvador. Rio de

    Janeiro: Pallas, 2001.

    6 Adotamos a traduo do conceito aproximando-o da ideia de asseio, noo que diz respeito

    no simplesmente limpeza, mas tambm harmonia e adequao dos ordenamentos

    socioespaciais, sob o princpio de padres previamente estabelecidos hegemonicamente.

    7 Em traduo expresso utilizada por Kusch no espanhol, recorremos expresso que

    popularmente conhecida no Brasil que expressa, dentre outras coisas, a noo de mau cheiro, a

    saber, murrinha ou, sua similar inhaca.

  • BAHIA, Governo do Estado. Secretaria de Cultura. Escritrio de Referncia do Centro

    Antigo. UNESCO. Centro Antigo de Salvador: Plano de Reabilitao

    Participativo./ Escritrio de Referncia do Centro Antigo, UNESCO. Secretaria de

    Cultura, Fundao Pedro Calmon: Salvador, 2010.

    CANCLINI, Nstor Garca. Diversidade e Direitos na Interculturalidade Global.

    Revista Observatrio Ita Cultural / OIC - n. 8 (abr./jul. 2009). So Paulo, SP: Ita

    Cultural, 2009.

    FOUCAULT, Michel. Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1979.

    _________________. Histria da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro:

    Edies Graal, 1985.

    GARCIA, Antonia dos Santos. Desigualdades raciais e segregao urbana em

    antigas capitais: Salvador, Cidade dOxum e Rio de Janeiro. Tese (doutorado)

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e

    Regional, 2006. Disponvel em:

    http://www.ippur.ufrj.br/download/pub/AntoniaDosSantosGarcia.pdf

    KUSCH, Rodolfo. Amrica Profunda. In: Obras Completas Tomo I. Editora

    Fundacin Ross: Rosrio, 2007.

    PAIM, Mrcia Regina da Silva. Do Sete a So Joaquim: o cotidiano de "mulheres de

    saia" e homens em feiras soteropolitanas (1964-1973). Universidade Federal da

    Bahia. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, 2005.

    RODRIGUES, Jos Carlos. O Corpo na Histria. Editora Fiocruz: Rio de Janeiro,

    1999.

    YDICE, George. A convenincia da cultura: usos da cultura na era global. Belo

    Horizonte: Editora UFMG, 2004.