FERNANDO SFAIR KINKER - PUC-SP...Guerra Mundial (Amarante, 1994, 1995). O mundo considerado...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Fernando Sfair Kinker
Fragmentos de uma sociabilidade emergente: a trajetória do
Núcleo do Trabalho do Programa de Saúde Mental de Santos
(1989-1996)
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2011
Fernando Sfair Kinker
Fragmentos de uma sociabilidade emergente: a trajetória do
Núcleo do Trabalho do Programa de Saúde Mental de Santos
(1989-1996)
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Tese de Doutorado apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais,
sob orientação da Prof. Dr. Edgard de Assis
Carvalho.
SÃO PAULO
2011
BANCA EXAMINADORA
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À minha mãe Elza, meu pai Nelson (in memoriam), meus irmãos e irmãs, meus
amigos e meus queridos Lígia, Gabriel e Fernanda.
Aos profissionais e usuários do Núcleo do Trabalho.
AGRADECIMENTOS
Agradeço especialmente a meu orientador Edgard de Assis Carvalho, e à equipe e aos
usuários do Núcleo do Trabalho.
Agradeço também às pessoas que muito ajudaram durante a elaboração desta
pesquisa: Silvana, Gabi, Zuca, Carla, Fernanda, Caty, e o pessoal lá de casa.
Agradeço à CAPES por me proporcionar a possibilidade de estudar na PUC-SP.
RESUMO
O objeto deste trabalho é a experiência do Núcleo do Trabalho do Programa de Saúde
Mental de Santos, em sua trajetória de 1989 a 1996. Seu objetivo é tecer uma reflexão sobre
a emergência de novas formas de sociabilidade, a partir da crítica e da desconstrução de
elementos da sociabilidade moderna centrada no trabalho e na mercadoria, e da crítica ao
paradigma psiquiátrico.
O estudo é composto por fragmentos de textos, interpostos, que tratam dos seguintes temas:
descrição das características dos projetos de trabalho e superação das tradicionais práticas
laborterápicas; elementos da gênese da forma moderna do trabalho; descrição de
experiências vividas com os usuários-trabalhadores dos projetos de trabalho; reflexões sobre
a moderna forma de sociabilidade centrada no trabalho e na mercadoria; descrição de cenas
do trabalho da equipe do Núcleo do Trabalho; reflexões sobre a emergência de novas formas
de sociabilidade.
Através de referenciais teóricos que abordam a perspectiva da desinstitucionalização e da
complexidade, valorizando a importância dos conceitos de experiência e de cotidiano, o
estudo defende a tese de que a desconstrução do paradigma psiquiátrico convencional
remete à desconstrução do tipo de sociabilidade centrada no trabalho e na mercadoria,
exigindo a construção de novas formas emergentes de sociabilidade que produzam vida e
que sejam focadas na comunicação direta entre as pessoas, bem como em novas formas de
relação com os objetos e com a natureza.
Palavras-chave: saúde mental; desinstitucionalização; complexidade; projetos de
trabalho; sociabilidade do trabalho.
ABSTRACT
The object of this paper is to present the experience developed on Nucleus of Work of
the Mental Health Program of Santos from 1989 to 1996. The goal is to make a reflection
on the emergence of new forms of sociability, starting from the criticism and deconstruction
of the modern sociability, centered on labor and goods, beside the criticism of the
psychiatric paradigm.
This study is composed by interposed fragments of text, that comprehend the following
topics: description of the labor project’s characteristics and the overcome of the traditional
labor-therapeutic practices; elements of the moderns work geneses; description of the
experiences lived with the users-workers of the labor project; reflection on the modern
forms of sociability, focused on labor and goods; description of scenes from the work of
Nucleus of Work team.
Through references that approach the theoretical perspective of deinstitutionalization and
complexity, valorizing the significance of experience and daily life concepts, this study
defends the thesis that the deconstruction of the conventional psychiatric paradigm leads to
the deconstruction of the kind of sociability centered on labor and commodity, requiring the
construction of new emerging forms of sociability that produce life and are focused on the
direct communication between people, besides new ways of interaction with objects and
nature.
Key words: mental health; deinstitutionalization; complexity; labor project; sociability
of labor.
RÉSUMÉ
L’objet de ce travail est l’expérience du Centre du Travail du Programme de Santé Mentale
de Santos, au long de sa trajectoire de 1989 à 1996. Son objectif est de tisser une réflexion
sur l’émergence de nouvelles formes de sociabilité, à partir de la critique et de la
déconstruction d’éléments de la sociabilité moderne – centrée sur le travail et la
marchandise – et de la critique du paradigme psychiatrique.
L’étude est composée de fragments de textes qui abordent les sujets suivants: description
des caractéristiques des projets de travail et surpassement des pratiques ergothérapeutiques
traditionnelles; éléments de la génèse de la forme moderne du travail; description
d’expériences vécues avec les utilisateurs-employés des projets de travail; réflexions sur la
forme moderne de sociabilité centrée sur le travail et la marchandise; description de scènes
du travail de l’équipe du Centre du Travail; réflexions sur l’émergence de nouvelles formes
de sociabilité.
Par l’intermédiaire de références théoriques qui abordent la perspective de la
désinstitutionnalisation et de la complexité, valorisant l’importance des concepts
d’expérience et de quotidien, l’étude défend la thèse que la déconstruction du paradigme
psychiatrique conventionnel renvoie à la déconstruction du type de sociabilité centrée sur le
travail et la marchandise, exigeant la construction de nouvelles formes émergentes de
sociabilité qui produisent de la vie et qui soient focalisées sur la communication directe
entre les personnes, aussi bien que sur de nouvelles formes de relation avec les objets et
avec la nature.
Mots-clés: santé mentale, désinstitutionnalisation, complexité, projets de travail,
sociabilité du travail.
SUMÁRIO
Apresentação....................................................................................................... 1
Método............................................................................................................... 16
Aurora: Características dos projetos de trabalho................................................... 43
Meio-dia: Experiências com os usuários dos projetos de trabalho........................ 92
Crepúsculo: Imagens do trabalho em equipe......................................................... 187
Conclusão............................................................................................................. 233
Referências bibliográficas .................................................................................... 248
Lista de abreviaturas e siglas
Afrent Associação de Apoio às Frentes de Trabalho Alternativas
CAPS Centro de Atenção Psicossocial
Ceasa Centro Estadual de Abastecimento
Cohab-ST Companhia de Habitação de Santos
CSTC Companhia Santista de Transportes Coletivos
CVC Centro de Valorização da Criança
ECT Eletroconvulsoterapia
MTSM Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental
NAPS Núcleo de Apoio Psicossocial
NAT Núcleo de Apoio ao Toxicodependente
OMS Organização Mundial da Saúde
Prodesan Progresso e Desenvolvimento de Santos
PVC Programa de Volta Para Casa
Seac Secretaria de Ação Comunitária
Sehig Secretaria de Higiene e Saúde
Sesc Serviço Social do Comércio
SRT Serviço Residencial Terapêutico
URP Unidade de Reabilitação Psicossocial
1
APRESENTAÇÃO
―Não sou daqui nem sou de lá
Eu sou de qualquer lugar
Meu passaporte é espacial
Sou cidadão da terra
E a minha vida é toda verdade
Eu não tenho mais idade
O meu passado é o meu futuro
E o meu tempo é o infinito
A minha língua é o pensamento,
Só falo com o olhar
Minha fronteira é o coração...‖
OS MUTANTES.Tudo foi feito pelo sol. Álbum de 1974
2
APRESENTAÇÃO
Uma introdução serve para informar o leitor sobre o trajeto que seguirá, caso se
disponha a ler as páginas subsequentes. Por isso, ela deve ser clara e transparente,
sucinta e precisa, e ainda despertar o interesse do leitor, sem o que qualquer texto pode
perder-se no mar dos esquecidos.
Pode-se aproveitar a introdução para nela expor os motivos que levaram à
pesquisa, aquela lista de elementos que a tornam legítima e necessária.
Por fim, cabe à introdução traduzir cada passo que o pesquisador deu no
decorrer de seu processo, para tornar mais inteligíveis as interpretações da realidade.
É isso que farei nas linhas que se seguem, sem deixar de dar as boas-vindas ao
leitor e de convidá-lo para um diálogo franco.
O OBJETO
Este trabalho tem por objeto a experiência do Núcleo do Trabalho do Programa
de Saúde Mental de Santos, em sua trajetória de 1989 a 1996.
Seu objetivo é tecer uma reflexão sobre a emergência de novas formas de
sociabilidade, a partir da crítica e da desconstrução de elementos da sociabilidade
moderna centrada no trabalho e na mercadoria, e da crítica ao paradigma psiquiátrico.
O Núcleo do Trabalho era uma equipe composta por profissionais da área de
saúde mental que desenvolveram projetos de trabalho junto aos usuários do Programa
de Saúde Mental, todos com longa trajetória de institucionalização em hospitais
psiquiátricos, sobretudo na Casa de Saúde Anchieta da cidade de Santos, estado de São
Paulo.
Como uma das principais e pioneiras experiências de reforma psiquiátrica do
Brasil (Capistrano, Kinoshita, 1992; Nicácio, 1994; Nicácio, Kinker, 1996; Kinoshita,
3
1996; Reis, 1998; Robortella, 2000; Oliva, 2000; Nogueira, 1997; Kinker, 1997;
Ogawa, 1997; Nascimento, 1997; Capistrano, 1995), a experiência iniciada com a
intervenção municipal na Casa de Saúde Anchieta produziu um profundo desvio no
processo de vida de usuários e profissionais da área de saúde mental.
O processo de transformação institucional do Anchieta inaugurou uma nova
dinâmica de relações entre os diversos atores, alicerçada em novas formas de
reciprocidade e de exercício de poder.
A desconstrução de valores, saberes e olhares acerca da experiência do
sofrimento gerou novas práticas e formas de estar no mundo. A produção de novas
formas de sociabilidade e de novas subjetividades se deu no exercício concreto de
transformação das práticas cotidianas, tendo como principal lugar o território de
existência dos usuários e as contradições sociais implicadas na relação da sociedade
com o sofrimento psíquico. Isso, certamente, implicou a produção de novos
conhecimentos alicerçados na prática.
A estratégia de tomar o território de existência dos usuários, seus valores e
relações como a cena do processo de cuidar exigiu a produção de dispositivos e
mecanismos de mediação das relações daqueles com as demais pessoas. O profissional
de saúde mental, dessa forma, teria de interagir com essa nova realidade e criar formas
inéditas e criativas de exercício profissional.
Foi nesse universo de desconstrução e produção de novas práticas que se
desenvolveram os projetos do Núcleo do Trabalho.
A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA1 E A EXPERIÊNCIA DE SANTOS
A reforma psiquiátrica brasileira inspirou-se em movimentos de transformação
da assistência psiquiátrica nos países europeus e nos EUA, posteriores à Segunda
1 O termo reforma psiquiátrica designa o processo de transformação prática e teórica no campo da
assistência psiquiátrica, a partir da crítica ao modelo clássico do paradigma psiquiátrico focado no
asilamento hospitalar (Amarante, 1994, 1995; Birman, 1992; Brasil, 2004b; MTSM, 1987; Delgado,
2001).
4
Guerra Mundial (Amarante, 1994, 1995). O mundo considerado desenvolvido tentou
responder à destruição da guerra com processos de modificação das duras e opressoras
estruturas hospitalares, produzindo críticas sobre a ciência e sobre as formas de a
sociedade viabilizar os cuidados das pessoas que sofrem.
A reforma brasileira deu-se a partir do processo de redemocratização do país, na
década de 1980. Iniciou-se com um movimento de denúncia da situação dos hospitais
psiquiátricos, protagonizado por profissionais de saúde mental e, aos poucos, foi
assumindo em sincronia três dimensões diferentes: a política, a prática, a jurídica.
A dimensão política diz respeito à militância política envolvendo profissionais,
usuários, familiares e simpatizantes. Ao longo do caminho, essa militância produziu
organizações populares de defesa de direitos e de apoio às transformações das práticas.
O lema ―Por uma sociedade sem manicômios‖ (Amarante, 1995; MTSM, 1987), criado
no Encontro de Trabalhadores de Saúde Mental, em 1987, na cidade de Bauru, tornou-
se a mensagem levada aos quatro cantos do país, influenciando a criação de novas
práticas em municípios e estados, bem como a produção de leis de reforma psiquiátrica.
Além de impulsionar novas práticas, o movimento antimanicomial trouxe à cena
os próprios usuários, que puderam denunciar as formas opressoras de tratamento e
assumir a posição de protagonistas das transformações necessárias.
A dimensão prática engloba as múltiplas experiências de transformação da
assistência psiquiátrica pública que se deram no final dos anos 1980 e durante as
décadas subsequentes. Aqui se insere a experiência santista. As primeiras experiências
transformadoras, que propuseram a superação dos hospitais psiquiátricos, foram
alimentando novas experiências em todo o território nacional, até que se chegasse ao
ano de 2010 com uma rede de serviços em ritmo de expansão, composta por com 1.541
Centros de Atenção Psicossocial2 (Brasil, 2004 a, 2010), 716 residências terapêuticas
3
2 Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são serviços comunitários e territoriais formados por
equipes multidisciplinares (médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, enfermeiros,
educadores físicos, pedagogos, artistas e oficineiros, auxiliares ou técnicos de enfermagem, combinados
conforme a opção dos governos locais), e que devem responder a uma determinada área de abrangência.
Esses centros devem fornecer atendimento prioritário a pessoas com transtornos mentais severos e
persistentes, mas também a casos moderados. Dessa forma, desenvolvem acompanhamentos mais ou
5
menos intensivos, dependendo da necessidade do usuário do serviço. Os usuários mais graves, muitas
vezes, podem frequentá-lo diariamente, participando de situações grupais, individuais, projetos
comunitários, além de receber medicação e refeição, a partir de um projeto terapêutico individual
artesanalmente tecido. A função dos CAPS foi definida melhor pela portaria ministerial que os
regulamentou em 2002 (Brasil, 2004a). É claro que as concepções e as formas de trabalho variam muito
em função do contexto. Na perspectiva desenvolvida em Santos, que foi um dos primeiros locais a
implantar unidades desse tipo, já a partir de 1989 (todas funcionando 24 horas por dia, sete dias na
semana), o CAPS deve ser um espaço capaz de favorecer o acesso dos pacientes graves aos espaços
sociais, promovendo mediações e agenciamentos que modifiquem o imaginário social sobre a loucura, e
que estimulem a produção de autonomia e a participação social. Assim sendo, nessa concepção, o CAPS
não deve ser um lugar de entretenimento e de ocupação do usuário (Saraceno, 1999), mas deve saber
adentrar com este o espaço social. Deve conhecer o território e seus recursos, deve poder ser
principalmente uma referência local que favoreça a convivência dos usuários nos seus territórios de
existência, zelando pela melhoria da qualidade de vida e das relações sociais, construindo com cada um o
seu projeto de vida. Nesse sentido, deve também ser o lugar de atendimento nas situações de crise,
promovendo estratégias que permitam ao usuário viver a crise sem rupturas no processo de vida e sem
internações em hospitais psiquiátricos. Ainda no caso de Santos, o funcionamento noturno do CAPS não
deve ser como o de um pronto-socorro psiquiátrico. Os plantonistas são do campo da enfermagem e são
apoiados à distância pelos médicos da própria unidade ou das emergências psiquiátricas, o que é
resolutivo para qualquer situação de crise que não envolva componentes ou comorbidades orgânicas. É
óbvio que esse papel do CAPS, seja qual for a concepção ou a perspectiva adotada, não é simples. É
necessário um forte e permanente movimento de discussão e de formação dos profissionais para que o
serviço não seja apenas um encaminhador de casos para o hospital psiquiátrico. Pela regulamentação
existente, é possível haver CAPS com áreas de abrangência distintas, com complexidades diferentes, e
ainda CAPS específicos para pessoas com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas e para
crianças e adolescentes. Segundo a portaria ministerial, é possível haver estes tipos de CAPS:
CAPS I (para populações entre 20 mil e 70 mil habitantes): possui uma equipe composta
por pelo menos um médico com formação em saúde mental, um enfermeiro, três profissionais de nível
superior nãomédicos, quatro profissionais de nível médio (incluindo técnicos de enfermagem) e deve
tentar trabalhar articulado com as equipes de atenção básica e dos programas de saúde da família (Brasil,
2004a).
CAPS II (para populações entre 70 mil e 200 mil habitantes): uma equipe composta por
pelo menos um médico psiquiatra, um enfermeiro, quatro profissionais de nível superior não médicos,
seis profissionais de nível médio, e com capacidade para atender a mais usuários. Assim como o CAPS I,
funciona durante o dia, muitas vezes das 8 às 18 h (dependendo da gestão local), podendo também
comportar um terceiro turno até as 21 h (Brasil, 2004a).
CAPS III (para populações acima de 200 mil habitantes): é o CAPS mais completo e
aquele que consegue responder melhor aos desafios de um serviço territorial e comunitário. O fato de
6
(Brasil, 2004 b, 2010), 393 experiências de inclusão no trabalho (Brasil, 2005, 2010),
vários outros dispositivos como a reclassificação e o controle dos hospitais psiquiátricos
(Brasil, 2004c), a política para a atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas
(Brasil, 2004d), o Programa De Volta para Casa4 (Brasil, 2004e, 2004f), e a diminuição
funcionar 24 horas por dia, 7 dias na semana, possibilita que os pacientes acompanhados possam ser
acolhidos em momentos de crise (ou quando enfrentam alguma dificuldade que exija um acolhimento e o
afastamento temporário de casa) e pernoitar na unidade, caso seja conveniente. Deve ter uma equipe
mínima formada por dois médicos psiquiatras, um enfermeiro, cinco profissionais de nível superior não
médicos, oito profissionais de nível médio (Brasil, 2004a).
CAPS i (infanto-juvenil): destina-se ao atendimento a crianças e adolescentes. A
prioridade é dada aos usuários com transtornos mentais graves, e devem ser enfocadas ações intersetoriais
(integradas à justiça, à assistência social, à educação), além do apoio aos serviços de atenção básica. A
equipe mínima deve ser composta por um médico psiquiatra ou neurologista ou pediatra com formação
em saúde mental, um enfermeiro, quatro profissionais de nível superior não médicos e cinco profissionais
de nível médio (Brasil, 2004a).
CAPS ad (álcool e drogas): esta unidade está voltada ao atendimento de pessoas com
transtornos decorrentes do uso de álcool ou outras drogas. O funcionamento é similar ao do CAPS II, mas
voltado a essa demanda específica. A equipe mínima deve ser composta por um médico psiquiatra, um
enfermeiro, um médico clínico, quatro profissionais de nível superior não médicos e seis profissionais de
nível médio (Brasil, 2004a).
Recentemente, em 2010, foram criados os CAPS ad com funcionamento 24 h, e novos projetos para
trabalharem articulados com eles, como os consultórios de rua.
3 Os Serviços Residenciais Terapêuticos são casas onde podem morar até 8 egressos de hospitais
psiquiátricos (Brasil, 2004b). Esses ex-internos devem ter ficado internados num período superior a 2
anos para ter direito ao programa, já que se trata de uma estratégia de desinstitucionalização de pacientes
de longa permanência, estimados em 12.000 pessoas no Brasil. Convém observar que atualmente essa
regra está flexibilizada, podendo usufruir da casa usuários de serviços de saúde mental que não estavam
internados, mas que, por diversos motivos – por estarem vivendo nas ruas, ou que por alguma questão do
projeto terapêutico –, precisem de um novo lar, mesmo que provisório. A ideia dos SRTs é que a casa não
seja uma instituição ou um serviço de saúde mental, mas que os moradores possam se apropriar dela para
que seja de fato o seu próprio lar. Essa proposta criou uma nova figura profissional no campo da saúde
mental, que é o cuidador; alguém que não precisa ter nível universitário, mas deve ter o perfil que ajude
os moradores a adquirirem mais autonomia para gerir a própria casa e para participar do convívio social.
Cada SRT precisa estar vinculado a um CAPS, que deverá acompanhar os moradores no dia-a-dia,
responsabilizando-se pela casa, e respaldando e dando apoio aos cuidadores. O financiamento da SRT se
dá com o próprio recurso que os hospitais recebiam para manter esses ex-internos. Na verdade, quando
um interno sai de um hospital para um SRT, leva consigo os recursos que o hospital recebia, que serão
geridos pela Secretaria Municipal de Saúde para a manutenção da casa.
4 O Programa ―De Volta para Casa‖ (PVC) garante um benefício em dinheiro destinado ao próprio
usuário para garantir sua manutenção e ampliar sua rede social, ou para incentivar as famílias a receber de
7
de 16.000 leitos psiquiátricos entre 2002 e 2009, passando de 51.393 para 35.426
(Brasil, 2010).
A dimensão jurídica diz respeito à produção de novas leis municipais, estaduais
e federais de consolidação da reforma psiquiátrica. Destaca-se a lei 10.216, de 2001,
que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em saúde mental (Brasil, 2004g). A promulgação de novas
leis foi alimentada pelas novas práticas e pela mobilização social (basta dizer que a lei
federal demorou 12 anos para ser aprovada, pois foi tema de enfrentamentos entre os
representantes dos hospitais privados e os defensores da reforma). As transformações
ocorridas na esfera legislativa foram acompanhadas pelo estabelecimento de uma
política nacional de saúde mental e de dispositivos regulamentadores, como as portarias
ministeriais para definição de novos serviços e de linhas de financiamento e custeio.
A experiência brasileira incorporou elementos importantes das reformas do pós-
guerra: da experiência inglesa e americana das comunidades terapêuticas e do
movimento de psicoterapia institucional francesa (Amarante, 1995; Jones, 1972),
incorporou a ideia da democratização das relações com os usuários, do fortalecimento
da voz e do protagonismo destes, bem como as necessárias modificações
intrainstitucionais; da psiquiatria preventiva americana (Amarante, 1995; Caplan, 1980),
incorporou a ideia de intervenções comunitárias, de inserção no território, de prevenção
na área da saúde mental; da psiquiatria de setor francesa, incorporou a ideia de
organização sanitária territorial, hierarquizada, setorizada; e, finalmente, da psiquiatria
democrática italiana (Amarante, 1995), incorporou a crítica à institucionalização, ao
papel de controle social da psiquiatria, e a necessidade de transformação do paradigma
psiquiátrico, incluindo a crítica à existência do hospital psiquiátrico. Dela também veio
a ideia da desinstitucionalização como desconstrução de saberes, práticas, leis,
instituições, e a recomplexificação do fenômeno do sofrimento psíquico através da
construção contínua de novas práticas e saberes, e de novas relações sociais (Rotelli et
al., 1990; Nicácio, 2003).
A experiência santista foi um marco importante para a reforma brasileira. Pela
primeira vez, uma cidade havia partido de dentro do hospital psiquiátrico,
volta seus parentes abandonados há anos em hospitais psiquiátricos. Em dezembro de 2010, 3.540 pessoas
recebiam esse benefício (Brasil, 2010).
8
transformando-o internamente enquanto produzia uma rede de serviços substitutivos e
comunitários aptos a operar com outra lógica. A construção dos 5 NAPS (Núcleos de
Atenção Psicossocial), do NAT (Núcleo de Apoio ao Toxicodependente), da Unidade
de Reabilitação Psicossocial (nome dado à antiga equipe do Núcleo do Trabalho,
quando esta se tornou uma unidade administrativa da Secretaria de Higiene e Saúde), do
Centro de convivência TAM TAM, além dos Centros de Valorização da Criança
(unidades de saúde mental voltadas à infância e adolescência) (Bertuol et al., 1996),
produziu um novo diálogo com a cidade, levando à completa inutilidade do hospital
psiquiátrico, que pôde deixar de existir.
Os NAPS funcionavam 24 h/dia, tendo como tarefa construir projetos de vida
junto aos usuários em seus territórios de existência, o que exigia um constante processo
de produção de alianças, de mediações e de enfrentamentos com os valores sociais de
normalidade (Nicacio, 1994; Reis, 1998; Robortella 2000).
O Núcleo do Trabalho, desde os seus primórdios no interior do Anchieta, tinha
como tarefa produzir mediações que possibilitassem novas experiências aos usuários,
numa das dimensões importantes da vida: a do trabalho (Kinker, 1997; Ogawa, 1997;
Nogueira, 1997).
O NAT era uma unidade que se debruçava sobre o complexo problema do uso
abusivo de drogas, e o Centro de Convivência TAM TAM (Nicácio, 1994) buscava
produzir novas mensagens destinadas ao imaginário social, emitidas durante certo
tempo pelas ondas radiofônicas através da rádio TAM TAM (programa de rádio
realizado por usuários e profissionais da saúde mental).
A TRAJETÓRIA DO NÚCLEO DO TRABALHO E SEU EMPENHO NA
INVENÇÃO DE NOVAS FORMAS DE SOCIABILIDADE
O que se investigará neste trabalho é a possibilidade de produção de novas
formas de sociabilidade que não se submetam à lógica destrutiva do capital, do trabalho
e da mercadoria.
O terreno de investigação será a experiência dos projetos de trabalho, sua forma
própria de lidar com a existência-sofrimento dos usuários (Rotelli, 1990), suas
9
estratégias de mediação e de construção de alianças, sua crítica ao mercado realizada no
interior deste, sua intenção de contribuir para a desconstrução do mercado, à
semelhança do processo de desconstrução do paradigma psiquiátrico a partir do interior
do Anchieta.
O termo desconstrução pode soar muito forte ou até prepotente, mas ele é
fundamental. Considero que a desconstrução não é exatamente a destruição imediata e
total, mas a elaboração de mecanismos que vão desvendando a forma de funcionamento
e produzindo novas realidades a partir desse conhecimento. Ela implica um processo de
metamorfose em que os fluxos de poder rodopiam vertiginosamente, produzindo novos
discursos, novas relações e cumplicidades.
Dessa forma, uma experiência tão peculiar como a produção de projetos de
trabalho críticos à lógica do mercado pode servir como germe de transformações, como
vírus que, em sua minúscula condição, produz efeitos potentes, caso consiga ampliar
suas alianças e se metamorfosear, de forma a não ser capturado pelos mecanismos
imunológicos da ordem.
As reflexões que trarei aqui foram inspiradas na experiência desses projetos de
trabalho, e nas relações singulares entre os diversos atores envolvidos.
A ORDEM DOS FATORES (ou capítulos)
A pesquisa está dividida nos seguintes capítulos: Apresentação, Método, Aurora,
Meio-Dia, Alvorecer e Conclusão.
Método
No capítulo intitulado Método, faço uma topologia do terreno teórico por onde
circulará a pesquisa. Apresento o campo teórico com o qual dialogarei, como forma de
inserir o leitor no clima, no espírito e na língua utilizada. Não é um capítulo longo, pois
não é o foco do trabalho trazer apenas um campo teórico; este campo aparece aqui como
um coadjuvante, já que a experiência prática é a principal protagonista. Como um cartão
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de apresentação, o método introduzirá o leitor na pesquisa, no campo discursivo em que
a pesquisa está mergulhada.
Aurora
Aurora é o nome que dei ao capítulo que apresenta os projetos de trabalho, suas
características e seu formato básico. O relato dos projetos de trabalho está entremeado
por elementos referentes à gênese do trabalho moderno nas sociedades ocidentais, por
algumas de suas características na formação da sociabilidade centrada na mercadoria,
bem como por elementos da vinculação entre o eixo existencial da modernidade
centrado no trabalho e o nascimento da psiquiatria.
Meio-dia
Meio-dia é o maior capítulo da pesquisa, e trata das experiências vividas junto
aos usuários dos projetos de trabalho. Embora apresente situações inusitadas, sua
intenção não é demonstrar que tudo é estranho e diferente num projeto onde trabalham
pessoas com sofrimento psíquico grave. Muito pelo contrário, a intenção é provar que
muito do que se viveu com os usuários pode ser vivido, em sua forma singular, por
pessoas que navegam nas ondas turbulentas do mercado, sem ser denominadas doentes
mentais. Se algumas cenas descritas são mais impressionantes, não é por serem as mais
importantes, mas é por terem ficado mais fortemente marcadas na memória como que a
dizer que na vida tudo é possível, desde que modifiquemos os contextos, e a nós
mesmos. Acrescentei também nesse capítulo a continuidade da crítica à gênese do
trabalho, inserindo reflexões sobre as condições de criação de novas formas de
sociabilidade. Acredito que esse capítulo é o ápice do trabalho, pois demonstra sua
intensidade quente, como a luz do sol do meio-dia.
Alvorecer
O capítulo Alvorecer faz uma pequena homenagem aos profissionais do Núcleo
do Trabalho, trazendo algumas cenas vividas que contribuem para se pensar nos
11
desafios que o trabalho em equipe nos traz. Não são diferentes apenas os usuários, todos
somos elementos em constante mutação, embora tentemos ignorar esse fato
apresentando aos demais falsas identidades petrificadas. O trabalho em equipe é ainda
um dos principais desafios dos projetos de reforma psiquiátrica, pois, sem a
desinstitucionalização dos pobres referenciais disciplinares, que nos protegem numa
identidade falsamente imutável, não há como discutir sobre desconstrução de
paradigmas psiquiátricos nem sobre desinstitucionalização dos usuários e de sua
condição de seres capturados totalmente pelo conceito de doença. Nesse capítulo
aproveito para finalizar algumas propostas acerca da produção de novas formas de
sociabilidade; são apenas contribuições para aqueles que se sentirem tocados pela
necessidade de mudar.
Conclusão
A conclusão é o próprio anoitecer, o ocaso, o princípio do fim da pesquisa. É seu
fechamento, onde apresento um resumo das principais questões trazidas por ela.
A ORDEM DOS FATORES (ou dos capítulos) NÃO ALTERA O PRODUTO
Essa máxima matemática serve para esta pesquisa, com a observação de que
aqui a totalidade sempre será mais ou menos que a soma das partes lidas isoladamente.
É possível começar a leitura da pesquisa por qualquer de suas partes, pois ela é
totalmente tecida por fragmentos.
POR QUE TRABALHAR COM FRAGMENTOS?
O leitor perceberá que o corpo desta pesquisa é composto por fragmentos de
textos, que são acondicionados uns sobre os outros, de forma a produzir um percurso
não linear.
Essa opção se deu por alguns motivos que tentarei explicar.
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Em primeiro lugar, devo confessar que me agrada escrever pequenos trechos, ao
invés de um texto único e sequencial, cuja linearidade produz certa estafa no leitor. Para
uma pessoa prolixa, é um desafio emitir uma mensagem precisa num pequeno trecho,
mas é um desafio bom, pois me parece que o leitor pode se sentir provocado por
pequenos estímulos, sem receber a hiperdose de um texto linear que por vezes pode se
tornar tautológico, repetindo-se sem parar. Enfim, para mim, é agradável escrever dessa
forma, e penso que consigo com mais facilidade passar minha mensagem.
Em segundo lugar, esforcei-me por criar um formato que fosse ele mesmo um
exemplo do que insistirei sem cessar: que é necessário uma dialogia múltipla, uma
conversa infinita, para que as investigações não fiquem pobres, e para que se religuem
os diversos saberes, a ciência e as humanidades, a investigação empírica e os elementos
da literatura, a estética e a técnica. Penso que o formato escolhido privilegia uma
estética que pode, por si mesma, produzir sensações e pensamentos no leitor,
estimulando-o a produzir conhecimento.
Em terceiro lugar, alerto o leitor que os fragmentos estão divididos entre trechos
que relatam a experiência vivida nos projetos de trabalho do Programa de Saúde Mental
de Santos, e trechos que são teórico-conceituais, digamos assim. O motivo dessa
escolha é produzir diálogos entre a experiência e a teoria que pode problematizá-la.
Esforço-me para superar a dicotomia entre prática e teoria (pois a prática é toda teórica),
mas isso é algo que vai contra a forma linear e cartesiana em que fomos educados, e por
isso não é algo tão fácil de se fazer.
Há uma não linearidade temporal nos relatos dos acontecimentos, e ela é
proposital. Inspirei-me nos filmes que começam pela metade ou pelo fim e, aos poucos,
vão construindo um todo composto pelas partes. Acho que essa forma estimula a
criatividade e faz o leitor produzir reflexões diferentes no percurso de trabalho.
O texto pode ser lido a partir de qualquer parte, o leitor pode iniciar a leitura
pelo meio ou pelo fim. Cada parte traz sua mensagem específica, e o todo é mais ou
menos que a soma das partes (Morin, 2001, 2010), pois ele é outro produto que pode
não incorporar peculiaridades das partes. Cada trecho terá um gosto diferente, e o todo,
com que o leitor terá contato ao terminar a leitura, terá também um gosto diferente do
de cada uma das partes. Entretanto, penso que as partes, cada trecho, têm em sua
essência os germes do todo, e isso o leitor vai perceber quando acabar de ler o texto
13
integralmente. O texto integral é um rizoma5 (Deleuze, Guattari, 1997, 2004), onde cada
parte se comunica com todas as outras.
Considero que o formato escolhido facilita essa experiência. Citando Pascal,
Morin ajuda a explicar melhor essa relação entre o todo e as partes, cujo princípio tento
utilizar nesta pesquisa:
―‗O todo é algo mais do que a soma de suas partes‘. O que quer dizer
que o todo tem um certo número de qualidades e de propriedades que
não aparecem nas partes quando elas se encontram separadas. Essa ideia
traz nela a noção de emergência, emergência de qualidades e
propriedades próprias à organização de um todo. Assim, a vida é
constituída de elementos estritamente físico-químicos que não se
diferenciam em nada, em termos de substância e de materialidade, do
resto do mundo físico-químico; o que faz a diferença é a organização
desses elementos, a maneira pela qual as moléculas e macromoléculas
que a constituem são organizadas, e é essa organização que tem
qualidades emergentes (reprodução, movimento, auto-organização
capaz de tratar seus próprios elementos e de tratar o meio no qual se
encontra). H2O, fruto do encontro de dois átomos de hidrogênio e de um
átomo de oxigênio gasoso, já se traduz pelo aparecimento de um
líquido, a água, cujas propriedades são diferentes daquelas de seus
componentes‖ (Morin, 2001, p. 562-3).
5 Rizoma é um conceito de Deleuze e Guattari. As características do modo de realização representado
pelo rizoma são as seguintes: um ponto qualquer se conecta com outro ponto qualquer, e cada um de seus
traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza. O rizoma não tem começo nem fim, mas
sempre um meio onde cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades de n dimensões, que são exibidas
num plano de consistência formado por linhas de segmentaridade. Nos fluxos imanentes que operam em
seus estratos, essas linhas podem ser de territorialização e desterritorialização, sendo que estas últimas são
as que provocam metamorfoses, dependendo das velocidades, das intensidades, dos deslocamentos, das
direções que tomam. Embora seja segmentado e composto por linhas, o rizoma se contrapõe ao modelo
de realização representado pela árvore. O rizoma, ao contrário do tipo arborescente, que é formado por
troncos e raízes, é constituído por tubérculos e bulbos, que se movimentam e permitem a conexão
singular entre os pontos. A árvore é objeto de reprodução, funciona por reprodução, repetição, modelo,
decalque. Ao invés de decalques, o rizoma trabalha com mapas, numa cartografia que aponta dimensões
variadas e coexistentes, apontando os movimentos de desterritorialização e reterritorialização. O rizoma é,
enfim, contra os sistemas centrados de comunicação hierárquica e ligações preestabelecidas, sendo um
sistema acentrado não hierárquico, sem memória organizadora, mas definido por uma circulação de
estados.
14
Inspiremo-nos na água para entender o formato deste trabalho: um sistema é
simultaneamente mais e menos do que a soma de suas partes (Morin, 2010, p. 200).
Espero ter conseguido justificar o formato diferente desta pesquisa.
PARA QUE UMA PESQUISA COMO ESTA?
Penso que esta pesquisa pode contribuir com dois grupos de pessoas com
preocupações próximas, que talvez sejam as mesmas: aqueles que estão envolvidos nos
projetos de reforma psiquiátrica, especialmente em projetos de inserção no trabalho com
usuários graves de serviços de saúde mental; e aqueles que se interessam pela produção
de novas formas de sociabilidade e, como eu, estão inconformados com a pobreza
existencial e com o amordaçamento de nossas potencialidades e possibilidades.
Penso que a experiência aqui apresentada, uma das primeiras no campo da
reforma psiquiátrica brasileira, pode fornecer ao primeiro grupo reflexões,
possibilidades, estratégias, para o desenvolvimento de projetos de trabalho no campo da
saúde mental e da reabilitação psicossocial6. Imersos em suas experiências,
provavelmente esses atores se enxergarão nas páginas que se seguem, e poderão se
envolver e trazer para suas realidades a intensidade de transformações que elas geraram.
Para o segundo grupo, do qual também fazem parte muitos integrantes do
primeiro, esta é uma pequena contribuição, um início de bate-papo, a sequência de um
bate-papo que predomina principalmente no campo das humanidades, desde que os
primeiros filósofos se propuseram a registrá-lo e organizá-lo. O fato de as ciências
humanas terem sucumbido à lógica cartesiana não nos impossibilita de fazer um diálogo
franco, aberto, democrático, onde todos possam ter voz, a fim de tornar o debate mais
rico e mais complexo.
6 Utilizo o termo ―reabilitação psicossocial‖ baseando-me em Saraceno (1999, 2001), para quem a
reabilitação não é uma técnica, e sim uma atitude estratégica, expressa em programas e serviços,
produzindo ações de cuidado a pessoas vulneráveis, que sofreram processos de institucionalização devido
à relação da sociedade com aqueles que vivenciam um sofrimento psíquico grave. Em vez de seguir uma
trilha de normalização e adaptação, que vai da desabilidade à habilitação, a reabilitação se constitui num
processo de descoberta de novas potencialidades e possibilidades, através de um processo de mediação e
negociação que propõe modificações nos contextos que geram a exclusão e a invalidação. A reabilitação
seria então um ―[...] processo de reconstrução, um exercício pleno de cidadania, e, também, de plena
contratualidade nos três grandes cenários: hábitat, rede social e trabalho com valor social‖ (Saraceno,
2001: 16).
15
O grande desafio é fazer da experiência aqui relatada um diálogo, leve, de
múltiplas vozes, em que o leitor se veja também como protagonista.
Seja bem-vindo!!!
―Se quisesse escolher um símbolo votivo para saudar o novo milênio,
escolheria este: o salto ágil e imprevisto do poeta-filósofo que sobreleva
o peso do mundo, demonstrando que sua gravidade detém o segredo da
leveza, enquanto aquela que muitos julgam ser a vitalidade dos tempos,
estrepitante e agressiva, espezinhadora e estrondosa, pertence ao reino
da morte, como um cemitério de automóveis enferrujados‖ (Calvino,
2006: 24).
16
MÉTODO
―Como é que um atleta alcança o estado que ele designa como ‗estar em
forma‘? Por meio de um treinamento que exige que ele siga uma regra e
que se torne um monge; o mesmo acontece com o escritor. Trata-se de
uma condição necessária que assegura, pelo menos, um trabalho bem-
feito, uma corrida honrosa, um lugar medíocre entre os profissionais.
Para a genialidade, porém, ninguém encontrou ainda as condições
suficientes. A classificação das ciências e das disciplinas, dos artigos e
das teses, das notas de rodapé, do índice e da bibliografia, a citação
conscienciosa e humilde por ocasião do debate... são exigências
universitárias que disciplinam a pesquisa e o pensamento. Conforme-se
à força coercitiva da formatação... obedeça ao formato-pai que, invisível
e ausente, reina sobre o saber absoluto. Se seu desejo, porém, é
inventar, arrisque-se, livre-se do formato. Faça isso, mesmo que tenha
de morrer, transforme-se em filho. As grandes obras conjugam formato
e invenção, disciplina de ferro e liberdade: pai e filho‖ (Serres, 2008:
23).
17
MÉTODO
―Contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática.‖
BASAGLIA
O filho de Serres (2008) é afeito aos riscos e à bifurcação. Não despreza a
disciplina do formato-pai, mas sabe que, se quer falar algo novo, não deve se limitar a
ficar repetindo tudo como um papagaio de pirata. Antes, deve herdar do pirata a
curiosidade e a inquietude, o amor à transgressão, fazendo-o de forma ética.
Todos nós temos como fazer valer a criatividade, produzindo novos textos no
momento mesmo em que lemos os textos prontos. Se não fazemos uma grande obra, nos
sentimos grandes e ricos por nossa liberdade e nossa humildade em descobrir, amar e
gozar as belas descobertas dos outros.
Algumas pessoas, e me incluo entre elas, podem contribuir mais com sua
experiência do que com seu itinerário de estudos. Podem transformar sua experiência,
algo que para alguns é oposto à teoria, num exercício intenso de teorização, superando a
cisão entre teoria e prática. Porque, para eles, ―o máximo da teoria é a prática‖
(Basaglia).
METODOLOGIA, MÉTODO OU ESTRATÉGIA?
―Um Método como esse nada tem a ver com o que se denomina
metodologia. Uma metodologia define um programa de trabalho preciso
e definitivamente estabelecido. Meu método pretende ser uma ajuda
para o espírito para que ele enfrente as complexidades e elabore as
estratégias. Aí reside a origem de minha formulação: ‗Ajuda-te a ti
mesmo e a complexidade te ajudará‘. O método de Descartes aproxima-
se de uma metodologia, pois prescreve os processos a serem seguidos
18
para chegar a um conhecimento pertinente. Quanto a mim, indico as
exigências a serem satisfeitas para tratar as complexidades, exigências
que comportam três princípios que se confirmaram durante o percurso:
o princípio dialógico, o princípio recursivo e o princípio hologramático.
Os três são expressões diversas e complementares do princípio de
religação. Não desconsidero de modo algum as disciplinas, uma vez que
meu intuito é religá-las; contesto, porém, seu hermetismo e critico a
hiperespecialização. Acrescento que o conhecimento é uma navegação
num oceano de incertezas, entre arquipélagos de certezas‖ (Morin,
2010: 242).
Inspirado nessas palavras, continuarei a apresentar alguns aspectos que
caracterizam o percurso desta pesquisa, entendendo que não há um fundamento absoluto
que imponha a forma correta de navegar. Talvez uma sinfonia composta por partes
distintas possa caracterizar a música que sairá dos inúmeros instrumentos de reflexão.
Afinal, o valor da prova absoluta, fornecido pelas induções e deduções, demonstrou
seus limites. Trabalhar com as contradições, ao invés de sinal de erro, antes é a
emergência de um novo tipo de verdade (id., ibid: 243).
PESQUISA BASEADA NA EXPERIÊNCIA
Uma pesquisa pode tomar muitos caminhos. Pode guiar-se por regras fixas e
proceder por experimentos, que reproduzem artificialmente processos físicos da
natureza ou processos sociais, ou pode esparramar-se e dialogar com as pequenas
partículas dos fenômenos, em situação de reciprocidade. No caso das ciências humanas,
esse diálogo ocorre no âmbito da micropolítica, onde as relações saber/poder
determinam os fluxos dos valores e dos conhecimentos, e os discursos produzem
incessantemente novas realidades. Foi por este último caminho que optei, por considerá-
lo mais apropriado a uma proposta de produção de vida, e de superação das amarras que
simplificam e negam a complexidade dos fenômenos. Porque a experiência sugere algo
mais que o controle dos processos, das perguntas e das respostas, muitas vezes já
prontas antes do início das pesquisas. Sugere a entrega do observador ao turbulento e
virtuoso fenômeno, a passividade necessária para criar, a paixão mais que a razão.
Como diz Bondiá:
19
―Seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou
como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por
sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua
disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade
anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de
paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma
receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como
uma abertura essencial‖ (Bondiá, 2002: 24).
É sobre esse tipo de conteúdo que se debruçará esta pesquisa. Ela tratará da
prática, tentando não sucumbir ao pessimismo da razão, mas incorporando-a como uma
dentre outras dimensões da análise. Seus caminhos estarão nas imediações da pesquisa
qualitativa (Minayo, 1992; Alves-Mazzotti, Gewandsznajder, 1999; Demo, 2000;
Bauer, Gaskell, 2003), pesquisa-ativa, pesquisa-ação, exercício da memória,
refinamento da sensação e do pensamento, aceitação de que o observador interfere e
ajuda a produzir o fenômeno observado. No meu caso, tanto mais, pois fiz parte dos
processos que relatarei e analisarei. É isso mesmo, através desta pesquisa estarei
estudando, entre outras coisas, a mim mesmo. E quem pode negar que qualquer
pesquisa, mesmo a mais cartesiana e supostamente asséptica delas, não reproduz em
parte esse mecanismo de pesquisar a si próprio? Não é o cientista de laboratório aquele
que cria realidades no diálogo com seus instrumentos, a partir de seus desejos, de seu
olhar incisivo para alguns elementos e cego para outros? Sim, é de minhas vísceras e de
meu coração, mais que de meus abstratos neurônios, que partem as análises dos fatos
que serão relatados. É verdade que eles serão filtrados pelo cérebro, e sairão de outro
modo, sempre em luta com o coração. Essa tensão, de certa forma, é o que garante certa
dose de idoneidade, honestidade, e uma nova estética. Digamos que esta é, a meu ver, a
forma mais eficaz e rica de se fazer ciência, superando o pessimismo da razão e
entronando o otimismo da prática.
―Evidentemente, a clareza de percepção e de pensamento requer que
geralmente estejamos conscientes de como a nossa experiência é
moldada pelo insight (nítido ou confuso) proporcionado pelas teorias
implícitas ou explícitas em nossos modos gerais de pensar. Com esta
finalidade, é útil enfatizar que a experiência e o conhecimento são um
só processo, em vez de pensar que o nosso conhecimento é sobre algum
20
tipo de experiência separada. Podemos nos referir a esse processo único
como experiência-conhecimento (o hífen indicando que são dois
aspectos inseparáveis de um movimento total)‖ (Bohm, 1992: 25).
HUMILDADE
―Evidentemente, a noção de causa formativa é relevante para a visão da
totalidade indivisa do movimento fluente, o que se constatou estar
implicado nos modernos desenvolvimentos da física, notavelmente na
teoria da relatividade e na teoria quântica. Logo, como tem sido
assinalado, cada estrutura relativamente autônoma e estável (p. ex.,
uma partícula atômica) deve ser entendida não como algo que existe de
modo independente e permanente, mas, antes, como um produto
formado no movimento fluente total e que finalmente voltará a
dissolver-se nesse movimento. Como ele se forma e mantém a si
próprio depende, então, do seu lugar e da sua função no todo‖ (Bohm,
1992: 35).
Como conhecer o real? Real como realidade, não como compartimento do
inconsciente lacaniano7. O que é o real se não os símbolos produzidos pelo discurso?
A ilusão de posse da totalidade do real, combinada com uma suposta linearidade
do tempo histórico, é um erro que advém de nosso incansável e teimoso
antropocentrismo. Acreditamos dominar e conhecer o real, enfiando-o à força em
nossos moldes explicativos.
7 Complementando os três elementos que compõem a tópica formulada em 1953 por Lacan, o Imaginário
(termo utilizado a partir de 1936) não seria um simples fato psíquico, mas uma imago, ou seja, um
conjunto de representações inconscientes que aparecem sob a forma mental de um processo mais geral; o
lugar das ilusões do eu, onde se situam todos os fenômenos ligados à construção do eu (Roudinesco e
Plon, 1998: 371; 645). O Simbólico (termo igualmente utilizado a partir de 1936), também inseparável
dos conceitos de Imaginário e de Real, é um sistema de representação baseado na linguagem, isto é, em
signos e significações que determinam o sujeito à sua revelia; designa a ordem (ou função simbólica) a
que o sujeito está ligado (id., ibid.: 714). A preponderância de um dos termos sobre os outros variará no
decorrer da trajetória teórica de Lacan.
21
Nossos moldes são pobres, porque cinzento é o processo de tornar cinza a
colorida multiplicidade do real, a riqueza de possibilidades que ele nos apresenta.
Como um pintor deprimido, pintamos um céu chuvoso e nebuloso através de
nossa lógica formal, acreditando que estamos sendo precisos e límpidos na análise.
A nebulosidade do real é outra. É composta de forças em relação que se chocam
a todo tempo como os átomos que compõem toda a matéria, orgânica ou inorgânica
(alguém já parou para pensar que somos primos das mesas e das pedras, porque com
elas compartilhamos as unidades elementares da matéria?).
Tentemos ser um pouco mais humildes, para quem sabe ―entendermos alguma
coisa do que se passa no cotidiano‖.
―São os novos conhecimentos biológicos, físicos e cósmicos que nos
indicam que o humano não é apenas o resultado de uma evolução
biológica. De um lado, ele traz consigo as irmãs-mães dos primeiros
seres celulares, surgidos talvez há três bilhões de anos; do outro, suas
células são constituídas de macromoléculas, constituídas de átomos,
entre eles o carbono, ele próprio produzido pela colusão entre três
núcleos de hélio num Sol anterior ao nosso; e as partículas constitutivas
desses átomos nasceram nos primórdios do Universo. Isso significa que,
em nossa singularidade humana, trazemos conosco toda a história do
Universo, com suas características físicas, químicas, biológicas. Somos
filhos do Universo. Mas, ao mesmo tempo, somos separados por nossa
cultura, nossa mente e nossa consciência‖ (Morin, 2010: 207).
A FÁBULA DA SERPENTE
―Uma fábula oriental conta a história de um homem em cuja boca,
enquanto ele dormia, entrou uma serpente. A serpente chegou ao seu
estômago, onde se alojou e de onde passou a impor ao homem a sua
vontade, privando-o assim da liberdade. O homem estava à mercê da
serpente: já não se pertencia. Até que uma manhã o homem sente que a
serpente havia partido e que era livre de novo. Então dá-se conta de que
não sabe o que fazer da sua liberdade: no longo período de domínio
absoluto da serpente, ele se habituara de tal maneira a submeter à
22
vontade dela a sua vontade, ao desejos dela os seus desejos e aos
impulsos dela os seus impulsos, que havia perdido a capacidade de
desejar, de tender para qualquer coisa e de agir autonomamente.[...] Em
vez de liberdade ele encontrara o vazio [porque] junto com a serpente
saíra a sua nova ‗essência‘, adquirida no cativeiro, e não lhe restava
mais do que reconquistar pouco a pouco o antigo conteúdo humano de
sua vida‖ (Basaglia, 2001:132; fábula relatada por Jurij Davydov em Il
lavoro e la libertà. Torino: Einaudi, , 1966, trad. V. Strada).
Basaglia utilizou essa fábula para se referir ao processo de institucionalização
por que passam as pessoas que experimentam longas internações em hospitais
psiquiátricos.
A serpente simboliza a institucionalização, a mortificação do eu. Quando ela se
abstém e desaparece, a sensação de vazio é intensa, um profundo não saber se combina
com o pavor de viver, de dar qualquer passo no escuro.
Esse é o drama por que passam as pessoas que vivem um processo de
desinstitucionalização. Os primeiros momentos são aterrorizantes, mas também vividos
com intenso prazer, já que a riqueza da experiência e a colorida multiplicidade do real
ofuscam os olhos como aqueles repentinos clarões de luz. Depois, a descoberta do real
vai sendo um desafio cheio de sabor, temperado com excelentes especiarias. A vida vai
sendo construída, o risco passa a ser um cotidiano de riqueza e transformação.
Ora, não é que a mesma serpente habita também os que cuidam dos internos?
Pare e olhe para dentro de si, você não está enxergando a serpente? Faz tempo que você
não olha para si mesmo, então tente de novo. Você verá que é a mesma serpente que
habita os internos de hospitais psiquiátricos. Ela domina você, ela é o seu paradigma, e
você é escravo dela.
Quero lhe propor uma coisa: não espere que ela se abstenha. Pegue um veneno e
tome até a última gota. Depois, vomite a serpente. Vomite com força, com toda a sua
força. Pense num figo quando é aberto com todos os nossos dedos, a partir de sua parte
mais bojuda. É assim que devem agir seus músculos internos, músculos lisos, músculos
dos órgãos: eles devem virar do avesso. Vomite com força e sem medo.
23
É possível que haja descontroles: sua homeostase vai entrar em pane, sua
glicemia se alterará, a pressão sanguínea e o controle eletrolítico também. Os neurônios
vão se perder, as sinapses deixarão de fazer um diálogo liso entre elas, é possível que
você até tenha movimentos involuntários, convulsões, dores de cabeça e enjoo. Mas não
tema, lembre que os internos de hospitais já viveram séries de eletrochoques e de
choques insulínicos, e muitos deles sobreviveram.
Não tenha medo de ver a serpente. Ela sairá despedaçada e não oferecerá risco.
Você sentirá o vazio, o mal-estar, mas logo seu corpo se harmonizará, e as taxas se
equilibrarão. Mas, fique atento, pois um excesso de harmonia pode significar o
crescimento de uma nova serpente. Às vezes ela se porta como a lombriga: vai
crescendo de mansinho, na paz, como se tudo estivesse bem, até que se revela e é
necessário assassiná-la e expulsá-la.
Dizem que quem não espanta a serpente passa a assumir a aparência dela: torna-
se pálido, viscoso, de cabeça pequena e corpo sem membros. Expulse a serpente sempre
que ela crescer, e desconstrua-se, desinstitucionalize-se, para que nenhum paradigma o
domine e empalideça sua existência.
Essa é a sugestão deste trabalho, que pretende mostrar como as serpentes saíram
de alguns ex-usuários e ex-profissionais do Hospital Anchieta, e como foi o processo de
construção no tempo de um novo corpo biológico e social.
A COMPLEXIDADE ENGOLE A SIMPLIFICAÇÃO
Como numa luta entre dragões que cospem fogo, a complexidade vencerá a
simplificação, se é que podemos crer que o mundo resistirá à tecnociência e ao capital.
Aos poucos, a ciência cartesiana vai sendo obrigada a enxergar a si própria, a
sair de sua cegueira, uma cegueira que produz suas próprias alucinações.
Desde que o observador de laboratório com seus instrumentos desconcertou-se
com o fato de a partícula se apresentar tanto como onda quanto como corpúsculo, a
ciência cartesiana viu-se obrigada a se ater ao fato de as coisas serem elas mesmas e
outras coisas ao mesmo tempo (Morin, 1996; Prigogine, Stengers, 1984). Profanado o
24
princípio cartesiano do terceiro excluído, a ciência perdeu o chão, embora talvez tenha
percebido que na verdade o encontrou pela primeira vez.
Assim como noutras épocas da história, desde a descoberta de que a Terra não
era o centro do universo, esse foi um grande golpe em nosso antropocentrismo (Arendt,
2001).
Achávamos que tudo sabíamos e que a ciência positiva, com seu compadre, o
capital, estaria infalivelmente no controle do mundo.
Hoje sabemos que não é bem assim, embora boa parte dos cientistas continue a
negar o fato e a praticar a destruição da natureza como a expressão de seu recalque,
como um sintoma por ter relegado ao inconsciente tão dolorida ferida.
Mas boa parte deles também renasceu com as novas descobertas da ciência
cartesiana, que descobriu sua própria superação. Estes perceberam que a história, muito
antes de acabar, está apenas começando, e que a multiplicidade do real e do humano
está a mostrar sua silhueta, de longe, de forma borrada.
É por isso que pessoas como Morin têm defendido a recursividade e o diálogo
como princípio do conhecimento.
A multiplicidade de elementos que compõem o real nos convida a enriquecer e
multiplicar nossos instrumentos de diálogo.
A razão instrumental da tecnociência e a lógica formal compõem apenas um
pequeno pedaço da parafernália necessária para esse diálogo com a enormidade do
mundo.
É necessário estar entre o sensível e o inteligível (Lévi-Strauss, 1991) para poder
escutar a polifonia das vozes, é fundamental perceber o macro no micro, o micro no
macro, pensar que o todo contém a parte e a parte traz consigo o todo.
É necessário recuperar e integrar ou fundir o conhecimento há séculos produzido
pela literatura, pela arte e pela espiritualidade, para que não sucumbamos ao pessimismo
da razão. A razão, essa moça pálida que precisa de sol, deve poder dialogar com as
outras razões que sempre desprezou.
25
UM PARADIGMA APROPRIADO PARA LIDAR COM A EXPERIÊNCIA
A experiência, em seu valor, exige estratégias de investigação à sua altura.
Percebe a experiência aquele que não é submetido à lógica do experimento, ao suposto
controle absoluto de todas as variáveis:
―No compartir a experiência, trata-se mais de uma heterologia do que
de uma homologia, ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que
funciona heterologicamente do que de uma dialogia que funciona
homologicamente. Se o experimento é repetível, a experiência é
irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. Se o experimento é
preditível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de
incerteza que não pode ser reduzida‖ (Bondiá, 2002: 28).
Um novo paradigma é necessário. Mas o que seria esse novo paradigma? Edgar
Morin propõe a seguinte formulação para o termo paradigma: é aquilo que ―contém,
para todos os discursos que se realizam sob o seu domínio, os conceitos fundamentais
ou as categorias mestras de inteligibilidade, ao mesmo tempo que o tipo de relações
lógicas de atração/repulsão (conjunção, disjunção, implicação ou outras) entre estes
conceitos e categorias‖ (Morin, 2002: 261). Os indivíduos agem, conhecem, pensam
conforme os paradigmas inscritos culturalmente. O Ocidente possui um grande
paradigma, formulado por Descartes no século XVII. Esse paradigma separa o sujeito
do objeto, a filosofia da pesquisa reflexiva, a ciência da pesquisa objetiva. Essa
dissociação se prolonga, atravessando o universo: sujeito-objeto; alma-corpo; espírito-
matéria; qualidade-quantidade; finalidade-causalidade; sentimento-razão; liberdade-
determinismo; existência-essência (id., ibid.: 270). O paradigma do Ocidente tem seus
conceitos soberanos e prescreve a relação lógica, operando por disjunção. Permeia nele
uma dupla visão de mundo: um mundo dos objetos submetidos a observações e
experimentações, e um mundo dos sujeitos que se colocam problemas existenciais, de
comunicação, de destino.
Do ponto de vista da ciência, o homem é um objeto pequeno perto do universo;
mas do ponto de vista prático, dá a ele poder e potência que lhe permitem domesticar e
arrasar o seu próprio universo. A ciência, que se separou da filosofia no século XVII
(separação do juízo de valor dos juízos de fato e das teorias), seguirá uma dialógica
26
entre a imaginação teórica (racionalismo) e o empirismo que subordina tudo aos fatos.
Obedecerá a um paradigma da simplificação, a uma visão determinista do universo. Eis
então algumas características da ciência clássica: expulsão dos acasos e das desordens
como epifenômenos ou efeitos da ignorância; simplicidade e fixidez; inércia da matéria
submetida à especialização e geometrização do conhecimento; isolamento do objeto em
relação ao seu ambiente e ao seu observador; inteligibilidade cartesiana (o que não pode
ser dito claramente deve ser excluído, silenciado); exclusão do não mensurável, não
qualificável, não formalizável; redução da verdade científica à verdade matemática,
reduzida à ordem lógica (id., ibid.: 275-6). Eliminam-se assim da ―verdadeira‖ realidade
todos os ingredientes de complexidade do real (sujeito, existência, desordem, acasos,
qualidades, solidariedades, autonomias). Procede-se a uma visão por vezes atomística
(que só vê unidades elementares) e/ou mecânica (só vê uma ordem determinista
simples). A partir do século XVII surge a engrenagem ciência/técnica (a
experimentação/verificação controlada). A tecnociência, em dois séculos, sai da
periferia e vai para o coração da sociedade, da indústria, do Estado (id., ibid.: 279-80).
A especialização viraria hiperespecialização (experts, tecnocratas). Entraria em cena a
tecnologização e a racionalização econômica e social (burocracia). A tecnociência e a
sociedade se apoderariam e transformariam uma à outra, numa recursividade
ciência/técnica/sociedade.
Embora em toda parte sejamos impelidos a considerar, não objetos fechados e
isolados, mas sistemas organizados em relação co-organizadora com seu ambiente, e o
paradigma clássico tenha deixado de ser operacional há 50 anos, as consequências disso
continuam a ser ignoradas (id., ibid.: 288). Apesar de se falar em interdisciplinaridade, o
princípio da disjunção continua a separar às cegas. A hiperespecialização, as visões
unidimensionais mutilantes, começam a revelar seus efeitos destrutivos relativos ao
homem, à sociedade, à guerra, à biosfera. A tomada de consciência continua limitada,
fragmentada. Seria necessária uma reforma em cadeia do entendimento, associada a
uma revolução paradigmática. Uma revolução paradigmática ataca enormes evidências,
lesa enormes interesses, suscita enormes resistências (id., ibid.: 285-90). Então, é
necessário compreender a realidade de maneira dialógica para conceber a complexidade
do real, usando as contradições e a incerteza. É necessário ―agir com‖ a contradição,
servir-se dela para reativar e complexificar o pensamento. Tratar, interrogar, eliminar,
salvaguardar as contradições (id., ibid.: 242). Criar princípios e regras que estejam
27
vinculados a um paradigma da complexidade, para usar a lógica, sem se subjugar a ela.
A dialógica não supera as contradições, mas enfrenta-as e integra-as no pensamento,
porque elas são insuperáveis e vitais. A verdadeira racionalidade reconhece os seus
limites e é capaz de tratá-los (utilizando metapontos de vista) e superá-los, mesmo
reconhecendo um além irracionalizável. Tudo isso leva ao reaparecimento do sujeito nas
relações do conhecimento, sem o que se iria ao absurdo total da racionalização total (id.,
ibid.: 250) (todas essas afirmações estão presentes em O método 4: As ideias, hábitat,
vida, costumes, organização).
―A extrema nitidez, a clareza e a certeza só se adquirem à custa de
imenso sacrifício: a perda da visão de conjunto‖ (Einstein, 1981: 139).
O SUJEITO RETORNA AO CAMPO DO CONHECIMENTO
É por esse motivo que considero legítima e adequada a forma como vou captar e
analisar os dados desta pesquisa. O sujeito faz parte do contexto, interfere, se lambuza
nos fluidos do contexto. Como diz Morin,
―discutiu-se muito sobre o sentido e o alcance das relações de incerteza
de Heisenberg. Estas equivalem a admitir que, a um certo nível radical,
o observador já não pode dissociar-se da sua observação: entra nela e
perturba-a‖ (Morin, 2010a: 46).
Ou, como diz o relatório da Comissão Gulbenkian para a Reestruturação das
Ciências Sociais (1996: 110): ―Não se pode nunca apartar o/a cientista do seu contexto
físico e social concreto. Toda a medição altera a realidade na tentativa mesma de a
medir‖.
É por isso que é necessário fazer uma observação da observação, ou seja,
analisar e considerar como parte do fenômeno o tipo de observador e a observação em
desenvolvimento, seu contexto, as relações de poder/saber implícitas em tais processos.
Porque,
―o ‗eu‘ de que se trata é o ‗eu‘ inquieto e modesto daquele que pensa
que o seu ponto de vista é necessariamente parcial e relativo. A
reintrodução do eu não é mais do que a reintrodução autorreflexiva e
autocrítica do sujeito no conhecimento. Este argumento é igualmente
28
válido para a sociologia: quem sou eu, que falo das classes sociais?
Qual é este trono do alto do qual eu as considero? Porque, enfim,
ninguém dispõe de tal trono, nem sequer o catedrático de uma
universidade. Assim, a questão do sujeito surge de todos os lados e, a
meu ver, já não é possível ocultá-la ou iludi-la‖ (Morin, 2010a: 47).
―O objeto do conhecimento é coproduzido por nossas projeções mentais
sobre uma realidade exterior e pela introdução, via tradução e
reconstrução, dessa realidade exterior em nossa mente‖ (Morin, 2010:
243-4).
Não devo negar, mas considerar e valorizar minhas impressões nos relatos da
experiência que se seguirão. Não há como negar que somos coprodutores da realidade e,
dessa forma, para ser mais realistas, devemos considerar nossa participação nessa
construção:
―A relação entre o pensamento e a realidade à qual ele se refere é, de
fato, muito mais complexa do que a de uma mera correspondência.
Assim, na pesquisa científica, boa parte do nosso pensamento está
assentada em termos de teorias. A palavra ‗teoria‘ deriva do grego
theoria, que tem, assim como a palavra ‗teatro‘, a mesma raiz numa
palavra que significa ‗observar‘ ou ‗fazer um espetáculo‘. Assim,
poder-se-ia dizer que uma teoria é, basicamente, uma forma de insight
(ou introvisão), ou seja, um modo de olhar para o mundo, e não uma
forma de conhecimento de como ele é‖ (Bohm, 1992: 22).
SUPERAÇÃO DA RAZÃO FECHADA E EXERCÍCIO DA RAZÃO ABERTA
Peço sua compreensão, pois será necessário recorrer a uma longa citação:
―a razão fechada rejeita como inassimiláveis fragmentos enormes de
realidade, que então se tornam a espuma das coisas, puras
contingências. Assim, foram rejeitados: o problema da relação sujeito-
objeto no conhecimento: a desordem, o acaso: o singular, o individual
(que a generalidade abstrata esmaga): a existência e o ser, resíduos
irracionalizáveis. Tudo o que não está submetido ao estrito princípio de
economia e de eficácia (assim, a festa, o poltlach, o dom, a destruição
29
suntuária) são racionalizadas como formas balbuciantes e débeis da
economia, da troca. A poesia, a arte, que podem ser toleradas ou
mantidas como divertimento, não poderiam ter valor de conhecimento e
de verdade, e encontra-se rejeitado, bem entendido, tudo aquilo a que
chamamos trágico, sublime, irrisório, tudo o que é amor, dor, humor...
Só uma razão aberta pode e deve reconhecer o irracional (acaso,
desordens, aporias, brechas lógicas) e trabalhar com o irracional: a
razão aberta não é a rejeição, mas o diálogo com o irracional. A razão
aberta pode e deve reconhecer o a-racional. Pierre Auger observou que
não nos podíamos limitar ao díptico racional-irracional. Há que
acrescentar o a-racional: o ser e a existência não são nem absurdos nem
racionais: são. Pode e deve reconhecer igualmente o sobrerracional
(Bachelard). Sem dúvida, toda a criação e toda a invenção comportam
alguma coisa deste sobrerracional, que a racionalidade pode
eventualmente compreender depois da criação, mas nunca antes. Pode e
deve reconhecer que há fenômenos simultaneamente irracionais,
racionais, a-racionais, sobrerracionais, como talvez o amor... Por aí,
uma razão aberta torna-se o único modo de comunicação entre o
racional, o a-racional, o irracional‖ (Morin, 2010a : 213).
Acrescentaria, com prudência, que, para exercitar uma razão aberta, o sujeito
teria de mergulhar nas profundezas de seu eu (que é formado por vários ―eus‖, uma vez
que o laço social é o grande produtor de subjetividades), mantendo-se alimentado por
uma intensa permeabilidade com os outros seres vivos e com a natureza.
Essa permeabilidade, responsável por nossa múltipla subjetividade, é a condição
de um devir permanente e rico, que produz sentido a cada passo. Ou seja, mais que um
desorganizador geral da estrutura, do sistema e do organismo, esse devir seria a
possibilidade de construir permanentemente novos sentidos para a existência, sentidos
que estariam repletos de novas produções sociais, novos valores, novos conhecimentos,
novas práticas, novas formas de estar no mundo.
Digamos que esse processo de viver o devir e a contingência, produzindo novos
sentidos e tentando, ao menos por instantes, produzir sentido no caos, seja o mesmo que
desinstitucionalizar (Nicácio,1990, 2003; Rotelli et al., 1990), se entendermos por isso o
processo permanente de desconstrução e construção de novos parâmetros existenciais,
novos valores, novos coletivos e novas subjetividades. Dessa forma, a multiplicidade da
30
subjetividade e do real estaria em constante movimento, substituindo a miserável e
autoritária máquina de produção capitalista, que se baseia num eu e num tu, no sujeito e
no objeto, e nunca num nós, num nós que é único e singular a cada momento, e que só
podemos viver se exercitarmos a razão aberta. Uma racionalidade aberta seria a
condição para dialogar com aqueles que são considerados incompreensíveis e fechados.
Poderíamos convencer os que são vistos como autistas a abrir seus escudos e armaduras
para dialogar com uma nova racionalidade aberta. Provavelmente só teremos chance de
compreender tais pessoas se nos mantivermos em nossa condição aberta: sua aparente
incapacidade de comunicação é nossa incapacidade de nos fazermos entender. Sem uma
racionalidade aberta, toda alteridade torna-se degradação, doença, negatividade e
incapacidade. Só dialogaremos com os loucos e os autistas quando superarmos nosso
próprio autismo, nossa racionalidade fechada.
Como diz Saraceno (s.d.), ao problematizar o excesso de identidade como algo
totalizador, inibidor do sujeito e imune a todos os riscos e transformações,
―Una primera etapa de la utopía debe ser la del reconocimiento, sin
indecisiones ni excepciones, de que cada hombre y mujer es ‗productor
de sentido‘. Etapa más ambiciosa deberá ser la de reconecer, y actuar en
consecuencia, que los millones de hombres y mujeres cuya producción
de sentido está limitada, bloqueada, aniquilada, negada, no están em
dicha condición por ser enfermos mentales o por estar en terribles
situaciones de sufrimiento psicosocial, sino essencialmente por falta de
respuesta adecuada a sus enfermedades o a sus sufrimientos
psicosociales. En otras palabras, no es la discapacidad resultante de
condiciones de enfermedad o de sufrimiento psicosocial la que quita
sentido a los seres humanos sino una decisión discriminatória tomada
por otros. Una decisión que define la producción de sentidos ajenos a la
razón dominante como ‗ausencia de sentido‘‖ (Saraceno, s.d.: 11-2).
DESINSTITUCIONALIZAÇÃO E COMPLEXIDADE
A noção de desinstitucionalização como desconstrução de práticas, saberes,
normas, leis e valores é sincrônica à ideia de complexidade. A mudança do objeto da
psiquiatria, que de doença se transforma numa experiência existencial de sofrimento
31
singular mergulhada num mar revolto de relações sociais (relações que, através das
respostas que dá ao sofrimento, coproduzem o seu percurso), abre um leque formidável
de possibilidades e probabilidades de transformação de todos os atores em relação.
Rotelli (1994) afirma que a desinstitucionalização denuncia e se opõe à
necessidade de se conter no simples o complexo desigual, violentando-o no âmbito do
saber, das regras e das práticas (id., ibid.: 58-9). A desinstitucionalização opera uma
ruptura da contenção e produz regras instáveis, portas abertas, cruzamento e circulação
de conhecimentos múltiplos que podem liberar os conflitos. Um processo de
desestabilização que pode criar as condições para o desenvolvimento de uma crítica
prática, de experiências de subjetivação e de multiplicação de papéis, saída da inércia
subjetiva e institucional, reapropriação emocionante da riqueza singular de atores que
podem viver o jogo das trocas coletivas. Porque o que está em jogo na
desinstitucionalização não é o manicômio, mas a doença, não é a instituição, mas o
objeto da psiquiatria, aquele fenômeno produzido institucionalmente através dos saberes
simplificados da nosografia psiquiátrica. As respostas institucionais do paradigma
psiquiátrico tradicional, adequadas à noção de doença, não são apropriadas ao novo
objeto, qual seja a ―existência-sofrimento em sua relação com o corpo social‖ (Rotelli,
1990). São tão pouco adequadas como seria um metro para medir um líquido, uma lente
para ver toda a galáxia, ou uma caixa para conter um rio (Rotelli, 1994: 61). O problema
se tornará não a doença, mas a emancipação; não a restituição da saúde, mas a invenção
de saúde; não a reparação, mas a reprodução social, processos de singularização e
ressingularização. O desafio é desinstitucionalizar as cenas que geram a violência e a
exclusão, fazendo borbulhar possibilidades novas (id., ibid.: 62). Complexidade do
objeto, mutação do paradigma, projetos de transformação que produzam novos
conhecimentos, a partir da prática viva, do diálogo mais imprevisto e singular, da
assunção de riscos, da mudança de valores, da polifonia de identidades, da produção de
vida. Pois sim, a desinstitucionalização e a complexidade são partes de um mesmo
processo, uma retroalimenta a outra. A desinstitucionalização vai tornando o fenômeno
complexo e o ato de tornar complexo vai produzindo novas ―instituições de
desinstitucionalização‖.
Meu esforço é tornar claro ao leitor que o campo discursivo desta pesquisa, seu
pano de fundo, é o cruzamento e a implicação entre os conceitos de
desinstitucionalização e de complexidade que, para mim, são faces, perfis, de uma
32
mesma construção, de um mesmo campo de forças e de conhecimentos, um mesmo
paradigma de múltiplas vozes que tenta enriquecer as modalidades de razão, permitindo
um novo diálogo enriquecedor com a experiência do sofrimento psíquico.
Espero ter sucesso nessa minha empreitada.
AS MICRORRELAÇÕES DO COTIDIANO COMO OBJETO DE ESTUDO
Caminhando passo a passo em sua complexidade, o cotidiano se impõe como o
lócus e o tempo de conhecimento dos processos a serem conhecidos. E é de um certo
cotidiano que falarei neste trabalho.
O cotidiano é o lugar do senso comum. O senso comum não é aquilo que é
menos valorizado, superficial, não verdadeiro, mas aquilo que é compartilhado
(Martins, 2000: 59), um espaço de produção de valores e conhecimentos que se move
como uma mistura de terra firme com areia movediça. Pois o cotidiano não é só
repetição, mas também criação, desvio. Porque a repetição do cotidiano carrega o germe
de sua ruptura.
Como Certeau (2007), também enxergo o cotidiano como um ―terreno de
movimentos espumosos‖, algo que traz o mistério e a enormidade do real em suas
entranhas e, por isso, como o lugar do complexo, onde podemos tanto enxergar só
futilidades como ver múltiplas facetas da realidade, dependendo do ponto de vista, do
contexto, das micro e macrorrelações de poder, dependendo do dia e hora, do lugar, de
meu espírito e humor, ou seja, de onde e para onde foco minha atenção, meu olhar e
minha imaginação.
Afinal, como diz Pais,
―não corresponde o ato de mostrar a um processo de centração
(atenção) do olhar que implica uma descentração (desatenção)
relativamente ao que circunda o centro da atenção? Enfim, porque é
sempre parcial, não é verdade que o conhecimento arrasta sempre,
como a sua sombra, o desconhecido?‖ (Pais, 2003: 27).
33
Podemos então, como afirma esse mesmo autor (ibid.: 26), referindo-se a
Simmel, enxergar ―o típico enfatizado no particular; o normal, no acidental; o essencial
ou significante, no que parece superficial ou fugaz‖.
Tratar-se-ia então, no que se refere a um método de investigação focado no
cotidiano, de fortalecer e pôr para funcionar uma nova lógica da descoberta, ao invés de
uma lógica da demonstração, tão comum aos experimentos do método cartesiano.
O método seria um caminho não definível a priori, seria uma estratégia de
diálogo com os fenômenos que implica escutar, ter paciência, tentar ampliar o olhar,
olhando do centro para a periferia e da periferia para o centro, tendo em mente sempre
que isso possui um limite, pois o real é maior do que nosso felino olhar pode captar.
O método seria então um dialogar, um juntar, um refletir, um analisar, um
enriquecer, um ato de humildade, um ato de honestidade, um deixar-se ser tomado pela
experiência, aquilo que, se estivermos desarmados, pode nos oferecer uma participação
sem igual, pode nos transformar, ou nos levar a nos autotransformar.
E, é claro, porque somos formados por laços sociais, se nos transformamos,
também as pessoas envolvidas conosco, de alguma forma, toda a humanidade, se
transforma. Pois não há ação sem consequências mundiais, e até cósmicas. Porque nossa
rede invisível há muito tempo deixou de ser chamada de espiritualidade, para ser
considerada algo da genética do mundo, portanto, algo biológico. Porque o biológico
está no social e vice-versa, tudo está interligado.
FUGAZ POTENTE
Como disse anteriormente, o cotidiano pode ser confundido com a rotina perene
e repetitiva do dia a dia. Pode ser desenhado como um dia a dia automático, sempre
igual, imutável e muitas vezes de durabilidade eterna, como à primeira vista parece ser a
eternidade de um dia de trabalho numa esteira fordista de fábrica, cujos movimentos
repetitivos e aparentemente idênticos, marcados por um ritmo sempre igual, produzem
aquele torpor que caracteriza o homem automático.
Mas é na lida do cotidiano que o desigual invisível se coloca como
possibilidade no igual visível.
34
Os fluxos de identidade carregam consigo os fluxos da metamorfose. O sempre
igual carrega consigo as forças da ruptura.
Essas forças, para ser percebidas, exigem certo desprendimento e flexibilidade
do observador. Este tem que perceber no detalhe aquilo que compõe o todo.
O todo contém a parte e a parte contém o todo. O pedacinho de tecido humano
carrega consigo o DNA comum a todas as células. O sol contém a chuva que provocará;
a água da chuva se apresenta como vapor ou como gelo, quando não está se
apresentando tracejada como pequenos riscos de lápis desenhados no céu.
Além disso, há a transitoriedade.
O transitório fugaz é potente, pois ele contém o eterno. É no transitório que se
nos apresentam aspectos que nos fazem entrar em contato com o real.
Porque o mundo é marcado pela contingência, embora isso possa provocar certa
insegurança, o contrário da ―segurança ontológica‖ ou da ―confiança básica‖ de
Giddens8.
Conhecer o mundo talvez seja conhecer os acontecimentos fugazes e
transitórios, que, através das relações das forças, dão sentido aos tempos e aos lugares.
O conhecimento, obviamente, só pode ser produzido pelo observador sensível e
pensante. É por isso que um dos elementos fundamentais a serem considerado no estudo
dos fenômenos é o observador, bem como o seu ponto de vista, o tempo e o lugar que
ocupa.
8 Anthony Giddens (1991) se refere a um conceito de Erik Erikson para fazer sua reflexão sobre a
subjetividade na modernidade. A ―confiança básica‖, termo que também pode ser associado à ideia de
―espaço potencial‖ de Winnicott (1975), diz respeito ao processo pelo qual a subjetividade é formada,
desde a tenra idade, com a mediação das figuras adultas que apresentam o mundo à criança. A sensação
de segurança para a descoberta do mundo é construída de forma gradual, de modo que a criança, que
inicialmente não se diferencia do mundo nem de seu cuidador, pode ir se diferenciando sem sucumbir à
angústia da desintegração do eu, sem ter a sensação de que as pessoas importantes ou o que está fora
deixa de existir quando não está fisicamente à sua frente. Acredito que a confiança básica, mais que um
dispositivo que finca uma identidade petrificada, é a segurança necessária de que uma identidade em
permanente transformação deve lançar mão para não correr o risco de se sentir em processo de não
existência.
35
É sobre uma base comum e aparentemente fixa de elementos, que o observador
usa sua criatividade para produzir a realidade. Ele esculpe sobre a fugacidade potente do
real.
A AÇÃO NÃO TEM PREVISÃO
Como diria Hannah Arendt, a dimensão da ação e do discurso não garante a
previsibilidade do acontecer. Sabemos como começamos, mas não podemos ter ideia de
para onde vai o processo incontrolável da ação. Ação, aqui, como um metabolismo com
a natureza, de caráter político, porque relacional entre pessoas, que produz um
reorganizar das energias, uma reestruturação da matéria a partir da relação de suas
partículas elementares.
A ação (Arendt, 2001), o acontecimento, a experiência, não permitem definir
seu itinerário. É como o jogo de futebol onde a pior equipe pode vencer de lavada a
equipe campeã. E isso dá muita esperança àqueles que só veem nos despossuídos, pelo
status social e pelo poder econômico, simples marionetes dos poderosos, ou simples
vazios abandonados.
Talvez, numa visão mais foucaultiana do poder, possamos considerar que o
poder está em toda parte, e que basta focar maleável e eficientemente nosso microscópio
para enxergar parte da infinidade de fluxos energéticos que compõem as mais simples
relações de poder.
O bebê que chora não é só alguém que tem fome, mas um ser que exerce seu
poder sobre a mãe mesmo sem ainda perceber que é um ser próprio, mesmo achando
que ele é o mundo e vice-versa.
O poder fluido, ao contrário do poder-dominação, que é a cristalização de
relações de poder, que passam a estagnar e a representar processos mortificantes, é a
esperança daqueles que querem viver em paz, livres e ricos, com a multiplicidade
colorida da subjetividade e do real.
36
O PERCURSO CARTOGRÁFICO
Há ainda a cartografia, o processo de perseguir os fenômenos da experiência de
forma totalmente disponível e aberta, sem determinar o percurso de antemão
(acompanhar processos em vez de fazer decalques ou fotografias que representem a
realidade, uma vez que esta é produzida).
Fazer mapas de lugares que a todo momento se modificam, como se o
observador visse seu objeto transformado depois do intervalo que fez para ir ao
banheiro, exige uma disciplina criativa e de observação maleável, louca, muito
irracional, se pensarmos na lógica formal.
Perseguir os fenômenos como um obsessivo caçador de si mesmo, mas um
caçador um pouco menos neurótico, que fica feliz ao saber que o todo é muito maior do
que o que pode ser capturado.
―A Cartografia como método de pesquisa-intervenção pressupõe uma
orientação do trabalho do pesquisador que não se faz de modo
prescritivo, por regras já prontas nem com objetivos previamente
estabelecidos. No entanto, não se trata de uma ação sem direção, já que
a cartografia reverte o sentido tradicional de método sem abrir mão da
orientação do percurso da pesquisa. O desafio é o de realizar uma
reversão do sentido tradicional de método – não mais um caminhar para
alcançar metas pré-fixadas (metá-hódos), mas o primado do caminhar
que traça, no percurso, suas metas. A reversão, então, afirma um hódos-
metá. A diretriz cartográfica se faz por pistas que orientam o percurso
da pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar
sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados‖ (Passos,
Kastrup, Escossia, 2009: 17).
Um pesquisador feliz e ao mesmo tempo inconformado pode desenvolver um
grande processo de pesquisa. Ele precisará estar atento, assim como ficam os cachorros
com seus ouvidos bem esticados, atentos a cada detalhe. Estes não se cansam de
capturar e tentar identificar sons diferentes, e sempre estão lá, hiperatentos e querendo
saber o que se passa. Um cachorro tranquilo, no entanto, pois quando se cansa de querer
saber, apenas senta, para, relaxa, sente o som e o vento que o traz, e desiste de saber
tudo sobre os sons, porque as escalas são infinitas.
37
Na grande pesquisa, é possível descascar algumas faixas da realidade, dando-
lhes sentido com nossa imaginação, sem ter a pretensão de chegar ao núcleo ou à
essência do fenômeno, pois este não existe, ou melhor, ele é o que desejamos eleger que
seja, conforme nossos humores e as relações de poder de nosso tempo, e conforme a
organização do movimento interativo de suas infinitas partículas.
A pesquisa é sempre uma intervenção; uma ação que mobiliza fluxos de poder
cuja potência transformadora geralmente se encontra nos interstícios das estruturas, dos
papéis sociais, das hierarquias. A pesquisa muda o objeto, o pesquisador e o próprio
conhecimento, pois o diálogo determina o movimento metamorfoseante da
territorialização de papéis; uma minúscula, escondida e insignificante partícula, a partir
de uma intervenção, pode tornar-se o potente tsunami instituinte da vez; esse é o
processo que a pesquisa possibilita acompanhar, produzindo sempre novas realidades.
Uma pesquisa é também feita de conceitos. O conceito é absoluto e relativo,
efêmero e duradouro.
―É absoluto como todo, mas relativo enquanto fragmentário. É infinito
por seu sobrevoo ou sua velocidade, mas finito por seu movimento que
traça o contorno dos componentes. Um filósofo não para de remanejar
seus conceitos, e mesmo de mudá-los; basta às vezes um ponto de
detalhe que se avoluma, e produz uma nova condensação, acrescenta ou
retira componentes. O filósofo apresenta às vezes uma amnésia que faz
dele quase um doente: Nietzsche, diz Jaspers, ‗corrigia ele mesmo suas
ideias, para constituir novas, sem confessá-lo explicitamente; em seus
estados de alteração, esquecia as conclusões às quais tinha chegado
anteriormente‘. Ou Leibniz: ‗eu acreditava entrar no porto, mas... fui
jogado novamente em pleno mar‘. O que porém permanece absoluto é a
maneira pela qual o conceito criado se põe nele mesmo e com outros‖
(Deleuze, Guattari, 1994: 34).
A CIÊNCIA ACEITA A ARTE? A ARTE ACEITA A CIÊNCIA?
―Num polo os literatos; no outro os cientistas e, como os mais
representativos, os físicos. Entre os dois, um abismo de incompreensão
mútua – algumas vezes (particularmente entre os jovens) hostilidade e
aversão, mas principalmente falta de compreensão. Cada um tem sua
imagem curiosamente distorcida do outro. Suas atitudes são tão
38
diferentes que, mesmo ao nível da emoção, não encontram muito
terreno comum‖ (Snow, 1995: 21).
O autor escreveu isso em 1959, e fez uma retrospectiva de como essa
relação conflituosa foi se constituindo desde tempos anteriores à revolução
industrial, quando a tecnociência começa a tomar fôlego, totalmente à revelia e
sem o acompanhamento dos literatos, autoproclamados intelectuais, eruditos e
tradutores da epopeia humana.
Décadas depois, percebe-se o quanto esse fosso ampliou-se, fortalecendo
a ideia da existência de duas culturas.
Apenas recentemente se pôde identificar um esforço no sentido de
estabelecer a dialogia entre as duas culturas, a partir da ideia de que a literatura é
uma forma profunda e complexa de produção de conhecimento, e a ciência algo
que pode tornar-se rica e criativa, ao superar sua reclusão num mundo pálido
recheado de fórmulas e leis gerais.
O mundo das fórmulas pode contribuir para a riqueza do conhecimento
se deixar de lado sua intenção totalizadora. O mundo da literatura pode
contribuir mais ainda se conseguir deixar de ser uma das estrelas da indústria
cultural, onde tudo só tem valor se pode circular livremente como mercadoria a
ser consumida.
Essas disjunções estão bem representadas no espaço acadêmico, na
formação dos profissionais que executarão funções muito mais técnicas e muito
pouco filosóficas.
O paradigma cartesiano, no campo do ensino em saúde, por exemplo, é
aquele que trata das células, dos sistemas e das funções orgânicas como se elas
tivessem uma existência própria, independente da pessoa cultural e socialmente
constituída. Os elementos do corpo são os objetos de estudo, e não os sujeitos a
quem pertencem esses elementos, ou seja, os donos dos corpos.
É difícil crer, exatamente por isso, que uma célula tenha uma existência
puramente biológica e nada social. É difícil crer numa célula que não seja social,
e que não seja alvo das relações de poder. Os seres são cem por cento biológicos
e cem por cento culturais (Morin,2010: 205).
Foucault há tempos trouxe a ideia da produção dos corpos dóceis no
âmbito de uma sociedade disciplinar (Foucault, 2000, 2005).
39
Embora estejamos num contexto contemporâneo de sociedade de
controle (Deleuze, 1992), com suas formas capilares e microscópicas de
vigilância e de controle, o processo de produção de corpos permanece, e estes
são muito mais desregulamentados (Bauman, 2003) e fluidos do que os corpos
duros que deveriam se adaptar às máquinas da revolução industrial e a seus
movimentos repetitivos.
A lógica cartesiana na educação ainda é formada por estratégias de
ensino que valorizam mais o imprinting (Morin, 2002), a cópia, do que a
computação ou a reflexão.
São comuns as explicações lineares, no percurso da relação causa-efeito,
que reproduzem ao final fórmulas que devem ser decoradas e guardadas por um
pequeno tempo na memória (já que o que não é utilizado tem uma tendência a
ser rapidamente descartado por ela), sem que o processo reflexivo encontre
lugar.
Essa forma de decoração reproduz uma pálida semelhança com o ofício
do ator de teatro, sem aquilo que dá mais vida a este último. Porque, ao decorar
o texto e atualizá-lo na interpretação, o ator produz outro texto, deixa o texto
invadir sua alma e transforma-o segundo suas motivações, o clima da peça
teatral, fazendo uma síntese das informações do texto com as questões subjetivas
vinculadas a sua experiência de vida, ao que está vivendo no momento etc. (o
pesquisador experimental vive a mesma situação quando reproduz as técnicas
em seu laboratório, só que não percebe).
Provavelmente o produto de uma educação cartesiana, mais que
―conhecimento‖ gerado por fórmulas, é uma determinada forma de pensar, de se
relacionar com as ideias, objetivando-as, plasmando-as, coisificando-as,
tornando-as pequenos objetos espalhados na grande estante da memória, muitas
vezes sem relação entre si.
O significado último dessa experiência de aprendizado talvez seja a
produção da disciplina, uma forma subalterna e submetida de relacionamento
com as ideias, que não podem ser questionadas nem transformadas.
Uma fórmula tem vida eterna e é fechada em si, não permitindo
interferência. Se é questionada, só pode sê-lo por outra fórmula, numa luta por
legitimidade. Uma fórmula não se mistura a outras, não se metamorfoseia, numa
40
existência fechada em que ou é tudo (e por isso se basta), ou é nada, devendo
deixar de existir.
Voltamos assim à construção da disciplina através de um método
subalternizador, que produz os corpos dóceis e úteis de que falava Foucault. Mas
também permanecemos no registro da nova produção dos corpos
desregulamentados da sociedade de controle, que ainda se mantém aos auspícios
do cartesianismo (basta ver que as produções do tecnocientificismo, como as
câmeras de vídeo e os celulares, são os instrumentos que permitem este controle
mais flexível, capilarizado, dos corpos, que não depende apenas das instituições
duras e coercitivas dos tempos da sociedade disciplinar).
Podemos transpor a situação da biologia no espaço acadêmico para a da
sociologia.
A sociologia, desde Durkheim, sucumbiu à visão cartesiana, com o
intuito de ser legitimada como ciência séria, mais que apenas uma disciplina da
área das humanidades.
Essa guinada em direção ao cientificismo, quantitativo, linear, nutrindo o
mito da neutralidade do observador em relação ao objeto, dominou a sociologia
por muito tempo, até que alguns atores começassem a problematizar a questão,
lembrando que o mundo não é tão simples assim para ser explicado linearmente
por puras relações de causa-efeito (lembremos que a física foi a primeira
disciplina totalmente cartesiana a assumir a insuficiência da lógica dedutivo-
identitária cartesiana, quando foi formulado o princípio da incerteza).
Se a ciência insiste em seu autofechamento, como uma forma de se
autopreservar numa forma tautológica, a arte abandonou seu caráter estético-
reflexivo, tornando-se entretenimento, mercadoria a ser produzida em série.
É a sociedade do espetáculo:
―Por esse movimento essencial do espetáculo, que consiste em retomar
nele tudo o que existia na atividade humana em estado fluido, para
possuí-lo em estado coagulado, como coisas que se tornaram o valor
exclusivo em virtude da formulação pelo avesso do valor vivido, é que
reconhecemos nossa velha inimiga, a qual sabe tão bem, à primeira
vista, mostrar-se como algo trivial e fácil de compreender, mesmo
41
sendo tão complexa e cheia de sutilezas metafísicas: a mercadoria‖
(Debord, 2000: 27).
Quando tenta preservar seu caráter erudito, a arte se mantém no espectro
da contemplação, da passividade, da coisificação, pois ainda se coagula como
mercadoria:
―O princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade
por ‗coisas suprassensíveis embora sensíveis‘, se realiza completamente
no espetáculo, no qual o mundo sensível é substituído por uma seleção
de imagens que existe acima dele, e que ao mesmo tempo se fez
reconhecer como o sensível por excelência‖ (id., ibid.: 28).
Haveremos de ver o momento em que ciência e arte se reencontrarão.
―Fechar o fosso entre nossas duas culturas é uma necessidade tanto no
sentido intelectual mais abstrato quanto no sentido mais prático.
Quando esses dois sentidos se desenvolvem separados, nenhuma
sociedade é capaz de pensar com sabedoria‖ (Snow, 1995: 72).
CHEGANDO A ESTA PESQUISA
O esforço dessas primeiras palavras consiste em trazer ao leitor o campo de
forças, o contexto, a base, as ferramentas que serão utilizadas neste estudo, e que
servem de método – já que é difícil conseguir palavra melhor – ou estratégia, para lidar
e dialogar com o fenômeno que será o objeto desta pesquisa.
Como todo objeto complexo, a experiência relatada e analisada atuará como um
sujeito no protagonista da pesquisa.
O pesquisador, no caso, faz parte da história do fenômeno analisado, e isso é tão
real como qualquer outra situação de pesquisa.
Trata-se apenas, neste caso, de assumir explicitamente que existe um viés de
envolvimento do pesquisador com o objeto da pesquisa, envolvimento inerente a
42
qualquer estudo, muito embora se queira geralmente negar essas relações de
cumplicidade, como se elas denunciassem algum caráter menos científico ao estudo.
Então, como escrevi nos primeiros parágrafos, tratar-se-á de analisar um
processo dinâmico em que o observador faz parte do fato observado e, assim, tratar-se-á
também de analisar as próprias ações do observador, uma autocrítica implícita a um
processo cujos atores são um coletivo.
Convido-o a compartilhar comigo os fatos que serão narrados. Faça boa viagem!
―São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente.
Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço
se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que
nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar
experiências. [...] A narrativa que durante tanto tempo floresceu num
meio de artesão – no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num
certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está
interessada em transmitir o ‗puro em si‘ da coisa narrada como uma
informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador
para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca
do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. Os narradores
gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias
em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, a menos
que prefiram atribuir essa história a uma experiência autobiográfica‖
(Benjamin, 1996: 197-8; 205).
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AURORA
―Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição
(nossa maneira de pormos), nem a ‗o-posição‘ (nossa maneira de
opormos), nem a ‗imposição‘ (nossa maneira de impormos), nem a
‗proposição‘ (nossa maneira de propormos), mas a ‗exposição‘, nossa
maneira de ‗ex-pormos‘, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e
de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se
opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ‗ex-põe‘. É incapaz de
experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a
quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o
afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre‖ (Bondiá, 2002: 25).
44
AURORA:
CARACTERÍSTICAS DOS PROJETOS DE TRABALHO
A EXPERIÊNCIA QUE ME TOCA
Do que vou falar é algo de especial. Especial porque singular e único. Especial
porque é experiência e não experimento e, por isso, não pode ser reproduzido nem
diminuído, simplificado, pasteurizado, embalsamado, perdendo sua vida, sua cor, sua
dor, seu cheiro, sua tensão, sua forma que envolve.
Se a experiência nos ensina, é porque ela exige que ativamente nos deixemos
envolver e afetar por ela, um tipo de passividade ativa que transforma e faz produzir
sentido. Uma paixão que acentua o caráter imanente e contingente da vida, com seu
processo contínuo de produzir sentido. Uma forma de não estar morto, mas de
contaminar-se com os fenômenos para deles aprender. Uma forma de saber que nos
torna mais vivos e sabidos, e que faz com que nos encontremos nos outros e na
natureza.
Essa é a estratégia do estudo, uma estratégia que não pode ser chamada de
método, porque correria o risco de ser dominada por regras que levassem à inexistência
de experiência.
É da singularidade da experiência, portanto, que nasce este relato e este saber,
esta intenção de produzir conhecimento a partir do que uma intervenção produziu.
Quem sofreu intervenção, o Hospital Anchieta, nós os profissionais, os internos, ou
ambos?
OS QUASE-HIPPIES
Entramos três jovens terapeutas ocupacionais recém-formados na sala do
interventor, para nos apresentar e iniciar o trabalho dentro do Anchieta. Cabelos longos,
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calças largas e estampadas estilo indiano, a famosa sapatilha chinesa nos pés, e muito
entusiasmo para ingressar na nova nave.
O interventor, ficamos sabendo depois, pensou consigo mesmo: ―O que significa
isso? Só nos faltava essa. Que a sorte nos ajude!‖.
Jovens costumam se inserir com muita energia nos seus projetos, e não éramos
diferentes. Misturamo-nos com profissionais de outras idades, gente de meia-idade e de
idade quase inteira, se assim se pode dizer dos que passaram dos 60. E nos misturamos,
também, com pessoas que iniciavam um profundo desvio em sua trajetória de vida: os
internos do hospital.
Esse encontro da diversidade, essa polifonia de vozes que ultrapassavam escalas
infinitas, era sem dúvida a marca da potência daquele lugar.
A violência anterior ao período da intervenção ainda estava virtualmente
presente nos corpos dos internos, e em suas inseguranças para exercer poder através do
diálogo e do exercício da decisão.
Cada um de nós, jovens profissionais que naquele momento mudavam de
cidade, carregava consigo um imenso calor que ultrapassava a noção dos tempos e
espaços, dos relógios e das ruas com semáforos.
Tanto assim que ficávamos, cada qual em sua enfermaria, durante muitas horas
entre os quartos e os corredores do hospital. Também saíamos às ruas com alguns
internos, reconhecendo os arredores e procurando o bar da esquina que nos brindava
com refrigerantes.
O corpo molhado de suor molhava-se por dentro com tais refrigerantes e com a
afetação produzida pela beleza de assistir os corpos dos internos, antes retraídos,
espalhando-se pelas ruas, como uma lula que vai desatando os nós que o tempo
produziu em seus tentáculos.
Para tornar nosso trabalho mais múltiplo e potente, resolvemos criar uma
pequena equipe para discutir com os internos as perspectivas futuras de trabalho. De
nada adiantava fazermo-nos de surdos, os internos traziam como desejo e projeto de
vida a inserção no trabalho, e convivíamos ainda com a situação de um conjunto de
46
internos que haviam sido despojados de suas antigas funções de manutenção e
vigilância no hospital: os assim chamados laborterápicos.
Nascia assim um grupo de profissionais, assistentes sociais, psicólogos,
terapeutas ocupacionais e enfermeiros, que foram denominados por toda a equipe do
hospital como o Núcleo do Trabalho.
OS LABORTERÁPICOS
A reunião começara. Vários homens com seus antigos jalecos azuis, que
antigamente os diferenciavam dos outros internos, tentavam reivindicar que se pensasse
com eles novas alternativas de vida.
Antigamente, eles é que faziam a limpeza do hospital, além de trabalhar na
cozinha e, sobretudo, manter a vigilância sobre os outros internos.
Recebiam uma importante delegação por parte da administração, que os
colocava num lugar de destaque hierárquico diante dos demais.
Digamos que fosse apenas um degrau acima, já que os demais degraus da
pirâmide, em sentido ascendente, estavam assim ocupados: os auxiliares de
enfermagem, os enfermeiros e os quase inexistentes psicólogos, e os médicos que, junto
com a administração, permaneciam alguns minutos na instituição, para lembrar a todos
os remanescentes que a função do hospital era mesmo guardar seus internos, do modo
como lhe foi recomendado pela grande sociedade.
O corpo ou a autoridade do médico, mesmo que virtual e não objetiva (já que
todos tinham que ficar muito pouco no hospital para debandar para seus consultórios
particulares), ainda era o que garantia legitimidade à instituição, atribuindo-lhe o nome
de hospital.
Os laborterápicos, penúltimo degrau, recebiam em troca de seus serviços alguns
maços de cigarro e uma comida um pouco diferenciada: pelo menos não era a famosa
―lavagem‖ a que os outros internos se referiam ao lembrar dos tempos em que passavam
fome no hospital.
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Composto em sua maioria por pessoas com problemas com o álcool, os
laborterápicos eram de fato um grupo que se autoisolava no hospício, empobrecendo e
negando todas as potencialidades da vida no território, porque assim se sentiam
valorizados e importantes, porque assim se sentiam um degrau acima de quem quer que
fosse, já que nas ruas sentiam-se na mesma base desvalorizada dos despossuídos.
Após meses de discussões e diversas tentativas de iniciar novas propostas de
trabalho, qual não foi nossa surpresa quando nos deparamos com o fato de que, com
exceção de três pessoas contratadas formalmente para trabalhar no hospital (uma na
cozinha, e outras duas para auxiliar na portaria), todo o restante preferiu deixar o
hospital a se inserir nos primeiros projetos coletivos de trabalho que então iniciávamos.
Dos que saíram, alguns voltaram a ocupar lugares sociais antes abandonados,
mas tornados sustentáveis com o suporte ambulatorial que os profissionais do hospital
passaram a lhes fornecer.
Outros, no futuro, viriam a compor as equipes dos projetos coletivos de trabalho,
tão logo alguns desses projetos fossem economicamente viáveis, possibilitando de fato
aos trabalhadores-usuários manter suas despesas com habitação, alimentação, vestuário
e tudo o mais que todos conhecemos bem.
Curiosamente, restaram como a grande maioria dos solicitantes por trabalho,
aqueles que havia muito tinham sido excluídos tanto do mercado de trabalho como do
mercado das relações sociais, que eram os internos mais comprometidos psiquicamente
e mais institucionalizados.
A COMPLEXA GÊNESE DO TRABALHO MODERNO
Trabalho não é sinônimo de emprego.
Há várias outras formas de atividade humana, em vigor desde sempre e ainda
hoje, que poderíamos chamar de trabalho, embora devamos considerar a proeminência
do trabalho assalariado no desenvolvimento das modernas sociedades ocidentais.
Com a impossibilidade de precisar a data de início da modernidade,
caracterizada de diversas formas por diversos autores,, e superando uma visão linear da
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história, onde os fenômenos vão se concatenando e mudando numa sequência lógica de
causa e efeito, podemos considerar que eventos modernos estiveram presentes desde a
época mercantilista das potências europeias coloniais. Estas agiam desde o século XV e
XVI de forma a promover a acumulação primitiva de capital, fundamental para o boom
da industrialização nos séculos XVII e XVIII.
É verdade que não foram apenas os eventos econômicos anteriores que
possibilitaram a emergência da industrialização. Dimensões políticas, religiosas,
científicas, morais, culturais, impulsionaram o processo nada linear da modernização,
que ainda hoje, no auge de seu desenvolvimento, convive com maneiras diversas,
consideradas rudimentares ou ultrapassadas, de produção de mercadorias.
É de uma experiência de trabalho que trata esta pesquisa. Trabalho realizado por
quem não combina com o paradigma do trabalho e, por isso, talvez, um trabalho
subversivo, ou um antitrabalho.
POR QUE PROJETOS COLETIVOS DE TRABALHO?
Os diversos atores envolvidos no processo de intervenção sempre pensaram que
algo haveria de ser modificado na relação com o mercado para que os internos
pudessem exercer seu direito e escolha de trabalhar.
Acredito que isso se deva ao fato de passarmos a nos comunicar de forma lisa
com os internos, de modo que o fluxo marítimo dos discursos nos fazia acessar as reais
necessidades deles, ou pelo menos fazer com que eles mesmos definissem o que seria
uma verdade e uma realidade.
Não era mais o discurso nosográfico da psiquiatria que diria o que eles sentiam e
queriam, ou o que eram capazes de fazer. A desconstrução desses conceitos e valores se
dava na trama de relações quentes que formavam novos conceitos e valores.
Aqui, o trabalho podia ser visto como uma das muitas possibilidades de
participar das cenas sociais, de dar novos sentidos às contradições sociais que
produziam até mesmo as instituições totais como agências produtoras de controle
disciplinar e violento.
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Mas não poderia ser qualquer trabalho, o mercado com suas injunções há muito
já enunciou que não há lugar para os loucos a não ser no manicômio. O modo de vida
que orbita a forma moderna de trabalho é o da racionalidade utilitária, que joga para a
margem ou tenta dizimar tudo aquilo que não seguir o paradigma da simplificação, da
miniaturização de possibilidades.
O mundo do trabalho é a antítese do mundo da loucura, e tentar adaptar e
normalizar os internos para que possam ser artificialmente encaixados no mercado é
nada mais do que fingir gozar algo que dificilmente ocorrerá.
Foi por isso que decidimos produzir experiências ricas em termos de produção
de sociabilidade, valores, relações, poder: os projetos de trabalho. Estes deveriam
forjar situações reais de trabalho coletivo, vinculados efetivamente ao mercado, mas
também provocando-o e produzindo sua reflexão crítica.
A ideia era superar a lógica da mercadoria, em que tudo é mercadoria, partindo
do próprio jogo da mercadoria, participando dele, e criando experiências inusitadas com
outros atores sociais, alianças mais alargadas que possibilitassem circular por dentro e
por fora do mercado, numa tênue linha cuja borda não poderia explodir.
Seria preciso entrar no jogo da mercadoria, produzindo valor e dinheiro, e sair
dele, produzindo vida e sociabilidade, promovendo encontros e fazendo entrar em
erupção a multiplicidade e as potencialidades adormecidas da existência, enriquecendo-a.
Enfim, o que diferencia a proposta de construção de projetos de trabalho das
tradicionais propostas laborterápicas é que não se busca uma inserção subserviente ao
mercado, através de processos de normalização e adaptação. O que se busca são
modificações negociadas e de mão dupla: transformações nos usuários-trabalhadores
através do exercício do poder e da descoberta de novas potencialidades e formas
inéditas de produzir, e transformações nos contextos de trabalho e no próprio mercado,
produzindo novos contextos acolhedores e ao mesmo tempo desafiadores.
As práticas laborterápicas baseiam-se na produção de corpos dóceis (Foucault),
no treinamento de hábitos de trabalho, de comportamentos adequados, limitados e
subservientes, nada questionadores. A partir delas, foram desenvolvidos programas de
treinamento para a futura inserção no mercado, ou formas mais ou menos veladas de
exploração e de enrijecimento de possibilidades: assim o eram os contratos de empresas
50
– comuns ainda nos anos 1980 – que destinavam parte do processo produtivo a
instituições que atendiam pessoas com deficiência mental (por exemplo, a montagem de
pregadores de roupas, bolas de futebol, ou outro produto de confecção simples). Tais
práticas, que eram muito mal remuneradas, pois se considerava este um trabalho de
segunda linha que mais ajudava às pessoas com deficiência do que às empresas, não
permitiam que os trabalhadores se apropriassem do processo de trabalho, muito menos
do valor gerado por ele. Muitos trabalhadores nem sabiam o quanto recebiam, e não
tinham a menor ideia do processo em que estavam envolvidos. Apenas os profissionais
das instituições é que se apropriavam das informações e tomavam as decisões, já que, a
priori, os trabalhadores eram considerados incapazes de responder por si. Não se
investia nas capacidades e potencialidades dos trabalhadores, e apenas se reforçava sua
limitação perante um contexto estéril de possibilidades. Atualmente, ainda com base na
tecnologia do treinamento de hábitos de trabalho, desenvolvem-se em várias instituições
programas de inserção no emprego, aproveitando-se da brecha que obriga as empresas a
contratar certo percentual de pessoas com deficiências. Estas inserções, mais uma vez,
por serem individuais, e por muitas vezes não envolverem funções reais e necessárias,
sendo voltadas apenas para a resolução dos problemas das empresas com as leis,
acabam reforçando o aspecto estigmatizante e discriminatório de incapacidade,
imaturidade, invalidez das pessoas que possuem alguma deficiência. O caráter
invalidador está no próprio fato de essas pessoas muitas vezes serem desnecessárias às
organizações (é óbvio que há casos bem-sucedidos, mas dentro dos padrões alienantes
do mercado).
A proposta dos projetos coletivos de trabalho surge como forma alternativa e
substitutiva às formas alienantes de inserção no mercado, que só reproduzem os valores
que geram as invalidações, as exclusões e o aprisionamento a uma vida empobrecedora
em torno da mercadoria. Um projeto coletivo de trabalho busca novas formas de relação
com o mercado, questionando as formas fixas e autoritárias de se fazer as coisas,
desmistificando as relações com a mercadoria e o dinheiro, já que o que se busca é criar
estratégias para a multiplicação das relações, das alianças entre grupos e instituições,
através da participação efetiva no mercado.
Participar de um projeto coletivo de trabalho é produzir novas normas e valores,
desde o interior do mercado. É produzir espaços de pertencimento e de acolhimento que
sejam terreno propício para a descoberta de potencialidades e o exercício de poder. É
51
produzir espaços potentes e consolidados de enfrentamento de desafios e riscos. É
trabalhar sobre projetualidades que representem efetivamente modificações nos fluxos
de poder, mudanças concretas e subjetivas (na forma de se relacionar e estar no mundo,
e no acesso a bens e serviços), iniciando percursos coletivos que vão produzindo uma
multiplicidade de possibilidades.
Isso é o que diferencia os projetos coletivos de trabalho dos estagnados e
mortificadores projetos laborterápicos, exigindo que os usuários-trabalhadores assumam
novos papéis e identidades múltiplas, redefinindo e somando outras identidades à sua
histórica identidade de pacientes. Tal processo exige também que os profissionais de
saúde mental tornem múltiplas as suas funções de cuidadores-terapeutas e as redefinam,
possibilitando que os outros atores sociais também revejam sua forma empobrecida de
estar no mundo.
TERRA
Ele não foi o primeiro projeto de trabalho, o Projeto Terra. Mas suas primeiras
incursões na busca pelos caminhos que levassem ao arriscado e temido mercado
começaram ainda no primeiro ano da intervenção, quando buscávamos parcerias para
ocupar os mais diversos espaços sociais, e assim produzir no imaginário social efeitos
compatíveis com o processo de transformação por que passavam os internos.
Era isso, não haveria como transformar os internos sem transformar a sociedade
e seus valores, e sem que também fossem transformados os papéis dos que receberam a
delegação social de cuidar e de proteger – o que em última instância significava
segregar, separar, destruir –, ou seja, os técnicos de saúde mental.
Agora o novo papel dos técnicos deveria ser adentrar os espaços sociais junto
com os usuários, mediando relações, possibilitando que os últimos fossem protagonistas
de transformações e, assim, encontrassem outro lugar no mundo.
As relações mudam, os corpos mudam, os fluxos discursivos se modificam, os
processos coletivos se modificam, e assim a multiplicidade do humano tem mais chance
de aparecer.
52
Para isso ser alcançado cotidianamente, se fazia necessário multiplicar os atores
envolvidos, de forma que esse diálogo não se resumisse apenas aos representantes da
psiquiatria e da saúde mental e aos internos a quem deveríamos cuidar.
A potencialidade desse recurso – o envolvimento de outros atores de fora do
campo da saúde mental – residia na possibilidade de transformação dos próprios atores
envolvidos, ou seja, quando os atores de fora do campo da saúde mental, bem como os
técnicos, se sentissem em processo de transformação, então os usuários dos serviços de
saúde mental também estariam nesse processo.
O interventor do Anchieta, a partir do secretário de saúde e futuro prefeito,
abriu, a princípio, os canais de todas as secretarias municipais para que elas estivessem
dispostas a estabelecer parcerias com o Programa de Saúde Mental, na construção de
projetos de trabalho e outros.
Foi assim que conseguimos utilizar o espaço do Horto Municipal para o primeiro
curso de jardinagem dedicado aos usuários, e que conseguimos da Secretaria do Meio
Ambiente todo o apoio para que os engenheiros agrônomos e jardineiros
acompanhassem o desenvolvimento do Projeto Terra, não só na questão técnica e
paisagística, mas no fornecimento de equipamentos e insumos.
Foi também dessa secretaria que partiu a permissão para a construção da estufa
destinada à produção de mudas e à venda de vasos com plantas ornamentais. Ela
também mediou os primeiros contatos entre as empresas interessadas em adotar praças e
os nossos usuários, no sentido de as primeiras contratarem os serviços dos segundos
(através de uma associação que criamos), em grupo, para cuidar das praças.
A Secretaria de Esportes, por sua vez, disponibilizou alguns colaboradores
experientes em jardinagem, que passaram a compor a equipe do núcleo.
Enfim, foi assim que o Projeto Terra foi se enraizando, até chegar a ter em sua
caderneta de clientes cerca de 15 empresas, uma universidade, um clube, e serviços
pontuais de jardinagem em residências.
Na verdade, mais que uma raiz, esse projeto era um rizoma, já que todas as suas
partes se comunicavam entre si, seja através das reuniões semanais onde usuários e
técnicos planejavam e discutiam o cotidiano de trabalho, seja nas reuniões de
53
negociação e parceria com outros atores, seja na execução concreta dos serviços e
projetos a eles vinculados.
A estratégia de envolver outros atores de fora do campo da saúde mental nos
projetos de trabalho é um diferencial importante com relação às antigas práticas
laborterápicas. Isso porque esse envolvimento dá aos usuários-trabalhadores a
possibilidade de ocupar novos espaços sociais, novas funções, novos papéis,
multiplicando suas relações e seus contratos.
A relação da proposta laborterápica com os outros atores sempre reforçou e
legitimou a incapacidade e a menoridade dos treinandos, fortalecendo a ideia de que os
espaços possíveis de vida e de troca seriam apenas as instituições de reabilitação.
Fossem monitores de ofício a lidar com os treinandos, fossem os empresários que
filantropicamente lhes designassem alguma tarefa simples como parte da produção, as
mensagens emitidas e reforçadas sempre foram a do limite, a da insuficiência, já que
não se questionavam os contextos e as normas.
O envolvimento de outros atores no desenvolvimento de projetos coletivos de
trabalho permitiu a tomada do trajeto contrário, abrindo possibilidades através da
qualificação do trabalho, da descoberta de formas coletivas de venda de produtos e
serviços com garantia de qualidade. Criando um arcabouço potente de recursos variados
(profissionais de diversas áreas produtivas, secretarias municipais, recursos materiais,
profissionais de saúde mental), se garantia um serviço/produto de qualidade, mas
diferenciado, uma vez que se produziam também novas relações, novos valores, novos
contextos.
Além de qualificar o trabalho e a tarefa em si, a participação de novos atores de
fora do campo da saúde mental possibilitava agregar ao processo novas sensibilidades,
novas percepções, novos valores para a existência. Nessa via de mão dupla, todos se
transformavam, mudavam a forma de ver a vida. Não porque se sentissem fazendo
caridade, mas porque descobriam que utilizamos apenas parte de nossa inteligência e
capacidade, que somos cegos para novas possibilidades. Nosso modo de existir e nossas
capacidades começam a ser questionados como únicos parâmetros de viver a vida.
Desse modo, as coisas vão mudando na prática cotidiana e os usuários-
trabalhadores vão construindo novas relações que antes lhes eram proibidas, já que seu
54
discurso só poderia ser traduzido pelos profissionais de saúde mental. Essa
desmistificação produz novas possibilidades, questionando a pobreza e a simplificação
dos conhecimentos e das práticas. Ela, então, torna-se o fio condutor de uma forte
crítica à laborterapia e ao paradigma psiquiátrico.
TRABALHO PRODUTIVO DE MARX
Marx (1982, 1985, 1988) desvendou os mecanismos do capitalismo, e nele
encontrou o lugar que o trabalho ocupou como peça central da produção e acumulação
de capital.
Se a mercadoria é a célula-mater do capitalismo, o trabalho é o seu mecanismo
de condução.
A transformação do trabalho e do trabalhador em força de trabalho veio
conciliada à separação do produtor dos meios de produção.
O trabalho vivo foi transformado em trabalho morto, inerte na mercadoria.
O trabalho concreto foi metamorfoseado em trabalho abstrato, separando o
produtor do produto, substituindo a criatividade pela simples energia física e mental
alienada da própria ação.
O trabalho abstrato é determinado pelo tempo socialmente necessário para se
fazer determinado produto; tempo cujo controle é expropriado do trabalhador.
A mais-valia é o mecanismo que veio explicar o tempo de trabalho excedente
que o trabalhador concede ao empregador. O primeiro vende o tempo de sua força de
trabalho, que produz muito mais do que recebe em troca.
É a mais-valia que delimita a noção de trabalho produtivo em Marx. Produtivo
porque serve à produção e à multiplicação do capital. Porque o feijão que a cozinheira
faz na sua casa não advém de um trabalho produtivo, enquanto este mesmo feijão, feito
no restaurante em que essa moça trabalha, é o produto efetivo de um trabalho produtivo,
pois este apetitoso feijão será transformado em capital, simultaneamente à
transformação que sofrerá no estômago dos clientes.
55
Esse é o mundo do trabalho que, indiretamente, ajudou a implantar as
instituições de controle e segregação que conhecemos.
A psiquiatria tem muito a agradecer a ele e, de certo modo, não há como
desconstruir o manicômio sem desconstruir em parte esse mundo do trabalho e da
mercadoria.
Mas talvez haja novos elementos a considerar sobre os mecanismos do trabalho,
além da radiografia fundamental desvendada por Marx. O valor das mercadorias parece
se vincular cada vez mais a diferentes elementos, tão virtuais como os que compõem
nossas formas contemporâneas de comunicação. Outros fatores parecem agregar valor
aos produtos, para além do tempo socialmente utilizado em sua produção e da lei da
oferta e da procura. A sedução vem em escalas de gigabytes e o distanciamento entre
produção real e investimento financeiro vai trazendo cada vez mais o mundo da
produção para o campo do invisível e do suprassensível.
MULTIPLICIDADE DE PROJETOS
Uma das estratégias da implantação dos projetos de trabalho foi priorizar a
escolha de atividades produtivas diversificadas, apontadas a partir da escuta das
necessidades e brechas do mercado e das possibilidades de se levantar recursos
(humanos, materiais, parcerias) para seu desenvolvimento (Kinker, 1997).
Essa diversidade servia para enfatizar a multiplicidade de experiências e ampliar
as possibilidades de escolha e de inserção participativa.
Ela considerava também a capacidade do mercado de absorver determinada
demanda de consumo, levando em conta as realidades da concorrência, a disposição de
setores (das empresas privadas, das empresas públicas, das entidades) para o
estabelecimento de alianças, os recursos básicos de que a própria instituição necessitava
para iniciar um projeto de trabalho.
É importante também salientar que a entrada dos usuários nos projetos de
trabalho não se baseava no esquadrinhamento de seu diagnóstico clínico, mas partindo
de sua biografia, da prospecção de suas capacidades, expectativas e possibilidades
(Nicacio, Kinker, 1996).
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Foi assim que se iniciaram experiências de trabalho coletivo, todas com a
denominação comum de ―Projetos‖, como a triagem e venda de materiais recicláveis, os
serviços de jardinagem em praças públicas e terrenos particulares, os serviços de
desinfecção de reservatórios de água, a marcenaria, o grupo de culinária, o grupo de
serigrafia, a equipe de manutenção predial, a fábrica de blocos de construção, o grupo
de construção civil, entre outros projetos, todos produzindo recursos financeiros.
Esses recursos possibilitaram que pacientes há muito institucionalizados no
hospital psiquiátrico pudessem retomar a construção de suas vidas na cidade, pagando
do próprio bolso os custos de moradia, transporte, alimentação, lazer, vestuário. Ou
então possibilitaram novos diálogos com as famílias, que passaram a ver seu familiar
doente mental como alguém capaz de contribuir significativamente com as despesas da
casa, ocupando outro lugar de poder e valor social.
É claro que esse percurso foi gradual e cheio de desafios, exigindo dos
profissionais do Núcleo do Trabalho, em conjunto com os dos NAPS, um investimento
intenso no acompanhamento e na mediação dos usuários em sua relação com o trabalho
e com todos os atores desse contexto: desde a saída no começo da manhã para ir junto
com os usuários iniciar o trajeto para a ocupação dos postos de trabalho, até que estes
se sentissem fortalecidos para fazer isso sozinhos, até o apoio para a organização dos
usuários enquanto equipes de trabalho e, muitas vezes, na organização cotidiana de seus
novos hábitats de existência, casa, pensão.
O contato e a construção cotidiana com os NAPS permitiam que a equipe do
núcleo – que posteriormente receberia o nome de Unidade de Reabilitação Psicossocial
– participasse efetivamente da construção de um Sistema de Saúde Mental que pouco a
pouco levaria à substituição total do manicômio.
A integração da equipe da Unidade de Reabilitação Psicossocial com as equipes
dos Núcleos de Atenção Psicossocial possibilitava a construção de uma base de
conhecimentos coletivos que aprofundavam as táticas de multiplicação das redes
sociais, bem como fortaleciam a descoberta de novas possibilidades e recursos
comunitários.
Essa integração se dava através de atendimentos conjuntos, visitas aos locais de
trabalho ou de moradia realizadas conjuntamente, atendimentos familiares conjuntos
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quando necessário e, principalmente, através de reuniões frequentes entre membros das
duas equipes, para avaliar o trabalho e pensar em estratégias conjuntas de intervenção.
Em princípio, a equipe do núcleo se encarregava prioritariamente de viabilizar e
acompanhar os projetos de trabalho, enquanto as equipes dos NAPS teciam junto ao
usuário o sentido de seu projeto de vida em seus outros âmbitos.
No começo do processo, porém, no momento em que a equipe do núcleo dividia
seu tempo entre o trabalho dentro das enfermarias e a constituição dos projetos de
trabalho (no momento em que os NAPS ainda não estavam implantados), muitas
situações exigiam que ela se dedicasse aos vários âmbitos da vida dos usuários, e não
apenas à questão do trabalho.
De todo modo, o lugar dos projetos de trabalho era organicamente vinculado aos
vários serviços de saúde mental, o que fazia com que se produzissem conhecimentos
coletivos entre profissionais e usuários, e se superasse a artificial separação entre lugar
de tratamento, lugar de reabilitação, lugar de prevenção e lugar de produção de vida.
Aqui, o objetivo de todos era mediar as relações e apoiar os usuários na
construção de seus projetos de vida, e na tessitura concreta de novas redes sociais.
Estar trabalhando não significava um momento posterior ao tratamento, muito
menos sinal de cura, mas a possibilidade de ampliar o arco de relações, descobrir e
exercer potencialidades, tecer uma condição de vida e de relações sociais que fossem
produtoras constantes de subjetividade.
O objetivo era viver o mais ricamente possível, num devir de transformações de
contextos, identidades e subjetividades.
E, talvez sem perceber de forma tão explícita, estávamos mostrando que era
possível viver as contradições sociais sem anular um de seus polos, que eram as pessoas
que desviavam e que expressavam uma ―existência-sofrimento em sua relação com o
corpo social‖ (Rotelli, 1990).
A iniciativa de ocupar múltiplos espaços sociais é outra característica que
diferencia os projetos coletivos de trabalho das propostas laborterápicas. A noção de
lugar/local específico para a prática de reabilitação é questionada, uma vez que o que se
buscava era a multiplicação de espaços e possibilidades, era a abertura e não o
58
fechamento. Estando os projetos em vários lugares, era possível propor o convívio e o
compartilhamento de espaços, numa nova relação entre o que é considerado normal e
anormal. Essa dicotomia era superada concretamente no exercício artesanal de tecer
novos territórios e novas alianças.
A multiplicidade de projetos está associada à multiplicação de experiências e ao
fortalecimento do protagonismo. Inversamente ao que as tradicionais práticas
ergoterápicas propõem, as pessoas com sofrimento psíquico grave, além de poderem ter
maior liberdade para se experimentar em tarefas e lugares diferentes, podem exercer
poder decisório e ser protagonistas dos processos de trabalho. A construção de projetos
passa a depender essencialmente da participação dos usuários-trabalhadores. Os projetos
não ocorrem apesar deles, como se pode verificar nas instituições que reproduzem o
controle social do desvio, mantendo seus clientes dentro de certos limites e em áreas
com pouca possibilidade de circulação, experimentação e exercício de poder. Isso
acontece porque o paradigma que os sustenta e legitima ressalta sempre as
incapacidades e impossibilidades determinadas pela doença, sem questionar o quanto as
respostas que oferecem estão implicadas na produção do fenômeno.
Num lugar onde é possível exercer o poder, a multiplicidade de projetos se torna
uma estratégia importante para a invenção de novas práticas e a descoberta de novas
potencialidades.
FÁBRICA DE BLOCOS
Acompanhei o interventor numa reunião com o presidente da Prodesan9, com o
intuito de acertar os detalhes de implantação da Fábrica de Blocos, que se daria num
terreno da Prodesan em Bertioga, mas que seria gerenciado pela Cohab-ST10
.
9 Prodesan (Progresso de Desenvolvimento de Santos) é uma empresa mista, que tem como objetivo
fornecer à prefeitura uma série de serviços. Como empresa meio pública, meio privada, ela era
responsável sobretudo pela execução da limpeza urbana de Santos, e ainda desenvolvia algumas obras de
engenharia.
10 Cohab-ST (Companhia de Habitação da Baixada Santista) é uma empresa pública responsável pela
política de habitação do município. Desta forma, ela executa ou contrata serviços de construtoras, visando
à construção de habitações populares.
59
Foi incrível como o interventor defendeu a seriedade do projeto e os direitos dos
usuários-trabalhadores, quando o presidente da empresa classificou como filigrana uma
das questões de organização do espaço que interfeririam no processo de trabalho.
De fato, havia uma advocacia consistente em nosso objetivo de inserir os
usuários do Anchieta nas trocas sociais.
Só que não era uma advocacia que reivindicava direitos de tutela, mas que exigia
seriedade e a construção de processos reais de trabalho.
Não seria bem-vindo um processo que empregasse os usuários no trabalho
apenas por filantropia, nem tampouco que desacreditasse de suas reais capacidades.
Nem seria aceito um tipo de relação que colocasse o trabalho dos usuários como uma
concessão definida pelo governo municipal.
Fugíamos da possibilidade de criar situações de faz de conta, onde se fingisse
estar trabalhando, onde se fingisse estar consumindo e necessitando desse trabalho,
onde os usuários fossem tratados como que numa condição de menoridade.
Estávamos cientes e fartos daquilo que a psiquiatria produziu historicamente em
termos de laborterapia, de treino de hábitos de trabalho, em termos de treino permanente
e eterno em busca de uma suposta e futura inserção no mercado, que dificilmente se
daria.
Queríamos que o trabalho fosse real e que seu consumo e uso fossem
necessários.
Queríamos que o trabalho possuísse qualidade, e que, ao mesmo tempo,
garantisse o modo singular de estar no mundo de seus trabalhadores.
Queríamos reproduzir situações de trabalho em equipe similares às que nós,
enquanto equipes de saúde mental, vivenciávamos. Situações onde coubessem nossas
singularidades, dificuldades e potencialidades.
Era isso que solicitávamos das empresas e secretarias municipais parceiras dos
projetos de trabalho, e que traduzia por certo uma demanda da totalidade de seus
trabalhadores, sendo estes pacientes ou não: protagonismo, uso da criatividade,
reconhecimento de suas pegadas e ações no mundo social.
60
O presidente da Prodesan se irritou um pouco com o interventor, que
reivindicava respeito e aliança efetiva, mas concordou que o processo deveria ser real e
que isso fazia parte de um projeto mais amplo de transformação da cidade e,
consequentemente, de transformação das pessoas que a habitavam.
A fábrica, com o aval da Prodesan, foi instituída num belo terreno às margens do
rio Itapanhaú, onde as filas de tainha transitavam num fluxo tão intenso como o da
avenida Paulista.
A Cohab-ST, por sua vez, patrocinou muitas reuniões entre a equipe do núcleo e
seus técnicos, para planejar a implantação efetiva da fábrica no terreno da Prodesan.
Foram realizadas várias visitas a outras fábricas, para se pesquisar os melhores e
mais adequados equipamentos, e estudar a dinâmica de funcionamento da produção.
A expectativa era que os blocos que seriam produzidos pelos usuários em
Bertioga fossem utilizados na mais importante obra de construção de casas populares de
Santos: o projeto de urbanização do Dique da Vila Gilda.
A construção de alianças com a maioria das secretarias municipais era um dos
recursos que utilizamos para nos fortalecer e adentrar o território. As secretarias
municipais costumam ser agentes ricos em possibilidades, uma vez que desempenham
funções diversificadas e que se relacionam intimamente com vários grupos sociais.
Essas alianças com as secretarias possibilitariam, no futuro, a ampliação do arco de
alianças com outros atores sociais, desde empresas privadas até movimentos sociais.
O GRUPO DE TRABALHADORES DA CONSTRUÇÃO CIVIL: PROJETO DIQUE
Articulado a esse projeto da Fábrica de Blocos estava o projeto de formação de
trabalhadores na construção civil, que chamamos de Projeto Dique.
Tratava-se de um grupo de usuários dos serviços de saúde mental que
trabalhariam na obra de reurbanização do Dique da Vila Gilda, utilizando os mesmos
blocos produzidos por seus companheiros da Fábrica de Blocos.
Os usuários-trabalhadores comporiam como que um grupo de estagiários que
trabalhariam na obra à medida que aprendiam também as mais diversas funções e
61
ofícios. Eles receberiam uma bolsa-trabalho paga pela Cohab-ST à Afrent11
, oficializada
a partir de um convênio de mútua colaboração entre a Cohab-ST, a Afrent e o Anchieta.
Os técnicos do núcleo acompanhavam os usuários-trabalhadores durante alguns
períodos na semana e realizavam com eles reuniões semanais de trabalho no próprio
terreno da obra.
Quem acompanhava cotidianamente os usuários era um dos operários da obra,
que se responsabilizava também por inseri-los em situações diversas, de forma que estes
aprendessem os vários tipos de serviços que compunham uma obra daquele porte.
Pode-se dizer que existe muito de loucura nas paredes das casas que vieram a
substituir as terríveis palafitas do Dique da Vila Gilda, um lugar de águas escuras e
sujas onde por vezes morriam crianças que despencavam dos estreitos corredores de
madeira que ligavam as casas entre si.
Sim, os usuários participavam de um dos projetos mais dignos de intervenção na
cidade, talvez tão digno como o que os libertou dos grilhões do manicômio, a partir da
intervenção. Melhor dizendo, participavam do processo de desinstitucionalização que se
iniciava no manicômio, mas que se estendia a esses projetos de intervenção na melhoria
de vida dos cidadãos da cidade.
O trabalho no dique pertencia ao mesmo processo de desinstitucionalização.
Como disse antes, os usuários dependiam da transformação dos habitantes da
cidade para se transformar. Negávamo-nos a reproduzir as relações que limitavam o
11
A Afrent (Associação de Apoio às Frentes de Trabalho Alternativas) era uma organização não
governamental sem fins lucrativos, criada em 1990 por profissionais do Programa de Saúde Mental e da
Secretaria de Ação Comunitária, com o intuito de estimular e apoiar a implantação de projetos de trabalho
coletivos por parte de grupos populacionais marginalizados. Esse apoio se dava através de
financiamentos, empréstimos a juros zero e apoio técnico a grupos de produção. Efetivamente, como os
componentes da Afrent estavam inseridos em propostas de inserção no trabalho desenvolvidos pela
prefeitura, muitos dos projetos da área da saúde mental, mas não apenas estes, receberam recursos dessa
associação para dar início a seus trabalhos. Além disso, como se verá, a Afrent participou de convênios
com empresas públicas para viabilizar o pagamento das bolsas-trabalho para os usuários vinculados ao
Núcleo do Trabalho. A ONG era um instrumento importante dos projetos de trabalho, uma vez que
naquele momento ainda não havia amadurecimento suficiente para que os próprios participantes dos
projetos de trabalho pudessem se autorrepresentar através, por exemplo, de uma cooperativa de trabalho
ou de uma associação. Com a inauguração, no futuro, da Cooperativa Mista Paratodos, vários dos
convênios estabelecidos pela Afrent migraram para a cooperativa.
62
vínculo dos usuários-trabalhadores apenas aos profissionais de saúde mental e à
instituição psiquiátrica, como se esta fosse dona dos loucos e a única a valorar e traduzir
seu discurso. Ocupando outro lugar social, os usuários-trabalhadores passavam a fazer
parte do cotidiano da cidade, desenvolvendo ações que os vinculavam e os faziam
cuidar das outras pessoas. Bela reciprocidade de papéis, uma vez que aqui os ditos
anormais cuidavam dos normais e vice-versa.
E o futuro foi chegando quando alguns dos usuários-trabalhadores prestaram
uma das seleções de novos trabalhadores e passaram a compor o quadro efetivo da
Cohab-ST, passando da condição de estagiários à de servidores públicos de uma
autarquia.
FORÇOSA ENTRADA DO TRABALHO ASSALARIADO NO OCIDENTE
Embora os iluministas se colocassem contrários ao trabalho forçado, não
podemos negar que a entrada do trabalho assalariado no cotidiano das populações
campesinas a partir do século XVII e XVIII foi avassaladora, exigindo toda sorte de
mecanismos forçosos.
Não nos esqueçamos de que toda sorte de estratégias de disciplinarização foram
adotadas para garantir a efetiva destruição das antigas relações de parentesco, de
vínculo com os tempos da natureza, de pertencimento à terra e ao senhor de terras, de
conjunção entre lar e trabalho, tempo livre e tempo ocupado (que não existiam
separados e opostos).
Junto à fábrica, foram sendo criadas outras instituições complementares, como
forma de reforçar e construir a nova forma de estar no mundo, as novas sociabilidades
pautadas na noção moderna de trabalho.
Escolas, fábricas, asilos, hospitais, manicômios, todos seguiram as novas
diretrizes ditadas pelas necessidades da nova forma de estar no mundo, pautada na
venda da força de trabalho.
Não é a toa que o manicômio nasceu no início do século XIX com a missão de
recuperar os sem juízo para comporem a nova sociedade, e que a primeira técnica
utilizada por Pinel recebeu o nome pouco disfarçado de ―tratamento moral‖. As mesmas
63
técnicas de subjugação nas fábricas eram utilizadas para forçar a difícil entrada dos
loucos no novo mundo dominado pelo trabalho.
A noção moderna de trabalho nos transformou numa ―sociedade de
trabalhadores sem trabalho‖, como lembrou Hannah Arendt (2001).
É isso: após um enorme investimento nas subjetividades e nos corpos para
discipliná-los para o trabalho, processo que obteve muito sucesso em seus objetivos,
chegamos a um tempo em que, estando totalmente submetidos e convencidos de que o
sentido da vida é o trabalho assalariado, vivenciamos as mudanças no mundo do
trabalho influenciadas pela terceira revolução industrial, pelo avanço da microeletrônica
e das novas técnicas de organização do trabalho. Há evidências de que, daqui em diante,
haverá menor necessidade de trabalhadores, e um novo tipo de desenraizamento tende a
ocorrer, a exemplo do que já vem ocorrendo com as sucessivas diásporas dos povos do
Leste europeu, da África e da América Latina, em direção aos países centrais. Mesmo
considerando que sempre haverá bordas do mercado a serem preenchidas com o
trabalho menos qualificado, parece ser grande a possibilidade de que um número menor
de postos de trabalho reste como consequência do desenvolvimento das forças
produtivas. Tal situação nos leva a pensar o quanto novas formas de produção de
sociabilidade e de existência são desejáveis, de modo a tornar o momento atual um
trampolim para conquistas positivas, ao invés de um abismo para a destruição. As
noções de projetos coletivos de trabalho e de vida talvez possam servir como
possibilidade de enriquecimento da existência de todos aqueles expulsos do mercado e
daqueles que hoje lá se encontram. Ao mesmo tempo, as mudanças no mundo do
trabalho exigem que as práticas que discutem a inserção no trabalho como garantia de
direitos de cidadania das populações vulneráveis sejam revistas, por dois motivos: por
conta das mudanças nas configurações do mercado, que dificultam qualquer inserção;
porque devem ser encontradas outras formas de sociabilidade enriquecedoras que
prescindam do trabalho.
GRUPOS E COLETIVOS, SUJEITOS COLETIVOS
Uma das características dos projetos de trabalho que criamos era que eles eram
sempre desenvolvidos em grupo, através de frentes de trabalho, cuja organização se
64
delineava em reuniões de trabalho, através da divisão de tarefas, do estabelecimento de
projetos e perspectivas coletivas, da discussão e do compartilhamento de dificuldades.
Foi assim que se buscou viabilizar o trabalho de pessoas singulares, em sua
maioria vivenciando grave sofrimento psíquico e experiências de fragilização.
As contradições existentes nas situações em que pessoas diferentes produzem
em patamares de produtividade muito diferentes criavam embates que colocavam o
projeto coletivo em xeque: ou se assumia a produção de novos e autênticos valores ou
se reproduzia a valoração ditada pelas regras do mercado.
Esse processo era uma pista de mão dupla, uma vez que o bombardeio cotidiano
de mensagens valorativas patrocinadas e viabilizadas pelos instrumentos do mercado
não permitia a livre fluência da produção de uma nova cultura, e era comum que em
certos momentos alguns integrantes do grupo reproduzissem os discursos da exclusão,
especialmente, mas não apenas, os sujeitos que produziam mais e que eram menos
frágeis.
Eram as discussões em grupo, em conjunto com as experiências práticas
cotidianas e as contradições delas decorrentes, que criavam os espaços de continência e
de produção de conhecimentos para todos.
Era dessa forma também que os participantes podiam se sentir pertencendo a um
coletivo, em primeira instância dependentes de relações de solidariedade e
reciprocidade. Um coletivo que poderia também propor projetos coletivos capazes de
ultrapassar a questão do trabalho, alcançando outros âmbitos da vida.
Algumas possibilidades se formavam, como, por exemplo, a ida coletiva à praia
no final de semana, já que o acesso individual a esse espaço social às vezes se tornava
difícil e custoso, para quem viveu uma história de exclusão e fragilização.
Outro exemplo vivido foi o do intenso surgimento de namoros e mesmo de
alguns casamentos entre os integrantes de alguns projetos de trabalho.
O compartilhamento coletivo e a constituição de projetos de trabalho fortaleciam
e produziam novas subjetividades, que assim se arriscavam a ter cada vez mais
experiências e a se tornar sempre novos atores sociais.
65
As contradições nunca eram superadas, mas fazíamos o possível para conviver
bem com elas, pensando em ações que as mobilizassem e as levassem ao limite.
Por exemplo, por vezes chegamos a discutir com os integrantes dos grupos de
trabalho se a divisão dos recursos por hora de trabalho seria suficiente para dar conta
das diferenças no grau efetivo de participação e resolução das tarefas nos serviços
prestados.
Apesar das dificuldades de se chegar a uma fórmula inovadora, sabíamos que,
para alguns usuários muito graves, ir ao trabalho duas ou três vezes por semana era algo
que provocava revoluções moleculares e subjetivas, vinculadas à sensação de se
experimentar em situações diferentes e de participar de uma tarefa coletiva que produzia
efeitos em terceiros, em clientes e na cidade, além do fato de se sentirem protegidos e
atuantes num coletivo.
Essa participação certamente também dependia da participação dos usuários que
trabalhavam todos os dias e num ritmo mais acelerado, ou numa condição de conseguir
vislumbrar melhor o todo da tarefa a ser cumprida, suas fases, o tipo de organização
necessária ao grupo.
Todas essas discussões eram ricas e faziam parte de um projeto de vida em que
os usuários estavam fortemente vinculados, um projeto de vida que eles tomavam em
suas mãos como a forma de produzir a melhora ou a modificação de seu próprio
sofrimento e de sua condição de existência. Esse protagonismo superava a situação de
subalternidade e de coisificação decorrente das práticas laborterápicas. Decidir sobre
projetos sérios e de importante repercussão social era um desafio e tanto para os
usuários (e também para os profissionais).
Nada mais terapêutico do que o circular socialmente, exercendo o poder de
afetar as decisões, participar dos discursos e da produção da realidade que esses
discursos levam adiante.
DÁ UM TEMPO, JONAS!
Jonas era um senhor de quase 60 anos de idade, designado pela Prodesan, a
empresa mista responsável pela limpeza urbana da cidade, para gerenciar
66
cotidianamente a usina de reciclagem do projeto Lixo Limpo, o primeiro projeto de
trabalho que efetivamente possibilitou que vários internos do Anchieta deixassem o
hospital e se mantivessem economicamente com os próprios recursos.
Jonas era um homem sempre bem vestido, daqueles que dão a impressão de estar
impecavelmente limpos, tanto corporal quanto moralmente. Usava uns óculos de lentes
grossas que por vezes ficavam na ponta de seu pontudo e brilhante nariz, e falava com a
suavidade de um tapete de lã, palavras que muitas vezes pareciam entrar e não sair da
boca.
Mas esse ar de monge tibetano guardava em seu interior a ambiguidade que
todos possuímos e, às vezes, Jonas não era tão bom-moço assim. Vivia reclamando e
fazendo ironias sobre os usuários que tinham mais dificuldades para trabalhar, ou,
sejamos claros, possuíam um jeito muito singular de separar o material reciclável.
Muitos se deliciavam na esteira com as quinquilharias que apareciam, desviando
um pouco a atenção do ato de separar os materiais em baias próprias; outros iam muito
ao banheiro, como a nos informar que não tínhamos o direito de colocá-los numa esteira
fordista.
As conversas com os usuários-trabalhadores eram muitas, para que
conseguissem dividir seus interesses entre a separação de materiais e o seu
desvendamento e gozo.
As conversas com Jonas eram muitas, explicando que não poderíamos
reproduzir um sistema taylorista, mas que poderíamos ver estratégias de intervir e
mediar as relações dos usuários com o trabalho, de forma a conseguir o desejado
produto final e a satisfação de seus trabalhadores.
Mediação e negociação eram as palavras-chave do trabalho no Núcleo, bem
como ação, continência, tolerância, espírito crítico, reflexão, contextualização,
transformação.
Com certeza o ambíguo Jonas também se modificou, percebendo que a sujeira
também tem seu encanto. Afinal, estávamos num lugar também de nome ambíguo:
LIXO LIMPO.
67
As negociações para a implantação do Projeto Lixo Limpo se deram no âmbito
da Secretaria de Ação Comunitária (Seac), do Anchieta e da Prodesan. A Seac queria
envolver no projeto também os carrinheiros (homens e mulheres que puxavam carroças
para o recolhimento de materiais recicláveis expostos nos lixos das casas) e as pessoas
em situação de rua.
Foram longas as negociações, mas conseguimos viabilizar o primeiro projeto de
trabalho com a característica de oferecer à população da cidade um serviço que era de
seu interesse, e que a envolvia diretamente, já que cabia a ela separar no domicílio o
material reciclável, para que nos dias de coleta seletiva os caminhões pudessem recolhê-
lo nas portas das casas.
O Projeto Lixo Limpo reciclou muitas vidas.
E a reciclagem do lixo contribuiu para que o aterro sanitário da cidade, já
totalmente esgotado, ganhasse alguns anos de sobrevida. Mais uma vez, os usuários
estavam contribuindo para o bem-estar dos habitantes da cidade, sem ser subjugados
para tal.
LABOR DO CORPO, SUOR DAS MÃOS, AÇÃO DA VOZ
Arendt (2001) separou as dimensões do labor das do trabalho, da ação e do
discurso.
Homo faber é o homem que cria e domina sua produção e, com suas mãos,
produz o mundo ao seu redor. Domina seus instrumentos ditando o ritmo e os percursos
da produção. Os artesãos das antigas corporações ocidentais bem lembram esse tipo de
trabalhador.
Essa é uma dimensão da produção que ainda subsiste ao modo de produção
capitalista, que, embora tenha embriagado todos os poros da sociedade com a mais-
valia, não conseguiu obter êxito na totalidade dos espaços sociais.
Na verdade, talvez seja funcional ao capitalismo manter algumas poucas formas
de atividade que não se enquadram totalmente na venda da força de trabalho, o que não
significa que um tipo de trabalho não assalariado que produza rendimentos não participe
68
da engrenagem da valorização do valor, uma vez que todo dinheiro existente contribui
para a engrenagem do capital através do consumo.
A atividade como trabalho, para Arendt, ainda se apresenta à produção
capitalista, no sentido de que as ferramentas e máquinas que dominarão os corpos e as
mentes no processo de labor são criadas e construídas por verdadeiros artesãos.
O labor é o tipo de atividade que, ao contrário do trabalho, que produz coisas
duráveis e cria um mundo, produz coisas fugazes que respondem às necessidades vitais
imediatas. Desta forma, não se diferencia muito das atividades que outros animais não
humanos realizam para manter sua sobrevivência.
No labor, não há produção de coisas duráveis, de símbolos ou de projetualidades
humanas, mas a incessante produção e reprodução do metabolismo do corpo. É por isso
que Arendt identifica o labor na atividade do trabalho industrial fordista, e na forma
geral de produção capitalista.
Nesta, o homem se adequa ao movimento da máquina, seu corpo é subsumido no
processo de produção que o domina, seu objetivo se restringe a manter sua capacidade
de produção em dia para continuar a manter a engrenagem do capital em
funcionamento. O homem não produz um mundo, mas é reduzido a mera ferramenta de
um interminável processo produtivo anônimo.
Talvez os escravos da Grécia antiga, responsáveis pelas atividades menos
valorizadas de reproduzir o metabolismo dos corpos de seus donos, enquanto estes
reservavam o tempo para o espaço público da aparência e da construção de
sociabilidades pelo discurso e pelo argumento, se pareçam mais com os proletários de
nossas fábricas ou com qualquer outro trabalhador virtual de nossas empresas flexíveis.
A proposta de Arendt é que se avance na esfera do discurso e da ação, ou seja,
que se resgate o aspecto político da existência, produzindo sentidos onde se encontram
apenas vazios e anomia.
O discurso é o instrumento do debate político, e a base de nossa sociabilidade,
uma vez que é pelo discurso que construímos a realidade.
A ação é consciente, mas seu percurso é imprevisível.
69
Porque a ação é uma construção coletiva, mesmo que ela seja iniciada por
apenas uma pessoa.
Esse é o significado da palavra social: aquilo que é construído pela interação de
diversos agentes, misturados à natureza bruta da vida.
Agir significa então produzir sentidos, sem desconsiderar que a contingência se
apresenta continuamente produzindo desvios, e que outros fatores de difícil controle
intervêm para definir resultados imponderáveis. É a ação que nos faz afastar da
condição de Homo sacer12
.
QUALIDADE E QUANTIDADE
Um dos objetivos perseguidos nos projetos de trabalho era o de que as atividades
produzissem em qualidade e quantidade suficientes para a sobrevivência no mercado,
em busca do aumento da remuneração de seus trabalhadores e da ampliação do
empreendimento.
12
Homo sacer é um personagem do antigo direito romano, descrito por Giorgio Agambén, que o utilizará
como categoria para entender a situação dos prisioneiros dos campos de extermínio nazistas, que para ele
representariam o paradigma da biopolítica moderna (as relações de violência nos campos escapam a todo
ordenamento jurídico, podendo os prisioneiros ser mortos como piolhos, já que sua condição de
humanidade naquele momento escapa às formas conhecidas pela política e pelo direito) (Agambén,
2002). Para entender o lugar do Homo sacer no antigo direito romano é necessário convergir à discussão
da soberania. Naqueles tempos, a soberania era pautada por uma ordem jurídica composta por cidadãos
comuns, que possuíam direitos políticos, mas que conviviam com a possibilidade permanente de ser
desencadeado um estado de exceção nas situações de emergência, em que o soberano anula todos os
direitos e decide sozinho sobre o destino da sociedade. Entretanto, dentro da estrutura social de então,
alguns habitantes podiam viver um estado de exceção permanente em que eram destituídos de seus
direitos. Melhor ainda, tais habitantes não poderiam sequer entrar num ordenamento divino – em que o
sacrifício seria uma das possibilidades de se ter uma existência e um significado social – nem jurídico.
Não poderiam ser sacrificados, servindo como matéria de importante relação social com as divindades,
mas poderiam ser mortos sem que isso implicasse quaisquer consequências a seus assassinos. Eram como
que soberanos ao avesso: enquanto o assassinato do soberano era falta mais grave que um assassinato
comum, fazer morrer um Homo sacer era muito menos que um assassinato, pois era como se este já
estivesse morto socialmente. Nessa caracterização do Homo sacer, Agambén retoma o importante
ordenamento que separa a vida nua (zoé) da vida política do cidadão (bíos). Vida nua é aquilo que nos
identifica a todos os outros animais; é a vida pura sem mediações ou socializações, a vida metabólica sem
a simbolização que caracteriza a existência do homem. A vida política é a vida da construção permanente
da sociabilidade, da construção do futuro através do domínio do presente, do exercício da linguagem e da
comunicação enquanto construtoras da cidadania. O Homo sacer é aquele preso à vida nua e que
constantemente nos faz lembrar do animal laborans citado por Arendt.
70
Era a ampliação da rede social através da entrada no mercado que construía
autonomia e afastava o controle social e a exclusão, diferenciando-se das laborterapias
ou das oficinas protegidas.
Esta era a possibilidade de se produzir valor social através da prestação de
serviços e da produção de bens dotados de qualidade, afastando qualquer possibilidade
de o consumo se dar por complacência aos doentes mentais.
Nesse sentido, as propostas de prestação de serviço tornavam-se mais atraentes
que as de produção de bens. Isso porque conseguiam melhor inserção no mercado,
mesmo com menor investimento em equipamentos e maquinário, e ainda possibilitavam
o contato direto dos usuários com seus clientes, aumentando as possibilidades de
ampliar a rede social.
A produção de bens, necessariamente artesanais em virtude da dificuldade de
concorrer com empresas que investem fortemente em maquinário e assim barateiam
seus produtos numa larga linha de produção, poderia ocorrer se o artesanato fosse de
qualidade e singularidade. Em outras palavras, a produção de artesanato só seria viável
economicamente se houvesse algo que diferenciasse as peças produzidas e lhes
agregasse valor econômico, tornando-as excepcionalmente belas e exclusivas.
Mas o essencial para garantir outro tipo de entrada no mercado, com qualidade,
eram de fato as alianças. Alianças reais e desejadas, que podem durar muito tempo ou
apenas se tornar contingentes e tênues.
Todo tipo de aliança era fundamental, e as relações de trabalho, de troca, de
prestação de serviços ou de venda de objetos também poderiam constituir uma aliança
mais ou menos intensa, mais ou menos duradoura.
Aliança quer dizer apoio mútuo, reciprocidade e vida com qualidade. As alianças
dos projetos de trabalho também eram relações que produziam novas mensagens, e isso
era fundamental para exercermos nossa capacidade de produzir novas formas de
sociabilidade. Tais alianças deveriam ser muito bem cuidadas, seria preciso imprimir
qualidade em tudo o que fazíamos, cuidar muito bem dos clientes (empresas, secretarias
municipais, consumidores particulares), para que também fôssemos da mesma forma
muito bem cuidados por eles.
71
E, mais uma vez, reitero que o que diferenciava os projetos de trabalho das
práticas laborterápicas era a efetiva entrada no mercado, mesmo que essa entrada
tentasse interferir nele a ponto de provocar pequenas transformações, criando zonas de
intercâmbio pacificadas e, ao mesmo tempo, agindo como vírus que produz mutações.
CUIDANDO DA CASA DOS ÔNIBUS
A essa altura, eu e a equipe já nos sentíamos aptos a negociar novos projetos de
trabalho com as secretarias municipais, sem a presença do interventor.
De certa forma, já estávamos escolados, e nos aprimoramos cada vez mais nesse
tipo de negociação.
Conversamos com nosso companheiro Paulo, administrador da Companhia
Santista de Transportes Coletivos, sobre a possibilidade de elaborarmos um projeto
conjunto para dar conta da necessidade que a empresa vinha tendo de manter um
pequeno grupo de manutenção para pequenas reformas e consertos no prédio-sede.
Logo pensamos em envolver a associação que criamos (Afrent) para assinar um
convênio com a empresa, e assim possibilitar a participação dos usuários dos NAPS.
Assim fizemos, e construímos um projeto de manutenção predial, que cuidaria
da casa dos ônibus que, àquela época, serviam toda a cidade.
É verdade, estávamos ampliando mais um pouco os lugares de que cuidávamos.
Os usuários, cuidados pelos profissionais de saúde mental dos NAPS, estavam eles
mesmos cuidando de outras coisas e, indiretamente, cuidando das pessoas que
usufruíam dessas coisas, no caso, os trabalhadores alocados no prédio da CSTC.
AFINAL, O QUE É PRODUTIVIDADE?
Nas frentes de trabalho, a produtividade tinha outro caráter, pautado num
equilíbrio entre a singularidade do trabalhador e a multiplicidade do mercado.
Dessa forma, o produto era outro, possuía autores reais, já que os trabalhadores
podiam ser os verdadeiros protagonistas do processo de trabalho.
72
A disponibilidade na relação com o outro e o sentido de posse dos objetos
deveria ter seus significados modificados, colocando em questão as vias comuns de
interpretação e dos sentimentos de posse que compartilhamos como cidadãos do
mercado.
O consumo aqui tinha uma chance de escapar às normas do fetiche da
mercadoria, e aos objetos ou serviços produzidos se podia acoplar um novo tipo de
valor, valor mais de uso que de troca, que intermediasse relações entre pessoas de uma
forma mais solidária e coletiva do que o jeito concorrencial e individual do capitalismo.
A crítica da própria situação de exclusão e do papel de delegado destruidor do
manicômio, exercida tão frequentemente quando se lutava para que um trabalhador
singular tivesse sucesso em sua empreitada de inserção num grupo de trabalho,
legitimando-se como um componente sujeito a direitos e deveres, era um exercício
antialienação por excelência.
A eficiência nos projetos, por sua vez, era considerada a disponibilidade de cada
pessoa em descobrir novas potencialidades, ultrapassando os limites estabelecidos.
Quanto mais o trabalhador se engajava e tomava corajosamente a postura de
ultrapassar limites, enfrentando novos desafios, mais seria considerado eficiente. Isso
evidentemente significava ações e desafios diferentes para cada um.
LABORPSIQUIATRIA
A laborterapia sempre foi o instrumento utilizado pela psiquiatria dos
manicômios para subalternizar, para adestrar seus usuários e, desta forma, manter-se
intacta, mantendo intacta também a sociedade que sempre protegeu.
Esta última, assim, esteve sempre livre das contradições que a vivência com os
loucos produziria, principalmente no âmbito dos valores relacionados com o trabalho
abstrato, com suas noções de tempo e espaço, com sua disciplina e sua submissão à
forma-mercadoria, seus projetos de vida voltados à acumulação absurdamente
desprovidos de sentido.
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As oficinas protegidas são prolongamentos dessas práticas da psiquiatria
tradicional, pois, mesmo que localizadas em outras instituições de ―assistência‖ ou
controle social – que em muitos aspectos lembram as ―workhouses‖ destinadas aos
operários do início da industrialização ou os espaços asilares do tratamento moral de
Pinel do século XIX –, sempre desenvolveram o tipo de relação institucional que
subalterniza, pela força ou pelo exercício do poder científico dos cuidadores-
treinadores, verdadeiras referências desse espaço social moderno da abstração e
empobrecimento da existência.
As oficinas protegidas sempre reproduziram também um tipo de experiência
com o trabalho, ora pautada em relações de exploração (justificadas pela incapacidade
produtiva e civil do ―aluno-trabalhador‖), ora pautadas na produção do nada, ou seja, na
pura ocupação do tempo como um fim em si mesmo.
Uma mudança de paradigma na relação com o sofrimento psíquico exige
problematizar a questão da inserção no trabalho, produzindo contextos em que os
valores sejam modificados, de forma que dessa negociação permanente resulte a
participação efetiva dos loucos, com todas as suas múltiplas capacidades e discursos.
Não produzir esse enfrentamento, que supera a separação entre tratamento,
reabilitação, inserção social, significa reproduzir experiências de exclusão e controle
social, pautados na violência dos processos de normalização.
RISCOS
Tentávamos optar pelo desenvolvimento de atividades que eram repletas de
riscos e desafios, pois o nível de risco podia ser proporcional à potencialidade das
mudanças (Kinker, 1997).
Se o manicômio é o lugar zero de troca, como diz Rotelli (1990), é também o
lugar zero de riscos para a sociedade, pois o único desafio existente é a destruição do
usuário.
Assim, dentro desse processo de desinstitucionalização de instituições e de
estatutos especiais presentes nessas iniciativas de re-configurar a questão do trabalho
(Nicácio, Kinker, 1996), propunha-se a ampliação do nível dos riscos para que os
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potenciais de transformação fossem aumentados, o que exigia a transferência de
recursos públicos que antes financiavam a destruição de pessoas (no manicômio) para
projetos que efetivamente visassem à produção de vida.
Arriscar-se por algo é o que pode dar sentido às ações.
Superar o medo dos riscos é uma tarefa cotidiana dos profissionais de saúde
mental e não é nada simples. Mas ela traz consigo a possibilidade de modificar os
fluxos de poder e saber e, dessa forma, modificar os contextos, os papéis e as
hierarquias.
Colocar-se em risco é uma ação que muitos de nossos usuários já realizaram,
mesmo sem o saber ou escolher. Porque a experiência da loucura traz muitos riscos,
tornando o sujeito muito vulnerável a muitas respostas possíveis e diferentes.
Na questão dos projetos coletivos de trabalho, tentávamos manter o equilíbrio
possível na medição dos riscos, sabendo que os desafios eram imprescindíveis. Medindo
os riscos, assumimos com os usuários alguns percursos imprevisíveis. Esse estar no
mundo é muito diferente da vivência negativa e anulada de ser um interno de uma
instituição total, ou de ser um participante de um programa de laborterapia numa oficina
protegida.
Um exemplo da assunção de riscos foi a decisão de implantar a Fábrica de
Blocos em Bertioga, localizada a vários quilômetros do centro de Santos, o que exigia
que nos deslocássemos e mantivéssemos os usuários-trabalhadores longe da maioria dos
recursos de suporte oferecidos pela cidade de Santos.
Muitas vezes essa situação dificultou nossa ação, mas quando assumimos o
projeto avaliamos que deveríamos aproveitar a oportunidade. Acredito que tenha sido
uma escolha correta, pois foi um aprendizado intenso para a equipe e para os usuários.
Além disso, nossa ida para a Fábrica de Blocos deu início à implantação de uma equipe
de saúde mental que passou a atender a população local, algo que até então não ocorria.
75
OCUPAR OS INTERSTÍCIOS DA CIDADE
A localização física dos projetos de trabalho em regiões diferentes da cidade foi
uma das principais estratégias desenvolvidas em Santos.
Essa ocupação de vários pontos facilitava o enraizamento no espaço social e se
inseria no contexto de produzir novas mensagens no imaginário social em relação aos
portadores de sofrimento psíquico, repropondo um novo convívio marcado pelo respeito
à diferença e pelo resgate da valorização de características humanas descartadas durante
o processo de configuração dos padrões normativos da modernidade.
Inseria-se também na perspectiva de combater o estigma de periculosidade e
incapacidade do louco através do desenvolvimento de atividades que beneficiavam a
cidade como um todo. Entre essas atividades estavam a manutenção das praças e
jardins públicos, a participação no programa de reciclagem de lixo, o trabalho na
construção civil, colaborando com os projetos habitacionais voltados para as classes
populares do município etc.
A construção gradual de novos sujeitos sociais tinha como lócus a própria
sociedade, o mercado e suas contradições, já que não existia mais a figura do
manicômio como neutralizador e mascarador de conflitos.
DESCOBRIR NOVAS POTENCIALIDADES QUE NUNCA PUDERAM SER
EXERCITADAS
Nos projetos de trabalho, o questionamento da forma moderna do trabalho se
daria a partir da proposta de novas normas e relações, em que a singularidade e o
sofrimento dos usuários-trabalhadores assumiam importância fundamental.
Isso só seria possível através da descoberta e da multiplicação de capacidades,
como estratégias para fazer dos usuários os protagonistas do processo de trabalho.
O trabalhador poderia ser, neste caso, aquele que produzia riquezas e se
autoproduzia a todo momento.
Além das novas potencialidades dos usuários-trabalhadores, era imperativo
descobrir as potencialidades e os recursos da comunidade.
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Em outros termos, seria preciso modificar os contextos de trabalho, de modo a
possibilitar o diálogo entre as potencialidades do usuário e as potencialidades dos
contextos-ambientes.
Pois não se tratava de processos de normalização e adaptação, mas de uma nova
relação entre sujeitos e contextos, considerando que geralmente contextos e sujeitos se
misturam nos papéis de sujeito e objeto, ou seja, os dois são ao mesmo tempo sujeitos e
objetos.
A CONSTITUIÇÃO DE UMA COOPERATIVA
A escolha da cooperativa de trabalho como instância de representação dos
usuários e demais envolvidos nas relações estabelecidas com o mercado foi também
uma das marcas do processo santista.
A cooperativa é uma pessoa jurídica formalmente constituída, que deveria nesse
caso possuir alianças com diversos setores da sociedade, permitindo sua forte inserção
no mercado e, ao mesmo tempo, desenvolvendo projetos que incorporassem
intervenções inovadoras na cidade, em busca de uma cidade mais saudável.
Esses projetos que envolviam trabalho, alianças sociais e projetos inovadores
tentavam criar as condições para a composição dos empreendimentos sociais, como
defendem os italianos (Gallio, 1991)13
.
A cooperativa era uma opção política de organização do trabalho que rechaçava
as situações de exploração e criava entre os trabalhadores vínculos que ultrapassavam o
compromisso com a produção.
13
Os empreendimentos sociais, na perspectiva dos italianos, envolvem não somente a criação de
cooperativas sociais (que são instâncias de produção compostas por trabalhadores comuns e pessoas em
desvantagem, e que, por isso, recebem um tratamento especial do estado e do mercado), mas são
máquinas de produzir sociabilidades, instâncias geradoras de experiências produtoras de vida e de novas
mensagens ao imaginário social. O caráter ao mesmo tempo público e privado desses empreendimentos
aponta uma nova forma de se produzir e de se relacionar socialmente, fomentando ambientes de troca, de
cuidado entre pessoas, de descoberta de potencialidades.
77
A intenção de que a comunidade local se envolvesse para se tornar cúmplice,
corresponsável e partícipe do processo e do sucesso da cooperativa, que passaria a ter
características de empreendimento social, com perfil público e privado ao mesmo
tempo, abria espaços para a produção de valores que contradiziam o movimento do
mercado e do capital.
Esses laços propunham o desenvolvimento sustentado da cidade,
compatibilizando desenvolvimento econômico e bom senso na preservação da natureza
e no bem-estar da população, desqualificando preconceitos e processos de exclusão.
É que aqui também os valores de periculosidade e incapacidade dos loucos
podiam ser fortemente desmentidos.
Mais uma vez, a prática laborterápica e o paradigma psiquiátrico são aqui
questionados. Constituir uma cooperativa composta por pessoas que são consideradas
incapazes pelo código civil (que sempre utilizou a nosografia psiquiátrica como base de
apoio) é algo que contradiz os pressupostos básicos de incapacidade em que se apoiam
os diagnósticos psiquiátricos.
De fato, a relação entre a psiquiatria e a justiça é antiga, e data da época do
nascimento da primeira, que auxiliou a justiça na difícil tarefa de ter que interditar
pessoas em pleno momento histórico de defesa dos direitos individuais (Castel, 1978;
Foucault, 2002, 2006).
A herança dessa relação psiquiatria-justiça está presente entre nós com força
cada vez maior. Basta perceber a quantidade de processos instaurados cotidianamente
para a interdição de um número crescente de pessoas (número que cresce
proporcionalmente ao número de diagnósticos da nosografia psiquiátrica atual).
E não foi diferente quando da constituição da cooperativa. Alguns advogados
consultados, por exemplo, assinalaram à época que a constituição da cooperativa
poderia ser ilegal. Sempre rebatemos esse posicionamento dizendo que boa parte dos
usuários-trabalhadores não eram interditados oficialmente e que, sendo assim, poderiam
responder por si, mesmo que precisassem de apoio. Da mesma forma, poderiam
responder conosco formalmente pela cooperativa. E foi assim que fizemos.
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FANTASMAS DO TRATAMENTO MORAL14
14
O tratamento moral foi a primeira tecnologia da medicina mental, inaugurando uma nova relação com
a loucura. A partir da entrada dos alienistas nos asilos no final do século XVIII, a loucura deveria ser
abordada bem de perto, e não mais por entre as frestas do muro em que era confinada, como ocorria na
era clássica. Novas táticas e um novo olhar deveriam ser desenvolvidos com o intuito de imprimir no
alienado o medo, a culpa, a autocorreção. Para exercer esse poder moral, que deveria vigiar e controlar,
delineando cada comportamento esperado, fazia-se necessária toda uma série de castigos e recompensas.
Dever-se-ia recorrer a castigos e mesmo a procedimentos como a aplicação de duchas geladas e uma
infinidade de outros artifícios que, se antes, na era clássica, supostamente tinham poderes de cura nos
nervos mais ou menos ressecados ou úmidos, retraídos ou esticados, agora deveriam funcionar como
meio de subjugar moralmente. Muitas dessas práticas também foram defendidas e utilizadas por Pinel,
embora o que tenha ficado para a história seja a crença de que os reformadores operaram apenas uma
grande libertação humanitária dos loucos acorrentados. Como ressalta Foucault, no cotidiano do asilo, um
tribunal, com todos os seus momentos – a investigação, o julgamento, a pena –, deveria permanecer
perpetuamente no interior de cada um dos internos, para que a tarefa do poder moral pudesse dar frutos
(Foucault, 2005a). Ou, como cita Robert Castel em sua obra sobre o alienismo (Castel, 1978): ―A ordem e
a regularidade em todos os atos da vida comum e privada, a repressão imediata e incessante das faltas de
qualquer espécie, e da desordem sob todas as suas formas, a sujeição ao silêncio e ao repouso durante
certo tempo determinado, a imposição do trabalho a todos os indivíduos capazes, a comunidade da
refeição, as recreações com hora fixa e duração determinada, a interdição aos jogos que excitam as
paixões e que entretêm a preguiça e, acima de tudo, a ação do médico, impondo a submissão, a afeição e
o respeito por sua intervenção incessante em tudo o que diz respeito à vida moral dos alienados: tais são
os meios de tratamento da loucura que fornecem, ao tratamento aplicado nestas casas, uma incontestável
superioridade em comparação com o tratamento aplicado em domicílio‖ (Parchappe, M. Rapport sur le
service médical de l’asile des aliénés de Saint-Yon, Rouen, 1841, p. 11, apud Castel, 1978: 115-6).
Castel também cita outros autores dessa época, relatando a importância de um asilo convenientemente
organizado para produzir uma atmosfera médica que impregnasse os alienados a ponto de o processo
passar despercebido. Afinal, num asilo bem organizado, com lugares, horários e regulamentos bem
definidos, tudo serviria para imprimir esse espírito de ordem e submissão (Castel, 1978: 116). Como
Foucault menciona, os efeitos provocados por essa ligação médico-paciente, que tentava apreender toda a
experiência da loucura como uma propriedade única da psiquiatria, não deixavam escapar seu caráter
mítico produzido pelo poder moral atribuído ao médico. Mais que portador de técnicas especializadas e
saberes sofisticados, o médico passava a funcionar como o taumaturgo das curas, aquele que
misteriosamente produzia transformações; e havia aqueles pacientes que chegavam mesmo a produzir
delírios referentes ao poder de cura de seus médicos, delírios estes que efetuavam modificações, mas que
eram pautados no exercício de um poder e de uma coação moral historicamente estabelecidos. Este era,
enfim, o alicerce dos alienistas no desenvolvimento do tratamento moral.
79
Apresento abaixo trechos de textos dos expoentes da Liga Brasileira de Higiene
Mental, que nas primeiras décadas do século XX, e especialmente a partir da ditadura
Vargas dos anos 1930, fizeram a cabeça dos poderosos e da dita sociedade civil,
exercendo a função de intelectuais, guardiães da ordem, funcionários do consenso
(Gramsci, 1985). Todos os trechos foram selecionados por Jurandir Freire Costa (1980).
A iniciativa é uma tentativa de mostrar em que contexto científico-ideológico a
laborterapia foi sendo instituída no Brasil, sob a influência do tratamento moral, com
uma forte associação com os movimentos higienista e eugenista:
―Alguns códigos hindus prohibiam allianças com famílias que não
tivessem filhos homens, com aquellas cujos membros são muito
peludos, soffrem de almorreimas, de dyspepsia, tysica, epilepsia,
vitiligo, e elephantiasis, e os espartanos, como é geralmente sabido,
chegaram ao extremo de arremessar ao Eurotas os meninos nascidos
defeituosos. D‘esta possibilidade de reproducção, proveio por certo uma
forma moderna que prescreve esterilizar alienados delinquentes,
degenerados alcoólicos inveterados, quer como penalidade, quer como
prophylactico. Para obter a esterilização basta no homem resseccar um
centímetro do cordão espermático, de cada lado. Essas operações foram
a princípio praticadas na Suissa e nos Estados Unidos, tendo o seu uso
se generalizado bastante neste último paiz. O alvitre, excellente ‗a priori
‘, tem o inconveniente de attingir apenas os casos mais graves‖ (Juliano
Moreira, 1919, apud Costa, 1980: 36).
80
―As medidas em practica consistem em estabelecer colônias e albergues
para mendigos, penitenciárias e prisões para os criminosos, manicômios
e hospitais para loucos e degenerados, sem que os estabelecimentos
criados comportem o número crescente de infelizes que surgem cada
dia em progressão geométrica. Para aggravar, ainda mais, a calamitosa
situação, a hygiene social de um lado, a medicina e a philantropia de
outro, salvam a vida de milhões de infra-homens (que a seleção natural
devia eliminar), aumentando assim, o peso morto e as contribuições
para conservá-los na inatividade ou reclusos nos estabelecimentos
adequados. Nunca foram tão numerosos como hoje os auxílios
sentimentais e econômicos que se prestam às enfermidades physicas e
sociaes. Os próprios Estados esforçam-se, aumentando as cargas
contribuitivas para fazer viver e triumphar (graças à sua ativa
reprodução) os degenerados physicos, psychicos e os criminosos. Em
toda parte são criadas e prosperam as associações destinadas à
conservação destes resíduos humanos. Onde existem, porém (à
excepção dos institutos scientíficos, que carecem ainda do valor social
que lhes corresponde), sociedades para proteger e alentar os elementos
mais úteis à humanidade?‖ (Renato Khel, 1931, apud Costa, 1980: 42).
―Urgia, pois, que o Estado-providência assumisse o encargo de prover o
bom resultado das uniões reprodutoras da espécie humana, tal como faz
a respeito dos animais de corte‖ (id., ibid.: 43).
―Vale, entretanto, dizer algo de incisivo sobre esse lamentável descaso
em que sempre tem estado essa questão em nosso paiz, e, sem alludir à
inferioridade patente dos elementos de formação ethnica da nossa antiga
Colônia, lastime-se, todavia, a incúria de 110 annos de governo
independente de uma nação immigratória que, ainda hoje, permitte
sejam incorporados ao seu maior patrimônio – o homem – até os
rebutalhos de raças, mais ou menos, degeneradas, como algumas da
Ásia Oriental, além de outras, quiçá tão indesejáveis, como todas as do
Oriente próximo (Ásia Menor), aquellas e estas, boas ou más, sãs ou
doentes, inferiores ou superiores, mas, todas, para a nossa formação
eugênica, só comparáveis aos insanos incuráveis de outros povos, que
também recebemos, tratamos e mantemos em hospitaes, sempre
superlotados‖ (Xavier de Oliveira, 1932, apud Costa, 1980: 44).
81
O tratamento moral criado pelos alienistas do século XIX manteve-se no futuro
como assombração.
Mesmo tendo a psiquiatria do século XIX e XX enveredado pelo biologicismo,
tentando legitimar-se como especialidade médica, à semelhança e com os mesmos
métodos investigativos das outras especialidades focadas no corpo, o moralismo
continuou como um fantasma pairando no ar, revelando-se o fim oculto e último das
instituições totais (Goffman,1974; Basaglia, 2001; Castel, 1977, 1978; Foucault, 2000,
2005a).
Moralismo e controle social dos desvios, conceitos idênticos.
O tratamento moral pôde atualizar-se em novas experiências, com a conivência
da psiquiatria orgânica (que tentava dissecar o cérebro para encontrar as causas das
doenças mentais, o método da anatomofisiopatologia citado por Foucault).
Uma dessas experiências foi a da terapêutica ativa de Herman Simon (De Carlo,
Bartalotti, 2001; Amarante, 1995; Birman, 1992).
Ela nasceu quando o psiquiatra viu a necessidade de colocar os próprios
pacientes para trabalhar na reconstrução de um hospital destruído pela guerra e percebeu
que os pacientes melhoravam, que o envolvimento com a tarefa tomava o lugar
dos pensamentos mórbidos. Ou seja, trágica ironia, os pacientes ficavam melhores
utilizando sua energia na reconstrução da instituição que os iria destruir, vetando sua
participação na vida social.
É verdade que o objetivo da ação era o que menos importava; poderiam também
estar carregando pedras de um lado para outro, construindo montes que seriam
desmontados tão logo fossem elevados, que o efeito talvez fosse o mesmo.
Talvez tenha ressurgido daí o termo ocupação, tautologia do fim em si mesmo,
da produção do não sentido, da alienação.
O segundo retorno do fantasma do tratamento moral, que pôde deixar de ser
latente para ser manifesto, no nosso caso brasileiro, veio à tona com os alienistas do fim
do século XIX e início do XX.
Em sua aliança com os higienistas, e com os eugenistas, os grandes psiquiatras
desse tempo construíram seu reino em imensos terrenos afastados das cidades, onde
foram instaladas as grandes colônias (agrícolas, mas não só) (Amarante, 1982).
O lema desses locais era trabalho, trabalho e trabalho.
82
Disciplina e moral rondavam o cotidiano dos internos, que poderiam chegar aos
milhares, como foi o caso do Juqueri do Dr. Franco da Rocha (Cunha, 1990).
Além da ocupação, reinava a forte exploração, pois o que recebiam os internos
como fruto do trabalho era apenas a possibilidade de se alienar e se manter reclusos,
tornando as instituições de segregação quase autossustentáveis economicamente.
Com a modernização da psiquiatria no Brasil, somando-se às influências dos
alienistas da Europa (os nossos alienistas foram formados por eles), o biologicismo
contribuiu para fazer uma síntese entre as práticas disciplinares e aquelas mais
científicas que, com sua expertise, ajudaram a queimar de forma violenta muitos
neurônios e, de certa forma, mantêm-se assim até hoje, como atesta a situação de muitos
dos hospitais psiquiátricos que ainda sobrevivem ao movimento da reforma psiquiátrica
(Kinker, 2007).
O tratamento moral manteve sua presença fantasmática, produzindo novas
roupagens e descendentes sempre mais modernos. Nos termos de Castel (1978), um
verdadeiro aggiornamento, uma modernização, uma atualização.
Algumas cenas mais recentes demonstram isso: a presença de um visgo moral
mesmo nas experiências europeias e americanas de reforma psiquiátrica do pós-guerra,
a invenção da profissão terapia ocupacional como redentora e humanizadora dos
hospitais psiquiátricos no início do século XX nos EUA, anos mais tarde na Europa, e
nos anos 50 nos Brasil (De Carlo, Bartalotti, 2001).
Essas tecnologias disciplinares também foram sendo transportadas para a lida
com outros desviantes: pessoas com deficiência, idosos, tendo como espaço privilegiado
de intervenção as instituições totais, e produzindo toda sorte de estigmas (Goffman,
1974, 1980).
É por isso que precisamos rever e transformar nosso papel, subvertendo a lógica
de nossas práticas.
Uma revolução é necessária para transformar esses dispositivos: revolução
cotidiana, molecular, microrrevolução.
Sejamos antieugenistas, contaminando-os com a riqueza dos desvios.
83
VAMOS PRODUZIR NOVAS FORMAS DE SOCIABILIDADE?
A noção moderna de trabalho está associada ao trabalho fabril, ou qualquer outro
vinculado a uma grande empresa.
No Brasil, ela ganhou um componente simbólico extraordinário que foi a
carteira de trabalho.
Historicamente, possuir uma carteira de trabalho significou trilhar o bom
caminho, ter uma inserção qualificada no mundo do trabalho e na sociedade, que
garantia ao seu portador sucesso e status de pertencer à ―melhor‖ camada social.
A verdade é que, à parte esse caráter moral do trabalho, presente no fato de, por
muito tempo, a posse da carteira de trabalho ser uma condição capaz de livrar da prisão
alguém autoritariamente abordado por um policial, esse documento pouco ou nada
efetivamente representou para seu portador, em matéria de inserção econômica. É
verdade que era ela um possível passaporte para a seguridade social, tanto em termos de
assistência à saúde (antes da existência do SUS), quanto em nível de acesso à
aposentadoria. Mas de nada adiantaria a carteira, se ela não estivesse associada a um
emprego. Assim, ela serviu mais como um fetiche da moral do trabalho do que para
qualquer outra coisa.
A ideia moderna de trabalho assalariado, enquanto atividade simbólica da boa
correção moral dos indivíduos, reservou um lugar marginal aos outros tipos de atividade
que não estivessem vinculadas à produção de mais-valia e, assim, a um emprego.
Os trabalhos domésticos, o lazer, a criação artística, e tantas outras atividades em
que o humano pode exercer seu absoluto controle e desenvolver sua singular
criatividade, foram tidos historicamente como atividades menores, quando não símbolos
de indolência, preguiça, falta de retidão.
A arte e o artesanato, muito embora ocupassem um lugar de destaque no quesito
criação, foram historicamente definidas como atividades menos sérias, o que implicava,
por sua vez, o questionamento sobre a possibilidade de haver algum espaço para a
criatividade nas atividades sérias do trabalho como emprego.
84
A dissociação entre o mundo do trabalho e o do não trabalho, dessa forma,
denuncia o fato de, na sociedade moderna, o conceito de trabalho estar exclusivamente
associado à questão da empregabilidade.
Não se considera trabalho outro tipo de atividade que, embora não componha
uma relação empregatícia, exija grande dose de esforço, de criatividade e, além do mais,
produza rendimentos.
Caberia perguntar se e como a dimensão do trabalho como obra poderia ocupar
um espaço em todas as ações humanas, ou se apenas quando este for superado, será
possível inventar um tipo de atividade que faça os homens dialogarem entre si e com a
natureza.
As atividades do mundo do não trabalho não vêm ganhando estatuto de categoria
de análise pelos estudiosos, da mesma forma que as atividades do trabalho assalariado,
com algumas raras e importantes exceções.
Isso talvez represente algo, uma vez que a investigação científica geralmente
está em sintonia com seu tempo, e com o que este produz de valor social e moral.
Pouco se estuda sobre os protagonismos dos projetos de não trabalho, sua forma
de organização e gestão, e o que eles produzem de valores, experiências existenciais,
conhecimentos, além de rendimentos econômicos (Blass, 2006).
As atividades de não trabalho são vulgarmente consideradas atividades do tempo
livre, porque só há liberdade fora do emprego, ou melhor, só o tempo do emprego é um
tempo sério e válido, que merece nossa atenção, enquanto o outro tempo, o ―livre‖,
tende a ser um tempo vazio. O ―tempo livre‖ é, no entanto, com frequência, alvo da
reprodução e acumulação do capital, através das ofertas de consumo da indústria do
entretenimento. É como se, na verdade, não houvesse tempo liberto do processo de
valorização do capital, e como se estivéssemos produzindo fabrilmente mesmo nos
momentos de descanso do emprego.
A oposição entre trabalho e lazer, trabalho e tempo livre, muitas vezes é
colocada em xeque por atividades tanto de trabalho como de não trabalho, que misturam
trabalho e ludicidade, trabalho e produção de si.
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As experiências que mesclam relações empregatícias e não empregatícias em
torno de projetos coletivos, como é o caso dos desfiles de carnaval, reforçam essa tese.
Produção e doação de si se misturam nesses casos.
Isso sem dizer que, mesmo os espectadores de espetáculos, ou de livros, ou de
obras de arte, produzem sobre as obras com as quais se relacionam, produzindo um
movimento de enriquecimento da criatividade e do fazer humanos.
Outros exemplos de projetos coletivos que não se inserem no campo do
emprego, como a auto-organização de populações com menor poder aquisitivo ou
marcadas por menor valor social devido a alguma incapacidade, desvantagem, ou forma
alternativa e transgressora de ver e estar no mundo, têm demonstrado a possibilidade de
viver experiências que, além de produzir rendimentos, produzem novas sociabilidades,
relativizam valores sociais de convivência, produzem arte, produção de si, bem-estar,
sem estar livre de contradições.
Mesmo convivendo com insuperáveis contradições (e há muito já aprendemos
que as contradições existem e muitas delas não são superáveis, pois a condição humana
é também composta por muitas ambiguidades e multiplicidades), essas experiências
produzem questionamentos acerca do mercado, a partir de dentro dele.
Tais transformações no mercado, mesmo que frágeis e pontuais, são as chances
de transformá-lo a ponto de um dia ele poder não mais ser chamado e identificado como
mercado, mas como rede de relações de pessoas que criam, que impõem sua
criatividade no processo de produção e de vida, produzindo incessantemente obras a
serem não contempladas, mas mexidas e transformadas por outras pessoas.
Talvez a proposta de Arendt sobre a prática criativa da ação e do discurso,
enquanto elementos fundamentais da condição humana, devesse ser levada a sério como
teorização de um processo prático já em andamento em diferentes esferas.
Isso seria importante para que o dinheiro, o capital e a mercadoria deixassem de
ser a medida de todas as coisas.
Nestes tempos de mudanças na centralidade do trabalho, quando ainda se
trabalha mentalmente com a ideia do trabalho assalariado indutor de inclusão social,
deveríamos considerar que não há exclusões, mas diferentes tipos de inclusões, sendo as
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mais valorizadas aquelas pautadas no emprego e na mercadoria que, inversamente ao
que se pensa, são das mais pobres por tentarem eliminar a multiplicidade da condição
humana.
A sociologia do cotidiano, com sua capacidade de observar o detalhe e produzir
descobertas inusitadas, bem poderia estar a serviço desse tipo de projeto, através da
descoberta daquilo que o real já insinua nas experiências que têm produzido práticas
transformadoras.
São estas as ―pequenas revoluções do cotidiano‖ que tanto desejamos.
A FÁBULA DAS PRIMAS-IRMÃS
Duas familiares nasceram em tempos concomitantes, reproduzindo
posteriormente muitos outros partos a fórceps.
Uma delas trouxe aos poucos as pessoas dos campos para as cidades, para
submetê-las a grandes estruturas impessoais dominadas por motores um tanto
esquisitos: essa é a sociabilidade do trabalho, a donzela de cabelos longos e louros que
circulava dançando levemente com seu vestido branco por entre as máquinas das
fábricas do século XVIII.
A outra era uma donzela de cabelos cor de fogo, cacheados e compridos.
Seu vestido era roxo, e ela não circulava por entre máquinas, mas pelos corpos e
mentes um tanto assustados, e submetidos a atos morais, dos internos dos primeiros
asilos de alienados: essa era louca e desvairada, um pouco sádica, e se chamava
psiquiatria.
As primas-irmãs estabeleciam entre si uma relação hierárquica, uma servia à
outra: se a psiquiatria (ruiva) servia ao projeto moderno de forjar um novo homem e
uma nova forma de estar no mundo para a sociabilidade do trabalho (a loira), esta se
submetia também aos caprichos da psiquiatria, dando-lhe um lugar na corte dos
soberanos, validando-a como ciência, pedindo que ela não só controlasse os distúrbios
sociais, mas que inventasse também algumas idiossincrasias para esse novo homem,
algo como uma série de estados de espírito, alguns transtornos identificáveis, alguns
projetos futuros de homem.
87
A primeira psiquiatria resolveu chamar de tratamento moral essa primeira
técnica de fabricar homens moralizados.
Mais tarde, já adolescente, iria dar o nome de laborterapia ao cruzamento de seus
genes com os de sua prima.
Mesmo os medicamentos, por mais neutros ideologicamente que pretendessem
ser, ainda assim eram filhos da ruiva, embriagados e nauseados pelos valores morais de
sua época.
Atualmente, outros modelos de homem, decorrentes desse primeiro projeto das
primas-irmãs, estão a ser forjados diretamente nos laboratórios de genética, para assim,
quem sabe, estarmos um dia tão indiferenciados e insensíveis como as máquinas.
Mas ainda guardo a esperança de que uma rainha negra, nua e com um corpo
maravilhoso, venha nos resgatar das duas primas, e faça-as sucumbir perante sua
autoridade: essa negra linda se chamaria sociabilidade da vida.
A RELAÇÃO TERAPÊUTICA É ESSENCIALMENTE UMA RELAÇÃO DE PODER
Caberia saber se os projetos de trabalho são dispositivos terapêuticos, se são
dispositivos de garantia de direitos, no caso, o direito ao trabalho, ou se podem ser
considerados estratégias para fins diferentes.
O que seria o terapêutico? Qual é, afinal, a essência do processo terapêutico?
Ele tem essência?
Bem, inicialmente eu diria que as relações ditas terapêuticas, aquelas que se dão
entre terapeutas-pacientes, pacientes-dispositivos de atendimento, caracterizam-se
sobretudo por ser relações de poder.
O que está em jogo nessas relações são determinadas produções de verdade,
estabelecidas a partir de saberes diversos, entre os atores envolvidos.
O prestígio que os profissionais de saúde detêm, e que a sociedade legitima e os
encarrega de exercer, lhes garante certa dose de predominância nessas relações, embora
os pacientes exerçam também o seu poder, mesmo que de forma subliminar.
88
Essa produção de verdades é o que alimenta qualquer relação terapêutica, dando-
lhe vida e dando-lhe morte.
Mesmo que alguns indícios da realidade se imponham, como quando, por
exemplo, um médico diz a seu paciente que ele está com uma doença grave e
progressiva, a forma como essa verdade é construída influenciará, em parte, a trajetória
do processo de cura ou de morte.
Quer dizer, o percurso da doença dependerá de como se lida com essa situação,
do tipo de estímulo ou desestímulo que o médico dá a seu paciente, dos tipos de
intervenção tecnológica colocados à disposição para o tratamento, da forma como o
paciente lidará com a situação, da forma como seu corpo reagirá ao tratamento, e de
tantas outras condições.
Se entendermos ainda a saúde de um ponto de vista mais próximo ao da Grande
Saúde de Nietzsche (1998, 2003, 2008), veremos que a maneira como a pessoa viver a
vida, em sua intensidade, com ou sem uma doença grave, definirá sua postura perante a
vida e o grau de sua saúde.
As relações saber-poder produzem a realidade, definem o que chamamos de
doença grave, de esquizofrenia, de saúde e de doença.
Caberia ao terapeuta e ao paciente estabelecerem um diálogo múltiplo que
produzisse realidades flexíveis e maleáveis, que se movimentassem. Ou seja, produzir
na relação terapêutica processos de transformação das condições de vida, dos papéis
sociais, de produção de novos conhecimentos, novos valores e, assim, novas realidades
múltiplas e enriquecedoras, portanto, potentes.
Nessa perspectiva, existe também uma dimensão pedagógica no processo
terapêutico. Pichon-Riviére (1983) já apontava isso ao discutir os grupos operativos.
Mas não é uma pedagogia que reproduz um movimento de transferência de
saber, daquele que tudo sabe para aquele que nada sabe, mas de troca e produção de
saberes, e de invenção de novas formas de estar no mundo.
A dimensão pedagógica está em terapeutas e pacientes descobrirem e
aprenderem, juntos, novas formas mais enriquecedores de existência.
89
A relação terapêutica pode ser, então, essa construção permanente, que
transforma o terapeuta e o paciente. Eis sua dimensão pedagógica.
Desse ponto de vista, pode-se dizer que a participação em projetos de trabalho
tem seu caráter terapêutico, assim como seu registro de garantia de direitos.
Talvez até pudéssemos modificar o termo terapêutico para o de metamorfose,
uma vez que o que se busca é a produção de novas formas e, assim, ao invés de uma
relação terapêutica, teríamos uma relação de metamorfose.
É esse encontro, que se dá no contexto das contradições sociais, que caracteriza
o ato terapêutico.
E isso é bem diferente de usar o trabalho como um dispositivo de normalização,
adaptação, subalternização, disciplina, moral e ordem, amor à mercadoria, como ele
sempre foi utilizado na psiquiatria.
O que queremos com esse novo registro do trabalho é a produção de vida,
modificar as relações de poder, construir novos parâmetros existenciais a partir do
questionamento dos atuais, e, assim, sermos seres múltiplos, potentes, curiosos para
desbravar o mundo. E isso exige que nos desinstitucionalizemos constantemente.
Desinstitucionalizar constantemente significa desconstruir realidades
transformando todos os elementos em jogo. Significa produzir outras verdades e, nesse
aspecto, as relações saber-poder são determinantes.
Se entendermos o transtorno mental severo e persistente apenas como uma
doença incurável e incapacitante, estabeleceremos com nossos clientes uma relação de
negatividade que imporá a cristalização de papéis e de experiências, já que muitas das
possibilidades de ação no mundo estarão proibidas para eles. Se, ao contrário,
trabalharmos na perspectiva de que tal condição da pessoa é também uma construção
social, passível de transformação, abriremos um leque de possibilidades de
transformação na própria pessoa, no olhar das demais pessoas que ajudam a construir o
fenômeno que chamamos de transtornos mentais. Entenderemos então que há coisas
mais importantes a fazer do que trabalhar apenas sobre os referenciais da doença, como
entidade abstrata e a-histórica que determina e engloba o sujeito. Que a produção de
vida é o objetivo primordial e que isso diz respeito a todos nós, sejamos doentes ou não.
90
As relações de poder são, portanto, as que determinam o que são as doenças e as
condições das pessoas, e elas definirão as possibilidades de futuro, o que será viável e
possível para cada um. Se a resposta que damos ao sofrimento for apenas de
negatividade e contenção, estaremos desenhando um fenômeno negativo e agindo
positivamente na produção desse fenômeno. Várias de suas características, em essência
relacionais, surgirão como consequência. Sintomas serão identificados, como se a
origem deles fosse totalmente endógena. É claro que a experiência do sofrimento
psíquico existe e é vivida de um jeito singular pela pessoa. Mas as respostas que damos
ao sofrimento influenciam sua forma, transformam-no, podendo contribuir para a
produção de sentidos novos ou para a cristalização de papéis, de formas de estar no
mundo. Ou seja, o sofrimento singular possui uma dimensão estritamente relacional,
que o coproduz. Assim, produzimos os percursos que a experiência do sofrimento vai
tomar, fazendo-o em conjunto com a pessoa que sofre.
A auto-eco-organização (Morin, 1996), nossa forma de nos organizar enquanto
seres vivos, abertos e permeáveis ao mundo, do qual dependemos para nos
autossustentar, explica por que o percurso do sofrimento é coproduzido, mesmo sendo
uma experiência singular e única. E as relações entre os corpos, as tensões existentes,
modificam as estruturas e as organizações internas. Como Foucault dizia, a época da
disciplina produzia positivamente corpos dóceis (Foucault, 2000, 2005, 2005a; Ewald,
1993); não eram apenas movimentos negativos de repressão, mas esculpiam ativamente
um determinado tipo de corpo, funcionalmente adaptado aos modos de viver do início
da industrialização.
Que tipo de corpos podemos construir no diálogo com os usuários dos serviços
de saúde mental? Como o protagonismo deles pode ser determinante na transformação
do sofrimento e, sobretudo, na construção de projetos de vida?
As relações saber/poder são o mecanismo fundamental das relações terapêuticas
e deveriam receber mais atenção de nossa parte. Elas estão subjacentes a todas as teorias
e referenciais com que trabalhamos. Elas é que operam, sendo as teorias conteúdos
funcionais que surgem como maneira de nomear e dar forma a essas relações. As teorias
podem ser trocadas, pois elas são os conteúdos, os preenchimentos que dão substância
às relações de poder/saber.
91
RUMO ÀS EXPERIÊNCIAS COM OS USUÁRIOS
O objetivo deste capítulo foi descrever a forma como os projetos de trabalho
foram constituídos, as estratégias inventadas, os desafios colocados, algumas de suas
características. Além disso, buscou-se entremear o relato com alguns fragmentos que
apontavam aspectos da história de constituição da forma moderna do trabalho, como
uma estratégia inicial para produzir um contraste entre o que é o trabalho hoje, e o que
propúnhamos de diferente com os projetos de trabalho.
É comum ver como natural a forma atual do trabalho, como se esta forma tivesse
sempre existido com as mesmas características, e não fosse uma produção histórica.
Resgatando alguns dos seus momentos de constituição e destacando como essa via de
desenvolvimento do trabalho foi uma opção dentre tantas possibilidades, fica mais fácil
entender que é possível propor modificações em nosso modo de existência, que insiste
em produzir tanta exclusão e empobrecimento existencial.
Por fim, tentei apresentar alguns aspectos da articulação histórica entre a forma
moderna do trabalho e a psiquiatria, fazendo uma crítica à laborterapia, e tentando
demonstrar as diferenças entre ela e os projetos de trabalho.
O próximo passo é continuar trazendo fragmentos da constituição do trabalho
moderno, e algumas reflexões sobre o tipo de sociabilidade relacionada a ele. Desta vez,
tais fragmentos virão entremeados de relatos de experiências vividas junto aos usuários-
trabalhadores dos projetos de trabalho. Considero esta parte essencial, pois é onde os
principais atores do processo, os usuários, emergem em sua singular presença.
Por essa via, pretendo continuar investigando as possibilidades de se produzir
novas formas de sociabilidade.
Sem mais prorrogar, apresento-lhes os usuários-trabalhadores.
92
MEIO-DIA
―[...] a sociologia do quotidiano é uma sociologia de protesto
contra todas aquelas formas de reificação do social, animadas por
uma avassaladora ânsia de possessão. Para a sociologia do
quotidiano, o importante é fazer insinuar o social, através de
alusões sugestivas ou de insinuações indiciosas, em vez de fabricar
a ilusão da sua posse. A posse do real é uma verdadeira
impossibilidade e a consciência epistemológica desta
impossibilidade é uma condição necessária para entendermos
alguma coisa do que se passa no quotidiano‖ (Pais, 2003: 28).
93
MEIO-DIA:
EXPERIÊNCIAS COM OS USUÁRIOS DOS PROJETOS
DE TRABALHO
O NÚMERO 1
Milton era um homem negro. Cabeça redonda, cabelos curtos e aveludados,
como um tapete felpudo suavemente estendido sobre uma caixa repleta de pensamentos
criativos e ideias fantásticas. Sorriso largo, dentes muito brancos, fala cantarolada,
divisível em oitavas oscilantes, como um clarinete quando chora.
Lembrava um daqueles personagens de histórias folclóricas do interior do Brasil.
Daqueles que gostam de contar anedotas e fumar um cachimbo.
Mas de folclórico e interiorano só a fala, pois sua história de vida era bem
peculiar e urbana.
Antes de ser internado no hospital psiquiátrico Anchieta, em Santos, ele havia
passado mais de 20 anos num manicômio judiciário.
Provavelmente, cumprira a primeira das duas penas previstas aos loucos que
cometem delitos.
A primeira pena teve sua duração delimitada pela gravidade do ato infracional
(alguns anos, provavelmente), e a segunda pena, aquela que se cumpre pelo fato de ser
louco, ainda não havia cessado.
Por isso ainda estava internado, meio paciente, meio preso, tendo sido
transferido do manicômio judiciário para o Anchieta, já que, mesmo tendo cumprido o
tempo de pena, os técnicos e juízes ainda não o consideravam apto a participar do jogo
social fora dos muros da instituição.
94
Há muitos anos, Milton matara uma pessoa, provavelmente num momento raro
de fúria, pois sua delicadeza não parecia ser efeito do arrefecimento dos ânimos e da
passividade provocados por anos de institucionalização, mas por um jeito de ser maroto,
boa praça, atencioso e alegre.
Quando o conheci, em novembro de 1989, dentro do Anchieta, ele era um louco
cheio de estereotipias, bizarrices e caretas.
Vivia circulando com leveza pelos espaços sem portas que foram abertos pela
equipe de intervenção para que os internos deles se apropriassem.
Vivia cheio de miudezas, bugigangas, tecidos diversos, nos quais se enrolava da
cabeça aos pés, como que a se enfeitar.
Era dono de uma linguagem múltipla, de sentidos e de significantes, que se
entrecruzavam, atualizando ao mesmo tempo percursos diversos de sua história de vida,
e que vinham misturados a suas fantasias incessantemente produzidas.
Ao longo de alguns meses que se seguiram, ele foi reordenando a multiplicidade
de formas que nos apresentava, tanto no corpo como na linguagem, permitindo-se
compartilhar de códigos de entendimento comuns a todos os atores que promoviam
mudanças dentro da instituição: internos, funcionários, voluntários.
A efervescência dos acontecimentos e dos diálogos dentro do manicômio, a
partir da constituição de um cotidiano compartilhado por decisões e reflexões coletivas,
parece ter levado Milton a pensar que valia a pena se esforçar para ser compreendido,
num novo ambiente de afeto e acolhimento que não deixava de lado as ferozes críticas
às contradições inerentes ao papel de controle social do manicômio.
Como Basaglia dizia, essa construção coletiva que transforma o hospital
psiquiátrico não poderia apenas produzir uma ―ilusória vida social coletiva‖ (Basaglia e
Basaglia, 1977; Basaglia, 2001), mas exercitar através da reflexão crítica e da prática
transformadora a própria desconstrução do manicômio e do paradigma psiquiátrico que
o sustenta.
Milton participou de diálogos dentro da instituição, e dos planos que aos poucos
foram construídos para ser operados fora dela.
95
Alguns personagens do passado, misturados a suas fantasias, permaneciam
existentes e assíduos só para ele, mas conseguiam achar um lugar no meio das diversas
outras relações e diálogos que Milton passou a viver.
Um desses personagens era a ―assistente social do fórum‖, elemento sempre
presente nos discursos que ele compartilhava conosco. Ela era real e sempre presente
para ele, embora não a conhecêssemos nem ao fórum ao qual ela pertencia.
Mas a ―assistente social do fórum‖ não impedia que projetássemos com Milton
os novos planos para o futuro; ela aparecia às vezes com um caráter ambíguo de figura
acolhedora e perseguidora, o que fazia com que Milton se lembrasse dela e a acionasse
em momentos em que se sentia mais perseguido, ou quando sentia que tinha que
abrandar seus desejos e impulsos mais destrutivos pelo medo de ser castigado.
Ela era às vezes a referência da norma e, noutras vezes, a referência do afeto
que dá segurança, como são os pais, e podem vir a ser, de forma perversa, as prisões, os
manicômios etc.
Mas, voltando aos diálogos e aos planos negociados com Milton, foi aos poucos
acertado que ele participaria do primeiro projeto de trabalho que a equipe de
intervenção articulara junto com outras secretarias municipais da prefeitura, destinado
especialmente aos internos do hospital e às pessoas que estavam saindo da situação de
rua e eram acompanhados pela Secretaria de Ação Comunitária, o Projeto Lixo Limpo.
Nesse projeto, como dito anteriormente, alguns internos do hospital trabalhariam
junto a ex-moradores de rua na triagem do material reciclado que os caminhões da
Prodesan recolhiam, na porta de cada residência, em coleta específica, em dias e
horários próprios, separados dos da coleta de lixo orgânico.
O material coletado era levado a um centro de triagem, constituído de um
enorme galpão coberto, com esteiras rolantes que movimentavam o material a ser
separado, baias que recebiam o material separado por tipos diferentes (papel, vidro,
metal, plástico), prensas para acomodar o material, equipamentos de segurança como
luvas, capacetes, botas, uniformes.
O espaço possuía ainda um refeitório, banheiros e escritórios.
96
Os trabalhadores recebiam 1,5 salário-mínimo, sob a forma de bolsa de
trabalho, mais alimentação no local e vale-transporte.
Era um projeto intersetorial que também envolvia uma ação de educação
ambiental nas escolas e nas casas, onde era exposta a importância da reciclagem tanto
para a diminuição do uso de novas matérias-primas da natureza, como para a
diminuição do aterro da cidade, que estava atingindo sua capacidade crítica, gerando
importantes riscos de contaminação do solo e da água.
Era um projeto importante para a saúde da totalidade dos habitantes da cidade.
Para dar suporte aos novos trabalhadores, foi constituída uma equipe composta
por técnicos da Prodesan, que trabalharia em conjunto com os profissionais do Núcleo
do Trabalho do Anchieta no acompanhamento dos trabalhadores durante o processo de
trabalho.
O cotidiano do Projeto Lixo Limpo, do qual participavam Milton e cerca de
outros 50 trabalhadores, sempre foi intenso e mediado pela equipe do Núcleo: da saída
cotidiana do hospital de manhã bem cedo até o trajeto de ônibus para o local do trabalho
(a luta para organizar a saída dos trabalhadores, o acordar antes das 6 horas, o tomar o
banho e o café, pegar o ônibus, chegar no horário certo); a organização coletiva do
processo de trabalho (a divisão e o andamento das tarefas); as reuniões semanais para
discutir dificuldades e propor soluções; os atendimentos aos usuários para discutir suas
dificuldades perante o trabalho. Todas as partes que compunham o processo eram
mediadas pela equipe do Núcleo.
O Projeto Lixo Limpo abriu muitas portas novas aos usuários que dele
participaram.
Milton e os demais passaram a encontrar a partir daí novas possibilidades que
ampliariam o arco de relações e de diálogos iniciados a partir da transformação do
hospital psiquiátrico.
No futuro, em 1992, quando a equipe do Núcleo do Trabalho do Anchieta seria
transformada na equipe da Unidade de Reabilitação Psicossocial, constituindo-se como
um serviço da Secretaria de Higiene e Saúde (Sehig), num imóvel localizado no bairro
97
da Aparecida, Milton receberia a matrícula de número 1, o que ele fazia questão de
ostentar perante os colegas no decorrer dos anos que se seguiram.
OS DETALHES
A sociologia do cotidiano se preocupa com os detalhes, com o aqui e agora de
um contexto fabricado por um tempo e um espaço sociais.
Tempo e espaços são também produtos, são processos em movimento, movidos
pela prática dos atores sociais, são expressões de fluxos de força em relação (Pais, 2003:
128-30).
Interessante seria fazer uma sociologia do cotidiano em torno de uma das
dimensões mais fortes e penetrantes da modernidade: a dimensão do trabalho.
A noção moderna de trabalho não seguiu o suposto rastro linear do
desenvolvimento histórico. Ela foi construída a partir de muitas rupturas.
Mesmo antes de Marx desvendar os processos que compunham a produção
capitalista, definindo a noção de trabalho produtivo, outros pensadores trataram de
defender e de introduzir as bases do que seria o trabalho na modernidade. Buscavam
justificar e embasar o novo lugar que o trabalho assumiria na sociedade ocupada.
Diez (s.d.) sugeriu que a noção de trabalho nos séculos XVII e XVIII não sofreu
exclusivamente a influência do ideal ascético-religioso, que enxergava no trabalho uma
forma de atingir a plenitude do paraíso, nem de um ascetismo político que pregava o
compromisso do trabalhador com o desenvolvimento da pátria.
Havia também outras influências que marcavam a nova ética do trabalho.
Defendia-se que, economicamente, o acúmulo de valores de uso seria a forma de
obter vantagem na concorrência com as outras nações.
Os contemporâneos fisiocratas defendiam a produção e a acumulação agrícola
como a única e verdadeira fonte de riqueza dessas mesmas nações.
Outros defendiam a liberdade de mercado, reforçando também a necessidade de
aumentar a produtividade das nações.
98
O trabalho, em todas essas visões, ocupava um lugar de destaque.
O debate em torno da utilidade da pobreza dos trabalhadores confrontava-se com
a defesa da proposta de disseminar entre eles o consumo de artigos de luxo.
A utilidade da pobreza baseava-se na ideia de que o trabalhador deveria receber
pequenas retribuições por seu trabalho, de forma a manter sempre acesas suas
necessidades básicas e, assim, não correr o risco de optar pelo ócio.
O trabalhador aqui é visto como um ser que se contentaria com muito pouco, e
que logo desistiria de trabalhar se recebesse mais do que o suficiente para a reprodução
básica de suas capacidades físicas e mentais.
A defesa do incentivo ao consumo de luxo baseava-se na suposta laboriosidade
do trabalhador, que estaria sempre mais motivado a fazer um trabalho bem-feito se
pudesse ter a expectativa de consumir e apreciar os belos artigos de luxo que ele próprio
fabricava.
O trabalho motivado poderia vir acompanhado de certo prazer de previsão, ou
seja, de um prazer já vivido pela simples expectativa de um dia usufruir dos produtos de
luxo que fabricava.
Se o luxo associado ao ócio era criticado por ser característico da sociedade
estamental, usufruto da nobreza ociosa, agora poderia ser associado ao trabalho e,
assim, ser característico de uma sociedade liberal.
Os iluministas do século XVIII defendiam, por sua vez, uma moral ilustrada do
trabalho baseada na prudência, na utilidade e na felicidade.
Nada de penitência religiosa ou mesmo de simples patriotismo, mas uma
dimensão de hedonismo e individualismo centrado na delicadeza, na beleza, na
prudência.
Talvez esta tenha sido uma das principais contribuições do iluminismo: criar as
bases de um homem psicologizado, valorizando a dimensão individual e subjetiva que
garantiria ao capitalismo fincar bases no âmago do ser individual.
99
AS CONSTRUÇÕES DO NÚMERO 1
Aos poucos Milton tornou-se orgulhoso do novo trabalho, embora não morresse
de amores pelo tipo de atividade.
Ostentava o uniforme e os equipamentos que lhe possibilitavam ocupar um lugar
cujo valor no imaginário social era muito diferente do valor atribuído ao doente mental.
Milton possuía uma habilidade ímpar de organizar o dinheiro que recebia, e de
definir planos que eram sustentáveis e efetivos no tempo.
Um dos planos foi o de construir aos poucos uma nova casa. A ideia de possuir
sua casa própria nunca saíra de seu horizonte, mesmo tendo ele que recorrer a quartos
de pensões até se estabelecer em definitivo num imóvel próprio, a partir do momento
em que recebera alta do Anchieta.
Ampliando seu arco de relações sociais, participou da ocupação coletiva de um
terreno baldio próximo ao Projeto Lixo Limpo, que foi realizada por um grupo de sem-
teto.
Tendo conseguido comprar um dos barracos de madeira construídos a partir da
ocupação do terreno, na Vila dos Criadores, passou a juntar recursos financeiros para
construir uma casa de alvenaria com vários cômodos.
Nessa época, Milton já estava namorando e residindo com outra interna do
Anchieta que também participava do Projeto Lixo Limpo.
Assim como Milton, Miucha permanecera muitos anos no manicômio judiciário,
também devido a uma morte.
Posteriormente, no entanto, havia sido libertada e passado a ocupar a posição de
―louca de rua‖, vivendo num bairro carente de Santos, na Zona Noroeste, até ser
internada no Anchieta e por lá ficar muitos anos.
Miucha era uma mulher de meia-idade de cabelos curtos e crespos e algumas
cicatrizes no rosto. Seus olhos estavam sempre arregalados e sua fala era extremamente
rápida, o que às vezes a levava a tropeçar nas palavras. Estas eram como bolhas
pipocando na boca de um vulcão.
100
Miucha era um vulcão de temperamento forte e explosivo que exigia dos
interlocutores muita moderação e sensibilidade no contato. Era também muito afetuosa
nos momentos em que se sentia menos perseguida. Estabelecera uma relação de
confiança muito forte com algumas profissionais do Núcleo, e passou a ser muito
querida.
Não tinha a mesma facilidade que Milton para expressar seus pensamentos, mas
nunca era passiva, mostrava-se sempre enérgica, altiva, informando aos presentes que
possuía seu próprio espaço e não abriria mão dele.
Não gostava de ser controlada, nem por Milton. E foi assim que algumas brigas
do casal ocorreram, umas mais ou menos sérias, exigindo que a equipe do Núcleo
cumprisse um papel de mediação.
Aos poucos, com a constituição do primeiro NAPS de Santos, o NAPS 1 da
Zona Noroeste, outros profissionais puderam entrar em cena e assumir junto à equipe do
Núcleo o acompanhamento de Milton e de Miucha, projetando e tecendo junto deles
seus projetos de vida.
Mas foram muitas as situações em que a equipe do Núcleo e a equipe do NAPS
tiveram que mediar o convívio cotidiano do casal e a relação de cada um deles com o
trabalho.
Lembro de algumas dessas situações de que participei diretamente.
A primeira foi quando Miucha disse às profissionais que a acompanhavam no
projeto de trabalho que o ambiente com Milton estava tenso, e que ele guardava uma
faca embaixo do colchão, como forma de ameaçá-la.
Lembro de ir à casa dos dois, acompanhado de outros profissionais, discutir
sobre a violência de ambos e sobre o inconveniente de usar facas como armas. Com
muito cuidado, conversamos com Milton sobre a faca, e ele mesmo nos mostrou que
não mais a guardava no colchão.
Nossa presença possibilitava mediar as relações e produzir novos sentidos:
mesmo que os dois tenham trocado algumas agressões, que nunca deixaram marcas
aparentes nos corpos, nunca soubemos que uma faca tivesse de fato sido usada como
arma.
101
Outra situação ocorreu quando percebemos que, no trabalho, Milton ficava à
beira da esteira deliciando-se com o formato dos objetos, sem conseguir separar os
materiais e colocá-los nas baias. Ou seja, sem conseguir trabalhar. Começava a se
enfeitar com pedaços de tecidos e objetos os mais variados.
O NAPS 1 nos alertara que ele não estava frequentando a unidade como era o
combinado, e que a medicação antipsicótica de depósito que recebia (Haldol Decanoato,
aplicado no músculo quinzenalmente) estava atrasada.
A unidade pedira nosso apoio para convencê-lo a ir tomar a medicação, mas
tivemos uma impressionante surpresa ao chegar em sua casa para fazer contato.
Por entre poucas trilhas livres para se andar, acumulava-se dentro da casa um
número incontável de pequenos objetos trazidos do Lixo Limpo, que eram acomodados
como uma espécie de quebra-cabeças, uma escultura de milhares de pequenas peças,
pequenos objetos, embalagens de alimentos etc.
A escultura era tão grande que os caminhos para se andar e mesmo o exíguo
espaço de dormir corriam o risco de desaparecer com o tempo. E não parava de crescer!
Para coroar essa impressionante visão, Milton ofereceu-nos um café que mais
parecia uma poção mágica repleta da multiplicidade de seus pensamentos. O copo, antes
transparente, agora estava opaco em virtude das marcas de mãos e outras poeiras, e o
café jazia esperando que déssemos cabo dele, como um cachimbo da paz que é
compartilhado por pessoas de tribos diferentes.
Tomamos o tal café-poção mágica, e ele até que estava bom. Era café mesmo,
apenas recheado com as ideias fantásticas de Milton.
Dias depois de termos levado Milton para que tomasse sua injeção, voltamos à sua
casa e, para nossa surpresa, parecia que um gigantesco aspirador havia passado por lá.
Ao contrário daquela visão múltipla e colorida, que confundia a cabeça, mas
enchia os olhos de admiração, vimos a casa totalmente limpa, asséptica, sem a presença
de nenhum objeto diferente dos habituais. Agora a minúscula casa parecia um palácio
vazio de imensos cômodos e pouquíssimos móveis.
102
Onde tinham ido parar os objetos que compunham aquela gigantesca
construção?
Milton dizia que não lembrava, e agora ele entrava no papel de trabalhador do
Lixo Limpo, com horários e funções a cumprir, discurso econômico, mas sempre
acompanhado daquele sorriso largo e branco, de quem foi fazer uma breve viagem e
retornou.
Os projetos de trabalho funcionavam assim, como espaços de vida que
multiplicavam relações e possibilidades de existência, tornando a vida complexa,
multifatorial, em movimento, coberta de riscos, repleta de criações.
Não eram os projetos de trabalho lugares de normalização, disciplina, ou mesmo
treinamento profissional para uma futura (e inexistente) inserção no mundo do trabalho.
Eram lugares de vida onde o objetivo não era o adestramento nem a separação forçada
dos outros contextos de vida.
O trabalho e os outros contextos de vida permeavam-se mutuamente, e a função
da equipe do núcleo e da equipe do NAPS era acompanhar e construir juntos um projeto
de vida com Milton, fazendo mediações, agenciando recursos, lugares, afetos e
possibilidades, mas não substituindo o risco de viver que é posse de cada sujeito, e que
só Milton poderia viver de forma singular.
Com o passar do tempo, Milton e Miucha separaram-se e retornaram algumas
vezes.
Anos depois, Milton enfim decidiu, junto à equipe do Núcleo, que valeria a pena
trabalhar em outro projeto. Foi quando passou a compor o grupo de trabalho do Projeto
Terra, cujo objetivo era fazer a manutenção e o cuidado das plantas das praças públicas,
tão utilizadas em Santos por idosos e crianças.
Mesmo mudando de projeto, ainda ostentava o número 1, que lhe fornecia o
lugar de um dos primeiros internos sem família ou lar a deixar o Anchieta e a iniciar um
processo de desinstitucionalização de valores, saberes e formas de vida instituídas no
decorrer da história da psiquiatria e de sua história de paciente.
103
TECNOLOGIA DISCIPLINAR
Processos disciplinares, a partir de um modo de vida organizado essencialmente
em torno do trabalho assalariado, tomaram a cena das sociedades ocidentais, produzindo
novas instituições, novas tecnologias de controle dos comportamentos e das
subjetividades, novas referências existenciais.
Foucault (2000, 2005) nomeou como sociedade disciplinar15
o processo de
construção das novas formas de controle dos cidadãos nas cidades, utilizando-se do
modelo panóptico de vigilância e produção de subjetividades, em instituições como
prisões, escolas, hospitais, asilos e manicômios.
Era necessário substituir o excesso de vingança (execuções em praça pública,
exposição de corpos torturados pela cidade), que garantia a ordem aos soberanos, por
modelos de tecnologia mais avançada e eficiente.
Daí o surgimento também de disciplinas e instituições como a criminologia (uma
aliança entre a psiquiatria e a justiça) e o manicômio (que em seu surgimento também
sofreu a influência de um conjunto de outros fatores como a necessidade de separar os
desviantes produtivos dos não produtivos, de garantir a nova ideologia propagada da
cidadania, de preconizar o cuidado domiciliar aos pobres inválidos em vez do cuidado
asilar, desde que estes não fossem loucos: para estes, o asilo de alienados prometia
milagres e o retorno à sociedade).
As práticas laborterápicas são herança do período do tratamento moral, embora
hoje elas se deem num contexto diferente do da sociedade disciplinar. As formas
contemporâneas de controle vêm misturadas às antigas práticas disciplinares. O controle
15
Para Foucault, a disciplina veio a se estabelecer como uma tecnologia de poder, utilizando-se de
instrumentos que, mais que operadores negativos de repressão e sujeição, produziam positivamente
corpos dóceis e úteis (Ewald, 1993). A disciplina passa então a se desenvolver como tecnologia, no
interior das prisões, mas também nas escolas, nas fábricas, nas famílias. O modelo panóptico pode se
enraizar e disseminar para várias outras organizações. O modelo do combate à lepra, baseado na pura
exclusão e no confinamento, pôde ceder lugar ao modelo do combate à peste, com a segregação
acompanhada, trabalhada, esquadrinhada no tempo e no espaço, controlada e consumida. Um consumo
que produz corpos, dóceis e úteis.
104
capilar, high-tech, das câmeras de vídeo e dos celulares, convive com o duro controle
das instituições totais que, mais do que táticas disciplinares, têm utilizado o abandono
como método de controle (Kinker, 2007). Mesmo assim, persistem intenções
laborterápicas em algumas instituições, com configurações modernas, como a proposta
de inserção individual em empresas, a partir do sistema de cotas. Controle capilar,
iniciativas disciplinares e morais convivem com a desregulamentação e o abandono, a
sensação de insegurança quanto ao amanhã, vivida com exasperação e angústia e não
como liberdade (id., ibid.). Essas são algumas contradições de nosso tempo, e é nesse
terreno que se dão os projetos de trabalho que estou investigando, com o intuito de
produzir-lhes sentido.
NOVEMBRO DE 1989
Entrei no Anchieta pela primeira vez, e lá vi um movimento frenético de pessoas
indo em todas as direções.
Não era fácil distinguir quem eram os pacientes e quem eram os funcionários,
mas existia na porta, do lado de fora, um funcionário que a abria sempre que alguém
batia.
Ao abrir a porta, o funcionário deveria identificar se se tratava de um
funcionário, de um paciente cujo contrato possibilitava a entrada e a saída do hospital,
ou de outro cujo momento não possibilitava a saída, e que fazia lembrar da contraditória
função de cuidar associada à função de controlar que é da natureza da psiquiatria
(Basaglia e Basaglia, 1977, Basaglia, 2001, Castel, 1977).
Nesse primeiro dia de trabalho no hospital, vivenciei duas situações
interessantes.
Na primeira, ao entrar na fila do refeitório, recebi uma colher junto da bandeja
de comida.
Era o que, então, recebiam os pacientes, no lugar de garfos e facas, até porque
ainda se desconstruía na instituição o imaginário de periculosidade e risco dirigido aos
doentes mentais. A superação dessas ideias era também um aprendizado e um desafio
para os profissionais.
105
Utilizei a colher para me alimentar, esperando que um dia pudéssemos todos
utilizar o mesmo talher nas refeições.
A outra situação se deu da seguinte forma: ao bater na porta para sair do
hospital, o funcionário abriu-a e em seguida fechou-a rapidamente, não permitindo
minha saída.
Foi necessário que outro profissional avisasse o responsável pela porta que se
tratava de um profissional e não de um novo paciente, e então pude sair e nunca mais
minha saída foi proibida.
De qualquer forma, era muito interessante essa tênue e rápida confusão entre
pacientes e funcionários, pois indicava que as mudanças nos fluxos de poder,
necessárias para que os internos exercessem poder e para que os profissionais revissem
seus papéis, era algo posto em ação, na forma de corresponsabilidade, liberdade, afeto,
compartilhamento de riscos e de ganhos, todas estas noções que fariam parte do
cotidiano dos projetos de trabalho que desenvolveríamos no futuro.
OS LABORTERÁPICOS II
Desde sempre, na história da psiquiatria e do asilo, a terapia pelo trabalho (que
Pinel chamava de tratamento moral) esteve presente nos genes e nos fenótipos da
prática asilar, mesmo que não levasse esse nome.
Sob uma forma de entretenimento (Saraceno, 1999, 2001)16
, normalização,
adestramento, disciplina (Foucault, 2000, 2005, Castel, 1978), exploração do trabalho,
diminuição dos custos das instituições, a justificada terapia pelo trabalho dentro do
hospital psiquiátrico gerou toda sorte de perversões e exercícios de micropoderes e
16
Entretenimento é um termo utilizado pelo psiquiatra italiano Benedetto Saraceno, que atualmente é o
diretor de saúde mental da OMS, para expressar o risco que os serviços territoriais podem correr se não
assumirem para si a tarefa de atuar no território, praticando um acompanhamento dos usuários dos
serviços nos vários âmbitos da vida. O entretenimento sempre acompanhou a psiquiatria, e é um sinal de
sua impotência. Significa ―manter dentro‖, ―passar o tempo de forma prazerosa‖, ou seja, ocupar o tempo
dos usuários dos serviços como um fim em si mesmo, sem provocar mudanças nas relações sociais
(Saraceno, 1999: 16-7).
106
opressões que se iniciaram a partir das próprias relações entre os internos, reproduzindo
a lógica de poder que tem no médico o modelo do poder moral17
.
Como dizia Foucault, na época dos alienistas, tudo no asilo representava a
extensão do corpo forte e equilibrado do médico (Foucault, 2005a).
Se na atualidade apenas o fantasma e não o corpo dos médicos está presente no
cotidiano do asilo, manteve-se inalterada uma forma peculiar de hierarquização do
poder, que, se subtrai a voz da maioria dos internos, fornece a uns poucos o poder de
definir até quem está bem ou não, e o espaço que este deve ocupar na instituição.
No Anchieta não era diferente, e quem exercia esse poder eram de fato os
laborterápicos.
Dizia-se que antes da intervenção os ―laborterápicos‖ chegavam a definir, dentre
os pacientes mais desobedientes, aqueles que deveriam permanecer nas celas fortes e
aqueles que deveriam ser submetidos à ECT (eletroconvulsoterapia).
Nitidamente, cumpriam a função de poder que lhes garantia alguma valorização
e diferenciação perante os demais internos, o que possivelmente explicava o fato de não
quererem sair do hospital para construir um projeto de vida.
As regalias que possuíam, fossem os cigarros ou o prato de comida especial que
recebiam como pagamento, eram a expressão de uma valorização que se vinculava a
determinado status dentro da instituição, status e consideração que eles não
encontravam facilmente fora do hospital, por terem sido expulsos do convívio social por
suas relações com as drogas e com o que estas provocavam de comportamentos
desviantes.
17
Os terapeutas ocupacionais sabem bem o que significa a voracidade das instituições por mecanismos de
entretenimento. Sempre lhes foram solicitadas formas de ocupação dos pacientes nas instituições totais,
como forma de ―afastar pensamentos mórbidos‖, ―diminuir a agressividade‖, ―organizar o eu‖, ―permitir
ao inconsciente exprimir-se‖, ―treinar comportamentos adequados‖, e toda uma série de motivos que
deixavam imunes e escondidas as contradições institucionais, a própria contradição que explica e garante
a existência da instituição. Atualmente, em muitos casos, os próprios serviços territoriais e comunitários
como os CAPS estão sujeitos a cair na armadilha do entretenimento, quando substituem a relação com o
território e com a existência concreta dos usuários pela excessiva realização de procedimentos grupais,
oficinas terapêuticas etc. Tal situação surge muitas vezes como uma forma defensiva de lidar com a
angústia do não saber: não saber como dialogar com a complexidade da vida dos usuários, com as
questões que alimentam o sofrimento, com um mundo que parece desértico e pobre de recursos etc. Sem
dúvida, esse é um dos importantes desafios da atualidade.
107
Desenvolviam assim uma relação parasitária com a instituição, alimentada pela
valorização que recebiam enquanto ―pacientes diferenciados‖ e pelo medo de enfrentar
nosso louco mundo.
Foi por conta dos ―laborterápicos‖, também, que se pensou, num primeiro
momento, em designar alguns profissionais da equipe do hospital para se discutir a
questão do trabalho.
O objetivo seria construir a saída negociada daqueles internos do hospital, e sua
inserção em novos projetos de trabalho na cidade. Eles já não cumpriam suas antigas
funções, e isso foi motivo de muitas crises e enfrentamentos.
Curiosamente, como já mencionei, a maioria dos antigos laborterápicos não se
vinculou aos projetos de trabalho que lhes foram propostos, mas aos poucos foram
enfrentando a vida fora do hospital. Alguns com mais êxito, outros com menos, mas
todos enfrentando os riscos da vida, que outrora haviam deixado de assumir,
estabelecendo uma relação de dependência com a instituição e seus mecanismos de
poder.
Por outro lado, a equipe formada para acompanhá-los produziu aos poucos
novos projetos de trabalho, constituiu o Núcleo do Trabalho e passou a ocupar, nos
momentos em que não estava nas enfermarias, uma pequena sala ao final de um dos
corredores térreos do hospital, onde fazia reuniões e guardava os materiais que foram
sendo utilizados como ferramentas nos projetos de trabalho.
DESENRAIZAMENTO
Os camponeses dos feudos, ligados profundamente aos movimentos do ciclo da
natureza na realização de seu trabalho e aos vínculos de pertencimento comunitário,
passaram por um movimento de desenraizamento.
Além disso, a proteção que recebiam em contraponto à subordinação em que se
mantinham perante os senhores de terra era fundamental para que se sentissem seguros
num mundo que pouco se modificava (Castel, 1998).
108
Trazê-los a um novo modo de vida nas cidades, em condições sanitárias e
habitacionais precárias, totalmente à disposição dos horários das fábricas, sem o esteio
do apoio afetivo das relações comunitárias, exigiu a brutalidade da violência física e
psicológica, sem o que não adeririam sem resistências ao novo, desgastante, mecânico, e
para eles sem sentido modo de vida anônimo do mercado.
As dificuldades surgidas para domesticar esses novos trabalhadores levaram
filantropos e patrões a estabelecer estratégias para resgatar aspectos perdidos da vida
comunitária, capazes de garantir a sensação de segurança antes vivida no processo de
subalternização nos feudos (lembremos da criação das vilas operárias).
A tentativa de garantir o futuro contra a aquisição de doenças e a incapacidade
para o trabalho deu origem aos primeiros mecanismos de previdência. Não uma
previdência pública, mas mecanismos que coletivizavam ações e recursos e garantiam
aos segurados trabalhadores a possibilidade da subsistência em caso de doença (id.,
ibid.).
VAMOS AO HORTO MUNICIPAL?
Cazuza, Lulu, Russo e outros três ou quatro internos compuseram o grupo que,
já em meados do ano de 1990, frequentaria o horto municipal, para aprender o ofício de
jardinagem, já recebendo uma espécie de bolsa-trabalho.
Como os profissionais do Núcleo puderam abrir uma conta bancária do hospital
para gerenciar exclusivamente alguns recursos destinados aos projetos de trabalho, a
possibilidade de uma bolsa de trabalho tornara-se palpável, mesmo que ainda frágil.
O projeto de jardinagem pôde dar um salto qualitativo e quantitativo quando
profissionais do Núcleo e profissionais da Seac (Secretaria de Ação Comunitária)
resolveram constituir a Afrent, pois foram implantados os convênios com empresas
privadas para a prestação de serviços.
A Afrent, como já mencionei, foi criada porque o Anchieta possuía limites legais
para realizar os contratos, e os usuários ainda não estavam preparados para assumir sua
própria cooperativa.
109
Deu-se também por um desejo dos profissionais de acelerar e ampliar o
desenvolvimento dos projetos de trabalho, viabilizando a entrada de novos recursos.
Mas a fundação da Afrent ocorreu meses após as primeiras experiências no
Horto Municipal.
Antes disso, eu acompanhava, algumas tardes, o grupo de internos até lá para
que eles aprendessem a cuidar das plantas, a produzir mudas, limpar canteiros, ações
que posteriormente desempenhariam nas praças públicas.
Muitos eram os desafios, a começar pelo próprio trajeto do Anchieta ao Horto,
realizado de ônibus.
Como eu pouco conhecia da cidade, uma vez que ainda residia na capital, a
participação dos internos foi fundamental para que não nos perdêssemos muito.
Nessas tardes, o calor interno do Anchieta, abafado e sufocante, era substituído
pelo calor úmido e iluminado do sol das ruas de Santos, com as poucas brisas que
vinham em nosso socorro. Nossas roupas ficavam eternamente molhadas devido ao suor
provocado pelo calor do sol.
No horto, os canteiros eram retangulares e muito compridos, e a primeira tarefa
era sempre distinguir as plantas ornamentais das ervas daninhas, para que estas fossem
arrancadas, permitindo o livre crescimento daquelas.
Alguns funcionários do horto eram designados para ensinar a reprodução de
mudas, e muitas foram as tardes em que, sob o sol, em meio aos canteiros floridos que
guardavam as plantas a serem transferidas para os jardins das praias, fortalecíamos
nossos laços enquanto planejávamos, mesmo no silêncio dos nossos pensamentos, os
próximos passos em direção à ocupação da cidade, o que se daria no futuro com o
projeto que denominamos simplesmente de Terra.
Caetano, nesse ínterim, agachado perante o carteiro, sempre de boné escondendo
a cara amarrada, ficava dividido entre o rádio de pilha, que frequentemente ocupava seu
ouvido esquerdo, e a pequena espátula que usava no trabalho.
110
O rádio foi aos poucos descansando sobre os muros dos canteiros, e a mão que
segurava a espátula pôs-se a trabalhar, para retornar ao rádio nos intervalos e após o
trabalho.
Posteriormente, conseguimos, através da Afrent, e com o apoio da Sehig
(Secretaria de Higiene e Saúde, à qual éramos vinculados), o primeiro convênio com
uma empresa privada para que os usuários cuidassem de um jardim.
A empresa explorava a área externa do edifício-sede da Sehig com um
estacionamento privado e, em contrapartida, remetia mensalmente determinado valor à
Afrent, a título de doação, para que o trabalho de cuidar dos jardins desse terreno fosse
remunerado aos usuários do Anchieta.
Isso possibilitou a remuneração dos trabalhadores, o aprendizado do ofício de
jardinagem, e um primeiro ensaio para ampliarmos a parceria e adentrarmos outros
espaços da cidade através da multiplicação de convênios com diversas empresas.
A remuneração, que no futuro seria suficiente para os usuários bancarem suas
despesas com moradia, alimentação, transporte, por exemplo, nesse momento era
utilizada na compra pontual de pequenos objetos, alimentos, cigarros, roupas.
Os recursos aumentaram mesmo quando, aos poucos, pudemos criar um arco
que envolvia cerca de 15 empresas, a Afrent e a Secretaria do Meio Ambiente
(responsável pelo Horto Municipal).
O mecanismo funcionava mais ou menos assim: enquanto os profissionais do
Núcleo visitavam empresas privadas oferecendo os serviços dos usuários, através de
parcerias com a Afrent, a equipe do Horto oferecia um tipo de convênio em que a
empresa se responsabilizaria pela manutenção dos jardins das praças públicas, em troca
da possibilidade de colocar uma placa com os seguintes dizeres: ―A empresa X adota
esta praça‖.
Quando uma empresa aderia ao Projeto Adote uma Praça, era-lhe oferecida a
possibilidade de contratar, através da Afrent, os serviços dos internos e ex-internos do
Anchieta.
Com a ampliação do projeto, foi necessário construir aos poucos a logística
necessária para operar o trabalho com qualidade.
111
Dentre os elementos que compunham essa logística destacam-se:
A incorporação à equipe do Núcleo de um excelente jardineiro, para
colaborar na coordenação do projeto, acompanhar a execução deste,
realizar reuniões de trabalho com os trabalhadores, viabilizar treinamento
em serviço, agenciar novas parcerias, viabilizar os recursos necessários
etc. Esse jardineiro foi trazido da Secretaria de Esportes para a Sehig, e
teve um papel fundamental para garantir que o trabalho fosse realizado
com qualidade.
A aquisição de equipamentos de jardinagem pela Sehig, tais como pás,
tesourões, máquinas de cortar grama movidas a gasolina e,
posteriormente, um veículo Kombi para transporte dos equipamentos até
as praças.
O apoio logístico e material do Horto Municipal, através do fornecimento
de mudas e outros insumos, apoio técnico e a utilização de caminhões
para transporte de terra e adubos.
A participação da Afrent no recebimento e repasse do dinheiro das
empresas para os trabalhadores, no apoio à organização do trabalho e no
acompanhamento das atividades, no agenciamento de parcerias, na ponte
com as equipes dos NAPS para a construção conjunta dos projetos de
vida dos usuários. A Afrent, como já foi dito, era composta em sua
maioria pelos mesmos profissionais que compunham o Núcleo do
Trabalho.
No decorrer da constituição desse projeto de trabalho, foi possível estabelecer
uma dinâmica de participação efetiva dos trabalhadores em todos os seus aspectos e
dimensões.
As reuniões semanais com toda a equipe do projeto eram espaços de troca e de
constituição de um projeto coletivo, onde as conquistas eram comemoradas, as
dificuldades discutidas solidariamente, as contradições debatidas, as perspectivas
futuras compartilhadas e projetadas coletivamente.
Era uma forma de construir coletivamente a participação de pessoas com
capacidades diversas e dificuldades singulares, inventando formas novas de se fazer as
112
coisas. A ideia era que a plasticidade das estratégias permitisse que pacientes muito
graves pudessem exercer níveis variados de protagonismo.
As estratégias eram inspiradas naquela ideia de constituir uma forma de tutela
baseada na mediação e na produção de autonomia, na mesma perspectiva que Franca
Ongaro Basaglia aponta neste interessante trecho:
―Entender a tutela como momento de emancipação e não mais de
repressão; emancipação no sentido de que as pessoas, quanto mais
necessitadas de proteção, tanto mais devem ser colocadas em condição
de viver positivamente a própria ‗minoridade‘ para conquistar ou
recuperar autonomia e responsabilidade‖ (Basaglia, 1993: XXIV).
Aos poucos, os serviços de jardinagem nas praças foram complementados por
serviços particulares em residências e em entidades como o Sesc (Serviço Social do
Comércio), o clube de futebol Portuguesa Santista, entre outros lugares.
Abria-se também a possibilidade de se experimentar novas propostas de trabalho
junto desses parceiros-clientes, como o serviço de limpeza do estádio da Portuguesa
Santista realizado algumas vezes depois de alguns jogos.
FORDISMO E TAYLORISMO
Após a primeira revolução industrial do século XIX, coube a Ford e Taylor
protagonizar os métodos científicos de produção que se tornariam a regra e deixariam
rastros fortes até hoje, embora muitos proclamem a superação desse modelo pelo
avanço tecnológico de terceira geração (terceira revolução industrial e tecnológico-
microeletrônica).
A famosa produção em série, os movimentos limitados e cadenciados de cada
trabalhador na linha de montagem, o distanciamento profundo do trabalhador do
produto final, coletivo e anônimo ao mesmo tempo, marcaram toda uma geração no
desenvolvimento das indústrias.
113
Como que por mágica, um produto saía pronto sem que nenhum dos
trabalhadores pudesse compreender o processo na totalidade.
A separação entre trabalho manual e intelectual, a hierarquização disciplinar
altamente avançada, a abertura de capital pelos investidores ainda conectados com a
produção real (sem a volatilidade e autonomia dos capitais que circulam atualmente
pelo mundo na velocidade da internet) caracterizaram o momento fordista de produção,
que promoveu o desenvolvimento mercantil, embora tenha sido abalado por crises
sistêmicas como a do final dos anos 20 e as posteriores, inicialmente relacionadas ao
petróleo, posteriormente referentes às bolhas especulativas dos capitais voláteis.
A época fordista representou a construção avançada de novas formas de
seguridade social, de novas expectativas de empregos quase vitalícios (Sennet 2002,
2006; Bauman, 2003), de novas redes de sociabilidades girando em torno do processo
avançado de mercantilização da sociedade.
Tais formas de sociabilidade produtoras de projetualidades individuais e
coletivas deram-se não só em função das estratégias dos Estados que garantiam o
avanço do mercado, superando resistências, mas pelas próprias resistências dos
trabalhadores ou da população que não se submetia a essa forma de existência, e que,
por isso, era considerada desviante e propensa a ser caso de polícia.
Em todas as épocas de desenvolvimento do capital, os mecanismos de
resistência e novas formas de sociabilidade conviveram com o movimento hegemônico
da forma de sociabilidade do trabalho moderno.
Não sendo linear, o desenvolvimento capitalista convive com nichos contra-
hegemônicos de produção e de relações sociais que representam um mix das formas já
superadas de produção.
É o que aponta Sassen (2006) quando sustenta que as ilhas do capitalismo
avançado, ou as vilas mundializadas, cidades desenvolvidas como Nova York,
convivem com investimentos de capital altamente desenvolvido, tecnologia de ponta, e
com formas artesanais de produção, formas de comércio alternativo, funções menos
valorizadas no mercado ocupadas por imigrantes, mas que mantêm sua importância
enquanto valor de uso no cotidiano da vida nas cidades.
114
Nem todas essas formas alternativas de participação do mercado, contudo,
significam formas de resistência.
Boa parte delas sugere a ocupação de espaços marginais, de pequenas bordas do
mercado que não interessam ao grande capital, mas que não deixam de reproduzir uma
lógica de produção e de circulação de mercadorias prevalente no mercado.
BARTOLOMEU DE GUSMÃO: SANTISTA E INVENTOR DO AERÓSTATO
O santista Bartolomeu de Gusmão foi um grande personagem da história por ter
sido o inventor do aeróstato, o famoso balão movido a ar quente utilizado para levar os
seres humanos às nuvens.
Essa informação foi trazida pela diretora do curso de Direito de uma
universidade local.
O personagem histórico era o patrono da universidade e foi muito lembrado no
festejo de comemoração do aniversário dela.
Na verdade, os dirigentes da universidade queriam aproveitar as comemorações
para fazer a cidade relembrar alguns aspectos de sua história. Unir uma estratégia de
marketing a um projeto de resgate da memória que pudesse lembrar que Santos já foi
berço de importantes personagens, lembrando a cidade de que é possível fazer história e
não estar apenas à mercê das marés.
Como todo personagem histórico, Bartolomeu de Gusmão tinha seu busto
exposto no centro de uma praça localizada no centro da cidade.
O projeto de intervenção cultural proposto pela universidade agregou, através da
intermediação do Horto Municipal, a participação daqueles personagens que, naquele
momento, saíam da penumbra do manicômio adentrando a cidade (a partir da mediação
produzida por um novo olhar e uma nova prática em saúde mental): os ex-internos do
Anchieta, novos trabalhadores coletivos.
Os novos trabalhadores do Projeto Terra seriam os responsáveis pela renovação
do jardim, e para isso seriam pagos pela universidade, num trabalho conjunto com os
engenheiros do Horto que projetariam todas as transformações da praça.
115
Após o término do trabalho, numa data festiva, com a participação de todos os
envolvidos e do público em geral, foi inaugurada a praça em meio a diversos festejos.
Brindávamos o fato de estarmos aplicando algumas estratégias fundamentais
para o sucesso dos projetos de trabalho na perspectiva da desconstrução do paradigma
psiquiátrico.
As estratégias a que me refiro eram:
Ocupar espaços diversificados na cidade, como forma de repropor a
convivência dos cidadãos com as pessoas que vivem uma existência de
sofrimento psíquico, modificando assim valores do imaginário social,
descobrindo formas de estar em companhia, dividindo espaços comuns;
Viabilizar ações promotoras de melhorias concretas na qualidade de vida
da cidade, que é o palco das novas relações e normas construídas
coletivamente. Participar da constituição de um espaço agradável,
acolhedor e belo, que é a praça, promovendo intervenções culturais,
novas relações e experimentações inéditas.
O que buscávamos transformar eram as noções de incapacidade, periculosidade
e incompreensibilidade do louco e a simplificação da experiência do sofrimento
psíquico em simples sinais e sintomas desconectados da realidade contraditória de vida
dos usuários.
O MUNDO DA PRODUÇÃO APÓS A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL: O
ESTADO-PROVIDÊNCIA
O momento fordista de desenvolvimento econômico, impulsionado por ideais
liberais, sofreu reveses que foram demarcados temporalmente pelas duas Guerras
Mundiais.
Estas levaram à produção de uma série de reformas, seja as de caráter
keynesiano (forte presença do Estado no estímulo ao desenvolvimento, criação da
infraestrutura para a produção e pleno emprego visando o consumo em larga escala com
a consequente alimentação do ciclo de produção), seja as de caráter reformista no
campo da seguridade e das políticas sociais (reformas de hospitais, programas de saúde
116
pública etc.), além de outras modificações fundamentais no campo das estratégias
organizacionais de produção.
Aqui, sugere Bauman (2003), a ―escola das relações humanas‖ da sociologia
industrial de Elton Mayo dos anos 30 iniciou aquilo que seria uma das experiências de
reestruturação produtiva e de reengenharia no sentido de envolvimento dos
trabalhadores no processo de produção, propiciando um clima de pertencimento do
trabalhador ao projeto da empresa e a qualificação e ampliação do potencial produtivo.
É claro que as ciências, em especial nas áreas de economia e de humanas,
desenvolveram muitos métodos de estimulação e envolvimento participativo dos
trabalhadores, incluindo-se as técnicas psicológicas, sempre consoantes com o
desenvolvimento da tecnociência, com seus pressupostos simplificadores pautados na
lógica formal e no cartesianismo.
O toyotismo e os programas de Qualidade Total vieram representar tendências
mais modernas de envolvimento dos trabalhadores na produção, consoantes com o tipo
de empresa necessária a um ambiente de mercado com alto desenvolvimento
tecnológico.
A criatividade e a flexibilidade dos trabalhadores passaram a desempenhar papel
fundamental na valorização capitalista do trabalho, embora essa seja uma criatividade
que produz obra sem autor, e que é tão descartável quanto o próprio trabalhador.
BLITZ
Tarde parada, sem vento nem mar.
Arrumamos nossos corpos e espíritos para uma visita ao Horto. Desta vez, num
grupo um pouco maior, cerca de 10 pessoas.
No canal 2, pegamos o ônibus.
É verdade que era um grupo um pouco incomum: os internos do Anchieta
calçando roupas simples e sandálias de dedo, e os profissionais, vindos da classe média,
em trajes pouco convencionais.
117
Era como uma mistura de semicamponeses-boias-frias com semi-hippies (já que
hippies de verdade não moram nem circulam nos mesmos espaços sociais, nem têm os
mesmos hábitos dos semi-hippies da classe média).
A mistura de trajes desse curioso grupo não somente provocou certo
estranhamento nos transeuntes, estranhamento esperado na medida em que ―abríamos as
portas do manicômio‖, como motivou a ação de autoridades que viram, na
movimentação que ocupou boa parte dos assentos do ônibus, a possibilidade que dali
surgisse algum foco de infração das leis.
Um carro de polícia parou o ônibus no meio da avenida. Os policiais entraram
no ônibus e dirigiram-se diretamente ao grupo para solicitar os documentos de
identidade.
Mesmo explicando quem éramos e de onde tínhamos vindo, tive a bolsa
revistada. Mas aceitaram, depois de muitas explicações, que boa parte do grupo não
possuía documentos, porque seus integrantes eram oriundos de um longo período de
internação no hospital psiquiátrico, alguns tendo perdido o fio da história de suas vidas
e seus documentos.
De loucos a suspeitos contraventores. A relação das autoridades com toda sorte
de desviantes nunca deixou de atualizar o que se vivia nos tempos anteriores ao
surgimento da psiquiatria, em que criminosos, prostitutas, loucos e toda a forma de
desatino eram amontoados nas casas de internamento, numa combinação de cuidado
com punição (Foucault, 2002, 2005a, 2006). Tecnologia que permaneceu em diversas
instituições organizadas a partir do modelo panóptico: a escola ensina, mas vigia; a
prisão tenta recuperar, mas pune; o manicômio tenta curar e usa a punição como arma
disciplinar.
A situação do ônibus fez-me pensar que nem sempre é tão simples ―emprestar‖
poder de contrato aos usuários18
.
18
A noção de poder de contratualidade, muito utilizada pelos reformistas italianos, foi lembrada por
Roberto Tykanori Kinoshita, interventor do Anchieta. Para Kinoshita (1996: 46), se entendermos que a
vida social é pautada por processos de trocas de mensagens, afetos e bens, veremos que ―cada participante
da relação pressupõe um valor pré-atribuído aos outros, isto é, um poder contratual. No caso dos
pacientes psiquiátricos, este poder contratual é socialmente anulado pelo seu enquadramento no status de
118
Talvez aqui uma noção mais foucaultiana de poder, como um fluxo sempre
instável e em permanente desequilíbrio, formatado por resistências que estão sempre ali
a confrontá-lo e a moldá-lo (Foucault, 2003a, 2003b, 2003c, 2008), possa servir melhor
para uma reflexão.
O poder exercer o poder de ocupar um ônibus e ir trabalhar, juntamente com o
poder dos profissionais de saúde mental que legitimam essa possibilidade como real
alternativa à segregação no manicômio, foram suficientes para superar a resistência dos
policiais em seu trabalho de inibir a circulação daquilo que fugia à norma.
Produzimos e exercemos poder contra a maré, à beira-mar19
.
O MUNDO ATUAL DA PRODUÇÃO E A PRODUÇÃO DE SOCIABILIDADE
O momento atual é não só de reestruturação produtiva, onde vigoram padrões
tecnológicos e novas formas de desregulamentação das relações de trabalho, como de
uma intensificação do sempre existente processo de globalização, ou de globalizações,
como defende Boaventura de Sousa Santos (2005).
Para este autor, a concepção dominante de globalização, a globalização pelo viés
dos vencedores, se coloca unicamente na dimensão econômica, muito embora haja
outras dimensões para os processos de globalização, como as dimensões interestatal e
cultural.
Os localismos globalizados (o que é universalizado de um local para o globo) e
os globalismos localizados (aquilo que chega como universal e global a uma localidade
específica) convivem com movimentos de resistência contra-hegemônicos também ao
mesmo tempo locais e globais, que ele traduz como cosmopolitismo (articulação de
doente mental. Suas mensagens são ‗obviamente‘ ininteligíveis; seus afetos, ‗necessariamente‘
desmedidos; seus bens, implicitamente sem valor. Nesta condição de ‗nulidade de intercâmbio‘ torna-se
impossível qualquer pretensão de inserção social, exceto pelo seu status de doente, de não-ser, de ser-
paciente‖. Em seguida, o autor afirma que, diante desse quadro, a função dos profissionais é emprestar
poder contratual aos pacientes, até que estes ganhem autonomia.
19 Contra a maré, à beira-mar: A experiência do SUS em Santos é um livro que relata a experiência de
construção do sistema de saúde que se tornou modelo em várias áreas, entre 1989 e 1996, quando o SUS
ainda estava no início de seu desenvolvimento (Henriques, Braga Campos, 1996).
119
grupos minoritários visando à preservação do direito à diferença, ou a organização
sindical multinacional de empregados de empresas multinacionais) e de defesa do
patrimônio da humanidade (como a defesa do meio ambiente).
Aproxima-se da ―globalização de baixo para cima‖, proposta por Milton Santos
como forma de produzir uma mundialização que produza uma consciência universal
rica e alternativa ao pensamento único neoliberal (Santos, 2000).
As transformações atuais no mundo do trabalho levam autores a se desencontrar
quanto aos aspectos positivos ou negativos desses processos, ou quanto ao significado
deles enquanto produção de sociabilidades.
Na caracterização do funcionamento atual das empresas, Bauman (2003), por
exemplo, explica que o controle de tipo fordista, que reproduz uma escala hierárquica
na linha de montagem, através da multiplicação de capatazes e chefes, como pelotões
em marcha, é substituído por um tipo de controle que mais lembra um enxame de
abelhas: os poderosos e gerentes cuidam das flores, para onde tentam se deslocar
caoticamente os funcionários das empresas, atentos ao seu perfume e aos prêmios que
elas fornecem.
Não há necessidade de um controle pormenorizado, mas do estabelecimento de
prêmios determinados, de incentivo à concorrência, da disseminação de um sentimento
difuso de insegurança, quando sabem os trabalhadores que os méritos passados já não
contam, uma vez que a descartabilidade da produção segue o fluxo veloz do mercado, e
dos investimentos financeiros.
Ninguém sabe se a empresa estará lá amanhã, quanto tempo durará o emprego,
que tipo de funções a empresa precisará para se adequar às novas demandas.
Linhas produtivas são descartadas rapidamente, outras linhas são produzidas
para ter uma existência tênue, na tentativa de ocupar um lugar transitório e de curto
prazo no mercado.
A desregulamentação de Bauman se opõe à jaula de ferro de Weber, pois as
grades atuais são de algodão, ou algo multiforme de difícil detecção.
120
Nela, os poderosos já não se preocupam em controlar minuciosamente, porque
esse tipo de controle também significava que estavam sendo controlados e que tinham
sua liberdade de locomoção limitada.
O controle de perto exige assunção de responsabilidades, sendo mais
interessante deixar os trabalhadores à própria sorte, sem ter que produzir relações de
compromisso de longo prazo, como se dava nas antigas empresas fordistas.
É claro que a ausência de compromissos de longo prazo ressoa não só nos
ambientes de trabalho, mas produz um poder de desarticulação das já frágeis relações
comunitárias.
De outro lado, Sennet (2006) vai explicar que a empresa atual também se
desvinculou da pirâmide hierárquica, produzindo outras formas de controle que se
despojaram dos níveis intermediários.
Se uma ordem levava até meses para chegar do topo da pirâmide à base, sendo
reinterpretada por cada nível intermediário, hoje os meios instantâneos de comunicação
permitem que as ordens cheguem do topo à base em tempo real, bem como podem
chegar pela internet avisos de demissão ou de mudança de posto.
A impessoalidade dos novos mecanismos gerenciais troca a visão da pirâmide
pela do aparelho de MP3, onde cada faixa de música pode ser programada ao bel-prazer
daquele que tem o privilégio de operar a máquina, nos altos cargos gerenciais.
Isso sem falar dos consultores, que surgem repentinamente para aplicar
reformas radicais que implicam enxugamento do quadro de pessoal, e que não nutrem
nenhum vínculo com a empresa, muito menos com seus trabalhadores.
Santos (2005) cita estudos que identificam a criação de novas classes
multinacionais, formadas por donos de empresas, gerentes de alto nível, políticos das
localidades, burguesia local, gerentes de agências internacionais de regulação
econômica. Junto delas, a intensificação da desigualdade da riqueza se apresenta como
um fenômeno sem comparações anteriores.
Os investimentos ainda ditam as normas do movimento das empresas, embora,
nesse momento, estejam desconectados dos processos reais de produção. Ou seja, o
dinheiro produz valor velozmente, através da compra e venda de ações e de mecanismos
121
especulativos que levam empresas a se tornar altamente valorizadas em poucas horas e
voltar à condição de total desvalorização logo depois, gerando lucros a partir de
operações financeiras, e não mais por sua produtividade real (Kurz,1999a).
NOEL, O HOMEM-MÁQUINA
Noel viveu muitos anos no Anchieta, e era um daqueles internos que havia muito
perdera contato com a família.
Foi através de um longo processo de convencimento, cujo lastro era a relação de
confiança estabelecida entre os profissionais e os usuários do hospital sob intervenção,
que Noel concordou em experimentar novas relações, a partir dos projetos de trabalho.
Assim como os demais ―moradores‖ do Anchieta, ele experimentava aos poucos
emergir das profundezas do obscuro oceano representado pelo manicômio, como aquele
submarino que lança seu periscópio antes de emergir, garantindo assim uma aparição
sem riscos aparentes nem armadilhas à espreita.
Assim parecia o movimento ondulatório e nada linear dos antigos moradores,
que iam e voltavam nesse processo de ampliação da rede de relações.
Às vezes entravam em crise querendo expressar que o movimento de saída do
hospital estava muito rápido ou pesado para ser suportado.
Crises se seguiam aos avanços em direção aos novos territórios de relações,
exigindo um novo recolhimento, um recuo estratégico.
Eram situações onde os internos simplificavam em forma de sintomas sua
complexa ―existência-sofrimento‖ (Rotelli, 1990) que, embora se apresentasse como
doença, expressava a complexa rede de relações e de desafios a enfrentar.
Noel então passou a ser um dos trabalhadores do Projeto Lixo Limpo,
frequentando o centro de triagem diariamente, como um dos parceiros da difícil
empreitada de separar toneladas de material reciclável, que chegavam cada vez em
maior quantidade devido ao aumento da participação dos munícipes que aderiam ao
programa separando o material para a coleta domiciliar.
122
Era um grande desafio conseguir um equilíbrio entre a produção de trabalho e de
vida. Esse era o desafio principal do projeto, e de todos os seus atores.
Para isso, o cotidiano de trabalho era seguido diariamente por técnicos da
Prodesan, responsáveis pelo gerenciamento, andamento e produtividade do trabalho de
separação, pela manutenção das máquinas, pela comercialização do material, focando
essencialmente a inserção do projeto no mercado.
Do outro lado, mas sempre em interação, conectando aspectos da produção, mas
focando a produção de vida, havia as intervenções da equipe do Núcleo do Trabalho.
Ela acompanhava o andamento do trabalho, apoiava a relação de cada
trabalhador com ele, promovia o intercâmbio entre os trabalhadores para que se
construísse um projeto coletivo, através de reuniões de trabalho e outras formas de
discussão. Também conversava individualmente com cada um dos trabalhadores, para
saber como andava a vida, para integrar aquela experiência ao projeto terapêutico que
era construído pelas equipes dos NAPS em conjunto com os usuários.
A integração com os NAPS se dava de variadas formas: compartilhando
informações, combinando intervenções conjuntas etc.
Mas os projetos de trabalho não se davam sem tensões e enfrentamentos, mesmo
entre os atores que o compunham, ou destes com o mercado.
O viés da produtividade, mesmo sendo uma das dimensões do trabalho à qual
todos estavam atentos, era mais defendido pelos técnicos da Prodesan.
Se todos os atores compartilhavam papéis comuns, o papel de cobrar a
produtividade era exercido de forma mais intensa pela Prodesan, e era fundamental para
o projeto que houvesse essa divisão de tarefas e que alguém se responsabilizasse por
aquilo que seria a possibilidade de o projeto ter uma presença real e não ilusória no
mercado.
Não queríamos reproduzir o entretenimento que sempre reproduziu a
laborterapia da psiquiatria (Saraceno, 1999, 2001), nem o fim em si mesmo dos
cotidianos de trabalho que buscam apenas a ampliação do capital.
123
O que garantia a riqueza e a potência do projeto eram as tensões decorrentes de
funções e olhares diversos entre os vários atores que o compunham.
Mas não era algo fácil. Os técnicos do Núcleo, ao mediar as relações entre os
trabalhadores e o trabalho, deveriam se esforçar para avaliar a cada momento o grau de
autonomia dos usuários, de modo a modificar constantemente as formas de apoio à
medida que se conquistavam novas habilidades e se efetivavam novos protagonismos.
Mediar era a palavra-chave, e significava viabilizar junto aos trabalhadores
formas originais e novas de se fazer as coisas, sem que o movimento se estagnasse, sem
que houvesse riscos e desafios insuportáveis, sem que recaíssemos na velha rotina do
entretenimento e do fim em si mesmo, tão conhecida da psiquiatria dentro do hospital
psiquiátrico.
E com essas tensões os projetos iam caminhando.
Algumas vezes de forma mais intensa, como quando o volume de material
recolhido atingia níveis alarmantes, ou como quando tínhamos que lidar com a falta de
alguns trabalhadores que se encontravam sob licença por necessitarem cuidar da saúde.
As tensões coletivas dos projetos se somavam às demandas singulares de cada
trabalhador, no processo de reconstrução da própria vida depois de deixar o manicômio.
Voltando ao Noel, creio que essa foi a situação quando, de repente, a equipe do
Núcleo, que não estava no local, foi acionada pelos técnicos da Prodesan: Noel tentava a
todo custo beber o óleo destinado às máquinas, que se encontrava em galões espalhados
pelo centro de triagem.
Os técnicos da Prodesan tentavam dissuadi-lo, e entender o porquê daquela
iniciativa tão incomum. Não conseguiam obter um diálogo positivo com Noel, e este
teve que ser segurado constantemente por um dos seguranças que guardavam a portaria
do local (a função dos seguranças era evitar assaltos e proteger os trabalhadores e o
patrimônio).
Desloquei-me até o local e tentei dialogar com Noel, que não queria trocar
muitas palavras. Tive que segurá-lo para que não bebesse o óleo, e isso não foi nada
simples.
124
Rolamos juntos no chão, sempre envolvidos por boa quantidade de óleo.
Minhas roupas ficaram todas manchadas, e tiveram que ser posteriormente
descartadas.
Chamamos uma ambulância e fomos acompanhar Noel ao NAPS 2, que era sua
unidade de referência, à qual recorremos para nos ajudar a oferecer outra forma de
acolher o sofrimento de Noel.
Noel foi medicado e acolhido. Estava muito angustiado. Dormiu algumas noites
no NAPS antes de retornar ao trabalho.
Poderia supor que ele quisesse expressar que não estava suportando o trabalho,
disputando óleo com as máquinas, dizendo que se sentia uma máquina. Ou como se
dissesse que ainda se sentia como aquela máquina dentre as muitas máquinas que
residiam no Anchieta, sem vida política, como corpos físicos à espera de ser nutridos,
como Homo sacer (Agambén, 2002).
A partir desse momento, pudemos retomar o diálogo com Noel procurando
processar lentamente o sentido do trabalho em sua vida, para que as palavras
substituíssem os atos dramáticos como este de ingerir óleo de máquinas.
E assim caminhavam os projetos, não como máquinas de entretenimento, mas
como rizomas (Deleuze, Guattari, 2004) que se autotransformavam, no sentido de
produzir cada vez mais vida.
TRABALHO IMATERIAL E CRIATIVIDADE
A categoria trabalho adquire outro contorno com o atual desenvolvimento
tecnológico, e faz com que o chamado trabalho imaterial ganhe força. Gorz (2005),
Negri e Lazzarato (2001), Hardt (2003) sustentam a importância do trabalho imaterial,
sem, contudo, alertar para o fato de que o trabalho imaterial sempre existiu, assim como
os focos de criatividade, autonomia, exercício do conhecimento da experiência de vida,
mesmo em condições desfavoráveis como os da produção fordista.
125
Sugerem a efetivação desse tipo de trabalho como o lugar da produção de valor,
que substituiria a clássica determinação marxista do valor como produto do tempo
socialmente gasto pela força de trabalho para produzir as mercadorias.
Esse valor fluido e imaterial procederia nem tanto dos conhecimentos científicos
e tecnológicos, mas do talento empreendedor e da criatividade, além do saber cotidiano
ligado à resolução de problemas.
A determinação dos processos de trabalho viria, então, não mais de cima para
baixo, como na indústria fordista, mas a partir da captura pela empresa dos movimentos
criativos dos funcionários.
A empresa seria algo como um molde autodeformante de potente capacidade de
gerenciamento e de respostas rápidas aos nichos sempre frágeis e de vida curta do
mercado.
A possibilidade de desenvolver a autonomia e a criatividade (que Bauman
defende como produtora de angústia e insegurança, ao invés de um sentimento de
liberdade) seria, por este viés, acompanhada da captura pela empresa do todo da vida do
empregado.
Ou seja, voltaríamos ironicamente à situação pré-moderna de inseparabilidade
das dimensões do trabalho e da vida cotidiana, da mistura do trabalho, do lazer, do
prazer, da obrigação, da religião, dos valores, das relações familiares, todos convivendo
num mesmo espaço-tempo.
Só que, desta vez, longe de implicar a complexidade da vida e da cultura das
comunidades, essa nova fusão implica o domínio absoluto da dimensão da produção de
valor no cotidiano de vida dos trabalhadores.
É certo que o termo absoluto deve ser empregado aqui com muita cautela, pois
sabemos o quanto movimentos de resistência convivem e modulam as novas ações,
determinando os fluxos das relações de poder.
É difícil negar que haja atualmente um movimento de valorização que busca
totalizar sua presença, envolvendo a vida inteira das pessoas, mas é certo que ele não
chega a ter pleno sucesso.
126
BOCA VERMELHA
Elis pintou a boca com um batom bem vermelho. Além disso, pós de maquiagem
verdes e arroxeados dominavam seu rosto bastante envelhecido.
Sempre que isso acontecia, sabíamos que uma crise se aproximava; outra Elis
entrava em cena: uma mulher de 55 anos com um linguajar vulgar e dada a oferecer-se
aos homens da padaria que ficava na esquina do Anchieta.
As roupas extravagantes e o olhar inquiridor já eram por si um modo de seduzir
que exigia pouco das palavras.
À visão metamorfoseada que se nos apresentava somava-se o jeito agressivo e
hostil com que, nesses momentos, Elis se dirigia às pessoas com quem possuía um
vínculo importante.
Queria dizer, nesses momentos, que estava mal, que não estava à disposição de
dialogar, diferentemente do jeito terno e delicado de se dirigir aos conhecidos quando
era a outra Elis.
Essa Elis aguda e cortante surgia sempre que se discutia a possibilidade de
mudança da primeira Elis de seu lugar no Anchieta, onde residia havia anos, para um
quarto de pensão ou outro lugar de moradia.
Elis já trabalhava no Lixo Limpo e possuía condições financeiras que
possibilitavam tal mudança. A mudança representaria um importante desafio no sentido
da ampliação dos lugares de vida e de relações.
Foram muitas as tentativas e muitos os avanços e retornos dados até que
finalmente Elis se sentisse forte o suficiente para acreditar que a mudança seria possível.
A constituição do NAPS 2, no centro de Santos, foi fundamental para que ela
visualizasse o efetivo suporte que garantiria essa empreitada, com todos os riscos
implicados, riscos que são os da própria vida.
Rotelli (1990) já apontava que o manicômio era o lugar de ―troca zero‖. O
manicômio é o oposto da vida, que só pode existir se riscos são assumidos.
127
Poderíamos supor que o manicômio seria como que o lugar de risco zero à
sociedade, uma vez que certa classe de desviantes nele se encontraria confinada e
controlada.
Suporíamos também, no entanto, que ele seria o lugar de altos riscos para os
internos. Altos riscos de ter a subjetividade dizimada, o desejo apagado e abafado, a voz
e o poder sobre o próprio corpo anulado. O risco da coisificação se apresenta de forma
atordoante no manicômio.
Os riscos da vida são riscos mais maleáveis, já que se encontram numa medida
entre a negatividade do desvalor e a positividade do valor. Entre o vazio da passividade
e a potência do desafio.
―As contradições sociais são o húmus do processo terapêutico‖ (Basaglia e
Basaglia, 1977; Basaglia, 2001) e, por que não?, o lugar dos riscos e dos desafios da
vida de qualquer humano.
Assumir os riscos da vida, como um desafio coletivo e não solitário, que produz
movimento, é o que foi proposto a Elis.
Ela aceitou o desafio, e a segunda Elis, caricatura do medo, agressividade da
defesa, aos poucos deixou de ter sentido e nunca mais apareceu.
Em troca, outra Elis, também diferente daquela passiva moradora de hospital
psiquiátrico, foi aparecendo, sempre em metamorfose, num diálogo constante com o
universo das trocas sociais, sempre tensas e contraditórias.
A CONSTITUIÇÃO DA FIGURA DO TRABALHADOR NO BRASIL
No caso do Brasil, às tendências globais de funcionamento das empresas,
somam-se as características históricas peculiares de um país que viveu bom tempo sob o
julgo de Portugal e de regimes republicanos mais ou menos autoritários e paternalistas.
O estigma da vagabundagem sempre acompanhou a construção da figura do
trabalhador brasileiro, aquele que se indispõe a trocar a festa por posturas disciplinadas
de trabalho, à maneira das antigas potências industriais.
128
Durante a história, nas principais fases do desenvolvimento econômico e social
do Brasil, o trabalhador nativo teve sua presença pouco delineada nos relatos oficiais.
A importância do processo de dizimação da população indígena e dos
mecanismos violentos da escravidão dos africanos na composição do mercado de
trabalho teve seu tamanho minimizado (Gambini, Dias, 1999; Blass, 2004).
O que ficou para a história é que à incapacidade de adaptação dos índios ao
trabalho nas plantações de cana sobrevieram os escravos africanos.
Do mesmo modo, ao posterior desenvolvimento da cafeicultura, passando pelo
curto período da extração mineral (onde finalmente os caboclos nativos figuravam como
atores a acompanhar os bandeirantes), sobreveio a chegada dos imigrantes europeus
(Ribeiro, 2000), que de fato ficaram marcados como os precursores dos trabalhadores
assalariados modernos no Brasil.
Pouco se fala das funções desempenhadas pelos nativos caboclos, na construção
de estradas ou outras obras, e de sua resistência a ser engolidos pelas formas do
mercado em desenvolvimento, bem como pouca importância se atribui aos índios e aos
escravos e a suas trajetórias de opressão na composição da figura do trabalhador
assalariado brasileiro.
A formação da classe trabalhadora no Brasil também se deu de forma violenta e
forçosa, embora de um jeito peculiar, acompanhando os ciclos de desenvolvimento e as
suas estratégias.
PROFUNDAS CAIXAS D‘ÁGUA
Trouxemos mais um profissional da Secretaria de Esportes, após prospecções
para encontrar talentos que pudessem enriquecer a equipe da URP (Unidade de
Reabilitação Psicossocial).
Esses talentos, vindos de profissionais que não eram da área de Saúde Mental,
era algo difuso e difícil de explicar.
Passavam muito mais pela disponibilidade de contato com a diferença, pelo
senso crítico que possibilitava entender o processo de construção de autonomia e poder
de contratualidade.
129
É um talento de saber colocar-se numa relação dinâmica onde o poder flui e
circula, onde uma construção coletiva se impõe às tentativas sempre humanas de
individualizar ou produzir identidades exatas. Aquele processo de mistura e separação,
indiferenciação coletiva e afirmação individual, que se faz necessário no movimento
inédito de produzir subjetividades.
Porque a subjetividade também é exercício de poder, se desenha no exercício do
poder, ou na participação no negócio (Saraceno, 1999)20
.
Recorrendo novamente a Deleuze e Guattari (2004), poderia dizer que a equipe
da URP e os usuários faziam mais rizoma do que raiz.
Nesse sentido, a identidade era o movimento não só contingente, mas também
produtor de sentidos.
O sentido não é contraditório à contingência, desde que não nos aprisionemos
nele, tendo-o como uma camisa de força, uma doutrina, uma religião, ou um partido
político.
O talento desses profissionais que foram agregados à equipe da URP, apesar de
não atuarem anteriormente na área da saúde mental, consistia em se relacionar com os
usuários, em se misturar e exercer coletivamente o poder, em mediar os conflitos e as
mudanças produzidas pela participação dos ex-internos nos espaços sociais.
Esse talento era sempre lapidado pelo restante da equipe da URP, em especial
aqueles profissionais que participaram do processo de desconstrução do Anchieta, e que
tinham muito claro o significado do exercício coletivo do poder, a produção de rupturas
nos contextos e novas subjetividades, de novos contextos, a partir da construção que a
desconstrução das instituições realiza.
Esse novo profissional assumiu também algumas tarefas em projetos específicos.
Ele e os trabalhadores do Projeto Caixa d‘água penduravam-se nos mais altos
pontos dos imóveis que compunham as unidades de Saúde da Sehig, para realizar a
desinfecção das caixas d‘água.
20
Saraceno aqui se refere à possibilidade de assumir o risco de viver a partir da participação efetiva nas
trocas sociais. A palavra negócio representa a saída do isolamento e a entrada no intercâmbio
enriquecedor das trocas sociais.
130
Era um trabalho de constante pesquisa e que exigia o talento circense do
malabarismo. Pesquisa porque era difícil encontrar a localização das caixas d‘água, bem
como a melhor forma de ter acesso a elas e de levar até elas a bomba que esvaziaria o
reservatório.
Esse trabalho, sem dúvida arriscado, mas muito importante para as unidades de
saúde, foi possível graças ao treinamento que a equipe da vigilância sanitária da Sehig
ofereceu aos usuários, levando-os a entender o processo de desinfecção, a ordem e o
tempo dos procedimentos necessários para um bom resultado (procedimentos que
geralmente não são executados com rigor pelas próprias empresas especializadas em
desinfecção).
A execução do trabalho levava a uma necessária articulação com os gerentes e
os trabalhadores das unidades de saúde, para que se organizasse a suspensão temporária
dos atendimentos, ou outras estratégias que não atrapalhassem o bom andamento das
unidades.
Os serviços eram pagos pela própria Sehig, em depósitos bimensais, para não
caracterizar a necessidade de se fazer um processo licitatório.
Além disso, para não se criar vínculos empregatícios, a cada pagamento um dos
trabalhadores do grupo assinava os recibos.
Essas eram as estratégias que possibilitavam aos grupos de usuários a execução
de uma tarefa que, de outra forma, só poderia ficar a cargo de empresas de pequeno ou
médio porte.
Era uma forma de reconversão de recursos, de substituição dos gastos com o
hospital psiquiátrico pelo financiamento de ações que produziriam vida, novos valores
sociais que questionariam a suposta incapacidade e periculosidade do louco, servindo ao
mesmo tempo para qualificar a atividade das unidades de saúde.
O transporte dos trabalhadores e dos equipamentos até as unidades de saúde era
realizado com o veículo próprio da URP.
A bomba de sucção foi adquirida com recursos da Afrent, que fez um
empréstimo sem juros aos trabalhadores, para que estes pudessem ter a própria bomba.
131
Os profissionais de saúde mental que acompanhavam o projeto eram os da URP,
e seus salários eram pagos pela prefeitura. Essa era a forma de fazer a reconversão de
recursos.
Umas das caixas d‘água mais difíceis, além das caixas das cerca de 20
policlínicas (nome dado às Unidades Básicas de Saúde), centros de especialidades etc.,
eram as caixas d‘água do Anchieta.
Por se tratar de um prédio enorme, as caixas d‘água eram subterrâneas e
correspondiam ao tamanho de imensas salas.
Lá, os trabalhadores esfregavam as paredes como que a desinfetar, destrinchar,
limpar todo o sofrimento que haviam vivenciado na instituição.
Enquanto o grupo processava todo o sentido do trabalho nas reuniões semanais
do projeto, as caixas d‘água de um Anchieta em processo avançado de desconstrução
(neste momento com poucos internos, uma vez que já existiam pelo menos 3 NAPS) e
as outras caixas d‘água das policlínicas faziam jorrar uma água translúcida e limpa,
anunciando os bons tempos que a cidade vivia.
COMPETIÇÃO SEM REGRAS
Aquilo que tem sido preconizado pelo neoliberalismo, ou seja, que as regras
jurídicas devem prevalecer sobre a intervenção do Estado, ou melhor, que o Estado só
deve intervir para permitir o livre desenvolvimento da competição no mercado, parece
ser o oposto do que tem acontecido no mercado atual21
.
Difícil dizer que a corrupção tenha sido apenas um desvio das regras jurídicas
bem estruturadas do mercado.
Seria a corrupção inerente aos processos competitivos?
21
Foucault (2008a) mostrou muito bem como a Alemanha do pós-guerra foi reconstruída tendo como
base princípios de valorização dos mecanismos de mercado, que poderíamos chamar hoje de neoliberais.
Curioso é ter feito tal genealogia dos aspectos econômicos da reconstrução da Alemanha no curso do
Collège de France, cuja publicação recebeu o instigante nome de O nascimento da biopolítica.
132
Independente das respostas a essa questão, parece haver uma certa obscuridade
quando se considera a preconizada visibilidade de regras do mercado.
As mesmas relações pouco imparciais de que são acusadas as burocracias dos
Estados, que favorecem determinados grupos quando de suas operações comerciais,
parecem se reproduzir cotidianamente nas relações de troca dos entes privados.
E isso talvez não seja uma característica de nosso tempo atual, mas de todo o
percurso de constituição do mercado e dos Estados Nacionais.
Mas a realidade fluida muda seguindo o exercício das relações de poder, e, ao
mesmo tempo em que são reproduzidas essas relações de competição sem regras,
movimentos de emancipação e questionamento da competição somam-se ao
questionamento do poderio da mercadoria e do dinheiro.
Outras formas de sociabilidade convivem com a sociabilidade mediada pela
mercadoria.
Aqui, a vida como arte, ou a estética da existência, encontra lugar para existir em
indivíduos e grupos de indivíduos, que atualizam sua criatividade exercendo um poder
de resistência aos fluxos hegemônicos.
OS AMIGOS DAS PRAÇAS
Do Projeto Terra faziam parte pessoas com histórias muito diferentes.
Algumas pessoas – que deixaram as ruas depois de ser acompanhadas pelo
Centro de Atendimento à População da Seac –, mesmo com períodos marcados pelo uso
abusivo de álcool e outras drogas, possuíam um ritmo acelerado de trabalho, muita
energia e expectativas de atingir objetivos muito rapidamente.
É claro que essa velocidade poderia ser sinal de fugacidade, fragilidade,
superficialidade, intensidade total que logo se desmancharia no ar por falta de bases de
sustentação de longo prazo, como é a experiência intensa do uso abusivo de drogas,
quando se alcança o céu tão rápido quanto se desce em seguida ao inferno.
133
A possibilidade de sustentação de um projeto no tempo, onde se
compatibilizassem contínuas mudanças com a construção de bases de sustentação
sólidas, era o grande desafio para essas pessoas no projeto.
A outra parte do grupo, maioria absoluta, era composta por usuários dos NAPS
e, nesta fatia, as pessoas eram também muito diferentes em sua relação com o trabalho.
Para alguns, o simples circular da casa ao local de trabalho era o primeiro grande
desafio a ser enfrentado.
Para outros, o desafio se dava no compartilhar atividades com outras pessoas.
Outros ainda tinham como desafio ampliar a qualidade e a quantidade do
trabalho e, assim, conseguir ampliar os recursos financeiros que recebiam em troca.
Estes, aos poucos, ampliaram suas atividades para além das praças, prestando serviços
de jardinagem em residências, com a chancela e a mediação do Projeto Terra.
Aqueles cujo desafio se encontrava na experiência do começar a trabalhar
exigiam outro tipo de chancela e de mediação.
Algumas combinações entre os profissionais da URP e os dos NAPS eram feitas
com os usuários para que o processo pudesse ser iniciado.
Muitas vezes, essas combinações traduziam a necessidade de se acompanhar o
usuário no trajeto do NAPS ou da casa até o local de trabalho, o apoio e a mediação
mais constantes dos profissionais, a possibilidade de o usuário experimentar e
experimentar-se em vários projetos.
A participação de alguns usuários muito graves nos projetos de trabalho era um
desafio particularmente fundamental para os profissionais, pois ela tocava no cerne do
paradigma psiquiátrico que se baseia numa concepção de normalidade muito vinculada
a certo tipo de subjetividade e sociabilidade ligadas às capacidades para o trabalho. Ou
seja, a normalidade enquanto determinado padrão de se fazer as coisas, de se relacionar
com as coisas e com as pessoas através do trabalho.
Foi a busca dessa ―normalidade‖ que legitimou tanto as práticas do tratamento
moral no início da psiquiatria, quanto as demais práticas disciplinares e laborterápicas
que sempre acompanharam e foram centrais na prática psiquiátrica.
134
A lógica da cura e da pura adaptação sempre esteve implícita nessas práticas,
enquanto expectativa de treinar e adaptar para depois, supostamente, inserir no trabalho
(o que levava as legiões de pacientes a permanecerem eternamente ―em treinamento‖,
pois a hora da inserção nunca chegava).
Era tudo isso que questionávamos a partir dos projetos de trabalho.
Seria preciso mudar os contextos (Saraceno,1999) para que os usuários se
colocassem como protagonistas dos processos de trabalho, participando de fato (e não
virtualmente) do mercado, mas questionando o tipo de sociabilidade produzida por ele e
a forma como ele propõe que as coisas sejam feitas.
Se em nossa perspectiva o trabalho não era simples normalização e
adestramento, ele também não era uma dimensão da vida por onde obrigatoriamente
deveria passar a reabilitação psicossocial.
Ou seja, o trabalho não se colocava como o dispositivo único e obrigatório de
inserção social ou reabilitação, não era o lugar obrigatório por onde todos os usuários
deveriam passar.
Não era também o dispositivo adequado para determinado diagnóstico ou
determinado grau de autonomia. Não estava destinado aos pacientes ―menos graves‖,
nem era visto como um momento posterior do que se considerava tratamento
terapêutico. Não era sinal de cura, pois não era sobre a doença que se trabalhava, mas
sobre a ―existência do sofrimento e sua relação com o corpo social‖ (Rotelli, 1990).
A participação num projeto de trabalho era uma possibilidade de ampliação da
rede social e do arco de relações pessoais dos usuários; uma possibilidade entre outras,
podendo ser utilizada desde que produzisse sentido para o processo do usuário, na
construção de seu projeto de vida.
É óbvio que o trabalho poderia produzir valor social, novas normas etc., mas não
poderia ser o único caminho para a produção de poder de contrato nem valor social, já
que vivemos um momento muito especial do mundo do trabalho, momento em que
existe a possibilidade de se inventar novas formas de atividade humana que produzam
sentido no bojo dos resultados da revolução microeletrônica.
135
Se uma das possibilidades de viabilizar experiências enriquecedoras para um
usuário do NAPS no sentido de ampliação da rede social e do poder de contrato passava
em algum momento pela participação num projeto de trabalho, essa aposta era
atualizada, mesmo para os usuários muito graves.
Um nível de protagonismo singular é sempre possível, até para quem fosse
considerado o sujeito mais louco do mundo.
Participavam dos vários projetos usuários-trabalhadores em situações muito
distintas, muitos deles bem graves.
Buarque, por exemplo, participou de alguns projetos, mesmo não sendo todos os
dias da semana. E seu ganho financeiro era proporcional a sua participação.
Era ele um sujeito de 20 anos de idade, baixo e magro, cabelos negros e lisos
que sempre caíam nos olhos. Estes falavam muito mais que a boca, embora as
mensagens fossem sempre enigmáticas.
O que queriam dizer aqueles olhos quando as pálpebras e a musculatura facial
eram projetadas para a frente, como que penetrando no espaço? Olhar penetrante, às
vezes macabro e acompanhado de um pequeno sorriso, às vezes parecendo ser um
reflexo do diálogo mudo com os personagens de Buarque, seus ―interlocutores
invisíveis‖ (Nathan, 1996).
Ele escutava vozes durante boa parte do tempo e, quando o solicitávamos, era
como se tivesse que abandonar outro diálogo interno para nos responder.
Certa vez, uma experiência difícil e inesquecível foi vivida por uma das
profissionais da URP que acompanhava o Projeto Lixo Limpo quando Buarque dele
participava.
Como Buarque demorasse a sair do banheiro, ela, preocupada, entrou no recinto
e deu-se conta de que Buarque estava lambuzando o rosto com as próprias fezes.
Foi difícil para essa profissional lavar cada detalhe do rosto recoberto de fezes, e
o fato gerou um olhar especial entre todos os envolvidos no acompanhamento de
Buarque no sentido de entender quais eram suas necessidades naquele momento.
Posteriormente o trabalho continuou e Buarque continuou a fazer parte dele.
136
Tom, como Buarque, trabalhou tanto no Lixo Limpo – que era um lugar de
desejo de vários usuários porque a bolsa-trabalho, de 1,5 salário mínimo, era uma das
mais altas, valor apenas superado por alguns usuários do Projeto Terra que faziam
serviços residenciais – como nas praças.
Tom falava muito mais que Buarque, perguntava, solicitava, embora fosse
bastante gago e suas palavras saíssem como que cuspidas, rapidamente, após várias
tentativas de dizê-las.
Era um sujeito muito afável, de olhos arregalados, baixo e gordo. Os
movimentos do corpo eram rápidos e fragmentados como a fala.
Depois de mexer o corpo para lá e para cá, na dúvida de qual seria o próximo
movimento, decidia repentinamente e agia, como uma metralhadora.
Tinha também um inesquecível bigodinho que, em conjunto com os dentes
projetados para a frente, por vezes lembrava um daqueles belos e lépidos coelhos
brancos.
Tom falava muito consigo mesmo, ou talvez com seus personagens, em voz alta.
Gostava de usar a enxada, mas o fazia com tanta força que teve de ser orientado
a adequá-la à necessidade da terra, das plantas e da tarefa que estava executando.
Era preciso estar muito perto de Tom, por dois outros motivos: um deles é que
ele tinha especial predileção por alimentos abandonados que encontrava nas praças,
mesmo que estes não estivessem assim em total condição de ser consumidos.
Outro motivo diz respeito ao fato de Tom por vezes irritar-se com as pedras. Era
como se brigasse com elas, discutindo, até chegar a ponto de jogá-las longe. Só que,
algumas vezes, não olhava para onde a pedra era atirada, tão envolvido que estava pela
necessidade de expulsá-la, tirá-la imediatamente de sua frente. Por pouco não acertou,
algumas vezes, os carros que passavam em torno da praça.
Mas isso era constantemente trabalhado com ele.
Certa vez, Tom teve alguns problemas gástricos, e então discutimos novamente a
necessidade de ele resistir à tentação de consumir os alimentos que encontrava nas
praças.
137
Nós o convencemos, então, a tentar limpar a mochila que sempre levava às
costas, e que sempre estava totalmente abarrotada.
Concordou que o ajudássemos a fazer a seleção dos objetos, pensando
especialmente nos alimentos que poderiam estar estragados.
Foi duro para Tom ter que se desfazer de um pedaço de bolo de festa, cuja data
de validade parecia ter sido ultrapassada há tempos, e que se encontrava dentro de um
prato em meio aos arbustos de uma das praças.
E assim caminhavam as negociações com Tom e outros usuários, sendo que,
com relação ao primeiro, ficava cada vez mais fácil convencê-lo a comprar o próprio
bolo, pois o projeto de trabalho lhe dava as condições de fazê-lo e de, assim, participar
também da troca de bens e serviços.
INSEGURANÇA, ANSIEDADE, DEPRESSÃO
A sociabilidade da mercadoria sempre conviveu com novos riscos e ameaças e
seus concomitantes remédios, quais sejam, as reformas com forte liderança dos Estados
nacionais.
Mesmo considerando a alegada fraqueza atual dos Estados, que se submetem às
determinações pouco coerentes do mercado, e os novos focos de poder centralizados
nos atores econômicos multinacionais, é inegável a forte presença dos Estados nos
momentos de crise econômica, ora propondo-se a controlar os fluxos monetários, ora
refinanciando dívidas de particulares, ora defendendo a total independência do mercado
(como se esta um dia de fato tivesse possibilidade de existir) na deliberação de soluções
de curto e médio prazo.
O estado de insegurança dos cidadãos continua sendo mantido sob determinados
limites de maneira a não trazer riscos à sociabilidade do mercado e à funcionalidade do
sistema econômico.
Mesmo vencendo a etapa do controle disciplinar como método preponderante de
controle, e estabelecendo mecanismos mais fluidos de controle, na linha da sociedade de
138
controle defendida por Deleuze22
(1992), o Estado continua com uma função
insubstituível enquanto garantidor da soberania do mercado. Mecanismos flexíveis e
capilarizados de controle, câmeras de vídeo nas ruas e celulares para atendimento on-
line ininterrupto convivem com batidas policiais, invasões de residências nas favelas,
força bruta na corrupção vinculada ao tráfico de drogas.
Miseráveis, como sempre, não têm como garantir o direito de defesa caso
venham a aterrissar em algumas das celas superlotadas de nossas prisões, enquanto os
ricos continuam a dispor de muito espaço para usufruir suas riquezas, defendidos até os
dentes por advogados influentes e seguranças particulares.
A vivência da insegurança é sentida de forma diferente pelos abastados, por
integrantes das classes médias que ainda dialogam com o mercado de trabalho, e
aqueles que há muito tempo não sabem o que é emprego, mas nem por isso deixaram de
produzir regras, valores e formas de existência tendo como base elementos da
sociabilidade do trabalho e da mercadoria.
Estes últimos provavelmente levam a vida ―ao deus dará‖, sem projetualidades
definidas, e sem que isso signifique exatamente uma libertação ao estilo proposto pela
22
Ao se discutir a questão da complexidade do controle e da vigilância, a cartografia apresentada por G.
Deleuze sobre a sociedade de controle (Deleuze, 1992) serve como um importante contraponto à
descrição da sociedade disciplinar realizada por Foucault. Enquanto Foucault se referia a um tipo de
sociedade em formação nos séculos XVII e XVIII, Deleuze identificará um momento de desvio a partir
do fim da Segunda Guerra Mundial. A sociedade de controle caracteriza-se por fluxos de poder maleáveis
e não pela rigidez das estruturas disciplinares e, o que é importante para nossa discussão, por uma
capilarização acentuada do controle, pela inclusão mais que pela exclusão. Nela, a prisão dá lugar a penas
alternativas, permitindo a vigilância em espaços e tempos ininterruptos; o hospital vira hospital-dia, e
passa a ocupar os corpos e as mentes de maneira permanente, e não só em momentos especiais; a
educação e o controle pedagógico saem dos espaços escolares na tentativa de disseminar seu poder
normativo em todos os poros da sociedade. As formas de controle são variações geométricas que usam
uma linguagem numérica e, também por isso, se diferenciam dos espaços de confinamento. Porque ―os
confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma
moldagem autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas
malhas mudassem de um ponto a outro‖ (id., ibid.: 221). A empresa, com seus sistemas de prêmios e de
competição, substituiu a fábrica; a formação permanente tomou o lugar da escola, e o controle contínuo o
do exame. Assim também cada tipo de máquina – as de alavancas e roldanas na sociedade disciplinar e os
computadores na sociedade de controle – exibe a nova e frenética movimentação da produção e das
pessoas que não se desligam nem saem desse feixe contínuo e ondulatório de energia. Em torno dessas
características, a sociedade de controle se configura como uma máquina de controle flexível, destoando
da tendência centralizadora e baseada apenas no confinamento.
139
vivência do devir sem identidade de Deleuze e Guattari (2004), ou mesmo o homem
potente de Nietzsche (1998, 2003).
Um devir metamorfoseante exige a delimitação de campos que se afastem dos
valores da mercadoria e do dinheiro, ou seja, da sociabilidade do trabalho moderno.
Sem essa possibilidade, o devir perde seu caráter emancipatório para se tornar
anomia da destruição, estufa das pulsões sem nome ou valor, Real lacaniano sem
mediações, luta de todos contra todos.
Novamente, cabe relativizar essa influência da sociabilidade da mercadoria nos
espaços sociais mais frágeis economicamente.
Sabemos que a produção de laços comunitários nunca deixou de ocupar espaços
existenciais no cotidiano dos grupos sociais, tanto assim que essas formas de
sociabilidade sempre tenderam a ser capturadas pelo mercado para ser usadas como
estratégia de dominação das populações subalternas ao processo econômico.
Reciprocidades, contratualidades de longo prazo sempre conviveram com a falta
desses mesmos elementos, numa síntese em eterna metamorfose.
Nas enchentes que devastam barracos de favelas sempre vemos famílias serem
abrigadas por outras famílias.
Sempre vemos traficantes obedecerem às cruéis e rígidas normas do tráfico, que
incluem a exigência da lealdade como questão de vida ou morte, e ao mesmo tempo
obedecerem aos afetos tolerantes de suas relações familiares e amorosas.
Quer dizer, a mistura de elementos que lembram a trajetória histórica dos grupos
sociais com os novos elementos disfuncionais propalados pelo mercado traz à cena
situações inusitadas em que convivem harmonia e desarmonia, afinação e desafinação,
desolamento e criação.
Porque geralmente a angústia e a ansiedade dão lugar a respostas tão diferentes
como a solidariedade do ombro amigo e da cumplicidade, e o uso abusivo de drogas
140
lícitas da indústria farmacêutica, que prometem a solução instantânea do sofrimento do
mesmo jeito que a indústria do cigarro prometia status e sucesso aos fumantes23
.
Produzir laços comunitários e transnacionais, sendo cosmopolita, na linguagem
de Santos (2005), é um desafio que tenderá a conviver com as contradições insuperáveis
da presença de elementos do mercado em nossas subjetividades.
UM ROSTO A SER CONSTRUÍDO
Rita Lee era uma bela garota.
Já dizia sua orgulhosa mãe, com quem Rita Lee tinha uma relação radicalmente
ambígua, porque expressava tão fortemente o amor e o ódio, mais fortemente do que a
maioria das pessoas o faz, que ela havia sido uma bela gerente de loja de roupas num
dos shoppings da cidade, àquela época noiva de um belo rapaz24
.
Com o adoecimento de Rita Lee, a mãe passou a expressar também fortemente
essa ambiguidade que nos cerca a todos, mas que passa a ser quase insuportável para
alguns.
Rita Lee utilizava muito a hospitalidade noturna do NAPS 325
, onde dormia
algumas noites em que o conflito familiar chegava a um nível insuportável.
23
Maria Rita Kehl (2004) problematizou de forma interessante a captação do inconsciente das pessoas
pelos publicitários e vendedores dos produtos midiáticos do mercado. Essas estratégias expressam o
desenvolvimento da tecnologia de mobilização e criação de desejos que o mercado e suas disciplinas
científicas (o marketing, por exemplo) têm desenvolvido há muito tempo, e que correspondem ao atual
estágio do desenvolvimento tecnológico do mundo da produção, bem como às estratégias de controle das
subjetividades e dos comportamentos.
24 Sem dúvida, é possível que haja muita fantasia ou certo exagero em algumas informações, já que Rita
Lee e a mãe viveram histórias muito difíceis, como o momento em que Rita Lee foi gerada, a partir de
uma relação de sua mãe, que era empregada doméstica, com o filho de sua patroa. O pai não assumiu a
filha, e isso foi muito significativo para Rita Lee. Poderíamos até nos perguntar se o belo rapaz com quem
Rita Lee noivou representaria aquele príncipe inacessível perdido pela mãe quando esta engravidou.
25 Hospitalidade noturna é uma possibilidade de atenção que apenas os CAPS III podem oferecer, pelo
fato de funcionarem 24 horas por dia. Significa oferecer ao usuário do serviço um espaço de acolhimento
noturno que este pode usufruir quando a dinâmica da vida exigir. Difere da internação psiquiátrica porque
é realizado dentro da lógica de atenção cotidiana e territorial do CAPS. O processo de acompanhamento
cotidiano e de construção de projetos de vida vai permitindo a construção de uma base de conhecimentos
sobre a realidade de vida dos usuários e a construção de vínculos que possibilitam ao usuário ressignificar
141
Então, dividindo as noites e os dias entre o NAPS e sua casa, para tentar
ressignificar a vida a partir de algumas mediações, Rita Lee vivia a maior parte do dia
reclamando de um mal-estar difuso.
Dizia que seu rosto estava desmanchando, pedia que confirmássemos ou
negássemos tal informação, chorava, despenteava-se, ficava irritada.
Deslizava as palmas das duas mãos sobre o rosto, lentamente, como a conferir se
ele ainda estava lá. Ficava a segurar o rosto, como que a impedir que desaparecesse.
Aos poucos, como o NAPS 3 ficasse a uma quadra de distância da casa-sede da
URP, pensamos em dar-lhe como tarefa o posto de vendedora num box de metal que
instalamos na entrada da unidade, para vender produtos de alguns dos projetos de
trabalho.
Na época, fabricávamos vários produtos, com o intuito de testá-los no mercado,
utilizando o espaço da sede da URP para confeccioná-los. Foi assim que foram
produzidas coisas tão diferentes como chinelos, echarpes tingidas artesanalmente,
cartões de festas pintados a mão e, finalmente, perfumes.
Todos os produtos tiveram vida mais ou menos curta, pois aos poucos fomos
percebendo que era difícil concorrer com empresas que produziam em série,
conseguindo um preço final muito menor.
Aprendemos que produtos artesanais podem ocupar o mercado se tiverem um
diferencial muito importante, que agregue valor não pela quantidade, mas por alguma
característica que só possa ser encontrada neles, distinguindo-os dos demais.
Certamente é difícil encontrar tais qualidades, que tornem os produtos artesanais
tão singulares quanto as obras de arte, mas podemos lembrar o exemplo das peças de
roupa paraibanas feitas com um algodão colorido naturalmente, sem tingimentos (o
algodão já nasce colorido). Em outras palavras, os consumidores compram as roupas
suas experiências. Assim, o usuário pode utilizar a hospitalidade noturna porque está em crise, para
prevenir uma crise, porque vive um conflito peculiar em seus espaços de vida, entre outras possibilidades.
Outro fator que diferencia a hospitalidade noturna ou integral da internação é que a segunda se baseia na
doença e pretende diminuir os sintomas e isolar a possibilidade de escândalo social, enquanto a primeira
lida com a ―existência-sofrimento e sua relação com o corpo social‖, pretendendo ser uma ação
estratégica dentro de uma miríade de possibilidades de mediação entre o sujeito que sofre e seu contexto.
142
nem tanto pelo design, mas pelo fato de terem sido confeccionadas com um algodão
raro que já nasce colorido.
Outro exemplo é a possibilidade de se constituir alianças com artistas plásticos
famosos e criativos, que possam desenvolver junto aos usuários peças excepcionais.
Mas Rita Lee tentava manter-se como vendedora mesmo passando por várias
fases, intercaladas com períodos em que começava a ficar mal e não conseguia
trabalhar.
Certa vez, depois de passar a manhã esforçando-se muito para trabalhar, Rita
Lee foi almoçar com outros usuários que trabalhavam na marcenaria que funcionava na
sede da URP e usuários de outros projetos, num refeitório de um serviço de reabilitação
física que funcionava perto do local (era um acordo que tínhamos com esse serviço, pois
não havia como termos refeições no espaço da URP).
Ao adentrar no refeitório, repentinamente, Rita Lee correu em direção a uma
funcionária que não conhecia, mas que também almoçava no local, e desferiu-lhe um
tapa no rosto.
Foi um alvoroço geral, inclusive com funcionários e pessoas com deficiências
que lá eram atendidas, comentando que era mesmo muito complicado almoçar no
mesmo lugar que pessoas com transtornos mentais.
O funcionário da URP que acompanhava o grupo de usuários-trabalhadores
interveio e a trouxe de volta à URP.
À parte todo o esforço para entender o que havia acontecido (será que ela se
revoltara pelo fato de aquela pessoa ter uma face, enquanto a dela sempre fugia?), foi
necessário um trabalho posterior de mediação e discussão com a direção e os
trabalhadores do serviço de reabilitação.
A diretora, uma fisiatra muito envolvida com as demandas que envolviam as
pessoas com deficiências, teve muita dificuldade em compreender o que ocorrera e em
garantir a possibilidade de os usuários da URP continuarem a compartilhar os mesmos
espaços sociais das outras pessoas.
143
O fato trouxe à tona o mito da periculosidade do louco, o questionamento da
possibilidade de os usuários da URP almoçarem no local, e uma série de discussões
interessantes acerca da violência que nos circunda.
Conseguimos negociar a possibilidade de continuar a utilizar o tal refeitório.
Além das negociações com a diretora do local, outras foram as estratégias e
ações executadas, como conversar muito com Rita Lee e com a pessoa por ela agredida,
e propiciar um encontro entre as duas, onde a própria Rita Lee explicaria a situação, já
que ela estava em condições de expressar que não era nada focado naquela pessoa em
particular, mas algo que tinha a ver com um delírio passageiro.
Nunca soube que Rita Lee tivesse agredido outra pessoa, a não ser algumas
tentativas que fizera diante de alguns funcionários do NAPS e da URP nessa difícil fase
por que passara.
O rosto, sim, continuou muitas vezes a se desmanchar, mas apenas quando ela
estava em crise.
Pudemos, inclusive, voltar a almoçar com frequência no tal refeitório e, às vezes,
Rita Lee voltava a trabalhar, outras ficava bastante tempo sem fazê-lo, tentando sair da
prisão que a consumia e que interferia em suas sensações corporais.
FALTA DE COMPROMISSOS DE LONGO PRAZO
Foi-se o tempo em que era comum encontrar os pequenos empórios de bairro,
com seus vendedores permanentes (Sennet, 2002). Os shopping centers, as redes de
supermercados, as mudanças imobiliárias decorrentes da especulação, a fragilidade dos
empregos e dos negócios, entre outros fatores, fazem com que o espaço urbano se
modifique muito rapidamente e, em consequência, troca-se com muita rapidez os atores
envolvidos, os vendedores e os compradores.
Como ressaltou Bauman (2003), fica mais difícil construir laços de longo prazo,
quando os atores em relação não sabem se haverão de se encontrar no dia seguinte para
cumprir seus combinados. O exemplo dos pequenos empórios pode ser ampliado para as
144
empresas, os bairros, os territórios. A desregulamentação dificulta os compromissos de
longo prazo, estimulando os compromissos instantâneos, efêmeros.
A aceleração do tempo e a fluidez do espaço são marcas de nosso tempo.
Embora guardemos reminiscências do tempo em que os contratos se davam em
longo prazo, é difícil desconsiderar que o tempo ágil e rápido exige novas modalidades
de contrato e de relações de confiança, capazes de se adequar às particularidades dos
fluxos da comunicação.
Os tempos do diálogo são instantâneos, os meios de transporte possibilitam o
deslocamento rápido de cada vez mais pessoas (o que inventarão para superar o avião?),
e torna-se um desafio construir sociabilidades cooperativas num contexto
microeletrônico.
Para se viabilizar a preponderância da ação e do discurso, defendida por Hannah
Arendt (2001), será preciso ocupar e constituir novas ágoras para o encontro e a
participação direta das pessoas.
A ideia de representação política, nestes termos, pode ser algo superado pela
participação direta e instantânea das pessoas, mesmo sabendo que o encontro via
internet jamais poderá substituir o encontro dos corpos, a troca de mensagens
presenciais, envolvendo elementos como hálitos, cheiros, gestos, nuances da
comunicação do corpo que não passam apenas pela linguagem verbal, mas pela energia
corporal.
Embora possamos simular relações sexuais, orgasmos e até a fabricação de
bebês em laboratório, a escolha pela interatividade presencial se coloca como questão
política e opção de vida dos atores sociais.
Os contratos, embora pressionados pelo tempo da instantaneidade, certamente
podem elaborar laços apertados e firmes que sustentem no tempo a produção de
subjetividades e de novos valores.
Sim, temos um pouco de mercado e de máquina em nós mesmos, os
computadores foram feitos à nossa semelhança, individualizando nossas características
e capacidades, mas o contato com eles faz reforçar essas características em nós mesmos.
145
E enquanto transformamos os computadores em seres idiossincráticos, também
nos transformamos um pouco mais em seres frios, calculistas.
Construir laços fortes é um desafio para a produção de novas formas de
sociabilidade.
Essa é mais uma contradição de nosso tempo a ser adequadamente investigada.
BERTIOGA
Bertioga era um distrito de Santos antes de se emancipar em 199326
, tornando-se
então um município.
Localizado a cerca de 40 km de Santos, possuía uma série de serviços públicos
municipais, como um hospital, centros de saúde, escolas.
Havia também um terreno com amplas instalações (alojamento, galpão coberto,
escritórios), que pertencia à Prodesan, e que em 1990 estava desativado.
Esse fato possibilitou a concretização de uma das ideias que daria suporte a um
dos projetos mais importantes do governo de então: a reurbanização do Dique da Vila
Gilda da Zona Noroeste de Santos, uma favela composta por palafitas, onde viviam
muitas famílias em condições miseráveis de vida.
O projeto de reurbanização do dique era um projeto intersetorial porque
implicava uma ampla intervenção com a participação de várias secretarias municipais.
Além de canalizar o imenso e sujo córrego e construir casas de alvenaria sobre as ruas
assim surgidas, estavam previstas ações de várias secretarias, como forma de viabilizar
outro contexto de vida para as famílias residentes.
A ideia que daria suporte a tal projeto era a construção de uma Fábrica de Blocos
em Bertioga, que forneceria matérias-primas para o mutirão e a grande obra.
Depois de muitas negociações entre o interventor do Anchieta e coordenador de
saúde mental do município, o grande articulador que abriu as portas de várias secretarias
26
O plebiscito que decidiu pela emancipação de Bertioga ocorreu em 1991. A eleição do 1º prefeito
ocorreu em 1992 e, aos poucos, nos anos seguintes, a cidade foi se desvinculando efetivamente de Santos.
146
municipais para que fizéssemos parcerias, e o presidente da Cohab-ST, decidiu-se que
os trabalhadores da fábrica seriam os usuários dos serviços de saúde mental, e que a
fábrica seria implantada em Bertioga.
Um grande desafio para nós, porque Bertioga era distante, não havia nos
serviços públicos nenhum profissional de saúde mental, e pouco conhecíamos das
características do território.
Fizemos um convênio entre a Cohab, o Anchieta e a Afrent, para que
pudéssemos viabilizar as bolsas de trabalho no valor de 1,5 salário mínimo, garantir
alimentação, transporte e, finalmente, acompanhamento por parte dos profissionais da
URP e do NAPS, aos quais os usuários continuariam vinculados.
Para viabilizar o andamento do trabalho, foi proposto que os trabalhadores
pernoitassem no alojamento da fábrica de segunda a sexta-feira, retornando a Santos nos
finais de semana.
Isso seria também um imenso desafio, pois durante as noites eles teriam apenas
o apoio do zelador das instalações, o que, entretanto, considerávamos suficiente.
Definimos uma equipe composta inicialmente por uma psicóloga, uma assistente
social e uma terapeuta ocupacional, para acompanhar o trabalho diariamente. Essas
profissionais partiam de Santos diariamente pegando carona numa ambulância, como
era costume e como ocorria com os outros trabalhadores dos serviços públicos de
Bertioga.
Até que essa ambulância fosse substituída por um ônibus, muitas foram as
viagens desses profissionais, literalmente empoleirados na parte posterior da
ambulância, dividindo o lugar com três ou mais pessoas.
Posteriormente também agregamos à equipe uma psiquiatra, e iniciamos então, a
partir do Centro de Saúde local, os atendimentos à população em geral, ao mesmo
tempo que os trabalhadores da fábrica eram acompanhados.
O grupo de trabalhadores era bem heterogêneo, formado por pessoas com
histórias de forte envolvimento com álcool, e outros com transtornos mentais graves.
147
Não é preciso dizer que os momentos iniciais exigiram uma mediação intensa,
no sentido de vencer as barreiras e as dificuldades que um projeto de trabalho tão
distante poderia trazer.
Por enquanto, basta dizer que foram muitas as mediações para que o grupo
conseguisse trabalhar coletivamente e ainda passar as noites juntos. E que as recaídas,
em especial dos usuários de álcool, exigiram negociações e intervenções comunitárias,
com visitas aos vizinhos, reuniões abertas à comunidade etc., no sentido de
problematizar as condições dos usuários, expor os objetivos do projeto e conseguir o
apoio da maior parte das pessoas.
Às vezes ocorria de algum trabalhador não dormir no alojamento e ser
encontrado posteriormente dormindo ao relento, intoxicado.
Quando isso ocorria, a equipe da URP tratava de agenciar os cuidados
necessários e, posteriormente, problematizar o fato com o trabalhador e o grupo.
A fábrica ficava num terreno amplo à beira do belo rio Itapanhaú, onde, por
vezes, as tainhas mergulhavam saltando para fora d‘água como se fossem tigres, ou
como que expressando seu desejo de um dia se transformar em pássaros.
Não esqueço quando um dos usuários do NAPS 2, candidato a uma vaga de
trabalhador da fábrica, foi visitar pela primeira vez o local e, não resistindo ao apetitoso
rio, tirou a camisa e os sapatos e brindou-se com um refrescante mergulho.
Os profissionais do NAPS que o acompanhavam quase se desesperaram,
gritando para que ele retornasse logo.
Mas ele nadava muito bem e logo retornou a terra, tão logo teve satisfeita sua
sede de rio. Não se identificou com o tipo de trabalho tanto quanto com o rio, e logo
desistiu da vaga.
De fato, o trabalho não era nada leve, pois as máquinas que modelavam os
blocos precisavam ser frequentemente alimentadas com a massa misturada nas
betoneiras, que por sua vez também precisavam ser constantemente alimentadas com
cimento, areia e pedrisco.
148
Da máquina, saíam blocos sobre paletas a serem carregadas por outros
trabalhadores até o local de secagem.
No decorrer do processo surgiram algumas crises referentes à relação custo da
produção/produtividade.
A intenção da Cohab era que a fábrica se tornasse um investimento barato e que
substituísse a compra de blocos prontos de outros fabricantes; e a intenção da equipe da
URP era que o grupo de trabalhadores pudesse dar conta do recado e utilizasse a
experiência como uma alavanca para a construção de novos projetos de vida.
Se tivemos muitas dificuldades para alcançar a produtividade desejada, não
foram menores as dificuldades da Cohab para fazer um gerenciamento adequado do
negócio.
Até que isso ficasse claro, foram muitos os momentos de tensão entre a equipe
da URP e os técnicos da Cohab (diga-se de passagem, a Cohab trocou várias vezes os
gerentes da fábrica, tentando encontrar uma administração que conseguisse responder
ao desafio).
Certa vez, um dos diretores da Cohab, preocupado com os custos do projeto, e
atribuindo todos os problemas à suposta produtividade reduzida dos trabalhadores, fez
um desabafo irônico dizendo que valeria mais a pena jogar as máquinas no rio.
Apesar de todas essas intempéries comuns à natureza do projeto, pode-se dizer
que durante bons meses a fábrica funcionou a todo vapor, intercalando momentos
otimistas aos pessimistas.
Muitas das casas do projeto de urbanização do Dique da Vila Gilda foram
construídas com os blocos confeccionados pelos usuários dos serviços de saúde mental.
As casas guardam as marcas daquela iniciativa e são as testemunhas de uma
conjunção de esforços que expressava a vontade de transformação e de criação do
governo da época.
149
IVAN, O GIGANTE
Ivan era grande e forte. Pele negra, ossos longos, rosto largo, dois metros de
altura.
Seu vozeirão contrastava com a delicadeza com que se relacionava com os
outros.
Foi um excelente trabalhador da Fábrica de Blocos, de poucas palavras, tímido,
mas sempre muito cooperativo.
Como todo ser humano, também era uma pessoa cheia de surpresas.
Certa vez, numa tarde molhada, recebemos um telefonema de um funcionário da
Cohab, que acompanhava os trabalhadores da fábrica. Naquele momento, não havia no
local nenhum profissional da URP.
Dizia o funcionário que Ivan estava muito perturbado, falando coisas sem
sentido, e que havia empunhado um pedaço de pau e saído às ruas bem enfurecido. O
funcionário não sabia como abordá-lo e pedia nossa ajuda.
Avaliamos que seria necessária a nossa presença no local, já que acionar apenas
a polícia ou o resgate poderia ser muito traumático, e não sabíamos ao certo qual era de
fato a situação de Ivan, pois o funcionário estava muito transtornado.
Avaliamos que seria melhor gerir a situação no próprio local e, se preciso,
agenciar os recursos e os suportes necessários.
Eu e Fernanda, uma das profissionais que acompanhava o projeto, saímos de
supetão em direção à fábrica.
Peguei o carro e dirigi os 40 km que nos separava, numa estrada escorregadia e
sob um céu molhado e nebuloso.
Ao chegar em Bertioga, depois de conversar com o funcionário, percorremos os
arredores em busca de Ivan, e logo o achamos.
Aquele que fora pintado como um gigante perigoso e incontrolável era o Ivan
delicado que conhecíamos antes, empunhando um pedaço de pau e bastante confuso.
150
Mas a confusão que vivia não o impedia de dialogar conosco, e de aceitar ser
trazido até o NAPS 2, onde fazia o tratamento, mas onde deixara de comparecer às
últimas vezes combinadas.
A relação de confiança que construímos no decorrer do projeto era suficiente
para que, mesmo delirante, Ivan entendesse que estávamos ali para protegê-lo, e que
para nós sua participação nos encontros combinados era essencial.
Ivan ficou alguns dias em hospitalidade noturna no NAPS e depois retornou a
seu posto de trabalho.
A equipe da URP o visitava diariamente, para acompanhar o seu processo, e
para compartilhar esse momento que exigia um acolhimento caloroso.
Voltamos satisfeitos e aliviados, refletindo que as transformações são possíveis
quando assumimos riscos.
E a experiência da Fábrica de Blocos em Bertioga era para nós, pelas condições
dadas, um dos projetos mais desafiadores.
MASSIFICAÇÃO versus CRIATIVIDADE
Há como sermos criativos nos processos de trabalho, ou o somos apenas em
nossos momentos de maior descontração, no lazer e nos períodos de descanso?
É difícil conceber que sejamos criativos apenas em determinadas situações. Se é
assim, caberia perguntar se os contextos é que permitem ou não o uso de nossa
criatividade. Caberia, ao mesmo tempo, considerar se, de fato, não somos sempre
criativos, uma vez que produzimos através do discurso a realidade que se nos apresenta.
Foucault (1972) soube traduzir bem essa ideia de que o discurso produz a
realidade, e por esse motivo os discursos envolvem sempre relações entre o saber e o
poder, que fazem fenômenos terem significados diferentes conforme a produção de
verdade de determinada época. Por isso, antes da era clássica, a experiência da loucura
estava mais próxima do divino do que da doença.
151
A produção de verdades é um exercício mais que criativo, e envolve relações
sociais e relações de poder que produzem realidades compartilhadas.
Vivemos há muito numa sociedade de massas que utiliza os meios de
comunicação para produzir padrões de existências, gostos, habitus (Bourdieu, 1988), e
que tenta tratar-nos como asnos que não pensam.
Mas com certeza não somos esses asnos, e antes o são aqueles que acreditam
piamente em seu poder de se colocar à disposição do mercado para produzir as verdades
superficiais que estimulam o não pensamento.
Pobres são aqueles que estão mais aprisionados pelos padrões existenciais do
mercado, sejam eles guardadores de riquezas ou carentes delas.
Os padrões de normalidade e do uso do tempo/espaço centrados na sociabilidade
do trabalho moderno são de uma pobreza infinita se não se criam formas de resistência
que produzam novas sensibilidades, novas formas de sociabilidade, experiências
perceptivas, afetivas e de construção coletiva que produzam mágicas na transformação
do mundo.
Há muito que a ciência já descobriu a insuficiência da lógica formal e do
cartesianismo, que insistem no princípio da identidade e do terceiro excluído (se uma
coisa é uma coisa, ela não pode ser outra).
O fato é que a própria ciência, através da Física, descobriu que uma coisa pode
ser uma coisa e outra coisa ao mesmo tempo, e que algumas contradições são
insuperáveis (Morin, 2002).
Dessa forma, nos aproximamos daquilo que considerávamos mágica, ou
inconcebível.
A própria existência da mercadoria e de seus fetiches já demonstrava a
existência desses fenômenos muito antes de a ciência os ter descoberto.
No entanto, ao invés de nos manter presos ao fetiche da mercadoria, precisamos
construir nossas realidades imaginadas de forma a enriquecer o conjunto dos atores
envolvidos, valorizando os protagonismos possíveis.
152
Essa é outra forma de viver a mágica, que enriquece a existência através de uma
estética não fugaz e virtual da mercadoria, mas de uma construção concreta de uma
realidade concreta, a vida a ser construída como uma autoescultura que se move a todo
tempo, ao sabor das contingências e dos devires. Metamorfoses ambulantes.
VIDA NOVA, NÃO SÓ NO DIQUE
O Projeto Vida Nova no Dique modificou a vida de muitas das famílias que
habitavam a região. Afinal, poder habitar uma casa de alvenaria, sobre um chão sólido e
não mais sobre um córrego sujo, pendurada num conjunto de estacas, já poderia
significar uma mudança significativa.
Além disso, ter o córrego canalizado sob o chão significava não apenas se livrar
do mau cheiro que impregnava o ar, pois os vasos sanitários das casas davam direto
para o córrego (fezes e urina mergulhavam direto do buraco dos vasos na água fétida e
escura do córrego) , mas evitar que crianças nadassem naquela água, ou caíssem dos
corredores estreitos de madeira, que interligavam as casas entre si, diretamente na água,
por vezes se afogando, como chegou a acontecer.
É por isso que o projeto simbolizava muito para o governo de então e, por que
não?, para os usuários do Programa de Saúde Mental, que também iniciavam uma nova
vida, com locais de moradia muito diferentes do manicômio em que habitavam. Em
especial para os usuários que compunham o projeto de trabalho que denominamos
simplesmente de ―Dique‖, e que trabalhavam diretamente na obra de construção das
casas.
Era um grupo composto por oito trabalhadores, que trabalhavam juntos, mas em
setores diferentes da obra, como uma forma de também aprenderem ofícios diferentes
como os de encanador, eletricista e mesmo mestre de obras.
Era um grupo cujos participantes tinham direitos e deveres um pouco diferentes
dos demais trabalhadores da obra, pois eram remunerados com as bolsas de trabalho no
valor de 1,5 salário mínimo, eram acompanhados, podiam reunir-se para as reuniões
semanais com os profissionais da URP no próprio horário de trabalho, e eram
aprendizes de diferentes ofícios.
153
Os demais trabalhadores possuíam outro contrato de trabalho, não estavam lá
para aprender, mas apenas para trabalhar, e por isso não participavam de reuniões nem
eram acompanhados por profissionais de saúde mental.
As diferenças nos contratos sempre geraram muitas discussões, pois os
trabalhadores do projeto muitas vezes se sentiam cumprindo as mesmas funções dos
demais trabalhadores, e às vezes esqueciam que sua participação no projeto se tornara
possível por se tratar de um projeto especial, sem o que dificilmente poderiam estar na
obra.
As confusões e as contradições foram ficando mais claras quando surgiu a
possibilidade de os usuários do projeto participarem do concurso público que admitiu,
pela Cohab, mais uma leva de trabalhadores para a obra.
No caso, dois dos participantes do projeto foram selecionados, e deixaram de
compor o grupo de trabalho, tornando-se funcionários da Cohab e tendo que assumir um
contrato com deveres e direitos um pouco diferentes.
O Projeto Dique era bem interessante, pois também agregava pessoas com
problemáticas bem diferentes, embora todos vivessem uma experiência de sofrimento
psíquico intenso.
Como algumas outras situações produzidas pelo Programa de Saúde Mental de
Santos, esse projeto também foi foco de matérias jornalísticas, como quando um
simpático repórter do famoso programa Globo Repórter visitou as instalações, ficando
bem impressionado com o que isso parecia representar na vida dos usuários.
Um dos participantes do grupo de trabalho era José dos Santos.
Conheci José dos Santos no Anchieta, anos antes de ele ser acompanhado pelo
NAPS 4, unidade que o encaminhou para o projeto de trabalho.
Não lembro de ter conversado com ele naquela época, pois, além de ser usuário
de outra enfermaria diferente da que eu trabalhava, era um tanto enigmático, não
trocava muitas palavras.
Era calvo na parte superior da cabeça. Mas os cabelos dos lados temporais,
muito crespos, viviam compridos. Ele usava barba, vestia calças de brim e carregava
154
sempre uma sacola. Estava sempre sentado com as pernas cruzadas no chão, ou num
muro de pequena altura, com a cabeça ereta de quem está a meditar.
Lembro de vê-lo arrancando, numa puxada só, parte dos pelos de um dos
antebraços, sem que aparentasse sentir dor. Seu comportamento causava medo; era
como se quisesse avisar que não queria muita aproximação.
Quando chegou ao projeto, não era mais um sujeito que amedrontasse.
Era um sujeito com sotaque nordestino e com uma fala singular e cantada, que
mudava o final do meu nome quando me chamava.
Era tido como esquizofrênico, mas adorava o álcool e isso é que lhe trazia
muitas dificuldades no trabalho.
Amanhecia com tremores muito intensos, que só diminuíam ao final do dia,
quando conseguia dar algumas fugidinhas para tomar alguns ―goles‖.
José trabalhou muito tempo no projeto, e teve a possibilidade de conviver com
suas dificuldades no ambiente fluido e maleável da cidade, onde podia movimentar-se,
correndo todos os riscos da vida.
Não precisava mais meditar nem arrancar os próprios pelos como forma de se
afastar das pessoas.
Vivia uma nova vida como viviam os beneficiários do Projeto Vida Nova no
Dique.
LÁ NO FUNDO
No fundo da casa-sede da URP, no bairro da Aparecida, ao fim de um comprido
corredor, havia uma garagem.
Entre a casa e a garagem havia um jardim que, aos poucos, foi utilizado pelo
Projeto Terra no plantio de algumas mudas de plantas ornamentais e outras medicinais.
A garagem serviu primeiramente de loja para os produtos artesanais que os
grupos fabricavam (echarpes coloridas, perfumes, chinelos).
155
Depois de poucos meses, tendo em vista que as vendas não decolavam, o espaço
foi transformado numa marcenaria.
Substituímos a loja, que ficava no fundo de um corredor, por um box de metal
instalado na parte anterior da casa, a poucos metros da calçada.
Quanto à marcenaria, esta já teve uma vida bem mais longa.
Inicialmente, um artista que colaborava conosco emprestou suas máquinas para
que tentássemos produzir brinquedos pedagógicos. Ele mesmo ensinaria aos usuários a
arte de lidar com as madeiras, aproveitando uma série de artigos muito interessantes de
sua autoria.
Mas os brinquedos também não decolaram, uma vez que não conseguimos
efetivar as articulações necessárias para colocá-los no mercado, nem fizemos as
articulações com a Secretaria de Educação (Seduc), para que esta comprasse os
produtos e os distribuísse nas escolas e creches.
Finalmente, reformulamos a proposta de produção da marcenaria e optamos por
construir móveis sob encomenda.
As encomendas não eram muitas, mas suficientes para manter um pequeno
grupo de quatro artesãos trabalhando.
Como nosso artista colaborador não poderia mais permanecer conosco,
utilizamos os recursos da Afrent para adquirir aquelas máquinas, além de trazer da
Secretaria de Esportes um dos monitores de ofícios já citado neste relato.
O contato com a vizinhança e o território da sede da URP trouxe a possibilidade
de contratação do grupo para executar pequenos reparos de móveis nos domicílios, ou
mesmo para restaurar móveis maiores no espaço da oficina.
Esse contato com os consumidores nos domicílios era muito interessante, pois
possibilitava a circulação social dos usuários, bem como uma relação cara a cara entre
prestadores de serviços e consumidores, o que fazia com que o produto fosse
singularizado e não mais massificado e anônimo, e que a troca viabilizasse novas
relações além da troca do produto por dinheiro.
156
Seu Vinicius era um usuário de 65 anos que assumia o papel de marceneiro
enquanto os outros três integrantes se colocavam como aprendizes.
Os recursos obtidos eram repartidos entre eles ou investidos na compra de
materiais e equipamentos.
Produzindo em pequena escala, a marcenaria sobreviveu muitos anos, ocupando
definitivamente a garagem.
Enquanto isso, no andar de cima – porque a casa começava com uma escada que
dava para o andar de cima, enquanto a parte de baixo era apenas o acesso para o jardim
e a garagem –, as salas eram ocupadas de forma variada.
Toda a parte administrativa da URP ocupava uma das salas, que também servia
de apoio para algumas ações da Afrent.
A maior das salas era ocupada pelos variados projetos de artesanato, que
tiveram, como já relatado, dificuldades para se inserir no mercado.
Nessa sala realizavam-se as assembleias semanais.
Estas eram espaços coletivos, que congregavam todos os trabalhadores de todos
os projetos de trabalho, e todos os profissionais da URP.
Alguns dos projetos, como o Lixo Limpo e a Fábrica de Blocos, apresentavam
dificuldades para enviar representantes às reuniões, uma vez que estas se davam às
quintas-feiras à tarde, e esses projetos não podiam interromper a produção nesse
período.
Apenas os trabalhadores desses projetos que trabalhavam no turno da manhã
podiam participar das reuniões.
Nas assembleias eram discutidas todas as questões relacionadas aos projetos de
trabalho, como dificuldades, conquistas, projeções, expectativas, e se trocavam
informações sobre cada um dos projetos.
Lá se discutiam também muitas questões relativas ao modo de funcionamento da
sede da URP. E foi lá um dos espaços em que começamos a discutir a proposta de
constituição da Cooperativa Paratodos, enquanto fazíamos o mesmo nas reuniões de
157
trabalho do Lixo Limpo e da Fábrica de Blocos, ou mesmo com a equipe que trabalhava
na obra do dique.
Mas esse assunto da cooperativa merecerá destaque num outro momento.
O que importa dizer aqui é que a casa-sede da URP, da garagem às partes
superiores, respirava vida, projetualidades, novos compromissos, novos desafios
assumidos, frios na barriga de entusiasmo por iniciar novos projetos. E isso fazia bem a
todos os envolvidos.
Lá era um espaço de circulação livre, sem interdições arbitrárias, como era o
espaço do Anchieta sob intervenção.
Um espaço construído coletivamente, a partir da desconstrução dos papéis hierárquicos
estabelecidos (o de técnicos, o de pacientes); desconstrução das hierarquias que
historicamente tentaram delimitar os espaços que cada ator deveria ocupar, mesmo que
fosse uma ocupação passiva, um simples estar que representava a falta de poder.
CENTRALIDADE DO CONSUMO
Bauman (1998) trouxe uma ideia interessante e original quando sugeriu que a
centralidade do trabalho cedera lugar à centralidade do consumo na sociedade
capitalista contemporânea. Um consumo que talvez se diferencie do sempre existente
desde que surgiu a mercadoria.
Seria um novo consumo? Não seria uma intensificação do processo consumista
em vigor desde o surgimento da mercadoria e do trabalho assalariado? Seria um novo
modo de consumo? Um consumo hipereletrônico movido por mensagens instantâneas,
que se dissipam no ar tão imediatamente como os objetos que deixamos para trás?
Difícil afirmar, a não ser lembrar que o consumo enquanto ideia moderna tem a
ver com o surgimento da mercadoria.
Seria então o uso de objetos ou a ingestão de alimentos, no passado, algo
diferente do que chamamos atualmente de consumo?
158
Consumo supostamente tem a ver com uso, valor de uso, propenso a sempre ser
desvalorizado tão logo possamos ter acesso a mais e mais produtos: experimentar uma
bala de cada sabor, para ter a sensação da infinitude ou de que chegamos perto dela.
O fato é que parecemos nos tornar os objetos que consumimos, de forma
instantânea, o que nos levaria a supor que não somos nós que consumimos os objetos,
mas os objetos que nos consomem.
Essa talvez seja uma ideia original que se conecte com a noção de fetiche da
mercadoria.
Quem nos domina e consome, ou usa, é a mercadoria.
Só que ela assim o faz tendo como mediação algo tão sem fundamento quanto o
valor de troca.
O que define o valor de troca dos produtos? O tempo socialmente utilizado na
sua produção, o desejo abstrato produzido para obtê-lo, a escassez de produtos?
É delicada essa questão, e nos remete a uma imagem daquele que consome e
incorpora tudo o que vê e deseja, a ponto de explodir por não ter como elaborar tantas
coisas diferentes.
O gosto da bala de tutti-frutti ficou tão misturado ao chuparmos tantas outras
balas de diferentes sabores que nem mais lembramos o seu teor.
Tudo bem. Estamos criando sabores novos com essa mistura, mas nem
conseguimos lembrar o sabor de cada uma das balas.
É um devir sem fim, mas um devir sem memória nem pensamento. Um devir
talvez de folha que se desloca da árvore, sai voando pelos ares, cai num bueiro de uma
rua empoeirada, atinge a borda de algum rio, passa para o estômago de algum peixe e
vai se fixar momentaneamente no estômago do sujeito que pescou peixe num rio
poluído.
O que seria o devir sem a memória?
Talvez um sem-fim de nadas a produzir uma nada como equação final.
159
Mas não percamos o romantismo de apreciar algo em sua profundidade, ou
mesmo superficialidade (como apenas uma bala), e sim apreciar de fato, dar um tempo
para ela, estabelecer um nexo entre a sensação que produziu e a memória boa ou má que
faz ressurgir, ou aquilo que desejamos que produzisse.
Paremos de engolir tudo e vomitar logo em seguida.
Deixemos que as marcas da memória surjam, mas não nos tornemos escravos
delas. Uma cicatriz cor de pele pode tornar-se vermelha se a pintarmos de tal cor, ou até
sumir se fizermos uma cirurgia plástica.
Façamos até cirurgias plásticas, mas não percamos a memória nem o valor
daquilo que sentimos e fomos.
Cuidemo-nos para não ser manipulados tão fortemente por mercadorias.
Tudo bem: melhor comê-las do que ser comido por elas, mas não o façamos tão
compulsivamente, pois boa parte do material de que elas são feitas, a própria natureza,
anda nos avisando que haverá revanche.
Como diz Serres (2003), a natureza tem agido sobre nós como sujeitos sobre
objetos, já que agimos sobre ela como sujeitos sobre objetos, produzindo toda sorte de
desmandos e consequências ambientais.
É a tal da recursividade. Que o digam as enchentes, o aquecimento global, a
escassa camada de ozônio, os tsunamis!
Façamos as pazes com os objetos e estabeleçamos com eles relações de
reciprocidade, de forma que todos, irmãos, animados e inanimados, possamos conviver
em harmonia, mesmo que nos desequilibremos às vezes com o charme e as
características deslumbrantes, os perfumes, de alguns desses objetos.
Harmonia não significa ascetismo, mas uma interação de fato proveitosa para
ambos os atores, sujeitos e objetos, objetos e sujeitos.
Que a beleza, a durabilidade, o preciosismo da utilidade, façam dos produtos
algo mais que mercadorias: seres com os quais compartilhamos nosso cotidiano, nossas
sensações, nosso senso crítico, enfim, nossa vida abismada pela beleza.
160
Os loucos que acumulam quinquilharias em casa, advindas do lixo, e que se
embelezam e adornam com restos de metais e tecidos, como se estes fossem ouro puro,
talvez queiram nos informar que a noção de belo e de riqueza não passa de uma
convenção social.
Cada um pode ter seu ouro, ou seu lixo (o que é o lixo?), e isso demarca a ironia
expressa em seus atos, que informa que o lixo pode valer tanto quanto o ouro.
Nós não usamos as mercadorias, trocamos somente.
Voltarei a isso mais tarde.
ENTRE PANELAS E SALGADOS, OS HUMORES DE JOYCE
Um dos grupos de trabalho ocupava a cozinha da casa-sede da URP. Era o grupo
do Projeto Cantina.
O grupo inicialmente tinha como objetivo produzir salgados para a venda em
locais próximos à URP, como outros serviços de saúde.
Mas o projeto a que todos ansiavam era de fato a implantação de uma cantina,
que seria um lugar de consumo de bebidas e comidas aliado a uma programação cultural
que pudesse juntar pessoas em torno de uma convivência prazerosa, regada a arte.
Essa ideia quase chegou a termo numa casa que nos foi cedida pela Cohab,
próxima ao NAPS 1 da Zona Noroeste (e a equipe do NAPS 1 estava bem envolvida
nesse projeto), que ao final acabou sendo utilizada de variadas formas, como relatarei
logo à frente.
Chegamos muito perto de fazer a cantina funcionar, mas o que conseguimos
alcançar mesmo foi a utilização de um box no terminal de ônibus.
O box do terminal de ônibus nos foi cedido pela Companhia Santista de
Transportes Coletivos (CSTC), uma empresa pública que gerenciava e executava a
política e o serviço de transporte coletivo.
Os boxes eram espaços alugados, que comercializavam produtos diversos.
161
Conseguimos o nosso sem nenhum custo, e lá os participantes do Projeto
Cantina se revezavam para vender os alimentos que produziam.
A Afrent adquiriu uma pequena estufa de vidro para manter os salgados sempre
quentinhos, e por um bom tempo vendeu-se no box o que era produzido na cozinha da
URP, bem como os outros produtos artesanais.
Mas a trajetória do grupo de culinária foi bem intensa.
Ele era coordenado por uma das psicólogas da equipe, que possuía especial
talento para a culinária e que desejava participar de um projeto como esse.
A escolha dos profissionais que acompanhavam os projetos dava-se pela
prospecção das habilidades acumuladas nas histórias de vida de cada um, logo após
decidirmos quais atividades teriam a ver com as capacidades dos usuários e chances
reais de participar do mercado.
Seguia-se a mesma lógica utilizada na definição dos usuários que participariam
dos projetos: ao invés da gravidade do quadro psiquiátrico, do diagnóstico, do momento
do tratamento, o que se considerava era o desejo do usuário, bem como suas habilidades
acumuladas ou mesmo perdidas devido ao processo de institucionalização, a vontade de
descobrir novas potencialidades em novas experiências. Ou seja, a escolha se dava a
partir de uma negociação realizada junto ao usuário que levasse a um acordo ou
contrato, o que exigia o protagonismo de ambas as partes.
O grupo de culinária era formado por pessoas muito diferentes, todas elas
mulheres.
Uma delas era Joyce, uma moça de cabelos curtos e cacheados que navegava por
entre seus humores.
Geralmente, quando não estava em crise, era uma moça de poucas palavras,
tímida, mas que interagia muito amigavelmente com todos. Atenciosa, centrada,
equilibrada, às vezes até demais (estaria nesses momentos quase deprimida?).
Esse ―equilíbrio‖ às vezes pendia para certo apagamento, quer dizer, certa
quietude que a fazia quase desaparecer perante o grupo.
162
Outras vezes, era a Joyce expansiva que surgia, com grande estardalhaço, a falar
alto e rápido, a apontar sem nenhum filtro opiniões sobre as pessoas.
Muitas vezes eram opiniões que traziam à tona a fragilidade velada das pessoas,
ou aquelas características que todos conhecem, mas que ninguém tem a coragem ou
sente a necessidade de dizer. Essa era a Joyce que contrastava com o apagamento de
outros momentos, como o gelo se diferencia do fogo.
A mudança do fogo para o gelo trazia perplexidade.
Mesmo a mudança do fogo para o estado de ―equilíbrio‖ trazia a pergunta: para
a síntese das Joyces, qual seria o melhor estado, o ardente poderoso, que lhe trazia certo
tipo de poder, ou o estado de equilíbrio, que também trazia consigo outras formas de
poder, como aquele de ser querida e apreciada por todos?
O fato principal é que todas as Joyces cozinhavam bem, e permaneciam em
atividade, do gelo ao fogo, do fogo ao gelo.
Seu lugar no projeto de trabalho estava garantido, por nós e por ela mesma, que
conseguia participar da construção coletiva do projeto, estivesse em qualquer um de
seus estados.
DOCES VENDAS
Gil era um filósofo, não de formação acadêmica, mas de pensamento e
oralidade.
Grande orador, falava pelo Anchieta loucuras que só os filósofos são capazes de
dizer.
Às vezes, quando estava no estado que a psiquiatria chama de mania, era como
um cometa a borboletear pelo hospital, atazanando a paciência dos transeuntes,
provocando com músicas e chistes os companheiros da embarcação manicomial.
Outra atividade prática e intelectual de Gil era o jogo de xadrez.
Ele frequentava como ninguém a sala do diretor-interventor do hospital, a propor
sempre novos desafios fugazes entre reis, rainhas, peões, torres e cavalos.
163
As tardes passavam para ambos os guerreiros estrategistas como rápidos
passeios de montanha-russa, tão desafiadores como agradáveis.
Nosso estrategista, um bom tempo depois, foi atracar sua máquina de guerra em
outros mares.
Integrou-se ao grupo do Projeto Vendas, cujo quartel-general era o espaço da
URP.
O Projeto Vendas, como o nome sugere, visava à comercialização em feiras
livres dos produtos de uma cooperativa de apiários do sul do país.
O representante dos apiários nos foi apresentado por técnicos da Seac, que
também regulamentava e acompanhava o funcionamento das feiras livres.
Com o aval da Secretaria, foi possível tanto montar a logística necessária para
frequentar várias feiras, como obter uma autorização informal para comercializar os
produtos, sem o risco de estes serem apreendidos pelos fiscais da prefeitura.
A sede da URP guardava as caixas de mel e produtos dele derivados, além de ser
o local onde se depositava o dinheiro obtido com as vendas.
As duplas de vendedores se revezavam nos dias da semana: encontravam-se na
URP, retiravam o material, davam baixas no estoque, aguardavam o veículo que os
levaria até a feira, carregavam os produtos e a barraca até o carro, depois retornavam,
prestavam contas e iam embora.
Semanalmente, tal como os grupos dos outros projetos, o grupo do Projeto
Vendas sentava-se em círculo para fazer a reunião de avaliação do trabalho.
O que recebiam como pagamento era o resultado de uma conta que envolvia
vários dados: o quanto a dupla vendeu, o quanto deveria ser pago aos produtores, e
eventuais investimentos deliberados pelo grupo, como a compra de novas barracas etc.
Além das feiras livres, o grupo participava das chamadas ―Campanhas‖ em
determinados meses do ano, onde produtos específicos a preços reduzidos eram
comercializados por uma única barraca localizada em pontos estratégicos da cidade.
Nas ―Campanhas‖ de mel, era o grupo de Gil que protagonizava toda a venda.
164
E assim se passaram muitas tardes, tão agradáveis como penosas, já que seria
mentira dizer que o trabalho não é também algo penoso.
Tardes doces, onde a viscosidade do mel e o suor escorregadio produzido pelo
calor úmido de Santos simbolicamente se misturavam.
E assim nosso filósofo colocava para funcionar seus talentos para o cálculo e
seus dons comunicativos.
A DESCOBERTA DO MÚLTIPLO
A resistência nunca abandona uma relação de poder (Foucault 2003a, 2003b,
2003c). Ao contrário, ela faz o seu duplo, faz parte da multidimensionalidade das
relações.
As relações são multidimensionais porque envolvem subjetividades múltiplas, e
múltiplos são os pontos de vista.
Num tempo/espaço determinado, múltiplas são as dimensões existentes.
Nossa realidade compartilhada tenta ser mediada por dinheiro e mercadoria
desde que as condições modernas de trabalho se impuseram.
Embora a mercadoria tente se impor de maneira onipresente em nossas relações,
sabemos que muitas são as descontinuidades que possibilitam formas novas de
sociabilidade desvinculadas de uma visão mercantilizada da vida.
Temos sim, é bom repetir, um pouco de mercado dentro de nós, mas temos
muito mais que isso.
Nosso olhar sempre teve a capacidade de modificar os fenômenos.
O mecanismo do fetiche, enquanto produção de uma figura fantasmática (Marx),
demonstra que essa capacidade imaginativa é inerente e pode ser usada segundo vias
completamente diferentes. Um exemplo: há loucos que tentam acessar instituições de
cuidado, como pronto-socorros e outros postos, e sempre encontram respostas violentas,
uma vez que sua demanda é facilmente transformada em perigo e interpretada como
ameaça para quem a recebe.
165
Quando instituições desinstitucionalizantes de cuidado (como as de caráter
territorial e comunitário produzidas no processo de reforma psiquiátrica) tentam
dialogar de fato com essas pessoas, resgatando sua voz e vontade, traduzindo suas
demandas e desejos, é comum que os que outrora os viam como ameaça modifiquem
seu olhar.
O olhar de um terceiro produz outra visão do sujeito-ameaça, que passa a ter
nome, história, desejos, expressando tudo que temos em comum em nossa condição
humana.
Quem trabalha em projetos de reforma psiquiátrica costuma se deparar com
processos desse tipo, que demonstram que por trás da produção de valor pode haver
contextos altamente conectados com o ritmo e a necessidade do mercado (afinal, para
um pronto-socorro, muitas vezes se trata de reformar um corpo como um mecânico
reforma um automóvel, para que os corpos possam voltar ao circuito ensimesmado da
vida social permeada pela mercadoria).
Esse exemplo tenta apontar a existência de outras dimensões não raro ocultas,
que não podem aparecer pela simplificação da vida do trabalho e pela mercantilização
das relações.
As possibilidades de construção de novas formas de sociabilidade passam então
pela percepção dessas dimensões da vida escondidas ou por nós abandonadas, como
uma exigência do mundo contemporâneo.
Enxergar os fenômenos de forma diferente é um dos passos possíveis para
resistir produtivamente ao império da mercadoria e do valor de troca.
A produção de outros vínculos e de projetos coletivos reorienta os caminhos
ditados pela produção.
Novos processos que começam de baixo e caminham para os lados, e não para
cima, e que despacham a necessidade de uso dos parâmetros da mercadoria.
Tais projetos coletivos, dialogados e negociados por diversos atores sociais em
diálogos inéditos, resgatando dimensões antes invisíveis, tendem a formar turbilhões de
relações que invadem as relações mediadas pelo trabalho assalariado, como uma onda
que se sobrepõe a outras águas para poder se movimentar.
166
Poder retomar como uma das dimensões a dimensão da festa é fundamental, mas
não basta.
A dimensão da arte, como elemento a ser partilhado e construído coletivamente,
como sustentavam Guy Debord (2000) e os situacionistas (Jappe, 1999) ao criticar a
arte como contemplação, é outra dimensão importante cuja potência não pode ser
medida, pois se relaciona com a multiplicidade das subjetividades27
.
Fazer a vida como arte, uma estética da existência, em movimentos individuais,
mas também coletivos, uma obra de arte coletiva, é outro desafio colocado à superação
do trabalho moderno e da mercadoria.
Nesse movimento, o espaço-tempo ganha outras dimensões, outras feições.
O relógio não pode substituir o tempo singular de cada um, e o tempo
consignado por grupos de pessoas em seus projetos coletivos.
O tempo para conversar com o louco, e conhecer outras dimensões profundas da
humanidade, não pode ser o mesmo tempo que me faz correr atrasado para não perder o
ônibus em direção ao trabalho.
O tempo-espaço também exige ser enriquecido, e utilizado em suas múltiplas
possibilidades de existência.
A Terra e o Sol também querem dialogar, mas precisamos entender sua língua,
abrir os olhos e os ouvidos, além da pele, para tentar traduzir suas mensagens.
É sim possível conversar com as coisas e os fenômenos, desde que estejamos
abertos e dispostos a usar a capacidade imaginativa em direção de uma multiplicidade,
esta sim podendo ser chamada de riqueza.
A pobreza é o único, aquele capaz de apenas se reproduzir.
27
A suposta arte da indústria do entretenimento, produtora de pastiches (Jameson, 1996), nos captura
como objetos, produtores incessantes de capital. Até ao assistir televisão, estamos lançando combustível
na valorização do capital e com isso trabalhando (De Masi, 2000). Não descansamos nunca: nossa
audiência produz muito dinheiro e, quem sabe, devêssemos ser pagos para assistir aos programas
televisivos, ao invés de pagarmos o uso da energia, o desgaste dos aparelhos, além dos produtos
geralmente descartáveis cujo valor de troca ajudamos a impulsionar.
167
Uma possibilidade de superar a sociabilidade da mercadoria passa então por
algumas ações essenciais:
Conversar e dialogar com a multiplicidade das pessoas, e não com identidades
estanques;
Conversar e dialogar com nossa própria multiplicidade, para descobrir que
somos muitos e não um só, e que podemos ser formas inéditas a nós mesmos,
num movimento permanente de metamorfose com memória. Memória que não
signifique prisão. Caso contrário, dela podemos nos despojar;
Conversar e dialogar com o Sol e os elementos não humanos. Valeria também,
mais que isso, produzir relações profundas com o Sol e a Terra, além da água e
do ar. Significa produzir fusões onde o corpo possa se desmanchar ao se
misturar com os elementos. Esta talvez seja a melhor forma de respeitar a
natureza: misturando-nos a ela;
Modificar a mediação exercida pela mercadoria, através do valor de troca, pelo
fortalecimento do valor de uso. Ampliar a presença da arte para ela ser o
principal instrumento de trabalho, aquela que, como mágica ou ritual, faz
emergir aspectos de nossa multiplicidade.
Não se trata de regras fixas nem de metáforas desaforadas, mas de princípios para
uma nova forma de resistência que possa surgir de nossa criatividade.
Para isso, a ciência terá mesmo que se misturar à arte, à espiritualidade (mesmo à
dos ateus), a fim de enriquecer e mobilizar nossas capacidades e não ficarmos
empobrecidos, aprisionados por um único fetiche que quer se colocar como um deus
supremo.
Vida não é sinônimo de mercadoria.
A CASA E O TERRENO
Começamos com uma casa e um terreno ao mesmo tempo. Ambos localizados
na Zona Noroeste, um defronte ao outro, próximos ao NAPS 1.
168
Era só atravessar a rua que se ia da casa ao terreno, e vice-versa.
O terreno era amplo e, no futuro, transformar-se-ia no local onde seria
construído um conjunto habitacional de três pequenos prédios.
Até que isso ocorresse, o terreno foi palco das experiências que mantivemos para
complementar o treinamento que ocorria no Horto Municipal.
Era o ano de 1990, e ainda não ocupávamos as praças como viríamos a fazer
com o Projeto Terra.
Carpíamos o terreno e construíamos canteiros para o plantio de mudas.
Utilizávamos alguns blocos produzidos pelos usuários da Fábrica de Blocos para
fazer os canteiros.
Até que isso se concretizasse, foram muitas as semanas em que íamos carpindo o
terreno até chegar ao final, quando então percebíamos que o mato já crescera novamente
por onde havíamos iniciado.
Éramos como cachorros correndo atrás dos próprios rabos, até que nosso
monitor de ofício chegou para nos tirar desse ―mato sem cachorro‖.
Esse monitor, já citado anteriormente, era um ex-pescador que foi fundamental
para o Projeto Terra, porque, além de grande jardineiro, tinha um espírito empreendedor
e criativo, relacionava-se de forma flexível (abrindo muitas possibilidades de contato)
com os usuários, sem ser uma pessoa da área da saúde mental.
Era como que um álibi que possuíamos para criticar o paradigma psiquiátrico, e
demonstrar que o que interessava mesmo à vida dos usuários estava muito longe do que
dispúnhamos enquanto conhecimentos técnicos trazidos da academia e da
especificidade das profissões. Chamava nossa atenção para a necessidade de enriquecer
nosso olhar e nossa prática profissional, nos aproximando e dialogando com as ―reais
necessidades‖ dos usuários (Basaglia e Basaglia, 1977)28
e não com as abstrações com
que as traduzimos através do conceito de doença.
28
Basaglia diz que a psiquiatria só se relaciona com a doença e não com o sujeito, e para isso tem
respostas prontas, construídas sobre a nosografia das doenças, sem dar espaço para que as perguntas, as
necessidades reais e a experiência existencial do doente apareçam (―Liberar as necessidades reais do
169
Com relação ao terreno, tentamos também, em determinado momento,
desenvolver um projeto de fitoterapia, visando à produção de ervas medicinais e seu uso
nos serviços de saúde.
Trouxemos dois biólogos do interior de São Paulo, com larga experiência no
assunto, preparamos um curso, escrevemos um projeto, mas não conseguimos levá-lo
adiante.
A casa defronte o terreno era pequena. Era como que duas salas divididas por
uma pequena cozinha e um banheiro. Havia muitas vidraças quebradas e nenhum
móvel.
No início a utilizamos para fazer as reuniões do Projeto Terra e guardar plantas e
ferramentas. Naquele momento, usávamos troncos de árvores e blocos de construção
para fazer a roda em que nos sentávamos para discutir.
Noutro momento, utilizamos a casa para um projeto de serigrafia realizado junto
ao NAPS 1, que idealizou e adquiriu as máquinas.
E, por fim, lutamos junto ao NAPS 1, que liderava a iniciativa de construir a
cantina, para que a casa fosse reformada e adequada para tal.
A reforma foi realizada parcialmente, mas não chegamos a implantar a cantina,
devido às turbulências provocadas pelo que viria a ser a mudança de governo: novas
forças políticas entravam em cena prometendo rever as prioridades e responder às
demandas de outras fatias e classes sociais.
A ESTUFA
Foi com recursos da Sehig que compramos os materiais de construção essenciais
para a reforma do enorme galpão que se transformaria na estufa do Projeto Terra:
madeira para fazer um novo telhado e telhas transparentes.
usuário de um serviço, das necessidades artificiais, produzidas de tal maneira que a resposta à necessidade
se traduza no controle da classe subordinada, significa romper este mecanismo e fazer explícita, na
prática, a função da ideologia científica como suporte falsamente neutro da ideologia dominante‖,
Basaglia, F.; Basaglia, F. O., 1977: 17, tradução nossa).
170
A estufa era ao mesmo tempo um lugar de reprodução de mudas, de elaboração
de arranjos de plantas ornamentais em vasos, e de venda destes mesmos produtos.
As negociações com nossos parceiros, os engenheiros do Horto Municipal,
possibilitaram que lá constituíssemos um belo espaço: claro, verde e muito agradável de
se estar.
Abriu-se ainda uma exceção ao possibilitar que lá se comercializassem produtos,
o que não era permitido até então, pois se tratava de um espaço público.
A placa de inauguração da bela estufa levava os nomes de Roberto e
Wanderleia, dois trabalhadores do Projeto Terra recentemente falecidos, que naquela
ocasião eram homenageados29
.
Além disso, a placa expunha uma frase um tanto romântica, mas que
representava um pouco de nossos sentimentos na época. Dizia mais ou menos assim:
―Esta estufa representa a força do homem na superação do manicômio...‖ O homem em
questão não queria referir-se nem a deus, nem ao prefeito de então (David Capistrano
Filho, um grande homem realmente), mas àquela generalidade abstrata que poderia
melhor resumir-se simplesmente na palavra ―nós‖, todo o coletivo que participou do
processo de desconstrução do Anchieta, incluindo os usuários.
O trabalho dentro da estufa exigiu a participação de outros trabalhadores, além
daqueles que cuidavam das praças: os vendedores.
29
Roberto era um homem de 60 anos, muito triste, cuja história fazia chorar. Estava abandonado pela
família, que guardava muito rancor dele, provavelmente porque, depois pudemos descobrir, ele abusara
sexualmente da filha adotiva quando esta era criança. Mesmo assim, a família foi visitá-lo algumas vezes
no Anchieta, a partir do momento em que tentamos resgatar sua história de vida. Ele vivia como um
fantasma no Anchieta, às vezes agindo comigo de forma muito teatral. Não parava quieto. Às vezes
deitava-se por alguns segundos num divã (para logo em seguida se levantar e andar por todos os cantos)
que tínhamos numa sala do corredor externo do Anchieta, onde eu o levava para conversar, antes de
passearmos pelas ruas ao redor do hospital. Então, deitado, olhava fixamente para uma lâmpada amarela
no teto e dizia pausadamente e com voz de quem estivesse a gemer de dor: sol, sol, sozinhoooo.... E
chorava, querendo expressar a dor da solidão. Outras vezes regredia muito e era encontrado nos banheiros
do hospital a mexer e a engolir restos de fezes presentes nos vasos sanitários. Depois, pouco antes de
falecer, teve uma surpreendente melhora e começou a trabalhar no Projeto Terra. Wanderleia era uma
jovem de 27 anos que foi uma das primeiras moradoras da primeira casa na comunidade implantada para
alguns usuários que não possuíam mais família e estavam morando no hospital. Havia um boato, nunca
confirmado entre os trabalhadores do projeto, de que Roberto e Wanderleia, que às vezes trabalhavam
juntos, certa vez foram surpreendidos tendo uma relação sexual dentro da igreja da praça do Morro da
Nova Cintra, onde cuidavam dos jardins. De qualquer forma, tendo ou não compartilhado seus corpos, ao
menos os nomes dos dois puderam compartilhar a mesma placa e uma merecida homenagem.
171
Havia uma escala que cobria todos os dias da semana, inclusive sábados e
domingos.
O abastecimento da estufa era realizado através de viagens semanais ao Ceasa,
na capital, que ocorriam sempre às madrugadas.
Nessas viagens, profissionais da URP e trabalhadores do projeto se revezavam
sempre em dupla, utilizando um caminhão-baú disponibilizado pela Sehig (o mesmo
caminhão que transportava medicamentos e materiais às unidades de saúde).
Aqui novamente tornava-se clara a noção de reconversão de recursos, que
migravam do financiamento das internações para o financiamento dos projetos de
trabalho (pagamento de profissionais da URP, materiais para a reforma da estufa,
utilização do caminhão-baú).
Na estufa foram vendidos muitos arranjos de plantas. Além disso, as plantas lá
produzidas foram expostas em várias feiras e eventos sobre meio ambiente, geralmente
realizados em centros de convenções (ou em lugares como o estacionamento do Sesc),
quando os organizadores cediam gentilmente o espaço para o projeto.
Nessas feiras, os participantes do projeto preparavam os estandes (geralmente os
maiores da feira) de uma forma muito especial e diferente, utilizando invenções de
paisagismo inéditas que a todos agradava.
Em determinado momento, chegamos a pensar em oferecer um tipo de serviço
para escritórios e prédios, em que vasos com plantas seriam fornecidos, cuidados e
trocados com alguma regularidade, quando estivessem necessitando de novas mudas.
As empresas pagariam uma espécie de taxa de serviço ou de aluguel pela utilização dos
vasos.
Mas a proposta não se concretizou porque exigia uma logística de que então não
dispúnhamos, como um veículo a mais para a URP, e a ampliação do número de
profissionais para fazer as articulações necessárias ao empreendimento.
Nossos desejos plantados cresciam mais rapidamente que as condições reais para
seu desenvolvimento. Era um eterno e ritmado brotar de novas esperanças que nos
acometia, como ocorria com as mudas nos vasos e nas praças.
172
SUBVERSÃO/AVERSÃO À MERCADORIA
A primeira mercadoria de que devemos nos despojar, para que a vida venha à tona,
somos nós mesmos.
A identidade é vilã de relações de poder que parecem se petrificar (o que é uma
ironia e uma contradição foucaultiana, pois o poder é sempre instável).
Mas não somos nós mesmos o tempo todo, ou aquilo que achamos sermos nós.
É que, como exposto acima, fazemos um esforço incrível para nos ver como únicos,
e não como múltiplos.
O medo nos ajuda a nos manter incrustados numa identidade fixa e simplificada.
Esse primeiro despojamento, de nós mesmos, é o mais difícil, e o mais complexo,
porque, para chegar a ele, precisamos realizar outros despojamentos intermediários.
Identificamo-nos com o máximo possível de mercadorias, consumindo-as
compulsivamente e, ao nos alimentar com mercadorias cada vez mais tênues e
descartáveis, estamos lidando com algo anônimo que pode ser chamado simplesmente
de dinheiro.
Não importa com o que nos relacionemos através do consumo, se é com um saco de
balas de uma loja popular, um brinquedo chinês que se destrói após o primeiro uso, um
carro que logo será trocado, ou uma namorada com a qual permaneceremos uma ou
duas noites.
Tudo funciona como o cachorro-quente que ingerimos, com a diferença de que nada
ficará metabolizado, a não ser a memória algo virtual de um fantasma chamado
mercadoria.
Lembraremos dela fazendo um esforço para lembrar qual foi seu equivalente em
dinheiro, ou seja, quanto consumimos em dinheiro.
Essa será a medida, com certeza em diferentes níveis dependendo da capacidade
aquisitiva (leia-se $), de cada um.
Não se trata de fazer uma crítica envelhecida do consumo, ou da característica
consumista de nossa sociedade.
173
Trata-se de constatar a ligação que nossas identidades, arduamente construídas por
nós num esforço extremo, têm a ver com a mercadoria.
Uma nova estética da existência passa também por uma nova relação com as
mercadorias, ou melhor, pela transformação da mercadoria em objeto.
Se toda mercadoria sustenta um valor de troca e um valor de uso, podemos dizer que
atualmente há uma hiperdominância do valor de troca, tanto que as mercadorias se
fazem mais e mais descartáveis.
Transformar a mercadoria em objetos significa reforçar o valor de uso dos objetos
produzidos, suas qualidades estéticas, sua durabilidade, sua engenhosidade, sua
instrumentalidade, sua capacidade de produzir relações afetivas que lhes deem nome,
história, enfim, identidade.
Uma vez as mercadorias tendo identidade (e essa identidade também pode sofrer
devires), talvez estejamos prontos para superar nossas identidades estanques e
empobrecidas, podendo viver devires com memória.
É isso, num movimento inverso, a mercadoria ganha história e identidade enquanto
nós ganhamos a riqueza da multiplicidade, e do exercício de identidades que se
desterritorializam em busca de novas terras.
PÁS, COLHERES, PANELAS, PALAVRAS, PALAVRAS, PALAVRAS
Muitas eram as palavras que ocupavam as paredes de uma das salas da casa-sede
da URP.
Palavras que faziam parte do cotidiano dos projetos de trabalho, e que eram
colocadas em cartazes para que os alunos do curso de alfabetização delas se
apropriassem e aprendessem a escrevê-las.
O curso de alfabetização que ocupava a sala foi um projeto construído pelo
Programa de Saúde Mental e pela Seduc, visando ao acesso ao mundo do conhecimento
e, assim, a uma amplitude de visões de mundo.
174
A ideia tomou corpo com força quando a equipe da URP e a coordenação de
saúde mental do município decidiram que era o momento de se efetivar a cooperativa a
ser gerida em conjunto com os usuários. Essa era uma perspectiva que vinha sendo
compartilhada com os usuários havia tempos, e cujo momento de efetivação
aguardávamos ansiosos.
Avaliamos naquele momento que a alfabetização era uma das ferramentas
fundamentais para que os usuários se apropriassem e se tornassem os protagonistas de
uma cooperativa de trabalho, e não mais apenas usuários dos NAPS e da URP.
A cooperativa seria outra instância, uma organização composta por
trabalhadores que visaria à prestação de serviços a seus associados, ao desenvolvimento
de projetos de trabalho coletivos que pudessem participar de forma efetiva e formal do
mercado, ao mesmo tempo em que fossem questionando este mesmo mercado e
participando de sua desconstrução.
Tão logo a cooperativa fosse formalizada como pessoa jurídica, a Afrent poderia
deixar de representar os trabalhadores, intermediando os contratos e as relações com os
clientes.
Digamos que a cooperativa seria um novo patamar do processo iniciado com as
reuniões do Núcleo do Trabalho dentro do Anchieta, passando pela constituição da
Afrent e da URP. Novo patamar cujos riscos inerentes e desafios estavam à altura dos
atores envolvidos no processo de desconstrução do hospital psiquiátrico e do paradigma
psiquiátrico em vigência naquele local e naquele contexto histórico.
E o projeto de alfabetização foi fundamental para qualificar o processo.
As duas professoras que davam aulas na URP estavam muito afinadas com o
projeto de desinstitucionalização em andamento, e eram muito influenciadas pelos
ensinamentos do educador Paulo Freire, que também propunha a construção do
conhecimento com o protagonismo e a apropriação da realidade a partir dos alunos,
condição fundamental para a produção de crítica.
E não era esse mesmo o processo que estávamos a construir com os usuários
desde os primeiros dias na intervenção do Anchieta? Não era esse mesmo o processo de
superação da simplificação operada pelo paradigma psiquiátrico? Não era esse processo
175
que enriqueceria a vida de usuários, profissionais de saúde mental, parceiros dos
projetos e pessoas que usufruíam as benfeitorias produzidas pelos usuários em diversos
projetos de trabalho?
NEGAR O PODER
É possível? É possível negar o poder?
O poder é a energia que é criada no contato entre os corpos, ou entre os
pensamentos, ou entre as linguagens.
Quando dialogamos com um livro, ao lê-lo, criamos tensões entre nossos
pensamentos e as mensagens grafadas.
É como se ouvíssemos vozes a debater: as nossas e as dos livros.
Então poder também é vida.
É possível vida sem poder? Mas no que se transformou o poder?
O poder se transformou, historicamente e desde sempre, em dominação.
A dominação é também sujeição voluntária a determinado poder.
Porque, mesmo sem alternativas aparentes, sempre há a possibilidade de sofrer as
consequências torturantes de não se submeter à dominação.
Esse caráter voluntário da submissão é, porém, algo que deve ser tratado com muito
cuidado, pois é difícil dizer quando dominamos e quando somos dominados.
Porque as relações de poder são sempre instáveis e relativas, embora a dominação
tente se colocar como uma relação de poder estável.
Mas se entendermos o poder não como uma energia fundamental da vida, mas como
uma forma permanente de dominação de corpos e mentes, podemos sim negar o poder.
176
Negar o poder significaria então abdicar da dominação, não dominar nem ser
dominado30
.
Não competir, mas seguir seu caminho autônomo de produção, que cruzará com os
caminhos autônomos dos outros, produzindo certa autonomia coletiva, o que é um
contrassenso.
Uma autonomia universal significaria, no entanto, uma mistura fundamental, o
contrário da solidão.
Uma sensação de totalidade que significa colocar o máximo de cartas na mesa, uma
totalidade possível em determinado momento, mas que também sofre mudanças com a
entrada de novos elementos.
Uma autonomia e uma razão sempre abertas a novas intervenções.
Essa seria uma forma de combater o poder enquanto dominação.
Quando uma pessoa se dedica a certa produção criativa sem olhar ao lado, sem
comparar sua produção às demais, está exercendo uma autonomia aberta.
Ela pode ficar contente com sua produção, e ficar muito feliz com a produção de
terceiros, porque não há comparações nesse tipo de autonomia.
30
Serres (2003) afirma que as lutas por reconhecimento sempre fizeram parte do reino animal: dois galos
se desafiam com bico e esporão, dois cangurus lutam como boxeadores. Os homens também lutam por
reconhecimento e prestígio, e haveria que se abrir mão do prestígio e da hierarquia para se conquistar a
consciência de si. ―Quanta cegueira é necessária para não enxergar a evidência de que a luta por
reconhecimento, que ninguém pode dar porque todos o desejam para si, fatalmente termina com a perda
de toda consciência e com o êxtase de uma droga? Gostaria de demonstrar que essa transformação brutal,
ainda que repetitiva, encerra para sempre a gênese da consciência de si‖ (id., ibid.: 114). Do mesmo
modo que nas ciências mecânicas ou na termodinâmica as constantes de força asseguram o tratamento
racional de todas as questões, a provável invariância na quantidade histórica de violência asseguraria o
tratamento racional das questões humanas. Enquanto o mal se conserva, a razão continua perversa. ―Para
se abolir essa necessidade seria conveniente que se rompesse a invariância, que se invertessem ao mesmo
tempo os equilíbrios racionais e as equações de vingança, que se inventasse um diferencial de
desestabilização que faria nascer outro estado. O primeiro a oferecer a outra face a quem deu a primeira
bofetada destrói o equilíbrio de proporção de justiça e, por meio dessa tentativa heroica, começa a
dissolver a constância. Como vantagem suplementar quem aqui se torna sujeito, a não ser aquele que se
submete? Renunciem ao prestígio e à dominação, e uma nova razão nascerá‖ (id., ibid.: 116).
177
A autonomia e a razão abertas e criativas produzem, criam, e apreciam a produção
de outrem, porque são abertas, negam o poder enquanto dominação, mas não enquanto
energia produzida pelo encontro dos corpos.
Negar o poder também pode significar abrir mão pelos outros, sentir prazer pela
conquista do outro; muitas vezes abrir mão do próprio prazer para assistir ao prazer de
outrem.
Quem sabe possamos realizar, sem guerras, um potlatch31
criativo e universal?
O ESTATUTO
Ocorriam uma vez a cada semana as discussões sobre o estatuto da cooperativa,
o que durou cerca de 6 meses.
Numa grande sala do NAPS 5, sentavam-se em círculo dezenas de trabalhadores
dos projetos de trabalho, fazendo uma atenta leitura de cada parágrafo daquele que seria
o regimento maior da nova instituição.
A leitura era lenta, e a cada parágrafo que terminava, iniciava-se uma discussão
para traduzir, modificar, acrescentar conteúdos à proposta inicial.
A proposta inicial de estatuto, formulada pelos técnicos da URP, baseava-se em
estatutos de outras cooperativas já constituídas, e adaptava alguns dos objetivos da
cooperativa, caracterizando-a como um instrumento que favoreceria as pessoas em
desvantagem social.
O nome ―Paratodos‖ representava esta ideia de que ninguém deveria ficar de
fora, mesmo que fosse portador de dificuldades imensas32
.
31
Potlatch é o nome que Marcel Mauss (1974) – citando outros autores – utilizou para expressar o
fenômeno recorrente entre algumas tribos do noroeste americano, em que às guerras e competições,
seguia-se o empilhamento de bens adquiridos pela tribo e sua posterior queima numa grande fogueira.
Quanto maior os sinais distantes da fogueira, vistos pelas tribos oponentes, maior a demonstração de força
e prestígio da tribo. Ou seja, quanto mais se despojassem de seus bens materiais, mais as tribos eram
consideradas fortes e protegidas por espíritos especiais. Emprestamos aqui essa referência por seu efeito
imagético que poderia simbolizar, para nós ocidentais, adaptando um pouco o sentido da ação, um bom
exemplo do que fazer com as mercadorias: uma grande fogueira da amizade universal.
178
O estatuto em discussão, por sua vez, representava também uma mudança de
estatuto social de cada participante, inserido num projeto de trabalho que os alçava da
condição de usuários para a de cooperados.
É óbvio que as duas condições coexistiam, a de usuários e a de trabalhadores-
cooperados, mas o repertório de papéis sociais ampliava-se, permitindo que a parte
trabalhadora interferisse na parte usuária, e vice-versa.
Pois o que estava em jogo era o aumento do poder contratual dos participantes,
que se colocavam agora de outra forma perante as instituições sociais.
O processo permitia que os participantes fossem instituintes de novos projetos e
de novas instituições, portanto de novos valores, saberes e práticas.
Novos modos de vida estavam implicados nessas transformações, que
questionavam os empobrecidos valores sociais da modernidade criados em torno do
trabalho.
O protagonismo dos usuários era o ponto de partida do processo.
Esse protagonismo fora iniciado desde as primeiras discussões no cotidiano de
transformação do Anchieta e continuava naquelas discussões sobre a cooperativa.
Para facilitar esse protagonismo, os profissionais da URP resolveram, depois de
muitas discussões, participar da composição daquela que seria a primeira diretoria da
cooperativa.
Na verdade, a dúvida que pairava era se o fato de sermos servidores públicos
municipais não atrapalharia o processo, já que a proposta da cooperativa trazia como
possibilidade o estabelecimento de convênios e contratos de prestação de serviços com a
própria prefeitura.
32
Após a constituição da cooperativa, que se daria meses após essas reuniões, um grupo de usuários e de
profissionais da URP elaboraria uma cartilha apresentando a cooperativa e resgatando seu caráter
contestatório enquanto instrumento de resistência das classes populares contra a exploração do capital.
Obviamente, naquele momento, a luta de classes e outras categorias marxistas estavam muito presentes
em nossas elaborações, pois refletiam aquele momento histórico e as leituras que fazíamos dele.
179
Devido à necessidade de apoio que a cooperativa e os trabalhadores
necessitariam nos primeiros momentos, resolvemos que dividiríamos alguns lugares da
diretoria com os usuários.
Pensamos que haveria ainda um tempo de maturação da cooperativa antes de
firmarmos novos contratos, e que os usuários precisariam de mediações importantes
para assumir esse papel, sem o que isso não seria possível.
Além disso, pensamos que, se comprovássemos que não receberíamos nenhum
ganho da cooperativa, não haveria como alguém nos acusar de utilizar recursos vindos
de contratos públicos em benefício próprio.
Na verdade, estávamos produzindo uma instituição híbrida, meio pública meio
privada, sem ter um arcabouço legal que nos sustentasse, como tinham os italianos na
experiência das cooperativas sociais (Gallio, 1991).
A criação desse arcabouço seria outro desafio a ser enfrentado com o conjunto
do movimento social de apoio à reforma psiquiátrica.
Os próprios convênios da Afrent e do Anchieta com outras empresas para os
projetos de trabalho já traziam em seu bojo situações não previstas pela legislação.
Isso trazia riscos e situações difíceis, é óbvio.
Foi o que ocorreu, por exemplo, quando alguns ex-moradores de rua que
participavam do Projeto Lixo Limpo resolveram entrar na justiça trabalhista alegando
que não recebiam os benefícios previstos pela CLT, e que aquele projeto não era de
reabilitação psicossocial.
A Prodesan teve muita dificuldade em defender perante a justiça do trabalho o
caráter e o objetivo do projeto (se a empresa quisesse de fato obter lucros a partir do
trabalho dos usuários, não teria gastos tão volumosos, que eram maiores que a receita
arrecadada com a comercialização do material separado).
A empresa, legalmente, só poderia contratar pessoas através de concursos
públicos, tendo aberto a possibilidade do convênio para permitir que fossem os usuários
a trabalhar no centro de triagem.
180
Por certo, os tipos de convênios que construímos, como únicas possibilidades de
criação das bolsas de trabalho e de inserção dos usuários no trabalho, produziram
também muitas contradições difíceis de ser contornadas.
Essa situação foi um dos motivos que nos levou a apressar a constituição da
cooperativa, que traria regras mais claras para os convênios.
A FUNDAÇÃO DA COOPERATIVA PARATODOS
A assembleia de fundação da cooperativa ocorreu num sábado pela manhã e foi
precedida de preparativos que se deram no decorrer de semanas.
Para validar e testemunhar o nascimento da cooperativa participou da assembleia
um representante de uma das organizações que tem como função acompanhar e
monitorar as cooperativas no estado de São Paulo.
Essa mesma organização colaborou na construção do estatuto e na orientação
dos passos que deveríamos seguir para efetivar a constituição legal da cooperativa.
Lemos e aprovamos o estatuto na assembleia, bem como deliberamos os
componentes da primeira diretoria, cujo presidente seria um usuário.
Foi uma bela festa, pois havia muita gente e uma mistura de trajetórias de vida
muito diferentes, mas que tinham como característica comum a forte combinação de
sofrimento e exclusão social.
Um momento ímpar de dignidade e de um colorido de vidas dissonantes
articuladas numa única orquestra, apresentando uma ópera em estrita afinação.
Um momento formal e de importância, protagonizado por aqueles que tempos
atrás exerciam muito pouco poder.
Agora essas pessoas participavam dos processos que produziam valor, não
porque se adaptaram aos padrões, mas porque interferiram e modificaram aspectos
desses padrões.
Na mesma quadra de esportes do NAPS 4, onde foi realizada a assembleia de
fundação, e que era uma parte do prédio do já extinto Anchieta com uma nova porta de
181
acesso aberta à rua, ocorreram as assembleias posteriores da cooperativa, sempre aos
sábados e, às vezes, seguidas de um bom churrasco cujo custo era rateado entre os
cooperados.
O processo de registro da cooperativa, no entanto, foi algo trabalhoso.
A extensa documentação exigida, a necessidade de nos deslocarmos até a capital
para ir à Junta Comercial, foram elementos que geraram alguns meses de trabalho.
Às vezes a Junta pedia um novo documento pessoal de algum diretor, e às vezes
este não o possuía, ou tinha acabado de perder.
Os diretores que tinham problemas com álcool eram os que mais perdiam os
documentos em momentos de recaída, e aí o processo se alongava por mais algum
tempo até que outras vias dos documentos fossem providenciadas.
Mas conseguimos registrar a cooperativa, também com a ajuda de um contador,
que depois continuaria prestando serviços à cooperativa.
E o primeiro grande trabalho dela foi regularizar a situação dos cooperados,
realizar reuniões com a diretoria e estudar as formas de viabilizar os novos contratos,
sendo o primeiro deles o contrato com a Prodesan para o Projeto Lixo Limpo.
Devido à complexidade do problema, que exigia o encaminhamento das
questões legais pela Prodesan, o contrato demorou a sair.
Em virtude da demora, eu e a maior parte da equipe da URP não pudemos
acompanhar a execução do contrato.
Chegamos apenas ao momento de levantar os pontos que deveriam constar nele,
estimando os valores, estabelecendo os termos etc.
O contrato se deu já quando não estávamos mais na URP e na cooperativa.
A mudança de governo fez com que interrompêssemos nossa participação nos
projetos de trabalho, e tivemos que procurar outros mares para navegar.
Parte da equipe foi retirada pela nova direção da URP e enviada para outras
unidades.
182
Eu solicitei minha transferência da unidade logo no início do outro governo.
Poderíamos, mesmo assim, ter participado como cooperados que éramos da
cooperativa, mas de fato ficamos muito desestimulados e optamos por investir em
outros projetos e trabalhos.
O fato de a perspectiva de continuidade da cooperativa, naquele momento,
depender da continuidade das negociações com a Prodesan, onde não teríamos mais
nenhum canal de discussão, por certo ajudou a termos dificuldades de vislumbrar um
futuro possível para a cooperativa.
Na verdade, a mudança de governo foi bastante melancólica para todos nós, após
termos vivido grandes transformações durante oito anos consecutivos.
E acredito que nossa participação na cooperativa ainda estivesse muito
caracterizada como uma participação do governo. Ou seja, como uma participação ainda
muito vinculada à URP.
Tínhamos uma dificuldade para nos ver como participantes de um movimento
social dentro da cooperativa.
Mas soubemos posteriormente que a cooperativa havia firmado finalmente o
contrato que prevíamos junto à Prodesan, e também substituído a Afrent nos convênios
do Projeto Terra.
Soubemos também que alguns dos projetos minguaram, outros novos
apareceram, e que mudanças importantes de concepção ocorreram, fazendo, por
exemplo, com que a maioria dos usuários mais graves e comprometidos perdessem seu
lugar nos projetos de trabalho.
Além disso, emergia uma concepção de processo de trabalho muito pautada na
criação de ―hábitos de trabalho‖ adequados, de normalização e respeito às hierarquias
(vários espaços de circulação da casa-sede da URP foram proibidos aos usuários).
Enfim, a proposta laborterápica e de puro adestramento surgia para fazer uma
nova síntese com a anterior dinâmica participativa dos projetos coletivos de trabalho.
Mas as marés às vezes mudam de direção, e conseguimos ou não navegar.
183
Temos também nossas opções em cada momento da vida, incluindo os mares
que desejamos navegar.
SUPERAR A MERCADORIA?
O trabalho no período moderno sofreu alterações que hoje se tornam mais
evidentes.
Seu surgimento produziu toda sorte de metamorfoses nas tradicionais formas de
viver a vida das sociedades pré-modernas e tradicionais.
O trabalho moderno tem sido um elemento determinante das relações entre os
homens e, hoje, ainda mais, pois quem se vê inserido no mercado percebe uma
tendência à captura da vida integral do trabalhador em função dos objetivos da empresa,
e de determinada lógica e modo de existir do capital.
Nesses processos, a mercadoria e o dinheiro como elementos fundamentais de
mediação das relações entre os homens têm se colocado cada vez de forma mais
potente, tanto assim que talvez já não haja quase nada no mundo que não seja
determinado por seu valor em dinheiro no mercado.
As relações mercantis invadem há muito até os mais privados e íntimos círculos
familiares, fazendo o máximo para ser onipresentes.
Mas esse movimento não se dá de forma tão tranquila.
Formas de resistência subsistem à hegemonia das formas básicas de relação
dentro do mercado, o que acaba sendo um elemento a ser utilizado na reorganização das
estratégias de dominação do mercado.
Considerando tudo o que o desenvolvimento do capital produziu enquanto
sociabilidade, ainda podemos perceber o quanto de brechas e processos marginais se
viabilizam nos mais inesperados lugares do mundo.
Nossa multiplicidade e a multiplicidade dos coletivos não se deixam açambarcar
totalmente por um tipo de totalitarismo que se pretende único no universo. Muitas
184
podem ser as experiências embrionárias (Kurz, 1999b) que tentam modificar esse estado
de coisas, produzindo toda sorte de enriquecimento da vida33
.
É verdade que muitas dessas experiências ainda encontram-se aprisionadas à
lógica da mercadoria, mas com uma ilusão de liberdade.
Mas é igualmente inegável que muito pode ser construído enquanto
sociabilidade a negar e subverter a lógica da mercadoria e do dinheiro, que tanto tem
empobrecido a humanidade, tendo como um de seus eixos a forma de trabalho moderno.
Neste estudo tenho procurado apontar, além de impasses inerentes ao processo
vivido por nós, algumas reflexões de caminhos ou de descaminhos possíveis a seguir,
que podem partir, sobretudo, do entendimento que fazemos de nós mesmos, enquanto
mercadorias com vida incorporada (nossa forma de ser mercadoria se diferencia de
outras formas que tem vida, como os animais, porque somos as mercadorias sob cujo
processo nós mesmos criamos. Nós inventamos a mercadoria que somos, e não outros).
Elegi até aqui alguns temas de discussão que apontam possíveis resistências,
temas estes relacionados à necessidade de se superar as identidades petrificadas em
direção a uma multiplicidade, ao processo possível de subversão ao domínio da
mercadoria, à possibilidade de problematizar o poder.
33
Em sua crítica ao trabalho e ao fetichismo da forma-mercadoria como referências fundamentais dos
padrões de sociabilidade modernos, Robert Kurz vai apontar que ―a divisão funcional amplamente
disseminada e profundamente escalonada da reprodução social, que não se manifesta, de início, pela
comunicação e vínculos comuns, mas só a posteriori, pela troca de produtos, forma a matriz de uma
sociabilização fetichista calcada no valor, ou seja, na qualidade metafísica aparente dos produtos, e não na
comunicação direta entre as pessoas‖ (Kurz, 1999b:18-19). A vida em torno do trabalho e da mercadoria
reproduz apenas o fim em sim mesmo da valorização do valor, e imprime através dessa abstração
desprovida de sentido processos de dominação sem sujeito. A produção de uma nova sociabilidade que
supere a forma mercadoria, para o autor, dependeria da capacidade de se produzir movimentos
emancipatórios, mesmo que de forma embrionária, onde a comunicação direta, e não as formas
convencionais e abstratas de participação, substituiria o foco sobre a forma-mercadoria, no exercício da
autonomia. ―Autonomia não significa fazer tudo por conta própria e constringir a reprodução num obtuso
ethos comunitário. Autonomia significa justamente o contrário, ou seja, que as relações socieconômicas
não se submetem mais a uma relação coercitiva externa, irracional e fetichista, mas repousam numa
comunicação livre e consciente, que oferece à obstinação do indivíduo a capacidade de desdobrar-se ou
recolher-se em si mesmo. Portanto, cabe ocupar um terreno social da autonomia nesta acepção, que só
pode viver se não se isolar regressivamente e travar múltiplas e amplas relações, capazes de romper e
superar (e não cimentar) as relações nacionais, religiosas e ‗étnicas‘, que se transformaram em modelos
de exclusão na história da modernização‖ (id., ibid.: 28).
185
Todos eles dizem respeito a uma mudança de rumo sobre aquilo que hoje é
chamado de desenvolvimento.
Não tenho dúvida de que as formas de resistência são movimentos que remam
contra a maré e que, por isso, só sobrevivem com esforço e certa dose de prazer, o
prazer de estarmos construindo algo de que realmente somos os protagonistas.
Muitas outras ondas, tsunamis e marolas virão para dificultar nosso movimento,
mas um bom marinheiro é aquele que, embora respeite o mar, não se amedronta a ponto
de ficar paralisado, à mercê do movimento da maré.
Sejamos bons marinheiros, e acessemos outros mares jamais vistos por ninguém,
para que a vida se torne uma ilusão/utopia real, algo que só vemos em filmes de ficção
científica, estes sim, mais aptos a enxergar as multiplicidades do saber humano, sem
medo de ser chamados de loucos.
Que nossa loucura nos salve da derradeira perdição, que é ter uma morte sem ter
tido um vida.
MAIO DE 1989
Entraram no Anchieta novos atores, que intervieram naquele caldo de relações
de violência e opressão.
Disseram aos pacientes, que eram só ouvidos, pois mudos ficaram pela falta de
exercitar a voz, que novos tempos se iniciavam, e que as formas de violência física e
psicológica, como as celas-fortes e o ECT, estavam extintas.
Da mesma forma, as novas regras trazidas pelos atores da intervenção
preconizavam o uso da voz, o diálogo, as decisões coletivas.
Perplexos, os pacientes confiaram na nova proposta e as primeiras frases foram
de denúncia das situações de opressão ou de abandono.
Tudo isso foi registrado num belo vídeo que filmou o primeiro dia da
intervenção, e que mostra os depoimentos dos internos em seu estado de perplexidade.
Eu ainda não participava de tudo isso.
186
Cheguei em novembro de 1989, vi que lá era difícil diferenciar os internos dos
funcionários, e que uma energia positiva pairava no ar, de forma efervescente. Também
recebi uma colher para me alimentar.
Percebi que desejava fazer parte daquele processo, e ser transformado enquanto
transformava a realidade.
Quando o funcionário da porta vacilou e não me deixou sair, pensando que eu
era um novo interno, reforcei ainda mais meu desejo de participar de todo aquele louco
processo.
E lá vivemos, eu e os colegas, um processo intenso de enriquecimento
existencial sem precedentes em nossas vidas.
RUMO AO TRABALHO EM EQUIPE
No capítulo que ora se finda, procurei trazer ao leitor algumas experiências
vividas com os usuários nos projetos de trabalho, como forma de demonstrar na prática
que é possível construir estratégias que modifiquem os contextos e que garantam a
participação de pessoas com seus processos e necessidades singulares. Também trouxe
mais elementos da constituição do trabalho moderno, e fiz reflexões sobre o tipo de
sociabilidade associada a ele, fazendo uma crítica à centralidade que a mercadoria
assume como referência na nossa forma de enxergar o mundo.
No próximo capítulo, apresento alguns relatos do processo de trabalho da equipe
do Núcleo do Trabalho, algumas cenas que demonstram os desafios de uma vivência
coletiva. Além disso, e principalmente, avanço na discussão sobre possíveis
transformações na nossa forma atual de sociabilidade.
Digamos que, aqui, começamos a diminuir o ritmo dos acontecimentos, pois
chega o entardecer, quando o sol começa a se pôr, e começamos a sentir a necessidade
de nos recolher para um bom descanso.
187
CREPÚSCULO
―Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente
contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem
está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual;
mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e
desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e
apreender o seu tempo‖ (Agambén, 2009: 58).
188
CRESPÚSCULO:
IMAGENS DO TRABALHO EM EQUIPE
PRODUÇÕES DE A-SOCIABILIDADES, OU ASSOCIABILIDADES
O termo ―a‖, que vem antes da palavra sociabilidade, quer se referir a um tipo de
relação entre homens e natureza que escape do paradigma e dos referenciais que nos
envolvem, e que permita apenas a reprodução destes, ao invés de uma metamorfose e
uma reorganização completa dessas relações.
Seria, então, a proposta de se criar uma antirrelação, uma a-forma de estar no
mundo.
NÓS, OS PROFISSIONAIS DO NÚCLEO
A equipe do Núcleo foi se constituindo aos poucos, desde os primeiros
momentos do Anchieta.
Como disse antes, ela dividia seu tempo entre as enfermarias e os embriões dos
projetos de trabalho.
Quando, em 1992, havia consistência suficiente no trabalho e massa crítica (em
termos de quantidade de projetos e de profissionais de saúde mental envolvidos) para se
criar uma unidade administrativa própria, o interventor colocou-nos como tarefa definir
dentre os pares um coordenador para a nova unidade.
Como sempre fizera nos cinco NAPS e no NAT que foram criados
paulatinamente, incumbira-nos de eleger tal figura por nossa própria conta.
Essa era uma das formas coletivas de empoderamento dos diversos atores:
delegação, confiança, assunção coletiva de riscos.
De certa forma, era esse processo que nos estimulava a reproduzir com os
usuários e em todos os estratos essa forma de trabalho conjunto.
189
A equipe, ainda em constituição, não teve unanimidade propositiva para definir
o coordenador.
Na verdade, não houve outros candidatos, apenas eu.
Ninguém, exceto eu, sentiu que naquele momento seria adequado assumir esse
papel, mas não havia nenhum consenso de que eu seria a pessoa mais adequada.
Acredito que a equipe era muito despojada, e sabia que qualquer um haveria de
representar institucionalmente o coletivo de profissionais e usuários, pois nossa
trajetória desde o Anchieta estava consolidada em termos de confiança, produção
coletiva, caminhar conjunto.
Eu não exerceria nenhuma autoridade extraequipe, isso era certo, mas teria que
aprender a ser como uma dobradiça que dialoga com esferas tão distintas como a gestão
da Secretaria de Saúde, a própria equipe, o conjunto dos usuários.
Acho que consegui colocar-me no meu devido lugar.
Nem que eu quisesse ser autoritário, a equipe deixaria; com certeza, me tiraria
num segundo do papel de coordenador.
Não me sentia portador de nenhuma habilidade ou talento especial que me
diferenciasse dos demais, e sei que a equipe não me via também dessa forma.
Eu apenas ajudava a fluir a criatividade da equipe, que era quem efetivamente
pensava, liderava e executava o trabalho.
Dividíamos tarefas e éramos fiéis a nós mesmos, sujeitos coletivos em sintonia
com as demandas dos usuários.
NÓS, OS MACACOS
Kafka (1999), em Um relatório para uma academia, conta a história do
esperto macaco Pedro Vermelho, que, para escapar do destino ao zoológico e como
saída para sua condição de não liberdade, decide transformar-se em homem.
190
Afirmando que os homens se ludibriam com a liberdade, encontrou no ato de ser
amestrado a possibilidade, e o caminho, de adentrar não só a academia, mas de produzir
valor social, podendo até escolher seus professores.
À noite, recorria a uma símia para se divertir, mas logo a abandonava, pois seu
olhar amestrado e submetido causava certamente uma confusão de sentimentos: o medo
de voltar à condição anterior, a angústia de se ver amestrado nos olhos da macaca etc.
Triste história e triste fim do macaco. Não gostaria de estar na pele, ou melhor,
no pelo dele.
Teria sido melhor ter morrido ao tentar escapar do navio que o levava enjaulado,
a ter que recorrer a tais estratégias que o submetiam ao modo de existência dos homens?
São desfechos e opções colocadas na história de Kafka, e a escolha por uma ou
por outra dependeria do macaco real.
O macaco de Kafka refere, na história, que nós homens estamos tão perto ou tão
longe como ele da condição de macacos.
E essa ideia nos faz pensar se a peça pregada por Kafka não realiza uma crítica
ao nosso processo de hominização.
Será que fomos, aos poucos, criando as estruturas e a noosfera (Morin, 2002)
ideal para nos autossubmeter à nossa gradual invenção de ser-homem?
Será que, encontrando uma saída, muito mais que uma liberdade inexistente, não
fomos nos adestrando e submetendo a padrões de sociabilidade, a formas de
conhecimento e de relação com o mundo que procuraram atingir, como no caso do
macaco Pedro Vermelho, a ambição de sermos aceitos nos espaços sociais, sendo um
deles a academia?
Esta questão é válida de forma peculiar para os usuários dos serviços de saúde
mental, muitos dos quais já passaram durante a história da psiquiatria por formas de
adestramento que reproduziam, em escala e com estratégias específicas, e também com
uma violência excessiva e específica, os processos de normalização que ocorriam nas
vilas operárias, nas workhouses, nas máquinas de vigilância panóptica das fábricas e
escolas.
191
O macaco, mais que os loucos, aprendeu rapidamente sobre os ―hábitos de
trabalho‖, sobre os mecanismos de valorização social, sobre nossa forma peculiar de
empobrecimento existencial. Não quero ser esse macaco nem quero isso para os loucos
que conheço! A crítica ao nosso processo de hominização também pode ser entendida
como uma crítica às formas construídas de sociabilidade.
ENXERGAR NO/O ESCURO
A escuridão é uma produção de parte de nossas células responsáveis pela visão,
localizadas na retina.
A escuridão não é apenas a ausência de luz, mas fruto de nossa atividade, mais
que de nossa passividade (Agambén, 2009).
Consideramo-la como ausência, como falta, como não sentido.
A escuridão do céu diz respeito a uma infinidade de galáxias que de nós se
afastam numa velocidade alucinante, superior à da luz.
É por isso que seu movimento passa despercebido, já que a velocidade da luz,
tentando clarear este movimento para nossa visão, é inferior a sua velocidade
fenomenal (id., ibid.: 65).
Muito bem, o escuro é rico de conteúdos.
Mais que clareá-lo, cabe saber apreciar sua rica obscuridade.
Não cabe tornar o latente manifesto, não cabe lançar luz na escuridão,
racionalizar o irracionalizável.
Cabe viver o irracional, superar a divisão racional/irracional, dando a ambos a
legitimidade para comporem o todo do conhecimento.
Um reencantamento do mundo (Prigogine, Stengers, 1984; Prigogine, 2009) é do
que se trata.
Como os cegos, podemos aprender a enxergar no escuro, ou enxergar o escuro.
192
Por certo estaremos sendo transgressores, uma transgressão dentro de certos
padrões éticos, ou que estica para lá e para cá estes padrões, instituindo normas
autodeformantes que se tornarão mais e mais elásticas, construindo um mundo num
pequeno quintal deserto, uma infinidade de relações num aparente escuro vazio e
inerte, uma autonomia que só existe porque pertence a múltiplos corpos, porque
mistura num único corpo infinitos corpos, ou porque explica que não existe um corpo
autossuficiente, mas metamorfoses dos movimentos das partículas, dos sentimentos,
das emoções, da cognição.
As partículas dos corpos humanos se desmancham no ar, porque nele sempre
estiveram desmanchados, mesmo que não tenhamos percebido o movimento com
nossas lanternas.
É que não conseguimos ainda enxergar na escuridão. E é necessário enxergar
mais para perceber as possibilidades já existentes de construção de novas formas de
sociabilidade.
Precisamos treinar sempre um pouco mais.
Isso é a produção da ética.
―o saber científico, extraído dos sonhos de uma revelação inspirada,
quer dizer, sobrenatural, pode descobrir-se hoje simultaneamente como
‗escuta poética‘ da natureza e processo natural nela, processo aberto de
produção e invenção, num mundo aberto, produtivo e inventivo.
Chegou o tempo de novas alianças, desde sempre firmadas, durante
muito tempo ignoradas, entre a história dos homens, de suas sociedades,
de seus saberes, e a aventura exploradora da natureza‖ (Prigogine,
Stenders,1984: 226).
ETICAMENTE POTENTES E JUNTOS
―Portanto, nada é mais útil ao homem do que o próprio homem. Quero
com isso dizer que os homens não podem aspirar nada que seja mais
vantajoso para conservar o seu ser do que estarem, todos, em
concordância em tudo, de maneira que as mentes e os corpos de todos
componham como que uma só mente e um só corpo, e que todos, em
193
conjunto, se esforcem, tanto quanto possam, por conservar o seu ser, e
que busquem, juntos, o que é de utilidade comum a todos. Disso se
segue que os homens que se regem pela razão, isto é, os homens que
buscam, sob a condução da razão, o que lhes é útil, nada apetecem para
si que não desejem também para os outros e são, por isso, justos,
confiáveis e leais‖ (Spinoza, 2009: 169).
Que não se confunda a razão de Spinoza com a de Descartes. Os quase
contemporâneos produziram visões quase antagônicas, e suas ideias tiveram pesos
diferentes, já que a ciência moderna se filiou ao primeiro, enquanto o segundo começou
a ser resgatado por aqueles que se dizem não cartesianos.
O Deus de Spinoza, que lhe rendeu uma terrível perseguição nas rodas
religiosas, era um Deus-natureza, uma potência de vida existente no homem e na
natureza. Por isso, uma das tarefas da razão é tentar ordenar e refrear os afetos
produzidos pelo corpo no contato com as causas exteriores, no sentido de fazer valer a
natureza humana e a conjunção com Deus: produzir vida, agir, usar a potência, visando
as coisas boas e a preservação harmoniosa da vida. Uma produção de vida que nos leva
a criar um corpo coletivo, superando as divisões entre corpo e mente, homem-Deus-
natureza, sujeito e objeto.
Uma ética da imanência que sobrepuja nossas forças em direção ao divino das
construções da natureza; o homem é natureza, ele produz a realidade com sua
imaginação, ao ser afetado pelas causas externas.
Lembremos que somos formados pelas mesmas partículas elementares, nós e as
mesas, antes mesmo destas se diferenciarem e produzirem organizações próprias e
diversificadas, dando forma às coisas que conhecemos.
Talvez seja por isso que Deleuze e Guattari afirmem que o devir não é imitar as
outras coisas, mas sê-las. Talvez o devir seja essa forma de metamorfose em que
usamos como mapa ou guia nossa origem de partículas elementares; talvez seja esse
reencontro com o todo, com a totalidade do universo.
Mas Spinoza sabia que controlar os afetos não era algo simples, nem algo
definitivo e disciplinado como achavam os estoicos ou mesmo Descartes. Os afetos e as
paixões são de difícil controle, mas são as ferramentas da vida, sem o que não
194
conseguiríamos nos conduzir num mundo rico e diverso. Eles são as ferramentas do
juízo, que precisam ser controlados pela consciência e pela compreensão.
Spinoza criticava aqueles que eram generosos e piedosos por obediência a
alguma religião, pelo desejo de alcançar o paraíso futuro, quando poderiam deixar de
ser escravos e usufruir dos próprios desejos. Agir pela preservação e produção da vida
de todos seria sim a forma consciente de se autopreservar e enriquecer a vida:
enriquecer a própria vida depende de enriquecer a vida de todos.
―É quando cada homem busca o que é de máxima utilidade para si, que
são, todos, então, de máxima utilidade uns para os outros. Com efeito,
quanto mais cada um busca o que lhe é útil e se esforça por se
conservar, tanto mais é dotado de virtude (pela prop. 20); ou, o que é
equivalente (pela def. 8), de tanto mais potência está dotado para agir
pelas leis de sua natureza, isto é (pela prop. 3 da p. 3), para viver sob a
condução da razão. Ora, os homens concordam, ao máximo, em
natureza, quando vivem sob a condução da razão (pela prop. prec.).
Logo (pelo color. prec.), os homens serão de máxima utilidade uns para
com os outros quando cada um buscar o que lhe é de máxima utilidade.
C.Q.D.‖ (Spinoza, 2009: 178).
REUNIÕES NOS NAPS
A parceria entre URP e NAPS esteve presente desde os primeiros dias de ambas
as instituições.
Como já mencionei, a inserção dos usuários dos NAPS nos projetos de trabalho
se dava através de muitas discussões entre as duas equipes, e da participação efetiva dos
usuários nas escolhas e nas formas de participação dentro dos projetos.
Estratégias conjuntas entre as duas equipes eram construídas a fim de se criar as
condições reais para que os usuários se apropriassem do trabalho, nas relações sempre
tensas com o mercado e os atores envolvidos no processo.
195
Uma das diversas estratégias utilizadas durante o processo de acompanhamento
dos usuários nos projetos de trabalho, além de atendimentos conjuntos entre as duas
equipes, acompanhamento dos usuários por profissionais dos NAPS nos primeiros dias
de trabalho etc., era a participação dos profissionais da URP em algumas reuniões
diárias de passagem de plantão dos NAPS34
.
Cada profissional da URP tornou-se referência de um dos NAPS para a
participação nessas reuniões, onde se discutia o processo dos usuários envolvidos nos
projetos, se trocavam informações sobre novos projetos de trabalho em constituição, se
dividiam olhares e visões sobre o sentido da construção dos projetos de trabalho na
constituição do Programa de Saúde Mental.
Essas estratégias conjuntas possibilitavam que usuários muito graves
participassem dos projetos de trabalho, e que superássemos o simples entretenimento, o
eterno treinamento para uma suposta inserção no trabalho que viria após o tratamento e
a cura, a reprodução de hábitos de trabalho alienantes e subalternizadores, como fins em
si mesmos ou mecanismos de disciplinarização.
Essa conexão de olhares e ações é que produzia sentido para o Programa de
Saúde Mental e para o sentido do terapêutico, entendido como um processo de
modificação de fluxos de poder, associados à modificação concreta da qualidade de vida
e das relações e, portanto, também produtor de novas subjetividades e novos valores.
Talvez pudéssemos chamar isso de enriquecimento da existência; um processo
de colorir o presente e o futuro, onde a trágica experiência do sofrimento humano tem
lugar não como negatividade a ser extirpada, mas como condição a ser abordada,
transformada, e como um dos elementos que, contraditoriamente, podem ser fatores de
enriquecimento.
34
A reunião de passagem de plantão era um dispositivo diário de organização dos NAPS. Era o momento
em que a equipe do período da manhã encontrava-se com a equipe da tarde, para trocar informações sobre
a dinâmica diária da instituição, promover reflexões sobre os projetos da unidade, discutir e propor
respostas aos desafios sempre novos que uma unidade territorial sempre permeável às demandas locais
haveria de enfrentar. Uma vez que o propósito da unidade era o de acompanhar e mediar o processo de
vida dos usuários em seus contextos de vida, produzindo toda sorte de mudanças e de novos sentidos, a
dinâmica inesperada da vida de cada usuário apresentava sempre necessidades inusitadas, exigindo
prontidão, flexibilidade, criatividade e responsabilização nas respostas.
196
OS DEUSES DE FEYERABEND
Os deuses existem?
―‗Não‘, replicam os defensores da ciência, pois deuses não se encaixam
em uma visão científica de mundo. Mas, se as entidades postuladas por
essa visão podem ser pressupostas e existirem independentemente da
mesma, então por que não deuses antropomórficos? É verdade que
poucas pessoas acreditam em tais deuses, e os que creem raramente
apresentam razões aceitáveis; mas a pressuposição era que a existência
e a crença são coisas diferentes, e que uma nova Idade das Trevas para a
Ciência não excluiria átomos. Por que deveriam os deuses homéricos –
cuja Idade das Trevas é agora – ser tratados diferentemente?‖
(Feyerabend, 2006: 183).
Nossos olhos, nossos espíritos, produzem nossos fenômenos, ou os traduzem,
metamorfoseando-os no nosso fenômeno.
A realidade está dada, sim, mas a produzimos ativamente com nossos sentidos,
nosso pensamento, nossa emoção.
Os experimentos de laboratório sofrem a influência do ponto de vista, a história
que construímos intervém em nossas descobertas.
Podemos então construir uma nova realidade, ou novas realidades, para sermos
mais honestos com a multiplicidade do real e do ser humano.
Outros caminhos de hominização podem ser criados, a partir dos escombros
produzidos pela modernidade, mas aproveitando também o que de belo ela produziu.
Podemos construir novas formas de sociabilidade, bem diferentes das atuais.
A-sociabilidades (marcando com ―A‖ a proposta de elas serem contrária às
atuais).
Associabilidades, ou seja, associativas, coletivas, onde as identidades em
mutação se misturem formando novas identidades em processo de metamorfose. Ou
seriam as Associações de Únicos de Max Stirner (Stirner, 2004)?
197
Novas criações sempre mutantes, em consonância com sua história e com as
idiossincrasias de seu tempo, ou, um pouco deslocado delas, como o contemporâneo de
Agambén, para que se consiga entender melhor o que se passa.
Os deuses existem?
―Dizer que os deuses homéricos não existiam porque eles não podem
ser descobertos experimentalmente ou porque os efeitos de sua
aceitação não podem ser reproduzidos é, portanto, tão tolo quanto a
observação – feita por alguns físicos e químicos do século XIX – de que
átomos não existem porque não podem ser vistos. Pois se Afrodite
existe e tem as propriedades idiossincráticas a ela atribuídas, então ela
certamente não ficará sentada quieta à espera de algo tão bobo e
humilhante quanto um teste de efeitos reprodutíveis (pássaros ariscos,
pessoas que se entediam facilmente ou agentes infiltrados comportam-
se de maneira similar)‖ (Feyerabend, 2006: 186-7).
REUNIÕES DE TERÇA-FEIRA
As reuniões da equipe do núcleo, já na casa do bairro da Aparecida, ocorriam às
terças-feiras.
Era o momento de socializar informações, discutir problemas, novos projetos,
perspectivas, encaminhar questões específicas referentes aos projetos de trabalho.
Com o crescimento da equipe, aquilo que fluía com a serenidade dos barcos a
vela deslizando no mar manso foi assumindo aspectos cada vez mais diferentes, e
tornando-se desafio cada vez maior.
A equipe inicial participara, cada um a seu tempo, do processo interno ao
Anchieta.
Outros, mais recentes, porém em menor quantidade, ocuparam posteriormente
seu lugar na equipe.
198
Os registros e as experiências de vida eram outros e, de fato, a possibilidade de
viver o período interno ao Anchieta trazia certa forma bem singular de ser e de lidar
com as questões.
Tivemos que encontrar os caminhos que permitissem a continuidade da
construção coletiva considerando a diversidade de atores.
Os novos não haviam vivido o processo do Anchieta na pele, mas vários deles
eram brilhantes e traziam contribuições fantásticas, colocando-nos a opção de nos
renovar com os fluidos que traziam, ou de rejeitar todas as novidades, correndo o risco
de nos objetivar e plasmar.
Acredito que conseguimos, não sem conflitos, seguir viagem em nossa nau
iluminada pelo sol e pelo brilhantismo de todos, navegando por águas cada vez mais
novas, às vezes turbulentas, às vezes mansas como a brisa de outono.
Ah, mas não era fácil e eu suava bastante!
Às vezes as reuniões de terça-feira, pelos desafios que a presença de integrantes
diferentes colocava, se tornava para mim um campo de combate comigo mesmo.
Como mediar os conflitos, como não se sentir ameaçado, como sustentar um
movimento construtivo em meio a expectativas e perspectivas agora diferentes, já que
as pessoas novas traziam outros registros?
Talvez aqui eu tenha tido que exercer mais ativamente o papel de coordenador,
do que simplesmente me deixar ser coordenado pela equipe antiga com quem eu me
identificava tanto.
E as tardes passavam e eu me preparava para a reunião de terça-feira.
O CONSUMO
Consumo é um termo que tem um sentido próprio na moderna sociedade
produtora de mercadorias.
Ele normalmente fica entre o desgastar ou eliminar algo, seja um objeto ou um
serviço (também um termo econômico conhecido da modernidade), de forma ativa e
199
determinada, ou às vezes de forma displicente, sem chegar até o fim (já que outra coisa
que nos interessa entra no lugar), e entre o puro adquirir, como forma de transformar o
dinheiro em algo, de consumá-lo em mercadoria.
A compulsão que circunda o ato de consumir é uma expressão da mobilização
psíquica, que pertence a um sistema de sociabilidade onde as relações com mercadorias
substituem quase integralmente as relações com as coisas e os atos.
Quais mecanismos psíquicos são mobilizados na sedução que estimula o
consumo?
São questões que merecem reflexão e pesquisa, mas que não estão ao alcance de
minhas possibilidades.
Quero chamar a atenção apenas para um dos mecanismos que conduzem ao
consumo, sublinhando sua dimensão mais comportamental que propriamente subjetiva,
ou seja, mais descrevendo o fenômeno do que tentando compreender sua origem e suas
motivações.
Ponho-me no meu devido lugar.
Esse mecanismo é a imitação.
Quão vulneráveis somos diante dos estímulos!
O consumo dos outros produz em nós desejos de consumo, sonhos de consumo
(o que fizeram da linda palavra sonho!) etc.
Somos imitadores contumazes, ávidos por forjar e ocupar a identidade-
mercadoria do outro.
Queremos ser, sempre, alguma mercadoria que não somos, mas que outro
também quer.
Não questionamos o fato de sermos mercadoria, nem a necessidade de termos
identidades.
Não valorizamos a possibilidade de sermos metamorfoses, e sustentamos a
ilusão de que temos identidades, mesmo que estas sempre queiram ser outrem.
200
Imitamos tanto que os ratos das experiências de laboratório nos condicionam
sem parar: temos que reproduzir incessantemente, de forma disciplinada, as
intervenções do experimento, a aplicação de drogas, ou o ambiente que o rato nos leva a
criar para produzir alguma inteligibilidade à pesquisa.
Foucault (2002, 2006) lembrou bem de como as histéricas enganaram Charcot,
que agiam conforme o mestre desejava, umas imitando as outras, e todas imitando o
desejo de Charcot.
Seria bom deixar de imitar, mas não é fácil não. Exige introspecção, troca com
o outro na construção de metamorfoses coletivas, criativas.
Quem sabe um dia consigamos nos livrar da repetição, da identidade, da
imitação, enfim, da lógica da mercadoria.
O USO
Faz tempo que deixamos de usar as coisas.
Consumo não é o mesmo que uso.
Pelo consumo, há tempos, consumamos o registro religioso do capitalismo, esta
religião que funciona através de rituais nada profanos.
A divinização da mercadoria é a essência do capitalismo e de nossa forma
moderna de estar no mundo (na experiência do socialismo real, a mercadoria também
funcionou como matriz do desenvolvimento econômico e mediadora das relações entre
as pessoas – como diz Kurz, [1993], o socialismo foi uma tentativa de modernizar a
economia de países agrários e atrasados com o referencial da mercadoria).
O consumo faz parte do ritual de uma religião que busca se perpetuar para que
sua existência tenha um fim em si mesmo, seja uma tautologia sem transcendência.
―O culto capitalista não está voltado para a redenção ou para a expiação de uma
culpa, mas para a própria culpa‖, diz Agambén (2007: 63) retomando a discussão de
Benjamin.
201
Uma religião que não busca a esperança, mas o desespero, e que não procura
transformar o mundo, mas destruí-lo (id., ibid.: 64). Nas palavras do autor:
―Uma profanação absoluta e sem resíduos coincide agora com uma
consagração igualmente vazia e integral. E como, na mercadoria, a
separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em
valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível,
assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido — também o corpo
humano, também a sexualidade, também a linguagem— acaba sendo
dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não
define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso se torna
duravelmente impossível. Esta esfera é o consumo. Se, conforme foi
sugerido, denominamos a fase extrema do capitalismo que estamos
vivendo como espetáculo, na qual todas as coisas são exibidas na sua
separação de si mesmas, então espetáculo e consumo são as duas faces
de uma única impossibilidade de usar. O que não pode ser usado acaba,
como tal, entregue ao consumo ou à exibição espetacular‖ (id., ibid.: 64).
A possibilidade de usar, na perspectiva de Agambén, exige a profanação, ou
seja, a restituição ao uso comum do que havia sido separado na esfera do sagrado (id.,
ibid.: 64), o retorno do que estava separado na esfera do divino para o uso
compartilhado.
Implica também, do meu ponto de vista, estabelecer formas de produção que
impliquem formas autênticas e inovadoras de uso.
Significa produzir algo com autor, com vida, com durabilidade, com qualidade,
e apto a ser bem utilizado.
Implica restituir o reino da criatividade, esta enzima que nos toma quando
deixamos a intensidade de vida transbordar. ―Implica intervir nas relações instituição-
energia, produção-criação, no sentido da circulação de energia e da criação‖ (Morin,
2002a: 212).
O ―comunismo cultural‖, nas palavras de Morin (ibid.: 209), que buscamos nos
momentos em que podemos interagir, colocando em segundo plano, afastando e
subjugando os padrões e as hierarquias sociais, pode encontrar seu reino no uso
202
perpétuo da criatividade, sob novas formas produzidas de comunicação e diálogo entre
os atores sociais.
As pessoas, metamorfoses ambulantes, então, podem se encontrar para forjar
novas produções coletivas que, na sua efemeridade, produzem sentido e superam a
tautologia da morte em vida representada pelo reino do trabalho e da mercadoria.
―A Política de civilização deve, certamente, desenvolver e utilizar todos
os aspectos positivos das ciências, das técnicas, do Estado, do
capitalismo, do individualismo; deve investir na pesquisa, apostar numa
nova era da técnica inteligente e, ao mesmo tempo, desenvolver a
economia solidária, o comércio equitativo, as associações e
cooperativas. Ela exige a humanização das cidades e a revitalização dos
campos, o que certamente necessita de investimentos. Mas, também,
quantos benefícios para a saúde de todos e, portanto, investimentos
crescentes no orçamento da saúde! É necessário revolucionar nossa
forma de viver. Precisamos, ao mesmo tempo, promover a qualidade,
em essencial a qualidade de vida, muito mais do que o quantitativo;
promover o bem viver, que possui dimensões psicológicas e espirituais,
muito mais do que um bem-estar exclusivamente material, que conduz
ao empobrecimento da vida em meio à riqueza‖ (Morin, 2010: 263-4).
QUANDO O USO TORNA-SE CONSUMO
Há quem defenda que o consumo seja uma forma tática de liberação.
Uma vez que estejamos submetidos a uma ordem estratégica disciplinar,
econômica, de valores culturais, nos restaria, através do consumo, subverter o registro,
usar de outra forma e sob outra lógica aquilo que se encontra prescrito, definido e
imposto.
É assim que Certeau (2007) interpreta as reações dos povos indígenas à
ocupação espanhola, é assim que vê as formas de resistência atuais das massas
submetidas aos ditames da produção.
Diz ele que os indígenas utilizavam de modo peculiar os preceitos e as
prescrições impostas pelos dominadores, sem enxotá-las ou modificá-las, mas
utilizando-as sob novo registro, de uma forma autêntica que escapava às expectativas
203
dos dominadores. Estaríamos, segundo ele, imperceptivelmente, invisivelmente e sem
estardalhaço, dando golpes contra a ordem, exercendo a antidisciplina, em nosso ato de
consumir.
Ao caráter totalizador, autoritário, regulado e planejado da estratégia, que
valorizaria a propriedade e o espaço, responderíamos com o caráter contingente e
pragmático de nossas táticas de guerrilha, onde os mais fracos golpeiam os mais fortes,
fazendo valer o tempo mais que o espaço.
O trabalho de Certeau sobre o cotidiano, segundo suas próprias palavras:
―consiste em sugerir algumas maneiras de pensar as práticas cotidianas
dos consumidores, supondo, no ponto de partida, que são do tipo tático.
Habitar, circular, falar, ler, ir às compras ou cozinhar, todas essas
atividades parecem corresponder às características das astúcias e das
surpresas táticas: gestos hábeis do ‗fraco‘ na ordem estabelecida pelo
‗forte‘, arte de dar golpes no campo do outro, astúcia de caçadores,
mobilidades nas manobras, operações polimórficas, achados alegres,
poéticos e bélicos‖ (id., ibid.:103-4).
Talvez, numa linguagem deleuziana, máquinas de guerra nômades a constituir
linhas de fuga numa luta que é mais guerrilha que guerra. Mas também algo no campo
das resistências de Foucault quando nos lembra que toda relação de poder implica
resistências que a moldam, e que faz do poder algo multicêntrico e geralmente
incapturável.
Embora Certeau realize uma crítica ao caráter totalizador da sociedade
disciplinar de Foucault, por vezes, parece reforçar os aspectos que o autor sugere nas
questões do poder.
Mas não é isso o que importa aqui. O que importa é refletir se o consumo pode
de fato representar uma forma de resistência, uma astúcia que sabota a ordem das
coisas.
A ideia de um ato crítico no interior da produção me agrada. É como ocorre
nos projetos de trabalho: participar do mercado, mas questioná-lo; viver o mundo do
trabalho, mas tentar desconstruí-lo.
Mas o silêncio e o anonimato desse movimento sugerido por Certeau, onde
cabe a singularidade do uso, não seriam uma forma de fazer uma guerrilha onde a
subsunção à ordem estaria muito mais presente que sua negação? Estaríamos mesmo, a
204
todo momento, utilizando as coisas com nossas próprias mãos e de forma peculiar, ou
estaríamos, na maioria das vezes, utilizando as coisas conforme regem as bulas e as
regras, atendendo aos preceitos dos produtores?
É difícil afirmar qualquer dessas questões.
Certamente, quando lemos um texto, nós também o produzimos, pois a leitura
nunca é passiva; aceitamos as regras, mas as instituímos de nossa maneira. Está certo!
Mas por que não podemos nos opor mais insistentemente no sentido da própria
desconstrução dessas regras? Por que nossa oposição deve ser apenas muda?
―produtores desconhecidos, os consumidores produzem por suas
práticas significantes alguma coisa que poderia ter a figura das ‗linhas
de erre‘ desenhadas pelos jovens autistas de F. Deligny. No espaço
tecnocraticamente construído, escrito e funcionalizado onde circulam,
as suas trajetórias formam frases imprevisíveis, ‗trilhas‘ em parte
ilegíveis. Embora sejam compostas com os vocabulários de línguas
recebidas e continuem submetidas a sintaxes prescritas, elas desenham
as astúcias de interesses outros e de desejos que não são nem
determinados nem captados pelos sistemas onde se desenvolvem‖ (id.,
ibid.: 45).
A restituição das coisas ao uso ainda é um desafio. Talvez modificar de fato nossas
relações com as coisas seja o desafio mais perturbador.
Esse uso singular há que produzir ressonâncias que atinjam as forças do valor de
troca, destruindo-o. Pois o valor de troca não é mais a produção de uma relação entre
partes que transforma o mundo e as pessoas. O valor de troca, retornando a Agambén,
pertence atualmente e desde a modernidade ao reino do sagrado. Profanando-o,
podemos restituir ao ato de trocar a necessária possibilidade de construir subjetividades
e sociabilidades metamorfoseantes.
REDE DE TROCAS PARALELAS AO MERCADO
As redes de troca de produtos e serviços têm surgido aqui e ali como uma forma
de viabilizar as trocas sem a interferência do mercado.
205
Até moedas sociais têm sido inventadas em algumas localidades (e em São
Paulo já existem essas experiências), com o intuito de ensaiar uma independência em
relação ao mercado.
Sim, ensaiar, pois é difícil conceber situações onde o mercado esteja de todo
ausente. Particularmente, considero que, nos dias de hoje, viabilizar uma rede paralela
onde o mercado esteja totalmente ausente seja algo de difícil realização, uma vez que
qualquer etapa de um processo produtivo participa em algum momento do fluxo do
mercado: a compra de uma matéria-prima, a venda de parte da produção, a aquisição de
determinada ferramenta ou maquinário, a manutenção deste último, enfim, as
imbricadas redes do mercado estão por toda a parte e difícil é fazer de conta que ele não
existe.
Experiências como as de assunção de empresas falidas por empregados, em
forma de cooperativas, trazem muito facilmente essa imagem de vínculo inevitável com
o mercado.
Nelas, as estratégias econômicas da nova empresa para a concorrência no
mercado seguem alguns padrões comuns aos das empresas capitalistas, uma vez que o
raciocínio para se fazer presente e encontrar sucesso no mercado é o mesmo em
qualquer tipo de empresa, e nas cooperativas também, mesmo considerando a existência
de outros tipos de relações de reciprocidade e de exercício de autonomia na condução da
produção.
Cada empresa ou cooperativa, dependendo do seu tamanho, entra em relação
com redes de relações econômicas mais ou menos complexas, mais ou menos amplas, e
assim por diante.
É assim que micro e pequenas empresas entram em contato com os fornecedores
de crédito ou os consumidores intermediários ou diretos de seus produtos.
As empresas médias e, sobretudo, as grandes entram em fatias mais complexas
das redes de relações, tais como as instituições mediadoras de investimentos, os bancos
oficiais, os candidatos a franquias, enfim, os mais diversos atores produzidos pelo
mercado (vale lembrar que os investimentos se afastaram sobremaneira da produção
real, criando a situação esquisita de uma empresa apenas emprestar o nome para
206
produzir valor, já que o fluxo de investimentos é tão veloz que o dinheiro sequer chega
a ser utilizado na produção).
Mesmo em algumas cooperativas populares, é comum verificar a reprodução de
certos mecanismos do mercado, como a definição prévia de valores salariais que
reproduzem as faixas do mercado, seguindo os padrões por profissão, por tipo de
formação acadêmica etc.
Embora devamos negar uma ilusão de total independência do mercado, é certo
que tais experiências que tentam produzir um movimento paralelo a este último são
importantes e devem ser valorizadas.
Isso porque talvez elas remetam à possibilidade de propor modificações no
mercado atingindo-o por dentro, além de produzir toda uma série de experiências
cotidianas de socialização diferentes daquelas que são básicas no mercado.
Quer dizer, uma vez que se pode ter acesso e poder para definir modos de
produção e as estratégias de desenvolvimento econômico, mesmo que estas sejam
limitadas pelas moldagens do mercado, há sempre a possibilidade de reverter padrões e
alcançar formas inéditas.
Os projetos de trabalho, nessa perspectiva, podem estar associados a outras
experiências de sociabilidade, outras relações que ultrapassem em muito os momentos
da produção, relações de reciprocidade, de companheirismo, de construção de projetos
de intervenção cultural que não se submetem à lógica do mercado.
Produzir relações múltiplas, outros projetos estéticos de existência que
ultrapassem a mercadoria, mesmo que tenhamos que ter a calma de suportá-la ainda por
algum tempo.
Dessa forma, produzindo outras situações existenciais de convivência que
ultrapassam o domínio do mercado, estaremos aptos a descobrir de forma construtivista
os meios de enriquecimento da vida, mesmo que isso leve tempo e que as contradições
sejam imperantes. Afinal, há muito aprendemos que a natureza e os processos sociais
são contraditórios, e talvez coubesse uma autocrítica referente à nossa capacidade de
acabar com as contradições. Talvez a síntese, como produto da relação entre a tese e a
antítese, nem sempre seja possível.
207
Isso, por certo, não nos libera do necessário combate às ignomínias do mercado,
às atrocidades do capitalismo, esse modelo de estar no mundo que produziu coisas
importantes e outras horripilantes.
Nesse sentido, vale a pena lembrar que um dos arcabouços do capitalismo, a
evolução tecnológica, pode ser algo de grande valia a ser utilizado nas novas propostas
de sociabilidade, haja vista sua capacidade de colocar o homem em outros lugares nos
processos produtivos: pois se uma máquina pode substituir um braço e um punho, ela é
ao mesmo tempo controlada por um corpo humano que se tornou praticamente todo
cérebro, pois ele dirige a máquina com pouquíssimos movimentos, como o cérebro que,
de forma quase invisível, controla todos os movimentos de nosso corpo35
.
Se tivermos as máquinas a serviço da produção de novos modos de produção
associados à construção de novos valores, teremos então a possibilidade de afirmar
nosso poder de construção e elaboração, ao contrário do poder destrutivo dos atuais
modos de produção, que produziram e se apropriaram da tecnologia.
O desafio de pensar em possibilidades de superação do mercado não deve
desaparecer, pois já foram muitos os fenômenos quase impossíveis que tomaram a cena
na história da humanidade e, além disso, há sempre a possibilidade de o próprio
mercado, em seu movimento voraz, destruir-se a si mesmo. E aí, nesse momento,
deveremos estar preparados para colocar outra coisa menos prejudicial no lugar.
É preciso deixar claro que aqui não se faz a proposta de retomar projetos que
tentaram vender a falsa e ilusória imagem de superação do mercado. Não se trata de
socialismo ou algo que o valha. As fórmulas do socialismo real não representaram
mudanças reais no paradigma da mercadoria e do dinheiro. Conseguiram produzir um
35
Leroi-Gourhan (1965) comentou esse processo de exteriorização do corpo e da ação humana, que
sempre acompanhou o processo de hominização. Inicialmente as pequenas ferramentas que substituíram o
movimento da mão e dos braços, ou mesmo dos dentes. Cortar ou descascar com algum instrumento de
bordas cortantes em vez de utilizar os dentes frontais. Posteriormente, com o arado puxado por animais,
modificar o uso da força humana, conduzindo o processo. Colocar a força física como motor ou a energia
necessária para as engenhocas funcionarem. Mais tarde ainda, com os automotores, a energia a vapor, o
uso do carvão como combustível, adaptar novamente os movimentos do corpo aos das máquinas. Com o
uso da eletricidade, aperfeiçoar ainda mais os movimentos exteriorizados do corpo, substituindo-o por
outros dispositivos. Mais recentemente, a eletrônica vem possibilitar a exteriorização de funções do
cérebro. Os robôs vêm demonstrar que podem ter uma existência quase própria, colocando a questão de
saber o que fazermos com nosso corpo e nossas funções mentais libertas das funções do trabalho.
Haveremos de inventar outras funções para as mãos e o cérebro?
208
mercado planejado e controlado pelo Estado, associado a um controle autoritário do
pensamento e do comportamento e, por isso, sucumbiram a uma crise econômica
desestruturante, já que, para sobreviver e se desenvolver, um mercado precisa de
flexibilidade e concorrência. A lógica da economia socialista foi também a da
mercadoria, e esta referência fetichista demarcou o desenvolvimento das relações
interpessoais e de produção (Kurz, 1993).
Não é o Estado que pode vencer o mercado, nem ser a esperança de um mundo
que prescinda da existência da mercadoria, repropondo a relação com os objetos, a
natureza e os homens. O Estado moderno nasceu no bojo do desenvolvimento da
mercadoria e da noção de trabalho, e suas implicações são tantas que um não pode
sobreviver sem o outro: o Estado sem o mercado e vice-versa.
É provável que a produção de redes paralelas ao mercado possa ser um ensaio
para a construção de redes substitutivas ao mercado, que sejam costuradas sem a
mediação das instituições tradicionais, mas com a participação direta das pessoas. Essas
redes, geridas e costuradas a cada trama por grupos de pessoas, quem sabe pudessem
viabilizar na prática novas formas de existência pautadas na troca de criatividades,
produções, objetos e serviços36
. Essa construção gradual, como já apontei, pode ser
36
Uma experiência já em vigor é aquela desenvolvida por alguns músicos através da internet. Deixando
de lado as gravadoras, que não só retêm a maior parte do valor produzido pelas obras, mas intervêm na
própria criação do artista, de forma a tornar palatável ao mercado as produções (mesmo que isso
signifique empobrecer as composições musicais), alguns músicos têm oferecido suas composições na
internet cobrando pequenos valores em dinheiro, ou, o que é mais interessante, oferecendo gratuitamente
suas músicas, ou sugerindo que haja contribuições voluntárias. Já há evidências de que essas
contribuições voluntárias ultrapassam o que antes estes artistas recebiam das gravadoras (Benkler, 2011)).
Além disso, esse tipo de troca tem possibilitado que os fãs se comuniquem diretamente com os artistas e
entre seus pares, criando redes de pertencimento que acabam coproduzindo as obras artísticas, o que tem
sido estimulado pelos próprios artistas. Vemos aqui uma forma espontânea de troca e de constituição de
laços sociais possibilitados pela apropriação da tecnologia microeletrônica de comunicação. Na mesma
linha, Serres questiona se o dinheiro, como equivalente universal, não estará sendo pouco a pouco
substituído pelos dispositivos da comunicação. ―Com a comunicação, colocamos a mão sobre um novo
equivalente geral? Uma vez que as vias ‗naturais‘ ou tecnológicas, os fluxos energéticos ou
informacionais e os núcleos frequentemente parasitários obedecem a essa lógica multivalente, o tecido
que formam tende a uma equivalência global que será alcançada quando uma unidade monetária que
tenha valor sobre a internet tiver substituído todas as moedas mundiais. Nesse momento o valor desse
bem vai variar mais ou menos de acordo com a informação que vocês puderem encontrar sobre ele: todos
terão sua conta no banco de dados. Será que o dinheiro irá assumir um papel secundário e irá ceder lugar
frente a um equivalente mais imaculado e mais geral do que ele? Apegamo-nos aos termos da informação
cujo caráter multivalente pode assumir todos os sentidos porque é privado de sentido. Apegamo-nos à
comunicação porque ela é tão geral, que pode querer dizer tudo‖ (Serres, 2003: 185). Mas o problema,
nesse caso, é fazer com que, ao invés de sucumbir a uma regulamentação externa da internet, possa se
209
iniciada através da desconstrução do mercado, ou seja, a partir de seu interior, como
parece ocorrer nas propostas das redes paralelas, que acabam de alguma forma
participando do mercado.
Essa rede talvez pudesse trabalhar com a noção de projetos. E o que seriam os
projetos?
À semelhança dos projetos de trabalho que relatei, eles seriam a união de
pessoas para a execução de determinada tarefa que visasse ao cuidado e ao bem-estar de
outros conjuntos de pessoas que, por sua vez, comporiam outros projetos com a mesma
finalidade. As trocas se dariam a partir das necessidades reais. Os produtos e serviços
estariam disponíveis para o uso comum. Estes deixariam de ser mercadorias para se
tornar objetos e serviços de uso. Ou seja, passariam do registro do consumo (campo do
sagrado) e entrariam para o terreno do uso (campo do profano) (Agambén, 2007).
A noção de projeto implica uma apropriação dos produtores sobre os processos
dos projetos37
, e uma divisão consciente e negociada das funções que cada projeto
precisa desenvolver para ser viabilizado. Pelo menos internamente aos projetos, os
produtos e serviços, sua destinação e uso seriam conhecidos pelos produtores, de forma
a superarmos o processo mágico e fantasmático que faz surgir as mercadorias sem que
entendamos de que forma.
Os projetos seriam realizados nas mais diferentes áreas, havendo uma
preocupação especial com a denominada área cultural e nas áreas que envolvem o
contato pessoa-pessoa, já que os serviços mais duros poderiam ser realizados pelas
máquinas da revolução microeletrônica. O dia a dia das pessoas envolveria a realização
reproduzir o mesmo mecanismo autônomo e autorregulador que os fora da lei da floresta de Robin Wood
criaram com suas próprias mãos e bocas, definindo eles mesmos as regras que amenizariam a angústia da
total falta de regras. Ou seja, permitir que se crie um novo direito num lugar de não direito, num
movimento que não venha de fora, mas de seu interior (id., ibid.).
37 Não uso o termo processos de trabalho, mas processos dos projetos, porque aqui não estou me referindo
ao trabalho como uma atividade remunerada (embora ele, aqui, garantisse o acesso a bens e serviços), da
forma como o conhecemos hoje, pois nessa proposta se dissipariam as divisões entre o que habitualmente
chamamos de trabalho e de não trabalho. Ou seja, o trabalho como conhecemos seria substituído pela
participação no projeto, uma figura emergente diferente do labor e que não se limita a vender a força de
trabalho em troca de dinheiro, para a simples reprodução. Todos os projetos, ou mesmo a não participação
em projetos, poderiam garantir o acesso aos objetos e serviços necessários a uma vida bem vivida.
Haveria a possibilidade de não participar de um projeto, sem que isso significasse exclusão e
marginalização.
210
plena e com qualidade de seus respectivos projetos. Ter e pertencer a um projeto seria
uma forma de agir no mundo, de exercer a criatividade e os laços de reciprocidade.
Seria uma forma de viabilizar que todas as pessoas sejam autores, e não apenas
executores cegos de um fim em si mesmo sem sentido. O projeto poderia ser a
ferramenta de produção de sentido. Participar de um projeto significaria saber lidar
positivamente com a liberdade, redefinindo-a como um bem precioso. O projeto poderia
substituir o trabalho forçado, o emprego sem sentido, permitindo que houvesse mais
prazer na consecução de seus objetivos. À semelhança dos projetos de trabalho que
apresentei, eles poderiam cuidar das cidades e das pessoas.
Essas proposições não se candidatam a ser delírios, mas são figuras ilustrativas
de formas alternativas de conceber a ação e o discurso. Eu não teria nenhuma condição
de propor fórmulas exatas de como superar o mercado, e não é este o objetivo deste
trabalho. Mas posso acentuar alguns elementos problemáticos que compõem o mundo
da mercadoria atualmente, baseando-me nos aprendizados que os projetos coletivos de
trabalho do Núcleo do Trabalho me ensinaram. A intenção aqui é apenas levantar alguns
pontos e provocar no leitor algum tipo de reflexão sobre sua própria relação com o
trabalho e o mercado.
SUJEITOS COLETIVOS
É interessante pensar que, apesar das novidades trazidas pelos novos integrantes
da equipe do Núcleo, agora URP, havia uma característica especial, com raríssimas
exceções, na composição da equipe do núcleo: todos eram muito autônomos e
responsáveis, criativos, batalhadores.
Éramos tão cúmplices uns dos outros, e nos víamos tanto como um grupo forte,
que até algumas contravenções cometemos juntos.
Uma delas foi quando, em meio a uma campanha eleitoral, onde se definiria se a
prefeitura manteria ou não o mesmo movimento, as mesmas políticas sociais, decidimos
participar ativamente e, alguns dias, realizar as velhas panfletagens, corpo a corpo, boca
de urna prévia, campanha enfim, como dizíamos.
Só que, certo dia, resolvemos fazer isso na manhã de um dia de trabalho. Fomos
em grupo a uma feira livre próxima à URP, e lá iniciamos a panfletagem.
211
Estávamos, é verdade, em horário de trabalho, mas acreditávamos que isso se
justificava, pois sabíamos bem o que representaria uma mudança de governo contrária
ao projeto (e experimentamos esse veneno no futuro, e ele foi bem amargo, como
pudemos comprovar).
Tentando encontrar motivos que tornassem nossa atitude uma ação ética e
política, fomos em grupo à feira, junto com outros militantes de então.
Para nossa surpresa, lá encontramos, também ainda em horário de trabalho
(ainda era o final da manhã), uma das novas participantes da equipe que, por vezes,
trazia-me problemas pelo tipo de envolvimento com o trabalho.
A nova participante da equipe não estava fazendo campanha, não, estava
fazendo a feira para sua casa, possivelmente o mesmo que fazia toda a semana, já que
morava perto dali.
Não sei qual foi o maior constrangimento, se dela, por estar usando o horário de
trabalho para fazer feira, ou o nosso, que sempre procuramos ter uma postura ética e de
respeito ao nosso trabalho.
Esse fato virou anedota por um tempo, até que essa nova participante e a
equipe se integrassem mais, e pudessem afinar suas ações.
Não me arrependo de ter feito campanha em horário de trabalho. Achava que
nossa atitude era de defesa do projeto, e estava em sintonia com o projeto mais geral
que tentávamos imprimir na cidade.
É lógico que outros, inclusive o leitor, podem questionar minha conduta.
A verdade é que, após 4 anos desse episódio, quando perdemos a eleição,
surgiu com força um movimento para despotencializar os projetos e imprimir outros
interesses na gestão da prefeitura.
Com certeza, esses interesses, em boa parte econômicos, nada tinham a ver
com os loucos, ou com a população de menor renda que se beneficiava desses projetos.
Mesmo com a dita força dos movimentos populares, os governos conseguem
sim imprimir seus interesses e desmobilizar, matar de inanição, modificar
completamente as perspectivas dos projetos, inclusive assassinando alguns deles.
Foi o que aconteceu em Santos depois de 1996.
212
A PROFANAÇÃO DOS IDEAIS DA ORDEM FRANCISCANA
Os franciscanos têm algo de valor a nos dizer. Seu voto de pobreza e de
serviço ao outro sempre sofreu ataques, mesmo dentro da própria igreja, que em
determinado momento soube, como as demais religiões do cristianismo, se adaptar à
religião do capitalismo, viabilizando uma interlocução entre deuses diferentes (o eterno
e o $).
O direito à propriedade, que de alguma forma, ainda que frágil, a ordem
franciscana põe em questão, foi defendido historicamente pela igreja com unhas e
dentes, sendo ela, aliás, uma grande proprietária de bens adquiridos em troca do acesso
aos céus por parte de doadores.
A crítica realizada pela ordem franciscana perdeu sua virulência no momento
em que ela se adaptou ao regime para permanecer nas filas da igreja, não transformando
em questão política aquilo que de mais interessante produziu: o acesso ao uso.
No momento em que o acesso ao uso torna-se dependente e refém das
doações dos proprietários, a ordem franciscana torna-se útil ao sistema da igreja e do
capitalismo.
Mas a imagem do uso permanece naqueles que não sucumbiram à pobreza
espiritual e criativa do mundo: uma mesa enorme, cheia de comida e de objetos
duráveis, permanece sempre forrada de coisas boas à disposição de todos, em qualquer
hora, em qualquer lugar.
A mesa é recomposta eternamente, nunca fica vazia nem suja, e é
preenchida pelo produto da criatividade de todas as pessoas, redesenhada
constantemente através do processo comunicativo desses mesmos atores que, a cada dia,
inventam cardápios diferentes e cada vez mais apetitosos.
Que me acusem de messianismo aqueles que viram na imagem o conhecido
retrato da santa ceia.
Se me acusarem, não há problemas, mas lembrem de que se trata de uma
festa eterna e, sobretudo, profana.
VIDA CRIATIVA
―Assim, o Homo faber é também o Homo mythologicus. Homo
economicus, noção nascida no século XVIII, no Ocidente, significa que
213
o homem é movido por seu interesse pessoal. O que é frequentemente
verdadeiro em nossa sociedade, mas em todas as sociedades, inclusive a
nossa, existe uma parte em nós que se expressa pela dádiva e pelo jogo.
O Homo não é apenas economicus, mas é também ludens. Além disso, a
realidade humana apresenta-se para nós simultaneamente como prosaica
e poética. É prosaico tudo aquilo que fazemos por obrigação, segurança,
sem prazer. É poético o que nos projeta no amor, na fraternidade, na
comunhão, na exaltação e que pode até nos levar ao êxtase. Hoderlin
dizia que o homem habita a Terra poeticamente. Eu diria prosaica e
poeticamente. A prosa nos ajuda a sobreviver. A poesia é a verdadeira
vida‖ (Morin, 2010: 206).
É do enriquecimento da vida que trato, quando falo dos projetos de trabalho
e do Núcleo do Trabalho.
Uma nova forma de estar no mundo, patrocinada pelo Estado, patrocinada
pelo mercado, mas incessantemente propondo a transfiguração de ambos.
Uma traição para lá de salutar, se entendermos saúde como potência de vida
(Nietzsche, 1998, 2003, 2008), intensidade de criatividade, exercício de relações que
transformam as subjetividades, tornando-nos metamorfoses ambulantes.
Quando o filho bem-criado cresce, ele deve trair os pais, saindo de casa e
procurando construir uma vida só dele.
É essa traição que também dá nova vida aos pais, que devem deixar sua
condição parasitário-simbiótica para pôr em uso sua criatividade na produção de novas
formas de estar no mundo, interagindo com novos atores, novos filhos artificiais e
passageiros, novos pais, novos avós, novos bebês, novos maridos, novas noivas, novos
tudo.
Essa mistura infinita de átomos, órgãos, corpos, paisagens, sentimentos,
forma o húmus que vai adubar o mundo, criando o terreno propício às sementes da
criatividade.
De certa forma, é como dizia Basaglia (1977, 2001) com relação aos
homens e mulheres longamente institucionalizados nos hospitais psiquiátricos: ―as
contradições sociais são o húmus do processo terapêutico‖.
Estendamos essa afirmação para o conjunto dos atores sociais: o húmus da
vida é a possibilidade da criatividade compartilhada, de seu uso consequente em meio
ao mar revolto de contradições sociais.
214
Reconheçamos nossa falta de saúde e de potência, nossa pobreza de espírito,
e busquemos transformar essa condição.
A institucionalização dos loucos em hospícios remete à nossa
institucionalização no globo enjaulado por uma aura destrutiva: é questão de querer
desinstitucionalizar, ou de executar o projeto de destruição do mundo que empenhamos
no advento da ―moderna sociedade produtora de mercadorias‖ (Kurz, 1993).
―o fato de os sujeitos-mercadoria ‗utilizarem-se reciprocamente para
os seus objetivos individuais‘ não é o X da questão e muito menos a
sua explicação. Antes, é a mera forma fenomênica ‗de algo diverso‘ – a
saber, do fetiche sem sujeito – que se manifesta nos sujeitos que agem.
Seus ‗objetivos individuais‘ não são o que parecem ser; segundo a sua
forma, não são objetivos individuais e voluntários, e por isso também o
conteúdo é distorcido e desemboca na autodestruição. O essencial não é
os indivíduos se utilizarem mutuamente para seus objetivos individuais,
mas sim, na medida em que parecem assim fazer, executarem em si
mesmos um objetivo totalmente diverso, supraindividual e sem sujeito:
o movimento autônomo (valorização) do capital‖ (Kurz, 1999c: 9).
E assim o mundo é destruído, a não ser que banquemos enfrentar a sociabilidade da
mercadoria.
Enfrentar os valores sob influência da forma-mercadoria significa questionar, entre
outras coisas:
A centralidade do consumo e o fenômeno da perda do caráter sensível dos
objetos (uma crítica também aos objetos que não são feitos tanto para o uso, mas para
representar uma promessa de vir-a-ser, o acesso a outra condição social);
Os processos que tornam tudo mercadoria (inclusive o homem);
A centralidade do trabalho, como a atividade que garante dignidade e
responsabilidade. Neste período de avanço das forças produtivas, já é possível ―aceitar‖
que o trabalho não pode ser a única forma de se obter dignidade ou responsabilidade
(talvez, ao contrário, ele tenha servido para aprisionar o homem a necessidades
artificiais);
215
As formas de mediação das relações sociais. Outras formas de encontro entre
homens singulares podem ser inventadas, sem que sejam estas totalmente mediadas pelo
trabalho, pela mercadoria ou por instituições.
Os projetos de trabalho que apresentei, na complexidade de dimensões em que
podem ser vistos, sugerem muitas das características apresentadas acima, donde sua
potencial riqueza para nos trazer elementos novos em nossa discussão sobre as formas
de vida pelas quais optamos no decorrer da história.
É necessário que nos desinstitucionalizemos também, assim como o fizeram os
usuários e os profissionais dos serviços de saúde mental que foram tema desta pesquisa.
―Estou convencido de que os indivíduos e as sociedades detêm
igualmente um potencial gerador, regenerador e criador, mas inibido.
Em seu estado normal, as sociedades possuem suas inflexibilidades,
constrições e até mesmo escleroses que sufocam as possibilidades
criativas do indivíduo. São os artistas, músicos, poetas, escritores,
filósofos ou cientistas inovadores que revelam dons efetivamente
excepcionais na medida em que seu pensamento não pôde ser
domesticado. Mas, em cada criança, como dizia Saint-Exupéry, ‗existe
um pequeno Mozart assassinado‘. Ora, a crise favorece a expressão de
forças criativas, tanto na sociedade como em certos indivíduos. É isso
que contribui para a improvável esperança...‖ (Morin, 2010: 270).
A DEMISSÃO INCONSUMADA
Certa vez iniciou-se dentro da Secretaria de Saúde uma tentativa de classificação das
unidades de serviços, que tinha a ver com a complexidade de tais serviços.
A implantação de serviços nos anos anteriores ocorreu de forma alucinada, e via-se
a necessidade de melhor definir os tipos de serviços, o que afetaria até mesmo o valor
da remuneração dos diretores de unidade.
Essa discussão chegou aos coordenadores das unidades da saúde mental, e a
argumentação que o então coordenador do programa e ex-interventor do Anchieta trazia
216
é que os NAPS, por serem unidades que funcionavam 24 h, teriam uma complexidade
maior que a de outros serviços, como a URP.
Eu não tinha dúvidas de que era muito diferente para um coordenador
responsabilizar-se por uma unidade que tinha funcionamento ininterrupto, em
comparação com uma unidade que funcionava, como a URP, no máximo 12 h por dia,
de segunda a sexta-feira, e eventualmente nos finais de semana, em virtude de
participação em eventos, o que não envolvia toda a equipe.
Mas a discussão dos níveis de complexidade me incomodava muito.
Não concordava, absolutamente, que o trabalho da URP fosse menos complexo que
o das demais.
Pelo contrário, acreditava que ambos se implicavam em construir nos territórios
possibilidades de experiências de vida aos usuários dos serviços, e que, no que diz
respeito à URP, isso era mais que claro, pois se tratava do propósito explícito de
existência da unidade.
Muitas discussões em torno do tema aconteceram, até que, num ato um pouco
melodramático, resolvi escrever uma carta ao coordenador de saúde mental
demonstrando minha indignação e sentimento de desvalorização e colocando o cargo
que ocupava à disposição.
O destinatário da carta, quando a entreguei em mãos, fez uma cara como quem
dissesse ―tenho que aguentar cada uma‖, e simplesmente ignorou a carta, deixando-a
entre seus outros papéis.
Penso que ele deva ter achado uma atitude muito imatura de minha parte, e que
tenha se segurado para não aceitar a demissão, o que seria uma forma de dizer ―assuma
seus atos e seja maduro‖.
São todas conjecturas, pois não estava na pele dele.
O fato é que a mensagem que eu emitira era muito ambígua mesmo.
Se eu quisesse mesmo sair, em vez de uma carta colocando o cargo à disposição,
teria definido minha saída nos setor de recursos humanos.
217
Talvez tenha sido mesmo imaturo, se é que existe esse estado.
Pelo menos não me calei em nenhum momento com algo que considerava um
equívoco que produziria consequências negativas na relação entre os coordenadores de
unidade, e entre as unidades, já que criaria quase que uma hierarquia de valor.
O projeto não foi adiante, e não foi em virtude de meu posicionamento.
Na verdade, nem saberia dizer o motivo, mas agradeço ao desconhecido que não
permitiu que ele se concretizasse.
Obrigado, contingência38
.
AS VIAS DA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO
É isso: cultura, ciência, legislação, práxis, modos de existência, acolhimento,
ressignificação do sofrimento, descoberta de potencialidades, superação da invalidação,
tudo isso está implicado num processo de desinstitucionalização.
Mas por que tem sido tão difícil tornar realidade os processos de
desinstitucionalização, compreendendo que isso significa também retirar os internos dos
hospitais psiquiátricos e iniciar com eles novas trajetórias de construção de projetos de
vida?
Afinal, não é verdade que ainda temos cerca de 12 mil moradores de hospitais
psiquiátricos no Brasil (sendo 6 mil só no estado de São Paulo) (Barros, Bichaff, 2008)?
Que o número de residências terapêuticas implantadas nos últimos anos não ultrapassou
as 700 unidades (Brasil, 2010)? Que boa parte dos 1.500 CAPS implantados não estão
envolvidos diretamente nem se sentem responsáveis pela situação dos usuários
moradores de hospitais psiquiátricos? A que se deve tão delicada situação, que contrasta
com o aumento de serviços territoriais e das ações no campo da cultura e do trabalho?
38
―Contingente quer dizer tangente ao necessário, algo que com sua própria curva toca um determinado
ponto da direita legal, racional e repetitiva e que, ao se afastar cada vez mais dela e de sua necessidade,
parte para a aventura entre os possíveis. Nossa física e nossa biologia têm tentado explicar um mundo tão
contingente, que só pode ser revelado por meio de experimentações precisas. As arborescências
arbustiformes da existência e do conhecer correm de contingência em contingência, mundo, vida,
espécies e culturas que despontam como galhos que se afastam do tronco e dos quais cada ramo se
bifurca‖ (Serres, 2003: 121).
218
Minha pequena cabeça consegue pensar em algumas possíveis causas
conhecidas, alguns elementos certamente envolvidos, e consegue pensar numa causa
desconhecida.
Vamos partir das causas aparentemente conhecidas, aquelas que nos dão
segurança por sua transparência. Em primeiro lugar, constato que muitos manicômios
estão presentes em cidades pequenas ou médias, onde acabam exercendo certa
influência política, não só porque seus proprietários alcançam certo grau importante de
status, mas porque realmente produzem certo nível considerável de empregabilidade.
Ou seja, muitas vezes, boa parte dos empregos de uma pequena cidade está localizada
no manicômio e pensar na proposta de desconstruí-lo significa ampliar os níveis de
desemprego. Tanto o prestígio político dos donos de manicômio como sua importância
econômica afastam muitos gestores locais do enfrentamento com os hospitais
psiquiátricos. Nas cidades pequenas, transformar o manicômio significa modificar
relações de poder fortemente estabelecidas, e geralmente coligadas à esfera econômica.
Nas cidades grandes, o manicômio não tem tanta importância enquanto lugar de
produção de poder, mas representa um dispositivo comum que pode ser utilizado para
reproduzir as técnicas de controle das urbes, a partir de uma concepção tecnológica que
troca a disciplina pelo abandono (Kinker, 2007). Funcionam como os abrigos e
albergues, as penitenciárias, como locais de deposição de elementos não gratos ao já
difícil e conturbado cotidiano das metrópoles.
A mudança dessa condição exigiria forte enfrentamento, a partir da força de
pressão de movimentos sociais ou de uma voluntária reorientação da Atenção em Saúde
dirigida por gestores mais comprometidos com a construção do SUS e da cidadania.
Em segundo lugar, percebo a antiga dificuldade de priorizar as questões de saúde
mental nos cotidianos de trabalho das secretarias municipais e estaduais de saúde, assim
como no próprio âmbito federal.
A insistente reivindicação de que 5% do orçamento das secretarias e demais
órgãos da saúde sejam investidos na área da saúde mental (o que a OMS preconiza)
ainda é uma utopia que necessitamos alcançar.
É verdade que os gestores têm se dado conta de que boa parte da população que
utiliza os serviços de saúde apresenta demanda por ações de saúde mental, e que isso
poderá gerar movimentos de qualificação da própria atuação dos serviços básicos, como
219
as Unidades Básicas de Saúde, que precisarão qualificar sua escuta e aprimorar suas
respostas em torno das necessidades complexas de seus usuários, o que só um trabalho
focado no território e na construção de vínculos pode proporcionar.
Mas o princípio da equidade não tem sido garantido quando se releva em
segundo plano a modificação radical das instituições totais encarregadas das pessoas
com transtornos mentais graves, ou porque estas são em número reduzido perto
daqueles que têm um sofrimento leve ou moderado, ou porque não se acredita na
possibilidade de estes poderem participar das trocas sociais.
Aliás, esta vem a ser a terceira causa importante da insuficiência de processos de
desinstitucionalização desencadeados nos últimos anos.
A adaptação funcional ao modo de vida e aos valores da sociedade
contemporânea leva a maioria dos governos a agir tendo como foco a mera adaptação e
o fortalecimento do sistema social vigente, sem que em nenhum momento se questione
o caráter destrutivo de nosso tão desejado desenvolvimento econômico e social.
Bom é aquele cidadão que trabalha sem alarde para a produção de mais-valia,
que intensifica e potencializa o consumo e que se transforma em máquina mesmo
quando descansa: uma máquina de produzir capital, mesmo nas horas de lazer, quando a
indústria do entretenimento ou do turismo o encapsulam.
A quarta e última causa, porque minha pequena mente não consegue avançar
sem a contribuição das demais, diz respeito à dificuldade de transformar os paradigmas
hierárquicos das instituições, a visão coorporativa e reducionista dos profissionais, a
falta de motivação e de utopias atual (onde não vale a pena fazer nada porque
assumimos nossa condição de máquinas com vida útil determinada), o
nãoquestionamento e a naturalização da violência (ora, se é natural que os operários
sejam máquinas tais quais as que operam, desde os tempos do fordismo, por que não
seria natural a existência de refugos para as máquinas insuficientes como é o
manicômio?).
A falta de sentido da existência, mesmo num contexto de devir e contingência
em que os sentidos são produzidos e reorientados a todo o momento, também é parte
dessa quarta causa.
220
Vamos agora para a causa desconhecida. Desconhecida porque, a meu ver, os
atores sociais nem de longe imaginam que isso faz algum sentido ou que seria um tipo
de problema.
A causa desconhecida tem a ver com a identidade.
Sim, nossa necessidade de uma identidade fixa e ilusoriamente imutável tem
sido responsável por grande parte de nossa irresponsabilidade.
É irresponsável nosso ato de descartar todo e qualquer desvio, assim como nossa
incapacidade de perceber novas capacidades nos usuários dos serviços de saúde mental
e em nós mesmos, nossa incapacidade de ver como pouco natural e histórica a
permanência de instituições de destruição total como os manicômios, os asilos, e até as
prisões.
Nossa incapacidade de pensar que os asilos só existem porque os velhos são
desvalorizados e não podem mais produzir (e as famílias não têm tempo nem dinheiro
para cuidar deles, para contratar ajuda, porque estão a serviço do trabalho), que os
manicômios e as prisões só existiram na história porque era necessário criar dispositivos
que garantissem a consolidação de padrões de vida que girassem em torno do trabalho
assalariado (o trabalho como o conhecemos é também uma invenção histórica, e não
algo natural), nossa cegueira para perceber que os cegos enxergam, os loucos têm razão,
os deficientes são os mais capazes, os animais às vezes parecem pensar e sentir mais do
que nós, porque têm tempo para isso.
A desinstitucionalização, essa é a causa desconhecida, é nada mais que ―cair na
real‖, perceber que a realidade é complexa e que a produzimos de forma pobre com
nossa imaginação, que nosso papel de profissionais não poderia ser mais pobre,
exatamente porque se acha tão munido de conhecimentos miseráveis, que colocamos os
usuários no lugar daqueles que nada sabem e que são apenas os depositários de nosso
suposto saber, que a loucura é algo do outro mundo e não vivência radical de relações e
laços que a todos nós pertence.
Sim, somos loucos, cheios de vida e de sofrimento, e de morte também, a nos
esconder de nós mesmos quando dizemos que o sofrimento psíquico é apenas uma
patologia, e nada tem a ver com um mundo em que as relações de poder produzem
sentido, realidade, saber.
221
A causa desconhecida é o empobrecimento da existência, a falta de crítica de
que devemos proceder constantemente à desconstrução de nós mesmos, de nossas
mentalidades pálidas, para construir de forma incessante um mundo colorido, dolorido e
gostoso.
Basaglia estava certo ao dizer que ―viver dialeticamente as contradições do real
é, assim, o aspecto terapêutico de nosso trabalho‖ (Basaglia, 2001: 118). É isso, o
processo terapêutico só tem eficácia se produz transformações nos usuários dos
serviços, nos profissionais, e nos demais atores sociais, a partir da vivência das
contradições sociais, sem se limitar a escondê-las e eliminá-las, para nos garantir uma
vida asséptica e tranquila, porém pobre. Será que temos tanta dificuldade de perceber
isso, e tornar explicável essa causa desconhecida?
Não, não é difícil desinstitucionalizar.
É fácil e prazeroso, porque o mesmo que acontece com os internos acontece com
os profissionais.
Só precisamos quebrar nossos muros internos e nos despojar para a aventura.
Todos nós podemos nos libertar de nossas fortes amarras, jogar fora nossa
identidade petrificada e caminhar na direção de nosso próprio enriquecimento, e do
enriquecimento do mundo.
A desinstitucionalização dos internos de hospital psiquiátrico e a desconstrução
do manicômio passam pela desinstitucionalização de nós mesmos.
A desinstitucionalização de nós mesmos é produtora de novas formas de
sociabilidade, porque somos auto-eco-organizados (Morin, 1996), porque nosso bem-
estar depende do bem-estar dos outros (Spinoza, 2009), nossa liberdade depende da
liberdade dos outros. Somos singulares, mas somos os outros também. Somos a
natureza também. Por que esse esforço tão grande para nos diferenciar dos loucos,
atribuindo-lhes uma condição tão especial? Somos abandonados como o são os loucos
moradores de hospital psiquiátrico, abandonados por nós mesmos.
Poderemos atribuir outra forma de cuidado mais digna aos velhos, aos loucos e
às pessoas com deficiência quando mudarmos a forma como utilizamos o tempo e nos
movimentamos no espaço. Quando não mais estivermos imbuídos e engolidos pela
engrenagem do mercado, poderemos utilizar o tempo para cuidar dos nossos velhos em
222
nossas casas, com o apoio de outras pessoas, e poderemos circular com o louco pelos
quatro cantos do mundo, produzindo vida. Para isso, é importante que reformulemos os
conceitos de capacidade e incapacidade, de maneira a descobrir novas potencialidades
nos usuários dos serviços e em nós mesmos. É por se trabalhar com os conceitos de
capacidade formulados com o advento da modernização que muitos gestores,
representando as demandas sociais, não intervêm nas condições das pessoas há muito
institucionalizadas em instituições totais. Não se acredita nas possibilidades dessas
pessoas poderem participar das trocas sociais, porque não se questiona a forma como
atualmente se desenvolvem essas trocas. É comum que os gestores locais de saúde
ignorem a situação dos internos em hospitais psiquiátricos, pessoas sem poder de
intervenção e pressão, que geralmente nem votam. É necessário que os movimentos
sociais pressionem pelo enfrentamento com os hospitais psiquiátricos, mas é necessário
também que eles façam alianças com outros grupos que estão questionando as atuais
formas de sociabilidade. É importante que se faça veicular socialmente a mensagem da
necessidade de transformação dos hospitais, mas de uma forma que a crítica ultrapasse a
falta de infraestrutura ou a precariedade do atendimento por eles oferecido. É preciso
trazer para mais perto da crítica ao manicômio a crítica às formas de sociabilidade, para
que as pessoas percebam que estão implicadas diretamente com essas questões,
inclusive reproduzindo manicômios em suas casas, e em todos os espaços das cidades. É
preciso produzir uma potente crítica ao trabalho para que todas as exclusões interligadas
ao seu modo de existência sejam questionadas. É preciso também estabelecer estratégias
que aproximem de outra forma os profissionais de saúde mental dos contextos concretos
de vida dos usuários dos serviços. Isso porque a forma atual de aproximação se encontra
muito marcada pela noção de doença e por um estranhamento que afasta e que sublinha
apenas o não saber o que fazer para cuidar. É preciso que este não saber saia do campo
da impotência e da paralisia para se tornar desafio positivo de construção de novos
caminhos, porque os caminhos não estão dados, e o não saber deve deixar de assustar.
Ao optar pela aproximação dos contextos concretos de vida e pelo encontro face a face
com os usuários, os profissionais irão descobrir novos caminhos também para si, vão
poder ressignificar a prática profissional e a própria vida, pois estarão abertos para
novas descobertas. A insegurança da prática profissional tem a ver com nosso contexto
contemporâneo que é um misto de sociedade de controle com sociedade da
desregulamentação, ou melhor, sociedade do controle através da desregulamentação. É
difícil para todos saber mover-se nas areias movediças dos percursos que se nos
223
apresentam no cotidiano. Isso assusta a todos, e fragiliza nossa disponibilidade de
mergulhar no contexto de vida dos usuários.
A desinstitucionalização, do meu ponto de vista, implica todos esses desafios.
É difícil desinstitucionalizar?
NEM TUDO SÃO FLORES
Havia também as reuniões mensais do projeto, que reuniam todos os
trabalhadores dos serviços de saúde mental. Reuniões de estudo, de discussão, de
produção de sentido coletivo ao projeto.
E havia, como já mencionei, as reuniões de integrantes da equipe da URP com
os NAPS.
Mas nem tudo era só alegria, flores e concordância.
Também existiam momentos tensos entre as equipes da URP e do NAPS, devido
ao entendimento diverso do processo de alguns usuários dos projetos de trabalho etc.
Como disse antes, produzíamos mecanismos conjuntos para viabilizar o acesso
dos usuários aos projetos: esquemas de visitas para conhecimento dos projetos,
discussões da história de vida dos usuários (como forma de pensar em propostas que
fizessem sentido), definição coletiva de quem ocuparia as vagas, quando estas fossem
em número menor que as necessidades (o que frequentemente ocorria).
E é claro que mecanismos conjuntos estão sujeitos a concordâncias e
discordâncias, a negociações principalmente.
Às vezes tínhamos dificuldade com a inserção de alguns usuários, e as equipes
dos NAPS nos questionavam.
Às vezes, achávamos que as equipes dos NAPS propunham inserções de
usuários em projetos destoantes e momentos inadequados.
Às vezes, precisávamos modificar completamente a estratégia de inserção dos
usuários, e isso envolvia a participação de todos os atores.
Enfim, era um processo dinâmico de negociação que exigia de todos muita
tolerância, o que não é fácil de se conseguir quando todos estão envolvidos em tensões,
224
com a necessidade de dar respostas a desafios muitas vezes superiores à nossa
capacidade etc.
Mas acho que o saldo foi muito positivo, tanto que os profissionais que ficaram
nas gestões que se seguiram, hoje é fato, lembram com muito carinho e muitas vezes
com espanto o que conseguimos todos fazer naquela época.
Quando as energias se misturam, o inacreditável torna-se uma realidade comum.
A POBREZA DAS DISCIPLINAS ACADÊMICAS
As profissões da área da saúde, e da área da saúde mental em particular, tiveram
sua existência decretada por necessidades sociais.
No caso da psiquiatria, vimos como os processos de normalização e de produção
de corpos dóceis (Foucault, 2000, 2005; Ewald, 1993) convocaram-na para dar conta
das cabeças alienadas.
Depois de certo tempo, as instituições, as profissões e as disciplinas acadêmicas
passam a ter uma existência própria, separadas dos objetos para as quais foram criadas.
As instituições existem para si mesmas, as profissões com o fim de se reproduzir, e as
disciplinas acadêmicas para produzir cada vez uma quantidade maior de conhecimentos
pobres e sem sentido, que legitimem a existência e a necessidade das instituições e das
profissões, e a sua própria.
Cada um desses âmbitos vive para si. É por isso que a discussão da
complexidade e da interdisciplinaridade é tão difícil, porque seu movimento faz retornar
por instantes o temor da perda de identidade, o temor de se desmascarar a serventia de
cada dispositivo.
Ultrapassar as fronteiras das disciplinas é um primeiro passo para se produzir
fenômenos complexos, ou para se acessar a complexidade do real.
A possibilidade de dialogar com os fenômenos, superando o filtro de cada
disciplina que só ouve e enxerga o que aprendeu, numa eterna repetição, já é um
começo para a complexidade.
Abertura dinâmica, ativa, mas também passiva. O maior sinal da transformação
dos usuários dos serviços de saúde mental é a transformação dos próprios profissionais.
225
Se estes se mantêm petrificados, não tocados, não confusos e não violados em seu papel
de poder, isso pode ser um sinal de que os usuários não se transformaram, que estão
repetindo o mesmo percurso.
Se os profissionais ficam apenas no diálogo com suas disciplinas, encontrando
nos usuários apenas o receptáculo desse diálogo (samba de uma nota só, minimalismo
de um acorde e um só ritmo), estão prestando um desserviço aos usuários e a eles
próprios.
É comum ouvir-se: ―este paciente está cronificado‖; ―Não, este é tão grave que
não tem perfil para viver numa residência terapêutica e deve permanecer no
manicômio!‖. Frases que são a expressão da cronificação dos profissionais, de sua
dificuldade de viver sem o manicômio.
Porque não é o paciente que tem que se adaptar à instituição, mas a instituição,
suas disciplinas e profissões é que devem buscar responder às necessidades dos
usuários, garantindo seu direito de viver em liberdade.
Esse viver em liberdade, que é a precondição de qualquer processo terapêutico,
exige formas múltiplas de mediação e de assunção de riscos.
Ultrapassar as fronteiras das disciplinas é enriquecê-las, é dar um sentido à
existência.
Para isso, há que se resgatar o sentido positivo da palavra transgressão,
permitindo que os intelectuais se posicionem como agentes de mudança, como
verdadeiros contemporâneos (Agambén, 2009), aqueles que sentem a estranheza de seu
tempo, sem se render às regras fáceis, que os fazem ser aceitos socialmente nas cátedras
dominantes, ao mesmo tempo que estéreis.
Certa dose de coragem e ousadia é necessária ao intelectual, para que ele não
sucumba ao mesmo e ao único (Dyson, 2009; Sontag, 2008; Said, 2005).
EQUIPE A-DISCIPLINAR
A equipe da URP tinha mais ou menos a seguinte composição, considerando que
nem todos os momentos foram iguais: 2 psicólogos, 3 terapeutas ocupacionais, 2
assistentes sociais, 2 auxiliares de enfermagem, 3 monitores de ofício, 1 artista plástico,
1 acompanhante terapêutico (que era psicólogo de formação), 2 auxiliares
226
administrativos, 2 auxiliares de limpeza, 1 médico que nos ajudou durante alguns meses
na constituição da cooperativa. Somados a essa equipe, que formava a URP,
participavam dos projetos atores tão diferentes como os engenheiros agrônomos e os
jardineiros do Horto Municipal; os administradores e alguns operários da Prodesan na
usina de reciclagem do Projeto Lixo Limpo; engenheiros civis, operários e
administradores da Cohab tanto na Fábrica de Blocos como no Projeto de construção
civil do Dique; administradores da Secretaria do Abastecimento (que nos colocavam
em contato com fornecedores de mel para ser comercializado nas feiras livres);
administradores da CSTC no projeto de manutenção predial e na cessão de um box no
terminal de ônibus para a comercialização dos produtos artesanais e alimentícios;
sanitaristas e agentes da vigilância sanitária que treinaram os usuários na desinfecção de
caixas d‘água; um artista-marceneiro que nos apoiou na constituição da marcenaria;
biólogos que nos ajudaram no abortado projeto de fitoterapia; os advogados e os
membros de uma cooperativa popular que nos ajudaram na discussão de constituição da
cooperativa Paratodos; os administradores da Sehig que nos apoiaram no investimento
de recursos materiais para os projetos, e tantos outros atores que certamente devo estar
esquecendo. Valeria lembrar de todos aqueles que usufruíram dos produtos e serviços
dos usuários, fossem as empresas privadas que contrataram a manutenção das praças do
Projeto Terra, os consumidores individuais dos produtos artesanais e alimentícios, e dos
serviços de marcenaria, as instituições que contrataram os serviços de jardinagem (Sesc,
Clube Portuguesa Santista, faculdades), e aqueles que nos cederam espaços pra
exposição dos produtos em eventos etc. Todos esses, muito mais que consumidores,
tornaram-se parceiros na construção de projetos de transformação da cidade.
A participação dos profissionais da URP nos projetos de trabalho se dava a partir
de suas habilidades pessoais adquiridas na história de vida e na história profissional.
Desta forma, não se atuava tendo como horizonte ou referência a profissão ou a
disciplina em que eram formados. Contraditoriamente, todos tinham a mesma função e
faziam a mesma coisa, e todos faziam coisas singulares que apenas a eles pertenciam.
Se a inserção dos usuários não se dava a partir de seu diagnóstico, prognóstico ou de seu
grau de autonomia, mas de sua biografia, desejo, possibilidades, a participação dos
profissionais na coordenação dos projetos não se dava por sua especialidade, por sua
disciplina, mas por sua singularidade. Havia então certa coerência no andamento do
processo. A abertura para novas possibilidades e o exercício de potencialidades era o
227
ponto de partida desses processos, e por isso é que eles eram transformadores. O
encontro dos profissionais com os usuários e com os novos cenários de atuação, o
encontro dos usuários com os novos contextos de atuação (muito diferente de contextos
típicos de serviços de saúde), exigiam certo deslocamento dos papéis e das identidades,
fossem profissionais, fossem das identidades de pacientes. Para os profissionais, a arte
do encontro exigia suspender um pouco os paradigmas, colocando os conhecimentos e
as teorias como que num cabide, para que fosse utilizado aos poucos a partir das
necessidades surgidas no encontro com os usuários. A combinação de conhecimentos
diversos, de técnicas novas e inusitadas permitia que dominássemos os conhecimentos,
ao invés de sermos dominados por eles. Essa era a forma de sermos a-disciplinares.
AUTO-ECO-ORGANIZAÇÃO
―Heinz Von Foster, em um breve e magistral texto publicado em 1968,
On self-organizing systems and their organization, havia assinalado
desde o início o paradoxo da auto-organização: ‗a auto-organização
significa obviamente autonomia, mas um sistema auto-organizador é
um sistema que deve trabalhar para construir e reconstruir sua
autonomia e que, portanto, dilapida energia‘. Em virtude do segundo
princípio da termodinâmica, é necessário que este sistema extraia
energia do exterior; isto é, para ser autônomo, é necessário depender do
mundo externo. E sabemos, pelo que podemos observar, que esta
dependência não é só energética, mas também informativa, pois o ser
vivo extrai informação do mundo exterior a fim de organizar seu
comportamento‖ (Morin, 1996: 46).
É por isso que Morin usa o termo auto-eco-organização, pensando desde os seres
unicelulares até os humanos, pois a auto-organização, a autonomia, é dependente.
Há ainda a recursividade, ou seja, aquilo que produzimos, os efeitos, agem
novamente sobre nós, as causas, produzindo um ciclo em anel de infinitas
transformações.
―Pois desde o momento em que a palavra, mesmo não pronunciada,
abre uma primeira brecha, o mundo e os outros infiltram-se por todos os
lados, a consciência é inundada pela torrente de significações, que vem,
228
se assim podemos dizer, não do exterior e sim do interior. Somente pelo
mundo é que podemos pensar o mundo‖ (Castoriadis, 2007: 128).
.
As dependências não param por aí, mas adentram as dimensões afetivas,
cognitivas, físicas, bioquímicas, linguísticas, culturais.
A comunicação é então um elo do ser humano com o mundo, e consigo mesmo.
Quando estamos abertos, o que fazemos por uma questão de sobrevivência,
podemos produzir subjetividades coletivas, ultrapassando nossas múltiplas
personalidades, em busca de formações inéditas.
―Há pouco, se descobriu que há uma comunicação entre as árvores de
uma mesma espécie. Numa experiência realizada por cientistas sádicos
(como convém que seja um cientista pesquisador, não é certo?), foram
retiradas todas as folhas de uma árvore, para ver como se comportava.
A árvore reagiu de um modo previsível, ou seja, começou a segregar
seiva mais intensamente, para repor, o mais rápido possível, as folhas
que lhe haviam tirado. E também segregou uma substância que a
protege contra parasitas. A árvore havia compreendido muito bem que
um parasita a havia atacado, só que acreditava, coitada, que se tratasse
de um inseto. Não sabia que era o maior dos predadores, o ser humano.
Mas o que é interessante é que as árvores vizinhas da mesma espécie
começaram a segregar a mesma substância antiparasitária que a árvore
agredida segregava‖ (Morin,1996: 52).
Se as árvores se comunicam, digamos que somos especialistas nisso, embora
muitas vezes estejamos mais surdos que as árvores. Nem sempre utilizamos nossas
potencialidades, o que muitas vezes exige esforço.
Para, por exemplo, estabelecer um diálogo com os usuários dos serviços de
saúde mental, exige-se um ouvido extremamente aberto, e livre dos paradigmas que
simplificam nossa audição, levando-nos a escutar apenas o que consideramos
inteligível. O diálogo então passa para outras dimensões, questionando os papéis, as
hierarquias, os valores. É então que sou um pouco louco e o doente normal, todos os
dois humildes diante da complexidade fenomenal da realidade.
O fluxo de mutações que advém desse diálogo é a produção/reprodução
recursiva do mundo, da sociedade, da existência. Transformar o sofrimento, nessa
229
perspectiva, é transformar o mundo. O contexto social sofre mutações e assim,
recursivamente, o louco sofre modificações. O louco sofre modificações e, ao mesmo
tempo, o mundo social e físico sofre mutações.
Os profissionais, com sua escuta do louco e do mundo, sofrem mutações, pois o
aprendizado implica também mudanças subjetivas, corporais, celulares. É a auto-eco-
organização tomando corpo, produzindo corpos, produzindo sujeitos.
Não é preciso mais treinar eternamente os loucos para que um dia eles possam
trabalhar, o que sempre foi a ilusão nutrida pela laborterapia. Muda-se o contexto,
produzem-se as mediações, muda-se o louco, trabalha-se, produz-se vida.
Muitas vezes também não se trabalha, pois o trabalho não pode ser visto como a
via única da existência. Ele, o trabalho, pertence ao registro empobrecedor da
mercadoria, e à predominância do valor de troca. Só vale trabalhar se for para
desconstruir o trabalho, produzindo vida, nomeando de outro jeito essa ação de
produzir.
Por sorte, embora às vezes nos passe despercebido, cada vez temos mais
chances de alcançar as condições de eliminar o trabalho. A evolução da microeletrônica,
assentada no paradigma cartesiano da tecnociência, nos levará à possibilidade de tornar
a existência rica e complexa, da mesma forma que a insuficiência da lógica dedutivo-
identitária, com seus avanços surpreendentes, nos está levando para uma ciência mais
complexa.
―O sujeito em questão não é pois o momento abstrato da subjetividade
filosófica, ele é o sujeito efetivo totalmente penetrado pelo mundo e
pelos outros. O Eu da autonomia não é Si absoluto, mônada que limpa e
lustra sua superfície êxtero-interna a fim de eliminar as impurezas
trazidas pelo contato com o outro; é a instância ativa e lúcida que
reorganiza constantemente os conteúdos utilizando-se desses mesmos
conteúdos, que produz com um material e em função de necessidades e
de ideias elas próprias compostas do que ela já encontrou antes e do que
ela própria produziu‖ (Castoriadis, 2007: 128).
230
EXODARWINISMO E TOTIPOTÊNCIA
―O corpo em movimento federa os sentidos e os unifica no tempo e no
espaço. Corriqueira no cotidiano da cultura, essa pluralidade de
movimentos, êxtases, desejos e frustrações encontra-se ausente na
maior parte dos saberes científicos. Aprendemos a valorizar o trabalho
produtivo, acadêmico ou não, em detrimento das performances
musculares, passionais, amorosas, como se elas constituíssem um
produto descartável que atrapalha a objetividade e a pseudoneutralidade
do sujeito do conhecimento. É mais do que óbvio que, no futuro, a
religação das aparelhagens do corpo e dos comandos da mente terá que
ser posta em prática‖ (Carvalho, 2008: 27).
O termo exodarwinismo é utilizado por Serres (2003), para descrever a condição
de ultrapassagem dos mecanismos da evolução de prisma darwinista.
Instrumentos simples como os martelos imitam de forma mais eficiente o
antebraço, o punho e a mão, alguns seres marinhos excretam uma carapaça que faz as
vezes de esqueleto externo, e os computadores imitam certos mecanismos de nosso
cérebro.
Esse mecanismo de ultrapassagem produziu uma situação em que somos capazes
de fazer quase tudo, embora não sejamos, como humanos, os únicos que se superam e
transformam: a natureza, a matéria inerte, também o faz, e não mais se submete a ser
considerada um objeto: agimos sobre ela e ela age sobre nós, numa recursividade
própria de um mundo onde matéria e ideia se interpenetram, se auto e interproduzem.
Mas os produtos de nossa técnica, todas as formas de instrumentos com os quais
transformamos a natureza e a nós mesmos, não se enquadram exclusivamente nas
motivações e objetivos para os quais foram criados.
Como na ação de Arendt, os caminhos de nossas criações se bifurcam
infinitamente, não são totalmente previsíveis, e os instrumentos podem ser utilizados
sob formas e para ações as mais diversas.
Essa é a riqueza da contingência da vida, que supera qualquer tentativa de
aprisionamento, de formatação.
É por isso que precisamos aprender a navegar nas contingências da vida, com
prudência e atenção, produzindo sentidos perenes e sendo produzidos por eles.
231
Com nossas bifurcações, caminhamos do caule ao ramo, do formato à novidade
inesperada (Serres, 2008).
Não devemos prescindir do formato, nem do pai, mas, como filhos que
subvertem a ordem trazendo o novo, podemos fazer dialogar o declarativo (aquilo que
vem da base imutável da certeza e do positivismo) e o procedural (aquilo que navega na
contingência) (Serres, 2008), o molar (a grande estrutura fixa) e o molecular (o
microespaço que se atualiza no devir) (Deleuze, 1998), produzindo desvios,
desterritorializações e reterritorializações (Deleuze e Guattari, 1997, 2004).
Com nossa condição totipotente, que vive num mundo pouco controlável de
contingências ininterruptas, podemos acabar com a noção de propriedade e construir a
imensa mesa que oferecerá os produtos de nossa criação e os da natureza para o uso
comum.
Haveremos de superar a divisão sujeito-objeto, ser vivo-matéria inerte, homem-
mundo, natureza-cultura, ciência-arte-religião, compartilhando nossas partículas, que
são singulares, mas também comuns, e que nos fazem primos das mesas.
Perceberemos que a matéria inerte também pensa e age, mas à sua maneira.
Inventaremos outro significado para o termo riqueza: esta será a multiplicidade de
nossas possibilidades, a sublime e bela curva de nossas bifurcações, nossa mutação que
nos faz desmanchar no mundo.
Como diz Serres (2008), o não pertencimento (a um território, a um país, a uma
raça, a uma família) pode ser um ato criativo e criador, sublevando as identidades
aprisionantes.
SAUDADES DA EQUIPE
Foi muito bom trabalhar com vocês.
Não era só trabalhar, é verdade, pois nossa experiência como que formatou as
várias dimensões de nossas vidas, se expandindo até ser o principal motor que nos
movia no mundo, transformando-nos.
Foi um processo composto basicamente por aprendizados.
232
Descobrimos o mundo juntos, e nossa energia fez parir muitas palavras, ações,
gestos, sentimentos, emoções, pensamentos.
Na verdade, construímos o mundo juntos, como uma obra de arte,
cuidadosamente tecida com o melhor de nossos dons.
Respeitamo-nos como cada um costuma fazer consigo mesmo. Transformamo-
nos uns nos outros, como que a forjar um ser em permanente mutação.
Quero compartilhar a alegria de mostrar uma fotografia nossa neste texto que
acabo de escrever.
Sinto-me escrevendo por nós, e não escrevendo individualmente. É a mesma
sensação que sentia quando trabalhávamos juntos.
Vejam só, mesmo velhos, alguns sentimentos nascem novinhos em folha, como
se os estivéssemos vivendo pela primeira vez.
Agradeço pelo que nos ensinamos juntos, e sei que continuamos aprendendo
muito por aí, cada qual no seu caminho.
Vocês estão nos meus sonhos!
PARTINDO PARA O ANOITECER
Neste capítulo procurei definir melhor os elementos que seriam constitutivos de
uma nova forma de sociabilidade, construída a partir da crítica à sociabilidade associada
ao trabalho e à mercadoria. Avancei no sentido de vincular a constituição dessa nova
forma de sociabilidade ao desafio de desconstrução do paradigma psiquiátrico e ao
desenvolvimento dos processos de desinstitucionalização, que exigem uma nova forma
de relacionamento com a experiência do sofrimento psíquico.
Procurarei, na conclusão, apresentar um resumo dos temas discutidos durante
todo o trabalho e apontar algumas das principais questões levantadas acerca dos projetos
de trabalho e das possibilidades de constituição das novas formas de sociabilidade.
A conclusão, seguindo os parâmetros que estabeleci, seria o próprio anoitecer, o
final de um percurso que aguarda o desafio do dia seguinte, quando o sol nascerá
lentamente trazendo novos desafios.
233
CONCLUSÃO
―Sem mudança de sentido, não há sentido. [...]
Eu existo significa: eu me inquieto. Inquieto-me, logo existo [...]A
inquietude produz minha energia e a força de meu espírito; ela conta
meu tempo e me impulsiona. Invenção e mutação brotam dela. Alguma
novidade surgirá no meu tempo, sem que eu me sinta alarmado por ela?
Que perigo imprevisível será capaz de me arrancar da cama nesta
manhã?‖ (Serres, 2008: 135; 141).
234
CONCLUSÃO
Este trabalho teve como objetivo realizar uma reflexão crítica sobre as formas de
sociabilidade criadas em torno do trabalho e da mercadoria, utilizando como estratégia o
relato da experiência dos projetos de trabalho desenvolvidos com os usuários do
Programa de Saúde Mental de Santos, no período entre 1989 e 1996.
Minha opção por relatar uma experiência vivida se deu por pelo menos dois
motivos:
1) porque, como dizia Basaglia, ―a experiência é o máximo da teoria‖ e, desta
forma, é salutar poder superar a barreira que separa em dimensões diferentes a prática e
a teoria, o sujeito e o objeto, a natureza e a cultura, a ciência e as humanidades. O modo
cartesiano de fazer ciência expulsou o observador do contexto da pesquisa e, desta
forma, negou a influência que a pesquisa sofre deste último, criando a ilusão de um
campo de pesquisa totalmente asséptico e simples, orientado por relações de causa e
efeito. Coloquei-me como sujeito e objeto na pesquisa, e acredito que ela pôde tornar-se
mais fiel aos elementos que compõem o fenômeno estudado;
2) porque, como uma experiência que tenta subverter a forma tradicional da
psiquiatria lidar com a questão do trabalho, criticando a normalização e os próprios
elementos que fizeram parte da gênese do paradigma psiquiátrico, o objeto desta
pesquisa traz questionamentos capazes de enriquecer a crítica que se faz à sociabilidade
do trabalho. A pesquisa trata de uma experiência de trabalho diferente das tradicionais
maneiras de conceber o trabalho na psiquiatria, que entendem essas práticas como puro
instrumento terapêutico, ou estágio da vida social que se obtém quando se alcança uma
questionável cura. O paradigma é outro, o objetivo é outro e, por isso, consegue estar
mais próximo de uma crítica ao mundo do trabalho, aquele de que todos nós fazemos
parte desde que nos entendemos por gente.
235
A HISTÓRICA ARTICULAÇÃO ENTRE O TRABALHO E A PSIQUIATRIA
Utilizando fragmentos que relatavam momentos da experiência dos projetos de
trabalho, entrecortados e articulados com fragmentos que traziam a gênese do trabalho
na modernidade e reflexões sobre a sociabilidade do trabalho, a pesquisa deslizou pelos
interstícios das relações entre trabalho e psiquiatria, trazendo à tona a questão da
laborterapia.
Vimos que a ideia de utilizar o trabalho como terapia surgiu com o advento da
psiquiatria, tendo como grandes artífices os alienistas europeus do século XIX. Estava
por certo articulada à consolidação de uma nova forma de existência centrada no
trabalho assalariado, fruto de um processo de desenraizamento das populações
campesinas contemporâneo à revolução industrial. Sua vocação assumiu peculiaridades,
embora estivesse em sintonia com as propostas de consolidação do trabalho nas diversas
instituições da sociedade disciplinar (Foucault, 2000, 2005), como as fábricas, as vilas
operárias, as escolas, as prisões. Posteriormente, a influência moral do trabalho
manteve sua força, embora outros elementos vinculados à visão organicista da doença
mental ganhassem força. Foi o que ocorreu com o ressurgimento do tratamento moral
em algumas experiências europeias no início do século XX, bem como nas grandes
colônias de alienados brasileiras, e mesmo em algumas experiências de reforma de
hospitais do pós-guerra.
CARACTERÍSTICAS DOS PROJETOS DE TRABALHO
Localizada no espaço-tempo da reforma psiquiátrica brasileira, a experiência de
Santos assumiu características próprias e inventou novas estratégias, influenciada pela
reforma psiquiátrica italiana.
Algumas de suas características permitiram que ela levasse a cabo a
desconstrução do paradigma psiquiátrico, reinventando as formas de cuidado,
trabalhando com as contradições sociais.
Eis que essa desconstrução se configurou como um processo dinâmico de
desconstrução de saberes, práticas, valores, modos de existência (Nicácio, 1994, 2003;
Kinoshita, 1996, Rotelli et al., 1990), partindo da realidade dos usuários internados no
236
hospital psiquiátrico, de seus desejos, necessidades, possibilidades, contingências. Esse
processo de desconstrução, mutação e constante construção, na perspectiva que aqui fui
construindo, é comumente chamado de desinstitucionalização (Rotelli et al., 1990), e se
diferencia da noção de desospitalização colocada em prática por alguns países no
período do pós-guerra como uma medida puramente administrativa, que manteve
intacto o paradigma psiquiátrico (id., ibid.).
Os projetos de trabalho desenvolvidos juntos aos usuários dos serviços de saúde
mental faziam parte orgânica da experiência de desconstrução do paradigma
psiquiátrico, sendo desenvolvidos em sintonia com as ações territoriais dos 5 NAPS.
Faço um resumo das principais características dos projetos de trabalho, que
podem ser encontradas diluídas no corpo desta pesquisa:
Trabalho desenvolvido coletivamente, como forma de potencializar a
aventura de ocupar o mundo, produzir crítica sobre as contradições
sociais, descobrir potencialidades forjadas a partir de relações de
cooperação e reciprocidade;
Estabelecimento de parcerias e alianças com setores externos à área da
saúde mental, começando pelas secretarias municipais, e ampliando para
empresas privadas, instituições não lucrativas (clubes, Sesc etc.),
viabilizando novos diálogos e fortalecendo a presença no mundo do
trabalho. A constituição de alianças implicava também o envolvimento
direto de profissionais de áreas diversas externas à saúde mental na
coordenação e no desenvolvimento dos projetos, como forma de
qualificar o trabalho e de ampliar a rede social, potencializar o projeto,
sua presença concreta e suas mensagens;
Grande enfoque em projetos de intervenção na cidade, de forma a emitir
a mensagem de que, mais do que possibilitar a participação no mundo do
trabalho, o objetivo era desenvolver ações que melhorassem a qualidade
de vida da cidade, produzissem vida, cuidassem das pessoas (Lixo
Limpo, Terra, Caixas d‘água, Fábrica de Blocos, Dique etc.);
Desenvolvimento de atividades diversificadas, para possibilitar a
experimentação dos usuários, abrir possibilidades, permitir novas
descobertas, descobrir novas formas de se fazer as coisas, com a ideia de
237
que sempre haverá lugar para todos, desde que o trabalho lhes seja algo
importante;
Multiplicação das estratégias de mediação, modificando os contextos de
trabalho, possibilitando que mesmo usuários muito graves possam ser os
protagonistas do processo;
Participação efetiva no mercado, com qualidade, tentando superar a ideia
de que se trata de terapia e que, por isso, a relação com o mercado é
frágil e ilusória (é de ―faz de conta‖). Esta participação estava associada
a um permanente processo de crítica ao mercado e aos seus mecanismos,
contribuindo para a desconstrução deste, por dentro. A ampliação dos
rendimentos econômicos que a participação do mercado possibilitava
estava imbricada ao processo de produção de vida, de novos
conhecimentos, relações, enfim, novas existências individuais e formas
de sociabilidade;
Ocupação de múltiplos e diversos espaços da cidade, como forma de
repropor o convívio dos habitantes da cidade com as pessoas que têm
uma existência-sofrimento (Rotelli, 1990), e como ocupação concreta da
cidade pelas pessoas com sofrimento psíquico grave;
Escolha da cooperativa como figura jurídica a representar os usuários na
aventura de adentrar o mercado.
Essas características que deram vida aos projetos nasceram de dentro do
Anchieta e fora dele foram crescendo, em cooperação com os dispositivos de mediação
construídos por todas as unidades da rede de saúde mental, utilizando como combustível
o rico processo de desconstrução do hospital, que produziu cumplicidades, viabilizou
possibilidades, criou capacidades.
Tais características se diferenciavam das tradicionais práticas laborterápicas nos
seguintes pontos:
Pela proposta e possibilidade de circular por dentro e por fora do
mercado, numa linha tênue que nunca poderia explodir. Esse trânsito
significava criar situações reais de trabalho e inocular transformações no
mercado, ao invés de ocupar uma posição subalterna e alienante comum
238
nas práticas laborterápicas que se apoiam na invalidação, na
incapacidade e na suposta ausência de capacidades de seus usuários para
exercer os direitos civis;
Pela negação dos processos de normalização e adaptação realizados
através do adestramento de comportamentos esperados e do treino de
hábitos de trabalho. O que se buscava era questionar as formas
estandardizadas e padronizadas de se fazer as coisas e de se relacionar,
geralmente de forma subalterna e sem questionar as normas;
Pela produção de lugares potencializadores de capacidades, que exigiam
modificações negociadas entre todas as partes, usuários, profissionais de
saúde mental e contextos, produzindo lugares ao mesmo tempo
acolhedores e desafiadores. O exercício do diálogo entre as
potencialidades/possibilidades dos usuários e as
potencialidades/possibilidades dos contextos-ambientes era uma forma
de escapar às formas limitadas, empobrecidas e invalidadoras dos
contextos laborterápicos;
Pela negação da exploração econômica e da invalidação comuns nas
práticas das oficinas protegidas;
Pela forma singular de envolver outros atores externos ao campo de
saúde mental. Nas práticas laborterápicas, os atores externos (fossem
empresários a contratar os serviços dos usuários, fossem monitores de
ofício) eram inseridos através do paradigma da anormalidade e da
incapacidade e, por isso, viam-se participando de projetos beneficentes
que manteriam os usuários nas mesmas condições de subalternidade e
invalidação. Nas práticas dos projetos de trabalho, os atores envolvidos
eram levados a um tipo de relação que lhes possibilitava modificar o
olhar sobre os fenômenos e sofrer eles mesmos, assim, transformações na
forma de ver o mundo e de lidar com a vida. Essas mudanças nas
relações de poder/saber é que produziam transformações;
Pela busca constante da qualidade dos bens e dos serviços produzidos,
através de estratégias singulares de produção e da participação de
239
especialistas e profissionais externos à área de saúde mental. Essa busca
por qualidade, que permite a relação real com o mercado, ultrapassa a
ideia de que pessoas em desvantagem social só podem fabricar artigos
para bazares de instituições filantrópicas, que serão adquiridos como
forma de ajuda e não por necessidade daqueles que usarão os produtos
(além de a renda obtida ser utilizada para a manutenção da instituição,
configurando-se também uma situação de exploração);
Pela negação da nosografia psiquiátrica como fator determinante para a
inserção nos projetos de trabalho, trocando-a pela biografia dos usuários,
por suas expectativas e desejos, bem como por suas possibilidades;
Pelo fato de os projetos de trabalho se constituírem como alternativas
reais para a reprodução da vida dos usuários na cidade, dando-lhes
condições de pagarem do próprio bolso suas despesas com moradia,
alimentação, vestuário etc., de modo que eles dependam das instituições
de outra forma (dependam de seu apoio para enfrentar o desafio
prazeroso de viver livremente nas cidades, em meio às contradições
sociais);
Pela superação, através de um processo cotidiano de mediação na
descoberta de potencialidades e na produção de autonomia, das noções
estanques de espaço de tratamento, espaço de reabilitação, espaço de
vida, exercício de direitos. O trabalho conjunto entre os NAPS e a URP
possibilitava essa mediação nos contextos concretos da vida, sendo o
trabalho um deles. O trabalho não seria mais, como nas práticas
laborterápicas, o lugar e momento da reabilitação, posterior ao
tratamento e próximo à cura, pois não se lidava tendo como referência a
doença, mas a existência-sofrimento em sua relação com o corpo social
(Rotelli, 1990). Além disso, não se exigia a manutenção dos usuários em
eterno treinamento para uma futura e impossível inserção no mercado,
mas se trabalhava com a perspectiva de transformar os contextos de
trabalho, sendo a inserção não o resultado das mudanças obtidas com o
tratamento, mas a própria condição de se conseguir transformações
subjetivas e concretas;
240
Pela opção de que os projetos de trabalho fossem ferramentas e processos
envolvidos na desconstrução do paradigma psiquiátrico tradicional e do
manicômio, e não ferramentas funcionais que a todo momento
reforçassem a necessidade do hospital psiquiátrico, como o são as
práticas laborterápicas;
Pela multiplicação e abertura dos espaços de realização do trabalho, em
contraposição à limitação e ao fechamento de espaços propiciados pelas
práticas laborterápicas. Essa abertura de espaços repropõe a todo o
momento o convívio, a troca e o reconhecimento dos diferentes atores, e
utiliza como estratégia o desenvolvimento de atividades que possam
tornar a cidade mais agradável e saudável. Em outras palavras, os
projetos de trabalho não são apenas de trabalho, mas projetos de
intervenção cultural e de produção de novas mensagens ao imaginário
social;
Pelo fato de os projetos se basearem no protagonismo e no exercício de
poder dos usuários, buscando a constituição da cooperativa como
representação jurídica no mercado. Essa opção, por certo, exigiu
enfrentar as noções jurídicas de incapacidade civil atribuídas aos
usuários, e nas quais se fundamentaram historicamente a psiquiatria e
suas práticas laborterápicas.
PRODUÇÃO DE NOVAS FORMAS DE SOCIABILIDADE E ASSOCIABILIDADES
Entremeadas às características dos projetos, e ao relato de experiências com os
usuários nos contextos de trabalho, pude realizar uma série de reflexões e críticas acerca
da sociabilidade do trabalho e da mercadoria.
A mercadoria que nos tornamos, através do valor de troca e do fetiche que o
sustenta, tornou-se algo sem vida, enfraqueceu nossas potencialidades, multiplicidades,
complexidades, deslizando numa virtualidade sem sentido ou projetualidade.
Nada a ver com uma contingência rica, produtora de sentidos efêmeros, mas que
sabe navegar com prudência no barco da vida.
241
Entregamos nosso devir a um fantasma chamado mercado que, como um
mandarim, exige que nos foquemos na ordem limitada, no formato que vislumbra a
prisão mais apertada.
Para que a existência seja enriquecida, torna-se necessário criticar nossa forma
atual de sociabilidade e produzir novas formas de estar no mundo.
Durante esta pesquisa levantei uma série de questões que, do meu ponto de vista,
estão imbricadas na possível emergência de novas formas de sociabilidade. Faço agora
uma síntese das principais, de modo a construir um mapa conceitual que tente desenhar
figura e fundo, elemento e contexto, uma espécie de rizoma do que poderiam ser essas
formas emergentes:
1) Complexidade: a complexidade dos fenômenos exige que tentemos superar uma
racionalidade fechada, constituída pelo modo cartesiano de ver o mundo:
disjunção, fragmentação, simplificação, expulsão das partes irracionalizáveis dos
fenômenos, expulsão do sujeito do conhecimento, separação sujeito-objeto,
ilusória neutralidade do observador, assepsia na produção do conhecimento,
construção da realidade a partir da representação, da elaboração de uma
fotografia da realidade, como se esta não fosse coproduzida por nossas projeções
(Morin, 2010). A construção de tal realidade ultrapassa o campo da ciência, já
que o paradigma define certas atitudes e formas de se enxergar a vida e de lidar
com ela. A produção de sociabilidades submetidas à mercadoria, e de um modo
de vida encapsulado pelo trabalho, articula-se com esta visão simplista e
especializada que operou disjunções em nosso modo de vida. A tecnociência não
operou apenas no campo da produção, mas influenciou as formas de circulação
dos afetos, as relações sociais, os conceitos de eficiência, capacidade,
normalidade. Produzir novas formas de sociabilidade implica trabalhar com o
conceito de complexidade, em todos os âmbitos da vida, a fim de enriquecer os
processos dos quais ela é composta. Significa dialogar também com o irracional,
a-racional e sobre-racional, (Morin, 2010a) de maneira a ampliar o olhar para as
possibilidades do mundo, encontrando novas formas de existência que produzam
vida, intensidade de vida, e não plasmem todas as potencialidades humanas.
Uma razão aberta é necessária para viabilizar uma dialogia essencial aos
processos de construção de um mundo enriquecido.
242
2) Experiência: no sentido de experimentar novas formas de sociabilidade, o
encontro imprevisível entre os atores sociais se coloca como condição e
estratégia. Encontro como exercício de uma passividade (anterior à separação
tradicional entre atividade e passividade), que nos faça viver a experiência do
inusitado e que nos toque e afete, servindo como efetivo aprendizado (Bondiá
2002). A incapacidade atual de se viver uma experiência diz respeito à pura
contemplação e subsunção às formas já prontas e plasmadas de produção de
verdades e de relações entre pessoas. Uma sociabilidade emergente e diferente
requer a abertura essencial para a percepção do mundo e para o diálogo entre os
elementos que o compõem. O conceito de troca deve superar sua limitação aos
processos econômicos. Ele pode ser enriquecido com o conceito de experiência,
experiência como troca, contaminação e mistura entre seres diferentes.
3) Cotidiano: é no cotidiano que se dão as relações. Nele é que os detalhes podem
representar os processos mais amplos. O cotidiano não precisa ser um conjunto
de repetições e de tautologias. Ele pode ser o lugar de produção de sentido (Pais
2003). As pequenas e despercebidas ações compõem nossa sociabilidade, e é
nesse conjunto cotidiano de ações que se podem transformar as formas de se
relacionar com as pessoas, os objetos, a natureza. A construção de uma
multiplicidade de formas de estar no mundo depende de se valorizar as
transformações nos espaços e tempos cotidianos, onde se encontram a riqueza de
possibilidades da vida. Um tipo diferente de relações entre pessoas, objetos e
natureza é uma construção cotidiana, nos espaços e tempos cotidianos.
4) Ação: o conceito de ação muitas vezes tem se limitado à atividade como
trabalho. Enriquecer a noção de ação é entender o homem como alguém que se
autoconstrói em sua relação com o mundo. Os seres vivos são autônomos e esta
autonomia depende das relações com o mundo (Castoriadis, 2007). A auto-eco-
organização (Morin, 1996) sugere isso: que só podemos ser autônomos em
contínua relação com o que está fora de nós. Essa permeabilidade é a própria
ação, e é ela que nos transforma em seres vivos. E a ação não tem previsão,
sabemos como ela começa, mas nunca sabemos como termina (Arendt, 2001). A
atividade dos seres é então algo muito mais amplo que a entrega e a subsunção
ao trabalho, embora este, através do mercado, tente englobar a totalidade da
existência. O enriquecimento da noção de ação e a desconstrução da noção de
243
trabalho servem assim como uma referência importante para a construção de
novas formas de sociabilidade que enriqueçam a vida.
5) Crítica ao processo de hominização: a crítica que Kafka (1999) faz em seu
conto sobre o macaco Simão parece não se dirigir apenas à academia, mas aos
caminhos estreitos que escolhemos durante o processo de hominização. É
possível que esse empobrecimento tenha nos acompanhado durante o
desenvolvimento da humanidade, tendo sua expressão mais caricatural a partir
da modernidade, quando fomos aprisionados pelo fetiche empobrecedor da
mercadoria. A criatividade do autor é uma vacina importante contra esse
embrutecimento: sua capacidade criativa e a forma como nos faz rir de nós
mesmos produz uma vontade de mudança. A produção do homem requer esse
processo com dupla característica: crítico e criativo. Talvez sem perceber, ao
exercer tal crítica, estaremos construindo novos parâmetros e formas de estar no
mundo.
6) Crítica à laborterapia: no percurso deste trabalho, a palavra laborterapia apareceu
muitas vezes. Ela surge com a constituição da própria psiquiatria, embora não
fosse nomeada dessa forma. A psiquiatria constituiu-se como um importante
instrumento da sociabilidade do trabalho, desde o seu início, e a ela está atrelada
de forma cada vez mais abusiva, basta ver a multiplicação dos códigos da
nosografia. Desconstruir o paradigma psiquiátrico remete, desse modo, à
desconstrução da sociabilidade do trabalho e, portanto, à desconstrução do
mercado e da mercadoria. Quis apontar essas diferenças desde o início para que
fique claro que a proposta dos projetos coletivos de trabalho não é uma
atualização da terapia pelo trabalho. O que se quer questionar é muito mais do
que uma técnica específica que utiliza a questão do trabalho em práticas de
cuidado. O que se quer questionar é a própria noção de cuidado, de terapêutico,
que constitui o paradigma psiquiátrico. O cuidar, nessa perspectiva, está
indissociado do processo de construção de novas formas de sociabilidade. É por
isso que o termo ―projetos de trabalho‖ ganha forte conotação, e que é utilizado
no lugar de termos como oficina, grupo terapêutico, ergo ou laborterapia. O
termo projeto indica o protagonismo e a projetualidade que caracterizam
qualquer processo de transformação. Desconstruir o paradigma psiquiátrico faz
parte da estratégia de construção de novas formas de sociabilidade.
244
7) Eticamente juntos: utilizei, além do conceito de auto-eco-organização (Morin
1996), a ideia spinoziana de que, para se ter autonomia, se depende sempre dos
outros, de que, quando se busca o que é de máxima utilidade para si, são todos,
então, de máxima utilidade uns para os outros (Spinoza, 2009). Essa ideia
reforça a oportunidade de se construir sujeitos coletivos, que possam, em
sincronia, desenvolver projetos capazes de garantir bem-estar e liberdade para
todos no uso de suas capacidades criativas. Essa é uma das ideias que a noção de
projetos coletivos proporciona: um organizar-se coletivamente em busca de que
os diversos grupos possam beneficiar-se uns aos outros. Projetos como lugar de
pertencimento e inserção no mundo, cujo objetivo é cuidar de pessoas; pessoas
que cuidam de pessoas, projetos que cuidam de outros projetos, uma forma de
multiplicar sociabilidades.
8) Trocar o consumo pelo uso: na discussão sobre o consumo, utilizei a ideia de
que, no âmbito da moderna sociedade produtora de mercadorias, o consumo
impossibilita o uso (Agambén, 2007). Isso porque, nas ondas fetichistas da
mercadoria, o consumo se impõe como relação na esfera do sagrado. O uso só é
possível através da profanação desse sagrado. E é essa profanação que nos faz
perceber a necessidade de superar a noção de mercadoria, dando aos objetos o
estatuto de elementos que podem estabelecer uma nova relação com os homens,
através do uso. A reciprocidade entre sujeito-objeto, através da recuperação da
qualidade sensível das coisas, supera a situação atual em que as mercadorias,
através do processo fantasmático do fetiche, representam a dominação do
mercado sobre os homens. Uma nova relação com os objetos produzidos e com
a natureza é desejável, para fazer frente ao processo destrutivo que promete no
futuro novas catástrofes ambientais e a possibilidade de zerar todos os processos
evolutivos, deixando o planeta Terra tão inabitável para os humanos quando de
seu surgimento.
9) Fortalecer as redes paralelas ao mercado: apesar da crítica que fiz ao fato de as
redes paralelas serem mais transversais que paralelas, já que de alguma forma
participam e dialogam com o mercado, considero que elas são fundamentais para
a construção gradual de redes efetivamente substitutivas ao mercado, muito mais
que paralelas. A possibilidade de um relacionamento ético e recíproco entre os
grupos de homens, através da produção de objetos e de serviços, ao invés de
245
mercadorias, remete à importância de se estabelecerem mecanismos de
comunicação e de troca que prescindam das instituições que funcionam apenas
vinculadas à lógica do mercado ou do Estado. Não estou sugerindo a
proliferação de instituições da sociedade civil, como as do terceiro setor, mas a
constituição de formas diretas de relacionamento entre os homens (Kurz, 1999b,
Arendt, 2001) e, nesse sentido, a noção de projetos novamente vem à cena.
Projetos como coletivos que visam ao cuidado de outros coletivos. A noção e a
prática do projeto podem substituir a noção de trabalho e de emprego, de filiação
(como se dá na questão das igrejas, dos partidos, dos clubes). Participar de um
projeto que cuide de pessoas (seja prestando serviços, mensagens, ou oferecendo
objetos de qualidade para o uso), ou de vários projetos, significa não se submeter
a uma identidade fixa e exclusiva, mas navegar pela maior parte dos espaços
proibidos e privados, no sentido de enriquecer a existência. Lidar com
singularidades e não com identidades. A proposta dos projetos coletivos de
trabalho do Núcleo de Trabalho representa uma contribuição daqueles que
estiveram muito tempo invalidados e institucionalizados em manicômios, para a
constituição de um mundo com novas características, em especial através da
noção de projetos. Desinstitucionalizar o paradigma psiquiátrico significa
desinstitucionalizar o mercado, e a nós mesmos, produzindo outros sujeitos.
Nesse sentido, assim como algumas experiências de desconstrução do
paradigma psiquiátrico, como é o caso de Santos, se iniciaram no interior dos
hospitais psiquiátricos, penso que a desinstitucionalização do mercado passa
pela desconstrução de seus aparatos internos, de sua forma peculiar de funcionar
e existir. É por isso que, nos projetos de trabalho, sempre optamos por nos
relacionar direta e efetivamente com atores do mercado, dispensando as
carapaças e meios de fabricar uma falsa relação, como é o caso das oficinas
protegidas.
10) Metamorfoses: Como afirmei acima, um dos passos fundamentais para a
desinstitucionalização é a desconstrução dos pertencimentos eternos e das
identidades fixas. A superação da identidade exige que não nos limitemos às
formas de pertencimento. Tudo bem, pertenço sim, mas não apenas a isso ou
àquilo, pertenço a tudo, e esse é o sentido da totalidade e da liberdade. Como
pertenço a tudo, posso circular por todo o mundo, por todos os poros do mundo,
246
visitando e sendo visitado, nadando no mar e sendo nadado por ele; nessa hora,
nos misturamos e somos um só (ver a primeira epígrafe deste trabalho, página
1). Uma vez que posso circular pelo mundo, posso me transformar
incessantemente, em direção à multiplicidade e à riqueza. É esse o sentido da
metamorfose. É enriquecer a sociabilidade, superar a identidade, superar a
mercadoria. Deixar a contingência invadir meu corpo significa mudar e, com
prudência, ir encontrando e produzindo sentidos. Já se comprovou que em pouco
tempo 100% das células de nosso corpo são novas, totalmente novas, não sou
mais eu mesmo, aquele do passado. No entanto, sou eu, o ser pluricelular.
Misturar-me com o mundo só pode me fazer bem, uma vez que esta é a viagem
da vida. Uma razão aberta deve considerar que nossa subjetividade é composta
de múltiplas identidades. Na verdade, nós somos os outros e singulares ao
mesmo tempo, e é aqui que reside o rico paradoxo. Somos muitos, e não só
pessoas, mas temos o cosmos, a natureza, os elementos da Terra correndo em
nosso sangue. A sinfonia da vida é esse circular de múltiplas identidades, onde
somos também terra, pedra, gente, música, pensamento, sonho, mar, peixe e uma
infinidade de criaturas. Se conseguirmos exercer a razão aberta, seremos muito
mais sociáveis, estaremos construindo uma sociabilidade que escapa por
completo do registro da mercadoria, e assim seremos obras de arte,
metamorfoseantes.
CHEGANDO AO FINAL
A sociabilidade vem desses contatos imediatos de graus diversos, ela exige
múltiplas estratégias de comunicação.
Construir sociabilidades significa construir mundos e culturas, construir sujeitos
coletivos, que se associam para se auto-inter-transformar.
Essa relação totalmente sexual entre seres vivos, seres vivos e inertes, mundos, é
o que podemos chamar de sociabilidade.
Muito diferente da sociabilidade da mercadoria, que nos obriga a dormir para
melhor trabalhar e consumir, acordemos para viver o pesadelo que o sonho da noite
247
anterior tentou desencantar. Ou seja, quando dormimos vivemos na realidade e quando
estamos acordados vivemos o pesadelo.
O dinheiro é nossa alma e vida, e ele é tão poderoso que só conseguimos trocá-lo
por valores de troca, não conseguimos consumi-lo ele próprio. Afinal, diz-se que nem
louco rasga dinheiro, e isso é um sinal de que até os loucos, mesmo em crise, estão
submetidos à ordem fetichista e autoritária da mãe mercadoria.
Uma nova forma de sociabilidade, entre outras coisas, exige trocar o consumo
pelo uso, a troca pelo usufruto, pela criação, pela metamorfose, pela produção de vida.
É pela sociabilidade rica que precisamos resgatar as coisas para o uso. Já
afirmei, no corpo do texto, que riqueza aqui não quer dizer dinheiro, mas vida jorrando
pelas veias, um derrame que não se deixa conter porque sua vontade de se dissipar e de
se misturar ao mundo vence todos os obstáculos. O sangue esvai, se mistura com o
mundo, construindo um sangue-mundo, um mundo colorido.
Esta pesquisa se encerra tendo como intenção provocar o desejo de um novo
mundo, como foi o mundo que começamos a construir em Santos naqueles idos de
1989.
Estas provocações interessarão aos leitores, ou será o meu destino o mesmo dos
historicamente incompreendidos doentes mentais?
Isso quem vai responder é você.
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