FERNANDO SFAIR KINKER - PUC-SP...Guerra Mundial (Amarante, 1994, 1995). O mundo considerado...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Fernando Sfair Kinker Fragmentos de uma sociabilidade emergente: a trajetória do Núcleo do Trabalho do Programa de Saúde Mental de Santos (1989-1996) DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS SÃO PAULO 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Fernando Sfair Kinker

Fragmentos de uma sociabilidade emergente: a trajetória do

Núcleo do Trabalho do Programa de Saúde Mental de Santos

(1989-1996)

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO

2011

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Fernando Sfair Kinker

Fragmentos de uma sociabilidade emergente: a trajetória do

Núcleo do Trabalho do Programa de Saúde Mental de Santos

(1989-1996)

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese de Doutorado apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais,

sob orientação da Prof. Dr. Edgard de Assis

Carvalho.

SÃO PAULO

2011

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BANCA EXAMINADORA

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À minha mãe Elza, meu pai Nelson (in memoriam), meus irmãos e irmãs, meus

amigos e meus queridos Lígia, Gabriel e Fernanda.

Aos profissionais e usuários do Núcleo do Trabalho.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço especialmente a meu orientador Edgard de Assis Carvalho, e à equipe e aos

usuários do Núcleo do Trabalho.

Agradeço também às pessoas que muito ajudaram durante a elaboração desta

pesquisa: Silvana, Gabi, Zuca, Carla, Fernanda, Caty, e o pessoal lá de casa.

Agradeço à CAPES por me proporcionar a possibilidade de estudar na PUC-SP.

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RESUMO

O objeto deste trabalho é a experiência do Núcleo do Trabalho do Programa de Saúde

Mental de Santos, em sua trajetória de 1989 a 1996. Seu objetivo é tecer uma reflexão sobre

a emergência de novas formas de sociabilidade, a partir da crítica e da desconstrução de

elementos da sociabilidade moderna centrada no trabalho e na mercadoria, e da crítica ao

paradigma psiquiátrico.

O estudo é composto por fragmentos de textos, interpostos, que tratam dos seguintes temas:

descrição das características dos projetos de trabalho e superação das tradicionais práticas

laborterápicas; elementos da gênese da forma moderna do trabalho; descrição de

experiências vividas com os usuários-trabalhadores dos projetos de trabalho; reflexões sobre

a moderna forma de sociabilidade centrada no trabalho e na mercadoria; descrição de cenas

do trabalho da equipe do Núcleo do Trabalho; reflexões sobre a emergência de novas formas

de sociabilidade.

Através de referenciais teóricos que abordam a perspectiva da desinstitucionalização e da

complexidade, valorizando a importância dos conceitos de experiência e de cotidiano, o

estudo defende a tese de que a desconstrução do paradigma psiquiátrico convencional

remete à desconstrução do tipo de sociabilidade centrada no trabalho e na mercadoria,

exigindo a construção de novas formas emergentes de sociabilidade que produzam vida e

que sejam focadas na comunicação direta entre as pessoas, bem como em novas formas de

relação com os objetos e com a natureza.

Palavras-chave: saúde mental; desinstitucionalização; complexidade; projetos de

trabalho; sociabilidade do trabalho.

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ABSTRACT

The object of this paper is to present the experience developed on Nucleus of Work of

the Mental Health Program of Santos from 1989 to 1996. The goal is to make a reflection

on the emergence of new forms of sociability, starting from the criticism and deconstruction

of the modern sociability, centered on labor and goods, beside the criticism of the

psychiatric paradigm.

This study is composed by interposed fragments of text, that comprehend the following

topics: description of the labor project’s characteristics and the overcome of the traditional

labor-therapeutic practices; elements of the moderns work geneses; description of the

experiences lived with the users-workers of the labor project; reflection on the modern

forms of sociability, focused on labor and goods; description of scenes from the work of

Nucleus of Work team.

Through references that approach the theoretical perspective of deinstitutionalization and

complexity, valorizing the significance of experience and daily life concepts, this study

defends the thesis that the deconstruction of the conventional psychiatric paradigm leads to

the deconstruction of the kind of sociability centered on labor and commodity, requiring the

construction of new emerging forms of sociability that produce life and are focused on the

direct communication between people, besides new ways of interaction with objects and

nature.

Key words: mental health; deinstitutionalization; complexity; labor project; sociability

of labor.

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RÉSUMÉ

L’objet de ce travail est l’expérience du Centre du Travail du Programme de Santé Mentale

de Santos, au long de sa trajectoire de 1989 à 1996. Son objectif est de tisser une réflexion

sur l’émergence de nouvelles formes de sociabilité, à partir de la critique et de la

déconstruction d’éléments de la sociabilité moderne – centrée sur le travail et la

marchandise – et de la critique du paradigme psychiatrique.

L’étude est composée de fragments de textes qui abordent les sujets suivants: description

des caractéristiques des projets de travail et surpassement des pratiques ergothérapeutiques

traditionnelles; éléments de la génèse de la forme moderne du travail; description

d’expériences vécues avec les utilisateurs-employés des projets de travail; réflexions sur la

forme moderne de sociabilité centrée sur le travail et la marchandise; description de scènes

du travail de l’équipe du Centre du Travail; réflexions sur l’émergence de nouvelles formes

de sociabilité.

Par l’intermédiaire de références théoriques qui abordent la perspective de la

désinstitutionnalisation et de la complexité, valorisant l’importance des concepts

d’expérience et de quotidien, l’étude défend la thèse que la déconstruction du paradigme

psychiatrique conventionnel renvoie à la déconstruction du type de sociabilité centrée sur le

travail et la marchandise, exigeant la construction de nouvelles formes émergentes de

sociabilité qui produisent de la vie et qui soient focalisées sur la communication directe

entre les personnes, aussi bien que sur de nouvelles formes de relation avec les objets et

avec la nature.

Mots-clés: santé mentale, désinstitutionnalisation, complexité, projets de travail,

sociabilité du travail.

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SUMÁRIO

Apresentação....................................................................................................... 1

Método............................................................................................................... 16

Aurora: Características dos projetos de trabalho................................................... 43

Meio-dia: Experiências com os usuários dos projetos de trabalho........................ 92

Crepúsculo: Imagens do trabalho em equipe......................................................... 187

Conclusão............................................................................................................. 233

Referências bibliográficas .................................................................................... 248

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Lista de abreviaturas e siglas

Afrent Associação de Apoio às Frentes de Trabalho Alternativas

CAPS Centro de Atenção Psicossocial

Ceasa Centro Estadual de Abastecimento

Cohab-ST Companhia de Habitação de Santos

CSTC Companhia Santista de Transportes Coletivos

CVC Centro de Valorização da Criança

ECT Eletroconvulsoterapia

MTSM Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental

NAPS Núcleo de Apoio Psicossocial

NAT Núcleo de Apoio ao Toxicodependente

OMS Organização Mundial da Saúde

Prodesan Progresso e Desenvolvimento de Santos

PVC Programa de Volta Para Casa

Seac Secretaria de Ação Comunitária

Sehig Secretaria de Higiene e Saúde

Sesc Serviço Social do Comércio

SRT Serviço Residencial Terapêutico

URP Unidade de Reabilitação Psicossocial

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APRESENTAÇÃO

―Não sou daqui nem sou de lá

Eu sou de qualquer lugar

Meu passaporte é espacial

Sou cidadão da terra

E a minha vida é toda verdade

Eu não tenho mais idade

O meu passado é o meu futuro

E o meu tempo é o infinito

A minha língua é o pensamento,

Só falo com o olhar

Minha fronteira é o coração...‖

OS MUTANTES.Tudo foi feito pelo sol. Álbum de 1974

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APRESENTAÇÃO

Uma introdução serve para informar o leitor sobre o trajeto que seguirá, caso se

disponha a ler as páginas subsequentes. Por isso, ela deve ser clara e transparente,

sucinta e precisa, e ainda despertar o interesse do leitor, sem o que qualquer texto pode

perder-se no mar dos esquecidos.

Pode-se aproveitar a introdução para nela expor os motivos que levaram à

pesquisa, aquela lista de elementos que a tornam legítima e necessária.

Por fim, cabe à introdução traduzir cada passo que o pesquisador deu no

decorrer de seu processo, para tornar mais inteligíveis as interpretações da realidade.

É isso que farei nas linhas que se seguem, sem deixar de dar as boas-vindas ao

leitor e de convidá-lo para um diálogo franco.

O OBJETO

Este trabalho tem por objeto a experiência do Núcleo do Trabalho do Programa

de Saúde Mental de Santos, em sua trajetória de 1989 a 1996.

Seu objetivo é tecer uma reflexão sobre a emergência de novas formas de

sociabilidade, a partir da crítica e da desconstrução de elementos da sociabilidade

moderna centrada no trabalho e na mercadoria, e da crítica ao paradigma psiquiátrico.

O Núcleo do Trabalho era uma equipe composta por profissionais da área de

saúde mental que desenvolveram projetos de trabalho junto aos usuários do Programa

de Saúde Mental, todos com longa trajetória de institucionalização em hospitais

psiquiátricos, sobretudo na Casa de Saúde Anchieta da cidade de Santos, estado de São

Paulo.

Como uma das principais e pioneiras experiências de reforma psiquiátrica do

Brasil (Capistrano, Kinoshita, 1992; Nicácio, 1994; Nicácio, Kinker, 1996; Kinoshita,

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1996; Reis, 1998; Robortella, 2000; Oliva, 2000; Nogueira, 1997; Kinker, 1997;

Ogawa, 1997; Nascimento, 1997; Capistrano, 1995), a experiência iniciada com a

intervenção municipal na Casa de Saúde Anchieta produziu um profundo desvio no

processo de vida de usuários e profissionais da área de saúde mental.

O processo de transformação institucional do Anchieta inaugurou uma nova

dinâmica de relações entre os diversos atores, alicerçada em novas formas de

reciprocidade e de exercício de poder.

A desconstrução de valores, saberes e olhares acerca da experiência do

sofrimento gerou novas práticas e formas de estar no mundo. A produção de novas

formas de sociabilidade e de novas subjetividades se deu no exercício concreto de

transformação das práticas cotidianas, tendo como principal lugar o território de

existência dos usuários e as contradições sociais implicadas na relação da sociedade

com o sofrimento psíquico. Isso, certamente, implicou a produção de novos

conhecimentos alicerçados na prática.

A estratégia de tomar o território de existência dos usuários, seus valores e

relações como a cena do processo de cuidar exigiu a produção de dispositivos e

mecanismos de mediação das relações daqueles com as demais pessoas. O profissional

de saúde mental, dessa forma, teria de interagir com essa nova realidade e criar formas

inéditas e criativas de exercício profissional.

Foi nesse universo de desconstrução e produção de novas práticas que se

desenvolveram os projetos do Núcleo do Trabalho.

A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA1 E A EXPERIÊNCIA DE SANTOS

A reforma psiquiátrica brasileira inspirou-se em movimentos de transformação

da assistência psiquiátrica nos países europeus e nos EUA, posteriores à Segunda

1 O termo reforma psiquiátrica designa o processo de transformação prática e teórica no campo da

assistência psiquiátrica, a partir da crítica ao modelo clássico do paradigma psiquiátrico focado no

asilamento hospitalar (Amarante, 1994, 1995; Birman, 1992; Brasil, 2004b; MTSM, 1987; Delgado,

2001).

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Guerra Mundial (Amarante, 1994, 1995). O mundo considerado desenvolvido tentou

responder à destruição da guerra com processos de modificação das duras e opressoras

estruturas hospitalares, produzindo críticas sobre a ciência e sobre as formas de a

sociedade viabilizar os cuidados das pessoas que sofrem.

A reforma brasileira deu-se a partir do processo de redemocratização do país, na

década de 1980. Iniciou-se com um movimento de denúncia da situação dos hospitais

psiquiátricos, protagonizado por profissionais de saúde mental e, aos poucos, foi

assumindo em sincronia três dimensões diferentes: a política, a prática, a jurídica.

A dimensão política diz respeito à militância política envolvendo profissionais,

usuários, familiares e simpatizantes. Ao longo do caminho, essa militância produziu

organizações populares de defesa de direitos e de apoio às transformações das práticas.

O lema ―Por uma sociedade sem manicômios‖ (Amarante, 1995; MTSM, 1987), criado

no Encontro de Trabalhadores de Saúde Mental, em 1987, na cidade de Bauru, tornou-

se a mensagem levada aos quatro cantos do país, influenciando a criação de novas

práticas em municípios e estados, bem como a produção de leis de reforma psiquiátrica.

Além de impulsionar novas práticas, o movimento antimanicomial trouxe à cena

os próprios usuários, que puderam denunciar as formas opressoras de tratamento e

assumir a posição de protagonistas das transformações necessárias.

A dimensão prática engloba as múltiplas experiências de transformação da

assistência psiquiátrica pública que se deram no final dos anos 1980 e durante as

décadas subsequentes. Aqui se insere a experiência santista. As primeiras experiências

transformadoras, que propuseram a superação dos hospitais psiquiátricos, foram

alimentando novas experiências em todo o território nacional, até que se chegasse ao

ano de 2010 com uma rede de serviços em ritmo de expansão, composta por com 1.541

Centros de Atenção Psicossocial2 (Brasil, 2004 a, 2010), 716 residências terapêuticas

3

2 Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são serviços comunitários e territoriais formados por

equipes multidisciplinares (médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, enfermeiros,

educadores físicos, pedagogos, artistas e oficineiros, auxiliares ou técnicos de enfermagem, combinados

conforme a opção dos governos locais), e que devem responder a uma determinada área de abrangência.

Esses centros devem fornecer atendimento prioritário a pessoas com transtornos mentais severos e

persistentes, mas também a casos moderados. Dessa forma, desenvolvem acompanhamentos mais ou

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menos intensivos, dependendo da necessidade do usuário do serviço. Os usuários mais graves, muitas

vezes, podem frequentá-lo diariamente, participando de situações grupais, individuais, projetos

comunitários, além de receber medicação e refeição, a partir de um projeto terapêutico individual

artesanalmente tecido. A função dos CAPS foi definida melhor pela portaria ministerial que os

regulamentou em 2002 (Brasil, 2004a). É claro que as concepções e as formas de trabalho variam muito

em função do contexto. Na perspectiva desenvolvida em Santos, que foi um dos primeiros locais a

implantar unidades desse tipo, já a partir de 1989 (todas funcionando 24 horas por dia, sete dias na

semana), o CAPS deve ser um espaço capaz de favorecer o acesso dos pacientes graves aos espaços

sociais, promovendo mediações e agenciamentos que modifiquem o imaginário social sobre a loucura, e

que estimulem a produção de autonomia e a participação social. Assim sendo, nessa concepção, o CAPS

não deve ser um lugar de entretenimento e de ocupação do usuário (Saraceno, 1999), mas deve saber

adentrar com este o espaço social. Deve conhecer o território e seus recursos, deve poder ser

principalmente uma referência local que favoreça a convivência dos usuários nos seus territórios de

existência, zelando pela melhoria da qualidade de vida e das relações sociais, construindo com cada um o

seu projeto de vida. Nesse sentido, deve também ser o lugar de atendimento nas situações de crise,

promovendo estratégias que permitam ao usuário viver a crise sem rupturas no processo de vida e sem

internações em hospitais psiquiátricos. Ainda no caso de Santos, o funcionamento noturno do CAPS não

deve ser como o de um pronto-socorro psiquiátrico. Os plantonistas são do campo da enfermagem e são

apoiados à distância pelos médicos da própria unidade ou das emergências psiquiátricas, o que é

resolutivo para qualquer situação de crise que não envolva componentes ou comorbidades orgânicas. É

óbvio que esse papel do CAPS, seja qual for a concepção ou a perspectiva adotada, não é simples. É

necessário um forte e permanente movimento de discussão e de formação dos profissionais para que o

serviço não seja apenas um encaminhador de casos para o hospital psiquiátrico. Pela regulamentação

existente, é possível haver CAPS com áreas de abrangência distintas, com complexidades diferentes, e

ainda CAPS específicos para pessoas com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas e para

crianças e adolescentes. Segundo a portaria ministerial, é possível haver estes tipos de CAPS:

CAPS I (para populações entre 20 mil e 70 mil habitantes): possui uma equipe composta

por pelo menos um médico com formação em saúde mental, um enfermeiro, três profissionais de nível

superior nãomédicos, quatro profissionais de nível médio (incluindo técnicos de enfermagem) e deve

tentar trabalhar articulado com as equipes de atenção básica e dos programas de saúde da família (Brasil,

2004a).

CAPS II (para populações entre 70 mil e 200 mil habitantes): uma equipe composta por

pelo menos um médico psiquiatra, um enfermeiro, quatro profissionais de nível superior não médicos,

seis profissionais de nível médio, e com capacidade para atender a mais usuários. Assim como o CAPS I,

funciona durante o dia, muitas vezes das 8 às 18 h (dependendo da gestão local), podendo também

comportar um terceiro turno até as 21 h (Brasil, 2004a).

CAPS III (para populações acima de 200 mil habitantes): é o CAPS mais completo e

aquele que consegue responder melhor aos desafios de um serviço territorial e comunitário. O fato de

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(Brasil, 2004 b, 2010), 393 experiências de inclusão no trabalho (Brasil, 2005, 2010),

vários outros dispositivos como a reclassificação e o controle dos hospitais psiquiátricos

(Brasil, 2004c), a política para a atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas

(Brasil, 2004d), o Programa De Volta para Casa4 (Brasil, 2004e, 2004f), e a diminuição

funcionar 24 horas por dia, 7 dias na semana, possibilita que os pacientes acompanhados possam ser

acolhidos em momentos de crise (ou quando enfrentam alguma dificuldade que exija um acolhimento e o

afastamento temporário de casa) e pernoitar na unidade, caso seja conveniente. Deve ter uma equipe

mínima formada por dois médicos psiquiatras, um enfermeiro, cinco profissionais de nível superior não

médicos, oito profissionais de nível médio (Brasil, 2004a).

CAPS i (infanto-juvenil): destina-se ao atendimento a crianças e adolescentes. A

prioridade é dada aos usuários com transtornos mentais graves, e devem ser enfocadas ações intersetoriais

(integradas à justiça, à assistência social, à educação), além do apoio aos serviços de atenção básica. A

equipe mínima deve ser composta por um médico psiquiatra ou neurologista ou pediatra com formação

em saúde mental, um enfermeiro, quatro profissionais de nível superior não médicos e cinco profissionais

de nível médio (Brasil, 2004a).

CAPS ad (álcool e drogas): esta unidade está voltada ao atendimento de pessoas com

transtornos decorrentes do uso de álcool ou outras drogas. O funcionamento é similar ao do CAPS II, mas

voltado a essa demanda específica. A equipe mínima deve ser composta por um médico psiquiatra, um

enfermeiro, um médico clínico, quatro profissionais de nível superior não médicos e seis profissionais de

nível médio (Brasil, 2004a).

Recentemente, em 2010, foram criados os CAPS ad com funcionamento 24 h, e novos projetos para

trabalharem articulados com eles, como os consultórios de rua.

3 Os Serviços Residenciais Terapêuticos são casas onde podem morar até 8 egressos de hospitais

psiquiátricos (Brasil, 2004b). Esses ex-internos devem ter ficado internados num período superior a 2

anos para ter direito ao programa, já que se trata de uma estratégia de desinstitucionalização de pacientes

de longa permanência, estimados em 12.000 pessoas no Brasil. Convém observar que atualmente essa

regra está flexibilizada, podendo usufruir da casa usuários de serviços de saúde mental que não estavam

internados, mas que, por diversos motivos – por estarem vivendo nas ruas, ou que por alguma questão do

projeto terapêutico –, precisem de um novo lar, mesmo que provisório. A ideia dos SRTs é que a casa não

seja uma instituição ou um serviço de saúde mental, mas que os moradores possam se apropriar dela para

que seja de fato o seu próprio lar. Essa proposta criou uma nova figura profissional no campo da saúde

mental, que é o cuidador; alguém que não precisa ter nível universitário, mas deve ter o perfil que ajude

os moradores a adquirirem mais autonomia para gerir a própria casa e para participar do convívio social.

Cada SRT precisa estar vinculado a um CAPS, que deverá acompanhar os moradores no dia-a-dia,

responsabilizando-se pela casa, e respaldando e dando apoio aos cuidadores. O financiamento da SRT se

dá com o próprio recurso que os hospitais recebiam para manter esses ex-internos. Na verdade, quando

um interno sai de um hospital para um SRT, leva consigo os recursos que o hospital recebia, que serão

geridos pela Secretaria Municipal de Saúde para a manutenção da casa.

4 O Programa ―De Volta para Casa‖ (PVC) garante um benefício em dinheiro destinado ao próprio

usuário para garantir sua manutenção e ampliar sua rede social, ou para incentivar as famílias a receber de

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de 16.000 leitos psiquiátricos entre 2002 e 2009, passando de 51.393 para 35.426

(Brasil, 2010).

A dimensão jurídica diz respeito à produção de novas leis municipais, estaduais

e federais de consolidação da reforma psiquiátrica. Destaca-se a lei 10.216, de 2001,

que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e

redireciona o modelo assistencial em saúde mental (Brasil, 2004g). A promulgação de novas

leis foi alimentada pelas novas práticas e pela mobilização social (basta dizer que a lei

federal demorou 12 anos para ser aprovada, pois foi tema de enfrentamentos entre os

representantes dos hospitais privados e os defensores da reforma). As transformações

ocorridas na esfera legislativa foram acompanhadas pelo estabelecimento de uma

política nacional de saúde mental e de dispositivos regulamentadores, como as portarias

ministeriais para definição de novos serviços e de linhas de financiamento e custeio.

A experiência brasileira incorporou elementos importantes das reformas do pós-

guerra: da experiência inglesa e americana das comunidades terapêuticas e do

movimento de psicoterapia institucional francesa (Amarante, 1995; Jones, 1972),

incorporou a ideia da democratização das relações com os usuários, do fortalecimento

da voz e do protagonismo destes, bem como as necessárias modificações

intrainstitucionais; da psiquiatria preventiva americana (Amarante, 1995; Caplan, 1980),

incorporou a ideia de intervenções comunitárias, de inserção no território, de prevenção

na área da saúde mental; da psiquiatria de setor francesa, incorporou a ideia de

organização sanitária territorial, hierarquizada, setorizada; e, finalmente, da psiquiatria

democrática italiana (Amarante, 1995), incorporou a crítica à institucionalização, ao

papel de controle social da psiquiatria, e a necessidade de transformação do paradigma

psiquiátrico, incluindo a crítica à existência do hospital psiquiátrico. Dela também veio

a ideia da desinstitucionalização como desconstrução de saberes, práticas, leis,

instituições, e a recomplexificação do fenômeno do sofrimento psíquico através da

construção contínua de novas práticas e saberes, e de novas relações sociais (Rotelli et

al., 1990; Nicácio, 2003).

A experiência santista foi um marco importante para a reforma brasileira. Pela

primeira vez, uma cidade havia partido de dentro do hospital psiquiátrico,

volta seus parentes abandonados há anos em hospitais psiquiátricos. Em dezembro de 2010, 3.540 pessoas

recebiam esse benefício (Brasil, 2010).

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transformando-o internamente enquanto produzia uma rede de serviços substitutivos e

comunitários aptos a operar com outra lógica. A construção dos 5 NAPS (Núcleos de

Atenção Psicossocial), do NAT (Núcleo de Apoio ao Toxicodependente), da Unidade

de Reabilitação Psicossocial (nome dado à antiga equipe do Núcleo do Trabalho,

quando esta se tornou uma unidade administrativa da Secretaria de Higiene e Saúde), do

Centro de convivência TAM TAM, além dos Centros de Valorização da Criança

(unidades de saúde mental voltadas à infância e adolescência) (Bertuol et al., 1996),

produziu um novo diálogo com a cidade, levando à completa inutilidade do hospital

psiquiátrico, que pôde deixar de existir.

Os NAPS funcionavam 24 h/dia, tendo como tarefa construir projetos de vida

junto aos usuários em seus territórios de existência, o que exigia um constante processo

de produção de alianças, de mediações e de enfrentamentos com os valores sociais de

normalidade (Nicacio, 1994; Reis, 1998; Robortella 2000).

O Núcleo do Trabalho, desde os seus primórdios no interior do Anchieta, tinha

como tarefa produzir mediações que possibilitassem novas experiências aos usuários,

numa das dimensões importantes da vida: a do trabalho (Kinker, 1997; Ogawa, 1997;

Nogueira, 1997).

O NAT era uma unidade que se debruçava sobre o complexo problema do uso

abusivo de drogas, e o Centro de Convivência TAM TAM (Nicácio, 1994) buscava

produzir novas mensagens destinadas ao imaginário social, emitidas durante certo

tempo pelas ondas radiofônicas através da rádio TAM TAM (programa de rádio

realizado por usuários e profissionais da saúde mental).

A TRAJETÓRIA DO NÚCLEO DO TRABALHO E SEU EMPENHO NA

INVENÇÃO DE NOVAS FORMAS DE SOCIABILIDADE

O que se investigará neste trabalho é a possibilidade de produção de novas

formas de sociabilidade que não se submetam à lógica destrutiva do capital, do trabalho

e da mercadoria.

O terreno de investigação será a experiência dos projetos de trabalho, sua forma

própria de lidar com a existência-sofrimento dos usuários (Rotelli, 1990), suas

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estratégias de mediação e de construção de alianças, sua crítica ao mercado realizada no

interior deste, sua intenção de contribuir para a desconstrução do mercado, à

semelhança do processo de desconstrução do paradigma psiquiátrico a partir do interior

do Anchieta.

O termo desconstrução pode soar muito forte ou até prepotente, mas ele é

fundamental. Considero que a desconstrução não é exatamente a destruição imediata e

total, mas a elaboração de mecanismos que vão desvendando a forma de funcionamento

e produzindo novas realidades a partir desse conhecimento. Ela implica um processo de

metamorfose em que os fluxos de poder rodopiam vertiginosamente, produzindo novos

discursos, novas relações e cumplicidades.

Dessa forma, uma experiência tão peculiar como a produção de projetos de

trabalho críticos à lógica do mercado pode servir como germe de transformações, como

vírus que, em sua minúscula condição, produz efeitos potentes, caso consiga ampliar

suas alianças e se metamorfosear, de forma a não ser capturado pelos mecanismos

imunológicos da ordem.

As reflexões que trarei aqui foram inspiradas na experiência desses projetos de

trabalho, e nas relações singulares entre os diversos atores envolvidos.

A ORDEM DOS FATORES (ou capítulos)

A pesquisa está dividida nos seguintes capítulos: Apresentação, Método, Aurora,

Meio-Dia, Alvorecer e Conclusão.

Método

No capítulo intitulado Método, faço uma topologia do terreno teórico por onde

circulará a pesquisa. Apresento o campo teórico com o qual dialogarei, como forma de

inserir o leitor no clima, no espírito e na língua utilizada. Não é um capítulo longo, pois

não é o foco do trabalho trazer apenas um campo teórico; este campo aparece aqui como

um coadjuvante, já que a experiência prática é a principal protagonista. Como um cartão

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de apresentação, o método introduzirá o leitor na pesquisa, no campo discursivo em que

a pesquisa está mergulhada.

Aurora

Aurora é o nome que dei ao capítulo que apresenta os projetos de trabalho, suas

características e seu formato básico. O relato dos projetos de trabalho está entremeado

por elementos referentes à gênese do trabalho moderno nas sociedades ocidentais, por

algumas de suas características na formação da sociabilidade centrada na mercadoria,

bem como por elementos da vinculação entre o eixo existencial da modernidade

centrado no trabalho e o nascimento da psiquiatria.

Meio-dia

Meio-dia é o maior capítulo da pesquisa, e trata das experiências vividas junto

aos usuários dos projetos de trabalho. Embora apresente situações inusitadas, sua

intenção não é demonstrar que tudo é estranho e diferente num projeto onde trabalham

pessoas com sofrimento psíquico grave. Muito pelo contrário, a intenção é provar que

muito do que se viveu com os usuários pode ser vivido, em sua forma singular, por

pessoas que navegam nas ondas turbulentas do mercado, sem ser denominadas doentes

mentais. Se algumas cenas descritas são mais impressionantes, não é por serem as mais

importantes, mas é por terem ficado mais fortemente marcadas na memória como que a

dizer que na vida tudo é possível, desde que modifiquemos os contextos, e a nós

mesmos. Acrescentei também nesse capítulo a continuidade da crítica à gênese do

trabalho, inserindo reflexões sobre as condições de criação de novas formas de

sociabilidade. Acredito que esse capítulo é o ápice do trabalho, pois demonstra sua

intensidade quente, como a luz do sol do meio-dia.

Alvorecer

O capítulo Alvorecer faz uma pequena homenagem aos profissionais do Núcleo

do Trabalho, trazendo algumas cenas vividas que contribuem para se pensar nos

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desafios que o trabalho em equipe nos traz. Não são diferentes apenas os usuários, todos

somos elementos em constante mutação, embora tentemos ignorar esse fato

apresentando aos demais falsas identidades petrificadas. O trabalho em equipe é ainda

um dos principais desafios dos projetos de reforma psiquiátrica, pois, sem a

desinstitucionalização dos pobres referenciais disciplinares, que nos protegem numa

identidade falsamente imutável, não há como discutir sobre desconstrução de

paradigmas psiquiátricos nem sobre desinstitucionalização dos usuários e de sua

condição de seres capturados totalmente pelo conceito de doença. Nesse capítulo

aproveito para finalizar algumas propostas acerca da produção de novas formas de

sociabilidade; são apenas contribuições para aqueles que se sentirem tocados pela

necessidade de mudar.

Conclusão

A conclusão é o próprio anoitecer, o ocaso, o princípio do fim da pesquisa. É seu

fechamento, onde apresento um resumo das principais questões trazidas por ela.

A ORDEM DOS FATORES (ou dos capítulos) NÃO ALTERA O PRODUTO

Essa máxima matemática serve para esta pesquisa, com a observação de que

aqui a totalidade sempre será mais ou menos que a soma das partes lidas isoladamente.

É possível começar a leitura da pesquisa por qualquer de suas partes, pois ela é

totalmente tecida por fragmentos.

POR QUE TRABALHAR COM FRAGMENTOS?

O leitor perceberá que o corpo desta pesquisa é composto por fragmentos de

textos, que são acondicionados uns sobre os outros, de forma a produzir um percurso

não linear.

Essa opção se deu por alguns motivos que tentarei explicar.

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Em primeiro lugar, devo confessar que me agrada escrever pequenos trechos, ao

invés de um texto único e sequencial, cuja linearidade produz certa estafa no leitor. Para

uma pessoa prolixa, é um desafio emitir uma mensagem precisa num pequeno trecho,

mas é um desafio bom, pois me parece que o leitor pode se sentir provocado por

pequenos estímulos, sem receber a hiperdose de um texto linear que por vezes pode se

tornar tautológico, repetindo-se sem parar. Enfim, para mim, é agradável escrever dessa

forma, e penso que consigo com mais facilidade passar minha mensagem.

Em segundo lugar, esforcei-me por criar um formato que fosse ele mesmo um

exemplo do que insistirei sem cessar: que é necessário uma dialogia múltipla, uma

conversa infinita, para que as investigações não fiquem pobres, e para que se religuem

os diversos saberes, a ciência e as humanidades, a investigação empírica e os elementos

da literatura, a estética e a técnica. Penso que o formato escolhido privilegia uma

estética que pode, por si mesma, produzir sensações e pensamentos no leitor,

estimulando-o a produzir conhecimento.

Em terceiro lugar, alerto o leitor que os fragmentos estão divididos entre trechos

que relatam a experiência vivida nos projetos de trabalho do Programa de Saúde Mental

de Santos, e trechos que são teórico-conceituais, digamos assim. O motivo dessa

escolha é produzir diálogos entre a experiência e a teoria que pode problematizá-la.

Esforço-me para superar a dicotomia entre prática e teoria (pois a prática é toda teórica),

mas isso é algo que vai contra a forma linear e cartesiana em que fomos educados, e por

isso não é algo tão fácil de se fazer.

Há uma não linearidade temporal nos relatos dos acontecimentos, e ela é

proposital. Inspirei-me nos filmes que começam pela metade ou pelo fim e, aos poucos,

vão construindo um todo composto pelas partes. Acho que essa forma estimula a

criatividade e faz o leitor produzir reflexões diferentes no percurso de trabalho.

O texto pode ser lido a partir de qualquer parte, o leitor pode iniciar a leitura

pelo meio ou pelo fim. Cada parte traz sua mensagem específica, e o todo é mais ou

menos que a soma das partes (Morin, 2001, 2010), pois ele é outro produto que pode

não incorporar peculiaridades das partes. Cada trecho terá um gosto diferente, e o todo,

com que o leitor terá contato ao terminar a leitura, terá também um gosto diferente do

de cada uma das partes. Entretanto, penso que as partes, cada trecho, têm em sua

essência os germes do todo, e isso o leitor vai perceber quando acabar de ler o texto

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integralmente. O texto integral é um rizoma5 (Deleuze, Guattari, 1997, 2004), onde cada

parte se comunica com todas as outras.

Considero que o formato escolhido facilita essa experiência. Citando Pascal,

Morin ajuda a explicar melhor essa relação entre o todo e as partes, cujo princípio tento

utilizar nesta pesquisa:

―‗O todo é algo mais do que a soma de suas partes‘. O que quer dizer

que o todo tem um certo número de qualidades e de propriedades que

não aparecem nas partes quando elas se encontram separadas. Essa ideia

traz nela a noção de emergência, emergência de qualidades e

propriedades próprias à organização de um todo. Assim, a vida é

constituída de elementos estritamente físico-químicos que não se

diferenciam em nada, em termos de substância e de materialidade, do

resto do mundo físico-químico; o que faz a diferença é a organização

desses elementos, a maneira pela qual as moléculas e macromoléculas

que a constituem são organizadas, e é essa organização que tem

qualidades emergentes (reprodução, movimento, auto-organização

capaz de tratar seus próprios elementos e de tratar o meio no qual se

encontra). H2O, fruto do encontro de dois átomos de hidrogênio e de um

átomo de oxigênio gasoso, já se traduz pelo aparecimento de um

líquido, a água, cujas propriedades são diferentes daquelas de seus

componentes‖ (Morin, 2001, p. 562-3).

5 Rizoma é um conceito de Deleuze e Guattari. As características do modo de realização representado

pelo rizoma são as seguintes: um ponto qualquer se conecta com outro ponto qualquer, e cada um de seus

traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza. O rizoma não tem começo nem fim, mas

sempre um meio onde cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades de n dimensões, que são exibidas

num plano de consistência formado por linhas de segmentaridade. Nos fluxos imanentes que operam em

seus estratos, essas linhas podem ser de territorialização e desterritorialização, sendo que estas últimas são

as que provocam metamorfoses, dependendo das velocidades, das intensidades, dos deslocamentos, das

direções que tomam. Embora seja segmentado e composto por linhas, o rizoma se contrapõe ao modelo

de realização representado pela árvore. O rizoma, ao contrário do tipo arborescente, que é formado por

troncos e raízes, é constituído por tubérculos e bulbos, que se movimentam e permitem a conexão

singular entre os pontos. A árvore é objeto de reprodução, funciona por reprodução, repetição, modelo,

decalque. Ao invés de decalques, o rizoma trabalha com mapas, numa cartografia que aponta dimensões

variadas e coexistentes, apontando os movimentos de desterritorialização e reterritorialização. O rizoma é,

enfim, contra os sistemas centrados de comunicação hierárquica e ligações preestabelecidas, sendo um

sistema acentrado não hierárquico, sem memória organizadora, mas definido por uma circulação de

estados.

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Inspiremo-nos na água para entender o formato deste trabalho: um sistema é

simultaneamente mais e menos do que a soma de suas partes (Morin, 2010, p. 200).

Espero ter conseguido justificar o formato diferente desta pesquisa.

PARA QUE UMA PESQUISA COMO ESTA?

Penso que esta pesquisa pode contribuir com dois grupos de pessoas com

preocupações próximas, que talvez sejam as mesmas: aqueles que estão envolvidos nos

projetos de reforma psiquiátrica, especialmente em projetos de inserção no trabalho com

usuários graves de serviços de saúde mental; e aqueles que se interessam pela produção

de novas formas de sociabilidade e, como eu, estão inconformados com a pobreza

existencial e com o amordaçamento de nossas potencialidades e possibilidades.

Penso que a experiência aqui apresentada, uma das primeiras no campo da

reforma psiquiátrica brasileira, pode fornecer ao primeiro grupo reflexões,

possibilidades, estratégias, para o desenvolvimento de projetos de trabalho no campo da

saúde mental e da reabilitação psicossocial6. Imersos em suas experiências,

provavelmente esses atores se enxergarão nas páginas que se seguem, e poderão se

envolver e trazer para suas realidades a intensidade de transformações que elas geraram.

Para o segundo grupo, do qual também fazem parte muitos integrantes do

primeiro, esta é uma pequena contribuição, um início de bate-papo, a sequência de um

bate-papo que predomina principalmente no campo das humanidades, desde que os

primeiros filósofos se propuseram a registrá-lo e organizá-lo. O fato de as ciências

humanas terem sucumbido à lógica cartesiana não nos impossibilita de fazer um diálogo

franco, aberto, democrático, onde todos possam ter voz, a fim de tornar o debate mais

rico e mais complexo.

6 Utilizo o termo ―reabilitação psicossocial‖ baseando-me em Saraceno (1999, 2001), para quem a

reabilitação não é uma técnica, e sim uma atitude estratégica, expressa em programas e serviços,

produzindo ações de cuidado a pessoas vulneráveis, que sofreram processos de institucionalização devido

à relação da sociedade com aqueles que vivenciam um sofrimento psíquico grave. Em vez de seguir uma

trilha de normalização e adaptação, que vai da desabilidade à habilitação, a reabilitação se constitui num

processo de descoberta de novas potencialidades e possibilidades, através de um processo de mediação e

negociação que propõe modificações nos contextos que geram a exclusão e a invalidação. A reabilitação

seria então um ―[...] processo de reconstrução, um exercício pleno de cidadania, e, também, de plena

contratualidade nos três grandes cenários: hábitat, rede social e trabalho com valor social‖ (Saraceno,

2001: 16).

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O grande desafio é fazer da experiência aqui relatada um diálogo, leve, de

múltiplas vozes, em que o leitor se veja também como protagonista.

Seja bem-vindo!!!

―Se quisesse escolher um símbolo votivo para saudar o novo milênio,

escolheria este: o salto ágil e imprevisto do poeta-filósofo que sobreleva

o peso do mundo, demonstrando que sua gravidade detém o segredo da

leveza, enquanto aquela que muitos julgam ser a vitalidade dos tempos,

estrepitante e agressiva, espezinhadora e estrondosa, pertence ao reino

da morte, como um cemitério de automóveis enferrujados‖ (Calvino,

2006: 24).

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MÉTODO

―Como é que um atleta alcança o estado que ele designa como ‗estar em

forma‘? Por meio de um treinamento que exige que ele siga uma regra e

que se torne um monge; o mesmo acontece com o escritor. Trata-se de

uma condição necessária que assegura, pelo menos, um trabalho bem-

feito, uma corrida honrosa, um lugar medíocre entre os profissionais.

Para a genialidade, porém, ninguém encontrou ainda as condições

suficientes. A classificação das ciências e das disciplinas, dos artigos e

das teses, das notas de rodapé, do índice e da bibliografia, a citação

conscienciosa e humilde por ocasião do debate... são exigências

universitárias que disciplinam a pesquisa e o pensamento. Conforme-se

à força coercitiva da formatação... obedeça ao formato-pai que, invisível

e ausente, reina sobre o saber absoluto. Se seu desejo, porém, é

inventar, arrisque-se, livre-se do formato. Faça isso, mesmo que tenha

de morrer, transforme-se em filho. As grandes obras conjugam formato

e invenção, disciplina de ferro e liberdade: pai e filho‖ (Serres, 2008:

23).

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MÉTODO

―Contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática.‖

BASAGLIA

O filho de Serres (2008) é afeito aos riscos e à bifurcação. Não despreza a

disciplina do formato-pai, mas sabe que, se quer falar algo novo, não deve se limitar a

ficar repetindo tudo como um papagaio de pirata. Antes, deve herdar do pirata a

curiosidade e a inquietude, o amor à transgressão, fazendo-o de forma ética.

Todos nós temos como fazer valer a criatividade, produzindo novos textos no

momento mesmo em que lemos os textos prontos. Se não fazemos uma grande obra, nos

sentimos grandes e ricos por nossa liberdade e nossa humildade em descobrir, amar e

gozar as belas descobertas dos outros.

Algumas pessoas, e me incluo entre elas, podem contribuir mais com sua

experiência do que com seu itinerário de estudos. Podem transformar sua experiência,

algo que para alguns é oposto à teoria, num exercício intenso de teorização, superando a

cisão entre teoria e prática. Porque, para eles, ―o máximo da teoria é a prática‖

(Basaglia).

METODOLOGIA, MÉTODO OU ESTRATÉGIA?

―Um Método como esse nada tem a ver com o que se denomina

metodologia. Uma metodologia define um programa de trabalho preciso

e definitivamente estabelecido. Meu método pretende ser uma ajuda

para o espírito para que ele enfrente as complexidades e elabore as

estratégias. Aí reside a origem de minha formulação: ‗Ajuda-te a ti

mesmo e a complexidade te ajudará‘. O método de Descartes aproxima-

se de uma metodologia, pois prescreve os processos a serem seguidos

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para chegar a um conhecimento pertinente. Quanto a mim, indico as

exigências a serem satisfeitas para tratar as complexidades, exigências

que comportam três princípios que se confirmaram durante o percurso:

o princípio dialógico, o princípio recursivo e o princípio hologramático.

Os três são expressões diversas e complementares do princípio de

religação. Não desconsidero de modo algum as disciplinas, uma vez que

meu intuito é religá-las; contesto, porém, seu hermetismo e critico a

hiperespecialização. Acrescento que o conhecimento é uma navegação

num oceano de incertezas, entre arquipélagos de certezas‖ (Morin,

2010: 242).

Inspirado nessas palavras, continuarei a apresentar alguns aspectos que

caracterizam o percurso desta pesquisa, entendendo que não há um fundamento absoluto

que imponha a forma correta de navegar. Talvez uma sinfonia composta por partes

distintas possa caracterizar a música que sairá dos inúmeros instrumentos de reflexão.

Afinal, o valor da prova absoluta, fornecido pelas induções e deduções, demonstrou

seus limites. Trabalhar com as contradições, ao invés de sinal de erro, antes é a

emergência de um novo tipo de verdade (id., ibid: 243).

PESQUISA BASEADA NA EXPERIÊNCIA

Uma pesquisa pode tomar muitos caminhos. Pode guiar-se por regras fixas e

proceder por experimentos, que reproduzem artificialmente processos físicos da

natureza ou processos sociais, ou pode esparramar-se e dialogar com as pequenas

partículas dos fenômenos, em situação de reciprocidade. No caso das ciências humanas,

esse diálogo ocorre no âmbito da micropolítica, onde as relações saber/poder

determinam os fluxos dos valores e dos conhecimentos, e os discursos produzem

incessantemente novas realidades. Foi por este último caminho que optei, por considerá-

lo mais apropriado a uma proposta de produção de vida, e de superação das amarras que

simplificam e negam a complexidade dos fenômenos. Porque a experiência sugere algo

mais que o controle dos processos, das perguntas e das respostas, muitas vezes já

prontas antes do início das pesquisas. Sugere a entrega do observador ao turbulento e

virtuoso fenômeno, a passividade necessária para criar, a paixão mais que a razão.

Como diz Bondiá:

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―Seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou

como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por

sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua

disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade

anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de

paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma

receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como

uma abertura essencial‖ (Bondiá, 2002: 24).

É sobre esse tipo de conteúdo que se debruçará esta pesquisa. Ela tratará da

prática, tentando não sucumbir ao pessimismo da razão, mas incorporando-a como uma

dentre outras dimensões da análise. Seus caminhos estarão nas imediações da pesquisa

qualitativa (Minayo, 1992; Alves-Mazzotti, Gewandsznajder, 1999; Demo, 2000;

Bauer, Gaskell, 2003), pesquisa-ativa, pesquisa-ação, exercício da memória,

refinamento da sensação e do pensamento, aceitação de que o observador interfere e

ajuda a produzir o fenômeno observado. No meu caso, tanto mais, pois fiz parte dos

processos que relatarei e analisarei. É isso mesmo, através desta pesquisa estarei

estudando, entre outras coisas, a mim mesmo. E quem pode negar que qualquer

pesquisa, mesmo a mais cartesiana e supostamente asséptica delas, não reproduz em

parte esse mecanismo de pesquisar a si próprio? Não é o cientista de laboratório aquele

que cria realidades no diálogo com seus instrumentos, a partir de seus desejos, de seu

olhar incisivo para alguns elementos e cego para outros? Sim, é de minhas vísceras e de

meu coração, mais que de meus abstratos neurônios, que partem as análises dos fatos

que serão relatados. É verdade que eles serão filtrados pelo cérebro, e sairão de outro

modo, sempre em luta com o coração. Essa tensão, de certa forma, é o que garante certa

dose de idoneidade, honestidade, e uma nova estética. Digamos que esta é, a meu ver, a

forma mais eficaz e rica de se fazer ciência, superando o pessimismo da razão e

entronando o otimismo da prática.

―Evidentemente, a clareza de percepção e de pensamento requer que

geralmente estejamos conscientes de como a nossa experiência é

moldada pelo insight (nítido ou confuso) proporcionado pelas teorias

implícitas ou explícitas em nossos modos gerais de pensar. Com esta

finalidade, é útil enfatizar que a experiência e o conhecimento são um

só processo, em vez de pensar que o nosso conhecimento é sobre algum

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tipo de experiência separada. Podemos nos referir a esse processo único

como experiência-conhecimento (o hífen indicando que são dois

aspectos inseparáveis de um movimento total)‖ (Bohm, 1992: 25).

HUMILDADE

―Evidentemente, a noção de causa formativa é relevante para a visão da

totalidade indivisa do movimento fluente, o que se constatou estar

implicado nos modernos desenvolvimentos da física, notavelmente na

teoria da relatividade e na teoria quântica. Logo, como tem sido

assinalado, cada estrutura relativamente autônoma e estável (p. ex.,

uma partícula atômica) deve ser entendida não como algo que existe de

modo independente e permanente, mas, antes, como um produto

formado no movimento fluente total e que finalmente voltará a

dissolver-se nesse movimento. Como ele se forma e mantém a si

próprio depende, então, do seu lugar e da sua função no todo‖ (Bohm,

1992: 35).

Como conhecer o real? Real como realidade, não como compartimento do

inconsciente lacaniano7. O que é o real se não os símbolos produzidos pelo discurso?

A ilusão de posse da totalidade do real, combinada com uma suposta linearidade

do tempo histórico, é um erro que advém de nosso incansável e teimoso

antropocentrismo. Acreditamos dominar e conhecer o real, enfiando-o à força em

nossos moldes explicativos.

7 Complementando os três elementos que compõem a tópica formulada em 1953 por Lacan, o Imaginário

(termo utilizado a partir de 1936) não seria um simples fato psíquico, mas uma imago, ou seja, um

conjunto de representações inconscientes que aparecem sob a forma mental de um processo mais geral; o

lugar das ilusões do eu, onde se situam todos os fenômenos ligados à construção do eu (Roudinesco e

Plon, 1998: 371; 645). O Simbólico (termo igualmente utilizado a partir de 1936), também inseparável

dos conceitos de Imaginário e de Real, é um sistema de representação baseado na linguagem, isto é, em

signos e significações que determinam o sujeito à sua revelia; designa a ordem (ou função simbólica) a

que o sujeito está ligado (id., ibid.: 714). A preponderância de um dos termos sobre os outros variará no

decorrer da trajetória teórica de Lacan.

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Nossos moldes são pobres, porque cinzento é o processo de tornar cinza a

colorida multiplicidade do real, a riqueza de possibilidades que ele nos apresenta.

Como um pintor deprimido, pintamos um céu chuvoso e nebuloso através de

nossa lógica formal, acreditando que estamos sendo precisos e límpidos na análise.

A nebulosidade do real é outra. É composta de forças em relação que se chocam

a todo tempo como os átomos que compõem toda a matéria, orgânica ou inorgânica

(alguém já parou para pensar que somos primos das mesas e das pedras, porque com

elas compartilhamos as unidades elementares da matéria?).

Tentemos ser um pouco mais humildes, para quem sabe ―entendermos alguma

coisa do que se passa no cotidiano‖.

―São os novos conhecimentos biológicos, físicos e cósmicos que nos

indicam que o humano não é apenas o resultado de uma evolução

biológica. De um lado, ele traz consigo as irmãs-mães dos primeiros

seres celulares, surgidos talvez há três bilhões de anos; do outro, suas

células são constituídas de macromoléculas, constituídas de átomos,

entre eles o carbono, ele próprio produzido pela colusão entre três

núcleos de hélio num Sol anterior ao nosso; e as partículas constitutivas

desses átomos nasceram nos primórdios do Universo. Isso significa que,

em nossa singularidade humana, trazemos conosco toda a história do

Universo, com suas características físicas, químicas, biológicas. Somos

filhos do Universo. Mas, ao mesmo tempo, somos separados por nossa

cultura, nossa mente e nossa consciência‖ (Morin, 2010: 207).

A FÁBULA DA SERPENTE

―Uma fábula oriental conta a história de um homem em cuja boca,

enquanto ele dormia, entrou uma serpente. A serpente chegou ao seu

estômago, onde se alojou e de onde passou a impor ao homem a sua

vontade, privando-o assim da liberdade. O homem estava à mercê da

serpente: já não se pertencia. Até que uma manhã o homem sente que a

serpente havia partido e que era livre de novo. Então dá-se conta de que

não sabe o que fazer da sua liberdade: no longo período de domínio

absoluto da serpente, ele se habituara de tal maneira a submeter à

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vontade dela a sua vontade, ao desejos dela os seus desejos e aos

impulsos dela os seus impulsos, que havia perdido a capacidade de

desejar, de tender para qualquer coisa e de agir autonomamente.[...] Em

vez de liberdade ele encontrara o vazio [porque] junto com a serpente

saíra a sua nova ‗essência‘, adquirida no cativeiro, e não lhe restava

mais do que reconquistar pouco a pouco o antigo conteúdo humano de

sua vida‖ (Basaglia, 2001:132; fábula relatada por Jurij Davydov em Il

lavoro e la libertà. Torino: Einaudi, , 1966, trad. V. Strada).

Basaglia utilizou essa fábula para se referir ao processo de institucionalização

por que passam as pessoas que experimentam longas internações em hospitais

psiquiátricos.

A serpente simboliza a institucionalização, a mortificação do eu. Quando ela se

abstém e desaparece, a sensação de vazio é intensa, um profundo não saber se combina

com o pavor de viver, de dar qualquer passo no escuro.

Esse é o drama por que passam as pessoas que vivem um processo de

desinstitucionalização. Os primeiros momentos são aterrorizantes, mas também vividos

com intenso prazer, já que a riqueza da experiência e a colorida multiplicidade do real

ofuscam os olhos como aqueles repentinos clarões de luz. Depois, a descoberta do real

vai sendo um desafio cheio de sabor, temperado com excelentes especiarias. A vida vai

sendo construída, o risco passa a ser um cotidiano de riqueza e transformação.

Ora, não é que a mesma serpente habita também os que cuidam dos internos?

Pare e olhe para dentro de si, você não está enxergando a serpente? Faz tempo que você

não olha para si mesmo, então tente de novo. Você verá que é a mesma serpente que

habita os internos de hospitais psiquiátricos. Ela domina você, ela é o seu paradigma, e

você é escravo dela.

Quero lhe propor uma coisa: não espere que ela se abstenha. Pegue um veneno e

tome até a última gota. Depois, vomite a serpente. Vomite com força, com toda a sua

força. Pense num figo quando é aberto com todos os nossos dedos, a partir de sua parte

mais bojuda. É assim que devem agir seus músculos internos, músculos lisos, músculos

dos órgãos: eles devem virar do avesso. Vomite com força e sem medo.

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É possível que haja descontroles: sua homeostase vai entrar em pane, sua

glicemia se alterará, a pressão sanguínea e o controle eletrolítico também. Os neurônios

vão se perder, as sinapses deixarão de fazer um diálogo liso entre elas, é possível que

você até tenha movimentos involuntários, convulsões, dores de cabeça e enjoo. Mas não

tema, lembre que os internos de hospitais já viveram séries de eletrochoques e de

choques insulínicos, e muitos deles sobreviveram.

Não tenha medo de ver a serpente. Ela sairá despedaçada e não oferecerá risco.

Você sentirá o vazio, o mal-estar, mas logo seu corpo se harmonizará, e as taxas se

equilibrarão. Mas, fique atento, pois um excesso de harmonia pode significar o

crescimento de uma nova serpente. Às vezes ela se porta como a lombriga: vai

crescendo de mansinho, na paz, como se tudo estivesse bem, até que se revela e é

necessário assassiná-la e expulsá-la.

Dizem que quem não espanta a serpente passa a assumir a aparência dela: torna-

se pálido, viscoso, de cabeça pequena e corpo sem membros. Expulse a serpente sempre

que ela crescer, e desconstrua-se, desinstitucionalize-se, para que nenhum paradigma o

domine e empalideça sua existência.

Essa é a sugestão deste trabalho, que pretende mostrar como as serpentes saíram

de alguns ex-usuários e ex-profissionais do Hospital Anchieta, e como foi o processo de

construção no tempo de um novo corpo biológico e social.

A COMPLEXIDADE ENGOLE A SIMPLIFICAÇÃO

Como numa luta entre dragões que cospem fogo, a complexidade vencerá a

simplificação, se é que podemos crer que o mundo resistirá à tecnociência e ao capital.

Aos poucos, a ciência cartesiana vai sendo obrigada a enxergar a si própria, a

sair de sua cegueira, uma cegueira que produz suas próprias alucinações.

Desde que o observador de laboratório com seus instrumentos desconcertou-se

com o fato de a partícula se apresentar tanto como onda quanto como corpúsculo, a

ciência cartesiana viu-se obrigada a se ater ao fato de as coisas serem elas mesmas e

outras coisas ao mesmo tempo (Morin, 1996; Prigogine, Stengers, 1984). Profanado o

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princípio cartesiano do terceiro excluído, a ciência perdeu o chão, embora talvez tenha

percebido que na verdade o encontrou pela primeira vez.

Assim como noutras épocas da história, desde a descoberta de que a Terra não

era o centro do universo, esse foi um grande golpe em nosso antropocentrismo (Arendt,

2001).

Achávamos que tudo sabíamos e que a ciência positiva, com seu compadre, o

capital, estaria infalivelmente no controle do mundo.

Hoje sabemos que não é bem assim, embora boa parte dos cientistas continue a

negar o fato e a praticar a destruição da natureza como a expressão de seu recalque,

como um sintoma por ter relegado ao inconsciente tão dolorida ferida.

Mas boa parte deles também renasceu com as novas descobertas da ciência

cartesiana, que descobriu sua própria superação. Estes perceberam que a história, muito

antes de acabar, está apenas começando, e que a multiplicidade do real e do humano

está a mostrar sua silhueta, de longe, de forma borrada.

É por isso que pessoas como Morin têm defendido a recursividade e o diálogo

como princípio do conhecimento.

A multiplicidade de elementos que compõem o real nos convida a enriquecer e

multiplicar nossos instrumentos de diálogo.

A razão instrumental da tecnociência e a lógica formal compõem apenas um

pequeno pedaço da parafernália necessária para esse diálogo com a enormidade do

mundo.

É necessário estar entre o sensível e o inteligível (Lévi-Strauss, 1991) para poder

escutar a polifonia das vozes, é fundamental perceber o macro no micro, o micro no

macro, pensar que o todo contém a parte e a parte traz consigo o todo.

É necessário recuperar e integrar ou fundir o conhecimento há séculos produzido

pela literatura, pela arte e pela espiritualidade, para que não sucumbamos ao pessimismo

da razão. A razão, essa moça pálida que precisa de sol, deve poder dialogar com as

outras razões que sempre desprezou.

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UM PARADIGMA APROPRIADO PARA LIDAR COM A EXPERIÊNCIA

A experiência, em seu valor, exige estratégias de investigação à sua altura.

Percebe a experiência aquele que não é submetido à lógica do experimento, ao suposto

controle absoluto de todas as variáveis:

―No compartir a experiência, trata-se mais de uma heterologia do que

de uma homologia, ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que

funciona heterologicamente do que de uma dialogia que funciona

homologicamente. Se o experimento é repetível, a experiência é

irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. Se o experimento é

preditível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de

incerteza que não pode ser reduzida‖ (Bondiá, 2002: 28).

Um novo paradigma é necessário. Mas o que seria esse novo paradigma? Edgar

Morin propõe a seguinte formulação para o termo paradigma: é aquilo que ―contém,

para todos os discursos que se realizam sob o seu domínio, os conceitos fundamentais

ou as categorias mestras de inteligibilidade, ao mesmo tempo que o tipo de relações

lógicas de atração/repulsão (conjunção, disjunção, implicação ou outras) entre estes

conceitos e categorias‖ (Morin, 2002: 261). Os indivíduos agem, conhecem, pensam

conforme os paradigmas inscritos culturalmente. O Ocidente possui um grande

paradigma, formulado por Descartes no século XVII. Esse paradigma separa o sujeito

do objeto, a filosofia da pesquisa reflexiva, a ciência da pesquisa objetiva. Essa

dissociação se prolonga, atravessando o universo: sujeito-objeto; alma-corpo; espírito-

matéria; qualidade-quantidade; finalidade-causalidade; sentimento-razão; liberdade-

determinismo; existência-essência (id., ibid.: 270). O paradigma do Ocidente tem seus

conceitos soberanos e prescreve a relação lógica, operando por disjunção. Permeia nele

uma dupla visão de mundo: um mundo dos objetos submetidos a observações e

experimentações, e um mundo dos sujeitos que se colocam problemas existenciais, de

comunicação, de destino.

Do ponto de vista da ciência, o homem é um objeto pequeno perto do universo;

mas do ponto de vista prático, dá a ele poder e potência que lhe permitem domesticar e

arrasar o seu próprio universo. A ciência, que se separou da filosofia no século XVII

(separação do juízo de valor dos juízos de fato e das teorias), seguirá uma dialógica

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entre a imaginação teórica (racionalismo) e o empirismo que subordina tudo aos fatos.

Obedecerá a um paradigma da simplificação, a uma visão determinista do universo. Eis

então algumas características da ciência clássica: expulsão dos acasos e das desordens

como epifenômenos ou efeitos da ignorância; simplicidade e fixidez; inércia da matéria

submetida à especialização e geometrização do conhecimento; isolamento do objeto em

relação ao seu ambiente e ao seu observador; inteligibilidade cartesiana (o que não pode

ser dito claramente deve ser excluído, silenciado); exclusão do não mensurável, não

qualificável, não formalizável; redução da verdade científica à verdade matemática,

reduzida à ordem lógica (id., ibid.: 275-6). Eliminam-se assim da ―verdadeira‖ realidade

todos os ingredientes de complexidade do real (sujeito, existência, desordem, acasos,

qualidades, solidariedades, autonomias). Procede-se a uma visão por vezes atomística

(que só vê unidades elementares) e/ou mecânica (só vê uma ordem determinista

simples). A partir do século XVII surge a engrenagem ciência/técnica (a

experimentação/verificação controlada). A tecnociência, em dois séculos, sai da

periferia e vai para o coração da sociedade, da indústria, do Estado (id., ibid.: 279-80).

A especialização viraria hiperespecialização (experts, tecnocratas). Entraria em cena a

tecnologização e a racionalização econômica e social (burocracia). A tecnociência e a

sociedade se apoderariam e transformariam uma à outra, numa recursividade

ciência/técnica/sociedade.

Embora em toda parte sejamos impelidos a considerar, não objetos fechados e

isolados, mas sistemas organizados em relação co-organizadora com seu ambiente, e o

paradigma clássico tenha deixado de ser operacional há 50 anos, as consequências disso

continuam a ser ignoradas (id., ibid.: 288). Apesar de se falar em interdisciplinaridade, o

princípio da disjunção continua a separar às cegas. A hiperespecialização, as visões

unidimensionais mutilantes, começam a revelar seus efeitos destrutivos relativos ao

homem, à sociedade, à guerra, à biosfera. A tomada de consciência continua limitada,

fragmentada. Seria necessária uma reforma em cadeia do entendimento, associada a

uma revolução paradigmática. Uma revolução paradigmática ataca enormes evidências,

lesa enormes interesses, suscita enormes resistências (id., ibid.: 285-90). Então, é

necessário compreender a realidade de maneira dialógica para conceber a complexidade

do real, usando as contradições e a incerteza. É necessário ―agir com‖ a contradição,

servir-se dela para reativar e complexificar o pensamento. Tratar, interrogar, eliminar,

salvaguardar as contradições (id., ibid.: 242). Criar princípios e regras que estejam

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vinculados a um paradigma da complexidade, para usar a lógica, sem se subjugar a ela.

A dialógica não supera as contradições, mas enfrenta-as e integra-as no pensamento,

porque elas são insuperáveis e vitais. A verdadeira racionalidade reconhece os seus

limites e é capaz de tratá-los (utilizando metapontos de vista) e superá-los, mesmo

reconhecendo um além irracionalizável. Tudo isso leva ao reaparecimento do sujeito nas

relações do conhecimento, sem o que se iria ao absurdo total da racionalização total (id.,

ibid.: 250) (todas essas afirmações estão presentes em O método 4: As ideias, hábitat,

vida, costumes, organização).

―A extrema nitidez, a clareza e a certeza só se adquirem à custa de

imenso sacrifício: a perda da visão de conjunto‖ (Einstein, 1981: 139).

O SUJEITO RETORNA AO CAMPO DO CONHECIMENTO

É por esse motivo que considero legítima e adequada a forma como vou captar e

analisar os dados desta pesquisa. O sujeito faz parte do contexto, interfere, se lambuza

nos fluidos do contexto. Como diz Morin,

―discutiu-se muito sobre o sentido e o alcance das relações de incerteza

de Heisenberg. Estas equivalem a admitir que, a um certo nível radical,

o observador já não pode dissociar-se da sua observação: entra nela e

perturba-a‖ (Morin, 2010a: 46).

Ou, como diz o relatório da Comissão Gulbenkian para a Reestruturação das

Ciências Sociais (1996: 110): ―Não se pode nunca apartar o/a cientista do seu contexto

físico e social concreto. Toda a medição altera a realidade na tentativa mesma de a

medir‖.

É por isso que é necessário fazer uma observação da observação, ou seja,

analisar e considerar como parte do fenômeno o tipo de observador e a observação em

desenvolvimento, seu contexto, as relações de poder/saber implícitas em tais processos.

Porque,

―o ‗eu‘ de que se trata é o ‗eu‘ inquieto e modesto daquele que pensa

que o seu ponto de vista é necessariamente parcial e relativo. A

reintrodução do eu não é mais do que a reintrodução autorreflexiva e

autocrítica do sujeito no conhecimento. Este argumento é igualmente

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válido para a sociologia: quem sou eu, que falo das classes sociais?

Qual é este trono do alto do qual eu as considero? Porque, enfim,

ninguém dispõe de tal trono, nem sequer o catedrático de uma

universidade. Assim, a questão do sujeito surge de todos os lados e, a

meu ver, já não é possível ocultá-la ou iludi-la‖ (Morin, 2010a: 47).

―O objeto do conhecimento é coproduzido por nossas projeções mentais

sobre uma realidade exterior e pela introdução, via tradução e

reconstrução, dessa realidade exterior em nossa mente‖ (Morin, 2010:

243-4).

Não devo negar, mas considerar e valorizar minhas impressões nos relatos da

experiência que se seguirão. Não há como negar que somos coprodutores da realidade e,

dessa forma, para ser mais realistas, devemos considerar nossa participação nessa

construção:

―A relação entre o pensamento e a realidade à qual ele se refere é, de

fato, muito mais complexa do que a de uma mera correspondência.

Assim, na pesquisa científica, boa parte do nosso pensamento está

assentada em termos de teorias. A palavra ‗teoria‘ deriva do grego

theoria, que tem, assim como a palavra ‗teatro‘, a mesma raiz numa

palavra que significa ‗observar‘ ou ‗fazer um espetáculo‘. Assim,

poder-se-ia dizer que uma teoria é, basicamente, uma forma de insight

(ou introvisão), ou seja, um modo de olhar para o mundo, e não uma

forma de conhecimento de como ele é‖ (Bohm, 1992: 22).

SUPERAÇÃO DA RAZÃO FECHADA E EXERCÍCIO DA RAZÃO ABERTA

Peço sua compreensão, pois será necessário recorrer a uma longa citação:

―a razão fechada rejeita como inassimiláveis fragmentos enormes de

realidade, que então se tornam a espuma das coisas, puras

contingências. Assim, foram rejeitados: o problema da relação sujeito-

objeto no conhecimento: a desordem, o acaso: o singular, o individual

(que a generalidade abstrata esmaga): a existência e o ser, resíduos

irracionalizáveis. Tudo o que não está submetido ao estrito princípio de

economia e de eficácia (assim, a festa, o poltlach, o dom, a destruição

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suntuária) são racionalizadas como formas balbuciantes e débeis da

economia, da troca. A poesia, a arte, que podem ser toleradas ou

mantidas como divertimento, não poderiam ter valor de conhecimento e

de verdade, e encontra-se rejeitado, bem entendido, tudo aquilo a que

chamamos trágico, sublime, irrisório, tudo o que é amor, dor, humor...

Só uma razão aberta pode e deve reconhecer o irracional (acaso,

desordens, aporias, brechas lógicas) e trabalhar com o irracional: a

razão aberta não é a rejeição, mas o diálogo com o irracional. A razão

aberta pode e deve reconhecer o a-racional. Pierre Auger observou que

não nos podíamos limitar ao díptico racional-irracional. Há que

acrescentar o a-racional: o ser e a existência não são nem absurdos nem

racionais: são. Pode e deve reconhecer igualmente o sobrerracional

(Bachelard). Sem dúvida, toda a criação e toda a invenção comportam

alguma coisa deste sobrerracional, que a racionalidade pode

eventualmente compreender depois da criação, mas nunca antes. Pode e

deve reconhecer que há fenômenos simultaneamente irracionais,

racionais, a-racionais, sobrerracionais, como talvez o amor... Por aí,

uma razão aberta torna-se o único modo de comunicação entre o

racional, o a-racional, o irracional‖ (Morin, 2010a : 213).

Acrescentaria, com prudência, que, para exercitar uma razão aberta, o sujeito

teria de mergulhar nas profundezas de seu eu (que é formado por vários ―eus‖, uma vez

que o laço social é o grande produtor de subjetividades), mantendo-se alimentado por

uma intensa permeabilidade com os outros seres vivos e com a natureza.

Essa permeabilidade, responsável por nossa múltipla subjetividade, é a condição

de um devir permanente e rico, que produz sentido a cada passo. Ou seja, mais que um

desorganizador geral da estrutura, do sistema e do organismo, esse devir seria a

possibilidade de construir permanentemente novos sentidos para a existência, sentidos

que estariam repletos de novas produções sociais, novos valores, novos conhecimentos,

novas práticas, novas formas de estar no mundo.

Digamos que esse processo de viver o devir e a contingência, produzindo novos

sentidos e tentando, ao menos por instantes, produzir sentido no caos, seja o mesmo que

desinstitucionalizar (Nicácio,1990, 2003; Rotelli et al., 1990), se entendermos por isso o

processo permanente de desconstrução e construção de novos parâmetros existenciais,

novos valores, novos coletivos e novas subjetividades. Dessa forma, a multiplicidade da

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subjetividade e do real estaria em constante movimento, substituindo a miserável e

autoritária máquina de produção capitalista, que se baseia num eu e num tu, no sujeito e

no objeto, e nunca num nós, num nós que é único e singular a cada momento, e que só

podemos viver se exercitarmos a razão aberta. Uma racionalidade aberta seria a

condição para dialogar com aqueles que são considerados incompreensíveis e fechados.

Poderíamos convencer os que são vistos como autistas a abrir seus escudos e armaduras

para dialogar com uma nova racionalidade aberta. Provavelmente só teremos chance de

compreender tais pessoas se nos mantivermos em nossa condição aberta: sua aparente

incapacidade de comunicação é nossa incapacidade de nos fazermos entender. Sem uma

racionalidade aberta, toda alteridade torna-se degradação, doença, negatividade e

incapacidade. Só dialogaremos com os loucos e os autistas quando superarmos nosso

próprio autismo, nossa racionalidade fechada.

Como diz Saraceno (s.d.), ao problematizar o excesso de identidade como algo

totalizador, inibidor do sujeito e imune a todos os riscos e transformações,

―Una primera etapa de la utopía debe ser la del reconocimiento, sin

indecisiones ni excepciones, de que cada hombre y mujer es ‗productor

de sentido‘. Etapa más ambiciosa deberá ser la de reconecer, y actuar en

consecuencia, que los millones de hombres y mujeres cuya producción

de sentido está limitada, bloqueada, aniquilada, negada, no están em

dicha condición por ser enfermos mentales o por estar en terribles

situaciones de sufrimiento psicosocial, sino essencialmente por falta de

respuesta adecuada a sus enfermedades o a sus sufrimientos

psicosociales. En otras palabras, no es la discapacidad resultante de

condiciones de enfermedad o de sufrimiento psicosocial la que quita

sentido a los seres humanos sino una decisión discriminatória tomada

por otros. Una decisión que define la producción de sentidos ajenos a la

razón dominante como ‗ausencia de sentido‘‖ (Saraceno, s.d.: 11-2).

DESINSTITUCIONALIZAÇÃO E COMPLEXIDADE

A noção de desinstitucionalização como desconstrução de práticas, saberes,

normas, leis e valores é sincrônica à ideia de complexidade. A mudança do objeto da

psiquiatria, que de doença se transforma numa experiência existencial de sofrimento

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singular mergulhada num mar revolto de relações sociais (relações que, através das

respostas que dá ao sofrimento, coproduzem o seu percurso), abre um leque formidável

de possibilidades e probabilidades de transformação de todos os atores em relação.

Rotelli (1994) afirma que a desinstitucionalização denuncia e se opõe à

necessidade de se conter no simples o complexo desigual, violentando-o no âmbito do

saber, das regras e das práticas (id., ibid.: 58-9). A desinstitucionalização opera uma

ruptura da contenção e produz regras instáveis, portas abertas, cruzamento e circulação

de conhecimentos múltiplos que podem liberar os conflitos. Um processo de

desestabilização que pode criar as condições para o desenvolvimento de uma crítica

prática, de experiências de subjetivação e de multiplicação de papéis, saída da inércia

subjetiva e institucional, reapropriação emocionante da riqueza singular de atores que

podem viver o jogo das trocas coletivas. Porque o que está em jogo na

desinstitucionalização não é o manicômio, mas a doença, não é a instituição, mas o

objeto da psiquiatria, aquele fenômeno produzido institucionalmente através dos saberes

simplificados da nosografia psiquiátrica. As respostas institucionais do paradigma

psiquiátrico tradicional, adequadas à noção de doença, não são apropriadas ao novo

objeto, qual seja a ―existência-sofrimento em sua relação com o corpo social‖ (Rotelli,

1990). São tão pouco adequadas como seria um metro para medir um líquido, uma lente

para ver toda a galáxia, ou uma caixa para conter um rio (Rotelli, 1994: 61). O problema

se tornará não a doença, mas a emancipação; não a restituição da saúde, mas a invenção

de saúde; não a reparação, mas a reprodução social, processos de singularização e

ressingularização. O desafio é desinstitucionalizar as cenas que geram a violência e a

exclusão, fazendo borbulhar possibilidades novas (id., ibid.: 62). Complexidade do

objeto, mutação do paradigma, projetos de transformação que produzam novos

conhecimentos, a partir da prática viva, do diálogo mais imprevisto e singular, da

assunção de riscos, da mudança de valores, da polifonia de identidades, da produção de

vida. Pois sim, a desinstitucionalização e a complexidade são partes de um mesmo

processo, uma retroalimenta a outra. A desinstitucionalização vai tornando o fenômeno

complexo e o ato de tornar complexo vai produzindo novas ―instituições de

desinstitucionalização‖.

Meu esforço é tornar claro ao leitor que o campo discursivo desta pesquisa, seu

pano de fundo, é o cruzamento e a implicação entre os conceitos de

desinstitucionalização e de complexidade que, para mim, são faces, perfis, de uma

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mesma construção, de um mesmo campo de forças e de conhecimentos, um mesmo

paradigma de múltiplas vozes que tenta enriquecer as modalidades de razão, permitindo

um novo diálogo enriquecedor com a experiência do sofrimento psíquico.

Espero ter sucesso nessa minha empreitada.

AS MICRORRELAÇÕES DO COTIDIANO COMO OBJETO DE ESTUDO

Caminhando passo a passo em sua complexidade, o cotidiano se impõe como o

lócus e o tempo de conhecimento dos processos a serem conhecidos. E é de um certo

cotidiano que falarei neste trabalho.

O cotidiano é o lugar do senso comum. O senso comum não é aquilo que é

menos valorizado, superficial, não verdadeiro, mas aquilo que é compartilhado

(Martins, 2000: 59), um espaço de produção de valores e conhecimentos que se move

como uma mistura de terra firme com areia movediça. Pois o cotidiano não é só

repetição, mas também criação, desvio. Porque a repetição do cotidiano carrega o germe

de sua ruptura.

Como Certeau (2007), também enxergo o cotidiano como um ―terreno de

movimentos espumosos‖, algo que traz o mistério e a enormidade do real em suas

entranhas e, por isso, como o lugar do complexo, onde podemos tanto enxergar só

futilidades como ver múltiplas facetas da realidade, dependendo do ponto de vista, do

contexto, das micro e macrorrelações de poder, dependendo do dia e hora, do lugar, de

meu espírito e humor, ou seja, de onde e para onde foco minha atenção, meu olhar e

minha imaginação.

Afinal, como diz Pais,

―não corresponde o ato de mostrar a um processo de centração

(atenção) do olhar que implica uma descentração (desatenção)

relativamente ao que circunda o centro da atenção? Enfim, porque é

sempre parcial, não é verdade que o conhecimento arrasta sempre,

como a sua sombra, o desconhecido?‖ (Pais, 2003: 27).

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Podemos então, como afirma esse mesmo autor (ibid.: 26), referindo-se a

Simmel, enxergar ―o típico enfatizado no particular; o normal, no acidental; o essencial

ou significante, no que parece superficial ou fugaz‖.

Tratar-se-ia então, no que se refere a um método de investigação focado no

cotidiano, de fortalecer e pôr para funcionar uma nova lógica da descoberta, ao invés de

uma lógica da demonstração, tão comum aos experimentos do método cartesiano.

O método seria um caminho não definível a priori, seria uma estratégia de

diálogo com os fenômenos que implica escutar, ter paciência, tentar ampliar o olhar,

olhando do centro para a periferia e da periferia para o centro, tendo em mente sempre

que isso possui um limite, pois o real é maior do que nosso felino olhar pode captar.

O método seria então um dialogar, um juntar, um refletir, um analisar, um

enriquecer, um ato de humildade, um ato de honestidade, um deixar-se ser tomado pela

experiência, aquilo que, se estivermos desarmados, pode nos oferecer uma participação

sem igual, pode nos transformar, ou nos levar a nos autotransformar.

E, é claro, porque somos formados por laços sociais, se nos transformamos,

também as pessoas envolvidas conosco, de alguma forma, toda a humanidade, se

transforma. Pois não há ação sem consequências mundiais, e até cósmicas. Porque nossa

rede invisível há muito tempo deixou de ser chamada de espiritualidade, para ser

considerada algo da genética do mundo, portanto, algo biológico. Porque o biológico

está no social e vice-versa, tudo está interligado.

FUGAZ POTENTE

Como disse anteriormente, o cotidiano pode ser confundido com a rotina perene

e repetitiva do dia a dia. Pode ser desenhado como um dia a dia automático, sempre

igual, imutável e muitas vezes de durabilidade eterna, como à primeira vista parece ser a

eternidade de um dia de trabalho numa esteira fordista de fábrica, cujos movimentos

repetitivos e aparentemente idênticos, marcados por um ritmo sempre igual, produzem

aquele torpor que caracteriza o homem automático.

Mas é na lida do cotidiano que o desigual invisível se coloca como

possibilidade no igual visível.

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Os fluxos de identidade carregam consigo os fluxos da metamorfose. O sempre

igual carrega consigo as forças da ruptura.

Essas forças, para ser percebidas, exigem certo desprendimento e flexibilidade

do observador. Este tem que perceber no detalhe aquilo que compõe o todo.

O todo contém a parte e a parte contém o todo. O pedacinho de tecido humano

carrega consigo o DNA comum a todas as células. O sol contém a chuva que provocará;

a água da chuva se apresenta como vapor ou como gelo, quando não está se

apresentando tracejada como pequenos riscos de lápis desenhados no céu.

Além disso, há a transitoriedade.

O transitório fugaz é potente, pois ele contém o eterno. É no transitório que se

nos apresentam aspectos que nos fazem entrar em contato com o real.

Porque o mundo é marcado pela contingência, embora isso possa provocar certa

insegurança, o contrário da ―segurança ontológica‖ ou da ―confiança básica‖ de

Giddens8.

Conhecer o mundo talvez seja conhecer os acontecimentos fugazes e

transitórios, que, através das relações das forças, dão sentido aos tempos e aos lugares.

O conhecimento, obviamente, só pode ser produzido pelo observador sensível e

pensante. É por isso que um dos elementos fundamentais a serem considerado no estudo

dos fenômenos é o observador, bem como o seu ponto de vista, o tempo e o lugar que

ocupa.

8 Anthony Giddens (1991) se refere a um conceito de Erik Erikson para fazer sua reflexão sobre a

subjetividade na modernidade. A ―confiança básica‖, termo que também pode ser associado à ideia de

―espaço potencial‖ de Winnicott (1975), diz respeito ao processo pelo qual a subjetividade é formada,

desde a tenra idade, com a mediação das figuras adultas que apresentam o mundo à criança. A sensação

de segurança para a descoberta do mundo é construída de forma gradual, de modo que a criança, que

inicialmente não se diferencia do mundo nem de seu cuidador, pode ir se diferenciando sem sucumbir à

angústia da desintegração do eu, sem ter a sensação de que as pessoas importantes ou o que está fora

deixa de existir quando não está fisicamente à sua frente. Acredito que a confiança básica, mais que um

dispositivo que finca uma identidade petrificada, é a segurança necessária de que uma identidade em

permanente transformação deve lançar mão para não correr o risco de se sentir em processo de não

existência.

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É sobre uma base comum e aparentemente fixa de elementos, que o observador

usa sua criatividade para produzir a realidade. Ele esculpe sobre a fugacidade potente do

real.

A AÇÃO NÃO TEM PREVISÃO

Como diria Hannah Arendt, a dimensão da ação e do discurso não garante a

previsibilidade do acontecer. Sabemos como começamos, mas não podemos ter ideia de

para onde vai o processo incontrolável da ação. Ação, aqui, como um metabolismo com

a natureza, de caráter político, porque relacional entre pessoas, que produz um

reorganizar das energias, uma reestruturação da matéria a partir da relação de suas

partículas elementares.

A ação (Arendt, 2001), o acontecimento, a experiência, não permitem definir

seu itinerário. É como o jogo de futebol onde a pior equipe pode vencer de lavada a

equipe campeã. E isso dá muita esperança àqueles que só veem nos despossuídos, pelo

status social e pelo poder econômico, simples marionetes dos poderosos, ou simples

vazios abandonados.

Talvez, numa visão mais foucaultiana do poder, possamos considerar que o

poder está em toda parte, e que basta focar maleável e eficientemente nosso microscópio

para enxergar parte da infinidade de fluxos energéticos que compõem as mais simples

relações de poder.

O bebê que chora não é só alguém que tem fome, mas um ser que exerce seu

poder sobre a mãe mesmo sem ainda perceber que é um ser próprio, mesmo achando

que ele é o mundo e vice-versa.

O poder fluido, ao contrário do poder-dominação, que é a cristalização de

relações de poder, que passam a estagnar e a representar processos mortificantes, é a

esperança daqueles que querem viver em paz, livres e ricos, com a multiplicidade

colorida da subjetividade e do real.

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O PERCURSO CARTOGRÁFICO

Há ainda a cartografia, o processo de perseguir os fenômenos da experiência de

forma totalmente disponível e aberta, sem determinar o percurso de antemão

(acompanhar processos em vez de fazer decalques ou fotografias que representem a

realidade, uma vez que esta é produzida).

Fazer mapas de lugares que a todo momento se modificam, como se o

observador visse seu objeto transformado depois do intervalo que fez para ir ao

banheiro, exige uma disciplina criativa e de observação maleável, louca, muito

irracional, se pensarmos na lógica formal.

Perseguir os fenômenos como um obsessivo caçador de si mesmo, mas um

caçador um pouco menos neurótico, que fica feliz ao saber que o todo é muito maior do

que o que pode ser capturado.

―A Cartografia como método de pesquisa-intervenção pressupõe uma

orientação do trabalho do pesquisador que não se faz de modo

prescritivo, por regras já prontas nem com objetivos previamente

estabelecidos. No entanto, não se trata de uma ação sem direção, já que

a cartografia reverte o sentido tradicional de método sem abrir mão da

orientação do percurso da pesquisa. O desafio é o de realizar uma

reversão do sentido tradicional de método – não mais um caminhar para

alcançar metas pré-fixadas (metá-hódos), mas o primado do caminhar

que traça, no percurso, suas metas. A reversão, então, afirma um hódos-

metá. A diretriz cartográfica se faz por pistas que orientam o percurso

da pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar

sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados‖ (Passos,

Kastrup, Escossia, 2009: 17).

Um pesquisador feliz e ao mesmo tempo inconformado pode desenvolver um

grande processo de pesquisa. Ele precisará estar atento, assim como ficam os cachorros

com seus ouvidos bem esticados, atentos a cada detalhe. Estes não se cansam de

capturar e tentar identificar sons diferentes, e sempre estão lá, hiperatentos e querendo

saber o que se passa. Um cachorro tranquilo, no entanto, pois quando se cansa de querer

saber, apenas senta, para, relaxa, sente o som e o vento que o traz, e desiste de saber

tudo sobre os sons, porque as escalas são infinitas.

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Na grande pesquisa, é possível descascar algumas faixas da realidade, dando-

lhes sentido com nossa imaginação, sem ter a pretensão de chegar ao núcleo ou à

essência do fenômeno, pois este não existe, ou melhor, ele é o que desejamos eleger que

seja, conforme nossos humores e as relações de poder de nosso tempo, e conforme a

organização do movimento interativo de suas infinitas partículas.

A pesquisa é sempre uma intervenção; uma ação que mobiliza fluxos de poder

cuja potência transformadora geralmente se encontra nos interstícios das estruturas, dos

papéis sociais, das hierarquias. A pesquisa muda o objeto, o pesquisador e o próprio

conhecimento, pois o diálogo determina o movimento metamorfoseante da

territorialização de papéis; uma minúscula, escondida e insignificante partícula, a partir

de uma intervenção, pode tornar-se o potente tsunami instituinte da vez; esse é o

processo que a pesquisa possibilita acompanhar, produzindo sempre novas realidades.

Uma pesquisa é também feita de conceitos. O conceito é absoluto e relativo,

efêmero e duradouro.

―É absoluto como todo, mas relativo enquanto fragmentário. É infinito

por seu sobrevoo ou sua velocidade, mas finito por seu movimento que

traça o contorno dos componentes. Um filósofo não para de remanejar

seus conceitos, e mesmo de mudá-los; basta às vezes um ponto de

detalhe que se avoluma, e produz uma nova condensação, acrescenta ou

retira componentes. O filósofo apresenta às vezes uma amnésia que faz

dele quase um doente: Nietzsche, diz Jaspers, ‗corrigia ele mesmo suas

ideias, para constituir novas, sem confessá-lo explicitamente; em seus

estados de alteração, esquecia as conclusões às quais tinha chegado

anteriormente‘. Ou Leibniz: ‗eu acreditava entrar no porto, mas... fui

jogado novamente em pleno mar‘. O que porém permanece absoluto é a

maneira pela qual o conceito criado se põe nele mesmo e com outros‖

(Deleuze, Guattari, 1994: 34).

A CIÊNCIA ACEITA A ARTE? A ARTE ACEITA A CIÊNCIA?

―Num polo os literatos; no outro os cientistas e, como os mais

representativos, os físicos. Entre os dois, um abismo de incompreensão

mútua – algumas vezes (particularmente entre os jovens) hostilidade e

aversão, mas principalmente falta de compreensão. Cada um tem sua

imagem curiosamente distorcida do outro. Suas atitudes são tão

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diferentes que, mesmo ao nível da emoção, não encontram muito

terreno comum‖ (Snow, 1995: 21).

O autor escreveu isso em 1959, e fez uma retrospectiva de como essa

relação conflituosa foi se constituindo desde tempos anteriores à revolução

industrial, quando a tecnociência começa a tomar fôlego, totalmente à revelia e

sem o acompanhamento dos literatos, autoproclamados intelectuais, eruditos e

tradutores da epopeia humana.

Décadas depois, percebe-se o quanto esse fosso ampliou-se, fortalecendo

a ideia da existência de duas culturas.

Apenas recentemente se pôde identificar um esforço no sentido de

estabelecer a dialogia entre as duas culturas, a partir da ideia de que a literatura é

uma forma profunda e complexa de produção de conhecimento, e a ciência algo

que pode tornar-se rica e criativa, ao superar sua reclusão num mundo pálido

recheado de fórmulas e leis gerais.

O mundo das fórmulas pode contribuir para a riqueza do conhecimento

se deixar de lado sua intenção totalizadora. O mundo da literatura pode

contribuir mais ainda se conseguir deixar de ser uma das estrelas da indústria

cultural, onde tudo só tem valor se pode circular livremente como mercadoria a

ser consumida.

Essas disjunções estão bem representadas no espaço acadêmico, na

formação dos profissionais que executarão funções muito mais técnicas e muito

pouco filosóficas.

O paradigma cartesiano, no campo do ensino em saúde, por exemplo, é

aquele que trata das células, dos sistemas e das funções orgânicas como se elas

tivessem uma existência própria, independente da pessoa cultural e socialmente

constituída. Os elementos do corpo são os objetos de estudo, e não os sujeitos a

quem pertencem esses elementos, ou seja, os donos dos corpos.

É difícil crer, exatamente por isso, que uma célula tenha uma existência

puramente biológica e nada social. É difícil crer numa célula que não seja social,

e que não seja alvo das relações de poder. Os seres são cem por cento biológicos

e cem por cento culturais (Morin,2010: 205).

Foucault há tempos trouxe a ideia da produção dos corpos dóceis no

âmbito de uma sociedade disciplinar (Foucault, 2000, 2005).

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Embora estejamos num contexto contemporâneo de sociedade de

controle (Deleuze, 1992), com suas formas capilares e microscópicas de

vigilância e de controle, o processo de produção de corpos permanece, e estes

são muito mais desregulamentados (Bauman, 2003) e fluidos do que os corpos

duros que deveriam se adaptar às máquinas da revolução industrial e a seus

movimentos repetitivos.

A lógica cartesiana na educação ainda é formada por estratégias de

ensino que valorizam mais o imprinting (Morin, 2002), a cópia, do que a

computação ou a reflexão.

São comuns as explicações lineares, no percurso da relação causa-efeito,

que reproduzem ao final fórmulas que devem ser decoradas e guardadas por um

pequeno tempo na memória (já que o que não é utilizado tem uma tendência a

ser rapidamente descartado por ela), sem que o processo reflexivo encontre

lugar.

Essa forma de decoração reproduz uma pálida semelhança com o ofício

do ator de teatro, sem aquilo que dá mais vida a este último. Porque, ao decorar

o texto e atualizá-lo na interpretação, o ator produz outro texto, deixa o texto

invadir sua alma e transforma-o segundo suas motivações, o clima da peça

teatral, fazendo uma síntese das informações do texto com as questões subjetivas

vinculadas a sua experiência de vida, ao que está vivendo no momento etc. (o

pesquisador experimental vive a mesma situação quando reproduz as técnicas

em seu laboratório, só que não percebe).

Provavelmente o produto de uma educação cartesiana, mais que

―conhecimento‖ gerado por fórmulas, é uma determinada forma de pensar, de se

relacionar com as ideias, objetivando-as, plasmando-as, coisificando-as,

tornando-as pequenos objetos espalhados na grande estante da memória, muitas

vezes sem relação entre si.

O significado último dessa experiência de aprendizado talvez seja a

produção da disciplina, uma forma subalterna e submetida de relacionamento

com as ideias, que não podem ser questionadas nem transformadas.

Uma fórmula tem vida eterna e é fechada em si, não permitindo

interferência. Se é questionada, só pode sê-lo por outra fórmula, numa luta por

legitimidade. Uma fórmula não se mistura a outras, não se metamorfoseia, numa

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existência fechada em que ou é tudo (e por isso se basta), ou é nada, devendo

deixar de existir.

Voltamos assim à construção da disciplina através de um método

subalternizador, que produz os corpos dóceis e úteis de que falava Foucault. Mas

também permanecemos no registro da nova produção dos corpos

desregulamentados da sociedade de controle, que ainda se mantém aos auspícios

do cartesianismo (basta ver que as produções do tecnocientificismo, como as

câmeras de vídeo e os celulares, são os instrumentos que permitem este controle

mais flexível, capilarizado, dos corpos, que não depende apenas das instituições

duras e coercitivas dos tempos da sociedade disciplinar).

Podemos transpor a situação da biologia no espaço acadêmico para a da

sociologia.

A sociologia, desde Durkheim, sucumbiu à visão cartesiana, com o

intuito de ser legitimada como ciência séria, mais que apenas uma disciplina da

área das humanidades.

Essa guinada em direção ao cientificismo, quantitativo, linear, nutrindo o

mito da neutralidade do observador em relação ao objeto, dominou a sociologia

por muito tempo, até que alguns atores começassem a problematizar a questão,

lembrando que o mundo não é tão simples assim para ser explicado linearmente

por puras relações de causa-efeito (lembremos que a física foi a primeira

disciplina totalmente cartesiana a assumir a insuficiência da lógica dedutivo-

identitária cartesiana, quando foi formulado o princípio da incerteza).

Se a ciência insiste em seu autofechamento, como uma forma de se

autopreservar numa forma tautológica, a arte abandonou seu caráter estético-

reflexivo, tornando-se entretenimento, mercadoria a ser produzida em série.

É a sociedade do espetáculo:

―Por esse movimento essencial do espetáculo, que consiste em retomar

nele tudo o que existia na atividade humana em estado fluido, para

possuí-lo em estado coagulado, como coisas que se tornaram o valor

exclusivo em virtude da formulação pelo avesso do valor vivido, é que

reconhecemos nossa velha inimiga, a qual sabe tão bem, à primeira

vista, mostrar-se como algo trivial e fácil de compreender, mesmo

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sendo tão complexa e cheia de sutilezas metafísicas: a mercadoria‖

(Debord, 2000: 27).

Quando tenta preservar seu caráter erudito, a arte se mantém no espectro

da contemplação, da passividade, da coisificação, pois ainda se coagula como

mercadoria:

―O princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade

por ‗coisas suprassensíveis embora sensíveis‘, se realiza completamente

no espetáculo, no qual o mundo sensível é substituído por uma seleção

de imagens que existe acima dele, e que ao mesmo tempo se fez

reconhecer como o sensível por excelência‖ (id., ibid.: 28).

Haveremos de ver o momento em que ciência e arte se reencontrarão.

―Fechar o fosso entre nossas duas culturas é uma necessidade tanto no

sentido intelectual mais abstrato quanto no sentido mais prático.

Quando esses dois sentidos se desenvolvem separados, nenhuma

sociedade é capaz de pensar com sabedoria‖ (Snow, 1995: 72).

CHEGANDO A ESTA PESQUISA

O esforço dessas primeiras palavras consiste em trazer ao leitor o campo de

forças, o contexto, a base, as ferramentas que serão utilizadas neste estudo, e que

servem de método – já que é difícil conseguir palavra melhor – ou estratégia, para lidar

e dialogar com o fenômeno que será o objeto desta pesquisa.

Como todo objeto complexo, a experiência relatada e analisada atuará como um

sujeito no protagonista da pesquisa.

O pesquisador, no caso, faz parte da história do fenômeno analisado, e isso é tão

real como qualquer outra situação de pesquisa.

Trata-se apenas, neste caso, de assumir explicitamente que existe um viés de

envolvimento do pesquisador com o objeto da pesquisa, envolvimento inerente a

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qualquer estudo, muito embora se queira geralmente negar essas relações de

cumplicidade, como se elas denunciassem algum caráter menos científico ao estudo.

Então, como escrevi nos primeiros parágrafos, tratar-se-á de analisar um

processo dinâmico em que o observador faz parte do fato observado e, assim, tratar-se-á

também de analisar as próprias ações do observador, uma autocrítica implícita a um

processo cujos atores são um coletivo.

Convido-o a compartilhar comigo os fatos que serão narrados. Faça boa viagem!

―São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente.

Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço

se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que

nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar

experiências. [...] A narrativa que durante tanto tempo floresceu num

meio de artesão – no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num

certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está

interessada em transmitir o ‗puro em si‘ da coisa narrada como uma

informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador

para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca

do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. Os narradores

gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias

em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, a menos

que prefiram atribuir essa história a uma experiência autobiográfica‖

(Benjamin, 1996: 197-8; 205).

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AURORA

―Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição

(nossa maneira de pormos), nem a ‗o-posição‘ (nossa maneira de

opormos), nem a ‗imposição‘ (nossa maneira de impormos), nem a

‗proposição‘ (nossa maneira de propormos), mas a ‗exposição‘, nossa

maneira de ‗ex-pormos‘, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e

de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se

opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ‗ex-põe‘. É incapaz de

experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a

quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o

afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre‖ (Bondiá, 2002: 25).

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AURORA:

CARACTERÍSTICAS DOS PROJETOS DE TRABALHO

A EXPERIÊNCIA QUE ME TOCA

Do que vou falar é algo de especial. Especial porque singular e único. Especial

porque é experiência e não experimento e, por isso, não pode ser reproduzido nem

diminuído, simplificado, pasteurizado, embalsamado, perdendo sua vida, sua cor, sua

dor, seu cheiro, sua tensão, sua forma que envolve.

Se a experiência nos ensina, é porque ela exige que ativamente nos deixemos

envolver e afetar por ela, um tipo de passividade ativa que transforma e faz produzir

sentido. Uma paixão que acentua o caráter imanente e contingente da vida, com seu

processo contínuo de produzir sentido. Uma forma de não estar morto, mas de

contaminar-se com os fenômenos para deles aprender. Uma forma de saber que nos

torna mais vivos e sabidos, e que faz com que nos encontremos nos outros e na

natureza.

Essa é a estratégia do estudo, uma estratégia que não pode ser chamada de

método, porque correria o risco de ser dominada por regras que levassem à inexistência

de experiência.

É da singularidade da experiência, portanto, que nasce este relato e este saber,

esta intenção de produzir conhecimento a partir do que uma intervenção produziu.

Quem sofreu intervenção, o Hospital Anchieta, nós os profissionais, os internos, ou

ambos?

OS QUASE-HIPPIES

Entramos três jovens terapeutas ocupacionais recém-formados na sala do

interventor, para nos apresentar e iniciar o trabalho dentro do Anchieta. Cabelos longos,

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calças largas e estampadas estilo indiano, a famosa sapatilha chinesa nos pés, e muito

entusiasmo para ingressar na nova nave.

O interventor, ficamos sabendo depois, pensou consigo mesmo: ―O que significa

isso? Só nos faltava essa. Que a sorte nos ajude!‖.

Jovens costumam se inserir com muita energia nos seus projetos, e não éramos

diferentes. Misturamo-nos com profissionais de outras idades, gente de meia-idade e de

idade quase inteira, se assim se pode dizer dos que passaram dos 60. E nos misturamos,

também, com pessoas que iniciavam um profundo desvio em sua trajetória de vida: os

internos do hospital.

Esse encontro da diversidade, essa polifonia de vozes que ultrapassavam escalas

infinitas, era sem dúvida a marca da potência daquele lugar.

A violência anterior ao período da intervenção ainda estava virtualmente

presente nos corpos dos internos, e em suas inseguranças para exercer poder através do

diálogo e do exercício da decisão.

Cada um de nós, jovens profissionais que naquele momento mudavam de

cidade, carregava consigo um imenso calor que ultrapassava a noção dos tempos e

espaços, dos relógios e das ruas com semáforos.

Tanto assim que ficávamos, cada qual em sua enfermaria, durante muitas horas

entre os quartos e os corredores do hospital. Também saíamos às ruas com alguns

internos, reconhecendo os arredores e procurando o bar da esquina que nos brindava

com refrigerantes.

O corpo molhado de suor molhava-se por dentro com tais refrigerantes e com a

afetação produzida pela beleza de assistir os corpos dos internos, antes retraídos,

espalhando-se pelas ruas, como uma lula que vai desatando os nós que o tempo

produziu em seus tentáculos.

Para tornar nosso trabalho mais múltiplo e potente, resolvemos criar uma

pequena equipe para discutir com os internos as perspectivas futuras de trabalho. De

nada adiantava fazermo-nos de surdos, os internos traziam como desejo e projeto de

vida a inserção no trabalho, e convivíamos ainda com a situação de um conjunto de

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internos que haviam sido despojados de suas antigas funções de manutenção e

vigilância no hospital: os assim chamados laborterápicos.

Nascia assim um grupo de profissionais, assistentes sociais, psicólogos,

terapeutas ocupacionais e enfermeiros, que foram denominados por toda a equipe do

hospital como o Núcleo do Trabalho.

OS LABORTERÁPICOS

A reunião começara. Vários homens com seus antigos jalecos azuis, que

antigamente os diferenciavam dos outros internos, tentavam reivindicar que se pensasse

com eles novas alternativas de vida.

Antigamente, eles é que faziam a limpeza do hospital, além de trabalhar na

cozinha e, sobretudo, manter a vigilância sobre os outros internos.

Recebiam uma importante delegação por parte da administração, que os

colocava num lugar de destaque hierárquico diante dos demais.

Digamos que fosse apenas um degrau acima, já que os demais degraus da

pirâmide, em sentido ascendente, estavam assim ocupados: os auxiliares de

enfermagem, os enfermeiros e os quase inexistentes psicólogos, e os médicos que, junto

com a administração, permaneciam alguns minutos na instituição, para lembrar a todos

os remanescentes que a função do hospital era mesmo guardar seus internos, do modo

como lhe foi recomendado pela grande sociedade.

O corpo ou a autoridade do médico, mesmo que virtual e não objetiva (já que

todos tinham que ficar muito pouco no hospital para debandar para seus consultórios

particulares), ainda era o que garantia legitimidade à instituição, atribuindo-lhe o nome

de hospital.

Os laborterápicos, penúltimo degrau, recebiam em troca de seus serviços alguns

maços de cigarro e uma comida um pouco diferenciada: pelo menos não era a famosa

―lavagem‖ a que os outros internos se referiam ao lembrar dos tempos em que passavam

fome no hospital.

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Composto em sua maioria por pessoas com problemas com o álcool, os

laborterápicos eram de fato um grupo que se autoisolava no hospício, empobrecendo e

negando todas as potencialidades da vida no território, porque assim se sentiam

valorizados e importantes, porque assim se sentiam um degrau acima de quem quer que

fosse, já que nas ruas sentiam-se na mesma base desvalorizada dos despossuídos.

Após meses de discussões e diversas tentativas de iniciar novas propostas de

trabalho, qual não foi nossa surpresa quando nos deparamos com o fato de que, com

exceção de três pessoas contratadas formalmente para trabalhar no hospital (uma na

cozinha, e outras duas para auxiliar na portaria), todo o restante preferiu deixar o

hospital a se inserir nos primeiros projetos coletivos de trabalho que então iniciávamos.

Dos que saíram, alguns voltaram a ocupar lugares sociais antes abandonados,

mas tornados sustentáveis com o suporte ambulatorial que os profissionais do hospital

passaram a lhes fornecer.

Outros, no futuro, viriam a compor as equipes dos projetos coletivos de trabalho,

tão logo alguns desses projetos fossem economicamente viáveis, possibilitando de fato

aos trabalhadores-usuários manter suas despesas com habitação, alimentação, vestuário

e tudo o mais que todos conhecemos bem.

Curiosamente, restaram como a grande maioria dos solicitantes por trabalho,

aqueles que havia muito tinham sido excluídos tanto do mercado de trabalho como do

mercado das relações sociais, que eram os internos mais comprometidos psiquicamente

e mais institucionalizados.

A COMPLEXA GÊNESE DO TRABALHO MODERNO

Trabalho não é sinônimo de emprego.

Há várias outras formas de atividade humana, em vigor desde sempre e ainda

hoje, que poderíamos chamar de trabalho, embora devamos considerar a proeminência

do trabalho assalariado no desenvolvimento das modernas sociedades ocidentais.

Com a impossibilidade de precisar a data de início da modernidade,

caracterizada de diversas formas por diversos autores,, e superando uma visão linear da

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história, onde os fenômenos vão se concatenando e mudando numa sequência lógica de

causa e efeito, podemos considerar que eventos modernos estiveram presentes desde a

época mercantilista das potências europeias coloniais. Estas agiam desde o século XV e

XVI de forma a promover a acumulação primitiva de capital, fundamental para o boom

da industrialização nos séculos XVII e XVIII.

É verdade que não foram apenas os eventos econômicos anteriores que

possibilitaram a emergência da industrialização. Dimensões políticas, religiosas,

científicas, morais, culturais, impulsionaram o processo nada linear da modernização,

que ainda hoje, no auge de seu desenvolvimento, convive com maneiras diversas,

consideradas rudimentares ou ultrapassadas, de produção de mercadorias.

É de uma experiência de trabalho que trata esta pesquisa. Trabalho realizado por

quem não combina com o paradigma do trabalho e, por isso, talvez, um trabalho

subversivo, ou um antitrabalho.

POR QUE PROJETOS COLETIVOS DE TRABALHO?

Os diversos atores envolvidos no processo de intervenção sempre pensaram que

algo haveria de ser modificado na relação com o mercado para que os internos

pudessem exercer seu direito e escolha de trabalhar.

Acredito que isso se deva ao fato de passarmos a nos comunicar de forma lisa

com os internos, de modo que o fluxo marítimo dos discursos nos fazia acessar as reais

necessidades deles, ou pelo menos fazer com que eles mesmos definissem o que seria

uma verdade e uma realidade.

Não era mais o discurso nosográfico da psiquiatria que diria o que eles sentiam e

queriam, ou o que eram capazes de fazer. A desconstrução desses conceitos e valores se

dava na trama de relações quentes que formavam novos conceitos e valores.

Aqui, o trabalho podia ser visto como uma das muitas possibilidades de

participar das cenas sociais, de dar novos sentidos às contradições sociais que

produziam até mesmo as instituições totais como agências produtoras de controle

disciplinar e violento.

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Mas não poderia ser qualquer trabalho, o mercado com suas injunções há muito

já enunciou que não há lugar para os loucos a não ser no manicômio. O modo de vida

que orbita a forma moderna de trabalho é o da racionalidade utilitária, que joga para a

margem ou tenta dizimar tudo aquilo que não seguir o paradigma da simplificação, da

miniaturização de possibilidades.

O mundo do trabalho é a antítese do mundo da loucura, e tentar adaptar e

normalizar os internos para que possam ser artificialmente encaixados no mercado é

nada mais do que fingir gozar algo que dificilmente ocorrerá.

Foi por isso que decidimos produzir experiências ricas em termos de produção

de sociabilidade, valores, relações, poder: os projetos de trabalho. Estes deveriam

forjar situações reais de trabalho coletivo, vinculados efetivamente ao mercado, mas

também provocando-o e produzindo sua reflexão crítica.

A ideia era superar a lógica da mercadoria, em que tudo é mercadoria, partindo

do próprio jogo da mercadoria, participando dele, e criando experiências inusitadas com

outros atores sociais, alianças mais alargadas que possibilitassem circular por dentro e

por fora do mercado, numa tênue linha cuja borda não poderia explodir.

Seria preciso entrar no jogo da mercadoria, produzindo valor e dinheiro, e sair

dele, produzindo vida e sociabilidade, promovendo encontros e fazendo entrar em

erupção a multiplicidade e as potencialidades adormecidas da existência, enriquecendo-a.

Enfim, o que diferencia a proposta de construção de projetos de trabalho das

tradicionais propostas laborterápicas é que não se busca uma inserção subserviente ao

mercado, através de processos de normalização e adaptação. O que se busca são

modificações negociadas e de mão dupla: transformações nos usuários-trabalhadores

através do exercício do poder e da descoberta de novas potencialidades e formas

inéditas de produzir, e transformações nos contextos de trabalho e no próprio mercado,

produzindo novos contextos acolhedores e ao mesmo tempo desafiadores.

As práticas laborterápicas baseiam-se na produção de corpos dóceis (Foucault),

no treinamento de hábitos de trabalho, de comportamentos adequados, limitados e

subservientes, nada questionadores. A partir delas, foram desenvolvidos programas de

treinamento para a futura inserção no mercado, ou formas mais ou menos veladas de

exploração e de enrijecimento de possibilidades: assim o eram os contratos de empresas

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– comuns ainda nos anos 1980 – que destinavam parte do processo produtivo a

instituições que atendiam pessoas com deficiência mental (por exemplo, a montagem de

pregadores de roupas, bolas de futebol, ou outro produto de confecção simples). Tais

práticas, que eram muito mal remuneradas, pois se considerava este um trabalho de

segunda linha que mais ajudava às pessoas com deficiência do que às empresas, não

permitiam que os trabalhadores se apropriassem do processo de trabalho, muito menos

do valor gerado por ele. Muitos trabalhadores nem sabiam o quanto recebiam, e não

tinham a menor ideia do processo em que estavam envolvidos. Apenas os profissionais

das instituições é que se apropriavam das informações e tomavam as decisões, já que, a

priori, os trabalhadores eram considerados incapazes de responder por si. Não se

investia nas capacidades e potencialidades dos trabalhadores, e apenas se reforçava sua

limitação perante um contexto estéril de possibilidades. Atualmente, ainda com base na

tecnologia do treinamento de hábitos de trabalho, desenvolvem-se em várias instituições

programas de inserção no emprego, aproveitando-se da brecha que obriga as empresas a

contratar certo percentual de pessoas com deficiências. Estas inserções, mais uma vez,

por serem individuais, e por muitas vezes não envolverem funções reais e necessárias,

sendo voltadas apenas para a resolução dos problemas das empresas com as leis,

acabam reforçando o aspecto estigmatizante e discriminatório de incapacidade,

imaturidade, invalidez das pessoas que possuem alguma deficiência. O caráter

invalidador está no próprio fato de essas pessoas muitas vezes serem desnecessárias às

organizações (é óbvio que há casos bem-sucedidos, mas dentro dos padrões alienantes

do mercado).

A proposta dos projetos coletivos de trabalho surge como forma alternativa e

substitutiva às formas alienantes de inserção no mercado, que só reproduzem os valores

que geram as invalidações, as exclusões e o aprisionamento a uma vida empobrecedora

em torno da mercadoria. Um projeto coletivo de trabalho busca novas formas de relação

com o mercado, questionando as formas fixas e autoritárias de se fazer as coisas,

desmistificando as relações com a mercadoria e o dinheiro, já que o que se busca é criar

estratégias para a multiplicação das relações, das alianças entre grupos e instituições,

através da participação efetiva no mercado.

Participar de um projeto coletivo de trabalho é produzir novas normas e valores,

desde o interior do mercado. É produzir espaços de pertencimento e de acolhimento que

sejam terreno propício para a descoberta de potencialidades e o exercício de poder. É

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produzir espaços potentes e consolidados de enfrentamento de desafios e riscos. É

trabalhar sobre projetualidades que representem efetivamente modificações nos fluxos

de poder, mudanças concretas e subjetivas (na forma de se relacionar e estar no mundo,

e no acesso a bens e serviços), iniciando percursos coletivos que vão produzindo uma

multiplicidade de possibilidades.

Isso é o que diferencia os projetos coletivos de trabalho dos estagnados e

mortificadores projetos laborterápicos, exigindo que os usuários-trabalhadores assumam

novos papéis e identidades múltiplas, redefinindo e somando outras identidades à sua

histórica identidade de pacientes. Tal processo exige também que os profissionais de

saúde mental tornem múltiplas as suas funções de cuidadores-terapeutas e as redefinam,

possibilitando que os outros atores sociais também revejam sua forma empobrecida de

estar no mundo.

TERRA

Ele não foi o primeiro projeto de trabalho, o Projeto Terra. Mas suas primeiras

incursões na busca pelos caminhos que levassem ao arriscado e temido mercado

começaram ainda no primeiro ano da intervenção, quando buscávamos parcerias para

ocupar os mais diversos espaços sociais, e assim produzir no imaginário social efeitos

compatíveis com o processo de transformação por que passavam os internos.

Era isso, não haveria como transformar os internos sem transformar a sociedade

e seus valores, e sem que também fossem transformados os papéis dos que receberam a

delegação social de cuidar e de proteger – o que em última instância significava

segregar, separar, destruir –, ou seja, os técnicos de saúde mental.

Agora o novo papel dos técnicos deveria ser adentrar os espaços sociais junto

com os usuários, mediando relações, possibilitando que os últimos fossem protagonistas

de transformações e, assim, encontrassem outro lugar no mundo.

As relações mudam, os corpos mudam, os fluxos discursivos se modificam, os

processos coletivos se modificam, e assim a multiplicidade do humano tem mais chance

de aparecer.

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Para isso ser alcançado cotidianamente, se fazia necessário multiplicar os atores

envolvidos, de forma que esse diálogo não se resumisse apenas aos representantes da

psiquiatria e da saúde mental e aos internos a quem deveríamos cuidar.

A potencialidade desse recurso – o envolvimento de outros atores de fora do

campo da saúde mental – residia na possibilidade de transformação dos próprios atores

envolvidos, ou seja, quando os atores de fora do campo da saúde mental, bem como os

técnicos, se sentissem em processo de transformação, então os usuários dos serviços de

saúde mental também estariam nesse processo.

O interventor do Anchieta, a partir do secretário de saúde e futuro prefeito,

abriu, a princípio, os canais de todas as secretarias municipais para que elas estivessem

dispostas a estabelecer parcerias com o Programa de Saúde Mental, na construção de

projetos de trabalho e outros.

Foi assim que conseguimos utilizar o espaço do Horto Municipal para o primeiro

curso de jardinagem dedicado aos usuários, e que conseguimos da Secretaria do Meio

Ambiente todo o apoio para que os engenheiros agrônomos e jardineiros

acompanhassem o desenvolvimento do Projeto Terra, não só na questão técnica e

paisagística, mas no fornecimento de equipamentos e insumos.

Foi também dessa secretaria que partiu a permissão para a construção da estufa

destinada à produção de mudas e à venda de vasos com plantas ornamentais. Ela

também mediou os primeiros contatos entre as empresas interessadas em adotar praças e

os nossos usuários, no sentido de as primeiras contratarem os serviços dos segundos

(através de uma associação que criamos), em grupo, para cuidar das praças.

A Secretaria de Esportes, por sua vez, disponibilizou alguns colaboradores

experientes em jardinagem, que passaram a compor a equipe do núcleo.

Enfim, foi assim que o Projeto Terra foi se enraizando, até chegar a ter em sua

caderneta de clientes cerca de 15 empresas, uma universidade, um clube, e serviços

pontuais de jardinagem em residências.

Na verdade, mais que uma raiz, esse projeto era um rizoma, já que todas as suas

partes se comunicavam entre si, seja através das reuniões semanais onde usuários e

técnicos planejavam e discutiam o cotidiano de trabalho, seja nas reuniões de

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negociação e parceria com outros atores, seja na execução concreta dos serviços e

projetos a eles vinculados.

A estratégia de envolver outros atores de fora do campo da saúde mental nos

projetos de trabalho é um diferencial importante com relação às antigas práticas

laborterápicas. Isso porque esse envolvimento dá aos usuários-trabalhadores a

possibilidade de ocupar novos espaços sociais, novas funções, novos papéis,

multiplicando suas relações e seus contratos.

A relação da proposta laborterápica com os outros atores sempre reforçou e

legitimou a incapacidade e a menoridade dos treinandos, fortalecendo a ideia de que os

espaços possíveis de vida e de troca seriam apenas as instituições de reabilitação.

Fossem monitores de ofício a lidar com os treinandos, fossem os empresários que

filantropicamente lhes designassem alguma tarefa simples como parte da produção, as

mensagens emitidas e reforçadas sempre foram a do limite, a da insuficiência, já que

não se questionavam os contextos e as normas.

O envolvimento de outros atores no desenvolvimento de projetos coletivos de

trabalho permitiu a tomada do trajeto contrário, abrindo possibilidades através da

qualificação do trabalho, da descoberta de formas coletivas de venda de produtos e

serviços com garantia de qualidade. Criando um arcabouço potente de recursos variados

(profissionais de diversas áreas produtivas, secretarias municipais, recursos materiais,

profissionais de saúde mental), se garantia um serviço/produto de qualidade, mas

diferenciado, uma vez que se produziam também novas relações, novos valores, novos

contextos.

Além de qualificar o trabalho e a tarefa em si, a participação de novos atores de

fora do campo da saúde mental possibilitava agregar ao processo novas sensibilidades,

novas percepções, novos valores para a existência. Nessa via de mão dupla, todos se

transformavam, mudavam a forma de ver a vida. Não porque se sentissem fazendo

caridade, mas porque descobriam que utilizamos apenas parte de nossa inteligência e

capacidade, que somos cegos para novas possibilidades. Nosso modo de existir e nossas

capacidades começam a ser questionados como únicos parâmetros de viver a vida.

Desse modo, as coisas vão mudando na prática cotidiana e os usuários-

trabalhadores vão construindo novas relações que antes lhes eram proibidas, já que seu

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discurso só poderia ser traduzido pelos profissionais de saúde mental. Essa

desmistificação produz novas possibilidades, questionando a pobreza e a simplificação

dos conhecimentos e das práticas. Ela, então, torna-se o fio condutor de uma forte

crítica à laborterapia e ao paradigma psiquiátrico.

TRABALHO PRODUTIVO DE MARX

Marx (1982, 1985, 1988) desvendou os mecanismos do capitalismo, e nele

encontrou o lugar que o trabalho ocupou como peça central da produção e acumulação

de capital.

Se a mercadoria é a célula-mater do capitalismo, o trabalho é o seu mecanismo

de condução.

A transformação do trabalho e do trabalhador em força de trabalho veio

conciliada à separação do produtor dos meios de produção.

O trabalho vivo foi transformado em trabalho morto, inerte na mercadoria.

O trabalho concreto foi metamorfoseado em trabalho abstrato, separando o

produtor do produto, substituindo a criatividade pela simples energia física e mental

alienada da própria ação.

O trabalho abstrato é determinado pelo tempo socialmente necessário para se

fazer determinado produto; tempo cujo controle é expropriado do trabalhador.

A mais-valia é o mecanismo que veio explicar o tempo de trabalho excedente

que o trabalhador concede ao empregador. O primeiro vende o tempo de sua força de

trabalho, que produz muito mais do que recebe em troca.

É a mais-valia que delimita a noção de trabalho produtivo em Marx. Produtivo

porque serve à produção e à multiplicação do capital. Porque o feijão que a cozinheira

faz na sua casa não advém de um trabalho produtivo, enquanto este mesmo feijão, feito

no restaurante em que essa moça trabalha, é o produto efetivo de um trabalho produtivo,

pois este apetitoso feijão será transformado em capital, simultaneamente à

transformação que sofrerá no estômago dos clientes.

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Esse é o mundo do trabalho que, indiretamente, ajudou a implantar as

instituições de controle e segregação que conhecemos.

A psiquiatria tem muito a agradecer a ele e, de certo modo, não há como

desconstruir o manicômio sem desconstruir em parte esse mundo do trabalho e da

mercadoria.

Mas talvez haja novos elementos a considerar sobre os mecanismos do trabalho,

além da radiografia fundamental desvendada por Marx. O valor das mercadorias parece

se vincular cada vez mais a diferentes elementos, tão virtuais como os que compõem

nossas formas contemporâneas de comunicação. Outros fatores parecem agregar valor

aos produtos, para além do tempo socialmente utilizado em sua produção e da lei da

oferta e da procura. A sedução vem em escalas de gigabytes e o distanciamento entre

produção real e investimento financeiro vai trazendo cada vez mais o mundo da

produção para o campo do invisível e do suprassensível.

MULTIPLICIDADE DE PROJETOS

Uma das estratégias da implantação dos projetos de trabalho foi priorizar a

escolha de atividades produtivas diversificadas, apontadas a partir da escuta das

necessidades e brechas do mercado e das possibilidades de se levantar recursos

(humanos, materiais, parcerias) para seu desenvolvimento (Kinker, 1997).

Essa diversidade servia para enfatizar a multiplicidade de experiências e ampliar

as possibilidades de escolha e de inserção participativa.

Ela considerava também a capacidade do mercado de absorver determinada

demanda de consumo, levando em conta as realidades da concorrência, a disposição de

setores (das empresas privadas, das empresas públicas, das entidades) para o

estabelecimento de alianças, os recursos básicos de que a própria instituição necessitava

para iniciar um projeto de trabalho.

É importante também salientar que a entrada dos usuários nos projetos de

trabalho não se baseava no esquadrinhamento de seu diagnóstico clínico, mas partindo

de sua biografia, da prospecção de suas capacidades, expectativas e possibilidades

(Nicacio, Kinker, 1996).

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Foi assim que se iniciaram experiências de trabalho coletivo, todas com a

denominação comum de ―Projetos‖, como a triagem e venda de materiais recicláveis, os

serviços de jardinagem em praças públicas e terrenos particulares, os serviços de

desinfecção de reservatórios de água, a marcenaria, o grupo de culinária, o grupo de

serigrafia, a equipe de manutenção predial, a fábrica de blocos de construção, o grupo

de construção civil, entre outros projetos, todos produzindo recursos financeiros.

Esses recursos possibilitaram que pacientes há muito institucionalizados no

hospital psiquiátrico pudessem retomar a construção de suas vidas na cidade, pagando

do próprio bolso os custos de moradia, transporte, alimentação, lazer, vestuário. Ou

então possibilitaram novos diálogos com as famílias, que passaram a ver seu familiar

doente mental como alguém capaz de contribuir significativamente com as despesas da

casa, ocupando outro lugar de poder e valor social.

É claro que esse percurso foi gradual e cheio de desafios, exigindo dos

profissionais do Núcleo do Trabalho, em conjunto com os dos NAPS, um investimento

intenso no acompanhamento e na mediação dos usuários em sua relação com o trabalho

e com todos os atores desse contexto: desde a saída no começo da manhã para ir junto

com os usuários iniciar o trajeto para a ocupação dos postos de trabalho, até que estes

se sentissem fortalecidos para fazer isso sozinhos, até o apoio para a organização dos

usuários enquanto equipes de trabalho e, muitas vezes, na organização cotidiana de seus

novos hábitats de existência, casa, pensão.

O contato e a construção cotidiana com os NAPS permitiam que a equipe do

núcleo – que posteriormente receberia o nome de Unidade de Reabilitação Psicossocial

– participasse efetivamente da construção de um Sistema de Saúde Mental que pouco a

pouco levaria à substituição total do manicômio.

A integração da equipe da Unidade de Reabilitação Psicossocial com as equipes

dos Núcleos de Atenção Psicossocial possibilitava a construção de uma base de

conhecimentos coletivos que aprofundavam as táticas de multiplicação das redes

sociais, bem como fortaleciam a descoberta de novas possibilidades e recursos

comunitários.

Essa integração se dava através de atendimentos conjuntos, visitas aos locais de

trabalho ou de moradia realizadas conjuntamente, atendimentos familiares conjuntos

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quando necessário e, principalmente, através de reuniões frequentes entre membros das

duas equipes, para avaliar o trabalho e pensar em estratégias conjuntas de intervenção.

Em princípio, a equipe do núcleo se encarregava prioritariamente de viabilizar e

acompanhar os projetos de trabalho, enquanto as equipes dos NAPS teciam junto ao

usuário o sentido de seu projeto de vida em seus outros âmbitos.

No começo do processo, porém, no momento em que a equipe do núcleo dividia

seu tempo entre o trabalho dentro das enfermarias e a constituição dos projetos de

trabalho (no momento em que os NAPS ainda não estavam implantados), muitas

situações exigiam que ela se dedicasse aos vários âmbitos da vida dos usuários, e não

apenas à questão do trabalho.

De todo modo, o lugar dos projetos de trabalho era organicamente vinculado aos

vários serviços de saúde mental, o que fazia com que se produzissem conhecimentos

coletivos entre profissionais e usuários, e se superasse a artificial separação entre lugar

de tratamento, lugar de reabilitação, lugar de prevenção e lugar de produção de vida.

Aqui, o objetivo de todos era mediar as relações e apoiar os usuários na

construção de seus projetos de vida, e na tessitura concreta de novas redes sociais.

Estar trabalhando não significava um momento posterior ao tratamento, muito

menos sinal de cura, mas a possibilidade de ampliar o arco de relações, descobrir e

exercer potencialidades, tecer uma condição de vida e de relações sociais que fossem

produtoras constantes de subjetividade.

O objetivo era viver o mais ricamente possível, num devir de transformações de

contextos, identidades e subjetividades.

E, talvez sem perceber de forma tão explícita, estávamos mostrando que era

possível viver as contradições sociais sem anular um de seus polos, que eram as pessoas

que desviavam e que expressavam uma ―existência-sofrimento em sua relação com o

corpo social‖ (Rotelli, 1990).

A iniciativa de ocupar múltiplos espaços sociais é outra característica que

diferencia os projetos coletivos de trabalho das propostas laborterápicas. A noção de

lugar/local específico para a prática de reabilitação é questionada, uma vez que o que se

buscava era a multiplicação de espaços e possibilidades, era a abertura e não o

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fechamento. Estando os projetos em vários lugares, era possível propor o convívio e o

compartilhamento de espaços, numa nova relação entre o que é considerado normal e

anormal. Essa dicotomia era superada concretamente no exercício artesanal de tecer

novos territórios e novas alianças.

A multiplicidade de projetos está associada à multiplicação de experiências e ao

fortalecimento do protagonismo. Inversamente ao que as tradicionais práticas

ergoterápicas propõem, as pessoas com sofrimento psíquico grave, além de poderem ter

maior liberdade para se experimentar em tarefas e lugares diferentes, podem exercer

poder decisório e ser protagonistas dos processos de trabalho. A construção de projetos

passa a depender essencialmente da participação dos usuários-trabalhadores. Os projetos

não ocorrem apesar deles, como se pode verificar nas instituições que reproduzem o

controle social do desvio, mantendo seus clientes dentro de certos limites e em áreas

com pouca possibilidade de circulação, experimentação e exercício de poder. Isso

acontece porque o paradigma que os sustenta e legitima ressalta sempre as

incapacidades e impossibilidades determinadas pela doença, sem questionar o quanto as

respostas que oferecem estão implicadas na produção do fenômeno.

Num lugar onde é possível exercer o poder, a multiplicidade de projetos se torna

uma estratégia importante para a invenção de novas práticas e a descoberta de novas

potencialidades.

FÁBRICA DE BLOCOS

Acompanhei o interventor numa reunião com o presidente da Prodesan9, com o

intuito de acertar os detalhes de implantação da Fábrica de Blocos, que se daria num

terreno da Prodesan em Bertioga, mas que seria gerenciado pela Cohab-ST10

.

9 Prodesan (Progresso de Desenvolvimento de Santos) é uma empresa mista, que tem como objetivo

fornecer à prefeitura uma série de serviços. Como empresa meio pública, meio privada, ela era

responsável sobretudo pela execução da limpeza urbana de Santos, e ainda desenvolvia algumas obras de

engenharia.

10 Cohab-ST (Companhia de Habitação da Baixada Santista) é uma empresa pública responsável pela

política de habitação do município. Desta forma, ela executa ou contrata serviços de construtoras, visando

à construção de habitações populares.

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Foi incrível como o interventor defendeu a seriedade do projeto e os direitos dos

usuários-trabalhadores, quando o presidente da empresa classificou como filigrana uma

das questões de organização do espaço que interfeririam no processo de trabalho.

De fato, havia uma advocacia consistente em nosso objetivo de inserir os

usuários do Anchieta nas trocas sociais.

Só que não era uma advocacia que reivindicava direitos de tutela, mas que exigia

seriedade e a construção de processos reais de trabalho.

Não seria bem-vindo um processo que empregasse os usuários no trabalho

apenas por filantropia, nem tampouco que desacreditasse de suas reais capacidades.

Nem seria aceito um tipo de relação que colocasse o trabalho dos usuários como uma

concessão definida pelo governo municipal.

Fugíamos da possibilidade de criar situações de faz de conta, onde se fingisse

estar trabalhando, onde se fingisse estar consumindo e necessitando desse trabalho,

onde os usuários fossem tratados como que numa condição de menoridade.

Estávamos cientes e fartos daquilo que a psiquiatria produziu historicamente em

termos de laborterapia, de treino de hábitos de trabalho, em termos de treino permanente

e eterno em busca de uma suposta e futura inserção no mercado, que dificilmente se

daria.

Queríamos que o trabalho fosse real e que seu consumo e uso fossem

necessários.

Queríamos que o trabalho possuísse qualidade, e que, ao mesmo tempo,

garantisse o modo singular de estar no mundo de seus trabalhadores.

Queríamos reproduzir situações de trabalho em equipe similares às que nós,

enquanto equipes de saúde mental, vivenciávamos. Situações onde coubessem nossas

singularidades, dificuldades e potencialidades.

Era isso que solicitávamos das empresas e secretarias municipais parceiras dos

projetos de trabalho, e que traduzia por certo uma demanda da totalidade de seus

trabalhadores, sendo estes pacientes ou não: protagonismo, uso da criatividade,

reconhecimento de suas pegadas e ações no mundo social.

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O presidente da Prodesan se irritou um pouco com o interventor, que

reivindicava respeito e aliança efetiva, mas concordou que o processo deveria ser real e

que isso fazia parte de um projeto mais amplo de transformação da cidade e,

consequentemente, de transformação das pessoas que a habitavam.

A fábrica, com o aval da Prodesan, foi instituída num belo terreno às margens do

rio Itapanhaú, onde as filas de tainha transitavam num fluxo tão intenso como o da

avenida Paulista.

A Cohab-ST, por sua vez, patrocinou muitas reuniões entre a equipe do núcleo e

seus técnicos, para planejar a implantação efetiva da fábrica no terreno da Prodesan.

Foram realizadas várias visitas a outras fábricas, para se pesquisar os melhores e

mais adequados equipamentos, e estudar a dinâmica de funcionamento da produção.

A expectativa era que os blocos que seriam produzidos pelos usuários em

Bertioga fossem utilizados na mais importante obra de construção de casas populares de

Santos: o projeto de urbanização do Dique da Vila Gilda.

A construção de alianças com a maioria das secretarias municipais era um dos

recursos que utilizamos para nos fortalecer e adentrar o território. As secretarias

municipais costumam ser agentes ricos em possibilidades, uma vez que desempenham

funções diversificadas e que se relacionam intimamente com vários grupos sociais.

Essas alianças com as secretarias possibilitariam, no futuro, a ampliação do arco de

alianças com outros atores sociais, desde empresas privadas até movimentos sociais.

O GRUPO DE TRABALHADORES DA CONSTRUÇÃO CIVIL: PROJETO DIQUE

Articulado a esse projeto da Fábrica de Blocos estava o projeto de formação de

trabalhadores na construção civil, que chamamos de Projeto Dique.

Tratava-se de um grupo de usuários dos serviços de saúde mental que

trabalhariam na obra de reurbanização do Dique da Vila Gilda, utilizando os mesmos

blocos produzidos por seus companheiros da Fábrica de Blocos.

Os usuários-trabalhadores comporiam como que um grupo de estagiários que

trabalhariam na obra à medida que aprendiam também as mais diversas funções e

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ofícios. Eles receberiam uma bolsa-trabalho paga pela Cohab-ST à Afrent11

, oficializada

a partir de um convênio de mútua colaboração entre a Cohab-ST, a Afrent e o Anchieta.

Os técnicos do núcleo acompanhavam os usuários-trabalhadores durante alguns

períodos na semana e realizavam com eles reuniões semanais de trabalho no próprio

terreno da obra.

Quem acompanhava cotidianamente os usuários era um dos operários da obra,

que se responsabilizava também por inseri-los em situações diversas, de forma que estes

aprendessem os vários tipos de serviços que compunham uma obra daquele porte.

Pode-se dizer que existe muito de loucura nas paredes das casas que vieram a

substituir as terríveis palafitas do Dique da Vila Gilda, um lugar de águas escuras e

sujas onde por vezes morriam crianças que despencavam dos estreitos corredores de

madeira que ligavam as casas entre si.

Sim, os usuários participavam de um dos projetos mais dignos de intervenção na

cidade, talvez tão digno como o que os libertou dos grilhões do manicômio, a partir da

intervenção. Melhor dizendo, participavam do processo de desinstitucionalização que se

iniciava no manicômio, mas que se estendia a esses projetos de intervenção na melhoria

de vida dos cidadãos da cidade.

O trabalho no dique pertencia ao mesmo processo de desinstitucionalização.

Como disse antes, os usuários dependiam da transformação dos habitantes da

cidade para se transformar. Negávamo-nos a reproduzir as relações que limitavam o

11

A Afrent (Associação de Apoio às Frentes de Trabalho Alternativas) era uma organização não

governamental sem fins lucrativos, criada em 1990 por profissionais do Programa de Saúde Mental e da

Secretaria de Ação Comunitária, com o intuito de estimular e apoiar a implantação de projetos de trabalho

coletivos por parte de grupos populacionais marginalizados. Esse apoio se dava através de

financiamentos, empréstimos a juros zero e apoio técnico a grupos de produção. Efetivamente, como os

componentes da Afrent estavam inseridos em propostas de inserção no trabalho desenvolvidos pela

prefeitura, muitos dos projetos da área da saúde mental, mas não apenas estes, receberam recursos dessa

associação para dar início a seus trabalhos. Além disso, como se verá, a Afrent participou de convênios

com empresas públicas para viabilizar o pagamento das bolsas-trabalho para os usuários vinculados ao

Núcleo do Trabalho. A ONG era um instrumento importante dos projetos de trabalho, uma vez que

naquele momento ainda não havia amadurecimento suficiente para que os próprios participantes dos

projetos de trabalho pudessem se autorrepresentar através, por exemplo, de uma cooperativa de trabalho

ou de uma associação. Com a inauguração, no futuro, da Cooperativa Mista Paratodos, vários dos

convênios estabelecidos pela Afrent migraram para a cooperativa.

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vínculo dos usuários-trabalhadores apenas aos profissionais de saúde mental e à

instituição psiquiátrica, como se esta fosse dona dos loucos e a única a valorar e traduzir

seu discurso. Ocupando outro lugar social, os usuários-trabalhadores passavam a fazer

parte do cotidiano da cidade, desenvolvendo ações que os vinculavam e os faziam

cuidar das outras pessoas. Bela reciprocidade de papéis, uma vez que aqui os ditos

anormais cuidavam dos normais e vice-versa.

E o futuro foi chegando quando alguns dos usuários-trabalhadores prestaram

uma das seleções de novos trabalhadores e passaram a compor o quadro efetivo da

Cohab-ST, passando da condição de estagiários à de servidores públicos de uma

autarquia.

FORÇOSA ENTRADA DO TRABALHO ASSALARIADO NO OCIDENTE

Embora os iluministas se colocassem contrários ao trabalho forçado, não

podemos negar que a entrada do trabalho assalariado no cotidiano das populações

campesinas a partir do século XVII e XVIII foi avassaladora, exigindo toda sorte de

mecanismos forçosos.

Não nos esqueçamos de que toda sorte de estratégias de disciplinarização foram

adotadas para garantir a efetiva destruição das antigas relações de parentesco, de

vínculo com os tempos da natureza, de pertencimento à terra e ao senhor de terras, de

conjunção entre lar e trabalho, tempo livre e tempo ocupado (que não existiam

separados e opostos).

Junto à fábrica, foram sendo criadas outras instituições complementares, como

forma de reforçar e construir a nova forma de estar no mundo, as novas sociabilidades

pautadas na noção moderna de trabalho.

Escolas, fábricas, asilos, hospitais, manicômios, todos seguiram as novas

diretrizes ditadas pelas necessidades da nova forma de estar no mundo, pautada na

venda da força de trabalho.

Não é a toa que o manicômio nasceu no início do século XIX com a missão de

recuperar os sem juízo para comporem a nova sociedade, e que a primeira técnica

utilizada por Pinel recebeu o nome pouco disfarçado de ―tratamento moral‖. As mesmas

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técnicas de subjugação nas fábricas eram utilizadas para forçar a difícil entrada dos

loucos no novo mundo dominado pelo trabalho.

A noção moderna de trabalho nos transformou numa ―sociedade de

trabalhadores sem trabalho‖, como lembrou Hannah Arendt (2001).

É isso: após um enorme investimento nas subjetividades e nos corpos para

discipliná-los para o trabalho, processo que obteve muito sucesso em seus objetivos,

chegamos a um tempo em que, estando totalmente submetidos e convencidos de que o

sentido da vida é o trabalho assalariado, vivenciamos as mudanças no mundo do

trabalho influenciadas pela terceira revolução industrial, pelo avanço da microeletrônica

e das novas técnicas de organização do trabalho. Há evidências de que, daqui em diante,

haverá menor necessidade de trabalhadores, e um novo tipo de desenraizamento tende a

ocorrer, a exemplo do que já vem ocorrendo com as sucessivas diásporas dos povos do

Leste europeu, da África e da América Latina, em direção aos países centrais. Mesmo

considerando que sempre haverá bordas do mercado a serem preenchidas com o

trabalho menos qualificado, parece ser grande a possibilidade de que um número menor

de postos de trabalho reste como consequência do desenvolvimento das forças

produtivas. Tal situação nos leva a pensar o quanto novas formas de produção de

sociabilidade e de existência são desejáveis, de modo a tornar o momento atual um

trampolim para conquistas positivas, ao invés de um abismo para a destruição. As

noções de projetos coletivos de trabalho e de vida talvez possam servir como

possibilidade de enriquecimento da existência de todos aqueles expulsos do mercado e

daqueles que hoje lá se encontram. Ao mesmo tempo, as mudanças no mundo do

trabalho exigem que as práticas que discutem a inserção no trabalho como garantia de

direitos de cidadania das populações vulneráveis sejam revistas, por dois motivos: por

conta das mudanças nas configurações do mercado, que dificultam qualquer inserção;

porque devem ser encontradas outras formas de sociabilidade enriquecedoras que

prescindam do trabalho.

GRUPOS E COLETIVOS, SUJEITOS COLETIVOS

Uma das características dos projetos de trabalho que criamos era que eles eram

sempre desenvolvidos em grupo, através de frentes de trabalho, cuja organização se

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delineava em reuniões de trabalho, através da divisão de tarefas, do estabelecimento de

projetos e perspectivas coletivas, da discussão e do compartilhamento de dificuldades.

Foi assim que se buscou viabilizar o trabalho de pessoas singulares, em sua

maioria vivenciando grave sofrimento psíquico e experiências de fragilização.

As contradições existentes nas situações em que pessoas diferentes produzem

em patamares de produtividade muito diferentes criavam embates que colocavam o

projeto coletivo em xeque: ou se assumia a produção de novos e autênticos valores ou

se reproduzia a valoração ditada pelas regras do mercado.

Esse processo era uma pista de mão dupla, uma vez que o bombardeio cotidiano

de mensagens valorativas patrocinadas e viabilizadas pelos instrumentos do mercado

não permitia a livre fluência da produção de uma nova cultura, e era comum que em

certos momentos alguns integrantes do grupo reproduzissem os discursos da exclusão,

especialmente, mas não apenas, os sujeitos que produziam mais e que eram menos

frágeis.

Eram as discussões em grupo, em conjunto com as experiências práticas

cotidianas e as contradições delas decorrentes, que criavam os espaços de continência e

de produção de conhecimentos para todos.

Era dessa forma também que os participantes podiam se sentir pertencendo a um

coletivo, em primeira instância dependentes de relações de solidariedade e

reciprocidade. Um coletivo que poderia também propor projetos coletivos capazes de

ultrapassar a questão do trabalho, alcançando outros âmbitos da vida.

Algumas possibilidades se formavam, como, por exemplo, a ida coletiva à praia

no final de semana, já que o acesso individual a esse espaço social às vezes se tornava

difícil e custoso, para quem viveu uma história de exclusão e fragilização.

Outro exemplo vivido foi o do intenso surgimento de namoros e mesmo de

alguns casamentos entre os integrantes de alguns projetos de trabalho.

O compartilhamento coletivo e a constituição de projetos de trabalho fortaleciam

e produziam novas subjetividades, que assim se arriscavam a ter cada vez mais

experiências e a se tornar sempre novos atores sociais.

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As contradições nunca eram superadas, mas fazíamos o possível para conviver

bem com elas, pensando em ações que as mobilizassem e as levassem ao limite.

Por exemplo, por vezes chegamos a discutir com os integrantes dos grupos de

trabalho se a divisão dos recursos por hora de trabalho seria suficiente para dar conta

das diferenças no grau efetivo de participação e resolução das tarefas nos serviços

prestados.

Apesar das dificuldades de se chegar a uma fórmula inovadora, sabíamos que,

para alguns usuários muito graves, ir ao trabalho duas ou três vezes por semana era algo

que provocava revoluções moleculares e subjetivas, vinculadas à sensação de se

experimentar em situações diferentes e de participar de uma tarefa coletiva que produzia

efeitos em terceiros, em clientes e na cidade, além do fato de se sentirem protegidos e

atuantes num coletivo.

Essa participação certamente também dependia da participação dos usuários que

trabalhavam todos os dias e num ritmo mais acelerado, ou numa condição de conseguir

vislumbrar melhor o todo da tarefa a ser cumprida, suas fases, o tipo de organização

necessária ao grupo.

Todas essas discussões eram ricas e faziam parte de um projeto de vida em que

os usuários estavam fortemente vinculados, um projeto de vida que eles tomavam em

suas mãos como a forma de produzir a melhora ou a modificação de seu próprio

sofrimento e de sua condição de existência. Esse protagonismo superava a situação de

subalternidade e de coisificação decorrente das práticas laborterápicas. Decidir sobre

projetos sérios e de importante repercussão social era um desafio e tanto para os

usuários (e também para os profissionais).

Nada mais terapêutico do que o circular socialmente, exercendo o poder de

afetar as decisões, participar dos discursos e da produção da realidade que esses

discursos levam adiante.

DÁ UM TEMPO, JONAS!

Jonas era um senhor de quase 60 anos de idade, designado pela Prodesan, a

empresa mista responsável pela limpeza urbana da cidade, para gerenciar

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cotidianamente a usina de reciclagem do projeto Lixo Limpo, o primeiro projeto de

trabalho que efetivamente possibilitou que vários internos do Anchieta deixassem o

hospital e se mantivessem economicamente com os próprios recursos.

Jonas era um homem sempre bem vestido, daqueles que dão a impressão de estar

impecavelmente limpos, tanto corporal quanto moralmente. Usava uns óculos de lentes

grossas que por vezes ficavam na ponta de seu pontudo e brilhante nariz, e falava com a

suavidade de um tapete de lã, palavras que muitas vezes pareciam entrar e não sair da

boca.

Mas esse ar de monge tibetano guardava em seu interior a ambiguidade que

todos possuímos e, às vezes, Jonas não era tão bom-moço assim. Vivia reclamando e

fazendo ironias sobre os usuários que tinham mais dificuldades para trabalhar, ou,

sejamos claros, possuíam um jeito muito singular de separar o material reciclável.

Muitos se deliciavam na esteira com as quinquilharias que apareciam, desviando

um pouco a atenção do ato de separar os materiais em baias próprias; outros iam muito

ao banheiro, como a nos informar que não tínhamos o direito de colocá-los numa esteira

fordista.

As conversas com os usuários-trabalhadores eram muitas, para que

conseguissem dividir seus interesses entre a separação de materiais e o seu

desvendamento e gozo.

As conversas com Jonas eram muitas, explicando que não poderíamos

reproduzir um sistema taylorista, mas que poderíamos ver estratégias de intervir e

mediar as relações dos usuários com o trabalho, de forma a conseguir o desejado

produto final e a satisfação de seus trabalhadores.

Mediação e negociação eram as palavras-chave do trabalho no Núcleo, bem

como ação, continência, tolerância, espírito crítico, reflexão, contextualização,

transformação.

Com certeza o ambíguo Jonas também se modificou, percebendo que a sujeira

também tem seu encanto. Afinal, estávamos num lugar também de nome ambíguo:

LIXO LIMPO.

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As negociações para a implantação do Projeto Lixo Limpo se deram no âmbito

da Secretaria de Ação Comunitária (Seac), do Anchieta e da Prodesan. A Seac queria

envolver no projeto também os carrinheiros (homens e mulheres que puxavam carroças

para o recolhimento de materiais recicláveis expostos nos lixos das casas) e as pessoas

em situação de rua.

Foram longas as negociações, mas conseguimos viabilizar o primeiro projeto de

trabalho com a característica de oferecer à população da cidade um serviço que era de

seu interesse, e que a envolvia diretamente, já que cabia a ela separar no domicílio o

material reciclável, para que nos dias de coleta seletiva os caminhões pudessem recolhê-

lo nas portas das casas.

O Projeto Lixo Limpo reciclou muitas vidas.

E a reciclagem do lixo contribuiu para que o aterro sanitário da cidade, já

totalmente esgotado, ganhasse alguns anos de sobrevida. Mais uma vez, os usuários

estavam contribuindo para o bem-estar dos habitantes da cidade, sem ser subjugados

para tal.

LABOR DO CORPO, SUOR DAS MÃOS, AÇÃO DA VOZ

Arendt (2001) separou as dimensões do labor das do trabalho, da ação e do

discurso.

Homo faber é o homem que cria e domina sua produção e, com suas mãos,

produz o mundo ao seu redor. Domina seus instrumentos ditando o ritmo e os percursos

da produção. Os artesãos das antigas corporações ocidentais bem lembram esse tipo de

trabalhador.

Essa é uma dimensão da produção que ainda subsiste ao modo de produção

capitalista, que, embora tenha embriagado todos os poros da sociedade com a mais-

valia, não conseguiu obter êxito na totalidade dos espaços sociais.

Na verdade, talvez seja funcional ao capitalismo manter algumas poucas formas

de atividade que não se enquadram totalmente na venda da força de trabalho, o que não

significa que um tipo de trabalho não assalariado que produza rendimentos não participe

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da engrenagem da valorização do valor, uma vez que todo dinheiro existente contribui

para a engrenagem do capital através do consumo.

A atividade como trabalho, para Arendt, ainda se apresenta à produção

capitalista, no sentido de que as ferramentas e máquinas que dominarão os corpos e as

mentes no processo de labor são criadas e construídas por verdadeiros artesãos.

O labor é o tipo de atividade que, ao contrário do trabalho, que produz coisas

duráveis e cria um mundo, produz coisas fugazes que respondem às necessidades vitais

imediatas. Desta forma, não se diferencia muito das atividades que outros animais não

humanos realizam para manter sua sobrevivência.

No labor, não há produção de coisas duráveis, de símbolos ou de projetualidades

humanas, mas a incessante produção e reprodução do metabolismo do corpo. É por isso

que Arendt identifica o labor na atividade do trabalho industrial fordista, e na forma

geral de produção capitalista.

Nesta, o homem se adequa ao movimento da máquina, seu corpo é subsumido no

processo de produção que o domina, seu objetivo se restringe a manter sua capacidade

de produção em dia para continuar a manter a engrenagem do capital em

funcionamento. O homem não produz um mundo, mas é reduzido a mera ferramenta de

um interminável processo produtivo anônimo.

Talvez os escravos da Grécia antiga, responsáveis pelas atividades menos

valorizadas de reproduzir o metabolismo dos corpos de seus donos, enquanto estes

reservavam o tempo para o espaço público da aparência e da construção de

sociabilidades pelo discurso e pelo argumento, se pareçam mais com os proletários de

nossas fábricas ou com qualquer outro trabalhador virtual de nossas empresas flexíveis.

A proposta de Arendt é que se avance na esfera do discurso e da ação, ou seja,

que se resgate o aspecto político da existência, produzindo sentidos onde se encontram

apenas vazios e anomia.

O discurso é o instrumento do debate político, e a base de nossa sociabilidade,

uma vez que é pelo discurso que construímos a realidade.

A ação é consciente, mas seu percurso é imprevisível.

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Porque a ação é uma construção coletiva, mesmo que ela seja iniciada por

apenas uma pessoa.

Esse é o significado da palavra social: aquilo que é construído pela interação de

diversos agentes, misturados à natureza bruta da vida.

Agir significa então produzir sentidos, sem desconsiderar que a contingência se

apresenta continuamente produzindo desvios, e que outros fatores de difícil controle

intervêm para definir resultados imponderáveis. É a ação que nos faz afastar da

condição de Homo sacer12

.

QUALIDADE E QUANTIDADE

Um dos objetivos perseguidos nos projetos de trabalho era o de que as atividades

produzissem em qualidade e quantidade suficientes para a sobrevivência no mercado,

em busca do aumento da remuneração de seus trabalhadores e da ampliação do

empreendimento.

12

Homo sacer é um personagem do antigo direito romano, descrito por Giorgio Agambén, que o utilizará

como categoria para entender a situação dos prisioneiros dos campos de extermínio nazistas, que para ele

representariam o paradigma da biopolítica moderna (as relações de violência nos campos escapam a todo

ordenamento jurídico, podendo os prisioneiros ser mortos como piolhos, já que sua condição de

humanidade naquele momento escapa às formas conhecidas pela política e pelo direito) (Agambén,

2002). Para entender o lugar do Homo sacer no antigo direito romano é necessário convergir à discussão

da soberania. Naqueles tempos, a soberania era pautada por uma ordem jurídica composta por cidadãos

comuns, que possuíam direitos políticos, mas que conviviam com a possibilidade permanente de ser

desencadeado um estado de exceção nas situações de emergência, em que o soberano anula todos os

direitos e decide sozinho sobre o destino da sociedade. Entretanto, dentro da estrutura social de então,

alguns habitantes podiam viver um estado de exceção permanente em que eram destituídos de seus

direitos. Melhor ainda, tais habitantes não poderiam sequer entrar num ordenamento divino – em que o

sacrifício seria uma das possibilidades de se ter uma existência e um significado social – nem jurídico.

Não poderiam ser sacrificados, servindo como matéria de importante relação social com as divindades,

mas poderiam ser mortos sem que isso implicasse quaisquer consequências a seus assassinos. Eram como

que soberanos ao avesso: enquanto o assassinato do soberano era falta mais grave que um assassinato

comum, fazer morrer um Homo sacer era muito menos que um assassinato, pois era como se este já

estivesse morto socialmente. Nessa caracterização do Homo sacer, Agambén retoma o importante

ordenamento que separa a vida nua (zoé) da vida política do cidadão (bíos). Vida nua é aquilo que nos

identifica a todos os outros animais; é a vida pura sem mediações ou socializações, a vida metabólica sem

a simbolização que caracteriza a existência do homem. A vida política é a vida da construção permanente

da sociabilidade, da construção do futuro através do domínio do presente, do exercício da linguagem e da

comunicação enquanto construtoras da cidadania. O Homo sacer é aquele preso à vida nua e que

constantemente nos faz lembrar do animal laborans citado por Arendt.

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Era a ampliação da rede social através da entrada no mercado que construía

autonomia e afastava o controle social e a exclusão, diferenciando-se das laborterapias

ou das oficinas protegidas.

Esta era a possibilidade de se produzir valor social através da prestação de

serviços e da produção de bens dotados de qualidade, afastando qualquer possibilidade

de o consumo se dar por complacência aos doentes mentais.

Nesse sentido, as propostas de prestação de serviço tornavam-se mais atraentes

que as de produção de bens. Isso porque conseguiam melhor inserção no mercado,

mesmo com menor investimento em equipamentos e maquinário, e ainda possibilitavam

o contato direto dos usuários com seus clientes, aumentando as possibilidades de

ampliar a rede social.

A produção de bens, necessariamente artesanais em virtude da dificuldade de

concorrer com empresas que investem fortemente em maquinário e assim barateiam

seus produtos numa larga linha de produção, poderia ocorrer se o artesanato fosse de

qualidade e singularidade. Em outras palavras, a produção de artesanato só seria viável

economicamente se houvesse algo que diferenciasse as peças produzidas e lhes

agregasse valor econômico, tornando-as excepcionalmente belas e exclusivas.

Mas o essencial para garantir outro tipo de entrada no mercado, com qualidade,

eram de fato as alianças. Alianças reais e desejadas, que podem durar muito tempo ou

apenas se tornar contingentes e tênues.

Todo tipo de aliança era fundamental, e as relações de trabalho, de troca, de

prestação de serviços ou de venda de objetos também poderiam constituir uma aliança

mais ou menos intensa, mais ou menos duradoura.

Aliança quer dizer apoio mútuo, reciprocidade e vida com qualidade. As alianças

dos projetos de trabalho também eram relações que produziam novas mensagens, e isso

era fundamental para exercermos nossa capacidade de produzir novas formas de

sociabilidade. Tais alianças deveriam ser muito bem cuidadas, seria preciso imprimir

qualidade em tudo o que fazíamos, cuidar muito bem dos clientes (empresas, secretarias

municipais, consumidores particulares), para que também fôssemos da mesma forma

muito bem cuidados por eles.

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E, mais uma vez, reitero que o que diferenciava os projetos de trabalho das

práticas laborterápicas era a efetiva entrada no mercado, mesmo que essa entrada

tentasse interferir nele a ponto de provocar pequenas transformações, criando zonas de

intercâmbio pacificadas e, ao mesmo tempo, agindo como vírus que produz mutações.

CUIDANDO DA CASA DOS ÔNIBUS

A essa altura, eu e a equipe já nos sentíamos aptos a negociar novos projetos de

trabalho com as secretarias municipais, sem a presença do interventor.

De certa forma, já estávamos escolados, e nos aprimoramos cada vez mais nesse

tipo de negociação.

Conversamos com nosso companheiro Paulo, administrador da Companhia

Santista de Transportes Coletivos, sobre a possibilidade de elaborarmos um projeto

conjunto para dar conta da necessidade que a empresa vinha tendo de manter um

pequeno grupo de manutenção para pequenas reformas e consertos no prédio-sede.

Logo pensamos em envolver a associação que criamos (Afrent) para assinar um

convênio com a empresa, e assim possibilitar a participação dos usuários dos NAPS.

Assim fizemos, e construímos um projeto de manutenção predial, que cuidaria

da casa dos ônibus que, àquela época, serviam toda a cidade.

É verdade, estávamos ampliando mais um pouco os lugares de que cuidávamos.

Os usuários, cuidados pelos profissionais de saúde mental dos NAPS, estavam eles

mesmos cuidando de outras coisas e, indiretamente, cuidando das pessoas que

usufruíam dessas coisas, no caso, os trabalhadores alocados no prédio da CSTC.

AFINAL, O QUE É PRODUTIVIDADE?

Nas frentes de trabalho, a produtividade tinha outro caráter, pautado num

equilíbrio entre a singularidade do trabalhador e a multiplicidade do mercado.

Dessa forma, o produto era outro, possuía autores reais, já que os trabalhadores

podiam ser os verdadeiros protagonistas do processo de trabalho.

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A disponibilidade na relação com o outro e o sentido de posse dos objetos

deveria ter seus significados modificados, colocando em questão as vias comuns de

interpretação e dos sentimentos de posse que compartilhamos como cidadãos do

mercado.

O consumo aqui tinha uma chance de escapar às normas do fetiche da

mercadoria, e aos objetos ou serviços produzidos se podia acoplar um novo tipo de

valor, valor mais de uso que de troca, que intermediasse relações entre pessoas de uma

forma mais solidária e coletiva do que o jeito concorrencial e individual do capitalismo.

A crítica da própria situação de exclusão e do papel de delegado destruidor do

manicômio, exercida tão frequentemente quando se lutava para que um trabalhador

singular tivesse sucesso em sua empreitada de inserção num grupo de trabalho,

legitimando-se como um componente sujeito a direitos e deveres, era um exercício

antialienação por excelência.

A eficiência nos projetos, por sua vez, era considerada a disponibilidade de cada

pessoa em descobrir novas potencialidades, ultrapassando os limites estabelecidos.

Quanto mais o trabalhador se engajava e tomava corajosamente a postura de

ultrapassar limites, enfrentando novos desafios, mais seria considerado eficiente. Isso

evidentemente significava ações e desafios diferentes para cada um.

LABORPSIQUIATRIA

A laborterapia sempre foi o instrumento utilizado pela psiquiatria dos

manicômios para subalternizar, para adestrar seus usuários e, desta forma, manter-se

intacta, mantendo intacta também a sociedade que sempre protegeu.

Esta última, assim, esteve sempre livre das contradições que a vivência com os

loucos produziria, principalmente no âmbito dos valores relacionados com o trabalho

abstrato, com suas noções de tempo e espaço, com sua disciplina e sua submissão à

forma-mercadoria, seus projetos de vida voltados à acumulação absurdamente

desprovidos de sentido.

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As oficinas protegidas são prolongamentos dessas práticas da psiquiatria

tradicional, pois, mesmo que localizadas em outras instituições de ―assistência‖ ou

controle social – que em muitos aspectos lembram as ―workhouses‖ destinadas aos

operários do início da industrialização ou os espaços asilares do tratamento moral de

Pinel do século XIX –, sempre desenvolveram o tipo de relação institucional que

subalterniza, pela força ou pelo exercício do poder científico dos cuidadores-

treinadores, verdadeiras referências desse espaço social moderno da abstração e

empobrecimento da existência.

As oficinas protegidas sempre reproduziram também um tipo de experiência

com o trabalho, ora pautada em relações de exploração (justificadas pela incapacidade

produtiva e civil do ―aluno-trabalhador‖), ora pautadas na produção do nada, ou seja, na

pura ocupação do tempo como um fim em si mesmo.

Uma mudança de paradigma na relação com o sofrimento psíquico exige

problematizar a questão da inserção no trabalho, produzindo contextos em que os

valores sejam modificados, de forma que dessa negociação permanente resulte a

participação efetiva dos loucos, com todas as suas múltiplas capacidades e discursos.

Não produzir esse enfrentamento, que supera a separação entre tratamento,

reabilitação, inserção social, significa reproduzir experiências de exclusão e controle

social, pautados na violência dos processos de normalização.

RISCOS

Tentávamos optar pelo desenvolvimento de atividades que eram repletas de

riscos e desafios, pois o nível de risco podia ser proporcional à potencialidade das

mudanças (Kinker, 1997).

Se o manicômio é o lugar zero de troca, como diz Rotelli (1990), é também o

lugar zero de riscos para a sociedade, pois o único desafio existente é a destruição do

usuário.

Assim, dentro desse processo de desinstitucionalização de instituições e de

estatutos especiais presentes nessas iniciativas de re-configurar a questão do trabalho

(Nicácio, Kinker, 1996), propunha-se a ampliação do nível dos riscos para que os

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potenciais de transformação fossem aumentados, o que exigia a transferência de

recursos públicos que antes financiavam a destruição de pessoas (no manicômio) para

projetos que efetivamente visassem à produção de vida.

Arriscar-se por algo é o que pode dar sentido às ações.

Superar o medo dos riscos é uma tarefa cotidiana dos profissionais de saúde

mental e não é nada simples. Mas ela traz consigo a possibilidade de modificar os

fluxos de poder e saber e, dessa forma, modificar os contextos, os papéis e as

hierarquias.

Colocar-se em risco é uma ação que muitos de nossos usuários já realizaram,

mesmo sem o saber ou escolher. Porque a experiência da loucura traz muitos riscos,

tornando o sujeito muito vulnerável a muitas respostas possíveis e diferentes.

Na questão dos projetos coletivos de trabalho, tentávamos manter o equilíbrio

possível na medição dos riscos, sabendo que os desafios eram imprescindíveis. Medindo

os riscos, assumimos com os usuários alguns percursos imprevisíveis. Esse estar no

mundo é muito diferente da vivência negativa e anulada de ser um interno de uma

instituição total, ou de ser um participante de um programa de laborterapia numa oficina

protegida.

Um exemplo da assunção de riscos foi a decisão de implantar a Fábrica de

Blocos em Bertioga, localizada a vários quilômetros do centro de Santos, o que exigia

que nos deslocássemos e mantivéssemos os usuários-trabalhadores longe da maioria dos

recursos de suporte oferecidos pela cidade de Santos.

Muitas vezes essa situação dificultou nossa ação, mas quando assumimos o

projeto avaliamos que deveríamos aproveitar a oportunidade. Acredito que tenha sido

uma escolha correta, pois foi um aprendizado intenso para a equipe e para os usuários.

Além disso, nossa ida para a Fábrica de Blocos deu início à implantação de uma equipe

de saúde mental que passou a atender a população local, algo que até então não ocorria.

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OCUPAR OS INTERSTÍCIOS DA CIDADE

A localização física dos projetos de trabalho em regiões diferentes da cidade foi

uma das principais estratégias desenvolvidas em Santos.

Essa ocupação de vários pontos facilitava o enraizamento no espaço social e se

inseria no contexto de produzir novas mensagens no imaginário social em relação aos

portadores de sofrimento psíquico, repropondo um novo convívio marcado pelo respeito

à diferença e pelo resgate da valorização de características humanas descartadas durante

o processo de configuração dos padrões normativos da modernidade.

Inseria-se também na perspectiva de combater o estigma de periculosidade e

incapacidade do louco através do desenvolvimento de atividades que beneficiavam a

cidade como um todo. Entre essas atividades estavam a manutenção das praças e

jardins públicos, a participação no programa de reciclagem de lixo, o trabalho na

construção civil, colaborando com os projetos habitacionais voltados para as classes

populares do município etc.

A construção gradual de novos sujeitos sociais tinha como lócus a própria

sociedade, o mercado e suas contradições, já que não existia mais a figura do

manicômio como neutralizador e mascarador de conflitos.

DESCOBRIR NOVAS POTENCIALIDADES QUE NUNCA PUDERAM SER

EXERCITADAS

Nos projetos de trabalho, o questionamento da forma moderna do trabalho se

daria a partir da proposta de novas normas e relações, em que a singularidade e o

sofrimento dos usuários-trabalhadores assumiam importância fundamental.

Isso só seria possível através da descoberta e da multiplicação de capacidades,

como estratégias para fazer dos usuários os protagonistas do processo de trabalho.

O trabalhador poderia ser, neste caso, aquele que produzia riquezas e se

autoproduzia a todo momento.

Além das novas potencialidades dos usuários-trabalhadores, era imperativo

descobrir as potencialidades e os recursos da comunidade.

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Em outros termos, seria preciso modificar os contextos de trabalho, de modo a

possibilitar o diálogo entre as potencialidades do usuário e as potencialidades dos

contextos-ambientes.

Pois não se tratava de processos de normalização e adaptação, mas de uma nova

relação entre sujeitos e contextos, considerando que geralmente contextos e sujeitos se

misturam nos papéis de sujeito e objeto, ou seja, os dois são ao mesmo tempo sujeitos e

objetos.

A CONSTITUIÇÃO DE UMA COOPERATIVA

A escolha da cooperativa de trabalho como instância de representação dos

usuários e demais envolvidos nas relações estabelecidas com o mercado foi também

uma das marcas do processo santista.

A cooperativa é uma pessoa jurídica formalmente constituída, que deveria nesse

caso possuir alianças com diversos setores da sociedade, permitindo sua forte inserção

no mercado e, ao mesmo tempo, desenvolvendo projetos que incorporassem

intervenções inovadoras na cidade, em busca de uma cidade mais saudável.

Esses projetos que envolviam trabalho, alianças sociais e projetos inovadores

tentavam criar as condições para a composição dos empreendimentos sociais, como

defendem os italianos (Gallio, 1991)13

.

A cooperativa era uma opção política de organização do trabalho que rechaçava

as situações de exploração e criava entre os trabalhadores vínculos que ultrapassavam o

compromisso com a produção.

13

Os empreendimentos sociais, na perspectiva dos italianos, envolvem não somente a criação de

cooperativas sociais (que são instâncias de produção compostas por trabalhadores comuns e pessoas em

desvantagem, e que, por isso, recebem um tratamento especial do estado e do mercado), mas são

máquinas de produzir sociabilidades, instâncias geradoras de experiências produtoras de vida e de novas

mensagens ao imaginário social. O caráter ao mesmo tempo público e privado desses empreendimentos

aponta uma nova forma de se produzir e de se relacionar socialmente, fomentando ambientes de troca, de

cuidado entre pessoas, de descoberta de potencialidades.

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A intenção de que a comunidade local se envolvesse para se tornar cúmplice,

corresponsável e partícipe do processo e do sucesso da cooperativa, que passaria a ter

características de empreendimento social, com perfil público e privado ao mesmo

tempo, abria espaços para a produção de valores que contradiziam o movimento do

mercado e do capital.

Esses laços propunham o desenvolvimento sustentado da cidade,

compatibilizando desenvolvimento econômico e bom senso na preservação da natureza

e no bem-estar da população, desqualificando preconceitos e processos de exclusão.

É que aqui também os valores de periculosidade e incapacidade dos loucos

podiam ser fortemente desmentidos.

Mais uma vez, a prática laborterápica e o paradigma psiquiátrico são aqui

questionados. Constituir uma cooperativa composta por pessoas que são consideradas

incapazes pelo código civil (que sempre utilizou a nosografia psiquiátrica como base de

apoio) é algo que contradiz os pressupostos básicos de incapacidade em que se apoiam

os diagnósticos psiquiátricos.

De fato, a relação entre a psiquiatria e a justiça é antiga, e data da época do

nascimento da primeira, que auxiliou a justiça na difícil tarefa de ter que interditar

pessoas em pleno momento histórico de defesa dos direitos individuais (Castel, 1978;

Foucault, 2002, 2006).

A herança dessa relação psiquiatria-justiça está presente entre nós com força

cada vez maior. Basta perceber a quantidade de processos instaurados cotidianamente

para a interdição de um número crescente de pessoas (número que cresce

proporcionalmente ao número de diagnósticos da nosografia psiquiátrica atual).

E não foi diferente quando da constituição da cooperativa. Alguns advogados

consultados, por exemplo, assinalaram à época que a constituição da cooperativa

poderia ser ilegal. Sempre rebatemos esse posicionamento dizendo que boa parte dos

usuários-trabalhadores não eram interditados oficialmente e que, sendo assim, poderiam

responder por si, mesmo que precisassem de apoio. Da mesma forma, poderiam

responder conosco formalmente pela cooperativa. E foi assim que fizemos.

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FANTASMAS DO TRATAMENTO MORAL14

14

O tratamento moral foi a primeira tecnologia da medicina mental, inaugurando uma nova relação com

a loucura. A partir da entrada dos alienistas nos asilos no final do século XVIII, a loucura deveria ser

abordada bem de perto, e não mais por entre as frestas do muro em que era confinada, como ocorria na

era clássica. Novas táticas e um novo olhar deveriam ser desenvolvidos com o intuito de imprimir no

alienado o medo, a culpa, a autocorreção. Para exercer esse poder moral, que deveria vigiar e controlar,

delineando cada comportamento esperado, fazia-se necessária toda uma série de castigos e recompensas.

Dever-se-ia recorrer a castigos e mesmo a procedimentos como a aplicação de duchas geladas e uma

infinidade de outros artifícios que, se antes, na era clássica, supostamente tinham poderes de cura nos

nervos mais ou menos ressecados ou úmidos, retraídos ou esticados, agora deveriam funcionar como

meio de subjugar moralmente. Muitas dessas práticas também foram defendidas e utilizadas por Pinel,

embora o que tenha ficado para a história seja a crença de que os reformadores operaram apenas uma

grande libertação humanitária dos loucos acorrentados. Como ressalta Foucault, no cotidiano do asilo, um

tribunal, com todos os seus momentos – a investigação, o julgamento, a pena –, deveria permanecer

perpetuamente no interior de cada um dos internos, para que a tarefa do poder moral pudesse dar frutos

(Foucault, 2005a). Ou, como cita Robert Castel em sua obra sobre o alienismo (Castel, 1978): ―A ordem e

a regularidade em todos os atos da vida comum e privada, a repressão imediata e incessante das faltas de

qualquer espécie, e da desordem sob todas as suas formas, a sujeição ao silêncio e ao repouso durante

certo tempo determinado, a imposição do trabalho a todos os indivíduos capazes, a comunidade da

refeição, as recreações com hora fixa e duração determinada, a interdição aos jogos que excitam as

paixões e que entretêm a preguiça e, acima de tudo, a ação do médico, impondo a submissão, a afeição e

o respeito por sua intervenção incessante em tudo o que diz respeito à vida moral dos alienados: tais são

os meios de tratamento da loucura que fornecem, ao tratamento aplicado nestas casas, uma incontestável

superioridade em comparação com o tratamento aplicado em domicílio‖ (Parchappe, M. Rapport sur le

service médical de l’asile des aliénés de Saint-Yon, Rouen, 1841, p. 11, apud Castel, 1978: 115-6).

Castel também cita outros autores dessa época, relatando a importância de um asilo convenientemente

organizado para produzir uma atmosfera médica que impregnasse os alienados a ponto de o processo

passar despercebido. Afinal, num asilo bem organizado, com lugares, horários e regulamentos bem

definidos, tudo serviria para imprimir esse espírito de ordem e submissão (Castel, 1978: 116). Como

Foucault menciona, os efeitos provocados por essa ligação médico-paciente, que tentava apreender toda a

experiência da loucura como uma propriedade única da psiquiatria, não deixavam escapar seu caráter

mítico produzido pelo poder moral atribuído ao médico. Mais que portador de técnicas especializadas e

saberes sofisticados, o médico passava a funcionar como o taumaturgo das curas, aquele que

misteriosamente produzia transformações; e havia aqueles pacientes que chegavam mesmo a produzir

delírios referentes ao poder de cura de seus médicos, delírios estes que efetuavam modificações, mas que

eram pautados no exercício de um poder e de uma coação moral historicamente estabelecidos. Este era,

enfim, o alicerce dos alienistas no desenvolvimento do tratamento moral.

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Apresento abaixo trechos de textos dos expoentes da Liga Brasileira de Higiene

Mental, que nas primeiras décadas do século XX, e especialmente a partir da ditadura

Vargas dos anos 1930, fizeram a cabeça dos poderosos e da dita sociedade civil,

exercendo a função de intelectuais, guardiães da ordem, funcionários do consenso

(Gramsci, 1985). Todos os trechos foram selecionados por Jurandir Freire Costa (1980).

A iniciativa é uma tentativa de mostrar em que contexto científico-ideológico a

laborterapia foi sendo instituída no Brasil, sob a influência do tratamento moral, com

uma forte associação com os movimentos higienista e eugenista:

―Alguns códigos hindus prohibiam allianças com famílias que não

tivessem filhos homens, com aquellas cujos membros são muito

peludos, soffrem de almorreimas, de dyspepsia, tysica, epilepsia,

vitiligo, e elephantiasis, e os espartanos, como é geralmente sabido,

chegaram ao extremo de arremessar ao Eurotas os meninos nascidos

defeituosos. D‘esta possibilidade de reproducção, proveio por certo uma

forma moderna que prescreve esterilizar alienados delinquentes,

degenerados alcoólicos inveterados, quer como penalidade, quer como

prophylactico. Para obter a esterilização basta no homem resseccar um

centímetro do cordão espermático, de cada lado. Essas operações foram

a princípio praticadas na Suissa e nos Estados Unidos, tendo o seu uso

se generalizado bastante neste último paiz. O alvitre, excellente ‗a priori

‘, tem o inconveniente de attingir apenas os casos mais graves‖ (Juliano

Moreira, 1919, apud Costa, 1980: 36).

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―As medidas em practica consistem em estabelecer colônias e albergues

para mendigos, penitenciárias e prisões para os criminosos, manicômios

e hospitais para loucos e degenerados, sem que os estabelecimentos

criados comportem o número crescente de infelizes que surgem cada

dia em progressão geométrica. Para aggravar, ainda mais, a calamitosa

situação, a hygiene social de um lado, a medicina e a philantropia de

outro, salvam a vida de milhões de infra-homens (que a seleção natural

devia eliminar), aumentando assim, o peso morto e as contribuições

para conservá-los na inatividade ou reclusos nos estabelecimentos

adequados. Nunca foram tão numerosos como hoje os auxílios

sentimentais e econômicos que se prestam às enfermidades physicas e

sociaes. Os próprios Estados esforçam-se, aumentando as cargas

contribuitivas para fazer viver e triumphar (graças à sua ativa

reprodução) os degenerados physicos, psychicos e os criminosos. Em

toda parte são criadas e prosperam as associações destinadas à

conservação destes resíduos humanos. Onde existem, porém (à

excepção dos institutos scientíficos, que carecem ainda do valor social

que lhes corresponde), sociedades para proteger e alentar os elementos

mais úteis à humanidade?‖ (Renato Khel, 1931, apud Costa, 1980: 42).

―Urgia, pois, que o Estado-providência assumisse o encargo de prover o

bom resultado das uniões reprodutoras da espécie humana, tal como faz

a respeito dos animais de corte‖ (id., ibid.: 43).

―Vale, entretanto, dizer algo de incisivo sobre esse lamentável descaso

em que sempre tem estado essa questão em nosso paiz, e, sem alludir à

inferioridade patente dos elementos de formação ethnica da nossa antiga

Colônia, lastime-se, todavia, a incúria de 110 annos de governo

independente de uma nação immigratória que, ainda hoje, permitte

sejam incorporados ao seu maior patrimônio – o homem – até os

rebutalhos de raças, mais ou menos, degeneradas, como algumas da

Ásia Oriental, além de outras, quiçá tão indesejáveis, como todas as do

Oriente próximo (Ásia Menor), aquellas e estas, boas ou más, sãs ou

doentes, inferiores ou superiores, mas, todas, para a nossa formação

eugênica, só comparáveis aos insanos incuráveis de outros povos, que

também recebemos, tratamos e mantemos em hospitaes, sempre

superlotados‖ (Xavier de Oliveira, 1932, apud Costa, 1980: 44).

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O tratamento moral criado pelos alienistas do século XIX manteve-se no futuro

como assombração.

Mesmo tendo a psiquiatria do século XIX e XX enveredado pelo biologicismo,

tentando legitimar-se como especialidade médica, à semelhança e com os mesmos

métodos investigativos das outras especialidades focadas no corpo, o moralismo

continuou como um fantasma pairando no ar, revelando-se o fim oculto e último das

instituições totais (Goffman,1974; Basaglia, 2001; Castel, 1977, 1978; Foucault, 2000,

2005a).

Moralismo e controle social dos desvios, conceitos idênticos.

O tratamento moral pôde atualizar-se em novas experiências, com a conivência

da psiquiatria orgânica (que tentava dissecar o cérebro para encontrar as causas das

doenças mentais, o método da anatomofisiopatologia citado por Foucault).

Uma dessas experiências foi a da terapêutica ativa de Herman Simon (De Carlo,

Bartalotti, 2001; Amarante, 1995; Birman, 1992).

Ela nasceu quando o psiquiatra viu a necessidade de colocar os próprios

pacientes para trabalhar na reconstrução de um hospital destruído pela guerra e percebeu

que os pacientes melhoravam, que o envolvimento com a tarefa tomava o lugar

dos pensamentos mórbidos. Ou seja, trágica ironia, os pacientes ficavam melhores

utilizando sua energia na reconstrução da instituição que os iria destruir, vetando sua

participação na vida social.

É verdade que o objetivo da ação era o que menos importava; poderiam também

estar carregando pedras de um lado para outro, construindo montes que seriam

desmontados tão logo fossem elevados, que o efeito talvez fosse o mesmo.

Talvez tenha ressurgido daí o termo ocupação, tautologia do fim em si mesmo,

da produção do não sentido, da alienação.

O segundo retorno do fantasma do tratamento moral, que pôde deixar de ser

latente para ser manifesto, no nosso caso brasileiro, veio à tona com os alienistas do fim

do século XIX e início do XX.

Em sua aliança com os higienistas, e com os eugenistas, os grandes psiquiatras

desse tempo construíram seu reino em imensos terrenos afastados das cidades, onde

foram instaladas as grandes colônias (agrícolas, mas não só) (Amarante, 1982).

O lema desses locais era trabalho, trabalho e trabalho.

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Disciplina e moral rondavam o cotidiano dos internos, que poderiam chegar aos

milhares, como foi o caso do Juqueri do Dr. Franco da Rocha (Cunha, 1990).

Além da ocupação, reinava a forte exploração, pois o que recebiam os internos

como fruto do trabalho era apenas a possibilidade de se alienar e se manter reclusos,

tornando as instituições de segregação quase autossustentáveis economicamente.

Com a modernização da psiquiatria no Brasil, somando-se às influências dos

alienistas da Europa (os nossos alienistas foram formados por eles), o biologicismo

contribuiu para fazer uma síntese entre as práticas disciplinares e aquelas mais

científicas que, com sua expertise, ajudaram a queimar de forma violenta muitos

neurônios e, de certa forma, mantêm-se assim até hoje, como atesta a situação de muitos

dos hospitais psiquiátricos que ainda sobrevivem ao movimento da reforma psiquiátrica

(Kinker, 2007).

O tratamento moral manteve sua presença fantasmática, produzindo novas

roupagens e descendentes sempre mais modernos. Nos termos de Castel (1978), um

verdadeiro aggiornamento, uma modernização, uma atualização.

Algumas cenas mais recentes demonstram isso: a presença de um visgo moral

mesmo nas experiências europeias e americanas de reforma psiquiátrica do pós-guerra,

a invenção da profissão terapia ocupacional como redentora e humanizadora dos

hospitais psiquiátricos no início do século XX nos EUA, anos mais tarde na Europa, e

nos anos 50 nos Brasil (De Carlo, Bartalotti, 2001).

Essas tecnologias disciplinares também foram sendo transportadas para a lida

com outros desviantes: pessoas com deficiência, idosos, tendo como espaço privilegiado

de intervenção as instituições totais, e produzindo toda sorte de estigmas (Goffman,

1974, 1980).

É por isso que precisamos rever e transformar nosso papel, subvertendo a lógica

de nossas práticas.

Uma revolução é necessária para transformar esses dispositivos: revolução

cotidiana, molecular, microrrevolução.

Sejamos antieugenistas, contaminando-os com a riqueza dos desvios.

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VAMOS PRODUZIR NOVAS FORMAS DE SOCIABILIDADE?

A noção moderna de trabalho está associada ao trabalho fabril, ou qualquer outro

vinculado a uma grande empresa.

No Brasil, ela ganhou um componente simbólico extraordinário que foi a

carteira de trabalho.

Historicamente, possuir uma carteira de trabalho significou trilhar o bom

caminho, ter uma inserção qualificada no mundo do trabalho e na sociedade, que

garantia ao seu portador sucesso e status de pertencer à ―melhor‖ camada social.

A verdade é que, à parte esse caráter moral do trabalho, presente no fato de, por

muito tempo, a posse da carteira de trabalho ser uma condição capaz de livrar da prisão

alguém autoritariamente abordado por um policial, esse documento pouco ou nada

efetivamente representou para seu portador, em matéria de inserção econômica. É

verdade que era ela um possível passaporte para a seguridade social, tanto em termos de

assistência à saúde (antes da existência do SUS), quanto em nível de acesso à

aposentadoria. Mas de nada adiantaria a carteira, se ela não estivesse associada a um

emprego. Assim, ela serviu mais como um fetiche da moral do trabalho do que para

qualquer outra coisa.

A ideia moderna de trabalho assalariado, enquanto atividade simbólica da boa

correção moral dos indivíduos, reservou um lugar marginal aos outros tipos de atividade

que não estivessem vinculadas à produção de mais-valia e, assim, a um emprego.

Os trabalhos domésticos, o lazer, a criação artística, e tantas outras atividades em

que o humano pode exercer seu absoluto controle e desenvolver sua singular

criatividade, foram tidos historicamente como atividades menores, quando não símbolos

de indolência, preguiça, falta de retidão.

A arte e o artesanato, muito embora ocupassem um lugar de destaque no quesito

criação, foram historicamente definidas como atividades menos sérias, o que implicava,

por sua vez, o questionamento sobre a possibilidade de haver algum espaço para a

criatividade nas atividades sérias do trabalho como emprego.

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A dissociação entre o mundo do trabalho e o do não trabalho, dessa forma,

denuncia o fato de, na sociedade moderna, o conceito de trabalho estar exclusivamente

associado à questão da empregabilidade.

Não se considera trabalho outro tipo de atividade que, embora não componha

uma relação empregatícia, exija grande dose de esforço, de criatividade e, além do mais,

produza rendimentos.

Caberia perguntar se e como a dimensão do trabalho como obra poderia ocupar

um espaço em todas as ações humanas, ou se apenas quando este for superado, será

possível inventar um tipo de atividade que faça os homens dialogarem entre si e com a

natureza.

As atividades do mundo do não trabalho não vêm ganhando estatuto de categoria

de análise pelos estudiosos, da mesma forma que as atividades do trabalho assalariado,

com algumas raras e importantes exceções.

Isso talvez represente algo, uma vez que a investigação científica geralmente

está em sintonia com seu tempo, e com o que este produz de valor social e moral.

Pouco se estuda sobre os protagonismos dos projetos de não trabalho, sua forma

de organização e gestão, e o que eles produzem de valores, experiências existenciais,

conhecimentos, além de rendimentos econômicos (Blass, 2006).

As atividades de não trabalho são vulgarmente consideradas atividades do tempo

livre, porque só há liberdade fora do emprego, ou melhor, só o tempo do emprego é um

tempo sério e válido, que merece nossa atenção, enquanto o outro tempo, o ―livre‖,

tende a ser um tempo vazio. O ―tempo livre‖ é, no entanto, com frequência, alvo da

reprodução e acumulação do capital, através das ofertas de consumo da indústria do

entretenimento. É como se, na verdade, não houvesse tempo liberto do processo de

valorização do capital, e como se estivéssemos produzindo fabrilmente mesmo nos

momentos de descanso do emprego.

A oposição entre trabalho e lazer, trabalho e tempo livre, muitas vezes é

colocada em xeque por atividades tanto de trabalho como de não trabalho, que misturam

trabalho e ludicidade, trabalho e produção de si.

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As experiências que mesclam relações empregatícias e não empregatícias em

torno de projetos coletivos, como é o caso dos desfiles de carnaval, reforçam essa tese.

Produção e doação de si se misturam nesses casos.

Isso sem dizer que, mesmo os espectadores de espetáculos, ou de livros, ou de

obras de arte, produzem sobre as obras com as quais se relacionam, produzindo um

movimento de enriquecimento da criatividade e do fazer humanos.

Outros exemplos de projetos coletivos que não se inserem no campo do

emprego, como a auto-organização de populações com menor poder aquisitivo ou

marcadas por menor valor social devido a alguma incapacidade, desvantagem, ou forma

alternativa e transgressora de ver e estar no mundo, têm demonstrado a possibilidade de

viver experiências que, além de produzir rendimentos, produzem novas sociabilidades,

relativizam valores sociais de convivência, produzem arte, produção de si, bem-estar,

sem estar livre de contradições.

Mesmo convivendo com insuperáveis contradições (e há muito já aprendemos

que as contradições existem e muitas delas não são superáveis, pois a condição humana

é também composta por muitas ambiguidades e multiplicidades), essas experiências

produzem questionamentos acerca do mercado, a partir de dentro dele.

Tais transformações no mercado, mesmo que frágeis e pontuais, são as chances

de transformá-lo a ponto de um dia ele poder não mais ser chamado e identificado como

mercado, mas como rede de relações de pessoas que criam, que impõem sua

criatividade no processo de produção e de vida, produzindo incessantemente obras a

serem não contempladas, mas mexidas e transformadas por outras pessoas.

Talvez a proposta de Arendt sobre a prática criativa da ação e do discurso,

enquanto elementos fundamentais da condição humana, devesse ser levada a sério como

teorização de um processo prático já em andamento em diferentes esferas.

Isso seria importante para que o dinheiro, o capital e a mercadoria deixassem de

ser a medida de todas as coisas.

Nestes tempos de mudanças na centralidade do trabalho, quando ainda se

trabalha mentalmente com a ideia do trabalho assalariado indutor de inclusão social,

deveríamos considerar que não há exclusões, mas diferentes tipos de inclusões, sendo as

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mais valorizadas aquelas pautadas no emprego e na mercadoria que, inversamente ao

que se pensa, são das mais pobres por tentarem eliminar a multiplicidade da condição

humana.

A sociologia do cotidiano, com sua capacidade de observar o detalhe e produzir

descobertas inusitadas, bem poderia estar a serviço desse tipo de projeto, através da

descoberta daquilo que o real já insinua nas experiências que têm produzido práticas

transformadoras.

São estas as ―pequenas revoluções do cotidiano‖ que tanto desejamos.

A FÁBULA DAS PRIMAS-IRMÃS

Duas familiares nasceram em tempos concomitantes, reproduzindo

posteriormente muitos outros partos a fórceps.

Uma delas trouxe aos poucos as pessoas dos campos para as cidades, para

submetê-las a grandes estruturas impessoais dominadas por motores um tanto

esquisitos: essa é a sociabilidade do trabalho, a donzela de cabelos longos e louros que

circulava dançando levemente com seu vestido branco por entre as máquinas das

fábricas do século XVIII.

A outra era uma donzela de cabelos cor de fogo, cacheados e compridos.

Seu vestido era roxo, e ela não circulava por entre máquinas, mas pelos corpos e

mentes um tanto assustados, e submetidos a atos morais, dos internos dos primeiros

asilos de alienados: essa era louca e desvairada, um pouco sádica, e se chamava

psiquiatria.

As primas-irmãs estabeleciam entre si uma relação hierárquica, uma servia à

outra: se a psiquiatria (ruiva) servia ao projeto moderno de forjar um novo homem e

uma nova forma de estar no mundo para a sociabilidade do trabalho (a loira), esta se

submetia também aos caprichos da psiquiatria, dando-lhe um lugar na corte dos

soberanos, validando-a como ciência, pedindo que ela não só controlasse os distúrbios

sociais, mas que inventasse também algumas idiossincrasias para esse novo homem,

algo como uma série de estados de espírito, alguns transtornos identificáveis, alguns

projetos futuros de homem.

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A primeira psiquiatria resolveu chamar de tratamento moral essa primeira

técnica de fabricar homens moralizados.

Mais tarde, já adolescente, iria dar o nome de laborterapia ao cruzamento de seus

genes com os de sua prima.

Mesmo os medicamentos, por mais neutros ideologicamente que pretendessem

ser, ainda assim eram filhos da ruiva, embriagados e nauseados pelos valores morais de

sua época.

Atualmente, outros modelos de homem, decorrentes desse primeiro projeto das

primas-irmãs, estão a ser forjados diretamente nos laboratórios de genética, para assim,

quem sabe, estarmos um dia tão indiferenciados e insensíveis como as máquinas.

Mas ainda guardo a esperança de que uma rainha negra, nua e com um corpo

maravilhoso, venha nos resgatar das duas primas, e faça-as sucumbir perante sua

autoridade: essa negra linda se chamaria sociabilidade da vida.

A RELAÇÃO TERAPÊUTICA É ESSENCIALMENTE UMA RELAÇÃO DE PODER

Caberia saber se os projetos de trabalho são dispositivos terapêuticos, se são

dispositivos de garantia de direitos, no caso, o direito ao trabalho, ou se podem ser

considerados estratégias para fins diferentes.

O que seria o terapêutico? Qual é, afinal, a essência do processo terapêutico?

Ele tem essência?

Bem, inicialmente eu diria que as relações ditas terapêuticas, aquelas que se dão

entre terapeutas-pacientes, pacientes-dispositivos de atendimento, caracterizam-se

sobretudo por ser relações de poder.

O que está em jogo nessas relações são determinadas produções de verdade,

estabelecidas a partir de saberes diversos, entre os atores envolvidos.

O prestígio que os profissionais de saúde detêm, e que a sociedade legitima e os

encarrega de exercer, lhes garante certa dose de predominância nessas relações, embora

os pacientes exerçam também o seu poder, mesmo que de forma subliminar.

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Essa produção de verdades é o que alimenta qualquer relação terapêutica, dando-

lhe vida e dando-lhe morte.

Mesmo que alguns indícios da realidade se imponham, como quando, por

exemplo, um médico diz a seu paciente que ele está com uma doença grave e

progressiva, a forma como essa verdade é construída influenciará, em parte, a trajetória

do processo de cura ou de morte.

Quer dizer, o percurso da doença dependerá de como se lida com essa situação,

do tipo de estímulo ou desestímulo que o médico dá a seu paciente, dos tipos de

intervenção tecnológica colocados à disposição para o tratamento, da forma como o

paciente lidará com a situação, da forma como seu corpo reagirá ao tratamento, e de

tantas outras condições.

Se entendermos ainda a saúde de um ponto de vista mais próximo ao da Grande

Saúde de Nietzsche (1998, 2003, 2008), veremos que a maneira como a pessoa viver a

vida, em sua intensidade, com ou sem uma doença grave, definirá sua postura perante a

vida e o grau de sua saúde.

As relações saber-poder produzem a realidade, definem o que chamamos de

doença grave, de esquizofrenia, de saúde e de doença.

Caberia ao terapeuta e ao paciente estabelecerem um diálogo múltiplo que

produzisse realidades flexíveis e maleáveis, que se movimentassem. Ou seja, produzir

na relação terapêutica processos de transformação das condições de vida, dos papéis

sociais, de produção de novos conhecimentos, novos valores e, assim, novas realidades

múltiplas e enriquecedoras, portanto, potentes.

Nessa perspectiva, existe também uma dimensão pedagógica no processo

terapêutico. Pichon-Riviére (1983) já apontava isso ao discutir os grupos operativos.

Mas não é uma pedagogia que reproduz um movimento de transferência de

saber, daquele que tudo sabe para aquele que nada sabe, mas de troca e produção de

saberes, e de invenção de novas formas de estar no mundo.

A dimensão pedagógica está em terapeutas e pacientes descobrirem e

aprenderem, juntos, novas formas mais enriquecedores de existência.

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A relação terapêutica pode ser, então, essa construção permanente, que

transforma o terapeuta e o paciente. Eis sua dimensão pedagógica.

Desse ponto de vista, pode-se dizer que a participação em projetos de trabalho

tem seu caráter terapêutico, assim como seu registro de garantia de direitos.

Talvez até pudéssemos modificar o termo terapêutico para o de metamorfose,

uma vez que o que se busca é a produção de novas formas e, assim, ao invés de uma

relação terapêutica, teríamos uma relação de metamorfose.

É esse encontro, que se dá no contexto das contradições sociais, que caracteriza

o ato terapêutico.

E isso é bem diferente de usar o trabalho como um dispositivo de normalização,

adaptação, subalternização, disciplina, moral e ordem, amor à mercadoria, como ele

sempre foi utilizado na psiquiatria.

O que queremos com esse novo registro do trabalho é a produção de vida,

modificar as relações de poder, construir novos parâmetros existenciais a partir do

questionamento dos atuais, e, assim, sermos seres múltiplos, potentes, curiosos para

desbravar o mundo. E isso exige que nos desinstitucionalizemos constantemente.

Desinstitucionalizar constantemente significa desconstruir realidades

transformando todos os elementos em jogo. Significa produzir outras verdades e, nesse

aspecto, as relações saber-poder são determinantes.

Se entendermos o transtorno mental severo e persistente apenas como uma

doença incurável e incapacitante, estabeleceremos com nossos clientes uma relação de

negatividade que imporá a cristalização de papéis e de experiências, já que muitas das

possibilidades de ação no mundo estarão proibidas para eles. Se, ao contrário,

trabalharmos na perspectiva de que tal condição da pessoa é também uma construção

social, passível de transformação, abriremos um leque de possibilidades de

transformação na própria pessoa, no olhar das demais pessoas que ajudam a construir o

fenômeno que chamamos de transtornos mentais. Entenderemos então que há coisas

mais importantes a fazer do que trabalhar apenas sobre os referenciais da doença, como

entidade abstrata e a-histórica que determina e engloba o sujeito. Que a produção de

vida é o objetivo primordial e que isso diz respeito a todos nós, sejamos doentes ou não.

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As relações de poder são, portanto, as que determinam o que são as doenças e as

condições das pessoas, e elas definirão as possibilidades de futuro, o que será viável e

possível para cada um. Se a resposta que damos ao sofrimento for apenas de

negatividade e contenção, estaremos desenhando um fenômeno negativo e agindo

positivamente na produção desse fenômeno. Várias de suas características, em essência

relacionais, surgirão como consequência. Sintomas serão identificados, como se a

origem deles fosse totalmente endógena. É claro que a experiência do sofrimento

psíquico existe e é vivida de um jeito singular pela pessoa. Mas as respostas que damos

ao sofrimento influenciam sua forma, transformam-no, podendo contribuir para a

produção de sentidos novos ou para a cristalização de papéis, de formas de estar no

mundo. Ou seja, o sofrimento singular possui uma dimensão estritamente relacional,

que o coproduz. Assim, produzimos os percursos que a experiência do sofrimento vai

tomar, fazendo-o em conjunto com a pessoa que sofre.

A auto-eco-organização (Morin, 1996), nossa forma de nos organizar enquanto

seres vivos, abertos e permeáveis ao mundo, do qual dependemos para nos

autossustentar, explica por que o percurso do sofrimento é coproduzido, mesmo sendo

uma experiência singular e única. E as relações entre os corpos, as tensões existentes,

modificam as estruturas e as organizações internas. Como Foucault dizia, a época da

disciplina produzia positivamente corpos dóceis (Foucault, 2000, 2005, 2005a; Ewald,

1993); não eram apenas movimentos negativos de repressão, mas esculpiam ativamente

um determinado tipo de corpo, funcionalmente adaptado aos modos de viver do início

da industrialização.

Que tipo de corpos podemos construir no diálogo com os usuários dos serviços

de saúde mental? Como o protagonismo deles pode ser determinante na transformação

do sofrimento e, sobretudo, na construção de projetos de vida?

As relações saber/poder são o mecanismo fundamental das relações terapêuticas

e deveriam receber mais atenção de nossa parte. Elas estão subjacentes a todas as teorias

e referenciais com que trabalhamos. Elas é que operam, sendo as teorias conteúdos

funcionais que surgem como maneira de nomear e dar forma a essas relações. As teorias

podem ser trocadas, pois elas são os conteúdos, os preenchimentos que dão substância

às relações de poder/saber.

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RUMO ÀS EXPERIÊNCIAS COM OS USUÁRIOS

O objetivo deste capítulo foi descrever a forma como os projetos de trabalho

foram constituídos, as estratégias inventadas, os desafios colocados, algumas de suas

características. Além disso, buscou-se entremear o relato com alguns fragmentos que

apontavam aspectos da história de constituição da forma moderna do trabalho, como

uma estratégia inicial para produzir um contraste entre o que é o trabalho hoje, e o que

propúnhamos de diferente com os projetos de trabalho.

É comum ver como natural a forma atual do trabalho, como se esta forma tivesse

sempre existido com as mesmas características, e não fosse uma produção histórica.

Resgatando alguns dos seus momentos de constituição e destacando como essa via de

desenvolvimento do trabalho foi uma opção dentre tantas possibilidades, fica mais fácil

entender que é possível propor modificações em nosso modo de existência, que insiste

em produzir tanta exclusão e empobrecimento existencial.

Por fim, tentei apresentar alguns aspectos da articulação histórica entre a forma

moderna do trabalho e a psiquiatria, fazendo uma crítica à laborterapia, e tentando

demonstrar as diferenças entre ela e os projetos de trabalho.

O próximo passo é continuar trazendo fragmentos da constituição do trabalho

moderno, e algumas reflexões sobre o tipo de sociabilidade relacionada a ele. Desta vez,

tais fragmentos virão entremeados de relatos de experiências vividas junto aos usuários-

trabalhadores dos projetos de trabalho. Considero esta parte essencial, pois é onde os

principais atores do processo, os usuários, emergem em sua singular presença.

Por essa via, pretendo continuar investigando as possibilidades de se produzir

novas formas de sociabilidade.

Sem mais prorrogar, apresento-lhes os usuários-trabalhadores.

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MEIO-DIA

―[...] a sociologia do quotidiano é uma sociologia de protesto

contra todas aquelas formas de reificação do social, animadas por

uma avassaladora ânsia de possessão. Para a sociologia do

quotidiano, o importante é fazer insinuar o social, através de

alusões sugestivas ou de insinuações indiciosas, em vez de fabricar

a ilusão da sua posse. A posse do real é uma verdadeira

impossibilidade e a consciência epistemológica desta

impossibilidade é uma condição necessária para entendermos

alguma coisa do que se passa no quotidiano‖ (Pais, 2003: 28).

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MEIO-DIA:

EXPERIÊNCIAS COM OS USUÁRIOS DOS PROJETOS

DE TRABALHO

O NÚMERO 1

Milton era um homem negro. Cabeça redonda, cabelos curtos e aveludados,

como um tapete felpudo suavemente estendido sobre uma caixa repleta de pensamentos

criativos e ideias fantásticas. Sorriso largo, dentes muito brancos, fala cantarolada,

divisível em oitavas oscilantes, como um clarinete quando chora.

Lembrava um daqueles personagens de histórias folclóricas do interior do Brasil.

Daqueles que gostam de contar anedotas e fumar um cachimbo.

Mas de folclórico e interiorano só a fala, pois sua história de vida era bem

peculiar e urbana.

Antes de ser internado no hospital psiquiátrico Anchieta, em Santos, ele havia

passado mais de 20 anos num manicômio judiciário.

Provavelmente, cumprira a primeira das duas penas previstas aos loucos que

cometem delitos.

A primeira pena teve sua duração delimitada pela gravidade do ato infracional

(alguns anos, provavelmente), e a segunda pena, aquela que se cumpre pelo fato de ser

louco, ainda não havia cessado.

Por isso ainda estava internado, meio paciente, meio preso, tendo sido

transferido do manicômio judiciário para o Anchieta, já que, mesmo tendo cumprido o

tempo de pena, os técnicos e juízes ainda não o consideravam apto a participar do jogo

social fora dos muros da instituição.

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Há muitos anos, Milton matara uma pessoa, provavelmente num momento raro

de fúria, pois sua delicadeza não parecia ser efeito do arrefecimento dos ânimos e da

passividade provocados por anos de institucionalização, mas por um jeito de ser maroto,

boa praça, atencioso e alegre.

Quando o conheci, em novembro de 1989, dentro do Anchieta, ele era um louco

cheio de estereotipias, bizarrices e caretas.

Vivia circulando com leveza pelos espaços sem portas que foram abertos pela

equipe de intervenção para que os internos deles se apropriassem.

Vivia cheio de miudezas, bugigangas, tecidos diversos, nos quais se enrolava da

cabeça aos pés, como que a se enfeitar.

Era dono de uma linguagem múltipla, de sentidos e de significantes, que se

entrecruzavam, atualizando ao mesmo tempo percursos diversos de sua história de vida,

e que vinham misturados a suas fantasias incessantemente produzidas.

Ao longo de alguns meses que se seguiram, ele foi reordenando a multiplicidade

de formas que nos apresentava, tanto no corpo como na linguagem, permitindo-se

compartilhar de códigos de entendimento comuns a todos os atores que promoviam

mudanças dentro da instituição: internos, funcionários, voluntários.

A efervescência dos acontecimentos e dos diálogos dentro do manicômio, a

partir da constituição de um cotidiano compartilhado por decisões e reflexões coletivas,

parece ter levado Milton a pensar que valia a pena se esforçar para ser compreendido,

num novo ambiente de afeto e acolhimento que não deixava de lado as ferozes críticas

às contradições inerentes ao papel de controle social do manicômio.

Como Basaglia dizia, essa construção coletiva que transforma o hospital

psiquiátrico não poderia apenas produzir uma ―ilusória vida social coletiva‖ (Basaglia e

Basaglia, 1977; Basaglia, 2001), mas exercitar através da reflexão crítica e da prática

transformadora a própria desconstrução do manicômio e do paradigma psiquiátrico que

o sustenta.

Milton participou de diálogos dentro da instituição, e dos planos que aos poucos

foram construídos para ser operados fora dela.

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Alguns personagens do passado, misturados a suas fantasias, permaneciam

existentes e assíduos só para ele, mas conseguiam achar um lugar no meio das diversas

outras relações e diálogos que Milton passou a viver.

Um desses personagens era a ―assistente social do fórum‖, elemento sempre

presente nos discursos que ele compartilhava conosco. Ela era real e sempre presente

para ele, embora não a conhecêssemos nem ao fórum ao qual ela pertencia.

Mas a ―assistente social do fórum‖ não impedia que projetássemos com Milton

os novos planos para o futuro; ela aparecia às vezes com um caráter ambíguo de figura

acolhedora e perseguidora, o que fazia com que Milton se lembrasse dela e a acionasse

em momentos em que se sentia mais perseguido, ou quando sentia que tinha que

abrandar seus desejos e impulsos mais destrutivos pelo medo de ser castigado.

Ela era às vezes a referência da norma e, noutras vezes, a referência do afeto

que dá segurança, como são os pais, e podem vir a ser, de forma perversa, as prisões, os

manicômios etc.

Mas, voltando aos diálogos e aos planos negociados com Milton, foi aos poucos

acertado que ele participaria do primeiro projeto de trabalho que a equipe de

intervenção articulara junto com outras secretarias municipais da prefeitura, destinado

especialmente aos internos do hospital e às pessoas que estavam saindo da situação de

rua e eram acompanhados pela Secretaria de Ação Comunitária, o Projeto Lixo Limpo.

Nesse projeto, como dito anteriormente, alguns internos do hospital trabalhariam

junto a ex-moradores de rua na triagem do material reciclado que os caminhões da

Prodesan recolhiam, na porta de cada residência, em coleta específica, em dias e

horários próprios, separados dos da coleta de lixo orgânico.

O material coletado era levado a um centro de triagem, constituído de um

enorme galpão coberto, com esteiras rolantes que movimentavam o material a ser

separado, baias que recebiam o material separado por tipos diferentes (papel, vidro,

metal, plástico), prensas para acomodar o material, equipamentos de segurança como

luvas, capacetes, botas, uniformes.

O espaço possuía ainda um refeitório, banheiros e escritórios.

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Os trabalhadores recebiam 1,5 salário-mínimo, sob a forma de bolsa de

trabalho, mais alimentação no local e vale-transporte.

Era um projeto intersetorial que também envolvia uma ação de educação

ambiental nas escolas e nas casas, onde era exposta a importância da reciclagem tanto

para a diminuição do uso de novas matérias-primas da natureza, como para a

diminuição do aterro da cidade, que estava atingindo sua capacidade crítica, gerando

importantes riscos de contaminação do solo e da água.

Era um projeto importante para a saúde da totalidade dos habitantes da cidade.

Para dar suporte aos novos trabalhadores, foi constituída uma equipe composta

por técnicos da Prodesan, que trabalharia em conjunto com os profissionais do Núcleo

do Trabalho do Anchieta no acompanhamento dos trabalhadores durante o processo de

trabalho.

O cotidiano do Projeto Lixo Limpo, do qual participavam Milton e cerca de

outros 50 trabalhadores, sempre foi intenso e mediado pela equipe do Núcleo: da saída

cotidiana do hospital de manhã bem cedo até o trajeto de ônibus para o local do trabalho

(a luta para organizar a saída dos trabalhadores, o acordar antes das 6 horas, o tomar o

banho e o café, pegar o ônibus, chegar no horário certo); a organização coletiva do

processo de trabalho (a divisão e o andamento das tarefas); as reuniões semanais para

discutir dificuldades e propor soluções; os atendimentos aos usuários para discutir suas

dificuldades perante o trabalho. Todas as partes que compunham o processo eram

mediadas pela equipe do Núcleo.

O Projeto Lixo Limpo abriu muitas portas novas aos usuários que dele

participaram.

Milton e os demais passaram a encontrar a partir daí novas possibilidades que

ampliariam o arco de relações e de diálogos iniciados a partir da transformação do

hospital psiquiátrico.

No futuro, em 1992, quando a equipe do Núcleo do Trabalho do Anchieta seria

transformada na equipe da Unidade de Reabilitação Psicossocial, constituindo-se como

um serviço da Secretaria de Higiene e Saúde (Sehig), num imóvel localizado no bairro

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da Aparecida, Milton receberia a matrícula de número 1, o que ele fazia questão de

ostentar perante os colegas no decorrer dos anos que se seguiram.

OS DETALHES

A sociologia do cotidiano se preocupa com os detalhes, com o aqui e agora de

um contexto fabricado por um tempo e um espaço sociais.

Tempo e espaços são também produtos, são processos em movimento, movidos

pela prática dos atores sociais, são expressões de fluxos de força em relação (Pais, 2003:

128-30).

Interessante seria fazer uma sociologia do cotidiano em torno de uma das

dimensões mais fortes e penetrantes da modernidade: a dimensão do trabalho.

A noção moderna de trabalho não seguiu o suposto rastro linear do

desenvolvimento histórico. Ela foi construída a partir de muitas rupturas.

Mesmo antes de Marx desvendar os processos que compunham a produção

capitalista, definindo a noção de trabalho produtivo, outros pensadores trataram de

defender e de introduzir as bases do que seria o trabalho na modernidade. Buscavam

justificar e embasar o novo lugar que o trabalho assumiria na sociedade ocupada.

Diez (s.d.) sugeriu que a noção de trabalho nos séculos XVII e XVIII não sofreu

exclusivamente a influência do ideal ascético-religioso, que enxergava no trabalho uma

forma de atingir a plenitude do paraíso, nem de um ascetismo político que pregava o

compromisso do trabalhador com o desenvolvimento da pátria.

Havia também outras influências que marcavam a nova ética do trabalho.

Defendia-se que, economicamente, o acúmulo de valores de uso seria a forma de

obter vantagem na concorrência com as outras nações.

Os contemporâneos fisiocratas defendiam a produção e a acumulação agrícola

como a única e verdadeira fonte de riqueza dessas mesmas nações.

Outros defendiam a liberdade de mercado, reforçando também a necessidade de

aumentar a produtividade das nações.

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O trabalho, em todas essas visões, ocupava um lugar de destaque.

O debate em torno da utilidade da pobreza dos trabalhadores confrontava-se com

a defesa da proposta de disseminar entre eles o consumo de artigos de luxo.

A utilidade da pobreza baseava-se na ideia de que o trabalhador deveria receber

pequenas retribuições por seu trabalho, de forma a manter sempre acesas suas

necessidades básicas e, assim, não correr o risco de optar pelo ócio.

O trabalhador aqui é visto como um ser que se contentaria com muito pouco, e

que logo desistiria de trabalhar se recebesse mais do que o suficiente para a reprodução

básica de suas capacidades físicas e mentais.

A defesa do incentivo ao consumo de luxo baseava-se na suposta laboriosidade

do trabalhador, que estaria sempre mais motivado a fazer um trabalho bem-feito se

pudesse ter a expectativa de consumir e apreciar os belos artigos de luxo que ele próprio

fabricava.

O trabalho motivado poderia vir acompanhado de certo prazer de previsão, ou

seja, de um prazer já vivido pela simples expectativa de um dia usufruir dos produtos de

luxo que fabricava.

Se o luxo associado ao ócio era criticado por ser característico da sociedade

estamental, usufruto da nobreza ociosa, agora poderia ser associado ao trabalho e,

assim, ser característico de uma sociedade liberal.

Os iluministas do século XVIII defendiam, por sua vez, uma moral ilustrada do

trabalho baseada na prudência, na utilidade e na felicidade.

Nada de penitência religiosa ou mesmo de simples patriotismo, mas uma

dimensão de hedonismo e individualismo centrado na delicadeza, na beleza, na

prudência.

Talvez esta tenha sido uma das principais contribuições do iluminismo: criar as

bases de um homem psicologizado, valorizando a dimensão individual e subjetiva que

garantiria ao capitalismo fincar bases no âmago do ser individual.

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AS CONSTRUÇÕES DO NÚMERO 1

Aos poucos Milton tornou-se orgulhoso do novo trabalho, embora não morresse

de amores pelo tipo de atividade.

Ostentava o uniforme e os equipamentos que lhe possibilitavam ocupar um lugar

cujo valor no imaginário social era muito diferente do valor atribuído ao doente mental.

Milton possuía uma habilidade ímpar de organizar o dinheiro que recebia, e de

definir planos que eram sustentáveis e efetivos no tempo.

Um dos planos foi o de construir aos poucos uma nova casa. A ideia de possuir

sua casa própria nunca saíra de seu horizonte, mesmo tendo ele que recorrer a quartos

de pensões até se estabelecer em definitivo num imóvel próprio, a partir do momento

em que recebera alta do Anchieta.

Ampliando seu arco de relações sociais, participou da ocupação coletiva de um

terreno baldio próximo ao Projeto Lixo Limpo, que foi realizada por um grupo de sem-

teto.

Tendo conseguido comprar um dos barracos de madeira construídos a partir da

ocupação do terreno, na Vila dos Criadores, passou a juntar recursos financeiros para

construir uma casa de alvenaria com vários cômodos.

Nessa época, Milton já estava namorando e residindo com outra interna do

Anchieta que também participava do Projeto Lixo Limpo.

Assim como Milton, Miucha permanecera muitos anos no manicômio judiciário,

também devido a uma morte.

Posteriormente, no entanto, havia sido libertada e passado a ocupar a posição de

―louca de rua‖, vivendo num bairro carente de Santos, na Zona Noroeste, até ser

internada no Anchieta e por lá ficar muitos anos.

Miucha era uma mulher de meia-idade de cabelos curtos e crespos e algumas

cicatrizes no rosto. Seus olhos estavam sempre arregalados e sua fala era extremamente

rápida, o que às vezes a levava a tropeçar nas palavras. Estas eram como bolhas

pipocando na boca de um vulcão.

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Miucha era um vulcão de temperamento forte e explosivo que exigia dos

interlocutores muita moderação e sensibilidade no contato. Era também muito afetuosa

nos momentos em que se sentia menos perseguida. Estabelecera uma relação de

confiança muito forte com algumas profissionais do Núcleo, e passou a ser muito

querida.

Não tinha a mesma facilidade que Milton para expressar seus pensamentos, mas

nunca era passiva, mostrava-se sempre enérgica, altiva, informando aos presentes que

possuía seu próprio espaço e não abriria mão dele.

Não gostava de ser controlada, nem por Milton. E foi assim que algumas brigas

do casal ocorreram, umas mais ou menos sérias, exigindo que a equipe do Núcleo

cumprisse um papel de mediação.

Aos poucos, com a constituição do primeiro NAPS de Santos, o NAPS 1 da

Zona Noroeste, outros profissionais puderam entrar em cena e assumir junto à equipe do

Núcleo o acompanhamento de Milton e de Miucha, projetando e tecendo junto deles

seus projetos de vida.

Mas foram muitas as situações em que a equipe do Núcleo e a equipe do NAPS

tiveram que mediar o convívio cotidiano do casal e a relação de cada um deles com o

trabalho.

Lembro de algumas dessas situações de que participei diretamente.

A primeira foi quando Miucha disse às profissionais que a acompanhavam no

projeto de trabalho que o ambiente com Milton estava tenso, e que ele guardava uma

faca embaixo do colchão, como forma de ameaçá-la.

Lembro de ir à casa dos dois, acompanhado de outros profissionais, discutir

sobre a violência de ambos e sobre o inconveniente de usar facas como armas. Com

muito cuidado, conversamos com Milton sobre a faca, e ele mesmo nos mostrou que

não mais a guardava no colchão.

Nossa presença possibilitava mediar as relações e produzir novos sentidos:

mesmo que os dois tenham trocado algumas agressões, que nunca deixaram marcas

aparentes nos corpos, nunca soubemos que uma faca tivesse de fato sido usada como

arma.

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Outra situação ocorreu quando percebemos que, no trabalho, Milton ficava à

beira da esteira deliciando-se com o formato dos objetos, sem conseguir separar os

materiais e colocá-los nas baias. Ou seja, sem conseguir trabalhar. Começava a se

enfeitar com pedaços de tecidos e objetos os mais variados.

O NAPS 1 nos alertara que ele não estava frequentando a unidade como era o

combinado, e que a medicação antipsicótica de depósito que recebia (Haldol Decanoato,

aplicado no músculo quinzenalmente) estava atrasada.

A unidade pedira nosso apoio para convencê-lo a ir tomar a medicação, mas

tivemos uma impressionante surpresa ao chegar em sua casa para fazer contato.

Por entre poucas trilhas livres para se andar, acumulava-se dentro da casa um

número incontável de pequenos objetos trazidos do Lixo Limpo, que eram acomodados

como uma espécie de quebra-cabeças, uma escultura de milhares de pequenas peças,

pequenos objetos, embalagens de alimentos etc.

A escultura era tão grande que os caminhos para se andar e mesmo o exíguo

espaço de dormir corriam o risco de desaparecer com o tempo. E não parava de crescer!

Para coroar essa impressionante visão, Milton ofereceu-nos um café que mais

parecia uma poção mágica repleta da multiplicidade de seus pensamentos. O copo, antes

transparente, agora estava opaco em virtude das marcas de mãos e outras poeiras, e o

café jazia esperando que déssemos cabo dele, como um cachimbo da paz que é

compartilhado por pessoas de tribos diferentes.

Tomamos o tal café-poção mágica, e ele até que estava bom. Era café mesmo,

apenas recheado com as ideias fantásticas de Milton.

Dias depois de termos levado Milton para que tomasse sua injeção, voltamos à sua

casa e, para nossa surpresa, parecia que um gigantesco aspirador havia passado por lá.

Ao contrário daquela visão múltipla e colorida, que confundia a cabeça, mas

enchia os olhos de admiração, vimos a casa totalmente limpa, asséptica, sem a presença

de nenhum objeto diferente dos habituais. Agora a minúscula casa parecia um palácio

vazio de imensos cômodos e pouquíssimos móveis.

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Onde tinham ido parar os objetos que compunham aquela gigantesca

construção?

Milton dizia que não lembrava, e agora ele entrava no papel de trabalhador do

Lixo Limpo, com horários e funções a cumprir, discurso econômico, mas sempre

acompanhado daquele sorriso largo e branco, de quem foi fazer uma breve viagem e

retornou.

Os projetos de trabalho funcionavam assim, como espaços de vida que

multiplicavam relações e possibilidades de existência, tornando a vida complexa,

multifatorial, em movimento, coberta de riscos, repleta de criações.

Não eram os projetos de trabalho lugares de normalização, disciplina, ou mesmo

treinamento profissional para uma futura (e inexistente) inserção no mundo do trabalho.

Eram lugares de vida onde o objetivo não era o adestramento nem a separação forçada

dos outros contextos de vida.

O trabalho e os outros contextos de vida permeavam-se mutuamente, e a função

da equipe do núcleo e da equipe do NAPS era acompanhar e construir juntos um projeto

de vida com Milton, fazendo mediações, agenciando recursos, lugares, afetos e

possibilidades, mas não substituindo o risco de viver que é posse de cada sujeito, e que

só Milton poderia viver de forma singular.

Com o passar do tempo, Milton e Miucha separaram-se e retornaram algumas

vezes.

Anos depois, Milton enfim decidiu, junto à equipe do Núcleo, que valeria a pena

trabalhar em outro projeto. Foi quando passou a compor o grupo de trabalho do Projeto

Terra, cujo objetivo era fazer a manutenção e o cuidado das plantas das praças públicas,

tão utilizadas em Santos por idosos e crianças.

Mesmo mudando de projeto, ainda ostentava o número 1, que lhe fornecia o

lugar de um dos primeiros internos sem família ou lar a deixar o Anchieta e a iniciar um

processo de desinstitucionalização de valores, saberes e formas de vida instituídas no

decorrer da história da psiquiatria e de sua história de paciente.

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TECNOLOGIA DISCIPLINAR

Processos disciplinares, a partir de um modo de vida organizado essencialmente

em torno do trabalho assalariado, tomaram a cena das sociedades ocidentais, produzindo

novas instituições, novas tecnologias de controle dos comportamentos e das

subjetividades, novas referências existenciais.

Foucault (2000, 2005) nomeou como sociedade disciplinar15

o processo de

construção das novas formas de controle dos cidadãos nas cidades, utilizando-se do

modelo panóptico de vigilância e produção de subjetividades, em instituições como

prisões, escolas, hospitais, asilos e manicômios.

Era necessário substituir o excesso de vingança (execuções em praça pública,

exposição de corpos torturados pela cidade), que garantia a ordem aos soberanos, por

modelos de tecnologia mais avançada e eficiente.

Daí o surgimento também de disciplinas e instituições como a criminologia (uma

aliança entre a psiquiatria e a justiça) e o manicômio (que em seu surgimento também

sofreu a influência de um conjunto de outros fatores como a necessidade de separar os

desviantes produtivos dos não produtivos, de garantir a nova ideologia propagada da

cidadania, de preconizar o cuidado domiciliar aos pobres inválidos em vez do cuidado

asilar, desde que estes não fossem loucos: para estes, o asilo de alienados prometia

milagres e o retorno à sociedade).

As práticas laborterápicas são herança do período do tratamento moral, embora

hoje elas se deem num contexto diferente do da sociedade disciplinar. As formas

contemporâneas de controle vêm misturadas às antigas práticas disciplinares. O controle

15

Para Foucault, a disciplina veio a se estabelecer como uma tecnologia de poder, utilizando-se de

instrumentos que, mais que operadores negativos de repressão e sujeição, produziam positivamente

corpos dóceis e úteis (Ewald, 1993). A disciplina passa então a se desenvolver como tecnologia, no

interior das prisões, mas também nas escolas, nas fábricas, nas famílias. O modelo panóptico pode se

enraizar e disseminar para várias outras organizações. O modelo do combate à lepra, baseado na pura

exclusão e no confinamento, pôde ceder lugar ao modelo do combate à peste, com a segregação

acompanhada, trabalhada, esquadrinhada no tempo e no espaço, controlada e consumida. Um consumo

que produz corpos, dóceis e úteis.

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capilar, high-tech, das câmeras de vídeo e dos celulares, convive com o duro controle

das instituições totais que, mais do que táticas disciplinares, têm utilizado o abandono

como método de controle (Kinker, 2007). Mesmo assim, persistem intenções

laborterápicas em algumas instituições, com configurações modernas, como a proposta

de inserção individual em empresas, a partir do sistema de cotas. Controle capilar,

iniciativas disciplinares e morais convivem com a desregulamentação e o abandono, a

sensação de insegurança quanto ao amanhã, vivida com exasperação e angústia e não

como liberdade (id., ibid.). Essas são algumas contradições de nosso tempo, e é nesse

terreno que se dão os projetos de trabalho que estou investigando, com o intuito de

produzir-lhes sentido.

NOVEMBRO DE 1989

Entrei no Anchieta pela primeira vez, e lá vi um movimento frenético de pessoas

indo em todas as direções.

Não era fácil distinguir quem eram os pacientes e quem eram os funcionários,

mas existia na porta, do lado de fora, um funcionário que a abria sempre que alguém

batia.

Ao abrir a porta, o funcionário deveria identificar se se tratava de um

funcionário, de um paciente cujo contrato possibilitava a entrada e a saída do hospital,

ou de outro cujo momento não possibilitava a saída, e que fazia lembrar da contraditória

função de cuidar associada à função de controlar que é da natureza da psiquiatria

(Basaglia e Basaglia, 1977, Basaglia, 2001, Castel, 1977).

Nesse primeiro dia de trabalho no hospital, vivenciei duas situações

interessantes.

Na primeira, ao entrar na fila do refeitório, recebi uma colher junto da bandeja

de comida.

Era o que, então, recebiam os pacientes, no lugar de garfos e facas, até porque

ainda se desconstruía na instituição o imaginário de periculosidade e risco dirigido aos

doentes mentais. A superação dessas ideias era também um aprendizado e um desafio

para os profissionais.

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Utilizei a colher para me alimentar, esperando que um dia pudéssemos todos

utilizar o mesmo talher nas refeições.

A outra situação se deu da seguinte forma: ao bater na porta para sair do

hospital, o funcionário abriu-a e em seguida fechou-a rapidamente, não permitindo

minha saída.

Foi necessário que outro profissional avisasse o responsável pela porta que se

tratava de um profissional e não de um novo paciente, e então pude sair e nunca mais

minha saída foi proibida.

De qualquer forma, era muito interessante essa tênue e rápida confusão entre

pacientes e funcionários, pois indicava que as mudanças nos fluxos de poder,

necessárias para que os internos exercessem poder e para que os profissionais revissem

seus papéis, era algo posto em ação, na forma de corresponsabilidade, liberdade, afeto,

compartilhamento de riscos e de ganhos, todas estas noções que fariam parte do

cotidiano dos projetos de trabalho que desenvolveríamos no futuro.

OS LABORTERÁPICOS II

Desde sempre, na história da psiquiatria e do asilo, a terapia pelo trabalho (que

Pinel chamava de tratamento moral) esteve presente nos genes e nos fenótipos da

prática asilar, mesmo que não levasse esse nome.

Sob uma forma de entretenimento (Saraceno, 1999, 2001)16

, normalização,

adestramento, disciplina (Foucault, 2000, 2005, Castel, 1978), exploração do trabalho,

diminuição dos custos das instituições, a justificada terapia pelo trabalho dentro do

hospital psiquiátrico gerou toda sorte de perversões e exercícios de micropoderes e

16

Entretenimento é um termo utilizado pelo psiquiatra italiano Benedetto Saraceno, que atualmente é o

diretor de saúde mental da OMS, para expressar o risco que os serviços territoriais podem correr se não

assumirem para si a tarefa de atuar no território, praticando um acompanhamento dos usuários dos

serviços nos vários âmbitos da vida. O entretenimento sempre acompanhou a psiquiatria, e é um sinal de

sua impotência. Significa ―manter dentro‖, ―passar o tempo de forma prazerosa‖, ou seja, ocupar o tempo

dos usuários dos serviços como um fim em si mesmo, sem provocar mudanças nas relações sociais

(Saraceno, 1999: 16-7).

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opressões que se iniciaram a partir das próprias relações entre os internos, reproduzindo

a lógica de poder que tem no médico o modelo do poder moral17

.

Como dizia Foucault, na época dos alienistas, tudo no asilo representava a

extensão do corpo forte e equilibrado do médico (Foucault, 2005a).

Se na atualidade apenas o fantasma e não o corpo dos médicos está presente no

cotidiano do asilo, manteve-se inalterada uma forma peculiar de hierarquização do

poder, que, se subtrai a voz da maioria dos internos, fornece a uns poucos o poder de

definir até quem está bem ou não, e o espaço que este deve ocupar na instituição.

No Anchieta não era diferente, e quem exercia esse poder eram de fato os

laborterápicos.

Dizia-se que antes da intervenção os ―laborterápicos‖ chegavam a definir, dentre

os pacientes mais desobedientes, aqueles que deveriam permanecer nas celas fortes e

aqueles que deveriam ser submetidos à ECT (eletroconvulsoterapia).

Nitidamente, cumpriam a função de poder que lhes garantia alguma valorização

e diferenciação perante os demais internos, o que possivelmente explicava o fato de não

quererem sair do hospital para construir um projeto de vida.

As regalias que possuíam, fossem os cigarros ou o prato de comida especial que

recebiam como pagamento, eram a expressão de uma valorização que se vinculava a

determinado status dentro da instituição, status e consideração que eles não

encontravam facilmente fora do hospital, por terem sido expulsos do convívio social por

suas relações com as drogas e com o que estas provocavam de comportamentos

desviantes.

17

Os terapeutas ocupacionais sabem bem o que significa a voracidade das instituições por mecanismos de

entretenimento. Sempre lhes foram solicitadas formas de ocupação dos pacientes nas instituições totais,

como forma de ―afastar pensamentos mórbidos‖, ―diminuir a agressividade‖, ―organizar o eu‖, ―permitir

ao inconsciente exprimir-se‖, ―treinar comportamentos adequados‖, e toda uma série de motivos que

deixavam imunes e escondidas as contradições institucionais, a própria contradição que explica e garante

a existência da instituição. Atualmente, em muitos casos, os próprios serviços territoriais e comunitários

como os CAPS estão sujeitos a cair na armadilha do entretenimento, quando substituem a relação com o

território e com a existência concreta dos usuários pela excessiva realização de procedimentos grupais,

oficinas terapêuticas etc. Tal situação surge muitas vezes como uma forma defensiva de lidar com a

angústia do não saber: não saber como dialogar com a complexidade da vida dos usuários, com as

questões que alimentam o sofrimento, com um mundo que parece desértico e pobre de recursos etc. Sem

dúvida, esse é um dos importantes desafios da atualidade.

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Desenvolviam assim uma relação parasitária com a instituição, alimentada pela

valorização que recebiam enquanto ―pacientes diferenciados‖ e pelo medo de enfrentar

nosso louco mundo.

Foi por conta dos ―laborterápicos‖, também, que se pensou, num primeiro

momento, em designar alguns profissionais da equipe do hospital para se discutir a

questão do trabalho.

O objetivo seria construir a saída negociada daqueles internos do hospital, e sua

inserção em novos projetos de trabalho na cidade. Eles já não cumpriam suas antigas

funções, e isso foi motivo de muitas crises e enfrentamentos.

Curiosamente, como já mencionei, a maioria dos antigos laborterápicos não se

vinculou aos projetos de trabalho que lhes foram propostos, mas aos poucos foram

enfrentando a vida fora do hospital. Alguns com mais êxito, outros com menos, mas

todos enfrentando os riscos da vida, que outrora haviam deixado de assumir,

estabelecendo uma relação de dependência com a instituição e seus mecanismos de

poder.

Por outro lado, a equipe formada para acompanhá-los produziu aos poucos

novos projetos de trabalho, constituiu o Núcleo do Trabalho e passou a ocupar, nos

momentos em que não estava nas enfermarias, uma pequena sala ao final de um dos

corredores térreos do hospital, onde fazia reuniões e guardava os materiais que foram

sendo utilizados como ferramentas nos projetos de trabalho.

DESENRAIZAMENTO

Os camponeses dos feudos, ligados profundamente aos movimentos do ciclo da

natureza na realização de seu trabalho e aos vínculos de pertencimento comunitário,

passaram por um movimento de desenraizamento.

Além disso, a proteção que recebiam em contraponto à subordinação em que se

mantinham perante os senhores de terra era fundamental para que se sentissem seguros

num mundo que pouco se modificava (Castel, 1998).

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Trazê-los a um novo modo de vida nas cidades, em condições sanitárias e

habitacionais precárias, totalmente à disposição dos horários das fábricas, sem o esteio

do apoio afetivo das relações comunitárias, exigiu a brutalidade da violência física e

psicológica, sem o que não adeririam sem resistências ao novo, desgastante, mecânico, e

para eles sem sentido modo de vida anônimo do mercado.

As dificuldades surgidas para domesticar esses novos trabalhadores levaram

filantropos e patrões a estabelecer estratégias para resgatar aspectos perdidos da vida

comunitária, capazes de garantir a sensação de segurança antes vivida no processo de

subalternização nos feudos (lembremos da criação das vilas operárias).

A tentativa de garantir o futuro contra a aquisição de doenças e a incapacidade

para o trabalho deu origem aos primeiros mecanismos de previdência. Não uma

previdência pública, mas mecanismos que coletivizavam ações e recursos e garantiam

aos segurados trabalhadores a possibilidade da subsistência em caso de doença (id.,

ibid.).

VAMOS AO HORTO MUNICIPAL?

Cazuza, Lulu, Russo e outros três ou quatro internos compuseram o grupo que,

já em meados do ano de 1990, frequentaria o horto municipal, para aprender o ofício de

jardinagem, já recebendo uma espécie de bolsa-trabalho.

Como os profissionais do Núcleo puderam abrir uma conta bancária do hospital

para gerenciar exclusivamente alguns recursos destinados aos projetos de trabalho, a

possibilidade de uma bolsa de trabalho tornara-se palpável, mesmo que ainda frágil.

O projeto de jardinagem pôde dar um salto qualitativo e quantitativo quando

profissionais do Núcleo e profissionais da Seac (Secretaria de Ação Comunitária)

resolveram constituir a Afrent, pois foram implantados os convênios com empresas

privadas para a prestação de serviços.

A Afrent, como já mencionei, foi criada porque o Anchieta possuía limites legais

para realizar os contratos, e os usuários ainda não estavam preparados para assumir sua

própria cooperativa.

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Deu-se também por um desejo dos profissionais de acelerar e ampliar o

desenvolvimento dos projetos de trabalho, viabilizando a entrada de novos recursos.

Mas a fundação da Afrent ocorreu meses após as primeiras experiências no

Horto Municipal.

Antes disso, eu acompanhava, algumas tardes, o grupo de internos até lá para

que eles aprendessem a cuidar das plantas, a produzir mudas, limpar canteiros, ações

que posteriormente desempenhariam nas praças públicas.

Muitos eram os desafios, a começar pelo próprio trajeto do Anchieta ao Horto,

realizado de ônibus.

Como eu pouco conhecia da cidade, uma vez que ainda residia na capital, a

participação dos internos foi fundamental para que não nos perdêssemos muito.

Nessas tardes, o calor interno do Anchieta, abafado e sufocante, era substituído

pelo calor úmido e iluminado do sol das ruas de Santos, com as poucas brisas que

vinham em nosso socorro. Nossas roupas ficavam eternamente molhadas devido ao suor

provocado pelo calor do sol.

No horto, os canteiros eram retangulares e muito compridos, e a primeira tarefa

era sempre distinguir as plantas ornamentais das ervas daninhas, para que estas fossem

arrancadas, permitindo o livre crescimento daquelas.

Alguns funcionários do horto eram designados para ensinar a reprodução de

mudas, e muitas foram as tardes em que, sob o sol, em meio aos canteiros floridos que

guardavam as plantas a serem transferidas para os jardins das praias, fortalecíamos

nossos laços enquanto planejávamos, mesmo no silêncio dos nossos pensamentos, os

próximos passos em direção à ocupação da cidade, o que se daria no futuro com o

projeto que denominamos simplesmente de Terra.

Caetano, nesse ínterim, agachado perante o carteiro, sempre de boné escondendo

a cara amarrada, ficava dividido entre o rádio de pilha, que frequentemente ocupava seu

ouvido esquerdo, e a pequena espátula que usava no trabalho.

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O rádio foi aos poucos descansando sobre os muros dos canteiros, e a mão que

segurava a espátula pôs-se a trabalhar, para retornar ao rádio nos intervalos e após o

trabalho.

Posteriormente, conseguimos, através da Afrent, e com o apoio da Sehig

(Secretaria de Higiene e Saúde, à qual éramos vinculados), o primeiro convênio com

uma empresa privada para que os usuários cuidassem de um jardim.

A empresa explorava a área externa do edifício-sede da Sehig com um

estacionamento privado e, em contrapartida, remetia mensalmente determinado valor à

Afrent, a título de doação, para que o trabalho de cuidar dos jardins desse terreno fosse

remunerado aos usuários do Anchieta.

Isso possibilitou a remuneração dos trabalhadores, o aprendizado do ofício de

jardinagem, e um primeiro ensaio para ampliarmos a parceria e adentrarmos outros

espaços da cidade através da multiplicação de convênios com diversas empresas.

A remuneração, que no futuro seria suficiente para os usuários bancarem suas

despesas com moradia, alimentação, transporte, por exemplo, nesse momento era

utilizada na compra pontual de pequenos objetos, alimentos, cigarros, roupas.

Os recursos aumentaram mesmo quando, aos poucos, pudemos criar um arco

que envolvia cerca de 15 empresas, a Afrent e a Secretaria do Meio Ambiente

(responsável pelo Horto Municipal).

O mecanismo funcionava mais ou menos assim: enquanto os profissionais do

Núcleo visitavam empresas privadas oferecendo os serviços dos usuários, através de

parcerias com a Afrent, a equipe do Horto oferecia um tipo de convênio em que a

empresa se responsabilizaria pela manutenção dos jardins das praças públicas, em troca

da possibilidade de colocar uma placa com os seguintes dizeres: ―A empresa X adota

esta praça‖.

Quando uma empresa aderia ao Projeto Adote uma Praça, era-lhe oferecida a

possibilidade de contratar, através da Afrent, os serviços dos internos e ex-internos do

Anchieta.

Com a ampliação do projeto, foi necessário construir aos poucos a logística

necessária para operar o trabalho com qualidade.

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Dentre os elementos que compunham essa logística destacam-se:

A incorporação à equipe do Núcleo de um excelente jardineiro, para

colaborar na coordenação do projeto, acompanhar a execução deste,

realizar reuniões de trabalho com os trabalhadores, viabilizar treinamento

em serviço, agenciar novas parcerias, viabilizar os recursos necessários

etc. Esse jardineiro foi trazido da Secretaria de Esportes para a Sehig, e

teve um papel fundamental para garantir que o trabalho fosse realizado

com qualidade.

A aquisição de equipamentos de jardinagem pela Sehig, tais como pás,

tesourões, máquinas de cortar grama movidas a gasolina e,

posteriormente, um veículo Kombi para transporte dos equipamentos até

as praças.

O apoio logístico e material do Horto Municipal, através do fornecimento

de mudas e outros insumos, apoio técnico e a utilização de caminhões

para transporte de terra e adubos.

A participação da Afrent no recebimento e repasse do dinheiro das

empresas para os trabalhadores, no apoio à organização do trabalho e no

acompanhamento das atividades, no agenciamento de parcerias, na ponte

com as equipes dos NAPS para a construção conjunta dos projetos de

vida dos usuários. A Afrent, como já foi dito, era composta em sua

maioria pelos mesmos profissionais que compunham o Núcleo do

Trabalho.

No decorrer da constituição desse projeto de trabalho, foi possível estabelecer

uma dinâmica de participação efetiva dos trabalhadores em todos os seus aspectos e

dimensões.

As reuniões semanais com toda a equipe do projeto eram espaços de troca e de

constituição de um projeto coletivo, onde as conquistas eram comemoradas, as

dificuldades discutidas solidariamente, as contradições debatidas, as perspectivas

futuras compartilhadas e projetadas coletivamente.

Era uma forma de construir coletivamente a participação de pessoas com

capacidades diversas e dificuldades singulares, inventando formas novas de se fazer as

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coisas. A ideia era que a plasticidade das estratégias permitisse que pacientes muito

graves pudessem exercer níveis variados de protagonismo.

As estratégias eram inspiradas naquela ideia de constituir uma forma de tutela

baseada na mediação e na produção de autonomia, na mesma perspectiva que Franca

Ongaro Basaglia aponta neste interessante trecho:

―Entender a tutela como momento de emancipação e não mais de

repressão; emancipação no sentido de que as pessoas, quanto mais

necessitadas de proteção, tanto mais devem ser colocadas em condição

de viver positivamente a própria ‗minoridade‘ para conquistar ou

recuperar autonomia e responsabilidade‖ (Basaglia, 1993: XXIV).

Aos poucos, os serviços de jardinagem nas praças foram complementados por

serviços particulares em residências e em entidades como o Sesc (Serviço Social do

Comércio), o clube de futebol Portuguesa Santista, entre outros lugares.

Abria-se também a possibilidade de se experimentar novas propostas de trabalho

junto desses parceiros-clientes, como o serviço de limpeza do estádio da Portuguesa

Santista realizado algumas vezes depois de alguns jogos.

FORDISMO E TAYLORISMO

Após a primeira revolução industrial do século XIX, coube a Ford e Taylor

protagonizar os métodos científicos de produção que se tornariam a regra e deixariam

rastros fortes até hoje, embora muitos proclamem a superação desse modelo pelo

avanço tecnológico de terceira geração (terceira revolução industrial e tecnológico-

microeletrônica).

A famosa produção em série, os movimentos limitados e cadenciados de cada

trabalhador na linha de montagem, o distanciamento profundo do trabalhador do

produto final, coletivo e anônimo ao mesmo tempo, marcaram toda uma geração no

desenvolvimento das indústrias.

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Como que por mágica, um produto saía pronto sem que nenhum dos

trabalhadores pudesse compreender o processo na totalidade.

A separação entre trabalho manual e intelectual, a hierarquização disciplinar

altamente avançada, a abertura de capital pelos investidores ainda conectados com a

produção real (sem a volatilidade e autonomia dos capitais que circulam atualmente

pelo mundo na velocidade da internet) caracterizaram o momento fordista de produção,

que promoveu o desenvolvimento mercantil, embora tenha sido abalado por crises

sistêmicas como a do final dos anos 20 e as posteriores, inicialmente relacionadas ao

petróleo, posteriormente referentes às bolhas especulativas dos capitais voláteis.

A época fordista representou a construção avançada de novas formas de

seguridade social, de novas expectativas de empregos quase vitalícios (Sennet 2002,

2006; Bauman, 2003), de novas redes de sociabilidades girando em torno do processo

avançado de mercantilização da sociedade.

Tais formas de sociabilidade produtoras de projetualidades individuais e

coletivas deram-se não só em função das estratégias dos Estados que garantiam o

avanço do mercado, superando resistências, mas pelas próprias resistências dos

trabalhadores ou da população que não se submetia a essa forma de existência, e que,

por isso, era considerada desviante e propensa a ser caso de polícia.

Em todas as épocas de desenvolvimento do capital, os mecanismos de

resistência e novas formas de sociabilidade conviveram com o movimento hegemônico

da forma de sociabilidade do trabalho moderno.

Não sendo linear, o desenvolvimento capitalista convive com nichos contra-

hegemônicos de produção e de relações sociais que representam um mix das formas já

superadas de produção.

É o que aponta Sassen (2006) quando sustenta que as ilhas do capitalismo

avançado, ou as vilas mundializadas, cidades desenvolvidas como Nova York,

convivem com investimentos de capital altamente desenvolvido, tecnologia de ponta, e

com formas artesanais de produção, formas de comércio alternativo, funções menos

valorizadas no mercado ocupadas por imigrantes, mas que mantêm sua importância

enquanto valor de uso no cotidiano da vida nas cidades.

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Nem todas essas formas alternativas de participação do mercado, contudo,

significam formas de resistência.

Boa parte delas sugere a ocupação de espaços marginais, de pequenas bordas do

mercado que não interessam ao grande capital, mas que não deixam de reproduzir uma

lógica de produção e de circulação de mercadorias prevalente no mercado.

BARTOLOMEU DE GUSMÃO: SANTISTA E INVENTOR DO AERÓSTATO

O santista Bartolomeu de Gusmão foi um grande personagem da história por ter

sido o inventor do aeróstato, o famoso balão movido a ar quente utilizado para levar os

seres humanos às nuvens.

Essa informação foi trazida pela diretora do curso de Direito de uma

universidade local.

O personagem histórico era o patrono da universidade e foi muito lembrado no

festejo de comemoração do aniversário dela.

Na verdade, os dirigentes da universidade queriam aproveitar as comemorações

para fazer a cidade relembrar alguns aspectos de sua história. Unir uma estratégia de

marketing a um projeto de resgate da memória que pudesse lembrar que Santos já foi

berço de importantes personagens, lembrando a cidade de que é possível fazer história e

não estar apenas à mercê das marés.

Como todo personagem histórico, Bartolomeu de Gusmão tinha seu busto

exposto no centro de uma praça localizada no centro da cidade.

O projeto de intervenção cultural proposto pela universidade agregou, através da

intermediação do Horto Municipal, a participação daqueles personagens que, naquele

momento, saíam da penumbra do manicômio adentrando a cidade (a partir da mediação

produzida por um novo olhar e uma nova prática em saúde mental): os ex-internos do

Anchieta, novos trabalhadores coletivos.

Os novos trabalhadores do Projeto Terra seriam os responsáveis pela renovação

do jardim, e para isso seriam pagos pela universidade, num trabalho conjunto com os

engenheiros do Horto que projetariam todas as transformações da praça.

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Após o término do trabalho, numa data festiva, com a participação de todos os

envolvidos e do público em geral, foi inaugurada a praça em meio a diversos festejos.

Brindávamos o fato de estarmos aplicando algumas estratégias fundamentais

para o sucesso dos projetos de trabalho na perspectiva da desconstrução do paradigma

psiquiátrico.

As estratégias a que me refiro eram:

Ocupar espaços diversificados na cidade, como forma de repropor a

convivência dos cidadãos com as pessoas que vivem uma existência de

sofrimento psíquico, modificando assim valores do imaginário social,

descobrindo formas de estar em companhia, dividindo espaços comuns;

Viabilizar ações promotoras de melhorias concretas na qualidade de vida

da cidade, que é o palco das novas relações e normas construídas

coletivamente. Participar da constituição de um espaço agradável,

acolhedor e belo, que é a praça, promovendo intervenções culturais,

novas relações e experimentações inéditas.

O que buscávamos transformar eram as noções de incapacidade, periculosidade

e incompreensibilidade do louco e a simplificação da experiência do sofrimento

psíquico em simples sinais e sintomas desconectados da realidade contraditória de vida

dos usuários.

O MUNDO DA PRODUÇÃO APÓS A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL: O

ESTADO-PROVIDÊNCIA

O momento fordista de desenvolvimento econômico, impulsionado por ideais

liberais, sofreu reveses que foram demarcados temporalmente pelas duas Guerras

Mundiais.

Estas levaram à produção de uma série de reformas, seja as de caráter

keynesiano (forte presença do Estado no estímulo ao desenvolvimento, criação da

infraestrutura para a produção e pleno emprego visando o consumo em larga escala com

a consequente alimentação do ciclo de produção), seja as de caráter reformista no

campo da seguridade e das políticas sociais (reformas de hospitais, programas de saúde

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pública etc.), além de outras modificações fundamentais no campo das estratégias

organizacionais de produção.

Aqui, sugere Bauman (2003), a ―escola das relações humanas‖ da sociologia

industrial de Elton Mayo dos anos 30 iniciou aquilo que seria uma das experiências de

reestruturação produtiva e de reengenharia no sentido de envolvimento dos

trabalhadores no processo de produção, propiciando um clima de pertencimento do

trabalhador ao projeto da empresa e a qualificação e ampliação do potencial produtivo.

É claro que as ciências, em especial nas áreas de economia e de humanas,

desenvolveram muitos métodos de estimulação e envolvimento participativo dos

trabalhadores, incluindo-se as técnicas psicológicas, sempre consoantes com o

desenvolvimento da tecnociência, com seus pressupostos simplificadores pautados na

lógica formal e no cartesianismo.

O toyotismo e os programas de Qualidade Total vieram representar tendências

mais modernas de envolvimento dos trabalhadores na produção, consoantes com o tipo

de empresa necessária a um ambiente de mercado com alto desenvolvimento

tecnológico.

A criatividade e a flexibilidade dos trabalhadores passaram a desempenhar papel

fundamental na valorização capitalista do trabalho, embora essa seja uma criatividade

que produz obra sem autor, e que é tão descartável quanto o próprio trabalhador.

BLITZ

Tarde parada, sem vento nem mar.

Arrumamos nossos corpos e espíritos para uma visita ao Horto. Desta vez, num

grupo um pouco maior, cerca de 10 pessoas.

No canal 2, pegamos o ônibus.

É verdade que era um grupo um pouco incomum: os internos do Anchieta

calçando roupas simples e sandálias de dedo, e os profissionais, vindos da classe média,

em trajes pouco convencionais.

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Era como uma mistura de semicamponeses-boias-frias com semi-hippies (já que

hippies de verdade não moram nem circulam nos mesmos espaços sociais, nem têm os

mesmos hábitos dos semi-hippies da classe média).

A mistura de trajes desse curioso grupo não somente provocou certo

estranhamento nos transeuntes, estranhamento esperado na medida em que ―abríamos as

portas do manicômio‖, como motivou a ação de autoridades que viram, na

movimentação que ocupou boa parte dos assentos do ônibus, a possibilidade que dali

surgisse algum foco de infração das leis.

Um carro de polícia parou o ônibus no meio da avenida. Os policiais entraram

no ônibus e dirigiram-se diretamente ao grupo para solicitar os documentos de

identidade.

Mesmo explicando quem éramos e de onde tínhamos vindo, tive a bolsa

revistada. Mas aceitaram, depois de muitas explicações, que boa parte do grupo não

possuía documentos, porque seus integrantes eram oriundos de um longo período de

internação no hospital psiquiátrico, alguns tendo perdido o fio da história de suas vidas

e seus documentos.

De loucos a suspeitos contraventores. A relação das autoridades com toda sorte

de desviantes nunca deixou de atualizar o que se vivia nos tempos anteriores ao

surgimento da psiquiatria, em que criminosos, prostitutas, loucos e toda a forma de

desatino eram amontoados nas casas de internamento, numa combinação de cuidado

com punição (Foucault, 2002, 2005a, 2006). Tecnologia que permaneceu em diversas

instituições organizadas a partir do modelo panóptico: a escola ensina, mas vigia; a

prisão tenta recuperar, mas pune; o manicômio tenta curar e usa a punição como arma

disciplinar.

A situação do ônibus fez-me pensar que nem sempre é tão simples ―emprestar‖

poder de contrato aos usuários18

.

18

A noção de poder de contratualidade, muito utilizada pelos reformistas italianos, foi lembrada por

Roberto Tykanori Kinoshita, interventor do Anchieta. Para Kinoshita (1996: 46), se entendermos que a

vida social é pautada por processos de trocas de mensagens, afetos e bens, veremos que ―cada participante

da relação pressupõe um valor pré-atribuído aos outros, isto é, um poder contratual. No caso dos

pacientes psiquiátricos, este poder contratual é socialmente anulado pelo seu enquadramento no status de

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Talvez aqui uma noção mais foucaultiana de poder, como um fluxo sempre

instável e em permanente desequilíbrio, formatado por resistências que estão sempre ali

a confrontá-lo e a moldá-lo (Foucault, 2003a, 2003b, 2003c, 2008), possa servir melhor

para uma reflexão.

O poder exercer o poder de ocupar um ônibus e ir trabalhar, juntamente com o

poder dos profissionais de saúde mental que legitimam essa possibilidade como real

alternativa à segregação no manicômio, foram suficientes para superar a resistência dos

policiais em seu trabalho de inibir a circulação daquilo que fugia à norma.

Produzimos e exercemos poder contra a maré, à beira-mar19

.

O MUNDO ATUAL DA PRODUÇÃO E A PRODUÇÃO DE SOCIABILIDADE

O momento atual é não só de reestruturação produtiva, onde vigoram padrões

tecnológicos e novas formas de desregulamentação das relações de trabalho, como de

uma intensificação do sempre existente processo de globalização, ou de globalizações,

como defende Boaventura de Sousa Santos (2005).

Para este autor, a concepção dominante de globalização, a globalização pelo viés

dos vencedores, se coloca unicamente na dimensão econômica, muito embora haja

outras dimensões para os processos de globalização, como as dimensões interestatal e

cultural.

Os localismos globalizados (o que é universalizado de um local para o globo) e

os globalismos localizados (aquilo que chega como universal e global a uma localidade

específica) convivem com movimentos de resistência contra-hegemônicos também ao

mesmo tempo locais e globais, que ele traduz como cosmopolitismo (articulação de

doente mental. Suas mensagens são ‗obviamente‘ ininteligíveis; seus afetos, ‗necessariamente‘

desmedidos; seus bens, implicitamente sem valor. Nesta condição de ‗nulidade de intercâmbio‘ torna-se

impossível qualquer pretensão de inserção social, exceto pelo seu status de doente, de não-ser, de ser-

paciente‖. Em seguida, o autor afirma que, diante desse quadro, a função dos profissionais é emprestar

poder contratual aos pacientes, até que estes ganhem autonomia.

19 Contra a maré, à beira-mar: A experiência do SUS em Santos é um livro que relata a experiência de

construção do sistema de saúde que se tornou modelo em várias áreas, entre 1989 e 1996, quando o SUS

ainda estava no início de seu desenvolvimento (Henriques, Braga Campos, 1996).

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grupos minoritários visando à preservação do direito à diferença, ou a organização

sindical multinacional de empregados de empresas multinacionais) e de defesa do

patrimônio da humanidade (como a defesa do meio ambiente).

Aproxima-se da ―globalização de baixo para cima‖, proposta por Milton Santos

como forma de produzir uma mundialização que produza uma consciência universal

rica e alternativa ao pensamento único neoliberal (Santos, 2000).

As transformações atuais no mundo do trabalho levam autores a se desencontrar

quanto aos aspectos positivos ou negativos desses processos, ou quanto ao significado

deles enquanto produção de sociabilidades.

Na caracterização do funcionamento atual das empresas, Bauman (2003), por

exemplo, explica que o controle de tipo fordista, que reproduz uma escala hierárquica

na linha de montagem, através da multiplicação de capatazes e chefes, como pelotões

em marcha, é substituído por um tipo de controle que mais lembra um enxame de

abelhas: os poderosos e gerentes cuidam das flores, para onde tentam se deslocar

caoticamente os funcionários das empresas, atentos ao seu perfume e aos prêmios que

elas fornecem.

Não há necessidade de um controle pormenorizado, mas do estabelecimento de

prêmios determinados, de incentivo à concorrência, da disseminação de um sentimento

difuso de insegurança, quando sabem os trabalhadores que os méritos passados já não

contam, uma vez que a descartabilidade da produção segue o fluxo veloz do mercado, e

dos investimentos financeiros.

Ninguém sabe se a empresa estará lá amanhã, quanto tempo durará o emprego,

que tipo de funções a empresa precisará para se adequar às novas demandas.

Linhas produtivas são descartadas rapidamente, outras linhas são produzidas

para ter uma existência tênue, na tentativa de ocupar um lugar transitório e de curto

prazo no mercado.

A desregulamentação de Bauman se opõe à jaula de ferro de Weber, pois as

grades atuais são de algodão, ou algo multiforme de difícil detecção.

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Nela, os poderosos já não se preocupam em controlar minuciosamente, porque

esse tipo de controle também significava que estavam sendo controlados e que tinham

sua liberdade de locomoção limitada.

O controle de perto exige assunção de responsabilidades, sendo mais

interessante deixar os trabalhadores à própria sorte, sem ter que produzir relações de

compromisso de longo prazo, como se dava nas antigas empresas fordistas.

É claro que a ausência de compromissos de longo prazo ressoa não só nos

ambientes de trabalho, mas produz um poder de desarticulação das já frágeis relações

comunitárias.

De outro lado, Sennet (2006) vai explicar que a empresa atual também se

desvinculou da pirâmide hierárquica, produzindo outras formas de controle que se

despojaram dos níveis intermediários.

Se uma ordem levava até meses para chegar do topo da pirâmide à base, sendo

reinterpretada por cada nível intermediário, hoje os meios instantâneos de comunicação

permitem que as ordens cheguem do topo à base em tempo real, bem como podem

chegar pela internet avisos de demissão ou de mudança de posto.

A impessoalidade dos novos mecanismos gerenciais troca a visão da pirâmide

pela do aparelho de MP3, onde cada faixa de música pode ser programada ao bel-prazer

daquele que tem o privilégio de operar a máquina, nos altos cargos gerenciais.

Isso sem falar dos consultores, que surgem repentinamente para aplicar

reformas radicais que implicam enxugamento do quadro de pessoal, e que não nutrem

nenhum vínculo com a empresa, muito menos com seus trabalhadores.

Santos (2005) cita estudos que identificam a criação de novas classes

multinacionais, formadas por donos de empresas, gerentes de alto nível, políticos das

localidades, burguesia local, gerentes de agências internacionais de regulação

econômica. Junto delas, a intensificação da desigualdade da riqueza se apresenta como

um fenômeno sem comparações anteriores.

Os investimentos ainda ditam as normas do movimento das empresas, embora,

nesse momento, estejam desconectados dos processos reais de produção. Ou seja, o

dinheiro produz valor velozmente, através da compra e venda de ações e de mecanismos

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especulativos que levam empresas a se tornar altamente valorizadas em poucas horas e

voltar à condição de total desvalorização logo depois, gerando lucros a partir de

operações financeiras, e não mais por sua produtividade real (Kurz,1999a).

NOEL, O HOMEM-MÁQUINA

Noel viveu muitos anos no Anchieta, e era um daqueles internos que havia muito

perdera contato com a família.

Foi através de um longo processo de convencimento, cujo lastro era a relação de

confiança estabelecida entre os profissionais e os usuários do hospital sob intervenção,

que Noel concordou em experimentar novas relações, a partir dos projetos de trabalho.

Assim como os demais ―moradores‖ do Anchieta, ele experimentava aos poucos

emergir das profundezas do obscuro oceano representado pelo manicômio, como aquele

submarino que lança seu periscópio antes de emergir, garantindo assim uma aparição

sem riscos aparentes nem armadilhas à espreita.

Assim parecia o movimento ondulatório e nada linear dos antigos moradores,

que iam e voltavam nesse processo de ampliação da rede de relações.

Às vezes entravam em crise querendo expressar que o movimento de saída do

hospital estava muito rápido ou pesado para ser suportado.

Crises se seguiam aos avanços em direção aos novos territórios de relações,

exigindo um novo recolhimento, um recuo estratégico.

Eram situações onde os internos simplificavam em forma de sintomas sua

complexa ―existência-sofrimento‖ (Rotelli, 1990) que, embora se apresentasse como

doença, expressava a complexa rede de relações e de desafios a enfrentar.

Noel então passou a ser um dos trabalhadores do Projeto Lixo Limpo,

frequentando o centro de triagem diariamente, como um dos parceiros da difícil

empreitada de separar toneladas de material reciclável, que chegavam cada vez em

maior quantidade devido ao aumento da participação dos munícipes que aderiam ao

programa separando o material para a coleta domiciliar.

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Era um grande desafio conseguir um equilíbrio entre a produção de trabalho e de

vida. Esse era o desafio principal do projeto, e de todos os seus atores.

Para isso, o cotidiano de trabalho era seguido diariamente por técnicos da

Prodesan, responsáveis pelo gerenciamento, andamento e produtividade do trabalho de

separação, pela manutenção das máquinas, pela comercialização do material, focando

essencialmente a inserção do projeto no mercado.

Do outro lado, mas sempre em interação, conectando aspectos da produção, mas

focando a produção de vida, havia as intervenções da equipe do Núcleo do Trabalho.

Ela acompanhava o andamento do trabalho, apoiava a relação de cada

trabalhador com ele, promovia o intercâmbio entre os trabalhadores para que se

construísse um projeto coletivo, através de reuniões de trabalho e outras formas de

discussão. Também conversava individualmente com cada um dos trabalhadores, para

saber como andava a vida, para integrar aquela experiência ao projeto terapêutico que

era construído pelas equipes dos NAPS em conjunto com os usuários.

A integração com os NAPS se dava de variadas formas: compartilhando

informações, combinando intervenções conjuntas etc.

Mas os projetos de trabalho não se davam sem tensões e enfrentamentos, mesmo

entre os atores que o compunham, ou destes com o mercado.

O viés da produtividade, mesmo sendo uma das dimensões do trabalho à qual

todos estavam atentos, era mais defendido pelos técnicos da Prodesan.

Se todos os atores compartilhavam papéis comuns, o papel de cobrar a

produtividade era exercido de forma mais intensa pela Prodesan, e era fundamental para

o projeto que houvesse essa divisão de tarefas e que alguém se responsabilizasse por

aquilo que seria a possibilidade de o projeto ter uma presença real e não ilusória no

mercado.

Não queríamos reproduzir o entretenimento que sempre reproduziu a

laborterapia da psiquiatria (Saraceno, 1999, 2001), nem o fim em si mesmo dos

cotidianos de trabalho que buscam apenas a ampliação do capital.

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O que garantia a riqueza e a potência do projeto eram as tensões decorrentes de

funções e olhares diversos entre os vários atores que o compunham.

Mas não era algo fácil. Os técnicos do Núcleo, ao mediar as relações entre os

trabalhadores e o trabalho, deveriam se esforçar para avaliar a cada momento o grau de

autonomia dos usuários, de modo a modificar constantemente as formas de apoio à

medida que se conquistavam novas habilidades e se efetivavam novos protagonismos.

Mediar era a palavra-chave, e significava viabilizar junto aos trabalhadores

formas originais e novas de se fazer as coisas, sem que o movimento se estagnasse, sem

que houvesse riscos e desafios insuportáveis, sem que recaíssemos na velha rotina do

entretenimento e do fim em si mesmo, tão conhecida da psiquiatria dentro do hospital

psiquiátrico.

E com essas tensões os projetos iam caminhando.

Algumas vezes de forma mais intensa, como quando o volume de material

recolhido atingia níveis alarmantes, ou como quando tínhamos que lidar com a falta de

alguns trabalhadores que se encontravam sob licença por necessitarem cuidar da saúde.

As tensões coletivas dos projetos se somavam às demandas singulares de cada

trabalhador, no processo de reconstrução da própria vida depois de deixar o manicômio.

Voltando ao Noel, creio que essa foi a situação quando, de repente, a equipe do

Núcleo, que não estava no local, foi acionada pelos técnicos da Prodesan: Noel tentava a

todo custo beber o óleo destinado às máquinas, que se encontrava em galões espalhados

pelo centro de triagem.

Os técnicos da Prodesan tentavam dissuadi-lo, e entender o porquê daquela

iniciativa tão incomum. Não conseguiam obter um diálogo positivo com Noel, e este

teve que ser segurado constantemente por um dos seguranças que guardavam a portaria

do local (a função dos seguranças era evitar assaltos e proteger os trabalhadores e o

patrimônio).

Desloquei-me até o local e tentei dialogar com Noel, que não queria trocar

muitas palavras. Tive que segurá-lo para que não bebesse o óleo, e isso não foi nada

simples.

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Rolamos juntos no chão, sempre envolvidos por boa quantidade de óleo.

Minhas roupas ficaram todas manchadas, e tiveram que ser posteriormente

descartadas.

Chamamos uma ambulância e fomos acompanhar Noel ao NAPS 2, que era sua

unidade de referência, à qual recorremos para nos ajudar a oferecer outra forma de

acolher o sofrimento de Noel.

Noel foi medicado e acolhido. Estava muito angustiado. Dormiu algumas noites

no NAPS antes de retornar ao trabalho.

Poderia supor que ele quisesse expressar que não estava suportando o trabalho,

disputando óleo com as máquinas, dizendo que se sentia uma máquina. Ou como se

dissesse que ainda se sentia como aquela máquina dentre as muitas máquinas que

residiam no Anchieta, sem vida política, como corpos físicos à espera de ser nutridos,

como Homo sacer (Agambén, 2002).

A partir desse momento, pudemos retomar o diálogo com Noel procurando

processar lentamente o sentido do trabalho em sua vida, para que as palavras

substituíssem os atos dramáticos como este de ingerir óleo de máquinas.

E assim caminhavam os projetos, não como máquinas de entretenimento, mas

como rizomas (Deleuze, Guattari, 2004) que se autotransformavam, no sentido de

produzir cada vez mais vida.

TRABALHO IMATERIAL E CRIATIVIDADE

A categoria trabalho adquire outro contorno com o atual desenvolvimento

tecnológico, e faz com que o chamado trabalho imaterial ganhe força. Gorz (2005),

Negri e Lazzarato (2001), Hardt (2003) sustentam a importância do trabalho imaterial,

sem, contudo, alertar para o fato de que o trabalho imaterial sempre existiu, assim como

os focos de criatividade, autonomia, exercício do conhecimento da experiência de vida,

mesmo em condições desfavoráveis como os da produção fordista.

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Sugerem a efetivação desse tipo de trabalho como o lugar da produção de valor,

que substituiria a clássica determinação marxista do valor como produto do tempo

socialmente gasto pela força de trabalho para produzir as mercadorias.

Esse valor fluido e imaterial procederia nem tanto dos conhecimentos científicos

e tecnológicos, mas do talento empreendedor e da criatividade, além do saber cotidiano

ligado à resolução de problemas.

A determinação dos processos de trabalho viria, então, não mais de cima para

baixo, como na indústria fordista, mas a partir da captura pela empresa dos movimentos

criativos dos funcionários.

A empresa seria algo como um molde autodeformante de potente capacidade de

gerenciamento e de respostas rápidas aos nichos sempre frágeis e de vida curta do

mercado.

A possibilidade de desenvolver a autonomia e a criatividade (que Bauman

defende como produtora de angústia e insegurança, ao invés de um sentimento de

liberdade) seria, por este viés, acompanhada da captura pela empresa do todo da vida do

empregado.

Ou seja, voltaríamos ironicamente à situação pré-moderna de inseparabilidade

das dimensões do trabalho e da vida cotidiana, da mistura do trabalho, do lazer, do

prazer, da obrigação, da religião, dos valores, das relações familiares, todos convivendo

num mesmo espaço-tempo.

Só que, desta vez, longe de implicar a complexidade da vida e da cultura das

comunidades, essa nova fusão implica o domínio absoluto da dimensão da produção de

valor no cotidiano de vida dos trabalhadores.

É certo que o termo absoluto deve ser empregado aqui com muita cautela, pois

sabemos o quanto movimentos de resistência convivem e modulam as novas ações,

determinando os fluxos das relações de poder.

É difícil negar que haja atualmente um movimento de valorização que busca

totalizar sua presença, envolvendo a vida inteira das pessoas, mas é certo que ele não

chega a ter pleno sucesso.

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BOCA VERMELHA

Elis pintou a boca com um batom bem vermelho. Além disso, pós de maquiagem

verdes e arroxeados dominavam seu rosto bastante envelhecido.

Sempre que isso acontecia, sabíamos que uma crise se aproximava; outra Elis

entrava em cena: uma mulher de 55 anos com um linguajar vulgar e dada a oferecer-se

aos homens da padaria que ficava na esquina do Anchieta.

As roupas extravagantes e o olhar inquiridor já eram por si um modo de seduzir

que exigia pouco das palavras.

À visão metamorfoseada que se nos apresentava somava-se o jeito agressivo e

hostil com que, nesses momentos, Elis se dirigia às pessoas com quem possuía um

vínculo importante.

Queria dizer, nesses momentos, que estava mal, que não estava à disposição de

dialogar, diferentemente do jeito terno e delicado de se dirigir aos conhecidos quando

era a outra Elis.

Essa Elis aguda e cortante surgia sempre que se discutia a possibilidade de

mudança da primeira Elis de seu lugar no Anchieta, onde residia havia anos, para um

quarto de pensão ou outro lugar de moradia.

Elis já trabalhava no Lixo Limpo e possuía condições financeiras que

possibilitavam tal mudança. A mudança representaria um importante desafio no sentido

da ampliação dos lugares de vida e de relações.

Foram muitas as tentativas e muitos os avanços e retornos dados até que

finalmente Elis se sentisse forte o suficiente para acreditar que a mudança seria possível.

A constituição do NAPS 2, no centro de Santos, foi fundamental para que ela

visualizasse o efetivo suporte que garantiria essa empreitada, com todos os riscos

implicados, riscos que são os da própria vida.

Rotelli (1990) já apontava que o manicômio era o lugar de ―troca zero‖. O

manicômio é o oposto da vida, que só pode existir se riscos são assumidos.

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Poderíamos supor que o manicômio seria como que o lugar de risco zero à

sociedade, uma vez que certa classe de desviantes nele se encontraria confinada e

controlada.

Suporíamos também, no entanto, que ele seria o lugar de altos riscos para os

internos. Altos riscos de ter a subjetividade dizimada, o desejo apagado e abafado, a voz

e o poder sobre o próprio corpo anulado. O risco da coisificação se apresenta de forma

atordoante no manicômio.

Os riscos da vida são riscos mais maleáveis, já que se encontram numa medida

entre a negatividade do desvalor e a positividade do valor. Entre o vazio da passividade

e a potência do desafio.

―As contradições sociais são o húmus do processo terapêutico‖ (Basaglia e

Basaglia, 1977; Basaglia, 2001) e, por que não?, o lugar dos riscos e dos desafios da

vida de qualquer humano.

Assumir os riscos da vida, como um desafio coletivo e não solitário, que produz

movimento, é o que foi proposto a Elis.

Ela aceitou o desafio, e a segunda Elis, caricatura do medo, agressividade da

defesa, aos poucos deixou de ter sentido e nunca mais apareceu.

Em troca, outra Elis, também diferente daquela passiva moradora de hospital

psiquiátrico, foi aparecendo, sempre em metamorfose, num diálogo constante com o

universo das trocas sociais, sempre tensas e contraditórias.

A CONSTITUIÇÃO DA FIGURA DO TRABALHADOR NO BRASIL

No caso do Brasil, às tendências globais de funcionamento das empresas,

somam-se as características históricas peculiares de um país que viveu bom tempo sob o

julgo de Portugal e de regimes republicanos mais ou menos autoritários e paternalistas.

O estigma da vagabundagem sempre acompanhou a construção da figura do

trabalhador brasileiro, aquele que se indispõe a trocar a festa por posturas disciplinadas

de trabalho, à maneira das antigas potências industriais.

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Durante a história, nas principais fases do desenvolvimento econômico e social

do Brasil, o trabalhador nativo teve sua presença pouco delineada nos relatos oficiais.

A importância do processo de dizimação da população indígena e dos

mecanismos violentos da escravidão dos africanos na composição do mercado de

trabalho teve seu tamanho minimizado (Gambini, Dias, 1999; Blass, 2004).

O que ficou para a história é que à incapacidade de adaptação dos índios ao

trabalho nas plantações de cana sobrevieram os escravos africanos.

Do mesmo modo, ao posterior desenvolvimento da cafeicultura, passando pelo

curto período da extração mineral (onde finalmente os caboclos nativos figuravam como

atores a acompanhar os bandeirantes), sobreveio a chegada dos imigrantes europeus

(Ribeiro, 2000), que de fato ficaram marcados como os precursores dos trabalhadores

assalariados modernos no Brasil.

Pouco se fala das funções desempenhadas pelos nativos caboclos, na construção

de estradas ou outras obras, e de sua resistência a ser engolidos pelas formas do

mercado em desenvolvimento, bem como pouca importância se atribui aos índios e aos

escravos e a suas trajetórias de opressão na composição da figura do trabalhador

assalariado brasileiro.

A formação da classe trabalhadora no Brasil também se deu de forma violenta e

forçosa, embora de um jeito peculiar, acompanhando os ciclos de desenvolvimento e as

suas estratégias.

PROFUNDAS CAIXAS D‘ÁGUA

Trouxemos mais um profissional da Secretaria de Esportes, após prospecções

para encontrar talentos que pudessem enriquecer a equipe da URP (Unidade de

Reabilitação Psicossocial).

Esses talentos, vindos de profissionais que não eram da área de Saúde Mental,

era algo difuso e difícil de explicar.

Passavam muito mais pela disponibilidade de contato com a diferença, pelo

senso crítico que possibilitava entender o processo de construção de autonomia e poder

de contratualidade.

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É um talento de saber colocar-se numa relação dinâmica onde o poder flui e

circula, onde uma construção coletiva se impõe às tentativas sempre humanas de

individualizar ou produzir identidades exatas. Aquele processo de mistura e separação,

indiferenciação coletiva e afirmação individual, que se faz necessário no movimento

inédito de produzir subjetividades.

Porque a subjetividade também é exercício de poder, se desenha no exercício do

poder, ou na participação no negócio (Saraceno, 1999)20

.

Recorrendo novamente a Deleuze e Guattari (2004), poderia dizer que a equipe

da URP e os usuários faziam mais rizoma do que raiz.

Nesse sentido, a identidade era o movimento não só contingente, mas também

produtor de sentidos.

O sentido não é contraditório à contingência, desde que não nos aprisionemos

nele, tendo-o como uma camisa de força, uma doutrina, uma religião, ou um partido

político.

O talento desses profissionais que foram agregados à equipe da URP, apesar de

não atuarem anteriormente na área da saúde mental, consistia em se relacionar com os

usuários, em se misturar e exercer coletivamente o poder, em mediar os conflitos e as

mudanças produzidas pela participação dos ex-internos nos espaços sociais.

Esse talento era sempre lapidado pelo restante da equipe da URP, em especial

aqueles profissionais que participaram do processo de desconstrução do Anchieta, e que

tinham muito claro o significado do exercício coletivo do poder, a produção de rupturas

nos contextos e novas subjetividades, de novos contextos, a partir da construção que a

desconstrução das instituições realiza.

Esse novo profissional assumiu também algumas tarefas em projetos específicos.

Ele e os trabalhadores do Projeto Caixa d‘água penduravam-se nos mais altos

pontos dos imóveis que compunham as unidades de Saúde da Sehig, para realizar a

desinfecção das caixas d‘água.

20

Saraceno aqui se refere à possibilidade de assumir o risco de viver a partir da participação efetiva nas

trocas sociais. A palavra negócio representa a saída do isolamento e a entrada no intercâmbio

enriquecedor das trocas sociais.

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Era um trabalho de constante pesquisa e que exigia o talento circense do

malabarismo. Pesquisa porque era difícil encontrar a localização das caixas d‘água, bem

como a melhor forma de ter acesso a elas e de levar até elas a bomba que esvaziaria o

reservatório.

Esse trabalho, sem dúvida arriscado, mas muito importante para as unidades de

saúde, foi possível graças ao treinamento que a equipe da vigilância sanitária da Sehig

ofereceu aos usuários, levando-os a entender o processo de desinfecção, a ordem e o

tempo dos procedimentos necessários para um bom resultado (procedimentos que

geralmente não são executados com rigor pelas próprias empresas especializadas em

desinfecção).

A execução do trabalho levava a uma necessária articulação com os gerentes e

os trabalhadores das unidades de saúde, para que se organizasse a suspensão temporária

dos atendimentos, ou outras estratégias que não atrapalhassem o bom andamento das

unidades.

Os serviços eram pagos pela própria Sehig, em depósitos bimensais, para não

caracterizar a necessidade de se fazer um processo licitatório.

Além disso, para não se criar vínculos empregatícios, a cada pagamento um dos

trabalhadores do grupo assinava os recibos.

Essas eram as estratégias que possibilitavam aos grupos de usuários a execução

de uma tarefa que, de outra forma, só poderia ficar a cargo de empresas de pequeno ou

médio porte.

Era uma forma de reconversão de recursos, de substituição dos gastos com o

hospital psiquiátrico pelo financiamento de ações que produziriam vida, novos valores

sociais que questionariam a suposta incapacidade e periculosidade do louco, servindo ao

mesmo tempo para qualificar a atividade das unidades de saúde.

O transporte dos trabalhadores e dos equipamentos até as unidades de saúde era

realizado com o veículo próprio da URP.

A bomba de sucção foi adquirida com recursos da Afrent, que fez um

empréstimo sem juros aos trabalhadores, para que estes pudessem ter a própria bomba.

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Os profissionais de saúde mental que acompanhavam o projeto eram os da URP,

e seus salários eram pagos pela prefeitura. Essa era a forma de fazer a reconversão de

recursos.

Umas das caixas d‘água mais difíceis, além das caixas das cerca de 20

policlínicas (nome dado às Unidades Básicas de Saúde), centros de especialidades etc.,

eram as caixas d‘água do Anchieta.

Por se tratar de um prédio enorme, as caixas d‘água eram subterrâneas e

correspondiam ao tamanho de imensas salas.

Lá, os trabalhadores esfregavam as paredes como que a desinfetar, destrinchar,

limpar todo o sofrimento que haviam vivenciado na instituição.

Enquanto o grupo processava todo o sentido do trabalho nas reuniões semanais

do projeto, as caixas d‘água de um Anchieta em processo avançado de desconstrução

(neste momento com poucos internos, uma vez que já existiam pelo menos 3 NAPS) e

as outras caixas d‘água das policlínicas faziam jorrar uma água translúcida e limpa,

anunciando os bons tempos que a cidade vivia.

COMPETIÇÃO SEM REGRAS

Aquilo que tem sido preconizado pelo neoliberalismo, ou seja, que as regras

jurídicas devem prevalecer sobre a intervenção do Estado, ou melhor, que o Estado só

deve intervir para permitir o livre desenvolvimento da competição no mercado, parece

ser o oposto do que tem acontecido no mercado atual21

.

Difícil dizer que a corrupção tenha sido apenas um desvio das regras jurídicas

bem estruturadas do mercado.

Seria a corrupção inerente aos processos competitivos?

21

Foucault (2008a) mostrou muito bem como a Alemanha do pós-guerra foi reconstruída tendo como

base princípios de valorização dos mecanismos de mercado, que poderíamos chamar hoje de neoliberais.

Curioso é ter feito tal genealogia dos aspectos econômicos da reconstrução da Alemanha no curso do

Collège de France, cuja publicação recebeu o instigante nome de O nascimento da biopolítica.

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Independente das respostas a essa questão, parece haver uma certa obscuridade

quando se considera a preconizada visibilidade de regras do mercado.

As mesmas relações pouco imparciais de que são acusadas as burocracias dos

Estados, que favorecem determinados grupos quando de suas operações comerciais,

parecem se reproduzir cotidianamente nas relações de troca dos entes privados.

E isso talvez não seja uma característica de nosso tempo atual, mas de todo o

percurso de constituição do mercado e dos Estados Nacionais.

Mas a realidade fluida muda seguindo o exercício das relações de poder, e, ao

mesmo tempo em que são reproduzidas essas relações de competição sem regras,

movimentos de emancipação e questionamento da competição somam-se ao

questionamento do poderio da mercadoria e do dinheiro.

Outras formas de sociabilidade convivem com a sociabilidade mediada pela

mercadoria.

Aqui, a vida como arte, ou a estética da existência, encontra lugar para existir em

indivíduos e grupos de indivíduos, que atualizam sua criatividade exercendo um poder

de resistência aos fluxos hegemônicos.

OS AMIGOS DAS PRAÇAS

Do Projeto Terra faziam parte pessoas com histórias muito diferentes.

Algumas pessoas – que deixaram as ruas depois de ser acompanhadas pelo

Centro de Atendimento à População da Seac –, mesmo com períodos marcados pelo uso

abusivo de álcool e outras drogas, possuíam um ritmo acelerado de trabalho, muita

energia e expectativas de atingir objetivos muito rapidamente.

É claro que essa velocidade poderia ser sinal de fugacidade, fragilidade,

superficialidade, intensidade total que logo se desmancharia no ar por falta de bases de

sustentação de longo prazo, como é a experiência intensa do uso abusivo de drogas,

quando se alcança o céu tão rápido quanto se desce em seguida ao inferno.

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A possibilidade de sustentação de um projeto no tempo, onde se

compatibilizassem contínuas mudanças com a construção de bases de sustentação

sólidas, era o grande desafio para essas pessoas no projeto.

A outra parte do grupo, maioria absoluta, era composta por usuários dos NAPS

e, nesta fatia, as pessoas eram também muito diferentes em sua relação com o trabalho.

Para alguns, o simples circular da casa ao local de trabalho era o primeiro grande

desafio a ser enfrentado.

Para outros, o desafio se dava no compartilhar atividades com outras pessoas.

Outros ainda tinham como desafio ampliar a qualidade e a quantidade do

trabalho e, assim, conseguir ampliar os recursos financeiros que recebiam em troca.

Estes, aos poucos, ampliaram suas atividades para além das praças, prestando serviços

de jardinagem em residências, com a chancela e a mediação do Projeto Terra.

Aqueles cujo desafio se encontrava na experiência do começar a trabalhar

exigiam outro tipo de chancela e de mediação.

Algumas combinações entre os profissionais da URP e os dos NAPS eram feitas

com os usuários para que o processo pudesse ser iniciado.

Muitas vezes, essas combinações traduziam a necessidade de se acompanhar o

usuário no trajeto do NAPS ou da casa até o local de trabalho, o apoio e a mediação

mais constantes dos profissionais, a possibilidade de o usuário experimentar e

experimentar-se em vários projetos.

A participação de alguns usuários muito graves nos projetos de trabalho era um

desafio particularmente fundamental para os profissionais, pois ela tocava no cerne do

paradigma psiquiátrico que se baseia numa concepção de normalidade muito vinculada

a certo tipo de subjetividade e sociabilidade ligadas às capacidades para o trabalho. Ou

seja, a normalidade enquanto determinado padrão de se fazer as coisas, de se relacionar

com as coisas e com as pessoas através do trabalho.

Foi a busca dessa ―normalidade‖ que legitimou tanto as práticas do tratamento

moral no início da psiquiatria, quanto as demais práticas disciplinares e laborterápicas

que sempre acompanharam e foram centrais na prática psiquiátrica.

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A lógica da cura e da pura adaptação sempre esteve implícita nessas práticas,

enquanto expectativa de treinar e adaptar para depois, supostamente, inserir no trabalho

(o que levava as legiões de pacientes a permanecerem eternamente ―em treinamento‖,

pois a hora da inserção nunca chegava).

Era tudo isso que questionávamos a partir dos projetos de trabalho.

Seria preciso mudar os contextos (Saraceno,1999) para que os usuários se

colocassem como protagonistas dos processos de trabalho, participando de fato (e não

virtualmente) do mercado, mas questionando o tipo de sociabilidade produzida por ele e

a forma como ele propõe que as coisas sejam feitas.

Se em nossa perspectiva o trabalho não era simples normalização e

adestramento, ele também não era uma dimensão da vida por onde obrigatoriamente

deveria passar a reabilitação psicossocial.

Ou seja, o trabalho não se colocava como o dispositivo único e obrigatório de

inserção social ou reabilitação, não era o lugar obrigatório por onde todos os usuários

deveriam passar.

Não era também o dispositivo adequado para determinado diagnóstico ou

determinado grau de autonomia. Não estava destinado aos pacientes ―menos graves‖,

nem era visto como um momento posterior do que se considerava tratamento

terapêutico. Não era sinal de cura, pois não era sobre a doença que se trabalhava, mas

sobre a ―existência do sofrimento e sua relação com o corpo social‖ (Rotelli, 1990).

A participação num projeto de trabalho era uma possibilidade de ampliação da

rede social e do arco de relações pessoais dos usuários; uma possibilidade entre outras,

podendo ser utilizada desde que produzisse sentido para o processo do usuário, na

construção de seu projeto de vida.

É óbvio que o trabalho poderia produzir valor social, novas normas etc., mas não

poderia ser o único caminho para a produção de poder de contrato nem valor social, já

que vivemos um momento muito especial do mundo do trabalho, momento em que

existe a possibilidade de se inventar novas formas de atividade humana que produzam

sentido no bojo dos resultados da revolução microeletrônica.

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Se uma das possibilidades de viabilizar experiências enriquecedoras para um

usuário do NAPS no sentido de ampliação da rede social e do poder de contrato passava

em algum momento pela participação num projeto de trabalho, essa aposta era

atualizada, mesmo para os usuários muito graves.

Um nível de protagonismo singular é sempre possível, até para quem fosse

considerado o sujeito mais louco do mundo.

Participavam dos vários projetos usuários-trabalhadores em situações muito

distintas, muitos deles bem graves.

Buarque, por exemplo, participou de alguns projetos, mesmo não sendo todos os

dias da semana. E seu ganho financeiro era proporcional a sua participação.

Era ele um sujeito de 20 anos de idade, baixo e magro, cabelos negros e lisos

que sempre caíam nos olhos. Estes falavam muito mais que a boca, embora as

mensagens fossem sempre enigmáticas.

O que queriam dizer aqueles olhos quando as pálpebras e a musculatura facial

eram projetadas para a frente, como que penetrando no espaço? Olhar penetrante, às

vezes macabro e acompanhado de um pequeno sorriso, às vezes parecendo ser um

reflexo do diálogo mudo com os personagens de Buarque, seus ―interlocutores

invisíveis‖ (Nathan, 1996).

Ele escutava vozes durante boa parte do tempo e, quando o solicitávamos, era

como se tivesse que abandonar outro diálogo interno para nos responder.

Certa vez, uma experiência difícil e inesquecível foi vivida por uma das

profissionais da URP que acompanhava o Projeto Lixo Limpo quando Buarque dele

participava.

Como Buarque demorasse a sair do banheiro, ela, preocupada, entrou no recinto

e deu-se conta de que Buarque estava lambuzando o rosto com as próprias fezes.

Foi difícil para essa profissional lavar cada detalhe do rosto recoberto de fezes, e

o fato gerou um olhar especial entre todos os envolvidos no acompanhamento de

Buarque no sentido de entender quais eram suas necessidades naquele momento.

Posteriormente o trabalho continuou e Buarque continuou a fazer parte dele.

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Tom, como Buarque, trabalhou tanto no Lixo Limpo – que era um lugar de

desejo de vários usuários porque a bolsa-trabalho, de 1,5 salário mínimo, era uma das

mais altas, valor apenas superado por alguns usuários do Projeto Terra que faziam

serviços residenciais – como nas praças.

Tom falava muito mais que Buarque, perguntava, solicitava, embora fosse

bastante gago e suas palavras saíssem como que cuspidas, rapidamente, após várias

tentativas de dizê-las.

Era um sujeito muito afável, de olhos arregalados, baixo e gordo. Os

movimentos do corpo eram rápidos e fragmentados como a fala.

Depois de mexer o corpo para lá e para cá, na dúvida de qual seria o próximo

movimento, decidia repentinamente e agia, como uma metralhadora.

Tinha também um inesquecível bigodinho que, em conjunto com os dentes

projetados para a frente, por vezes lembrava um daqueles belos e lépidos coelhos

brancos.

Tom falava muito consigo mesmo, ou talvez com seus personagens, em voz alta.

Gostava de usar a enxada, mas o fazia com tanta força que teve de ser orientado

a adequá-la à necessidade da terra, das plantas e da tarefa que estava executando.

Era preciso estar muito perto de Tom, por dois outros motivos: um deles é que

ele tinha especial predileção por alimentos abandonados que encontrava nas praças,

mesmo que estes não estivessem assim em total condição de ser consumidos.

Outro motivo diz respeito ao fato de Tom por vezes irritar-se com as pedras. Era

como se brigasse com elas, discutindo, até chegar a ponto de jogá-las longe. Só que,

algumas vezes, não olhava para onde a pedra era atirada, tão envolvido que estava pela

necessidade de expulsá-la, tirá-la imediatamente de sua frente. Por pouco não acertou,

algumas vezes, os carros que passavam em torno da praça.

Mas isso era constantemente trabalhado com ele.

Certa vez, Tom teve alguns problemas gástricos, e então discutimos novamente a

necessidade de ele resistir à tentação de consumir os alimentos que encontrava nas

praças.

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Nós o convencemos, então, a tentar limpar a mochila que sempre levava às

costas, e que sempre estava totalmente abarrotada.

Concordou que o ajudássemos a fazer a seleção dos objetos, pensando

especialmente nos alimentos que poderiam estar estragados.

Foi duro para Tom ter que se desfazer de um pedaço de bolo de festa, cuja data

de validade parecia ter sido ultrapassada há tempos, e que se encontrava dentro de um

prato em meio aos arbustos de uma das praças.

E assim caminhavam as negociações com Tom e outros usuários, sendo que,

com relação ao primeiro, ficava cada vez mais fácil convencê-lo a comprar o próprio

bolo, pois o projeto de trabalho lhe dava as condições de fazê-lo e de, assim, participar

também da troca de bens e serviços.

INSEGURANÇA, ANSIEDADE, DEPRESSÃO

A sociabilidade da mercadoria sempre conviveu com novos riscos e ameaças e

seus concomitantes remédios, quais sejam, as reformas com forte liderança dos Estados

nacionais.

Mesmo considerando a alegada fraqueza atual dos Estados, que se submetem às

determinações pouco coerentes do mercado, e os novos focos de poder centralizados

nos atores econômicos multinacionais, é inegável a forte presença dos Estados nos

momentos de crise econômica, ora propondo-se a controlar os fluxos monetários, ora

refinanciando dívidas de particulares, ora defendendo a total independência do mercado

(como se esta um dia de fato tivesse possibilidade de existir) na deliberação de soluções

de curto e médio prazo.

O estado de insegurança dos cidadãos continua sendo mantido sob determinados

limites de maneira a não trazer riscos à sociabilidade do mercado e à funcionalidade do

sistema econômico.

Mesmo vencendo a etapa do controle disciplinar como método preponderante de

controle, e estabelecendo mecanismos mais fluidos de controle, na linha da sociedade de

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controle defendida por Deleuze22

(1992), o Estado continua com uma função

insubstituível enquanto garantidor da soberania do mercado. Mecanismos flexíveis e

capilarizados de controle, câmeras de vídeo nas ruas e celulares para atendimento on-

line ininterrupto convivem com batidas policiais, invasões de residências nas favelas,

força bruta na corrupção vinculada ao tráfico de drogas.

Miseráveis, como sempre, não têm como garantir o direito de defesa caso

venham a aterrissar em algumas das celas superlotadas de nossas prisões, enquanto os

ricos continuam a dispor de muito espaço para usufruir suas riquezas, defendidos até os

dentes por advogados influentes e seguranças particulares.

A vivência da insegurança é sentida de forma diferente pelos abastados, por

integrantes das classes médias que ainda dialogam com o mercado de trabalho, e

aqueles que há muito tempo não sabem o que é emprego, mas nem por isso deixaram de

produzir regras, valores e formas de existência tendo como base elementos da

sociabilidade do trabalho e da mercadoria.

Estes últimos provavelmente levam a vida ―ao deus dará‖, sem projetualidades

definidas, e sem que isso signifique exatamente uma libertação ao estilo proposto pela

22

Ao se discutir a questão da complexidade do controle e da vigilância, a cartografia apresentada por G.

Deleuze sobre a sociedade de controle (Deleuze, 1992) serve como um importante contraponto à

descrição da sociedade disciplinar realizada por Foucault. Enquanto Foucault se referia a um tipo de

sociedade em formação nos séculos XVII e XVIII, Deleuze identificará um momento de desvio a partir

do fim da Segunda Guerra Mundial. A sociedade de controle caracteriza-se por fluxos de poder maleáveis

e não pela rigidez das estruturas disciplinares e, o que é importante para nossa discussão, por uma

capilarização acentuada do controle, pela inclusão mais que pela exclusão. Nela, a prisão dá lugar a penas

alternativas, permitindo a vigilância em espaços e tempos ininterruptos; o hospital vira hospital-dia, e

passa a ocupar os corpos e as mentes de maneira permanente, e não só em momentos especiais; a

educação e o controle pedagógico saem dos espaços escolares na tentativa de disseminar seu poder

normativo em todos os poros da sociedade. As formas de controle são variações geométricas que usam

uma linguagem numérica e, também por isso, se diferenciam dos espaços de confinamento. Porque ―os

confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma

moldagem autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas

malhas mudassem de um ponto a outro‖ (id., ibid.: 221). A empresa, com seus sistemas de prêmios e de

competição, substituiu a fábrica; a formação permanente tomou o lugar da escola, e o controle contínuo o

do exame. Assim também cada tipo de máquina – as de alavancas e roldanas na sociedade disciplinar e os

computadores na sociedade de controle – exibe a nova e frenética movimentação da produção e das

pessoas que não se desligam nem saem desse feixe contínuo e ondulatório de energia. Em torno dessas

características, a sociedade de controle se configura como uma máquina de controle flexível, destoando

da tendência centralizadora e baseada apenas no confinamento.

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vivência do devir sem identidade de Deleuze e Guattari (2004), ou mesmo o homem

potente de Nietzsche (1998, 2003).

Um devir metamorfoseante exige a delimitação de campos que se afastem dos

valores da mercadoria e do dinheiro, ou seja, da sociabilidade do trabalho moderno.

Sem essa possibilidade, o devir perde seu caráter emancipatório para se tornar

anomia da destruição, estufa das pulsões sem nome ou valor, Real lacaniano sem

mediações, luta de todos contra todos.

Novamente, cabe relativizar essa influência da sociabilidade da mercadoria nos

espaços sociais mais frágeis economicamente.

Sabemos que a produção de laços comunitários nunca deixou de ocupar espaços

existenciais no cotidiano dos grupos sociais, tanto assim que essas formas de

sociabilidade sempre tenderam a ser capturadas pelo mercado para ser usadas como

estratégia de dominação das populações subalternas ao processo econômico.

Reciprocidades, contratualidades de longo prazo sempre conviveram com a falta

desses mesmos elementos, numa síntese em eterna metamorfose.

Nas enchentes que devastam barracos de favelas sempre vemos famílias serem

abrigadas por outras famílias.

Sempre vemos traficantes obedecerem às cruéis e rígidas normas do tráfico, que

incluem a exigência da lealdade como questão de vida ou morte, e ao mesmo tempo

obedecerem aos afetos tolerantes de suas relações familiares e amorosas.

Quer dizer, a mistura de elementos que lembram a trajetória histórica dos grupos

sociais com os novos elementos disfuncionais propalados pelo mercado traz à cena

situações inusitadas em que convivem harmonia e desarmonia, afinação e desafinação,

desolamento e criação.

Porque geralmente a angústia e a ansiedade dão lugar a respostas tão diferentes

como a solidariedade do ombro amigo e da cumplicidade, e o uso abusivo de drogas

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lícitas da indústria farmacêutica, que prometem a solução instantânea do sofrimento do

mesmo jeito que a indústria do cigarro prometia status e sucesso aos fumantes23

.

Produzir laços comunitários e transnacionais, sendo cosmopolita, na linguagem

de Santos (2005), é um desafio que tenderá a conviver com as contradições insuperáveis

da presença de elementos do mercado em nossas subjetividades.

UM ROSTO A SER CONSTRUÍDO

Rita Lee era uma bela garota.

Já dizia sua orgulhosa mãe, com quem Rita Lee tinha uma relação radicalmente

ambígua, porque expressava tão fortemente o amor e o ódio, mais fortemente do que a

maioria das pessoas o faz, que ela havia sido uma bela gerente de loja de roupas num

dos shoppings da cidade, àquela época noiva de um belo rapaz24

.

Com o adoecimento de Rita Lee, a mãe passou a expressar também fortemente

essa ambiguidade que nos cerca a todos, mas que passa a ser quase insuportável para

alguns.

Rita Lee utilizava muito a hospitalidade noturna do NAPS 325

, onde dormia

algumas noites em que o conflito familiar chegava a um nível insuportável.

23

Maria Rita Kehl (2004) problematizou de forma interessante a captação do inconsciente das pessoas

pelos publicitários e vendedores dos produtos midiáticos do mercado. Essas estratégias expressam o

desenvolvimento da tecnologia de mobilização e criação de desejos que o mercado e suas disciplinas

científicas (o marketing, por exemplo) têm desenvolvido há muito tempo, e que correspondem ao atual

estágio do desenvolvimento tecnológico do mundo da produção, bem como às estratégias de controle das

subjetividades e dos comportamentos.

24 Sem dúvida, é possível que haja muita fantasia ou certo exagero em algumas informações, já que Rita

Lee e a mãe viveram histórias muito difíceis, como o momento em que Rita Lee foi gerada, a partir de

uma relação de sua mãe, que era empregada doméstica, com o filho de sua patroa. O pai não assumiu a

filha, e isso foi muito significativo para Rita Lee. Poderíamos até nos perguntar se o belo rapaz com quem

Rita Lee noivou representaria aquele príncipe inacessível perdido pela mãe quando esta engravidou.

25 Hospitalidade noturna é uma possibilidade de atenção que apenas os CAPS III podem oferecer, pelo

fato de funcionarem 24 horas por dia. Significa oferecer ao usuário do serviço um espaço de acolhimento

noturno que este pode usufruir quando a dinâmica da vida exigir. Difere da internação psiquiátrica porque

é realizado dentro da lógica de atenção cotidiana e territorial do CAPS. O processo de acompanhamento

cotidiano e de construção de projetos de vida vai permitindo a construção de uma base de conhecimentos

sobre a realidade de vida dos usuários e a construção de vínculos que possibilitam ao usuário ressignificar

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Então, dividindo as noites e os dias entre o NAPS e sua casa, para tentar

ressignificar a vida a partir de algumas mediações, Rita Lee vivia a maior parte do dia

reclamando de um mal-estar difuso.

Dizia que seu rosto estava desmanchando, pedia que confirmássemos ou

negássemos tal informação, chorava, despenteava-se, ficava irritada.

Deslizava as palmas das duas mãos sobre o rosto, lentamente, como a conferir se

ele ainda estava lá. Ficava a segurar o rosto, como que a impedir que desaparecesse.

Aos poucos, como o NAPS 3 ficasse a uma quadra de distância da casa-sede da

URP, pensamos em dar-lhe como tarefa o posto de vendedora num box de metal que

instalamos na entrada da unidade, para vender produtos de alguns dos projetos de

trabalho.

Na época, fabricávamos vários produtos, com o intuito de testá-los no mercado,

utilizando o espaço da sede da URP para confeccioná-los. Foi assim que foram

produzidas coisas tão diferentes como chinelos, echarpes tingidas artesanalmente,

cartões de festas pintados a mão e, finalmente, perfumes.

Todos os produtos tiveram vida mais ou menos curta, pois aos poucos fomos

percebendo que era difícil concorrer com empresas que produziam em série,

conseguindo um preço final muito menor.

Aprendemos que produtos artesanais podem ocupar o mercado se tiverem um

diferencial muito importante, que agregue valor não pela quantidade, mas por alguma

característica que só possa ser encontrada neles, distinguindo-os dos demais.

Certamente é difícil encontrar tais qualidades, que tornem os produtos artesanais

tão singulares quanto as obras de arte, mas podemos lembrar o exemplo das peças de

roupa paraibanas feitas com um algodão colorido naturalmente, sem tingimentos (o

algodão já nasce colorido). Em outras palavras, os consumidores compram as roupas

suas experiências. Assim, o usuário pode utilizar a hospitalidade noturna porque está em crise, para

prevenir uma crise, porque vive um conflito peculiar em seus espaços de vida, entre outras possibilidades.

Outro fator que diferencia a hospitalidade noturna ou integral da internação é que a segunda se baseia na

doença e pretende diminuir os sintomas e isolar a possibilidade de escândalo social, enquanto a primeira

lida com a ―existência-sofrimento e sua relação com o corpo social‖, pretendendo ser uma ação

estratégica dentro de uma miríade de possibilidades de mediação entre o sujeito que sofre e seu contexto.

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nem tanto pelo design, mas pelo fato de terem sido confeccionadas com um algodão

raro que já nasce colorido.

Outro exemplo é a possibilidade de se constituir alianças com artistas plásticos

famosos e criativos, que possam desenvolver junto aos usuários peças excepcionais.

Mas Rita Lee tentava manter-se como vendedora mesmo passando por várias

fases, intercaladas com períodos em que começava a ficar mal e não conseguia

trabalhar.

Certa vez, depois de passar a manhã esforçando-se muito para trabalhar, Rita

Lee foi almoçar com outros usuários que trabalhavam na marcenaria que funcionava na

sede da URP e usuários de outros projetos, num refeitório de um serviço de reabilitação

física que funcionava perto do local (era um acordo que tínhamos com esse serviço, pois

não havia como termos refeições no espaço da URP).

Ao adentrar no refeitório, repentinamente, Rita Lee correu em direção a uma

funcionária que não conhecia, mas que também almoçava no local, e desferiu-lhe um

tapa no rosto.

Foi um alvoroço geral, inclusive com funcionários e pessoas com deficiências

que lá eram atendidas, comentando que era mesmo muito complicado almoçar no

mesmo lugar que pessoas com transtornos mentais.

O funcionário da URP que acompanhava o grupo de usuários-trabalhadores

interveio e a trouxe de volta à URP.

À parte todo o esforço para entender o que havia acontecido (será que ela se

revoltara pelo fato de aquela pessoa ter uma face, enquanto a dela sempre fugia?), foi

necessário um trabalho posterior de mediação e discussão com a direção e os

trabalhadores do serviço de reabilitação.

A diretora, uma fisiatra muito envolvida com as demandas que envolviam as

pessoas com deficiências, teve muita dificuldade em compreender o que ocorrera e em

garantir a possibilidade de os usuários da URP continuarem a compartilhar os mesmos

espaços sociais das outras pessoas.

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O fato trouxe à tona o mito da periculosidade do louco, o questionamento da

possibilidade de os usuários da URP almoçarem no local, e uma série de discussões

interessantes acerca da violência que nos circunda.

Conseguimos negociar a possibilidade de continuar a utilizar o tal refeitório.

Além das negociações com a diretora do local, outras foram as estratégias e

ações executadas, como conversar muito com Rita Lee e com a pessoa por ela agredida,

e propiciar um encontro entre as duas, onde a própria Rita Lee explicaria a situação, já

que ela estava em condições de expressar que não era nada focado naquela pessoa em

particular, mas algo que tinha a ver com um delírio passageiro.

Nunca soube que Rita Lee tivesse agredido outra pessoa, a não ser algumas

tentativas que fizera diante de alguns funcionários do NAPS e da URP nessa difícil fase

por que passara.

O rosto, sim, continuou muitas vezes a se desmanchar, mas apenas quando ela

estava em crise.

Pudemos, inclusive, voltar a almoçar com frequência no tal refeitório e, às vezes,

Rita Lee voltava a trabalhar, outras ficava bastante tempo sem fazê-lo, tentando sair da

prisão que a consumia e que interferia em suas sensações corporais.

FALTA DE COMPROMISSOS DE LONGO PRAZO

Foi-se o tempo em que era comum encontrar os pequenos empórios de bairro,

com seus vendedores permanentes (Sennet, 2002). Os shopping centers, as redes de

supermercados, as mudanças imobiliárias decorrentes da especulação, a fragilidade dos

empregos e dos negócios, entre outros fatores, fazem com que o espaço urbano se

modifique muito rapidamente e, em consequência, troca-se com muita rapidez os atores

envolvidos, os vendedores e os compradores.

Como ressaltou Bauman (2003), fica mais difícil construir laços de longo prazo,

quando os atores em relação não sabem se haverão de se encontrar no dia seguinte para

cumprir seus combinados. O exemplo dos pequenos empórios pode ser ampliado para as

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empresas, os bairros, os territórios. A desregulamentação dificulta os compromissos de

longo prazo, estimulando os compromissos instantâneos, efêmeros.

A aceleração do tempo e a fluidez do espaço são marcas de nosso tempo.

Embora guardemos reminiscências do tempo em que os contratos se davam em

longo prazo, é difícil desconsiderar que o tempo ágil e rápido exige novas modalidades

de contrato e de relações de confiança, capazes de se adequar às particularidades dos

fluxos da comunicação.

Os tempos do diálogo são instantâneos, os meios de transporte possibilitam o

deslocamento rápido de cada vez mais pessoas (o que inventarão para superar o avião?),

e torna-se um desafio construir sociabilidades cooperativas num contexto

microeletrônico.

Para se viabilizar a preponderância da ação e do discurso, defendida por Hannah

Arendt (2001), será preciso ocupar e constituir novas ágoras para o encontro e a

participação direta das pessoas.

A ideia de representação política, nestes termos, pode ser algo superado pela

participação direta e instantânea das pessoas, mesmo sabendo que o encontro via

internet jamais poderá substituir o encontro dos corpos, a troca de mensagens

presenciais, envolvendo elementos como hálitos, cheiros, gestos, nuances da

comunicação do corpo que não passam apenas pela linguagem verbal, mas pela energia

corporal.

Embora possamos simular relações sexuais, orgasmos e até a fabricação de

bebês em laboratório, a escolha pela interatividade presencial se coloca como questão

política e opção de vida dos atores sociais.

Os contratos, embora pressionados pelo tempo da instantaneidade, certamente

podem elaborar laços apertados e firmes que sustentem no tempo a produção de

subjetividades e de novos valores.

Sim, temos um pouco de mercado e de máquina em nós mesmos, os

computadores foram feitos à nossa semelhança, individualizando nossas características

e capacidades, mas o contato com eles faz reforçar essas características em nós mesmos.

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E enquanto transformamos os computadores em seres idiossincráticos, também

nos transformamos um pouco mais em seres frios, calculistas.

Construir laços fortes é um desafio para a produção de novas formas de

sociabilidade.

Essa é mais uma contradição de nosso tempo a ser adequadamente investigada.

BERTIOGA

Bertioga era um distrito de Santos antes de se emancipar em 199326

, tornando-se

então um município.

Localizado a cerca de 40 km de Santos, possuía uma série de serviços públicos

municipais, como um hospital, centros de saúde, escolas.

Havia também um terreno com amplas instalações (alojamento, galpão coberto,

escritórios), que pertencia à Prodesan, e que em 1990 estava desativado.

Esse fato possibilitou a concretização de uma das ideias que daria suporte a um

dos projetos mais importantes do governo de então: a reurbanização do Dique da Vila

Gilda da Zona Noroeste de Santos, uma favela composta por palafitas, onde viviam

muitas famílias em condições miseráveis de vida.

O projeto de reurbanização do dique era um projeto intersetorial porque

implicava uma ampla intervenção com a participação de várias secretarias municipais.

Além de canalizar o imenso e sujo córrego e construir casas de alvenaria sobre as ruas

assim surgidas, estavam previstas ações de várias secretarias, como forma de viabilizar

outro contexto de vida para as famílias residentes.

A ideia que daria suporte a tal projeto era a construção de uma Fábrica de Blocos

em Bertioga, que forneceria matérias-primas para o mutirão e a grande obra.

Depois de muitas negociações entre o interventor do Anchieta e coordenador de

saúde mental do município, o grande articulador que abriu as portas de várias secretarias

26

O plebiscito que decidiu pela emancipação de Bertioga ocorreu em 1991. A eleição do 1º prefeito

ocorreu em 1992 e, aos poucos, nos anos seguintes, a cidade foi se desvinculando efetivamente de Santos.

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municipais para que fizéssemos parcerias, e o presidente da Cohab-ST, decidiu-se que

os trabalhadores da fábrica seriam os usuários dos serviços de saúde mental, e que a

fábrica seria implantada em Bertioga.

Um grande desafio para nós, porque Bertioga era distante, não havia nos

serviços públicos nenhum profissional de saúde mental, e pouco conhecíamos das

características do território.

Fizemos um convênio entre a Cohab, o Anchieta e a Afrent, para que

pudéssemos viabilizar as bolsas de trabalho no valor de 1,5 salário mínimo, garantir

alimentação, transporte e, finalmente, acompanhamento por parte dos profissionais da

URP e do NAPS, aos quais os usuários continuariam vinculados.

Para viabilizar o andamento do trabalho, foi proposto que os trabalhadores

pernoitassem no alojamento da fábrica de segunda a sexta-feira, retornando a Santos nos

finais de semana.

Isso seria também um imenso desafio, pois durante as noites eles teriam apenas

o apoio do zelador das instalações, o que, entretanto, considerávamos suficiente.

Definimos uma equipe composta inicialmente por uma psicóloga, uma assistente

social e uma terapeuta ocupacional, para acompanhar o trabalho diariamente. Essas

profissionais partiam de Santos diariamente pegando carona numa ambulância, como

era costume e como ocorria com os outros trabalhadores dos serviços públicos de

Bertioga.

Até que essa ambulância fosse substituída por um ônibus, muitas foram as

viagens desses profissionais, literalmente empoleirados na parte posterior da

ambulância, dividindo o lugar com três ou mais pessoas.

Posteriormente também agregamos à equipe uma psiquiatra, e iniciamos então, a

partir do Centro de Saúde local, os atendimentos à população em geral, ao mesmo

tempo que os trabalhadores da fábrica eram acompanhados.

O grupo de trabalhadores era bem heterogêneo, formado por pessoas com

histórias de forte envolvimento com álcool, e outros com transtornos mentais graves.

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Não é preciso dizer que os momentos iniciais exigiram uma mediação intensa,

no sentido de vencer as barreiras e as dificuldades que um projeto de trabalho tão

distante poderia trazer.

Por enquanto, basta dizer que foram muitas as mediações para que o grupo

conseguisse trabalhar coletivamente e ainda passar as noites juntos. E que as recaídas,

em especial dos usuários de álcool, exigiram negociações e intervenções comunitárias,

com visitas aos vizinhos, reuniões abertas à comunidade etc., no sentido de

problematizar as condições dos usuários, expor os objetivos do projeto e conseguir o

apoio da maior parte das pessoas.

Às vezes ocorria de algum trabalhador não dormir no alojamento e ser

encontrado posteriormente dormindo ao relento, intoxicado.

Quando isso ocorria, a equipe da URP tratava de agenciar os cuidados

necessários e, posteriormente, problematizar o fato com o trabalhador e o grupo.

A fábrica ficava num terreno amplo à beira do belo rio Itapanhaú, onde, por

vezes, as tainhas mergulhavam saltando para fora d‘água como se fossem tigres, ou

como que expressando seu desejo de um dia se transformar em pássaros.

Não esqueço quando um dos usuários do NAPS 2, candidato a uma vaga de

trabalhador da fábrica, foi visitar pela primeira vez o local e, não resistindo ao apetitoso

rio, tirou a camisa e os sapatos e brindou-se com um refrescante mergulho.

Os profissionais do NAPS que o acompanhavam quase se desesperaram,

gritando para que ele retornasse logo.

Mas ele nadava muito bem e logo retornou a terra, tão logo teve satisfeita sua

sede de rio. Não se identificou com o tipo de trabalho tanto quanto com o rio, e logo

desistiu da vaga.

De fato, o trabalho não era nada leve, pois as máquinas que modelavam os

blocos precisavam ser frequentemente alimentadas com a massa misturada nas

betoneiras, que por sua vez também precisavam ser constantemente alimentadas com

cimento, areia e pedrisco.

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Da máquina, saíam blocos sobre paletas a serem carregadas por outros

trabalhadores até o local de secagem.

No decorrer do processo surgiram algumas crises referentes à relação custo da

produção/produtividade.

A intenção da Cohab era que a fábrica se tornasse um investimento barato e que

substituísse a compra de blocos prontos de outros fabricantes; e a intenção da equipe da

URP era que o grupo de trabalhadores pudesse dar conta do recado e utilizasse a

experiência como uma alavanca para a construção de novos projetos de vida.

Se tivemos muitas dificuldades para alcançar a produtividade desejada, não

foram menores as dificuldades da Cohab para fazer um gerenciamento adequado do

negócio.

Até que isso ficasse claro, foram muitos os momentos de tensão entre a equipe

da URP e os técnicos da Cohab (diga-se de passagem, a Cohab trocou várias vezes os

gerentes da fábrica, tentando encontrar uma administração que conseguisse responder

ao desafio).

Certa vez, um dos diretores da Cohab, preocupado com os custos do projeto, e

atribuindo todos os problemas à suposta produtividade reduzida dos trabalhadores, fez

um desabafo irônico dizendo que valeria mais a pena jogar as máquinas no rio.

Apesar de todas essas intempéries comuns à natureza do projeto, pode-se dizer

que durante bons meses a fábrica funcionou a todo vapor, intercalando momentos

otimistas aos pessimistas.

Muitas das casas do projeto de urbanização do Dique da Vila Gilda foram

construídas com os blocos confeccionados pelos usuários dos serviços de saúde mental.

As casas guardam as marcas daquela iniciativa e são as testemunhas de uma

conjunção de esforços que expressava a vontade de transformação e de criação do

governo da época.

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IVAN, O GIGANTE

Ivan era grande e forte. Pele negra, ossos longos, rosto largo, dois metros de

altura.

Seu vozeirão contrastava com a delicadeza com que se relacionava com os

outros.

Foi um excelente trabalhador da Fábrica de Blocos, de poucas palavras, tímido,

mas sempre muito cooperativo.

Como todo ser humano, também era uma pessoa cheia de surpresas.

Certa vez, numa tarde molhada, recebemos um telefonema de um funcionário da

Cohab, que acompanhava os trabalhadores da fábrica. Naquele momento, não havia no

local nenhum profissional da URP.

Dizia o funcionário que Ivan estava muito perturbado, falando coisas sem

sentido, e que havia empunhado um pedaço de pau e saído às ruas bem enfurecido. O

funcionário não sabia como abordá-lo e pedia nossa ajuda.

Avaliamos que seria necessária a nossa presença no local, já que acionar apenas

a polícia ou o resgate poderia ser muito traumático, e não sabíamos ao certo qual era de

fato a situação de Ivan, pois o funcionário estava muito transtornado.

Avaliamos que seria melhor gerir a situação no próprio local e, se preciso,

agenciar os recursos e os suportes necessários.

Eu e Fernanda, uma das profissionais que acompanhava o projeto, saímos de

supetão em direção à fábrica.

Peguei o carro e dirigi os 40 km que nos separava, numa estrada escorregadia e

sob um céu molhado e nebuloso.

Ao chegar em Bertioga, depois de conversar com o funcionário, percorremos os

arredores em busca de Ivan, e logo o achamos.

Aquele que fora pintado como um gigante perigoso e incontrolável era o Ivan

delicado que conhecíamos antes, empunhando um pedaço de pau e bastante confuso.

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Mas a confusão que vivia não o impedia de dialogar conosco, e de aceitar ser

trazido até o NAPS 2, onde fazia o tratamento, mas onde deixara de comparecer às

últimas vezes combinadas.

A relação de confiança que construímos no decorrer do projeto era suficiente

para que, mesmo delirante, Ivan entendesse que estávamos ali para protegê-lo, e que

para nós sua participação nos encontros combinados era essencial.

Ivan ficou alguns dias em hospitalidade noturna no NAPS e depois retornou a

seu posto de trabalho.

A equipe da URP o visitava diariamente, para acompanhar o seu processo, e

para compartilhar esse momento que exigia um acolhimento caloroso.

Voltamos satisfeitos e aliviados, refletindo que as transformações são possíveis

quando assumimos riscos.

E a experiência da Fábrica de Blocos em Bertioga era para nós, pelas condições

dadas, um dos projetos mais desafiadores.

MASSIFICAÇÃO versus CRIATIVIDADE

Há como sermos criativos nos processos de trabalho, ou o somos apenas em

nossos momentos de maior descontração, no lazer e nos períodos de descanso?

É difícil conceber que sejamos criativos apenas em determinadas situações. Se é

assim, caberia perguntar se os contextos é que permitem ou não o uso de nossa

criatividade. Caberia, ao mesmo tempo, considerar se, de fato, não somos sempre

criativos, uma vez que produzimos através do discurso a realidade que se nos apresenta.

Foucault (1972) soube traduzir bem essa ideia de que o discurso produz a

realidade, e por esse motivo os discursos envolvem sempre relações entre o saber e o

poder, que fazem fenômenos terem significados diferentes conforme a produção de

verdade de determinada época. Por isso, antes da era clássica, a experiência da loucura

estava mais próxima do divino do que da doença.

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A produção de verdades é um exercício mais que criativo, e envolve relações

sociais e relações de poder que produzem realidades compartilhadas.

Vivemos há muito numa sociedade de massas que utiliza os meios de

comunicação para produzir padrões de existências, gostos, habitus (Bourdieu, 1988), e

que tenta tratar-nos como asnos que não pensam.

Mas com certeza não somos esses asnos, e antes o são aqueles que acreditam

piamente em seu poder de se colocar à disposição do mercado para produzir as verdades

superficiais que estimulam o não pensamento.

Pobres são aqueles que estão mais aprisionados pelos padrões existenciais do

mercado, sejam eles guardadores de riquezas ou carentes delas.

Os padrões de normalidade e do uso do tempo/espaço centrados na sociabilidade

do trabalho moderno são de uma pobreza infinita se não se criam formas de resistência

que produzam novas sensibilidades, novas formas de sociabilidade, experiências

perceptivas, afetivas e de construção coletiva que produzam mágicas na transformação

do mundo.

Há muito que a ciência já descobriu a insuficiência da lógica formal e do

cartesianismo, que insistem no princípio da identidade e do terceiro excluído (se uma

coisa é uma coisa, ela não pode ser outra).

O fato é que a própria ciência, através da Física, descobriu que uma coisa pode

ser uma coisa e outra coisa ao mesmo tempo, e que algumas contradições são

insuperáveis (Morin, 2002).

Dessa forma, nos aproximamos daquilo que considerávamos mágica, ou

inconcebível.

A própria existência da mercadoria e de seus fetiches já demonstrava a

existência desses fenômenos muito antes de a ciência os ter descoberto.

No entanto, ao invés de nos manter presos ao fetiche da mercadoria, precisamos

construir nossas realidades imaginadas de forma a enriquecer o conjunto dos atores

envolvidos, valorizando os protagonismos possíveis.

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Essa é outra forma de viver a mágica, que enriquece a existência através de uma

estética não fugaz e virtual da mercadoria, mas de uma construção concreta de uma

realidade concreta, a vida a ser construída como uma autoescultura que se move a todo

tempo, ao sabor das contingências e dos devires. Metamorfoses ambulantes.

VIDA NOVA, NÃO SÓ NO DIQUE

O Projeto Vida Nova no Dique modificou a vida de muitas das famílias que

habitavam a região. Afinal, poder habitar uma casa de alvenaria, sobre um chão sólido e

não mais sobre um córrego sujo, pendurada num conjunto de estacas, já poderia

significar uma mudança significativa.

Além disso, ter o córrego canalizado sob o chão significava não apenas se livrar

do mau cheiro que impregnava o ar, pois os vasos sanitários das casas davam direto

para o córrego (fezes e urina mergulhavam direto do buraco dos vasos na água fétida e

escura do córrego) , mas evitar que crianças nadassem naquela água, ou caíssem dos

corredores estreitos de madeira, que interligavam as casas entre si, diretamente na água,

por vezes se afogando, como chegou a acontecer.

É por isso que o projeto simbolizava muito para o governo de então e, por que

não?, para os usuários do Programa de Saúde Mental, que também iniciavam uma nova

vida, com locais de moradia muito diferentes do manicômio em que habitavam. Em

especial para os usuários que compunham o projeto de trabalho que denominamos

simplesmente de ―Dique‖, e que trabalhavam diretamente na obra de construção das

casas.

Era um grupo composto por oito trabalhadores, que trabalhavam juntos, mas em

setores diferentes da obra, como uma forma de também aprenderem ofícios diferentes

como os de encanador, eletricista e mesmo mestre de obras.

Era um grupo cujos participantes tinham direitos e deveres um pouco diferentes

dos demais trabalhadores da obra, pois eram remunerados com as bolsas de trabalho no

valor de 1,5 salário mínimo, eram acompanhados, podiam reunir-se para as reuniões

semanais com os profissionais da URP no próprio horário de trabalho, e eram

aprendizes de diferentes ofícios.

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Os demais trabalhadores possuíam outro contrato de trabalho, não estavam lá

para aprender, mas apenas para trabalhar, e por isso não participavam de reuniões nem

eram acompanhados por profissionais de saúde mental.

As diferenças nos contratos sempre geraram muitas discussões, pois os

trabalhadores do projeto muitas vezes se sentiam cumprindo as mesmas funções dos

demais trabalhadores, e às vezes esqueciam que sua participação no projeto se tornara

possível por se tratar de um projeto especial, sem o que dificilmente poderiam estar na

obra.

As confusões e as contradições foram ficando mais claras quando surgiu a

possibilidade de os usuários do projeto participarem do concurso público que admitiu,

pela Cohab, mais uma leva de trabalhadores para a obra.

No caso, dois dos participantes do projeto foram selecionados, e deixaram de

compor o grupo de trabalho, tornando-se funcionários da Cohab e tendo que assumir um

contrato com deveres e direitos um pouco diferentes.

O Projeto Dique era bem interessante, pois também agregava pessoas com

problemáticas bem diferentes, embora todos vivessem uma experiência de sofrimento

psíquico intenso.

Como algumas outras situações produzidas pelo Programa de Saúde Mental de

Santos, esse projeto também foi foco de matérias jornalísticas, como quando um

simpático repórter do famoso programa Globo Repórter visitou as instalações, ficando

bem impressionado com o que isso parecia representar na vida dos usuários.

Um dos participantes do grupo de trabalho era José dos Santos.

Conheci José dos Santos no Anchieta, anos antes de ele ser acompanhado pelo

NAPS 4, unidade que o encaminhou para o projeto de trabalho.

Não lembro de ter conversado com ele naquela época, pois, além de ser usuário

de outra enfermaria diferente da que eu trabalhava, era um tanto enigmático, não

trocava muitas palavras.

Era calvo na parte superior da cabeça. Mas os cabelos dos lados temporais,

muito crespos, viviam compridos. Ele usava barba, vestia calças de brim e carregava

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sempre uma sacola. Estava sempre sentado com as pernas cruzadas no chão, ou num

muro de pequena altura, com a cabeça ereta de quem está a meditar.

Lembro de vê-lo arrancando, numa puxada só, parte dos pelos de um dos

antebraços, sem que aparentasse sentir dor. Seu comportamento causava medo; era

como se quisesse avisar que não queria muita aproximação.

Quando chegou ao projeto, não era mais um sujeito que amedrontasse.

Era um sujeito com sotaque nordestino e com uma fala singular e cantada, que

mudava o final do meu nome quando me chamava.

Era tido como esquizofrênico, mas adorava o álcool e isso é que lhe trazia

muitas dificuldades no trabalho.

Amanhecia com tremores muito intensos, que só diminuíam ao final do dia,

quando conseguia dar algumas fugidinhas para tomar alguns ―goles‖.

José trabalhou muito tempo no projeto, e teve a possibilidade de conviver com

suas dificuldades no ambiente fluido e maleável da cidade, onde podia movimentar-se,

correndo todos os riscos da vida.

Não precisava mais meditar nem arrancar os próprios pelos como forma de se

afastar das pessoas.

Vivia uma nova vida como viviam os beneficiários do Projeto Vida Nova no

Dique.

LÁ NO FUNDO

No fundo da casa-sede da URP, no bairro da Aparecida, ao fim de um comprido

corredor, havia uma garagem.

Entre a casa e a garagem havia um jardim que, aos poucos, foi utilizado pelo

Projeto Terra no plantio de algumas mudas de plantas ornamentais e outras medicinais.

A garagem serviu primeiramente de loja para os produtos artesanais que os

grupos fabricavam (echarpes coloridas, perfumes, chinelos).

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Depois de poucos meses, tendo em vista que as vendas não decolavam, o espaço

foi transformado numa marcenaria.

Substituímos a loja, que ficava no fundo de um corredor, por um box de metal

instalado na parte anterior da casa, a poucos metros da calçada.

Quanto à marcenaria, esta já teve uma vida bem mais longa.

Inicialmente, um artista que colaborava conosco emprestou suas máquinas para

que tentássemos produzir brinquedos pedagógicos. Ele mesmo ensinaria aos usuários a

arte de lidar com as madeiras, aproveitando uma série de artigos muito interessantes de

sua autoria.

Mas os brinquedos também não decolaram, uma vez que não conseguimos

efetivar as articulações necessárias para colocá-los no mercado, nem fizemos as

articulações com a Secretaria de Educação (Seduc), para que esta comprasse os

produtos e os distribuísse nas escolas e creches.

Finalmente, reformulamos a proposta de produção da marcenaria e optamos por

construir móveis sob encomenda.

As encomendas não eram muitas, mas suficientes para manter um pequeno

grupo de quatro artesãos trabalhando.

Como nosso artista colaborador não poderia mais permanecer conosco,

utilizamos os recursos da Afrent para adquirir aquelas máquinas, além de trazer da

Secretaria de Esportes um dos monitores de ofícios já citado neste relato.

O contato com a vizinhança e o território da sede da URP trouxe a possibilidade

de contratação do grupo para executar pequenos reparos de móveis nos domicílios, ou

mesmo para restaurar móveis maiores no espaço da oficina.

Esse contato com os consumidores nos domicílios era muito interessante, pois

possibilitava a circulação social dos usuários, bem como uma relação cara a cara entre

prestadores de serviços e consumidores, o que fazia com que o produto fosse

singularizado e não mais massificado e anônimo, e que a troca viabilizasse novas

relações além da troca do produto por dinheiro.

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Seu Vinicius era um usuário de 65 anos que assumia o papel de marceneiro

enquanto os outros três integrantes se colocavam como aprendizes.

Os recursos obtidos eram repartidos entre eles ou investidos na compra de

materiais e equipamentos.

Produzindo em pequena escala, a marcenaria sobreviveu muitos anos, ocupando

definitivamente a garagem.

Enquanto isso, no andar de cima – porque a casa começava com uma escada que

dava para o andar de cima, enquanto a parte de baixo era apenas o acesso para o jardim

e a garagem –, as salas eram ocupadas de forma variada.

Toda a parte administrativa da URP ocupava uma das salas, que também servia

de apoio para algumas ações da Afrent.

A maior das salas era ocupada pelos variados projetos de artesanato, que

tiveram, como já relatado, dificuldades para se inserir no mercado.

Nessa sala realizavam-se as assembleias semanais.

Estas eram espaços coletivos, que congregavam todos os trabalhadores de todos

os projetos de trabalho, e todos os profissionais da URP.

Alguns dos projetos, como o Lixo Limpo e a Fábrica de Blocos, apresentavam

dificuldades para enviar representantes às reuniões, uma vez que estas se davam às

quintas-feiras à tarde, e esses projetos não podiam interromper a produção nesse

período.

Apenas os trabalhadores desses projetos que trabalhavam no turno da manhã

podiam participar das reuniões.

Nas assembleias eram discutidas todas as questões relacionadas aos projetos de

trabalho, como dificuldades, conquistas, projeções, expectativas, e se trocavam

informações sobre cada um dos projetos.

Lá se discutiam também muitas questões relativas ao modo de funcionamento da

sede da URP. E foi lá um dos espaços em que começamos a discutir a proposta de

constituição da Cooperativa Paratodos, enquanto fazíamos o mesmo nas reuniões de

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trabalho do Lixo Limpo e da Fábrica de Blocos, ou mesmo com a equipe que trabalhava

na obra do dique.

Mas esse assunto da cooperativa merecerá destaque num outro momento.

O que importa dizer aqui é que a casa-sede da URP, da garagem às partes

superiores, respirava vida, projetualidades, novos compromissos, novos desafios

assumidos, frios na barriga de entusiasmo por iniciar novos projetos. E isso fazia bem a

todos os envolvidos.

Lá era um espaço de circulação livre, sem interdições arbitrárias, como era o

espaço do Anchieta sob intervenção.

Um espaço construído coletivamente, a partir da desconstrução dos papéis hierárquicos

estabelecidos (o de técnicos, o de pacientes); desconstrução das hierarquias que

historicamente tentaram delimitar os espaços que cada ator deveria ocupar, mesmo que

fosse uma ocupação passiva, um simples estar que representava a falta de poder.

CENTRALIDADE DO CONSUMO

Bauman (1998) trouxe uma ideia interessante e original quando sugeriu que a

centralidade do trabalho cedera lugar à centralidade do consumo na sociedade

capitalista contemporânea. Um consumo que talvez se diferencie do sempre existente

desde que surgiu a mercadoria.

Seria um novo consumo? Não seria uma intensificação do processo consumista

em vigor desde o surgimento da mercadoria e do trabalho assalariado? Seria um novo

modo de consumo? Um consumo hipereletrônico movido por mensagens instantâneas,

que se dissipam no ar tão imediatamente como os objetos que deixamos para trás?

Difícil afirmar, a não ser lembrar que o consumo enquanto ideia moderna tem a

ver com o surgimento da mercadoria.

Seria então o uso de objetos ou a ingestão de alimentos, no passado, algo

diferente do que chamamos atualmente de consumo?

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Consumo supostamente tem a ver com uso, valor de uso, propenso a sempre ser

desvalorizado tão logo possamos ter acesso a mais e mais produtos: experimentar uma

bala de cada sabor, para ter a sensação da infinitude ou de que chegamos perto dela.

O fato é que parecemos nos tornar os objetos que consumimos, de forma

instantânea, o que nos levaria a supor que não somos nós que consumimos os objetos,

mas os objetos que nos consomem.

Essa talvez seja uma ideia original que se conecte com a noção de fetiche da

mercadoria.

Quem nos domina e consome, ou usa, é a mercadoria.

Só que ela assim o faz tendo como mediação algo tão sem fundamento quanto o

valor de troca.

O que define o valor de troca dos produtos? O tempo socialmente utilizado na

sua produção, o desejo abstrato produzido para obtê-lo, a escassez de produtos?

É delicada essa questão, e nos remete a uma imagem daquele que consome e

incorpora tudo o que vê e deseja, a ponto de explodir por não ter como elaborar tantas

coisas diferentes.

O gosto da bala de tutti-frutti ficou tão misturado ao chuparmos tantas outras

balas de diferentes sabores que nem mais lembramos o seu teor.

Tudo bem. Estamos criando sabores novos com essa mistura, mas nem

conseguimos lembrar o sabor de cada uma das balas.

É um devir sem fim, mas um devir sem memória nem pensamento. Um devir

talvez de folha que se desloca da árvore, sai voando pelos ares, cai num bueiro de uma

rua empoeirada, atinge a borda de algum rio, passa para o estômago de algum peixe e

vai se fixar momentaneamente no estômago do sujeito que pescou peixe num rio

poluído.

O que seria o devir sem a memória?

Talvez um sem-fim de nadas a produzir uma nada como equação final.

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Mas não percamos o romantismo de apreciar algo em sua profundidade, ou

mesmo superficialidade (como apenas uma bala), e sim apreciar de fato, dar um tempo

para ela, estabelecer um nexo entre a sensação que produziu e a memória boa ou má que

faz ressurgir, ou aquilo que desejamos que produzisse.

Paremos de engolir tudo e vomitar logo em seguida.

Deixemos que as marcas da memória surjam, mas não nos tornemos escravos

delas. Uma cicatriz cor de pele pode tornar-se vermelha se a pintarmos de tal cor, ou até

sumir se fizermos uma cirurgia plástica.

Façamos até cirurgias plásticas, mas não percamos a memória nem o valor

daquilo que sentimos e fomos.

Cuidemo-nos para não ser manipulados tão fortemente por mercadorias.

Tudo bem: melhor comê-las do que ser comido por elas, mas não o façamos tão

compulsivamente, pois boa parte do material de que elas são feitas, a própria natureza,

anda nos avisando que haverá revanche.

Como diz Serres (2003), a natureza tem agido sobre nós como sujeitos sobre

objetos, já que agimos sobre ela como sujeitos sobre objetos, produzindo toda sorte de

desmandos e consequências ambientais.

É a tal da recursividade. Que o digam as enchentes, o aquecimento global, a

escassa camada de ozônio, os tsunamis!

Façamos as pazes com os objetos e estabeleçamos com eles relações de

reciprocidade, de forma que todos, irmãos, animados e inanimados, possamos conviver

em harmonia, mesmo que nos desequilibremos às vezes com o charme e as

características deslumbrantes, os perfumes, de alguns desses objetos.

Harmonia não significa ascetismo, mas uma interação de fato proveitosa para

ambos os atores, sujeitos e objetos, objetos e sujeitos.

Que a beleza, a durabilidade, o preciosismo da utilidade, façam dos produtos

algo mais que mercadorias: seres com os quais compartilhamos nosso cotidiano, nossas

sensações, nosso senso crítico, enfim, nossa vida abismada pela beleza.

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Os loucos que acumulam quinquilharias em casa, advindas do lixo, e que se

embelezam e adornam com restos de metais e tecidos, como se estes fossem ouro puro,

talvez queiram nos informar que a noção de belo e de riqueza não passa de uma

convenção social.

Cada um pode ter seu ouro, ou seu lixo (o que é o lixo?), e isso demarca a ironia

expressa em seus atos, que informa que o lixo pode valer tanto quanto o ouro.

Nós não usamos as mercadorias, trocamos somente.

Voltarei a isso mais tarde.

ENTRE PANELAS E SALGADOS, OS HUMORES DE JOYCE

Um dos grupos de trabalho ocupava a cozinha da casa-sede da URP. Era o grupo

do Projeto Cantina.

O grupo inicialmente tinha como objetivo produzir salgados para a venda em

locais próximos à URP, como outros serviços de saúde.

Mas o projeto a que todos ansiavam era de fato a implantação de uma cantina,

que seria um lugar de consumo de bebidas e comidas aliado a uma programação cultural

que pudesse juntar pessoas em torno de uma convivência prazerosa, regada a arte.

Essa ideia quase chegou a termo numa casa que nos foi cedida pela Cohab,

próxima ao NAPS 1 da Zona Noroeste (e a equipe do NAPS 1 estava bem envolvida

nesse projeto), que ao final acabou sendo utilizada de variadas formas, como relatarei

logo à frente.

Chegamos muito perto de fazer a cantina funcionar, mas o que conseguimos

alcançar mesmo foi a utilização de um box no terminal de ônibus.

O box do terminal de ônibus nos foi cedido pela Companhia Santista de

Transportes Coletivos (CSTC), uma empresa pública que gerenciava e executava a

política e o serviço de transporte coletivo.

Os boxes eram espaços alugados, que comercializavam produtos diversos.

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Conseguimos o nosso sem nenhum custo, e lá os participantes do Projeto

Cantina se revezavam para vender os alimentos que produziam.

A Afrent adquiriu uma pequena estufa de vidro para manter os salgados sempre

quentinhos, e por um bom tempo vendeu-se no box o que era produzido na cozinha da

URP, bem como os outros produtos artesanais.

Mas a trajetória do grupo de culinária foi bem intensa.

Ele era coordenado por uma das psicólogas da equipe, que possuía especial

talento para a culinária e que desejava participar de um projeto como esse.

A escolha dos profissionais que acompanhavam os projetos dava-se pela

prospecção das habilidades acumuladas nas histórias de vida de cada um, logo após

decidirmos quais atividades teriam a ver com as capacidades dos usuários e chances

reais de participar do mercado.

Seguia-se a mesma lógica utilizada na definição dos usuários que participariam

dos projetos: ao invés da gravidade do quadro psiquiátrico, do diagnóstico, do momento

do tratamento, o que se considerava era o desejo do usuário, bem como suas habilidades

acumuladas ou mesmo perdidas devido ao processo de institucionalização, a vontade de

descobrir novas potencialidades em novas experiências. Ou seja, a escolha se dava a

partir de uma negociação realizada junto ao usuário que levasse a um acordo ou

contrato, o que exigia o protagonismo de ambas as partes.

O grupo de culinária era formado por pessoas muito diferentes, todas elas

mulheres.

Uma delas era Joyce, uma moça de cabelos curtos e cacheados que navegava por

entre seus humores.

Geralmente, quando não estava em crise, era uma moça de poucas palavras,

tímida, mas que interagia muito amigavelmente com todos. Atenciosa, centrada,

equilibrada, às vezes até demais (estaria nesses momentos quase deprimida?).

Esse ―equilíbrio‖ às vezes pendia para certo apagamento, quer dizer, certa

quietude que a fazia quase desaparecer perante o grupo.

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Outras vezes, era a Joyce expansiva que surgia, com grande estardalhaço, a falar

alto e rápido, a apontar sem nenhum filtro opiniões sobre as pessoas.

Muitas vezes eram opiniões que traziam à tona a fragilidade velada das pessoas,

ou aquelas características que todos conhecem, mas que ninguém tem a coragem ou

sente a necessidade de dizer. Essa era a Joyce que contrastava com o apagamento de

outros momentos, como o gelo se diferencia do fogo.

A mudança do fogo para o gelo trazia perplexidade.

Mesmo a mudança do fogo para o estado de ―equilíbrio‖ trazia a pergunta: para

a síntese das Joyces, qual seria o melhor estado, o ardente poderoso, que lhe trazia certo

tipo de poder, ou o estado de equilíbrio, que também trazia consigo outras formas de

poder, como aquele de ser querida e apreciada por todos?

O fato principal é que todas as Joyces cozinhavam bem, e permaneciam em

atividade, do gelo ao fogo, do fogo ao gelo.

Seu lugar no projeto de trabalho estava garantido, por nós e por ela mesma, que

conseguia participar da construção coletiva do projeto, estivesse em qualquer um de

seus estados.

DOCES VENDAS

Gil era um filósofo, não de formação acadêmica, mas de pensamento e

oralidade.

Grande orador, falava pelo Anchieta loucuras que só os filósofos são capazes de

dizer.

Às vezes, quando estava no estado que a psiquiatria chama de mania, era como

um cometa a borboletear pelo hospital, atazanando a paciência dos transeuntes,

provocando com músicas e chistes os companheiros da embarcação manicomial.

Outra atividade prática e intelectual de Gil era o jogo de xadrez.

Ele frequentava como ninguém a sala do diretor-interventor do hospital, a propor

sempre novos desafios fugazes entre reis, rainhas, peões, torres e cavalos.

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As tardes passavam para ambos os guerreiros estrategistas como rápidos

passeios de montanha-russa, tão desafiadores como agradáveis.

Nosso estrategista, um bom tempo depois, foi atracar sua máquina de guerra em

outros mares.

Integrou-se ao grupo do Projeto Vendas, cujo quartel-general era o espaço da

URP.

O Projeto Vendas, como o nome sugere, visava à comercialização em feiras

livres dos produtos de uma cooperativa de apiários do sul do país.

O representante dos apiários nos foi apresentado por técnicos da Seac, que

também regulamentava e acompanhava o funcionamento das feiras livres.

Com o aval da Secretaria, foi possível tanto montar a logística necessária para

frequentar várias feiras, como obter uma autorização informal para comercializar os

produtos, sem o risco de estes serem apreendidos pelos fiscais da prefeitura.

A sede da URP guardava as caixas de mel e produtos dele derivados, além de ser

o local onde se depositava o dinheiro obtido com as vendas.

As duplas de vendedores se revezavam nos dias da semana: encontravam-se na

URP, retiravam o material, davam baixas no estoque, aguardavam o veículo que os

levaria até a feira, carregavam os produtos e a barraca até o carro, depois retornavam,

prestavam contas e iam embora.

Semanalmente, tal como os grupos dos outros projetos, o grupo do Projeto

Vendas sentava-se em círculo para fazer a reunião de avaliação do trabalho.

O que recebiam como pagamento era o resultado de uma conta que envolvia

vários dados: o quanto a dupla vendeu, o quanto deveria ser pago aos produtores, e

eventuais investimentos deliberados pelo grupo, como a compra de novas barracas etc.

Além das feiras livres, o grupo participava das chamadas ―Campanhas‖ em

determinados meses do ano, onde produtos específicos a preços reduzidos eram

comercializados por uma única barraca localizada em pontos estratégicos da cidade.

Nas ―Campanhas‖ de mel, era o grupo de Gil que protagonizava toda a venda.

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E assim se passaram muitas tardes, tão agradáveis como penosas, já que seria

mentira dizer que o trabalho não é também algo penoso.

Tardes doces, onde a viscosidade do mel e o suor escorregadio produzido pelo

calor úmido de Santos simbolicamente se misturavam.

E assim nosso filósofo colocava para funcionar seus talentos para o cálculo e

seus dons comunicativos.

A DESCOBERTA DO MÚLTIPLO

A resistência nunca abandona uma relação de poder (Foucault 2003a, 2003b,

2003c). Ao contrário, ela faz o seu duplo, faz parte da multidimensionalidade das

relações.

As relações são multidimensionais porque envolvem subjetividades múltiplas, e

múltiplos são os pontos de vista.

Num tempo/espaço determinado, múltiplas são as dimensões existentes.

Nossa realidade compartilhada tenta ser mediada por dinheiro e mercadoria

desde que as condições modernas de trabalho se impuseram.

Embora a mercadoria tente se impor de maneira onipresente em nossas relações,

sabemos que muitas são as descontinuidades que possibilitam formas novas de

sociabilidade desvinculadas de uma visão mercantilizada da vida.

Temos sim, é bom repetir, um pouco de mercado dentro de nós, mas temos

muito mais que isso.

Nosso olhar sempre teve a capacidade de modificar os fenômenos.

O mecanismo do fetiche, enquanto produção de uma figura fantasmática (Marx),

demonstra que essa capacidade imaginativa é inerente e pode ser usada segundo vias

completamente diferentes. Um exemplo: há loucos que tentam acessar instituições de

cuidado, como pronto-socorros e outros postos, e sempre encontram respostas violentas,

uma vez que sua demanda é facilmente transformada em perigo e interpretada como

ameaça para quem a recebe.

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Quando instituições desinstitucionalizantes de cuidado (como as de caráter

territorial e comunitário produzidas no processo de reforma psiquiátrica) tentam

dialogar de fato com essas pessoas, resgatando sua voz e vontade, traduzindo suas

demandas e desejos, é comum que os que outrora os viam como ameaça modifiquem

seu olhar.

O olhar de um terceiro produz outra visão do sujeito-ameaça, que passa a ter

nome, história, desejos, expressando tudo que temos em comum em nossa condição

humana.

Quem trabalha em projetos de reforma psiquiátrica costuma se deparar com

processos desse tipo, que demonstram que por trás da produção de valor pode haver

contextos altamente conectados com o ritmo e a necessidade do mercado (afinal, para

um pronto-socorro, muitas vezes se trata de reformar um corpo como um mecânico

reforma um automóvel, para que os corpos possam voltar ao circuito ensimesmado da

vida social permeada pela mercadoria).

Esse exemplo tenta apontar a existência de outras dimensões não raro ocultas,

que não podem aparecer pela simplificação da vida do trabalho e pela mercantilização

das relações.

As possibilidades de construção de novas formas de sociabilidade passam então

pela percepção dessas dimensões da vida escondidas ou por nós abandonadas, como

uma exigência do mundo contemporâneo.

Enxergar os fenômenos de forma diferente é um dos passos possíveis para

resistir produtivamente ao império da mercadoria e do valor de troca.

A produção de outros vínculos e de projetos coletivos reorienta os caminhos

ditados pela produção.

Novos processos que começam de baixo e caminham para os lados, e não para

cima, e que despacham a necessidade de uso dos parâmetros da mercadoria.

Tais projetos coletivos, dialogados e negociados por diversos atores sociais em

diálogos inéditos, resgatando dimensões antes invisíveis, tendem a formar turbilhões de

relações que invadem as relações mediadas pelo trabalho assalariado, como uma onda

que se sobrepõe a outras águas para poder se movimentar.

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Poder retomar como uma das dimensões a dimensão da festa é fundamental, mas

não basta.

A dimensão da arte, como elemento a ser partilhado e construído coletivamente,

como sustentavam Guy Debord (2000) e os situacionistas (Jappe, 1999) ao criticar a

arte como contemplação, é outra dimensão importante cuja potência não pode ser

medida, pois se relaciona com a multiplicidade das subjetividades27

.

Fazer a vida como arte, uma estética da existência, em movimentos individuais,

mas também coletivos, uma obra de arte coletiva, é outro desafio colocado à superação

do trabalho moderno e da mercadoria.

Nesse movimento, o espaço-tempo ganha outras dimensões, outras feições.

O relógio não pode substituir o tempo singular de cada um, e o tempo

consignado por grupos de pessoas em seus projetos coletivos.

O tempo para conversar com o louco, e conhecer outras dimensões profundas da

humanidade, não pode ser o mesmo tempo que me faz correr atrasado para não perder o

ônibus em direção ao trabalho.

O tempo-espaço também exige ser enriquecido, e utilizado em suas múltiplas

possibilidades de existência.

A Terra e o Sol também querem dialogar, mas precisamos entender sua língua,

abrir os olhos e os ouvidos, além da pele, para tentar traduzir suas mensagens.

É sim possível conversar com as coisas e os fenômenos, desde que estejamos

abertos e dispostos a usar a capacidade imaginativa em direção de uma multiplicidade,

esta sim podendo ser chamada de riqueza.

A pobreza é o único, aquele capaz de apenas se reproduzir.

27

A suposta arte da indústria do entretenimento, produtora de pastiches (Jameson, 1996), nos captura

como objetos, produtores incessantes de capital. Até ao assistir televisão, estamos lançando combustível

na valorização do capital e com isso trabalhando (De Masi, 2000). Não descansamos nunca: nossa

audiência produz muito dinheiro e, quem sabe, devêssemos ser pagos para assistir aos programas

televisivos, ao invés de pagarmos o uso da energia, o desgaste dos aparelhos, além dos produtos

geralmente descartáveis cujo valor de troca ajudamos a impulsionar.

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Uma possibilidade de superar a sociabilidade da mercadoria passa então por

algumas ações essenciais:

Conversar e dialogar com a multiplicidade das pessoas, e não com identidades

estanques;

Conversar e dialogar com nossa própria multiplicidade, para descobrir que

somos muitos e não um só, e que podemos ser formas inéditas a nós mesmos,

num movimento permanente de metamorfose com memória. Memória que não

signifique prisão. Caso contrário, dela podemos nos despojar;

Conversar e dialogar com o Sol e os elementos não humanos. Valeria também,

mais que isso, produzir relações profundas com o Sol e a Terra, além da água e

do ar. Significa produzir fusões onde o corpo possa se desmanchar ao se

misturar com os elementos. Esta talvez seja a melhor forma de respeitar a

natureza: misturando-nos a ela;

Modificar a mediação exercida pela mercadoria, através do valor de troca, pelo

fortalecimento do valor de uso. Ampliar a presença da arte para ela ser o

principal instrumento de trabalho, aquela que, como mágica ou ritual, faz

emergir aspectos de nossa multiplicidade.

Não se trata de regras fixas nem de metáforas desaforadas, mas de princípios para

uma nova forma de resistência que possa surgir de nossa criatividade.

Para isso, a ciência terá mesmo que se misturar à arte, à espiritualidade (mesmo à

dos ateus), a fim de enriquecer e mobilizar nossas capacidades e não ficarmos

empobrecidos, aprisionados por um único fetiche que quer se colocar como um deus

supremo.

Vida não é sinônimo de mercadoria.

A CASA E O TERRENO

Começamos com uma casa e um terreno ao mesmo tempo. Ambos localizados

na Zona Noroeste, um defronte ao outro, próximos ao NAPS 1.

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Era só atravessar a rua que se ia da casa ao terreno, e vice-versa.

O terreno era amplo e, no futuro, transformar-se-ia no local onde seria

construído um conjunto habitacional de três pequenos prédios.

Até que isso ocorresse, o terreno foi palco das experiências que mantivemos para

complementar o treinamento que ocorria no Horto Municipal.

Era o ano de 1990, e ainda não ocupávamos as praças como viríamos a fazer

com o Projeto Terra.

Carpíamos o terreno e construíamos canteiros para o plantio de mudas.

Utilizávamos alguns blocos produzidos pelos usuários da Fábrica de Blocos para

fazer os canteiros.

Até que isso se concretizasse, foram muitas as semanas em que íamos carpindo o

terreno até chegar ao final, quando então percebíamos que o mato já crescera novamente

por onde havíamos iniciado.

Éramos como cachorros correndo atrás dos próprios rabos, até que nosso

monitor de ofício chegou para nos tirar desse ―mato sem cachorro‖.

Esse monitor, já citado anteriormente, era um ex-pescador que foi fundamental

para o Projeto Terra, porque, além de grande jardineiro, tinha um espírito empreendedor

e criativo, relacionava-se de forma flexível (abrindo muitas possibilidades de contato)

com os usuários, sem ser uma pessoa da área da saúde mental.

Era como que um álibi que possuíamos para criticar o paradigma psiquiátrico, e

demonstrar que o que interessava mesmo à vida dos usuários estava muito longe do que

dispúnhamos enquanto conhecimentos técnicos trazidos da academia e da

especificidade das profissões. Chamava nossa atenção para a necessidade de enriquecer

nosso olhar e nossa prática profissional, nos aproximando e dialogando com as ―reais

necessidades‖ dos usuários (Basaglia e Basaglia, 1977)28

e não com as abstrações com

que as traduzimos através do conceito de doença.

28

Basaglia diz que a psiquiatria só se relaciona com a doença e não com o sujeito, e para isso tem

respostas prontas, construídas sobre a nosografia das doenças, sem dar espaço para que as perguntas, as

necessidades reais e a experiência existencial do doente apareçam (―Liberar as necessidades reais do

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Com relação ao terreno, tentamos também, em determinado momento,

desenvolver um projeto de fitoterapia, visando à produção de ervas medicinais e seu uso

nos serviços de saúde.

Trouxemos dois biólogos do interior de São Paulo, com larga experiência no

assunto, preparamos um curso, escrevemos um projeto, mas não conseguimos levá-lo

adiante.

A casa defronte o terreno era pequena. Era como que duas salas divididas por

uma pequena cozinha e um banheiro. Havia muitas vidraças quebradas e nenhum

móvel.

No início a utilizamos para fazer as reuniões do Projeto Terra e guardar plantas e

ferramentas. Naquele momento, usávamos troncos de árvores e blocos de construção

para fazer a roda em que nos sentávamos para discutir.

Noutro momento, utilizamos a casa para um projeto de serigrafia realizado junto

ao NAPS 1, que idealizou e adquiriu as máquinas.

E, por fim, lutamos junto ao NAPS 1, que liderava a iniciativa de construir a

cantina, para que a casa fosse reformada e adequada para tal.

A reforma foi realizada parcialmente, mas não chegamos a implantar a cantina,

devido às turbulências provocadas pelo que viria a ser a mudança de governo: novas

forças políticas entravam em cena prometendo rever as prioridades e responder às

demandas de outras fatias e classes sociais.

A ESTUFA

Foi com recursos da Sehig que compramos os materiais de construção essenciais

para a reforma do enorme galpão que se transformaria na estufa do Projeto Terra:

madeira para fazer um novo telhado e telhas transparentes.

usuário de um serviço, das necessidades artificiais, produzidas de tal maneira que a resposta à necessidade

se traduza no controle da classe subordinada, significa romper este mecanismo e fazer explícita, na

prática, a função da ideologia científica como suporte falsamente neutro da ideologia dominante‖,

Basaglia, F.; Basaglia, F. O., 1977: 17, tradução nossa).

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A estufa era ao mesmo tempo um lugar de reprodução de mudas, de elaboração

de arranjos de plantas ornamentais em vasos, e de venda destes mesmos produtos.

As negociações com nossos parceiros, os engenheiros do Horto Municipal,

possibilitaram que lá constituíssemos um belo espaço: claro, verde e muito agradável de

se estar.

Abriu-se ainda uma exceção ao possibilitar que lá se comercializassem produtos,

o que não era permitido até então, pois se tratava de um espaço público.

A placa de inauguração da bela estufa levava os nomes de Roberto e

Wanderleia, dois trabalhadores do Projeto Terra recentemente falecidos, que naquela

ocasião eram homenageados29

.

Além disso, a placa expunha uma frase um tanto romântica, mas que

representava um pouco de nossos sentimentos na época. Dizia mais ou menos assim:

―Esta estufa representa a força do homem na superação do manicômio...‖ O homem em

questão não queria referir-se nem a deus, nem ao prefeito de então (David Capistrano

Filho, um grande homem realmente), mas àquela generalidade abstrata que poderia

melhor resumir-se simplesmente na palavra ―nós‖, todo o coletivo que participou do

processo de desconstrução do Anchieta, incluindo os usuários.

O trabalho dentro da estufa exigiu a participação de outros trabalhadores, além

daqueles que cuidavam das praças: os vendedores.

29

Roberto era um homem de 60 anos, muito triste, cuja história fazia chorar. Estava abandonado pela

família, que guardava muito rancor dele, provavelmente porque, depois pudemos descobrir, ele abusara

sexualmente da filha adotiva quando esta era criança. Mesmo assim, a família foi visitá-lo algumas vezes

no Anchieta, a partir do momento em que tentamos resgatar sua história de vida. Ele vivia como um

fantasma no Anchieta, às vezes agindo comigo de forma muito teatral. Não parava quieto. Às vezes

deitava-se por alguns segundos num divã (para logo em seguida se levantar e andar por todos os cantos)

que tínhamos numa sala do corredor externo do Anchieta, onde eu o levava para conversar, antes de

passearmos pelas ruas ao redor do hospital. Então, deitado, olhava fixamente para uma lâmpada amarela

no teto e dizia pausadamente e com voz de quem estivesse a gemer de dor: sol, sol, sozinhoooo.... E

chorava, querendo expressar a dor da solidão. Outras vezes regredia muito e era encontrado nos banheiros

do hospital a mexer e a engolir restos de fezes presentes nos vasos sanitários. Depois, pouco antes de

falecer, teve uma surpreendente melhora e começou a trabalhar no Projeto Terra. Wanderleia era uma

jovem de 27 anos que foi uma das primeiras moradoras da primeira casa na comunidade implantada para

alguns usuários que não possuíam mais família e estavam morando no hospital. Havia um boato, nunca

confirmado entre os trabalhadores do projeto, de que Roberto e Wanderleia, que às vezes trabalhavam

juntos, certa vez foram surpreendidos tendo uma relação sexual dentro da igreja da praça do Morro da

Nova Cintra, onde cuidavam dos jardins. De qualquer forma, tendo ou não compartilhado seus corpos, ao

menos os nomes dos dois puderam compartilhar a mesma placa e uma merecida homenagem.

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Havia uma escala que cobria todos os dias da semana, inclusive sábados e

domingos.

O abastecimento da estufa era realizado através de viagens semanais ao Ceasa,

na capital, que ocorriam sempre às madrugadas.

Nessas viagens, profissionais da URP e trabalhadores do projeto se revezavam

sempre em dupla, utilizando um caminhão-baú disponibilizado pela Sehig (o mesmo

caminhão que transportava medicamentos e materiais às unidades de saúde).

Aqui novamente tornava-se clara a noção de reconversão de recursos, que

migravam do financiamento das internações para o financiamento dos projetos de

trabalho (pagamento de profissionais da URP, materiais para a reforma da estufa,

utilização do caminhão-baú).

Na estufa foram vendidos muitos arranjos de plantas. Além disso, as plantas lá

produzidas foram expostas em várias feiras e eventos sobre meio ambiente, geralmente

realizados em centros de convenções (ou em lugares como o estacionamento do Sesc),

quando os organizadores cediam gentilmente o espaço para o projeto.

Nessas feiras, os participantes do projeto preparavam os estandes (geralmente os

maiores da feira) de uma forma muito especial e diferente, utilizando invenções de

paisagismo inéditas que a todos agradava.

Em determinado momento, chegamos a pensar em oferecer um tipo de serviço

para escritórios e prédios, em que vasos com plantas seriam fornecidos, cuidados e

trocados com alguma regularidade, quando estivessem necessitando de novas mudas.

As empresas pagariam uma espécie de taxa de serviço ou de aluguel pela utilização dos

vasos.

Mas a proposta não se concretizou porque exigia uma logística de que então não

dispúnhamos, como um veículo a mais para a URP, e a ampliação do número de

profissionais para fazer as articulações necessárias ao empreendimento.

Nossos desejos plantados cresciam mais rapidamente que as condições reais para

seu desenvolvimento. Era um eterno e ritmado brotar de novas esperanças que nos

acometia, como ocorria com as mudas nos vasos e nas praças.

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SUBVERSÃO/AVERSÃO À MERCADORIA

A primeira mercadoria de que devemos nos despojar, para que a vida venha à tona,

somos nós mesmos.

A identidade é vilã de relações de poder que parecem se petrificar (o que é uma

ironia e uma contradição foucaultiana, pois o poder é sempre instável).

Mas não somos nós mesmos o tempo todo, ou aquilo que achamos sermos nós.

É que, como exposto acima, fazemos um esforço incrível para nos ver como únicos,

e não como múltiplos.

O medo nos ajuda a nos manter incrustados numa identidade fixa e simplificada.

Esse primeiro despojamento, de nós mesmos, é o mais difícil, e o mais complexo,

porque, para chegar a ele, precisamos realizar outros despojamentos intermediários.

Identificamo-nos com o máximo possível de mercadorias, consumindo-as

compulsivamente e, ao nos alimentar com mercadorias cada vez mais tênues e

descartáveis, estamos lidando com algo anônimo que pode ser chamado simplesmente

de dinheiro.

Não importa com o que nos relacionemos através do consumo, se é com um saco de

balas de uma loja popular, um brinquedo chinês que se destrói após o primeiro uso, um

carro que logo será trocado, ou uma namorada com a qual permaneceremos uma ou

duas noites.

Tudo funciona como o cachorro-quente que ingerimos, com a diferença de que nada

ficará metabolizado, a não ser a memória algo virtual de um fantasma chamado

mercadoria.

Lembraremos dela fazendo um esforço para lembrar qual foi seu equivalente em

dinheiro, ou seja, quanto consumimos em dinheiro.

Essa será a medida, com certeza em diferentes níveis dependendo da capacidade

aquisitiva (leia-se $), de cada um.

Não se trata de fazer uma crítica envelhecida do consumo, ou da característica

consumista de nossa sociedade.

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Trata-se de constatar a ligação que nossas identidades, arduamente construídas por

nós num esforço extremo, têm a ver com a mercadoria.

Uma nova estética da existência passa também por uma nova relação com as

mercadorias, ou melhor, pela transformação da mercadoria em objeto.

Se toda mercadoria sustenta um valor de troca e um valor de uso, podemos dizer que

atualmente há uma hiperdominância do valor de troca, tanto que as mercadorias se

fazem mais e mais descartáveis.

Transformar a mercadoria em objetos significa reforçar o valor de uso dos objetos

produzidos, suas qualidades estéticas, sua durabilidade, sua engenhosidade, sua

instrumentalidade, sua capacidade de produzir relações afetivas que lhes deem nome,

história, enfim, identidade.

Uma vez as mercadorias tendo identidade (e essa identidade também pode sofrer

devires), talvez estejamos prontos para superar nossas identidades estanques e

empobrecidas, podendo viver devires com memória.

É isso, num movimento inverso, a mercadoria ganha história e identidade enquanto

nós ganhamos a riqueza da multiplicidade, e do exercício de identidades que se

desterritorializam em busca de novas terras.

PÁS, COLHERES, PANELAS, PALAVRAS, PALAVRAS, PALAVRAS

Muitas eram as palavras que ocupavam as paredes de uma das salas da casa-sede

da URP.

Palavras que faziam parte do cotidiano dos projetos de trabalho, e que eram

colocadas em cartazes para que os alunos do curso de alfabetização delas se

apropriassem e aprendessem a escrevê-las.

O curso de alfabetização que ocupava a sala foi um projeto construído pelo

Programa de Saúde Mental e pela Seduc, visando ao acesso ao mundo do conhecimento

e, assim, a uma amplitude de visões de mundo.

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A ideia tomou corpo com força quando a equipe da URP e a coordenação de

saúde mental do município decidiram que era o momento de se efetivar a cooperativa a

ser gerida em conjunto com os usuários. Essa era uma perspectiva que vinha sendo

compartilhada com os usuários havia tempos, e cujo momento de efetivação

aguardávamos ansiosos.

Avaliamos naquele momento que a alfabetização era uma das ferramentas

fundamentais para que os usuários se apropriassem e se tornassem os protagonistas de

uma cooperativa de trabalho, e não mais apenas usuários dos NAPS e da URP.

A cooperativa seria outra instância, uma organização composta por

trabalhadores que visaria à prestação de serviços a seus associados, ao desenvolvimento

de projetos de trabalho coletivos que pudessem participar de forma efetiva e formal do

mercado, ao mesmo tempo em que fossem questionando este mesmo mercado e

participando de sua desconstrução.

Tão logo a cooperativa fosse formalizada como pessoa jurídica, a Afrent poderia

deixar de representar os trabalhadores, intermediando os contratos e as relações com os

clientes.

Digamos que a cooperativa seria um novo patamar do processo iniciado com as

reuniões do Núcleo do Trabalho dentro do Anchieta, passando pela constituição da

Afrent e da URP. Novo patamar cujos riscos inerentes e desafios estavam à altura dos

atores envolvidos no processo de desconstrução do hospital psiquiátrico e do paradigma

psiquiátrico em vigência naquele local e naquele contexto histórico.

E o projeto de alfabetização foi fundamental para qualificar o processo.

As duas professoras que davam aulas na URP estavam muito afinadas com o

projeto de desinstitucionalização em andamento, e eram muito influenciadas pelos

ensinamentos do educador Paulo Freire, que também propunha a construção do

conhecimento com o protagonismo e a apropriação da realidade a partir dos alunos,

condição fundamental para a produção de crítica.

E não era esse mesmo o processo que estávamos a construir com os usuários

desde os primeiros dias na intervenção do Anchieta? Não era esse mesmo o processo de

superação da simplificação operada pelo paradigma psiquiátrico? Não era esse processo

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que enriqueceria a vida de usuários, profissionais de saúde mental, parceiros dos

projetos e pessoas que usufruíam as benfeitorias produzidas pelos usuários em diversos

projetos de trabalho?

NEGAR O PODER

É possível? É possível negar o poder?

O poder é a energia que é criada no contato entre os corpos, ou entre os

pensamentos, ou entre as linguagens.

Quando dialogamos com um livro, ao lê-lo, criamos tensões entre nossos

pensamentos e as mensagens grafadas.

É como se ouvíssemos vozes a debater: as nossas e as dos livros.

Então poder também é vida.

É possível vida sem poder? Mas no que se transformou o poder?

O poder se transformou, historicamente e desde sempre, em dominação.

A dominação é também sujeição voluntária a determinado poder.

Porque, mesmo sem alternativas aparentes, sempre há a possibilidade de sofrer as

consequências torturantes de não se submeter à dominação.

Esse caráter voluntário da submissão é, porém, algo que deve ser tratado com muito

cuidado, pois é difícil dizer quando dominamos e quando somos dominados.

Porque as relações de poder são sempre instáveis e relativas, embora a dominação

tente se colocar como uma relação de poder estável.

Mas se entendermos o poder não como uma energia fundamental da vida, mas como

uma forma permanente de dominação de corpos e mentes, podemos sim negar o poder.

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Negar o poder significaria então abdicar da dominação, não dominar nem ser

dominado30

.

Não competir, mas seguir seu caminho autônomo de produção, que cruzará com os

caminhos autônomos dos outros, produzindo certa autonomia coletiva, o que é um

contrassenso.

Uma autonomia universal significaria, no entanto, uma mistura fundamental, o

contrário da solidão.

Uma sensação de totalidade que significa colocar o máximo de cartas na mesa, uma

totalidade possível em determinado momento, mas que também sofre mudanças com a

entrada de novos elementos.

Uma autonomia e uma razão sempre abertas a novas intervenções.

Essa seria uma forma de combater o poder enquanto dominação.

Quando uma pessoa se dedica a certa produção criativa sem olhar ao lado, sem

comparar sua produção às demais, está exercendo uma autonomia aberta.

Ela pode ficar contente com sua produção, e ficar muito feliz com a produção de

terceiros, porque não há comparações nesse tipo de autonomia.

30

Serres (2003) afirma que as lutas por reconhecimento sempre fizeram parte do reino animal: dois galos

se desafiam com bico e esporão, dois cangurus lutam como boxeadores. Os homens também lutam por

reconhecimento e prestígio, e haveria que se abrir mão do prestígio e da hierarquia para se conquistar a

consciência de si. ―Quanta cegueira é necessária para não enxergar a evidência de que a luta por

reconhecimento, que ninguém pode dar porque todos o desejam para si, fatalmente termina com a perda

de toda consciência e com o êxtase de uma droga? Gostaria de demonstrar que essa transformação brutal,

ainda que repetitiva, encerra para sempre a gênese da consciência de si‖ (id., ibid.: 114). Do mesmo

modo que nas ciências mecânicas ou na termodinâmica as constantes de força asseguram o tratamento

racional de todas as questões, a provável invariância na quantidade histórica de violência asseguraria o

tratamento racional das questões humanas. Enquanto o mal se conserva, a razão continua perversa. ―Para

se abolir essa necessidade seria conveniente que se rompesse a invariância, que se invertessem ao mesmo

tempo os equilíbrios racionais e as equações de vingança, que se inventasse um diferencial de

desestabilização que faria nascer outro estado. O primeiro a oferecer a outra face a quem deu a primeira

bofetada destrói o equilíbrio de proporção de justiça e, por meio dessa tentativa heroica, começa a

dissolver a constância. Como vantagem suplementar quem aqui se torna sujeito, a não ser aquele que se

submete? Renunciem ao prestígio e à dominação, e uma nova razão nascerá‖ (id., ibid.: 116).

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A autonomia e a razão abertas e criativas produzem, criam, e apreciam a produção

de outrem, porque são abertas, negam o poder enquanto dominação, mas não enquanto

energia produzida pelo encontro dos corpos.

Negar o poder também pode significar abrir mão pelos outros, sentir prazer pela

conquista do outro; muitas vezes abrir mão do próprio prazer para assistir ao prazer de

outrem.

Quem sabe possamos realizar, sem guerras, um potlatch31

criativo e universal?

O ESTATUTO

Ocorriam uma vez a cada semana as discussões sobre o estatuto da cooperativa,

o que durou cerca de 6 meses.

Numa grande sala do NAPS 5, sentavam-se em círculo dezenas de trabalhadores

dos projetos de trabalho, fazendo uma atenta leitura de cada parágrafo daquele que seria

o regimento maior da nova instituição.

A leitura era lenta, e a cada parágrafo que terminava, iniciava-se uma discussão

para traduzir, modificar, acrescentar conteúdos à proposta inicial.

A proposta inicial de estatuto, formulada pelos técnicos da URP, baseava-se em

estatutos de outras cooperativas já constituídas, e adaptava alguns dos objetivos da

cooperativa, caracterizando-a como um instrumento que favoreceria as pessoas em

desvantagem social.

O nome ―Paratodos‖ representava esta ideia de que ninguém deveria ficar de

fora, mesmo que fosse portador de dificuldades imensas32

.

31

Potlatch é o nome que Marcel Mauss (1974) – citando outros autores – utilizou para expressar o

fenômeno recorrente entre algumas tribos do noroeste americano, em que às guerras e competições,

seguia-se o empilhamento de bens adquiridos pela tribo e sua posterior queima numa grande fogueira.

Quanto maior os sinais distantes da fogueira, vistos pelas tribos oponentes, maior a demonstração de força

e prestígio da tribo. Ou seja, quanto mais se despojassem de seus bens materiais, mais as tribos eram

consideradas fortes e protegidas por espíritos especiais. Emprestamos aqui essa referência por seu efeito

imagético que poderia simbolizar, para nós ocidentais, adaptando um pouco o sentido da ação, um bom

exemplo do que fazer com as mercadorias: uma grande fogueira da amizade universal.

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O estatuto em discussão, por sua vez, representava também uma mudança de

estatuto social de cada participante, inserido num projeto de trabalho que os alçava da

condição de usuários para a de cooperados.

É óbvio que as duas condições coexistiam, a de usuários e a de trabalhadores-

cooperados, mas o repertório de papéis sociais ampliava-se, permitindo que a parte

trabalhadora interferisse na parte usuária, e vice-versa.

Pois o que estava em jogo era o aumento do poder contratual dos participantes,

que se colocavam agora de outra forma perante as instituições sociais.

O processo permitia que os participantes fossem instituintes de novos projetos e

de novas instituições, portanto de novos valores, saberes e práticas.

Novos modos de vida estavam implicados nessas transformações, que

questionavam os empobrecidos valores sociais da modernidade criados em torno do

trabalho.

O protagonismo dos usuários era o ponto de partida do processo.

Esse protagonismo fora iniciado desde as primeiras discussões no cotidiano de

transformação do Anchieta e continuava naquelas discussões sobre a cooperativa.

Para facilitar esse protagonismo, os profissionais da URP resolveram, depois de

muitas discussões, participar da composição daquela que seria a primeira diretoria da

cooperativa.

Na verdade, a dúvida que pairava era se o fato de sermos servidores públicos

municipais não atrapalharia o processo, já que a proposta da cooperativa trazia como

possibilidade o estabelecimento de convênios e contratos de prestação de serviços com a

própria prefeitura.

32

Após a constituição da cooperativa, que se daria meses após essas reuniões, um grupo de usuários e de

profissionais da URP elaboraria uma cartilha apresentando a cooperativa e resgatando seu caráter

contestatório enquanto instrumento de resistência das classes populares contra a exploração do capital.

Obviamente, naquele momento, a luta de classes e outras categorias marxistas estavam muito presentes

em nossas elaborações, pois refletiam aquele momento histórico e as leituras que fazíamos dele.

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Devido à necessidade de apoio que a cooperativa e os trabalhadores

necessitariam nos primeiros momentos, resolvemos que dividiríamos alguns lugares da

diretoria com os usuários.

Pensamos que haveria ainda um tempo de maturação da cooperativa antes de

firmarmos novos contratos, e que os usuários precisariam de mediações importantes

para assumir esse papel, sem o que isso não seria possível.

Além disso, pensamos que, se comprovássemos que não receberíamos nenhum

ganho da cooperativa, não haveria como alguém nos acusar de utilizar recursos vindos

de contratos públicos em benefício próprio.

Na verdade, estávamos produzindo uma instituição híbrida, meio pública meio

privada, sem ter um arcabouço legal que nos sustentasse, como tinham os italianos na

experiência das cooperativas sociais (Gallio, 1991).

A criação desse arcabouço seria outro desafio a ser enfrentado com o conjunto

do movimento social de apoio à reforma psiquiátrica.

Os próprios convênios da Afrent e do Anchieta com outras empresas para os

projetos de trabalho já traziam em seu bojo situações não previstas pela legislação.

Isso trazia riscos e situações difíceis, é óbvio.

Foi o que ocorreu, por exemplo, quando alguns ex-moradores de rua que

participavam do Projeto Lixo Limpo resolveram entrar na justiça trabalhista alegando

que não recebiam os benefícios previstos pela CLT, e que aquele projeto não era de

reabilitação psicossocial.

A Prodesan teve muita dificuldade em defender perante a justiça do trabalho o

caráter e o objetivo do projeto (se a empresa quisesse de fato obter lucros a partir do

trabalho dos usuários, não teria gastos tão volumosos, que eram maiores que a receita

arrecadada com a comercialização do material separado).

A empresa, legalmente, só poderia contratar pessoas através de concursos

públicos, tendo aberto a possibilidade do convênio para permitir que fossem os usuários

a trabalhar no centro de triagem.

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Por certo, os tipos de convênios que construímos, como únicas possibilidades de

criação das bolsas de trabalho e de inserção dos usuários no trabalho, produziram

também muitas contradições difíceis de ser contornadas.

Essa situação foi um dos motivos que nos levou a apressar a constituição da

cooperativa, que traria regras mais claras para os convênios.

A FUNDAÇÃO DA COOPERATIVA PARATODOS

A assembleia de fundação da cooperativa ocorreu num sábado pela manhã e foi

precedida de preparativos que se deram no decorrer de semanas.

Para validar e testemunhar o nascimento da cooperativa participou da assembleia

um representante de uma das organizações que tem como função acompanhar e

monitorar as cooperativas no estado de São Paulo.

Essa mesma organização colaborou na construção do estatuto e na orientação

dos passos que deveríamos seguir para efetivar a constituição legal da cooperativa.

Lemos e aprovamos o estatuto na assembleia, bem como deliberamos os

componentes da primeira diretoria, cujo presidente seria um usuário.

Foi uma bela festa, pois havia muita gente e uma mistura de trajetórias de vida

muito diferentes, mas que tinham como característica comum a forte combinação de

sofrimento e exclusão social.

Um momento ímpar de dignidade e de um colorido de vidas dissonantes

articuladas numa única orquestra, apresentando uma ópera em estrita afinação.

Um momento formal e de importância, protagonizado por aqueles que tempos

atrás exerciam muito pouco poder.

Agora essas pessoas participavam dos processos que produziam valor, não

porque se adaptaram aos padrões, mas porque interferiram e modificaram aspectos

desses padrões.

Na mesma quadra de esportes do NAPS 4, onde foi realizada a assembleia de

fundação, e que era uma parte do prédio do já extinto Anchieta com uma nova porta de

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acesso aberta à rua, ocorreram as assembleias posteriores da cooperativa, sempre aos

sábados e, às vezes, seguidas de um bom churrasco cujo custo era rateado entre os

cooperados.

O processo de registro da cooperativa, no entanto, foi algo trabalhoso.

A extensa documentação exigida, a necessidade de nos deslocarmos até a capital

para ir à Junta Comercial, foram elementos que geraram alguns meses de trabalho.

Às vezes a Junta pedia um novo documento pessoal de algum diretor, e às vezes

este não o possuía, ou tinha acabado de perder.

Os diretores que tinham problemas com álcool eram os que mais perdiam os

documentos em momentos de recaída, e aí o processo se alongava por mais algum

tempo até que outras vias dos documentos fossem providenciadas.

Mas conseguimos registrar a cooperativa, também com a ajuda de um contador,

que depois continuaria prestando serviços à cooperativa.

E o primeiro grande trabalho dela foi regularizar a situação dos cooperados,

realizar reuniões com a diretoria e estudar as formas de viabilizar os novos contratos,

sendo o primeiro deles o contrato com a Prodesan para o Projeto Lixo Limpo.

Devido à complexidade do problema, que exigia o encaminhamento das

questões legais pela Prodesan, o contrato demorou a sair.

Em virtude da demora, eu e a maior parte da equipe da URP não pudemos

acompanhar a execução do contrato.

Chegamos apenas ao momento de levantar os pontos que deveriam constar nele,

estimando os valores, estabelecendo os termos etc.

O contrato se deu já quando não estávamos mais na URP e na cooperativa.

A mudança de governo fez com que interrompêssemos nossa participação nos

projetos de trabalho, e tivemos que procurar outros mares para navegar.

Parte da equipe foi retirada pela nova direção da URP e enviada para outras

unidades.

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Eu solicitei minha transferência da unidade logo no início do outro governo.

Poderíamos, mesmo assim, ter participado como cooperados que éramos da

cooperativa, mas de fato ficamos muito desestimulados e optamos por investir em

outros projetos e trabalhos.

O fato de a perspectiva de continuidade da cooperativa, naquele momento,

depender da continuidade das negociações com a Prodesan, onde não teríamos mais

nenhum canal de discussão, por certo ajudou a termos dificuldades de vislumbrar um

futuro possível para a cooperativa.

Na verdade, a mudança de governo foi bastante melancólica para todos nós, após

termos vivido grandes transformações durante oito anos consecutivos.

E acredito que nossa participação na cooperativa ainda estivesse muito

caracterizada como uma participação do governo. Ou seja, como uma participação ainda

muito vinculada à URP.

Tínhamos uma dificuldade para nos ver como participantes de um movimento

social dentro da cooperativa.

Mas soubemos posteriormente que a cooperativa havia firmado finalmente o

contrato que prevíamos junto à Prodesan, e também substituído a Afrent nos convênios

do Projeto Terra.

Soubemos também que alguns dos projetos minguaram, outros novos

apareceram, e que mudanças importantes de concepção ocorreram, fazendo, por

exemplo, com que a maioria dos usuários mais graves e comprometidos perdessem seu

lugar nos projetos de trabalho.

Além disso, emergia uma concepção de processo de trabalho muito pautada na

criação de ―hábitos de trabalho‖ adequados, de normalização e respeito às hierarquias

(vários espaços de circulação da casa-sede da URP foram proibidos aos usuários).

Enfim, a proposta laborterápica e de puro adestramento surgia para fazer uma

nova síntese com a anterior dinâmica participativa dos projetos coletivos de trabalho.

Mas as marés às vezes mudam de direção, e conseguimos ou não navegar.

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Temos também nossas opções em cada momento da vida, incluindo os mares

que desejamos navegar.

SUPERAR A MERCADORIA?

O trabalho no período moderno sofreu alterações que hoje se tornam mais

evidentes.

Seu surgimento produziu toda sorte de metamorfoses nas tradicionais formas de

viver a vida das sociedades pré-modernas e tradicionais.

O trabalho moderno tem sido um elemento determinante das relações entre os

homens e, hoje, ainda mais, pois quem se vê inserido no mercado percebe uma

tendência à captura da vida integral do trabalhador em função dos objetivos da empresa,

e de determinada lógica e modo de existir do capital.

Nesses processos, a mercadoria e o dinheiro como elementos fundamentais de

mediação das relações entre os homens têm se colocado cada vez de forma mais

potente, tanto assim que talvez já não haja quase nada no mundo que não seja

determinado por seu valor em dinheiro no mercado.

As relações mercantis invadem há muito até os mais privados e íntimos círculos

familiares, fazendo o máximo para ser onipresentes.

Mas esse movimento não se dá de forma tão tranquila.

Formas de resistência subsistem à hegemonia das formas básicas de relação

dentro do mercado, o que acaba sendo um elemento a ser utilizado na reorganização das

estratégias de dominação do mercado.

Considerando tudo o que o desenvolvimento do capital produziu enquanto

sociabilidade, ainda podemos perceber o quanto de brechas e processos marginais se

viabilizam nos mais inesperados lugares do mundo.

Nossa multiplicidade e a multiplicidade dos coletivos não se deixam açambarcar

totalmente por um tipo de totalitarismo que se pretende único no universo. Muitas

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podem ser as experiências embrionárias (Kurz, 1999b) que tentam modificar esse estado

de coisas, produzindo toda sorte de enriquecimento da vida33

.

É verdade que muitas dessas experiências ainda encontram-se aprisionadas à

lógica da mercadoria, mas com uma ilusão de liberdade.

Mas é igualmente inegável que muito pode ser construído enquanto

sociabilidade a negar e subverter a lógica da mercadoria e do dinheiro, que tanto tem

empobrecido a humanidade, tendo como um de seus eixos a forma de trabalho moderno.

Neste estudo tenho procurado apontar, além de impasses inerentes ao processo

vivido por nós, algumas reflexões de caminhos ou de descaminhos possíveis a seguir,

que podem partir, sobretudo, do entendimento que fazemos de nós mesmos, enquanto

mercadorias com vida incorporada (nossa forma de ser mercadoria se diferencia de

outras formas que tem vida, como os animais, porque somos as mercadorias sob cujo

processo nós mesmos criamos. Nós inventamos a mercadoria que somos, e não outros).

Elegi até aqui alguns temas de discussão que apontam possíveis resistências,

temas estes relacionados à necessidade de se superar as identidades petrificadas em

direção a uma multiplicidade, ao processo possível de subversão ao domínio da

mercadoria, à possibilidade de problematizar o poder.

33

Em sua crítica ao trabalho e ao fetichismo da forma-mercadoria como referências fundamentais dos

padrões de sociabilidade modernos, Robert Kurz vai apontar que ―a divisão funcional amplamente

disseminada e profundamente escalonada da reprodução social, que não se manifesta, de início, pela

comunicação e vínculos comuns, mas só a posteriori, pela troca de produtos, forma a matriz de uma

sociabilização fetichista calcada no valor, ou seja, na qualidade metafísica aparente dos produtos, e não na

comunicação direta entre as pessoas‖ (Kurz, 1999b:18-19). A vida em torno do trabalho e da mercadoria

reproduz apenas o fim em sim mesmo da valorização do valor, e imprime através dessa abstração

desprovida de sentido processos de dominação sem sujeito. A produção de uma nova sociabilidade que

supere a forma mercadoria, para o autor, dependeria da capacidade de se produzir movimentos

emancipatórios, mesmo que de forma embrionária, onde a comunicação direta, e não as formas

convencionais e abstratas de participação, substituiria o foco sobre a forma-mercadoria, no exercício da

autonomia. ―Autonomia não significa fazer tudo por conta própria e constringir a reprodução num obtuso

ethos comunitário. Autonomia significa justamente o contrário, ou seja, que as relações socieconômicas

não se submetem mais a uma relação coercitiva externa, irracional e fetichista, mas repousam numa

comunicação livre e consciente, que oferece à obstinação do indivíduo a capacidade de desdobrar-se ou

recolher-se em si mesmo. Portanto, cabe ocupar um terreno social da autonomia nesta acepção, que só

pode viver se não se isolar regressivamente e travar múltiplas e amplas relações, capazes de romper e

superar (e não cimentar) as relações nacionais, religiosas e ‗étnicas‘, que se transformaram em modelos

de exclusão na história da modernização‖ (id., ibid.: 28).

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Todos eles dizem respeito a uma mudança de rumo sobre aquilo que hoje é

chamado de desenvolvimento.

Não tenho dúvida de que as formas de resistência são movimentos que remam

contra a maré e que, por isso, só sobrevivem com esforço e certa dose de prazer, o

prazer de estarmos construindo algo de que realmente somos os protagonistas.

Muitas outras ondas, tsunamis e marolas virão para dificultar nosso movimento,

mas um bom marinheiro é aquele que, embora respeite o mar, não se amedronta a ponto

de ficar paralisado, à mercê do movimento da maré.

Sejamos bons marinheiros, e acessemos outros mares jamais vistos por ninguém,

para que a vida se torne uma ilusão/utopia real, algo que só vemos em filmes de ficção

científica, estes sim, mais aptos a enxergar as multiplicidades do saber humano, sem

medo de ser chamados de loucos.

Que nossa loucura nos salve da derradeira perdição, que é ter uma morte sem ter

tido um vida.

MAIO DE 1989

Entraram no Anchieta novos atores, que intervieram naquele caldo de relações

de violência e opressão.

Disseram aos pacientes, que eram só ouvidos, pois mudos ficaram pela falta de

exercitar a voz, que novos tempos se iniciavam, e que as formas de violência física e

psicológica, como as celas-fortes e o ECT, estavam extintas.

Da mesma forma, as novas regras trazidas pelos atores da intervenção

preconizavam o uso da voz, o diálogo, as decisões coletivas.

Perplexos, os pacientes confiaram na nova proposta e as primeiras frases foram

de denúncia das situações de opressão ou de abandono.

Tudo isso foi registrado num belo vídeo que filmou o primeiro dia da

intervenção, e que mostra os depoimentos dos internos em seu estado de perplexidade.

Eu ainda não participava de tudo isso.

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Cheguei em novembro de 1989, vi que lá era difícil diferenciar os internos dos

funcionários, e que uma energia positiva pairava no ar, de forma efervescente. Também

recebi uma colher para me alimentar.

Percebi que desejava fazer parte daquele processo, e ser transformado enquanto

transformava a realidade.

Quando o funcionário da porta vacilou e não me deixou sair, pensando que eu

era um novo interno, reforcei ainda mais meu desejo de participar de todo aquele louco

processo.

E lá vivemos, eu e os colegas, um processo intenso de enriquecimento

existencial sem precedentes em nossas vidas.

RUMO AO TRABALHO EM EQUIPE

No capítulo que ora se finda, procurei trazer ao leitor algumas experiências

vividas com os usuários nos projetos de trabalho, como forma de demonstrar na prática

que é possível construir estratégias que modifiquem os contextos e que garantam a

participação de pessoas com seus processos e necessidades singulares. Também trouxe

mais elementos da constituição do trabalho moderno, e fiz reflexões sobre o tipo de

sociabilidade associada a ele, fazendo uma crítica à centralidade que a mercadoria

assume como referência na nossa forma de enxergar o mundo.

No próximo capítulo, apresento alguns relatos do processo de trabalho da equipe

do Núcleo do Trabalho, algumas cenas que demonstram os desafios de uma vivência

coletiva. Além disso, e principalmente, avanço na discussão sobre possíveis

transformações na nossa forma atual de sociabilidade.

Digamos que, aqui, começamos a diminuir o ritmo dos acontecimentos, pois

chega o entardecer, quando o sol começa a se pôr, e começamos a sentir a necessidade

de nos recolher para um bom descanso.

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CREPÚSCULO

―Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente

contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem

está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual;

mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e

desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e

apreender o seu tempo‖ (Agambén, 2009: 58).

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CRESPÚSCULO:

IMAGENS DO TRABALHO EM EQUIPE

PRODUÇÕES DE A-SOCIABILIDADES, OU ASSOCIABILIDADES

O termo ―a‖, que vem antes da palavra sociabilidade, quer se referir a um tipo de

relação entre homens e natureza que escape do paradigma e dos referenciais que nos

envolvem, e que permita apenas a reprodução destes, ao invés de uma metamorfose e

uma reorganização completa dessas relações.

Seria, então, a proposta de se criar uma antirrelação, uma a-forma de estar no

mundo.

NÓS, OS PROFISSIONAIS DO NÚCLEO

A equipe do Núcleo foi se constituindo aos poucos, desde os primeiros

momentos do Anchieta.

Como disse antes, ela dividia seu tempo entre as enfermarias e os embriões dos

projetos de trabalho.

Quando, em 1992, havia consistência suficiente no trabalho e massa crítica (em

termos de quantidade de projetos e de profissionais de saúde mental envolvidos) para se

criar uma unidade administrativa própria, o interventor colocou-nos como tarefa definir

dentre os pares um coordenador para a nova unidade.

Como sempre fizera nos cinco NAPS e no NAT que foram criados

paulatinamente, incumbira-nos de eleger tal figura por nossa própria conta.

Essa era uma das formas coletivas de empoderamento dos diversos atores:

delegação, confiança, assunção coletiva de riscos.

De certa forma, era esse processo que nos estimulava a reproduzir com os

usuários e em todos os estratos essa forma de trabalho conjunto.

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A equipe, ainda em constituição, não teve unanimidade propositiva para definir

o coordenador.

Na verdade, não houve outros candidatos, apenas eu.

Ninguém, exceto eu, sentiu que naquele momento seria adequado assumir esse

papel, mas não havia nenhum consenso de que eu seria a pessoa mais adequada.

Acredito que a equipe era muito despojada, e sabia que qualquer um haveria de

representar institucionalmente o coletivo de profissionais e usuários, pois nossa

trajetória desde o Anchieta estava consolidada em termos de confiança, produção

coletiva, caminhar conjunto.

Eu não exerceria nenhuma autoridade extraequipe, isso era certo, mas teria que

aprender a ser como uma dobradiça que dialoga com esferas tão distintas como a gestão

da Secretaria de Saúde, a própria equipe, o conjunto dos usuários.

Acho que consegui colocar-me no meu devido lugar.

Nem que eu quisesse ser autoritário, a equipe deixaria; com certeza, me tiraria

num segundo do papel de coordenador.

Não me sentia portador de nenhuma habilidade ou talento especial que me

diferenciasse dos demais, e sei que a equipe não me via também dessa forma.

Eu apenas ajudava a fluir a criatividade da equipe, que era quem efetivamente

pensava, liderava e executava o trabalho.

Dividíamos tarefas e éramos fiéis a nós mesmos, sujeitos coletivos em sintonia

com as demandas dos usuários.

NÓS, OS MACACOS

Kafka (1999), em Um relatório para uma academia, conta a história do

esperto macaco Pedro Vermelho, que, para escapar do destino ao zoológico e como

saída para sua condição de não liberdade, decide transformar-se em homem.

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Afirmando que os homens se ludibriam com a liberdade, encontrou no ato de ser

amestrado a possibilidade, e o caminho, de adentrar não só a academia, mas de produzir

valor social, podendo até escolher seus professores.

À noite, recorria a uma símia para se divertir, mas logo a abandonava, pois seu

olhar amestrado e submetido causava certamente uma confusão de sentimentos: o medo

de voltar à condição anterior, a angústia de se ver amestrado nos olhos da macaca etc.

Triste história e triste fim do macaco. Não gostaria de estar na pele, ou melhor,

no pelo dele.

Teria sido melhor ter morrido ao tentar escapar do navio que o levava enjaulado,

a ter que recorrer a tais estratégias que o submetiam ao modo de existência dos homens?

São desfechos e opções colocadas na história de Kafka, e a escolha por uma ou

por outra dependeria do macaco real.

O macaco de Kafka refere, na história, que nós homens estamos tão perto ou tão

longe como ele da condição de macacos.

E essa ideia nos faz pensar se a peça pregada por Kafka não realiza uma crítica

ao nosso processo de hominização.

Será que fomos, aos poucos, criando as estruturas e a noosfera (Morin, 2002)

ideal para nos autossubmeter à nossa gradual invenção de ser-homem?

Será que, encontrando uma saída, muito mais que uma liberdade inexistente, não

fomos nos adestrando e submetendo a padrões de sociabilidade, a formas de

conhecimento e de relação com o mundo que procuraram atingir, como no caso do

macaco Pedro Vermelho, a ambição de sermos aceitos nos espaços sociais, sendo um

deles a academia?

Esta questão é válida de forma peculiar para os usuários dos serviços de saúde

mental, muitos dos quais já passaram durante a história da psiquiatria por formas de

adestramento que reproduziam, em escala e com estratégias específicas, e também com

uma violência excessiva e específica, os processos de normalização que ocorriam nas

vilas operárias, nas workhouses, nas máquinas de vigilância panóptica das fábricas e

escolas.

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O macaco, mais que os loucos, aprendeu rapidamente sobre os ―hábitos de

trabalho‖, sobre os mecanismos de valorização social, sobre nossa forma peculiar de

empobrecimento existencial. Não quero ser esse macaco nem quero isso para os loucos

que conheço! A crítica ao nosso processo de hominização também pode ser entendida

como uma crítica às formas construídas de sociabilidade.

ENXERGAR NO/O ESCURO

A escuridão é uma produção de parte de nossas células responsáveis pela visão,

localizadas na retina.

A escuridão não é apenas a ausência de luz, mas fruto de nossa atividade, mais

que de nossa passividade (Agambén, 2009).

Consideramo-la como ausência, como falta, como não sentido.

A escuridão do céu diz respeito a uma infinidade de galáxias que de nós se

afastam numa velocidade alucinante, superior à da luz.

É por isso que seu movimento passa despercebido, já que a velocidade da luz,

tentando clarear este movimento para nossa visão, é inferior a sua velocidade

fenomenal (id., ibid.: 65).

Muito bem, o escuro é rico de conteúdos.

Mais que clareá-lo, cabe saber apreciar sua rica obscuridade.

Não cabe tornar o latente manifesto, não cabe lançar luz na escuridão,

racionalizar o irracionalizável.

Cabe viver o irracional, superar a divisão racional/irracional, dando a ambos a

legitimidade para comporem o todo do conhecimento.

Um reencantamento do mundo (Prigogine, Stengers, 1984; Prigogine, 2009) é do

que se trata.

Como os cegos, podemos aprender a enxergar no escuro, ou enxergar o escuro.

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Por certo estaremos sendo transgressores, uma transgressão dentro de certos

padrões éticos, ou que estica para lá e para cá estes padrões, instituindo normas

autodeformantes que se tornarão mais e mais elásticas, construindo um mundo num

pequeno quintal deserto, uma infinidade de relações num aparente escuro vazio e

inerte, uma autonomia que só existe porque pertence a múltiplos corpos, porque

mistura num único corpo infinitos corpos, ou porque explica que não existe um corpo

autossuficiente, mas metamorfoses dos movimentos das partículas, dos sentimentos,

das emoções, da cognição.

As partículas dos corpos humanos se desmancham no ar, porque nele sempre

estiveram desmanchados, mesmo que não tenhamos percebido o movimento com

nossas lanternas.

É que não conseguimos ainda enxergar na escuridão. E é necessário enxergar

mais para perceber as possibilidades já existentes de construção de novas formas de

sociabilidade.

Precisamos treinar sempre um pouco mais.

Isso é a produção da ética.

―o saber científico, extraído dos sonhos de uma revelação inspirada,

quer dizer, sobrenatural, pode descobrir-se hoje simultaneamente como

‗escuta poética‘ da natureza e processo natural nela, processo aberto de

produção e invenção, num mundo aberto, produtivo e inventivo.

Chegou o tempo de novas alianças, desde sempre firmadas, durante

muito tempo ignoradas, entre a história dos homens, de suas sociedades,

de seus saberes, e a aventura exploradora da natureza‖ (Prigogine,

Stenders,1984: 226).

ETICAMENTE POTENTES E JUNTOS

―Portanto, nada é mais útil ao homem do que o próprio homem. Quero

com isso dizer que os homens não podem aspirar nada que seja mais

vantajoso para conservar o seu ser do que estarem, todos, em

concordância em tudo, de maneira que as mentes e os corpos de todos

componham como que uma só mente e um só corpo, e que todos, em

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conjunto, se esforcem, tanto quanto possam, por conservar o seu ser, e

que busquem, juntos, o que é de utilidade comum a todos. Disso se

segue que os homens que se regem pela razão, isto é, os homens que

buscam, sob a condução da razão, o que lhes é útil, nada apetecem para

si que não desejem também para os outros e são, por isso, justos,

confiáveis e leais‖ (Spinoza, 2009: 169).

Que não se confunda a razão de Spinoza com a de Descartes. Os quase

contemporâneos produziram visões quase antagônicas, e suas ideias tiveram pesos

diferentes, já que a ciência moderna se filiou ao primeiro, enquanto o segundo começou

a ser resgatado por aqueles que se dizem não cartesianos.

O Deus de Spinoza, que lhe rendeu uma terrível perseguição nas rodas

religiosas, era um Deus-natureza, uma potência de vida existente no homem e na

natureza. Por isso, uma das tarefas da razão é tentar ordenar e refrear os afetos

produzidos pelo corpo no contato com as causas exteriores, no sentido de fazer valer a

natureza humana e a conjunção com Deus: produzir vida, agir, usar a potência, visando

as coisas boas e a preservação harmoniosa da vida. Uma produção de vida que nos leva

a criar um corpo coletivo, superando as divisões entre corpo e mente, homem-Deus-

natureza, sujeito e objeto.

Uma ética da imanência que sobrepuja nossas forças em direção ao divino das

construções da natureza; o homem é natureza, ele produz a realidade com sua

imaginação, ao ser afetado pelas causas externas.

Lembremos que somos formados pelas mesmas partículas elementares, nós e as

mesas, antes mesmo destas se diferenciarem e produzirem organizações próprias e

diversificadas, dando forma às coisas que conhecemos.

Talvez seja por isso que Deleuze e Guattari afirmem que o devir não é imitar as

outras coisas, mas sê-las. Talvez o devir seja essa forma de metamorfose em que

usamos como mapa ou guia nossa origem de partículas elementares; talvez seja esse

reencontro com o todo, com a totalidade do universo.

Mas Spinoza sabia que controlar os afetos não era algo simples, nem algo

definitivo e disciplinado como achavam os estoicos ou mesmo Descartes. Os afetos e as

paixões são de difícil controle, mas são as ferramentas da vida, sem o que não

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conseguiríamos nos conduzir num mundo rico e diverso. Eles são as ferramentas do

juízo, que precisam ser controlados pela consciência e pela compreensão.

Spinoza criticava aqueles que eram generosos e piedosos por obediência a

alguma religião, pelo desejo de alcançar o paraíso futuro, quando poderiam deixar de

ser escravos e usufruir dos próprios desejos. Agir pela preservação e produção da vida

de todos seria sim a forma consciente de se autopreservar e enriquecer a vida:

enriquecer a própria vida depende de enriquecer a vida de todos.

―É quando cada homem busca o que é de máxima utilidade para si, que

são, todos, então, de máxima utilidade uns para os outros. Com efeito,

quanto mais cada um busca o que lhe é útil e se esforça por se

conservar, tanto mais é dotado de virtude (pela prop. 20); ou, o que é

equivalente (pela def. 8), de tanto mais potência está dotado para agir

pelas leis de sua natureza, isto é (pela prop. 3 da p. 3), para viver sob a

condução da razão. Ora, os homens concordam, ao máximo, em

natureza, quando vivem sob a condução da razão (pela prop. prec.).

Logo (pelo color. prec.), os homens serão de máxima utilidade uns para

com os outros quando cada um buscar o que lhe é de máxima utilidade.

C.Q.D.‖ (Spinoza, 2009: 178).

REUNIÕES NOS NAPS

A parceria entre URP e NAPS esteve presente desde os primeiros dias de ambas

as instituições.

Como já mencionei, a inserção dos usuários dos NAPS nos projetos de trabalho

se dava através de muitas discussões entre as duas equipes, e da participação efetiva dos

usuários nas escolhas e nas formas de participação dentro dos projetos.

Estratégias conjuntas entre as duas equipes eram construídas a fim de se criar as

condições reais para que os usuários se apropriassem do trabalho, nas relações sempre

tensas com o mercado e os atores envolvidos no processo.

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Uma das diversas estratégias utilizadas durante o processo de acompanhamento

dos usuários nos projetos de trabalho, além de atendimentos conjuntos entre as duas

equipes, acompanhamento dos usuários por profissionais dos NAPS nos primeiros dias

de trabalho etc., era a participação dos profissionais da URP em algumas reuniões

diárias de passagem de plantão dos NAPS34

.

Cada profissional da URP tornou-se referência de um dos NAPS para a

participação nessas reuniões, onde se discutia o processo dos usuários envolvidos nos

projetos, se trocavam informações sobre novos projetos de trabalho em constituição, se

dividiam olhares e visões sobre o sentido da construção dos projetos de trabalho na

constituição do Programa de Saúde Mental.

Essas estratégias conjuntas possibilitavam que usuários muito graves

participassem dos projetos de trabalho, e que superássemos o simples entretenimento, o

eterno treinamento para uma suposta inserção no trabalho que viria após o tratamento e

a cura, a reprodução de hábitos de trabalho alienantes e subalternizadores, como fins em

si mesmos ou mecanismos de disciplinarização.

Essa conexão de olhares e ações é que produzia sentido para o Programa de

Saúde Mental e para o sentido do terapêutico, entendido como um processo de

modificação de fluxos de poder, associados à modificação concreta da qualidade de vida

e das relações e, portanto, também produtor de novas subjetividades e novos valores.

Talvez pudéssemos chamar isso de enriquecimento da existência; um processo

de colorir o presente e o futuro, onde a trágica experiência do sofrimento humano tem

lugar não como negatividade a ser extirpada, mas como condição a ser abordada,

transformada, e como um dos elementos que, contraditoriamente, podem ser fatores de

enriquecimento.

34

A reunião de passagem de plantão era um dispositivo diário de organização dos NAPS. Era o momento

em que a equipe do período da manhã encontrava-se com a equipe da tarde, para trocar informações sobre

a dinâmica diária da instituição, promover reflexões sobre os projetos da unidade, discutir e propor

respostas aos desafios sempre novos que uma unidade territorial sempre permeável às demandas locais

haveria de enfrentar. Uma vez que o propósito da unidade era o de acompanhar e mediar o processo de

vida dos usuários em seus contextos de vida, produzindo toda sorte de mudanças e de novos sentidos, a

dinâmica inesperada da vida de cada usuário apresentava sempre necessidades inusitadas, exigindo

prontidão, flexibilidade, criatividade e responsabilização nas respostas.

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OS DEUSES DE FEYERABEND

Os deuses existem?

―‗Não‘, replicam os defensores da ciência, pois deuses não se encaixam

em uma visão científica de mundo. Mas, se as entidades postuladas por

essa visão podem ser pressupostas e existirem independentemente da

mesma, então por que não deuses antropomórficos? É verdade que

poucas pessoas acreditam em tais deuses, e os que creem raramente

apresentam razões aceitáveis; mas a pressuposição era que a existência

e a crença são coisas diferentes, e que uma nova Idade das Trevas para a

Ciência não excluiria átomos. Por que deveriam os deuses homéricos –

cuja Idade das Trevas é agora – ser tratados diferentemente?‖

(Feyerabend, 2006: 183).

Nossos olhos, nossos espíritos, produzem nossos fenômenos, ou os traduzem,

metamorfoseando-os no nosso fenômeno.

A realidade está dada, sim, mas a produzimos ativamente com nossos sentidos,

nosso pensamento, nossa emoção.

Os experimentos de laboratório sofrem a influência do ponto de vista, a história

que construímos intervém em nossas descobertas.

Podemos então construir uma nova realidade, ou novas realidades, para sermos

mais honestos com a multiplicidade do real e do ser humano.

Outros caminhos de hominização podem ser criados, a partir dos escombros

produzidos pela modernidade, mas aproveitando também o que de belo ela produziu.

Podemos construir novas formas de sociabilidade, bem diferentes das atuais.

A-sociabilidades (marcando com ―A‖ a proposta de elas serem contrária às

atuais).

Associabilidades, ou seja, associativas, coletivas, onde as identidades em

mutação se misturem formando novas identidades em processo de metamorfose. Ou

seriam as Associações de Únicos de Max Stirner (Stirner, 2004)?

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Novas criações sempre mutantes, em consonância com sua história e com as

idiossincrasias de seu tempo, ou, um pouco deslocado delas, como o contemporâneo de

Agambén, para que se consiga entender melhor o que se passa.

Os deuses existem?

―Dizer que os deuses homéricos não existiam porque eles não podem

ser descobertos experimentalmente ou porque os efeitos de sua

aceitação não podem ser reproduzidos é, portanto, tão tolo quanto a

observação – feita por alguns físicos e químicos do século XIX – de que

átomos não existem porque não podem ser vistos. Pois se Afrodite

existe e tem as propriedades idiossincráticas a ela atribuídas, então ela

certamente não ficará sentada quieta à espera de algo tão bobo e

humilhante quanto um teste de efeitos reprodutíveis (pássaros ariscos,

pessoas que se entediam facilmente ou agentes infiltrados comportam-

se de maneira similar)‖ (Feyerabend, 2006: 186-7).

REUNIÕES DE TERÇA-FEIRA

As reuniões da equipe do núcleo, já na casa do bairro da Aparecida, ocorriam às

terças-feiras.

Era o momento de socializar informações, discutir problemas, novos projetos,

perspectivas, encaminhar questões específicas referentes aos projetos de trabalho.

Com o crescimento da equipe, aquilo que fluía com a serenidade dos barcos a

vela deslizando no mar manso foi assumindo aspectos cada vez mais diferentes, e

tornando-se desafio cada vez maior.

A equipe inicial participara, cada um a seu tempo, do processo interno ao

Anchieta.

Outros, mais recentes, porém em menor quantidade, ocuparam posteriormente

seu lugar na equipe.

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Os registros e as experiências de vida eram outros e, de fato, a possibilidade de

viver o período interno ao Anchieta trazia certa forma bem singular de ser e de lidar

com as questões.

Tivemos que encontrar os caminhos que permitissem a continuidade da

construção coletiva considerando a diversidade de atores.

Os novos não haviam vivido o processo do Anchieta na pele, mas vários deles

eram brilhantes e traziam contribuições fantásticas, colocando-nos a opção de nos

renovar com os fluidos que traziam, ou de rejeitar todas as novidades, correndo o risco

de nos objetivar e plasmar.

Acredito que conseguimos, não sem conflitos, seguir viagem em nossa nau

iluminada pelo sol e pelo brilhantismo de todos, navegando por águas cada vez mais

novas, às vezes turbulentas, às vezes mansas como a brisa de outono.

Ah, mas não era fácil e eu suava bastante!

Às vezes as reuniões de terça-feira, pelos desafios que a presença de integrantes

diferentes colocava, se tornava para mim um campo de combate comigo mesmo.

Como mediar os conflitos, como não se sentir ameaçado, como sustentar um

movimento construtivo em meio a expectativas e perspectivas agora diferentes, já que

as pessoas novas traziam outros registros?

Talvez aqui eu tenha tido que exercer mais ativamente o papel de coordenador,

do que simplesmente me deixar ser coordenado pela equipe antiga com quem eu me

identificava tanto.

E as tardes passavam e eu me preparava para a reunião de terça-feira.

O CONSUMO

Consumo é um termo que tem um sentido próprio na moderna sociedade

produtora de mercadorias.

Ele normalmente fica entre o desgastar ou eliminar algo, seja um objeto ou um

serviço (também um termo econômico conhecido da modernidade), de forma ativa e

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determinada, ou às vezes de forma displicente, sem chegar até o fim (já que outra coisa

que nos interessa entra no lugar), e entre o puro adquirir, como forma de transformar o

dinheiro em algo, de consumá-lo em mercadoria.

A compulsão que circunda o ato de consumir é uma expressão da mobilização

psíquica, que pertence a um sistema de sociabilidade onde as relações com mercadorias

substituem quase integralmente as relações com as coisas e os atos.

Quais mecanismos psíquicos são mobilizados na sedução que estimula o

consumo?

São questões que merecem reflexão e pesquisa, mas que não estão ao alcance de

minhas possibilidades.

Quero chamar a atenção apenas para um dos mecanismos que conduzem ao

consumo, sublinhando sua dimensão mais comportamental que propriamente subjetiva,

ou seja, mais descrevendo o fenômeno do que tentando compreender sua origem e suas

motivações.

Ponho-me no meu devido lugar.

Esse mecanismo é a imitação.

Quão vulneráveis somos diante dos estímulos!

O consumo dos outros produz em nós desejos de consumo, sonhos de consumo

(o que fizeram da linda palavra sonho!) etc.

Somos imitadores contumazes, ávidos por forjar e ocupar a identidade-

mercadoria do outro.

Queremos ser, sempre, alguma mercadoria que não somos, mas que outro

também quer.

Não questionamos o fato de sermos mercadoria, nem a necessidade de termos

identidades.

Não valorizamos a possibilidade de sermos metamorfoses, e sustentamos a

ilusão de que temos identidades, mesmo que estas sempre queiram ser outrem.

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Imitamos tanto que os ratos das experiências de laboratório nos condicionam

sem parar: temos que reproduzir incessantemente, de forma disciplinada, as

intervenções do experimento, a aplicação de drogas, ou o ambiente que o rato nos leva a

criar para produzir alguma inteligibilidade à pesquisa.

Foucault (2002, 2006) lembrou bem de como as histéricas enganaram Charcot,

que agiam conforme o mestre desejava, umas imitando as outras, e todas imitando o

desejo de Charcot.

Seria bom deixar de imitar, mas não é fácil não. Exige introspecção, troca com

o outro na construção de metamorfoses coletivas, criativas.

Quem sabe um dia consigamos nos livrar da repetição, da identidade, da

imitação, enfim, da lógica da mercadoria.

O USO

Faz tempo que deixamos de usar as coisas.

Consumo não é o mesmo que uso.

Pelo consumo, há tempos, consumamos o registro religioso do capitalismo, esta

religião que funciona através de rituais nada profanos.

A divinização da mercadoria é a essência do capitalismo e de nossa forma

moderna de estar no mundo (na experiência do socialismo real, a mercadoria também

funcionou como matriz do desenvolvimento econômico e mediadora das relações entre

as pessoas – como diz Kurz, [1993], o socialismo foi uma tentativa de modernizar a

economia de países agrários e atrasados com o referencial da mercadoria).

O consumo faz parte do ritual de uma religião que busca se perpetuar para que

sua existência tenha um fim em si mesmo, seja uma tautologia sem transcendência.

―O culto capitalista não está voltado para a redenção ou para a expiação de uma

culpa, mas para a própria culpa‖, diz Agambén (2007: 63) retomando a discussão de

Benjamin.

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Uma religião que não busca a esperança, mas o desespero, e que não procura

transformar o mundo, mas destruí-lo (id., ibid.: 64). Nas palavras do autor:

―Uma profanação absoluta e sem resíduos coincide agora com uma

consagração igualmente vazia e integral. E como, na mercadoria, a

separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em

valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível,

assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido — também o corpo

humano, também a sexualidade, também a linguagem— acaba sendo

dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não

define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso se torna

duravelmente impossível. Esta esfera é o consumo. Se, conforme foi

sugerido, denominamos a fase extrema do capitalismo que estamos

vivendo como espetáculo, na qual todas as coisas são exibidas na sua

separação de si mesmas, então espetáculo e consumo são as duas faces

de uma única impossibilidade de usar. O que não pode ser usado acaba,

como tal, entregue ao consumo ou à exibição espetacular‖ (id., ibid.: 64).

A possibilidade de usar, na perspectiva de Agambén, exige a profanação, ou

seja, a restituição ao uso comum do que havia sido separado na esfera do sagrado (id.,

ibid.: 64), o retorno do que estava separado na esfera do divino para o uso

compartilhado.

Implica também, do meu ponto de vista, estabelecer formas de produção que

impliquem formas autênticas e inovadoras de uso.

Significa produzir algo com autor, com vida, com durabilidade, com qualidade,

e apto a ser bem utilizado.

Implica restituir o reino da criatividade, esta enzima que nos toma quando

deixamos a intensidade de vida transbordar. ―Implica intervir nas relações instituição-

energia, produção-criação, no sentido da circulação de energia e da criação‖ (Morin,

2002a: 212).

O ―comunismo cultural‖, nas palavras de Morin (ibid.: 209), que buscamos nos

momentos em que podemos interagir, colocando em segundo plano, afastando e

subjugando os padrões e as hierarquias sociais, pode encontrar seu reino no uso

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perpétuo da criatividade, sob novas formas produzidas de comunicação e diálogo entre

os atores sociais.

As pessoas, metamorfoses ambulantes, então, podem se encontrar para forjar

novas produções coletivas que, na sua efemeridade, produzem sentido e superam a

tautologia da morte em vida representada pelo reino do trabalho e da mercadoria.

―A Política de civilização deve, certamente, desenvolver e utilizar todos

os aspectos positivos das ciências, das técnicas, do Estado, do

capitalismo, do individualismo; deve investir na pesquisa, apostar numa

nova era da técnica inteligente e, ao mesmo tempo, desenvolver a

economia solidária, o comércio equitativo, as associações e

cooperativas. Ela exige a humanização das cidades e a revitalização dos

campos, o que certamente necessita de investimentos. Mas, também,

quantos benefícios para a saúde de todos e, portanto, investimentos

crescentes no orçamento da saúde! É necessário revolucionar nossa

forma de viver. Precisamos, ao mesmo tempo, promover a qualidade,

em essencial a qualidade de vida, muito mais do que o quantitativo;

promover o bem viver, que possui dimensões psicológicas e espirituais,

muito mais do que um bem-estar exclusivamente material, que conduz

ao empobrecimento da vida em meio à riqueza‖ (Morin, 2010: 263-4).

QUANDO O USO TORNA-SE CONSUMO

Há quem defenda que o consumo seja uma forma tática de liberação.

Uma vez que estejamos submetidos a uma ordem estratégica disciplinar,

econômica, de valores culturais, nos restaria, através do consumo, subverter o registro,

usar de outra forma e sob outra lógica aquilo que se encontra prescrito, definido e

imposto.

É assim que Certeau (2007) interpreta as reações dos povos indígenas à

ocupação espanhola, é assim que vê as formas de resistência atuais das massas

submetidas aos ditames da produção.

Diz ele que os indígenas utilizavam de modo peculiar os preceitos e as

prescrições impostas pelos dominadores, sem enxotá-las ou modificá-las, mas

utilizando-as sob novo registro, de uma forma autêntica que escapava às expectativas

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dos dominadores. Estaríamos, segundo ele, imperceptivelmente, invisivelmente e sem

estardalhaço, dando golpes contra a ordem, exercendo a antidisciplina, em nosso ato de

consumir.

Ao caráter totalizador, autoritário, regulado e planejado da estratégia, que

valorizaria a propriedade e o espaço, responderíamos com o caráter contingente e

pragmático de nossas táticas de guerrilha, onde os mais fracos golpeiam os mais fortes,

fazendo valer o tempo mais que o espaço.

O trabalho de Certeau sobre o cotidiano, segundo suas próprias palavras:

―consiste em sugerir algumas maneiras de pensar as práticas cotidianas

dos consumidores, supondo, no ponto de partida, que são do tipo tático.

Habitar, circular, falar, ler, ir às compras ou cozinhar, todas essas

atividades parecem corresponder às características das astúcias e das

surpresas táticas: gestos hábeis do ‗fraco‘ na ordem estabelecida pelo

‗forte‘, arte de dar golpes no campo do outro, astúcia de caçadores,

mobilidades nas manobras, operações polimórficas, achados alegres,

poéticos e bélicos‖ (id., ibid.:103-4).

Talvez, numa linguagem deleuziana, máquinas de guerra nômades a constituir

linhas de fuga numa luta que é mais guerrilha que guerra. Mas também algo no campo

das resistências de Foucault quando nos lembra que toda relação de poder implica

resistências que a moldam, e que faz do poder algo multicêntrico e geralmente

incapturável.

Embora Certeau realize uma crítica ao caráter totalizador da sociedade

disciplinar de Foucault, por vezes, parece reforçar os aspectos que o autor sugere nas

questões do poder.

Mas não é isso o que importa aqui. O que importa é refletir se o consumo pode

de fato representar uma forma de resistência, uma astúcia que sabota a ordem das

coisas.

A ideia de um ato crítico no interior da produção me agrada. É como ocorre

nos projetos de trabalho: participar do mercado, mas questioná-lo; viver o mundo do

trabalho, mas tentar desconstruí-lo.

Mas o silêncio e o anonimato desse movimento sugerido por Certeau, onde

cabe a singularidade do uso, não seriam uma forma de fazer uma guerrilha onde a

subsunção à ordem estaria muito mais presente que sua negação? Estaríamos mesmo, a

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todo momento, utilizando as coisas com nossas próprias mãos e de forma peculiar, ou

estaríamos, na maioria das vezes, utilizando as coisas conforme regem as bulas e as

regras, atendendo aos preceitos dos produtores?

É difícil afirmar qualquer dessas questões.

Certamente, quando lemos um texto, nós também o produzimos, pois a leitura

nunca é passiva; aceitamos as regras, mas as instituímos de nossa maneira. Está certo!

Mas por que não podemos nos opor mais insistentemente no sentido da própria

desconstrução dessas regras? Por que nossa oposição deve ser apenas muda?

―produtores desconhecidos, os consumidores produzem por suas

práticas significantes alguma coisa que poderia ter a figura das ‗linhas

de erre‘ desenhadas pelos jovens autistas de F. Deligny. No espaço

tecnocraticamente construído, escrito e funcionalizado onde circulam,

as suas trajetórias formam frases imprevisíveis, ‗trilhas‘ em parte

ilegíveis. Embora sejam compostas com os vocabulários de línguas

recebidas e continuem submetidas a sintaxes prescritas, elas desenham

as astúcias de interesses outros e de desejos que não são nem

determinados nem captados pelos sistemas onde se desenvolvem‖ (id.,

ibid.: 45).

A restituição das coisas ao uso ainda é um desafio. Talvez modificar de fato nossas

relações com as coisas seja o desafio mais perturbador.

Esse uso singular há que produzir ressonâncias que atinjam as forças do valor de

troca, destruindo-o. Pois o valor de troca não é mais a produção de uma relação entre

partes que transforma o mundo e as pessoas. O valor de troca, retornando a Agambén,

pertence atualmente e desde a modernidade ao reino do sagrado. Profanando-o,

podemos restituir ao ato de trocar a necessária possibilidade de construir subjetividades

e sociabilidades metamorfoseantes.

REDE DE TROCAS PARALELAS AO MERCADO

As redes de troca de produtos e serviços têm surgido aqui e ali como uma forma

de viabilizar as trocas sem a interferência do mercado.

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Até moedas sociais têm sido inventadas em algumas localidades (e em São

Paulo já existem essas experiências), com o intuito de ensaiar uma independência em

relação ao mercado.

Sim, ensaiar, pois é difícil conceber situações onde o mercado esteja de todo

ausente. Particularmente, considero que, nos dias de hoje, viabilizar uma rede paralela

onde o mercado esteja totalmente ausente seja algo de difícil realização, uma vez que

qualquer etapa de um processo produtivo participa em algum momento do fluxo do

mercado: a compra de uma matéria-prima, a venda de parte da produção, a aquisição de

determinada ferramenta ou maquinário, a manutenção deste último, enfim, as

imbricadas redes do mercado estão por toda a parte e difícil é fazer de conta que ele não

existe.

Experiências como as de assunção de empresas falidas por empregados, em

forma de cooperativas, trazem muito facilmente essa imagem de vínculo inevitável com

o mercado.

Nelas, as estratégias econômicas da nova empresa para a concorrência no

mercado seguem alguns padrões comuns aos das empresas capitalistas, uma vez que o

raciocínio para se fazer presente e encontrar sucesso no mercado é o mesmo em

qualquer tipo de empresa, e nas cooperativas também, mesmo considerando a existência

de outros tipos de relações de reciprocidade e de exercício de autonomia na condução da

produção.

Cada empresa ou cooperativa, dependendo do seu tamanho, entra em relação

com redes de relações econômicas mais ou menos complexas, mais ou menos amplas, e

assim por diante.

É assim que micro e pequenas empresas entram em contato com os fornecedores

de crédito ou os consumidores intermediários ou diretos de seus produtos.

As empresas médias e, sobretudo, as grandes entram em fatias mais complexas

das redes de relações, tais como as instituições mediadoras de investimentos, os bancos

oficiais, os candidatos a franquias, enfim, os mais diversos atores produzidos pelo

mercado (vale lembrar que os investimentos se afastaram sobremaneira da produção

real, criando a situação esquisita de uma empresa apenas emprestar o nome para

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produzir valor, já que o fluxo de investimentos é tão veloz que o dinheiro sequer chega

a ser utilizado na produção).

Mesmo em algumas cooperativas populares, é comum verificar a reprodução de

certos mecanismos do mercado, como a definição prévia de valores salariais que

reproduzem as faixas do mercado, seguindo os padrões por profissão, por tipo de

formação acadêmica etc.

Embora devamos negar uma ilusão de total independência do mercado, é certo

que tais experiências que tentam produzir um movimento paralelo a este último são

importantes e devem ser valorizadas.

Isso porque talvez elas remetam à possibilidade de propor modificações no

mercado atingindo-o por dentro, além de produzir toda uma série de experiências

cotidianas de socialização diferentes daquelas que são básicas no mercado.

Quer dizer, uma vez que se pode ter acesso e poder para definir modos de

produção e as estratégias de desenvolvimento econômico, mesmo que estas sejam

limitadas pelas moldagens do mercado, há sempre a possibilidade de reverter padrões e

alcançar formas inéditas.

Os projetos de trabalho, nessa perspectiva, podem estar associados a outras

experiências de sociabilidade, outras relações que ultrapassem em muito os momentos

da produção, relações de reciprocidade, de companheirismo, de construção de projetos

de intervenção cultural que não se submetem à lógica do mercado.

Produzir relações múltiplas, outros projetos estéticos de existência que

ultrapassem a mercadoria, mesmo que tenhamos que ter a calma de suportá-la ainda por

algum tempo.

Dessa forma, produzindo outras situações existenciais de convivência que

ultrapassam o domínio do mercado, estaremos aptos a descobrir de forma construtivista

os meios de enriquecimento da vida, mesmo que isso leve tempo e que as contradições

sejam imperantes. Afinal, há muito aprendemos que a natureza e os processos sociais

são contraditórios, e talvez coubesse uma autocrítica referente à nossa capacidade de

acabar com as contradições. Talvez a síntese, como produto da relação entre a tese e a

antítese, nem sempre seja possível.

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Isso, por certo, não nos libera do necessário combate às ignomínias do mercado,

às atrocidades do capitalismo, esse modelo de estar no mundo que produziu coisas

importantes e outras horripilantes.

Nesse sentido, vale a pena lembrar que um dos arcabouços do capitalismo, a

evolução tecnológica, pode ser algo de grande valia a ser utilizado nas novas propostas

de sociabilidade, haja vista sua capacidade de colocar o homem em outros lugares nos

processos produtivos: pois se uma máquina pode substituir um braço e um punho, ela é

ao mesmo tempo controlada por um corpo humano que se tornou praticamente todo

cérebro, pois ele dirige a máquina com pouquíssimos movimentos, como o cérebro que,

de forma quase invisível, controla todos os movimentos de nosso corpo35

.

Se tivermos as máquinas a serviço da produção de novos modos de produção

associados à construção de novos valores, teremos então a possibilidade de afirmar

nosso poder de construção e elaboração, ao contrário do poder destrutivo dos atuais

modos de produção, que produziram e se apropriaram da tecnologia.

O desafio de pensar em possibilidades de superação do mercado não deve

desaparecer, pois já foram muitos os fenômenos quase impossíveis que tomaram a cena

na história da humanidade e, além disso, há sempre a possibilidade de o próprio

mercado, em seu movimento voraz, destruir-se a si mesmo. E aí, nesse momento,

deveremos estar preparados para colocar outra coisa menos prejudicial no lugar.

É preciso deixar claro que aqui não se faz a proposta de retomar projetos que

tentaram vender a falsa e ilusória imagem de superação do mercado. Não se trata de

socialismo ou algo que o valha. As fórmulas do socialismo real não representaram

mudanças reais no paradigma da mercadoria e do dinheiro. Conseguiram produzir um

35

Leroi-Gourhan (1965) comentou esse processo de exteriorização do corpo e da ação humana, que

sempre acompanhou o processo de hominização. Inicialmente as pequenas ferramentas que substituíram o

movimento da mão e dos braços, ou mesmo dos dentes. Cortar ou descascar com algum instrumento de

bordas cortantes em vez de utilizar os dentes frontais. Posteriormente, com o arado puxado por animais,

modificar o uso da força humana, conduzindo o processo. Colocar a força física como motor ou a energia

necessária para as engenhocas funcionarem. Mais tarde ainda, com os automotores, a energia a vapor, o

uso do carvão como combustível, adaptar novamente os movimentos do corpo aos das máquinas. Com o

uso da eletricidade, aperfeiçoar ainda mais os movimentos exteriorizados do corpo, substituindo-o por

outros dispositivos. Mais recentemente, a eletrônica vem possibilitar a exteriorização de funções do

cérebro. Os robôs vêm demonstrar que podem ter uma existência quase própria, colocando a questão de

saber o que fazermos com nosso corpo e nossas funções mentais libertas das funções do trabalho.

Haveremos de inventar outras funções para as mãos e o cérebro?

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mercado planejado e controlado pelo Estado, associado a um controle autoritário do

pensamento e do comportamento e, por isso, sucumbiram a uma crise econômica

desestruturante, já que, para sobreviver e se desenvolver, um mercado precisa de

flexibilidade e concorrência. A lógica da economia socialista foi também a da

mercadoria, e esta referência fetichista demarcou o desenvolvimento das relações

interpessoais e de produção (Kurz, 1993).

Não é o Estado que pode vencer o mercado, nem ser a esperança de um mundo

que prescinda da existência da mercadoria, repropondo a relação com os objetos, a

natureza e os homens. O Estado moderno nasceu no bojo do desenvolvimento da

mercadoria e da noção de trabalho, e suas implicações são tantas que um não pode

sobreviver sem o outro: o Estado sem o mercado e vice-versa.

É provável que a produção de redes paralelas ao mercado possa ser um ensaio

para a construção de redes substitutivas ao mercado, que sejam costuradas sem a

mediação das instituições tradicionais, mas com a participação direta das pessoas. Essas

redes, geridas e costuradas a cada trama por grupos de pessoas, quem sabe pudessem

viabilizar na prática novas formas de existência pautadas na troca de criatividades,

produções, objetos e serviços36

. Essa construção gradual, como já apontei, pode ser

36

Uma experiência já em vigor é aquela desenvolvida por alguns músicos através da internet. Deixando

de lado as gravadoras, que não só retêm a maior parte do valor produzido pelas obras, mas intervêm na

própria criação do artista, de forma a tornar palatável ao mercado as produções (mesmo que isso

signifique empobrecer as composições musicais), alguns músicos têm oferecido suas composições na

internet cobrando pequenos valores em dinheiro, ou, o que é mais interessante, oferecendo gratuitamente

suas músicas, ou sugerindo que haja contribuições voluntárias. Já há evidências de que essas

contribuições voluntárias ultrapassam o que antes estes artistas recebiam das gravadoras (Benkler, 2011)).

Além disso, esse tipo de troca tem possibilitado que os fãs se comuniquem diretamente com os artistas e

entre seus pares, criando redes de pertencimento que acabam coproduzindo as obras artísticas, o que tem

sido estimulado pelos próprios artistas. Vemos aqui uma forma espontânea de troca e de constituição de

laços sociais possibilitados pela apropriação da tecnologia microeletrônica de comunicação. Na mesma

linha, Serres questiona se o dinheiro, como equivalente universal, não estará sendo pouco a pouco

substituído pelos dispositivos da comunicação. ―Com a comunicação, colocamos a mão sobre um novo

equivalente geral? Uma vez que as vias ‗naturais‘ ou tecnológicas, os fluxos energéticos ou

informacionais e os núcleos frequentemente parasitários obedecem a essa lógica multivalente, o tecido

que formam tende a uma equivalência global que será alcançada quando uma unidade monetária que

tenha valor sobre a internet tiver substituído todas as moedas mundiais. Nesse momento o valor desse

bem vai variar mais ou menos de acordo com a informação que vocês puderem encontrar sobre ele: todos

terão sua conta no banco de dados. Será que o dinheiro irá assumir um papel secundário e irá ceder lugar

frente a um equivalente mais imaculado e mais geral do que ele? Apegamo-nos aos termos da informação

cujo caráter multivalente pode assumir todos os sentidos porque é privado de sentido. Apegamo-nos à

comunicação porque ela é tão geral, que pode querer dizer tudo‖ (Serres, 2003: 185). Mas o problema,

nesse caso, é fazer com que, ao invés de sucumbir a uma regulamentação externa da internet, possa se

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iniciada através da desconstrução do mercado, ou seja, a partir de seu interior, como

parece ocorrer nas propostas das redes paralelas, que acabam de alguma forma

participando do mercado.

Essa rede talvez pudesse trabalhar com a noção de projetos. E o que seriam os

projetos?

À semelhança dos projetos de trabalho que relatei, eles seriam a união de

pessoas para a execução de determinada tarefa que visasse ao cuidado e ao bem-estar de

outros conjuntos de pessoas que, por sua vez, comporiam outros projetos com a mesma

finalidade. As trocas se dariam a partir das necessidades reais. Os produtos e serviços

estariam disponíveis para o uso comum. Estes deixariam de ser mercadorias para se

tornar objetos e serviços de uso. Ou seja, passariam do registro do consumo (campo do

sagrado) e entrariam para o terreno do uso (campo do profano) (Agambén, 2007).

A noção de projeto implica uma apropriação dos produtores sobre os processos

dos projetos37

, e uma divisão consciente e negociada das funções que cada projeto

precisa desenvolver para ser viabilizado. Pelo menos internamente aos projetos, os

produtos e serviços, sua destinação e uso seriam conhecidos pelos produtores, de forma

a superarmos o processo mágico e fantasmático que faz surgir as mercadorias sem que

entendamos de que forma.

Os projetos seriam realizados nas mais diferentes áreas, havendo uma

preocupação especial com a denominada área cultural e nas áreas que envolvem o

contato pessoa-pessoa, já que os serviços mais duros poderiam ser realizados pelas

máquinas da revolução microeletrônica. O dia a dia das pessoas envolveria a realização

reproduzir o mesmo mecanismo autônomo e autorregulador que os fora da lei da floresta de Robin Wood

criaram com suas próprias mãos e bocas, definindo eles mesmos as regras que amenizariam a angústia da

total falta de regras. Ou seja, permitir que se crie um novo direito num lugar de não direito, num

movimento que não venha de fora, mas de seu interior (id., ibid.).

37 Não uso o termo processos de trabalho, mas processos dos projetos, porque aqui não estou me referindo

ao trabalho como uma atividade remunerada (embora ele, aqui, garantisse o acesso a bens e serviços), da

forma como o conhecemos hoje, pois nessa proposta se dissipariam as divisões entre o que habitualmente

chamamos de trabalho e de não trabalho. Ou seja, o trabalho como conhecemos seria substituído pela

participação no projeto, uma figura emergente diferente do labor e que não se limita a vender a força de

trabalho em troca de dinheiro, para a simples reprodução. Todos os projetos, ou mesmo a não participação

em projetos, poderiam garantir o acesso aos objetos e serviços necessários a uma vida bem vivida.

Haveria a possibilidade de não participar de um projeto, sem que isso significasse exclusão e

marginalização.

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plena e com qualidade de seus respectivos projetos. Ter e pertencer a um projeto seria

uma forma de agir no mundo, de exercer a criatividade e os laços de reciprocidade.

Seria uma forma de viabilizar que todas as pessoas sejam autores, e não apenas

executores cegos de um fim em si mesmo sem sentido. O projeto poderia ser a

ferramenta de produção de sentido. Participar de um projeto significaria saber lidar

positivamente com a liberdade, redefinindo-a como um bem precioso. O projeto poderia

substituir o trabalho forçado, o emprego sem sentido, permitindo que houvesse mais

prazer na consecução de seus objetivos. À semelhança dos projetos de trabalho que

apresentei, eles poderiam cuidar das cidades e das pessoas.

Essas proposições não se candidatam a ser delírios, mas são figuras ilustrativas

de formas alternativas de conceber a ação e o discurso. Eu não teria nenhuma condição

de propor fórmulas exatas de como superar o mercado, e não é este o objetivo deste

trabalho. Mas posso acentuar alguns elementos problemáticos que compõem o mundo

da mercadoria atualmente, baseando-me nos aprendizados que os projetos coletivos de

trabalho do Núcleo do Trabalho me ensinaram. A intenção aqui é apenas levantar alguns

pontos e provocar no leitor algum tipo de reflexão sobre sua própria relação com o

trabalho e o mercado.

SUJEITOS COLETIVOS

É interessante pensar que, apesar das novidades trazidas pelos novos integrantes

da equipe do Núcleo, agora URP, havia uma característica especial, com raríssimas

exceções, na composição da equipe do núcleo: todos eram muito autônomos e

responsáveis, criativos, batalhadores.

Éramos tão cúmplices uns dos outros, e nos víamos tanto como um grupo forte,

que até algumas contravenções cometemos juntos.

Uma delas foi quando, em meio a uma campanha eleitoral, onde se definiria se a

prefeitura manteria ou não o mesmo movimento, as mesmas políticas sociais, decidimos

participar ativamente e, alguns dias, realizar as velhas panfletagens, corpo a corpo, boca

de urna prévia, campanha enfim, como dizíamos.

Só que, certo dia, resolvemos fazer isso na manhã de um dia de trabalho. Fomos

em grupo a uma feira livre próxima à URP, e lá iniciamos a panfletagem.

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Estávamos, é verdade, em horário de trabalho, mas acreditávamos que isso se

justificava, pois sabíamos bem o que representaria uma mudança de governo contrária

ao projeto (e experimentamos esse veneno no futuro, e ele foi bem amargo, como

pudemos comprovar).

Tentando encontrar motivos que tornassem nossa atitude uma ação ética e

política, fomos em grupo à feira, junto com outros militantes de então.

Para nossa surpresa, lá encontramos, também ainda em horário de trabalho

(ainda era o final da manhã), uma das novas participantes da equipe que, por vezes,

trazia-me problemas pelo tipo de envolvimento com o trabalho.

A nova participante da equipe não estava fazendo campanha, não, estava

fazendo a feira para sua casa, possivelmente o mesmo que fazia toda a semana, já que

morava perto dali.

Não sei qual foi o maior constrangimento, se dela, por estar usando o horário de

trabalho para fazer feira, ou o nosso, que sempre procuramos ter uma postura ética e de

respeito ao nosso trabalho.

Esse fato virou anedota por um tempo, até que essa nova participante e a

equipe se integrassem mais, e pudessem afinar suas ações.

Não me arrependo de ter feito campanha em horário de trabalho. Achava que

nossa atitude era de defesa do projeto, e estava em sintonia com o projeto mais geral

que tentávamos imprimir na cidade.

É lógico que outros, inclusive o leitor, podem questionar minha conduta.

A verdade é que, após 4 anos desse episódio, quando perdemos a eleição,

surgiu com força um movimento para despotencializar os projetos e imprimir outros

interesses na gestão da prefeitura.

Com certeza, esses interesses, em boa parte econômicos, nada tinham a ver

com os loucos, ou com a população de menor renda que se beneficiava desses projetos.

Mesmo com a dita força dos movimentos populares, os governos conseguem

sim imprimir seus interesses e desmobilizar, matar de inanição, modificar

completamente as perspectivas dos projetos, inclusive assassinando alguns deles.

Foi o que aconteceu em Santos depois de 1996.

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A PROFANAÇÃO DOS IDEAIS DA ORDEM FRANCISCANA

Os franciscanos têm algo de valor a nos dizer. Seu voto de pobreza e de

serviço ao outro sempre sofreu ataques, mesmo dentro da própria igreja, que em

determinado momento soube, como as demais religiões do cristianismo, se adaptar à

religião do capitalismo, viabilizando uma interlocução entre deuses diferentes (o eterno

e o $).

O direito à propriedade, que de alguma forma, ainda que frágil, a ordem

franciscana põe em questão, foi defendido historicamente pela igreja com unhas e

dentes, sendo ela, aliás, uma grande proprietária de bens adquiridos em troca do acesso

aos céus por parte de doadores.

A crítica realizada pela ordem franciscana perdeu sua virulência no momento

em que ela se adaptou ao regime para permanecer nas filas da igreja, não transformando

em questão política aquilo que de mais interessante produziu: o acesso ao uso.

No momento em que o acesso ao uso torna-se dependente e refém das

doações dos proprietários, a ordem franciscana torna-se útil ao sistema da igreja e do

capitalismo.

Mas a imagem do uso permanece naqueles que não sucumbiram à pobreza

espiritual e criativa do mundo: uma mesa enorme, cheia de comida e de objetos

duráveis, permanece sempre forrada de coisas boas à disposição de todos, em qualquer

hora, em qualquer lugar.

A mesa é recomposta eternamente, nunca fica vazia nem suja, e é

preenchida pelo produto da criatividade de todas as pessoas, redesenhada

constantemente através do processo comunicativo desses mesmos atores que, a cada dia,

inventam cardápios diferentes e cada vez mais apetitosos.

Que me acusem de messianismo aqueles que viram na imagem o conhecido

retrato da santa ceia.

Se me acusarem, não há problemas, mas lembrem de que se trata de uma

festa eterna e, sobretudo, profana.

VIDA CRIATIVA

―Assim, o Homo faber é também o Homo mythologicus. Homo

economicus, noção nascida no século XVIII, no Ocidente, significa que

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o homem é movido por seu interesse pessoal. O que é frequentemente

verdadeiro em nossa sociedade, mas em todas as sociedades, inclusive a

nossa, existe uma parte em nós que se expressa pela dádiva e pelo jogo.

O Homo não é apenas economicus, mas é também ludens. Além disso, a

realidade humana apresenta-se para nós simultaneamente como prosaica

e poética. É prosaico tudo aquilo que fazemos por obrigação, segurança,

sem prazer. É poético o que nos projeta no amor, na fraternidade, na

comunhão, na exaltação e que pode até nos levar ao êxtase. Hoderlin

dizia que o homem habita a Terra poeticamente. Eu diria prosaica e

poeticamente. A prosa nos ajuda a sobreviver. A poesia é a verdadeira

vida‖ (Morin, 2010: 206).

É do enriquecimento da vida que trato, quando falo dos projetos de trabalho

e do Núcleo do Trabalho.

Uma nova forma de estar no mundo, patrocinada pelo Estado, patrocinada

pelo mercado, mas incessantemente propondo a transfiguração de ambos.

Uma traição para lá de salutar, se entendermos saúde como potência de vida

(Nietzsche, 1998, 2003, 2008), intensidade de criatividade, exercício de relações que

transformam as subjetividades, tornando-nos metamorfoses ambulantes.

Quando o filho bem-criado cresce, ele deve trair os pais, saindo de casa e

procurando construir uma vida só dele.

É essa traição que também dá nova vida aos pais, que devem deixar sua

condição parasitário-simbiótica para pôr em uso sua criatividade na produção de novas

formas de estar no mundo, interagindo com novos atores, novos filhos artificiais e

passageiros, novos pais, novos avós, novos bebês, novos maridos, novas noivas, novos

tudo.

Essa mistura infinita de átomos, órgãos, corpos, paisagens, sentimentos,

forma o húmus que vai adubar o mundo, criando o terreno propício às sementes da

criatividade.

De certa forma, é como dizia Basaglia (1977, 2001) com relação aos

homens e mulheres longamente institucionalizados nos hospitais psiquiátricos: ―as

contradições sociais são o húmus do processo terapêutico‖.

Estendamos essa afirmação para o conjunto dos atores sociais: o húmus da

vida é a possibilidade da criatividade compartilhada, de seu uso consequente em meio

ao mar revolto de contradições sociais.

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Reconheçamos nossa falta de saúde e de potência, nossa pobreza de espírito,

e busquemos transformar essa condição.

A institucionalização dos loucos em hospícios remete à nossa

institucionalização no globo enjaulado por uma aura destrutiva: é questão de querer

desinstitucionalizar, ou de executar o projeto de destruição do mundo que empenhamos

no advento da ―moderna sociedade produtora de mercadorias‖ (Kurz, 1993).

―o fato de os sujeitos-mercadoria ‗utilizarem-se reciprocamente para

os seus objetivos individuais‘ não é o X da questão e muito menos a

sua explicação. Antes, é a mera forma fenomênica ‗de algo diverso‘ – a

saber, do fetiche sem sujeito – que se manifesta nos sujeitos que agem.

Seus ‗objetivos individuais‘ não são o que parecem ser; segundo a sua

forma, não são objetivos individuais e voluntários, e por isso também o

conteúdo é distorcido e desemboca na autodestruição. O essencial não é

os indivíduos se utilizarem mutuamente para seus objetivos individuais,

mas sim, na medida em que parecem assim fazer, executarem em si

mesmos um objetivo totalmente diverso, supraindividual e sem sujeito:

o movimento autônomo (valorização) do capital‖ (Kurz, 1999c: 9).

E assim o mundo é destruído, a não ser que banquemos enfrentar a sociabilidade da

mercadoria.

Enfrentar os valores sob influência da forma-mercadoria significa questionar, entre

outras coisas:

A centralidade do consumo e o fenômeno da perda do caráter sensível dos

objetos (uma crítica também aos objetos que não são feitos tanto para o uso, mas para

representar uma promessa de vir-a-ser, o acesso a outra condição social);

Os processos que tornam tudo mercadoria (inclusive o homem);

A centralidade do trabalho, como a atividade que garante dignidade e

responsabilidade. Neste período de avanço das forças produtivas, já é possível ―aceitar‖

que o trabalho não pode ser a única forma de se obter dignidade ou responsabilidade

(talvez, ao contrário, ele tenha servido para aprisionar o homem a necessidades

artificiais);

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As formas de mediação das relações sociais. Outras formas de encontro entre

homens singulares podem ser inventadas, sem que sejam estas totalmente mediadas pelo

trabalho, pela mercadoria ou por instituições.

Os projetos de trabalho que apresentei, na complexidade de dimensões em que

podem ser vistos, sugerem muitas das características apresentadas acima, donde sua

potencial riqueza para nos trazer elementos novos em nossa discussão sobre as formas

de vida pelas quais optamos no decorrer da história.

É necessário que nos desinstitucionalizemos também, assim como o fizeram os

usuários e os profissionais dos serviços de saúde mental que foram tema desta pesquisa.

―Estou convencido de que os indivíduos e as sociedades detêm

igualmente um potencial gerador, regenerador e criador, mas inibido.

Em seu estado normal, as sociedades possuem suas inflexibilidades,

constrições e até mesmo escleroses que sufocam as possibilidades

criativas do indivíduo. São os artistas, músicos, poetas, escritores,

filósofos ou cientistas inovadores que revelam dons efetivamente

excepcionais na medida em que seu pensamento não pôde ser

domesticado. Mas, em cada criança, como dizia Saint-Exupéry, ‗existe

um pequeno Mozart assassinado‘. Ora, a crise favorece a expressão de

forças criativas, tanto na sociedade como em certos indivíduos. É isso

que contribui para a improvável esperança...‖ (Morin, 2010: 270).

A DEMISSÃO INCONSUMADA

Certa vez iniciou-se dentro da Secretaria de Saúde uma tentativa de classificação das

unidades de serviços, que tinha a ver com a complexidade de tais serviços.

A implantação de serviços nos anos anteriores ocorreu de forma alucinada, e via-se

a necessidade de melhor definir os tipos de serviços, o que afetaria até mesmo o valor

da remuneração dos diretores de unidade.

Essa discussão chegou aos coordenadores das unidades da saúde mental, e a

argumentação que o então coordenador do programa e ex-interventor do Anchieta trazia

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é que os NAPS, por serem unidades que funcionavam 24 h, teriam uma complexidade

maior que a de outros serviços, como a URP.

Eu não tinha dúvidas de que era muito diferente para um coordenador

responsabilizar-se por uma unidade que tinha funcionamento ininterrupto, em

comparação com uma unidade que funcionava, como a URP, no máximo 12 h por dia,

de segunda a sexta-feira, e eventualmente nos finais de semana, em virtude de

participação em eventos, o que não envolvia toda a equipe.

Mas a discussão dos níveis de complexidade me incomodava muito.

Não concordava, absolutamente, que o trabalho da URP fosse menos complexo que

o das demais.

Pelo contrário, acreditava que ambos se implicavam em construir nos territórios

possibilidades de experiências de vida aos usuários dos serviços, e que, no que diz

respeito à URP, isso era mais que claro, pois se tratava do propósito explícito de

existência da unidade.

Muitas discussões em torno do tema aconteceram, até que, num ato um pouco

melodramático, resolvi escrever uma carta ao coordenador de saúde mental

demonstrando minha indignação e sentimento de desvalorização e colocando o cargo

que ocupava à disposição.

O destinatário da carta, quando a entreguei em mãos, fez uma cara como quem

dissesse ―tenho que aguentar cada uma‖, e simplesmente ignorou a carta, deixando-a

entre seus outros papéis.

Penso que ele deva ter achado uma atitude muito imatura de minha parte, e que

tenha se segurado para não aceitar a demissão, o que seria uma forma de dizer ―assuma

seus atos e seja maduro‖.

São todas conjecturas, pois não estava na pele dele.

O fato é que a mensagem que eu emitira era muito ambígua mesmo.

Se eu quisesse mesmo sair, em vez de uma carta colocando o cargo à disposição,

teria definido minha saída nos setor de recursos humanos.

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Talvez tenha sido mesmo imaturo, se é que existe esse estado.

Pelo menos não me calei em nenhum momento com algo que considerava um

equívoco que produziria consequências negativas na relação entre os coordenadores de

unidade, e entre as unidades, já que criaria quase que uma hierarquia de valor.

O projeto não foi adiante, e não foi em virtude de meu posicionamento.

Na verdade, nem saberia dizer o motivo, mas agradeço ao desconhecido que não

permitiu que ele se concretizasse.

Obrigado, contingência38

.

AS VIAS DA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO

É isso: cultura, ciência, legislação, práxis, modos de existência, acolhimento,

ressignificação do sofrimento, descoberta de potencialidades, superação da invalidação,

tudo isso está implicado num processo de desinstitucionalização.

Mas por que tem sido tão difícil tornar realidade os processos de

desinstitucionalização, compreendendo que isso significa também retirar os internos dos

hospitais psiquiátricos e iniciar com eles novas trajetórias de construção de projetos de

vida?

Afinal, não é verdade que ainda temos cerca de 12 mil moradores de hospitais

psiquiátricos no Brasil (sendo 6 mil só no estado de São Paulo) (Barros, Bichaff, 2008)?

Que o número de residências terapêuticas implantadas nos últimos anos não ultrapassou

as 700 unidades (Brasil, 2010)? Que boa parte dos 1.500 CAPS implantados não estão

envolvidos diretamente nem se sentem responsáveis pela situação dos usuários

moradores de hospitais psiquiátricos? A que se deve tão delicada situação, que contrasta

com o aumento de serviços territoriais e das ações no campo da cultura e do trabalho?

38

―Contingente quer dizer tangente ao necessário, algo que com sua própria curva toca um determinado

ponto da direita legal, racional e repetitiva e que, ao se afastar cada vez mais dela e de sua necessidade,

parte para a aventura entre os possíveis. Nossa física e nossa biologia têm tentado explicar um mundo tão

contingente, que só pode ser revelado por meio de experimentações precisas. As arborescências

arbustiformes da existência e do conhecer correm de contingência em contingência, mundo, vida,

espécies e culturas que despontam como galhos que se afastam do tronco e dos quais cada ramo se

bifurca‖ (Serres, 2003: 121).

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Minha pequena cabeça consegue pensar em algumas possíveis causas

conhecidas, alguns elementos certamente envolvidos, e consegue pensar numa causa

desconhecida.

Vamos partir das causas aparentemente conhecidas, aquelas que nos dão

segurança por sua transparência. Em primeiro lugar, constato que muitos manicômios

estão presentes em cidades pequenas ou médias, onde acabam exercendo certa

influência política, não só porque seus proprietários alcançam certo grau importante de

status, mas porque realmente produzem certo nível considerável de empregabilidade.

Ou seja, muitas vezes, boa parte dos empregos de uma pequena cidade está localizada

no manicômio e pensar na proposta de desconstruí-lo significa ampliar os níveis de

desemprego. Tanto o prestígio político dos donos de manicômio como sua importância

econômica afastam muitos gestores locais do enfrentamento com os hospitais

psiquiátricos. Nas cidades pequenas, transformar o manicômio significa modificar

relações de poder fortemente estabelecidas, e geralmente coligadas à esfera econômica.

Nas cidades grandes, o manicômio não tem tanta importância enquanto lugar de

produção de poder, mas representa um dispositivo comum que pode ser utilizado para

reproduzir as técnicas de controle das urbes, a partir de uma concepção tecnológica que

troca a disciplina pelo abandono (Kinker, 2007). Funcionam como os abrigos e

albergues, as penitenciárias, como locais de deposição de elementos não gratos ao já

difícil e conturbado cotidiano das metrópoles.

A mudança dessa condição exigiria forte enfrentamento, a partir da força de

pressão de movimentos sociais ou de uma voluntária reorientação da Atenção em Saúde

dirigida por gestores mais comprometidos com a construção do SUS e da cidadania.

Em segundo lugar, percebo a antiga dificuldade de priorizar as questões de saúde

mental nos cotidianos de trabalho das secretarias municipais e estaduais de saúde, assim

como no próprio âmbito federal.

A insistente reivindicação de que 5% do orçamento das secretarias e demais

órgãos da saúde sejam investidos na área da saúde mental (o que a OMS preconiza)

ainda é uma utopia que necessitamos alcançar.

É verdade que os gestores têm se dado conta de que boa parte da população que

utiliza os serviços de saúde apresenta demanda por ações de saúde mental, e que isso

poderá gerar movimentos de qualificação da própria atuação dos serviços básicos, como

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as Unidades Básicas de Saúde, que precisarão qualificar sua escuta e aprimorar suas

respostas em torno das necessidades complexas de seus usuários, o que só um trabalho

focado no território e na construção de vínculos pode proporcionar.

Mas o princípio da equidade não tem sido garantido quando se releva em

segundo plano a modificação radical das instituições totais encarregadas das pessoas

com transtornos mentais graves, ou porque estas são em número reduzido perto

daqueles que têm um sofrimento leve ou moderado, ou porque não se acredita na

possibilidade de estes poderem participar das trocas sociais.

Aliás, esta vem a ser a terceira causa importante da insuficiência de processos de

desinstitucionalização desencadeados nos últimos anos.

A adaptação funcional ao modo de vida e aos valores da sociedade

contemporânea leva a maioria dos governos a agir tendo como foco a mera adaptação e

o fortalecimento do sistema social vigente, sem que em nenhum momento se questione

o caráter destrutivo de nosso tão desejado desenvolvimento econômico e social.

Bom é aquele cidadão que trabalha sem alarde para a produção de mais-valia,

que intensifica e potencializa o consumo e que se transforma em máquina mesmo

quando descansa: uma máquina de produzir capital, mesmo nas horas de lazer, quando a

indústria do entretenimento ou do turismo o encapsulam.

A quarta e última causa, porque minha pequena mente não consegue avançar

sem a contribuição das demais, diz respeito à dificuldade de transformar os paradigmas

hierárquicos das instituições, a visão coorporativa e reducionista dos profissionais, a

falta de motivação e de utopias atual (onde não vale a pena fazer nada porque

assumimos nossa condição de máquinas com vida útil determinada), o

nãoquestionamento e a naturalização da violência (ora, se é natural que os operários

sejam máquinas tais quais as que operam, desde os tempos do fordismo, por que não

seria natural a existência de refugos para as máquinas insuficientes como é o

manicômio?).

A falta de sentido da existência, mesmo num contexto de devir e contingência

em que os sentidos são produzidos e reorientados a todo o momento, também é parte

dessa quarta causa.

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Vamos agora para a causa desconhecida. Desconhecida porque, a meu ver, os

atores sociais nem de longe imaginam que isso faz algum sentido ou que seria um tipo

de problema.

A causa desconhecida tem a ver com a identidade.

Sim, nossa necessidade de uma identidade fixa e ilusoriamente imutável tem

sido responsável por grande parte de nossa irresponsabilidade.

É irresponsável nosso ato de descartar todo e qualquer desvio, assim como nossa

incapacidade de perceber novas capacidades nos usuários dos serviços de saúde mental

e em nós mesmos, nossa incapacidade de ver como pouco natural e histórica a

permanência de instituições de destruição total como os manicômios, os asilos, e até as

prisões.

Nossa incapacidade de pensar que os asilos só existem porque os velhos são

desvalorizados e não podem mais produzir (e as famílias não têm tempo nem dinheiro

para cuidar deles, para contratar ajuda, porque estão a serviço do trabalho), que os

manicômios e as prisões só existiram na história porque era necessário criar dispositivos

que garantissem a consolidação de padrões de vida que girassem em torno do trabalho

assalariado (o trabalho como o conhecemos é também uma invenção histórica, e não

algo natural), nossa cegueira para perceber que os cegos enxergam, os loucos têm razão,

os deficientes são os mais capazes, os animais às vezes parecem pensar e sentir mais do

que nós, porque têm tempo para isso.

A desinstitucionalização, essa é a causa desconhecida, é nada mais que ―cair na

real‖, perceber que a realidade é complexa e que a produzimos de forma pobre com

nossa imaginação, que nosso papel de profissionais não poderia ser mais pobre,

exatamente porque se acha tão munido de conhecimentos miseráveis, que colocamos os

usuários no lugar daqueles que nada sabem e que são apenas os depositários de nosso

suposto saber, que a loucura é algo do outro mundo e não vivência radical de relações e

laços que a todos nós pertence.

Sim, somos loucos, cheios de vida e de sofrimento, e de morte também, a nos

esconder de nós mesmos quando dizemos que o sofrimento psíquico é apenas uma

patologia, e nada tem a ver com um mundo em que as relações de poder produzem

sentido, realidade, saber.

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A causa desconhecida é o empobrecimento da existência, a falta de crítica de

que devemos proceder constantemente à desconstrução de nós mesmos, de nossas

mentalidades pálidas, para construir de forma incessante um mundo colorido, dolorido e

gostoso.

Basaglia estava certo ao dizer que ―viver dialeticamente as contradições do real

é, assim, o aspecto terapêutico de nosso trabalho‖ (Basaglia, 2001: 118). É isso, o

processo terapêutico só tem eficácia se produz transformações nos usuários dos

serviços, nos profissionais, e nos demais atores sociais, a partir da vivência das

contradições sociais, sem se limitar a escondê-las e eliminá-las, para nos garantir uma

vida asséptica e tranquila, porém pobre. Será que temos tanta dificuldade de perceber

isso, e tornar explicável essa causa desconhecida?

Não, não é difícil desinstitucionalizar.

É fácil e prazeroso, porque o mesmo que acontece com os internos acontece com

os profissionais.

Só precisamos quebrar nossos muros internos e nos despojar para a aventura.

Todos nós podemos nos libertar de nossas fortes amarras, jogar fora nossa

identidade petrificada e caminhar na direção de nosso próprio enriquecimento, e do

enriquecimento do mundo.

A desinstitucionalização dos internos de hospital psiquiátrico e a desconstrução

do manicômio passam pela desinstitucionalização de nós mesmos.

A desinstitucionalização de nós mesmos é produtora de novas formas de

sociabilidade, porque somos auto-eco-organizados (Morin, 1996), porque nosso bem-

estar depende do bem-estar dos outros (Spinoza, 2009), nossa liberdade depende da

liberdade dos outros. Somos singulares, mas somos os outros também. Somos a

natureza também. Por que esse esforço tão grande para nos diferenciar dos loucos,

atribuindo-lhes uma condição tão especial? Somos abandonados como o são os loucos

moradores de hospital psiquiátrico, abandonados por nós mesmos.

Poderemos atribuir outra forma de cuidado mais digna aos velhos, aos loucos e

às pessoas com deficiência quando mudarmos a forma como utilizamos o tempo e nos

movimentamos no espaço. Quando não mais estivermos imbuídos e engolidos pela

engrenagem do mercado, poderemos utilizar o tempo para cuidar dos nossos velhos em

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nossas casas, com o apoio de outras pessoas, e poderemos circular com o louco pelos

quatro cantos do mundo, produzindo vida. Para isso, é importante que reformulemos os

conceitos de capacidade e incapacidade, de maneira a descobrir novas potencialidades

nos usuários dos serviços e em nós mesmos. É por se trabalhar com os conceitos de

capacidade formulados com o advento da modernização que muitos gestores,

representando as demandas sociais, não intervêm nas condições das pessoas há muito

institucionalizadas em instituições totais. Não se acredita nas possibilidades dessas

pessoas poderem participar das trocas sociais, porque não se questiona a forma como

atualmente se desenvolvem essas trocas. É comum que os gestores locais de saúde

ignorem a situação dos internos em hospitais psiquiátricos, pessoas sem poder de

intervenção e pressão, que geralmente nem votam. É necessário que os movimentos

sociais pressionem pelo enfrentamento com os hospitais psiquiátricos, mas é necessário

também que eles façam alianças com outros grupos que estão questionando as atuais

formas de sociabilidade. É importante que se faça veicular socialmente a mensagem da

necessidade de transformação dos hospitais, mas de uma forma que a crítica ultrapasse a

falta de infraestrutura ou a precariedade do atendimento por eles oferecido. É preciso

trazer para mais perto da crítica ao manicômio a crítica às formas de sociabilidade, para

que as pessoas percebam que estão implicadas diretamente com essas questões,

inclusive reproduzindo manicômios em suas casas, e em todos os espaços das cidades. É

preciso produzir uma potente crítica ao trabalho para que todas as exclusões interligadas

ao seu modo de existência sejam questionadas. É preciso também estabelecer estratégias

que aproximem de outra forma os profissionais de saúde mental dos contextos concretos

de vida dos usuários dos serviços. Isso porque a forma atual de aproximação se encontra

muito marcada pela noção de doença e por um estranhamento que afasta e que sublinha

apenas o não saber o que fazer para cuidar. É preciso que este não saber saia do campo

da impotência e da paralisia para se tornar desafio positivo de construção de novos

caminhos, porque os caminhos não estão dados, e o não saber deve deixar de assustar.

Ao optar pela aproximação dos contextos concretos de vida e pelo encontro face a face

com os usuários, os profissionais irão descobrir novos caminhos também para si, vão

poder ressignificar a prática profissional e a própria vida, pois estarão abertos para

novas descobertas. A insegurança da prática profissional tem a ver com nosso contexto

contemporâneo que é um misto de sociedade de controle com sociedade da

desregulamentação, ou melhor, sociedade do controle através da desregulamentação. É

difícil para todos saber mover-se nas areias movediças dos percursos que se nos

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apresentam no cotidiano. Isso assusta a todos, e fragiliza nossa disponibilidade de

mergulhar no contexto de vida dos usuários.

A desinstitucionalização, do meu ponto de vista, implica todos esses desafios.

É difícil desinstitucionalizar?

NEM TUDO SÃO FLORES

Havia também as reuniões mensais do projeto, que reuniam todos os

trabalhadores dos serviços de saúde mental. Reuniões de estudo, de discussão, de

produção de sentido coletivo ao projeto.

E havia, como já mencionei, as reuniões de integrantes da equipe da URP com

os NAPS.

Mas nem tudo era só alegria, flores e concordância.

Também existiam momentos tensos entre as equipes da URP e do NAPS, devido

ao entendimento diverso do processo de alguns usuários dos projetos de trabalho etc.

Como disse antes, produzíamos mecanismos conjuntos para viabilizar o acesso

dos usuários aos projetos: esquemas de visitas para conhecimento dos projetos,

discussões da história de vida dos usuários (como forma de pensar em propostas que

fizessem sentido), definição coletiva de quem ocuparia as vagas, quando estas fossem

em número menor que as necessidades (o que frequentemente ocorria).

E é claro que mecanismos conjuntos estão sujeitos a concordâncias e

discordâncias, a negociações principalmente.

Às vezes tínhamos dificuldade com a inserção de alguns usuários, e as equipes

dos NAPS nos questionavam.

Às vezes, achávamos que as equipes dos NAPS propunham inserções de

usuários em projetos destoantes e momentos inadequados.

Às vezes, precisávamos modificar completamente a estratégia de inserção dos

usuários, e isso envolvia a participação de todos os atores.

Enfim, era um processo dinâmico de negociação que exigia de todos muita

tolerância, o que não é fácil de se conseguir quando todos estão envolvidos em tensões,

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com a necessidade de dar respostas a desafios muitas vezes superiores à nossa

capacidade etc.

Mas acho que o saldo foi muito positivo, tanto que os profissionais que ficaram

nas gestões que se seguiram, hoje é fato, lembram com muito carinho e muitas vezes

com espanto o que conseguimos todos fazer naquela época.

Quando as energias se misturam, o inacreditável torna-se uma realidade comum.

A POBREZA DAS DISCIPLINAS ACADÊMICAS

As profissões da área da saúde, e da área da saúde mental em particular, tiveram

sua existência decretada por necessidades sociais.

No caso da psiquiatria, vimos como os processos de normalização e de produção

de corpos dóceis (Foucault, 2000, 2005; Ewald, 1993) convocaram-na para dar conta

das cabeças alienadas.

Depois de certo tempo, as instituições, as profissões e as disciplinas acadêmicas

passam a ter uma existência própria, separadas dos objetos para as quais foram criadas.

As instituições existem para si mesmas, as profissões com o fim de se reproduzir, e as

disciplinas acadêmicas para produzir cada vez uma quantidade maior de conhecimentos

pobres e sem sentido, que legitimem a existência e a necessidade das instituições e das

profissões, e a sua própria.

Cada um desses âmbitos vive para si. É por isso que a discussão da

complexidade e da interdisciplinaridade é tão difícil, porque seu movimento faz retornar

por instantes o temor da perda de identidade, o temor de se desmascarar a serventia de

cada dispositivo.

Ultrapassar as fronteiras das disciplinas é um primeiro passo para se produzir

fenômenos complexos, ou para se acessar a complexidade do real.

A possibilidade de dialogar com os fenômenos, superando o filtro de cada

disciplina que só ouve e enxerga o que aprendeu, numa eterna repetição, já é um

começo para a complexidade.

Abertura dinâmica, ativa, mas também passiva. O maior sinal da transformação

dos usuários dos serviços de saúde mental é a transformação dos próprios profissionais.

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Se estes se mantêm petrificados, não tocados, não confusos e não violados em seu papel

de poder, isso pode ser um sinal de que os usuários não se transformaram, que estão

repetindo o mesmo percurso.

Se os profissionais ficam apenas no diálogo com suas disciplinas, encontrando

nos usuários apenas o receptáculo desse diálogo (samba de uma nota só, minimalismo

de um acorde e um só ritmo), estão prestando um desserviço aos usuários e a eles

próprios.

É comum ouvir-se: ―este paciente está cronificado‖; ―Não, este é tão grave que

não tem perfil para viver numa residência terapêutica e deve permanecer no

manicômio!‖. Frases que são a expressão da cronificação dos profissionais, de sua

dificuldade de viver sem o manicômio.

Porque não é o paciente que tem que se adaptar à instituição, mas a instituição,

suas disciplinas e profissões é que devem buscar responder às necessidades dos

usuários, garantindo seu direito de viver em liberdade.

Esse viver em liberdade, que é a precondição de qualquer processo terapêutico,

exige formas múltiplas de mediação e de assunção de riscos.

Ultrapassar as fronteiras das disciplinas é enriquecê-las, é dar um sentido à

existência.

Para isso, há que se resgatar o sentido positivo da palavra transgressão,

permitindo que os intelectuais se posicionem como agentes de mudança, como

verdadeiros contemporâneos (Agambén, 2009), aqueles que sentem a estranheza de seu

tempo, sem se render às regras fáceis, que os fazem ser aceitos socialmente nas cátedras

dominantes, ao mesmo tempo que estéreis.

Certa dose de coragem e ousadia é necessária ao intelectual, para que ele não

sucumba ao mesmo e ao único (Dyson, 2009; Sontag, 2008; Said, 2005).

EQUIPE A-DISCIPLINAR

A equipe da URP tinha mais ou menos a seguinte composição, considerando que

nem todos os momentos foram iguais: 2 psicólogos, 3 terapeutas ocupacionais, 2

assistentes sociais, 2 auxiliares de enfermagem, 3 monitores de ofício, 1 artista plástico,

1 acompanhante terapêutico (que era psicólogo de formação), 2 auxiliares

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administrativos, 2 auxiliares de limpeza, 1 médico que nos ajudou durante alguns meses

na constituição da cooperativa. Somados a essa equipe, que formava a URP,

participavam dos projetos atores tão diferentes como os engenheiros agrônomos e os

jardineiros do Horto Municipal; os administradores e alguns operários da Prodesan na

usina de reciclagem do Projeto Lixo Limpo; engenheiros civis, operários e

administradores da Cohab tanto na Fábrica de Blocos como no Projeto de construção

civil do Dique; administradores da Secretaria do Abastecimento (que nos colocavam

em contato com fornecedores de mel para ser comercializado nas feiras livres);

administradores da CSTC no projeto de manutenção predial e na cessão de um box no

terminal de ônibus para a comercialização dos produtos artesanais e alimentícios;

sanitaristas e agentes da vigilância sanitária que treinaram os usuários na desinfecção de

caixas d‘água; um artista-marceneiro que nos apoiou na constituição da marcenaria;

biólogos que nos ajudaram no abortado projeto de fitoterapia; os advogados e os

membros de uma cooperativa popular que nos ajudaram na discussão de constituição da

cooperativa Paratodos; os administradores da Sehig que nos apoiaram no investimento

de recursos materiais para os projetos, e tantos outros atores que certamente devo estar

esquecendo. Valeria lembrar de todos aqueles que usufruíram dos produtos e serviços

dos usuários, fossem as empresas privadas que contrataram a manutenção das praças do

Projeto Terra, os consumidores individuais dos produtos artesanais e alimentícios, e dos

serviços de marcenaria, as instituições que contrataram os serviços de jardinagem (Sesc,

Clube Portuguesa Santista, faculdades), e aqueles que nos cederam espaços pra

exposição dos produtos em eventos etc. Todos esses, muito mais que consumidores,

tornaram-se parceiros na construção de projetos de transformação da cidade.

A participação dos profissionais da URP nos projetos de trabalho se dava a partir

de suas habilidades pessoais adquiridas na história de vida e na história profissional.

Desta forma, não se atuava tendo como horizonte ou referência a profissão ou a

disciplina em que eram formados. Contraditoriamente, todos tinham a mesma função e

faziam a mesma coisa, e todos faziam coisas singulares que apenas a eles pertenciam.

Se a inserção dos usuários não se dava a partir de seu diagnóstico, prognóstico ou de seu

grau de autonomia, mas de sua biografia, desejo, possibilidades, a participação dos

profissionais na coordenação dos projetos não se dava por sua especialidade, por sua

disciplina, mas por sua singularidade. Havia então certa coerência no andamento do

processo. A abertura para novas possibilidades e o exercício de potencialidades era o

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ponto de partida desses processos, e por isso é que eles eram transformadores. O

encontro dos profissionais com os usuários e com os novos cenários de atuação, o

encontro dos usuários com os novos contextos de atuação (muito diferente de contextos

típicos de serviços de saúde), exigiam certo deslocamento dos papéis e das identidades,

fossem profissionais, fossem das identidades de pacientes. Para os profissionais, a arte

do encontro exigia suspender um pouco os paradigmas, colocando os conhecimentos e

as teorias como que num cabide, para que fosse utilizado aos poucos a partir das

necessidades surgidas no encontro com os usuários. A combinação de conhecimentos

diversos, de técnicas novas e inusitadas permitia que dominássemos os conhecimentos,

ao invés de sermos dominados por eles. Essa era a forma de sermos a-disciplinares.

AUTO-ECO-ORGANIZAÇÃO

―Heinz Von Foster, em um breve e magistral texto publicado em 1968,

On self-organizing systems and their organization, havia assinalado

desde o início o paradoxo da auto-organização: ‗a auto-organização

significa obviamente autonomia, mas um sistema auto-organizador é

um sistema que deve trabalhar para construir e reconstruir sua

autonomia e que, portanto, dilapida energia‘. Em virtude do segundo

princípio da termodinâmica, é necessário que este sistema extraia

energia do exterior; isto é, para ser autônomo, é necessário depender do

mundo externo. E sabemos, pelo que podemos observar, que esta

dependência não é só energética, mas também informativa, pois o ser

vivo extrai informação do mundo exterior a fim de organizar seu

comportamento‖ (Morin, 1996: 46).

É por isso que Morin usa o termo auto-eco-organização, pensando desde os seres

unicelulares até os humanos, pois a auto-organização, a autonomia, é dependente.

Há ainda a recursividade, ou seja, aquilo que produzimos, os efeitos, agem

novamente sobre nós, as causas, produzindo um ciclo em anel de infinitas

transformações.

―Pois desde o momento em que a palavra, mesmo não pronunciada,

abre uma primeira brecha, o mundo e os outros infiltram-se por todos os

lados, a consciência é inundada pela torrente de significações, que vem,

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se assim podemos dizer, não do exterior e sim do interior. Somente pelo

mundo é que podemos pensar o mundo‖ (Castoriadis, 2007: 128).

.

As dependências não param por aí, mas adentram as dimensões afetivas,

cognitivas, físicas, bioquímicas, linguísticas, culturais.

A comunicação é então um elo do ser humano com o mundo, e consigo mesmo.

Quando estamos abertos, o que fazemos por uma questão de sobrevivência,

podemos produzir subjetividades coletivas, ultrapassando nossas múltiplas

personalidades, em busca de formações inéditas.

―Há pouco, se descobriu que há uma comunicação entre as árvores de

uma mesma espécie. Numa experiência realizada por cientistas sádicos

(como convém que seja um cientista pesquisador, não é certo?), foram

retiradas todas as folhas de uma árvore, para ver como se comportava.

A árvore reagiu de um modo previsível, ou seja, começou a segregar

seiva mais intensamente, para repor, o mais rápido possível, as folhas

que lhe haviam tirado. E também segregou uma substância que a

protege contra parasitas. A árvore havia compreendido muito bem que

um parasita a havia atacado, só que acreditava, coitada, que se tratasse

de um inseto. Não sabia que era o maior dos predadores, o ser humano.

Mas o que é interessante é que as árvores vizinhas da mesma espécie

começaram a segregar a mesma substância antiparasitária que a árvore

agredida segregava‖ (Morin,1996: 52).

Se as árvores se comunicam, digamos que somos especialistas nisso, embora

muitas vezes estejamos mais surdos que as árvores. Nem sempre utilizamos nossas

potencialidades, o que muitas vezes exige esforço.

Para, por exemplo, estabelecer um diálogo com os usuários dos serviços de

saúde mental, exige-se um ouvido extremamente aberto, e livre dos paradigmas que

simplificam nossa audição, levando-nos a escutar apenas o que consideramos

inteligível. O diálogo então passa para outras dimensões, questionando os papéis, as

hierarquias, os valores. É então que sou um pouco louco e o doente normal, todos os

dois humildes diante da complexidade fenomenal da realidade.

O fluxo de mutações que advém desse diálogo é a produção/reprodução

recursiva do mundo, da sociedade, da existência. Transformar o sofrimento, nessa

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perspectiva, é transformar o mundo. O contexto social sofre mutações e assim,

recursivamente, o louco sofre modificações. O louco sofre modificações e, ao mesmo

tempo, o mundo social e físico sofre mutações.

Os profissionais, com sua escuta do louco e do mundo, sofrem mutações, pois o

aprendizado implica também mudanças subjetivas, corporais, celulares. É a auto-eco-

organização tomando corpo, produzindo corpos, produzindo sujeitos.

Não é preciso mais treinar eternamente os loucos para que um dia eles possam

trabalhar, o que sempre foi a ilusão nutrida pela laborterapia. Muda-se o contexto,

produzem-se as mediações, muda-se o louco, trabalha-se, produz-se vida.

Muitas vezes também não se trabalha, pois o trabalho não pode ser visto como a

via única da existência. Ele, o trabalho, pertence ao registro empobrecedor da

mercadoria, e à predominância do valor de troca. Só vale trabalhar se for para

desconstruir o trabalho, produzindo vida, nomeando de outro jeito essa ação de

produzir.

Por sorte, embora às vezes nos passe despercebido, cada vez temos mais

chances de alcançar as condições de eliminar o trabalho. A evolução da microeletrônica,

assentada no paradigma cartesiano da tecnociência, nos levará à possibilidade de tornar

a existência rica e complexa, da mesma forma que a insuficiência da lógica dedutivo-

identitária, com seus avanços surpreendentes, nos está levando para uma ciência mais

complexa.

―O sujeito em questão não é pois o momento abstrato da subjetividade

filosófica, ele é o sujeito efetivo totalmente penetrado pelo mundo e

pelos outros. O Eu da autonomia não é Si absoluto, mônada que limpa e

lustra sua superfície êxtero-interna a fim de eliminar as impurezas

trazidas pelo contato com o outro; é a instância ativa e lúcida que

reorganiza constantemente os conteúdos utilizando-se desses mesmos

conteúdos, que produz com um material e em função de necessidades e

de ideias elas próprias compostas do que ela já encontrou antes e do que

ela própria produziu‖ (Castoriadis, 2007: 128).

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EXODARWINISMO E TOTIPOTÊNCIA

―O corpo em movimento federa os sentidos e os unifica no tempo e no

espaço. Corriqueira no cotidiano da cultura, essa pluralidade de

movimentos, êxtases, desejos e frustrações encontra-se ausente na

maior parte dos saberes científicos. Aprendemos a valorizar o trabalho

produtivo, acadêmico ou não, em detrimento das performances

musculares, passionais, amorosas, como se elas constituíssem um

produto descartável que atrapalha a objetividade e a pseudoneutralidade

do sujeito do conhecimento. É mais do que óbvio que, no futuro, a

religação das aparelhagens do corpo e dos comandos da mente terá que

ser posta em prática‖ (Carvalho, 2008: 27).

O termo exodarwinismo é utilizado por Serres (2003), para descrever a condição

de ultrapassagem dos mecanismos da evolução de prisma darwinista.

Instrumentos simples como os martelos imitam de forma mais eficiente o

antebraço, o punho e a mão, alguns seres marinhos excretam uma carapaça que faz as

vezes de esqueleto externo, e os computadores imitam certos mecanismos de nosso

cérebro.

Esse mecanismo de ultrapassagem produziu uma situação em que somos capazes

de fazer quase tudo, embora não sejamos, como humanos, os únicos que se superam e

transformam: a natureza, a matéria inerte, também o faz, e não mais se submete a ser

considerada um objeto: agimos sobre ela e ela age sobre nós, numa recursividade

própria de um mundo onde matéria e ideia se interpenetram, se auto e interproduzem.

Mas os produtos de nossa técnica, todas as formas de instrumentos com os quais

transformamos a natureza e a nós mesmos, não se enquadram exclusivamente nas

motivações e objetivos para os quais foram criados.

Como na ação de Arendt, os caminhos de nossas criações se bifurcam

infinitamente, não são totalmente previsíveis, e os instrumentos podem ser utilizados

sob formas e para ações as mais diversas.

Essa é a riqueza da contingência da vida, que supera qualquer tentativa de

aprisionamento, de formatação.

É por isso que precisamos aprender a navegar nas contingências da vida, com

prudência e atenção, produzindo sentidos perenes e sendo produzidos por eles.

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Com nossas bifurcações, caminhamos do caule ao ramo, do formato à novidade

inesperada (Serres, 2008).

Não devemos prescindir do formato, nem do pai, mas, como filhos que

subvertem a ordem trazendo o novo, podemos fazer dialogar o declarativo (aquilo que

vem da base imutável da certeza e do positivismo) e o procedural (aquilo que navega na

contingência) (Serres, 2008), o molar (a grande estrutura fixa) e o molecular (o

microespaço que se atualiza no devir) (Deleuze, 1998), produzindo desvios,

desterritorializações e reterritorializações (Deleuze e Guattari, 1997, 2004).

Com nossa condição totipotente, que vive num mundo pouco controlável de

contingências ininterruptas, podemos acabar com a noção de propriedade e construir a

imensa mesa que oferecerá os produtos de nossa criação e os da natureza para o uso

comum.

Haveremos de superar a divisão sujeito-objeto, ser vivo-matéria inerte, homem-

mundo, natureza-cultura, ciência-arte-religião, compartilhando nossas partículas, que

são singulares, mas também comuns, e que nos fazem primos das mesas.

Perceberemos que a matéria inerte também pensa e age, mas à sua maneira.

Inventaremos outro significado para o termo riqueza: esta será a multiplicidade de

nossas possibilidades, a sublime e bela curva de nossas bifurcações, nossa mutação que

nos faz desmanchar no mundo.

Como diz Serres (2008), o não pertencimento (a um território, a um país, a uma

raça, a uma família) pode ser um ato criativo e criador, sublevando as identidades

aprisionantes.

SAUDADES DA EQUIPE

Foi muito bom trabalhar com vocês.

Não era só trabalhar, é verdade, pois nossa experiência como que formatou as

várias dimensões de nossas vidas, se expandindo até ser o principal motor que nos

movia no mundo, transformando-nos.

Foi um processo composto basicamente por aprendizados.

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Descobrimos o mundo juntos, e nossa energia fez parir muitas palavras, ações,

gestos, sentimentos, emoções, pensamentos.

Na verdade, construímos o mundo juntos, como uma obra de arte,

cuidadosamente tecida com o melhor de nossos dons.

Respeitamo-nos como cada um costuma fazer consigo mesmo. Transformamo-

nos uns nos outros, como que a forjar um ser em permanente mutação.

Quero compartilhar a alegria de mostrar uma fotografia nossa neste texto que

acabo de escrever.

Sinto-me escrevendo por nós, e não escrevendo individualmente. É a mesma

sensação que sentia quando trabalhávamos juntos.

Vejam só, mesmo velhos, alguns sentimentos nascem novinhos em folha, como

se os estivéssemos vivendo pela primeira vez.

Agradeço pelo que nos ensinamos juntos, e sei que continuamos aprendendo

muito por aí, cada qual no seu caminho.

Vocês estão nos meus sonhos!

PARTINDO PARA O ANOITECER

Neste capítulo procurei definir melhor os elementos que seriam constitutivos de

uma nova forma de sociabilidade, construída a partir da crítica à sociabilidade associada

ao trabalho e à mercadoria. Avancei no sentido de vincular a constituição dessa nova

forma de sociabilidade ao desafio de desconstrução do paradigma psiquiátrico e ao

desenvolvimento dos processos de desinstitucionalização, que exigem uma nova forma

de relacionamento com a experiência do sofrimento psíquico.

Procurarei, na conclusão, apresentar um resumo dos temas discutidos durante

todo o trabalho e apontar algumas das principais questões levantadas acerca dos projetos

de trabalho e das possibilidades de constituição das novas formas de sociabilidade.

A conclusão, seguindo os parâmetros que estabeleci, seria o próprio anoitecer, o

final de um percurso que aguarda o desafio do dia seguinte, quando o sol nascerá

lentamente trazendo novos desafios.

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CONCLUSÃO

―Sem mudança de sentido, não há sentido. [...]

Eu existo significa: eu me inquieto. Inquieto-me, logo existo [...]A

inquietude produz minha energia e a força de meu espírito; ela conta

meu tempo e me impulsiona. Invenção e mutação brotam dela. Alguma

novidade surgirá no meu tempo, sem que eu me sinta alarmado por ela?

Que perigo imprevisível será capaz de me arrancar da cama nesta

manhã?‖ (Serres, 2008: 135; 141).

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CONCLUSÃO

Este trabalho teve como objetivo realizar uma reflexão crítica sobre as formas de

sociabilidade criadas em torno do trabalho e da mercadoria, utilizando como estratégia o

relato da experiência dos projetos de trabalho desenvolvidos com os usuários do

Programa de Saúde Mental de Santos, no período entre 1989 e 1996.

Minha opção por relatar uma experiência vivida se deu por pelo menos dois

motivos:

1) porque, como dizia Basaglia, ―a experiência é o máximo da teoria‖ e, desta

forma, é salutar poder superar a barreira que separa em dimensões diferentes a prática e

a teoria, o sujeito e o objeto, a natureza e a cultura, a ciência e as humanidades. O modo

cartesiano de fazer ciência expulsou o observador do contexto da pesquisa e, desta

forma, negou a influência que a pesquisa sofre deste último, criando a ilusão de um

campo de pesquisa totalmente asséptico e simples, orientado por relações de causa e

efeito. Coloquei-me como sujeito e objeto na pesquisa, e acredito que ela pôde tornar-se

mais fiel aos elementos que compõem o fenômeno estudado;

2) porque, como uma experiência que tenta subverter a forma tradicional da

psiquiatria lidar com a questão do trabalho, criticando a normalização e os próprios

elementos que fizeram parte da gênese do paradigma psiquiátrico, o objeto desta

pesquisa traz questionamentos capazes de enriquecer a crítica que se faz à sociabilidade

do trabalho. A pesquisa trata de uma experiência de trabalho diferente das tradicionais

maneiras de conceber o trabalho na psiquiatria, que entendem essas práticas como puro

instrumento terapêutico, ou estágio da vida social que se obtém quando se alcança uma

questionável cura. O paradigma é outro, o objetivo é outro e, por isso, consegue estar

mais próximo de uma crítica ao mundo do trabalho, aquele de que todos nós fazemos

parte desde que nos entendemos por gente.

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A HISTÓRICA ARTICULAÇÃO ENTRE O TRABALHO E A PSIQUIATRIA

Utilizando fragmentos que relatavam momentos da experiência dos projetos de

trabalho, entrecortados e articulados com fragmentos que traziam a gênese do trabalho

na modernidade e reflexões sobre a sociabilidade do trabalho, a pesquisa deslizou pelos

interstícios das relações entre trabalho e psiquiatria, trazendo à tona a questão da

laborterapia.

Vimos que a ideia de utilizar o trabalho como terapia surgiu com o advento da

psiquiatria, tendo como grandes artífices os alienistas europeus do século XIX. Estava

por certo articulada à consolidação de uma nova forma de existência centrada no

trabalho assalariado, fruto de um processo de desenraizamento das populações

campesinas contemporâneo à revolução industrial. Sua vocação assumiu peculiaridades,

embora estivesse em sintonia com as propostas de consolidação do trabalho nas diversas

instituições da sociedade disciplinar (Foucault, 2000, 2005), como as fábricas, as vilas

operárias, as escolas, as prisões. Posteriormente, a influência moral do trabalho

manteve sua força, embora outros elementos vinculados à visão organicista da doença

mental ganhassem força. Foi o que ocorreu com o ressurgimento do tratamento moral

em algumas experiências europeias no início do século XX, bem como nas grandes

colônias de alienados brasileiras, e mesmo em algumas experiências de reforma de

hospitais do pós-guerra.

CARACTERÍSTICAS DOS PROJETOS DE TRABALHO

Localizada no espaço-tempo da reforma psiquiátrica brasileira, a experiência de

Santos assumiu características próprias e inventou novas estratégias, influenciada pela

reforma psiquiátrica italiana.

Algumas de suas características permitiram que ela levasse a cabo a

desconstrução do paradigma psiquiátrico, reinventando as formas de cuidado,

trabalhando com as contradições sociais.

Eis que essa desconstrução se configurou como um processo dinâmico de

desconstrução de saberes, práticas, valores, modos de existência (Nicácio, 1994, 2003;

Kinoshita, 1996, Rotelli et al., 1990), partindo da realidade dos usuários internados no

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hospital psiquiátrico, de seus desejos, necessidades, possibilidades, contingências. Esse

processo de desconstrução, mutação e constante construção, na perspectiva que aqui fui

construindo, é comumente chamado de desinstitucionalização (Rotelli et al., 1990), e se

diferencia da noção de desospitalização colocada em prática por alguns países no

período do pós-guerra como uma medida puramente administrativa, que manteve

intacto o paradigma psiquiátrico (id., ibid.).

Os projetos de trabalho desenvolvidos juntos aos usuários dos serviços de saúde

mental faziam parte orgânica da experiência de desconstrução do paradigma

psiquiátrico, sendo desenvolvidos em sintonia com as ações territoriais dos 5 NAPS.

Faço um resumo das principais características dos projetos de trabalho, que

podem ser encontradas diluídas no corpo desta pesquisa:

Trabalho desenvolvido coletivamente, como forma de potencializar a

aventura de ocupar o mundo, produzir crítica sobre as contradições

sociais, descobrir potencialidades forjadas a partir de relações de

cooperação e reciprocidade;

Estabelecimento de parcerias e alianças com setores externos à área da

saúde mental, começando pelas secretarias municipais, e ampliando para

empresas privadas, instituições não lucrativas (clubes, Sesc etc.),

viabilizando novos diálogos e fortalecendo a presença no mundo do

trabalho. A constituição de alianças implicava também o envolvimento

direto de profissionais de áreas diversas externas à saúde mental na

coordenação e no desenvolvimento dos projetos, como forma de

qualificar o trabalho e de ampliar a rede social, potencializar o projeto,

sua presença concreta e suas mensagens;

Grande enfoque em projetos de intervenção na cidade, de forma a emitir

a mensagem de que, mais do que possibilitar a participação no mundo do

trabalho, o objetivo era desenvolver ações que melhorassem a qualidade

de vida da cidade, produzissem vida, cuidassem das pessoas (Lixo

Limpo, Terra, Caixas d‘água, Fábrica de Blocos, Dique etc.);

Desenvolvimento de atividades diversificadas, para possibilitar a

experimentação dos usuários, abrir possibilidades, permitir novas

descobertas, descobrir novas formas de se fazer as coisas, com a ideia de

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que sempre haverá lugar para todos, desde que o trabalho lhes seja algo

importante;

Multiplicação das estratégias de mediação, modificando os contextos de

trabalho, possibilitando que mesmo usuários muito graves possam ser os

protagonistas do processo;

Participação efetiva no mercado, com qualidade, tentando superar a ideia

de que se trata de terapia e que, por isso, a relação com o mercado é

frágil e ilusória (é de ―faz de conta‖). Esta participação estava associada

a um permanente processo de crítica ao mercado e aos seus mecanismos,

contribuindo para a desconstrução deste, por dentro. A ampliação dos

rendimentos econômicos que a participação do mercado possibilitava

estava imbricada ao processo de produção de vida, de novos

conhecimentos, relações, enfim, novas existências individuais e formas

de sociabilidade;

Ocupação de múltiplos e diversos espaços da cidade, como forma de

repropor o convívio dos habitantes da cidade com as pessoas que têm

uma existência-sofrimento (Rotelli, 1990), e como ocupação concreta da

cidade pelas pessoas com sofrimento psíquico grave;

Escolha da cooperativa como figura jurídica a representar os usuários na

aventura de adentrar o mercado.

Essas características que deram vida aos projetos nasceram de dentro do

Anchieta e fora dele foram crescendo, em cooperação com os dispositivos de mediação

construídos por todas as unidades da rede de saúde mental, utilizando como combustível

o rico processo de desconstrução do hospital, que produziu cumplicidades, viabilizou

possibilidades, criou capacidades.

Tais características se diferenciavam das tradicionais práticas laborterápicas nos

seguintes pontos:

Pela proposta e possibilidade de circular por dentro e por fora do

mercado, numa linha tênue que nunca poderia explodir. Esse trânsito

significava criar situações reais de trabalho e inocular transformações no

mercado, ao invés de ocupar uma posição subalterna e alienante comum

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nas práticas laborterápicas que se apoiam na invalidação, na

incapacidade e na suposta ausência de capacidades de seus usuários para

exercer os direitos civis;

Pela negação dos processos de normalização e adaptação realizados

através do adestramento de comportamentos esperados e do treino de

hábitos de trabalho. O que se buscava era questionar as formas

estandardizadas e padronizadas de se fazer as coisas e de se relacionar,

geralmente de forma subalterna e sem questionar as normas;

Pela produção de lugares potencializadores de capacidades, que exigiam

modificações negociadas entre todas as partes, usuários, profissionais de

saúde mental e contextos, produzindo lugares ao mesmo tempo

acolhedores e desafiadores. O exercício do diálogo entre as

potencialidades/possibilidades dos usuários e as

potencialidades/possibilidades dos contextos-ambientes era uma forma

de escapar às formas limitadas, empobrecidas e invalidadoras dos

contextos laborterápicos;

Pela negação da exploração econômica e da invalidação comuns nas

práticas das oficinas protegidas;

Pela forma singular de envolver outros atores externos ao campo de

saúde mental. Nas práticas laborterápicas, os atores externos (fossem

empresários a contratar os serviços dos usuários, fossem monitores de

ofício) eram inseridos através do paradigma da anormalidade e da

incapacidade e, por isso, viam-se participando de projetos beneficentes

que manteriam os usuários nas mesmas condições de subalternidade e

invalidação. Nas práticas dos projetos de trabalho, os atores envolvidos

eram levados a um tipo de relação que lhes possibilitava modificar o

olhar sobre os fenômenos e sofrer eles mesmos, assim, transformações na

forma de ver o mundo e de lidar com a vida. Essas mudanças nas

relações de poder/saber é que produziam transformações;

Pela busca constante da qualidade dos bens e dos serviços produzidos,

através de estratégias singulares de produção e da participação de

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especialistas e profissionais externos à área de saúde mental. Essa busca

por qualidade, que permite a relação real com o mercado, ultrapassa a

ideia de que pessoas em desvantagem social só podem fabricar artigos

para bazares de instituições filantrópicas, que serão adquiridos como

forma de ajuda e não por necessidade daqueles que usarão os produtos

(além de a renda obtida ser utilizada para a manutenção da instituição,

configurando-se também uma situação de exploração);

Pela negação da nosografia psiquiátrica como fator determinante para a

inserção nos projetos de trabalho, trocando-a pela biografia dos usuários,

por suas expectativas e desejos, bem como por suas possibilidades;

Pelo fato de os projetos de trabalho se constituírem como alternativas

reais para a reprodução da vida dos usuários na cidade, dando-lhes

condições de pagarem do próprio bolso suas despesas com moradia,

alimentação, vestuário etc., de modo que eles dependam das instituições

de outra forma (dependam de seu apoio para enfrentar o desafio

prazeroso de viver livremente nas cidades, em meio às contradições

sociais);

Pela superação, através de um processo cotidiano de mediação na

descoberta de potencialidades e na produção de autonomia, das noções

estanques de espaço de tratamento, espaço de reabilitação, espaço de

vida, exercício de direitos. O trabalho conjunto entre os NAPS e a URP

possibilitava essa mediação nos contextos concretos da vida, sendo o

trabalho um deles. O trabalho não seria mais, como nas práticas

laborterápicas, o lugar e momento da reabilitação, posterior ao

tratamento e próximo à cura, pois não se lidava tendo como referência a

doença, mas a existência-sofrimento em sua relação com o corpo social

(Rotelli, 1990). Além disso, não se exigia a manutenção dos usuários em

eterno treinamento para uma futura e impossível inserção no mercado,

mas se trabalhava com a perspectiva de transformar os contextos de

trabalho, sendo a inserção não o resultado das mudanças obtidas com o

tratamento, mas a própria condição de se conseguir transformações

subjetivas e concretas;

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Pela opção de que os projetos de trabalho fossem ferramentas e processos

envolvidos na desconstrução do paradigma psiquiátrico tradicional e do

manicômio, e não ferramentas funcionais que a todo momento

reforçassem a necessidade do hospital psiquiátrico, como o são as

práticas laborterápicas;

Pela multiplicação e abertura dos espaços de realização do trabalho, em

contraposição à limitação e ao fechamento de espaços propiciados pelas

práticas laborterápicas. Essa abertura de espaços repropõe a todo o

momento o convívio, a troca e o reconhecimento dos diferentes atores, e

utiliza como estratégia o desenvolvimento de atividades que possam

tornar a cidade mais agradável e saudável. Em outras palavras, os

projetos de trabalho não são apenas de trabalho, mas projetos de

intervenção cultural e de produção de novas mensagens ao imaginário

social;

Pelo fato de os projetos se basearem no protagonismo e no exercício de

poder dos usuários, buscando a constituição da cooperativa como

representação jurídica no mercado. Essa opção, por certo, exigiu

enfrentar as noções jurídicas de incapacidade civil atribuídas aos

usuários, e nas quais se fundamentaram historicamente a psiquiatria e

suas práticas laborterápicas.

PRODUÇÃO DE NOVAS FORMAS DE SOCIABILIDADE E ASSOCIABILIDADES

Entremeadas às características dos projetos, e ao relato de experiências com os

usuários nos contextos de trabalho, pude realizar uma série de reflexões e críticas acerca

da sociabilidade do trabalho e da mercadoria.

A mercadoria que nos tornamos, através do valor de troca e do fetiche que o

sustenta, tornou-se algo sem vida, enfraqueceu nossas potencialidades, multiplicidades,

complexidades, deslizando numa virtualidade sem sentido ou projetualidade.

Nada a ver com uma contingência rica, produtora de sentidos efêmeros, mas que

sabe navegar com prudência no barco da vida.

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Entregamos nosso devir a um fantasma chamado mercado que, como um

mandarim, exige que nos foquemos na ordem limitada, no formato que vislumbra a

prisão mais apertada.

Para que a existência seja enriquecida, torna-se necessário criticar nossa forma

atual de sociabilidade e produzir novas formas de estar no mundo.

Durante esta pesquisa levantei uma série de questões que, do meu ponto de vista,

estão imbricadas na possível emergência de novas formas de sociabilidade. Faço agora

uma síntese das principais, de modo a construir um mapa conceitual que tente desenhar

figura e fundo, elemento e contexto, uma espécie de rizoma do que poderiam ser essas

formas emergentes:

1) Complexidade: a complexidade dos fenômenos exige que tentemos superar uma

racionalidade fechada, constituída pelo modo cartesiano de ver o mundo:

disjunção, fragmentação, simplificação, expulsão das partes irracionalizáveis dos

fenômenos, expulsão do sujeito do conhecimento, separação sujeito-objeto,

ilusória neutralidade do observador, assepsia na produção do conhecimento,

construção da realidade a partir da representação, da elaboração de uma

fotografia da realidade, como se esta não fosse coproduzida por nossas projeções

(Morin, 2010). A construção de tal realidade ultrapassa o campo da ciência, já

que o paradigma define certas atitudes e formas de se enxergar a vida e de lidar

com ela. A produção de sociabilidades submetidas à mercadoria, e de um modo

de vida encapsulado pelo trabalho, articula-se com esta visão simplista e

especializada que operou disjunções em nosso modo de vida. A tecnociência não

operou apenas no campo da produção, mas influenciou as formas de circulação

dos afetos, as relações sociais, os conceitos de eficiência, capacidade,

normalidade. Produzir novas formas de sociabilidade implica trabalhar com o

conceito de complexidade, em todos os âmbitos da vida, a fim de enriquecer os

processos dos quais ela é composta. Significa dialogar também com o irracional,

a-racional e sobre-racional, (Morin, 2010a) de maneira a ampliar o olhar para as

possibilidades do mundo, encontrando novas formas de existência que produzam

vida, intensidade de vida, e não plasmem todas as potencialidades humanas.

Uma razão aberta é necessária para viabilizar uma dialogia essencial aos

processos de construção de um mundo enriquecido.

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2) Experiência: no sentido de experimentar novas formas de sociabilidade, o

encontro imprevisível entre os atores sociais se coloca como condição e

estratégia. Encontro como exercício de uma passividade (anterior à separação

tradicional entre atividade e passividade), que nos faça viver a experiência do

inusitado e que nos toque e afete, servindo como efetivo aprendizado (Bondiá

2002). A incapacidade atual de se viver uma experiência diz respeito à pura

contemplação e subsunção às formas já prontas e plasmadas de produção de

verdades e de relações entre pessoas. Uma sociabilidade emergente e diferente

requer a abertura essencial para a percepção do mundo e para o diálogo entre os

elementos que o compõem. O conceito de troca deve superar sua limitação aos

processos econômicos. Ele pode ser enriquecido com o conceito de experiência,

experiência como troca, contaminação e mistura entre seres diferentes.

3) Cotidiano: é no cotidiano que se dão as relações. Nele é que os detalhes podem

representar os processos mais amplos. O cotidiano não precisa ser um conjunto

de repetições e de tautologias. Ele pode ser o lugar de produção de sentido (Pais

2003). As pequenas e despercebidas ações compõem nossa sociabilidade, e é

nesse conjunto cotidiano de ações que se podem transformar as formas de se

relacionar com as pessoas, os objetos, a natureza. A construção de uma

multiplicidade de formas de estar no mundo depende de se valorizar as

transformações nos espaços e tempos cotidianos, onde se encontram a riqueza de

possibilidades da vida. Um tipo diferente de relações entre pessoas, objetos e

natureza é uma construção cotidiana, nos espaços e tempos cotidianos.

4) Ação: o conceito de ação muitas vezes tem se limitado à atividade como

trabalho. Enriquecer a noção de ação é entender o homem como alguém que se

autoconstrói em sua relação com o mundo. Os seres vivos são autônomos e esta

autonomia depende das relações com o mundo (Castoriadis, 2007). A auto-eco-

organização (Morin, 1996) sugere isso: que só podemos ser autônomos em

contínua relação com o que está fora de nós. Essa permeabilidade é a própria

ação, e é ela que nos transforma em seres vivos. E a ação não tem previsão,

sabemos como ela começa, mas nunca sabemos como termina (Arendt, 2001). A

atividade dos seres é então algo muito mais amplo que a entrega e a subsunção

ao trabalho, embora este, através do mercado, tente englobar a totalidade da

existência. O enriquecimento da noção de ação e a desconstrução da noção de

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trabalho servem assim como uma referência importante para a construção de

novas formas de sociabilidade que enriqueçam a vida.

5) Crítica ao processo de hominização: a crítica que Kafka (1999) faz em seu

conto sobre o macaco Simão parece não se dirigir apenas à academia, mas aos

caminhos estreitos que escolhemos durante o processo de hominização. É

possível que esse empobrecimento tenha nos acompanhado durante o

desenvolvimento da humanidade, tendo sua expressão mais caricatural a partir

da modernidade, quando fomos aprisionados pelo fetiche empobrecedor da

mercadoria. A criatividade do autor é uma vacina importante contra esse

embrutecimento: sua capacidade criativa e a forma como nos faz rir de nós

mesmos produz uma vontade de mudança. A produção do homem requer esse

processo com dupla característica: crítico e criativo. Talvez sem perceber, ao

exercer tal crítica, estaremos construindo novos parâmetros e formas de estar no

mundo.

6) Crítica à laborterapia: no percurso deste trabalho, a palavra laborterapia apareceu

muitas vezes. Ela surge com a constituição da própria psiquiatria, embora não

fosse nomeada dessa forma. A psiquiatria constituiu-se como um importante

instrumento da sociabilidade do trabalho, desde o seu início, e a ela está atrelada

de forma cada vez mais abusiva, basta ver a multiplicação dos códigos da

nosografia. Desconstruir o paradigma psiquiátrico remete, desse modo, à

desconstrução da sociabilidade do trabalho e, portanto, à desconstrução do

mercado e da mercadoria. Quis apontar essas diferenças desde o início para que

fique claro que a proposta dos projetos coletivos de trabalho não é uma

atualização da terapia pelo trabalho. O que se quer questionar é muito mais do

que uma técnica específica que utiliza a questão do trabalho em práticas de

cuidado. O que se quer questionar é a própria noção de cuidado, de terapêutico,

que constitui o paradigma psiquiátrico. O cuidar, nessa perspectiva, está

indissociado do processo de construção de novas formas de sociabilidade. É por

isso que o termo ―projetos de trabalho‖ ganha forte conotação, e que é utilizado

no lugar de termos como oficina, grupo terapêutico, ergo ou laborterapia. O

termo projeto indica o protagonismo e a projetualidade que caracterizam

qualquer processo de transformação. Desconstruir o paradigma psiquiátrico faz

parte da estratégia de construção de novas formas de sociabilidade.

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7) Eticamente juntos: utilizei, além do conceito de auto-eco-organização (Morin

1996), a ideia spinoziana de que, para se ter autonomia, se depende sempre dos

outros, de que, quando se busca o que é de máxima utilidade para si, são todos,

então, de máxima utilidade uns para os outros (Spinoza, 2009). Essa ideia

reforça a oportunidade de se construir sujeitos coletivos, que possam, em

sincronia, desenvolver projetos capazes de garantir bem-estar e liberdade para

todos no uso de suas capacidades criativas. Essa é uma das ideias que a noção de

projetos coletivos proporciona: um organizar-se coletivamente em busca de que

os diversos grupos possam beneficiar-se uns aos outros. Projetos como lugar de

pertencimento e inserção no mundo, cujo objetivo é cuidar de pessoas; pessoas

que cuidam de pessoas, projetos que cuidam de outros projetos, uma forma de

multiplicar sociabilidades.

8) Trocar o consumo pelo uso: na discussão sobre o consumo, utilizei a ideia de

que, no âmbito da moderna sociedade produtora de mercadorias, o consumo

impossibilita o uso (Agambén, 2007). Isso porque, nas ondas fetichistas da

mercadoria, o consumo se impõe como relação na esfera do sagrado. O uso só é

possível através da profanação desse sagrado. E é essa profanação que nos faz

perceber a necessidade de superar a noção de mercadoria, dando aos objetos o

estatuto de elementos que podem estabelecer uma nova relação com os homens,

através do uso. A reciprocidade entre sujeito-objeto, através da recuperação da

qualidade sensível das coisas, supera a situação atual em que as mercadorias,

através do processo fantasmático do fetiche, representam a dominação do

mercado sobre os homens. Uma nova relação com os objetos produzidos e com

a natureza é desejável, para fazer frente ao processo destrutivo que promete no

futuro novas catástrofes ambientais e a possibilidade de zerar todos os processos

evolutivos, deixando o planeta Terra tão inabitável para os humanos quando de

seu surgimento.

9) Fortalecer as redes paralelas ao mercado: apesar da crítica que fiz ao fato de as

redes paralelas serem mais transversais que paralelas, já que de alguma forma

participam e dialogam com o mercado, considero que elas são fundamentais para

a construção gradual de redes efetivamente substitutivas ao mercado, muito mais

que paralelas. A possibilidade de um relacionamento ético e recíproco entre os

grupos de homens, através da produção de objetos e de serviços, ao invés de

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mercadorias, remete à importância de se estabelecerem mecanismos de

comunicação e de troca que prescindam das instituições que funcionam apenas

vinculadas à lógica do mercado ou do Estado. Não estou sugerindo a

proliferação de instituições da sociedade civil, como as do terceiro setor, mas a

constituição de formas diretas de relacionamento entre os homens (Kurz, 1999b,

Arendt, 2001) e, nesse sentido, a noção de projetos novamente vem à cena.

Projetos como coletivos que visam ao cuidado de outros coletivos. A noção e a

prática do projeto podem substituir a noção de trabalho e de emprego, de filiação

(como se dá na questão das igrejas, dos partidos, dos clubes). Participar de um

projeto que cuide de pessoas (seja prestando serviços, mensagens, ou oferecendo

objetos de qualidade para o uso), ou de vários projetos, significa não se submeter

a uma identidade fixa e exclusiva, mas navegar pela maior parte dos espaços

proibidos e privados, no sentido de enriquecer a existência. Lidar com

singularidades e não com identidades. A proposta dos projetos coletivos de

trabalho do Núcleo de Trabalho representa uma contribuição daqueles que

estiveram muito tempo invalidados e institucionalizados em manicômios, para a

constituição de um mundo com novas características, em especial através da

noção de projetos. Desinstitucionalizar o paradigma psiquiátrico significa

desinstitucionalizar o mercado, e a nós mesmos, produzindo outros sujeitos.

Nesse sentido, assim como algumas experiências de desconstrução do

paradigma psiquiátrico, como é o caso de Santos, se iniciaram no interior dos

hospitais psiquiátricos, penso que a desinstitucionalização do mercado passa

pela desconstrução de seus aparatos internos, de sua forma peculiar de funcionar

e existir. É por isso que, nos projetos de trabalho, sempre optamos por nos

relacionar direta e efetivamente com atores do mercado, dispensando as

carapaças e meios de fabricar uma falsa relação, como é o caso das oficinas

protegidas.

10) Metamorfoses: Como afirmei acima, um dos passos fundamentais para a

desinstitucionalização é a desconstrução dos pertencimentos eternos e das

identidades fixas. A superação da identidade exige que não nos limitemos às

formas de pertencimento. Tudo bem, pertenço sim, mas não apenas a isso ou

àquilo, pertenço a tudo, e esse é o sentido da totalidade e da liberdade. Como

pertenço a tudo, posso circular por todo o mundo, por todos os poros do mundo,

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visitando e sendo visitado, nadando no mar e sendo nadado por ele; nessa hora,

nos misturamos e somos um só (ver a primeira epígrafe deste trabalho, página

1). Uma vez que posso circular pelo mundo, posso me transformar

incessantemente, em direção à multiplicidade e à riqueza. É esse o sentido da

metamorfose. É enriquecer a sociabilidade, superar a identidade, superar a

mercadoria. Deixar a contingência invadir meu corpo significa mudar e, com

prudência, ir encontrando e produzindo sentidos. Já se comprovou que em pouco

tempo 100% das células de nosso corpo são novas, totalmente novas, não sou

mais eu mesmo, aquele do passado. No entanto, sou eu, o ser pluricelular.

Misturar-me com o mundo só pode me fazer bem, uma vez que esta é a viagem

da vida. Uma razão aberta deve considerar que nossa subjetividade é composta

de múltiplas identidades. Na verdade, nós somos os outros e singulares ao

mesmo tempo, e é aqui que reside o rico paradoxo. Somos muitos, e não só

pessoas, mas temos o cosmos, a natureza, os elementos da Terra correndo em

nosso sangue. A sinfonia da vida é esse circular de múltiplas identidades, onde

somos também terra, pedra, gente, música, pensamento, sonho, mar, peixe e uma

infinidade de criaturas. Se conseguirmos exercer a razão aberta, seremos muito

mais sociáveis, estaremos construindo uma sociabilidade que escapa por

completo do registro da mercadoria, e assim seremos obras de arte,

metamorfoseantes.

CHEGANDO AO FINAL

A sociabilidade vem desses contatos imediatos de graus diversos, ela exige

múltiplas estratégias de comunicação.

Construir sociabilidades significa construir mundos e culturas, construir sujeitos

coletivos, que se associam para se auto-inter-transformar.

Essa relação totalmente sexual entre seres vivos, seres vivos e inertes, mundos, é

o que podemos chamar de sociabilidade.

Muito diferente da sociabilidade da mercadoria, que nos obriga a dormir para

melhor trabalhar e consumir, acordemos para viver o pesadelo que o sonho da noite

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anterior tentou desencantar. Ou seja, quando dormimos vivemos na realidade e quando

estamos acordados vivemos o pesadelo.

O dinheiro é nossa alma e vida, e ele é tão poderoso que só conseguimos trocá-lo

por valores de troca, não conseguimos consumi-lo ele próprio. Afinal, diz-se que nem

louco rasga dinheiro, e isso é um sinal de que até os loucos, mesmo em crise, estão

submetidos à ordem fetichista e autoritária da mãe mercadoria.

Uma nova forma de sociabilidade, entre outras coisas, exige trocar o consumo

pelo uso, a troca pelo usufruto, pela criação, pela metamorfose, pela produção de vida.

É pela sociabilidade rica que precisamos resgatar as coisas para o uso. Já

afirmei, no corpo do texto, que riqueza aqui não quer dizer dinheiro, mas vida jorrando

pelas veias, um derrame que não se deixa conter porque sua vontade de se dissipar e de

se misturar ao mundo vence todos os obstáculos. O sangue esvai, se mistura com o

mundo, construindo um sangue-mundo, um mundo colorido.

Esta pesquisa se encerra tendo como intenção provocar o desejo de um novo

mundo, como foi o mundo que começamos a construir em Santos naqueles idos de

1989.

Estas provocações interessarão aos leitores, ou será o meu destino o mesmo dos

historicamente incompreendidos doentes mentais?

Isso quem vai responder é você.

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