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    a selva

    ferreira de castro

    guimares editores

    digitalizao e arranjo

    agostinho costa

    ferreira de castro o escritor portugus mais traduzido noestrangeiro e o romancista mais conhecido na vasta comunidadeonde se fala a lingua portuguesa. alguns dos seus romances retratam um brasil apaixonante,misterioso e revelador, outros penetram no hmus portugus e

    outros ainda ocupam-se dos problemas trgicos de um mundodilacerado !ue procura descobrir a sua verdade. o !uedescobrimos, porm, em !ual!uer dos romances de ferreira decastro a mesma profunda paixo pelo destino do homem, o seuapego a uma verdade fundamental !ue se alicera na con!uistade um ideal de liberdade humana no poss"vel pensar noromance portugus deste meio sculo sem, de imediato, nosreferirmos a ferreira de castro como precursor doneo-realismo, ao seu nome e # sua obra, de tal modo nos surgemcomo essenciais para a pes!uisa do !uotidiano.

    obras de ferreira de castro

    em portugal$

    a selva eternidade terra fria pe!uenos mundos %& vols' a tempestade a volta ao mundo %( vols' a l e a neve a curva da estrada

    a misso o instinto supremo as maravilhas art"sticas do mundo os fragmentos os emigrantes a selva

    ferreira de castro

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    a selva

    guimares e companhia editores

    barcelos

    impresso em )*+

    a diana de liz

    uma sensao de profunda melancolia !ue se apodera do

    esp"rito, nos adverte de !ue estamos dentro das mais densassolides do mundo. no alto amazonas, principalmente, dominaesse amargo sentimento !ue obriga a alma a dobrar-se sobre simesma. tavares bastos - vale do amazonas, )/.

    ser forado a descer na!uele horror, mesmo !ue se aterreinc0lune, ficar onde se desceu e morrer sepultado nasombra. - de pinedo.

    realmente a amaz0nia a ltima pgina, ainda a escrever-se, do gnesis. - euclides da cunha.

    eu devia este livro a essa majestade verde, soberba eenigmtica, !ue a selva amaz0nica, pelo muito !ue nela sofridurante os primeiros anos da minha adolescncia e pela coragem!ue me deu para o resto da vida. e devia-o, sobretudo, aosan0nimos desbravadores, !ue viriam a ser meus companheiros,meus irmos, gente humilde !ue me antecedeu ou acompanhou nabrenha, gente sem cr0nica definitiva, !ue # extraco daborracha entregava a sua fone, a sua liberdade e a suaexistncia. devia-lhes este livro, !ue constitui um pe!uenocap"tulo da obra !ue h-de registar a tremenda caminhada dos

    deserdados atravs dos sculos, em busca de po e de justia. a luta dos cearenses e maranhenses nas florestas da amaz0nia uma epopeia de !ue no aju"za !uem, no resto do mundo, sedeixa conduzir, veloz e comodamente, num autom0vel com rodasde borracha - da borracha !ue esses homens, humildementeher0icos, tiram # selva misteriosa e implacvel.

    ferreira de castro

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    pe!uena hist0ria da selva

    foi # uma hora da noite, a noite densa, !uente e hmida de&/ de outubro de )*)1, !ue parti do seringal onde decorre este

    livro, l longe, nas margens escalavradas do madeira, !uenenhuma estrela, ento, alumiava. nos dois barraces e trs cabanas !ue constituiam os nicosabrigos humanos na!uele rasgo da floresta, aberto como umtrio, # beira do rio, os habitantes eram poucos e !uase todosdormiam. apenas dois adolescentes como eu, sonhando tambm comos horizontes !ue sab"amos existirem para alm da selva, aomesmo tempo desejados e temidos, vieram a bordo despedir-se demim. o sapucaia apitou, recolheu a prancha e comeou a afastar-sedo grande barranco, !ue trs inolvidveis palmeiras, altas egarbosas, padroavam e se viam de largo, nobres !ue nempropileus e representativas como um braso do seringal.

    uma s0 luz ardia em terra$ a do farol !ue iluminava osdegraus de acesso # varanda do barraco maioral, esse farol!ue eu, durante anos, fora encarregado de acender, de apagar ede limpar dos insectos !ue sobre ele morriam ao longo dasnoites tropicais. ainda disse adeus com um leno, mas ningum me respondeu -recorda-me o velho papel onde fixei a lpis, pouco tempodepois, a emoo dessa segunda aventura, maior e mais incerta

    -)/-

    ainda da !ue a primeira, duma esistncia sonhadora edescuidada. a luz do farol ia diminuindo ao longe, pe!uena, esttica, umponto nico e vermelho na noite da floresta - um ponto finalna minha vida ali. na terceira classe, aberta dos lados, !uase ao rs da gua,!ue vinha da proa num rumor de !ueixa, os outros passageiros,como os habitantes do seringal, dormiam tambm. debruado na amurada, de corao opresso, demorei-me a ver onavio distanciar-se, avanando para a curva do rio, essa curva!ue, !uando o sol nascia, dava ao grande curso l"!uido, com atnue neblina do seu pr0prio bafo, o aspecto brumoso dum lagoao despertar. eu tinha, ento, dezasseis anos, e dos !uatro !ue passara

    ali, no houve um s0 dia em !ue no desejasse evadir-me para acidade, libertar-me da selva, tomar um barco e fugir, fugir de!ual!uer forma, mas fugir2 e agora !ue a aspirao se realizava, !ue a cadeia abria assuas portas, !ue os dementados ramos das rvores deixavam dese emaranhar sobre o meu destino, eu partia desejando ficar,por!ue dias antes, justamente !uando fora despedir-me dos seuspais, l nas profundidades da mata, # beira do lago-au,havia-me apaixonado pela nica rapariga !ue existia, como umbrinde inveros"mil, em toda a enorme extenso do seringal.

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    assim, da minha longa estada ali, trazia apenas, como saldo,esse novo conflito sentimental, doloroso e cheio deperplexidades, como o das paixes na adolescncia, e umpobre sa!ue de cin!uenta mil ris sobre uma casa de manaus. 3certo !ue levava tambm, no fundo do ba, o manuscrito dumromance ingnuo !ue escrevinhara dois anos antes4 na cabea umtropel de ideias para outros !ue nunca cheguei a redigir e, na

    carne e no sangue, este roteiro do drama social dos cearensese maranhenses, do meu pr0prio drama, !ue tanta influncia iater na minha vida de escritor4 mas eu, nessa noite, descendo orio metido em trevas, no podia saber !ue isso aconteceria.

    -)*-

    ao chegar a belm do par, mais carregado de sonho literriodo !ue o barco vinha de borracha, o homem !ue se dizia meuprotector e se havia oposto a !ue eu sa"sse do madeira,desejoso de no se preocupar mais comigo, !uis enviar-me de

    novo para um seringal. eram todas as minhas aspiraes !ueca"am, to indefesas como os frutos ainda verdes !ue osgarotos, perto dali, faziam tombar, # pedrada, das belasmangueiras !ue ornamentavam as praas de belm. decidiresistir, primeiro com a humildade !ue a minha me merecomendara antes de eu partir para o brasil4 logo, com aspalavras s0brias e dignas !ue a pr0pria dureza da vida meensinara, !uando ele, da cabeceira da mesa onde almovamos,me gritou, todo vermelho de c0lera, !ue no estava para mesustentar mais tempo. e, assim, de repente, me encontrei semtecto e sem po na cidade onde no conhecia praticamenteningum. foi esse momento to extraordinariamentegrave para o meuesp"rito, !ue desde ento no passa uma nica semana sem eusonhar !ue regresso # selva, ap0s a evaso frustrada, e sevolta, de cabea baixa e braos ca"dos, a um pres"dio. e!uando o terr"vel pesadelo me faz acordar, cheio de aflio,tenho de acender a luz e de olhar o !uarto at me convencer de!ue sonho apenas, - eu !ue, nos derradeiros tempos, tantodesejo retornar # selva, para a ver um ltimo dia e dela medespedir para sempre. foi tambm por isso, talvez, !ue durante muitos anos tivemedo de reviv-la literariamente. medo de reabrir, com a pena,as minhas feridas, como os homens l avivavam, com pe!uenosmachados, no mistrio da grande floresta, as chagas dasseringueiras. um medo frio, !ue inda hoje sinto, !uando amigose at desconhecidos me incitam a escrever mem0rias, uma nica

    confisso, uma esistncia exposta ao sol, !ue eu pr0prio julgoseria til #s juventudes !ue se encontrassem em situaesidnticas #s !ue vivi.

    -&5-

    esse velho terror dominou-me sempre !ue tentei aproximar-meda selva nos meus primeiros livros4 e das poucas vezes !ue o

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    fiz, para eles colhi apenas alguns ramos marginais, nunca indoalm do passeante distra"do !ue estende o brao e, sem parar,arranca a folha do arbusto erguido # beira do seu caminho.havia tambm em mim, nesse tempo, uma in!uietao esttica,incerta e pes!uisadora como lanterna errando em longosubterr6neo4 uma 6nsia de singularidade impelindo-me paraoutras direces e impondo-me outros assuntos, !ue eram, na

    sua essncia, bem mais pueris, bem mais superficiais do !ueeste, como verifi!uei depois. enfim, !uinze anos vividos tormentosamente sobre a noite em!ue abandonei o seringal para"so, pude sentar-me # mesa detrabalho para comear este livro. tudo parecia j clarificadono meu esp"rito, a s"ntese dir-se-ia feita e os pormenoresinteis retidos, como sedimentos, no grande filtro !ue amem0ria emprega para no se sobrecarregar. a selva foi escrita de * de abril a &* de novembro de )*&*.director do magazine civilizao, !ue me atarefava o melhor dodia, redactor de o sculo, colaborador de j no sei !uantaspublicaes, para viver tinha de trabalhar imenso,dispersando-me constantemente em mil ninharias literrias4 e

    ao meu pobre livro, nico isento de obrigao, s0 podiaoferecer um tempo escasso. era das seis e meia #s oito danoite, depois de haver estendido num div, durante algunsminutos, a fadiga trazida, como um fato de chumbo, do magazinee do jornal, !ue me embrenhava na amaz0nia. e nem todos osdias, por!ue a vida tinha ainda mais exigncias e outras vezeseu regressava a casa to esausto, to saturado de papel

    -&)-

    em branco e de papel impresso, !ue me faltava disposio,frescura e foras para retomar a minha pena. em junho, de novo interrompi a selva, desta vez no poralguns dias, mas por dois meses e sem desgosto algum, com umprazer todo febril e exultante. ia, finalmente, como enviadode o sculo, consumar um dos maiores desejos de todos !ue sededicam #s letras e #s artes, !ual!uer !ue seja, a latitude em!ue habitem$ trilhar, pela primeira vez, a frana, o velhopa"s literrio !ue se incrusta no nosso esp"rito desde os anosinfantis e parece ser no um trecho do mundo, mas o pr0priomundo concentrado num sonho para !uem vive longe e nunca oviu. o meu livro, deixado em embrio, nas sombras duma gaveta,bem pouco representava em face da!uela alegria. estas sucessivas interrupes, geralmente to prejudiciaisaos romancistas, por!ue os foram a reler, antes de

    recomearem, todas as pginas j escritas4 a dar uma atenomais firme a pormenores !ue j haviam es!uecido e, sobretudo,a reentrarem na atmosfera abandonada, !ue nem sempre seentrega com a felicidade anterior, tinham, todavia, umavantagem para mim. a vantagem de me libertar, por algum tempo,da atmosfera do livro, do passado !ue ressuscitava e setornava presente com uma vitalidade angustiosa, pois se verdade !ue neste romance a intriga tantas vezes se afasta daminha vida, no menos verdadeiro tambm !ue a fico se tecesobre um fundo vivido dramaticamente pelo seu autor. tanto,

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    tanto, !ue algumas noites suspendia bruscamente o trabalho, s0por no poder suportar mais o clima !ue eu pr0prio criara. nesse tempo, eu habitava o primeiro andar duma casita da ruatenente espanca, !uase isolada num bairro em construo, cheiode poeira no estio, de covas e lama no inverno, com montes depedras, de tijolos e de t#buas dificultando-me os passos eesse aspecto das coisas ca0ticas, arestosas e provis0rias !ue

    sempre feriram a minha sensibilidade. como as vizinhas,

    -&&-

    a pe!uena casa no dispunha ainda de gua, nem de luz e, porisso mesmo, era mais barata4 mas as duas janelas !ue ladeavama sacada prometiam ser agradveis no futuro4 se eu tivessetanta resignao para esperar como tinha falta de dinheiro.assim, a maior parte desta obra foi escrita # luz difusa dumcandeeiro de petr0leo, como se eu a escrevesse realmente naselva, numa dessas barracas perdidas nas imensas solides,

    onde da electricidade, como elemento de progresso e deconforto, havia apenas a not"cia de !ue ela existia, mas emlugares mais felizes, longe, muito longe dali. finalmente, na!uela noite de &* de novembro de )*&*, setemeses depois de o haver principiado, tracei a ltima palavrado romance, conforme me certifica o manuscrito onde meti adata e !ue est de novo, j um pouco t"mido e amarelecido, naminha frente. um manuscrito sem nenhum aparato, folhas devrios formatos, sobras de circulares duma escolaautomobil"stica, !ue no sei como me vieram parar #s mos, amim !ue nunca me interessei por autom0veis, restos de papel dediferentes !ualidades, !ue a minha pobreza aproveitou comofaria um avarento. to fatigado me sentia por essa nova fuso com a vida dosseringais, to doloroso me fora beber, na transposioliterria, do meu pr0prio sangue, !ue, na mesma noite em !ueconclu" o livro, disse a diana de liz !ue no voltaria,durante muito tempo, a escrever romances. ela no acreditou.talvez eu pr0prio no acreditasse firmemente. talvez a!uilofosse apenas uma forma, embora profunda e sincera, detran!uilizar o meu cansao de momento. e, contudo, durantedois anos, longos e negros como !uando o tempo no era medido,deixei, efectivamente, de escrever romances, seno por mim,por ela pr0pria, pela nova dor !ue tombara no meu esp"rito,muito mais forte, muito mais violenta do !ue a outra e do !uetodas as outras !ue eu j sofrera e havia de sofrerfuturamente.

    -&(-

    a selva. foi publicada em princ"pios de maio de )*(5, andavaeu, de novo como enviado de o sculo, em viagem pelos aores.fraga lamares, meu editor e meu amigo, enviara-me do portodois ou trs ezemplares, brochados pressa, antes de eu

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    partir. no constitu"a, porm, uma alegria esse !ue eu levavacomigo, todo vistoso na sua capa, sobre a mesita do camarote.era um tear de apreenses e tanto, #s vezes, me in!uietavav-lo, tanto ele ensombrava a luz cromtica e fresca das ilhasaonde aportvamos, !ue acabei por escond-lo nas trevas dumamaleta.

    eu temia, sobretudo, !ue o livro se tornasse fasti diosopelas suas longas descries da floresta, esse era, entremuitos outros, um problema esttico !ue desde o princ"pio medeixara sempre insatisfeito. as selvas, fechassem elas o seu mistrio nas vastidessul-americanas ou verdejassem, mais permeveis # luz solar, na7sia, na 7frica, na oce6nia, representavam, desde h muito, umassunto maculado literariamente. maculado por milhentosromances de aventuras, onde a imaginao dos seus autores,para lisonjear os leitores fceis, se permitira todas asinverosimilhanas, todas as incongruncias. eu pretendera fugir # regra. pretendera realizar um livro deargumento muito simples, to poss"vel, to natural, !ue no se

    sentisse mesmo o argumento. um livro mon0tono porventura, seno pudesse dar-lhe colorido e vibrao, mas honesto, onde opr0prio cenrio, em vez de nos impelir para o sonhoaventuroso, nos induzisse ao exame e, mais do !ue um grandepano de fundo, fosse uma personagem de primeiro plano, viva econtradit0ria, ao mesmo tempo admirvel e tem"vel, como so asde carne, sangue e osso. a selva, os homens !ue nela viviam, oseu drama interdependente, uma plena autenticidade e nenhumefeito fcil - era essa a minha ambio.

    -&1-

    no desdobrar duma greve, com alvorotadas marchas, rbidosestandartes, gritos, muitos gestos e protestos, um operriolanava a sua bomba em belm do par. e, fugindo #s buscaspoliciais, ocultava-se, hoje a!ui, amanh ali, ao saborin!uieto das circunst6ncias, na cidade cuja luxuriantearborizao exalava uma poesia forte, verde e clida, mas detodo indiferente ao homem perseguido4 depois, corajosasfraternidades davam-lhe a mo e ele evadia-se para o interiorda amaz0nia, para a floresta virgem. assim comeava a selva.mas estas movimentadas cenas pareceram-me ainda demasiadoromanescas para a obra !ue eu desejava fazer. e, ao seu lado4outro inconveniente se levantava. a personagem assimapresentada tinha ideias j formadas sobre a injusta

    organizao do mundo em !ue vivia e, naturalmente, veria omundo em !ue ia viver com uma atitude moral preconcebida, comum esp"rito apenas de confirmao4 o !ue diminuiria, para !uemno aceitasse as cores do seu horizonte, o sentimento deverdade na!uilo mesmo !ue era verdadeiro. preferi, portanto,uma figura evolutiva e, ao chegar ao final do segundocap"tulo, rasguei tudo !uanto tinha escrito - e recomecei. havia em mim o desejo de dar uma s"ntese de toda a selva doamazonas e, no s0 por isso, mas pela fora da pr0priaexperincia pessoal, todos os argumentos !ue imaginava

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    comeavam, invariavelmente, !uase involuntariamente, na foz dogrande rio. por!ue era assim4 os her0icos cearenses emaranhenses !ue o operrio foragido iria encontrar j nosrecessos da floresta, em luta com a natureza, surgiriam # novapersonagem logo # sua entrada nas terras embrionrias. odepoimento comearia, portanto, sobre o primeiro cent"metro docalvrio.

    ao reiniciar o livro, eu tinha fre!uentemente a sensao deme encontrar numa torre alt"ssima, erguida como posto devigil6ncia, sobre a embocadura amaz0nica, um delta maiscomplicado no seu desenho do !ue os traos, em forma de le!ue,!ue as vassouras deixam na terra de alamedas e jardins. atrsde min, alargava-se o atl6ntico, cujo rumorejar dir-se-ia um

    -&8-

    riso surdo, ir0nico, com uma baba de desprezo pela minhaambio a refazer-se constantemente, espumosa e branca, sobre

    a crista das suas ondas4 em frente, o outro mar, um mar verde,!ue se estendia por milhares de !uil0metros, desde ali at #slong"n!uas fronteiras do peru e da bol"via, severo, misteriosoe im0vel. essa incomensurvel viso da terra desmesurada, !ue asrvores escondiam e eu aspirava dominar, concentrando-a nadiminuta superf"cie dum livro, indo mais longe na pretenso do!ue os j"varos, !ue nesse mesmo mundo de sombra reduziam ascabeas humanas ao tamanho dum objecto de algibeira, ora mesussurrava esperanas, ora, desalentando-me, me dava piedadepor mim, to pe!ueno, to insignificante perante ela mesentia. a pr0pria febre com !ue trabalhava, essa espontaneidadeveemente !ue em certas noites enchia pedaos e pedaos depapel durante o curto tempo !ue concedia ao romance,aumentava, por vezes, as minhas dvidas. era ento !ue osefeitos fceis, !ue eu rejeitara sempre, voltavam adesafiar-me, simultaneamente aliciantes e sarcsticos. bastavaestender os braos, colh-los a mos cheias e tudo se tornariamais seguro ou, pelo menos, mais c0modo. por !ue no seguir ocaminho dos outros, por !ue no permitir !ue a imaginaofosse, de brida solta, para alm das muralhas !ue eu lhe haviaanteposto na terra virgem, na terra onde tudo, afinal, mais do!ue verdadeiro parecia imaginado9 por!u essa persistncia emme servir duma arma de to incerto resultado, !uando aeficcia das muitas outras !ue se me ofereciam se encontrava,de h muito, comprovada9

    eu recusava-as, porm, to teimoso e firme como o mundovegetal !ue metia fundo as raizes, em frente de mim. mas,justamente, por!ue repelira todas as transigncias, todas ascenas convencionais, tudo !uanto estava receitado para umaleitura fcil, eu enchia-me de apreenses, en!uanto vagueavade porto em porto dos aores, sobre a reaco !ue este livroprovocaria.

    -&-

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    !uando, por fim, regressei a lisboa, soube, ainda no cais,!ue ele fora, apesar de tudo, bem acolhido. a naturalsatisfao !ue essa not"cia me trouxe durou, porm, algumashoras apenas. diana de liz adoecera gravemente e eu es!uecipor completo o livro. dias depois, perdia-a para sempre e esta

    obra, escrita ao calor da sua ternura, transformou-se numarecordao muito mais trgica ainda do !ue todas as outras !uelhe haviam dado origem. dir-se-ia !ue a selva, drama doshomens perante as injustias de outros homens e as violnciasda natureza, estava destinada a ser, desde o princ"pio ao fim,para o seu pr0prio autor, uma pe!uena hist0ria, uma pe!uenaparcela da grande dor humana, dessa dor de !ue nenhum livroconsegue dar seno uma plida sugesto.

    %da edio comemorativa de a selva, )*88'

    i

    fato branco, engomado, luzidio, do melhor !ue teciam asfbricas inglesas, o senhor balbino, com um chapu de palha aenvolver-lhe em sombra metade do corpo alto e seco, entrou na:flor da amaz0nia; mais rabioso do !ue nunca. ter andado de herodes para pilatos, batendo todo o serto docear no recrutamento dos tabarus receosos das febresamazonenses e tran!uilos sobre o presente, por!ue h anos nohavia secas, e afinal, depois de tanto trabalho, de tantaspalavras e canseiras, fugirem-lhe nada menos de trs2 !uediria juca tristo, !ue o tinha por esperto e exemplar, !uandoele lhe aparecesse com trs homens a menos no rebanho !uevinha pastoreando desde fortaleza9 e o caetano, !ueambicionara a!uele passeio por conta do seringal e assistira,ro"do de inveja, # sua partida9 rir-se-iam dele. !uase doiscontos atirados por gua-abaixo2 no topo da escada, esbatendo-se na penumbra, surgiu oabdomen e logo o rosto avermelhado de macedo, proprietrio da:flor da amaz0nia;. - ento, senhor balbino9 - nada2 - sempre falou com o chefe da pol"cia9 - falei com o secretrio. - e !ue disse ele9

    -(5-

    - tudo uma malandragem2 ah, bom tempo em !ue havia aparelhoe tronco2 ento, esta canalha andava mesmo metida na ordem2hoje, no se prende ningum por d"vidas e dizem !ue j no hescravos. e os outros9 os !ue perdem o !ue seu9 vem um homema fazer despesas, a pagar passagens e comedorias e at a

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    emprestar dinheiro para eles deixarem #s mulheres, e depoistem-se este resultado2 lhe parece bem9 ora diga, senhormacedo$ lhe parece bem9 - l, bem no me parece, no. . mas o senhor no faz umaideia do s"tio para onde eles tenham ido9 - !ue ideia vou eu fazer9 sei l2 e a pol"cia isto !ue sev2 o !ue mais me custa !ue esses caipiras malditos me

    tenham comido por tolo2 - ora2 isso tem sucedido a muita gente boa2 no a primeiravez. - ao chico de baturit, a esse mulato mesmo sem vergonha, euadiantei umas pelegas para ele se vestir e lhe tirei a barrigade misrias, por!ue a!uela gente vive l num chi!ueiro. e foiassim !ue ele me pagou2 o !ue vale !ue o justo chermontlarga amanh. por!ue se demorasse mais, o resto do pessoal eracapaz de p

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    at lhe fosse um bem. decidido, arrepiou caminho, arrastando-se em andar lento epesado, fazendo ranger as velhas tbuas, corredor em fora.brilhavam na penumbra a sua calva e a cala branca !ue subia,em curva larga, para o ventre. boas arrobas de carne fofa,sedentria e doentia, detiveram-se junto # porta de um dos!uartos interiores, dando volta # tran!ueta. no se via nada.

    - = alberto2 ests a" 9 - estou. - estavas a dormir9 - no4 fechei o postigo por!ue l de baixo vinha mau cheiro. rumorejou um corpo !ue devia saltar da cama, uns passosrpidos soaram na escurido e logo, atrs da portinhola !ue se

    -(&-

    abria, entrou no recinto uma fosca claridade. iluminou-seento, no !uarto miservel de hospedaria, com a cama de ferro

    a insinuar existncias parasitrias e o travesseiro liso, de!uartel, um jovem alto e magro, cabelo negro e olhosamortecidos, denunciando vida indolente. a cala danava-lhena cint>ra e os ossos ad!uiriam forte relevo no tronco seco enu. sentou-se no rebordo do leito e comeou a vestir,apressadamente, o casaco do pijama. - desculpe. - no faz mal4 est # vontade. - 3 !ue fazia um calor... macedo enfiou nos suspens0rios os dedos grossos e felpudos eencostou-se ao postigo, com a mais benvola das expresses !ueo sobrinho lhe conhecia. - no soubeste, hoje, de nada9 - no. estive com o agapito. disse-me !ue no se es!uecia,!ue ia ver. - ora2 de promessas estamos n0s fartos2 3 bem verdade !uetudo est mau e cada dia maior o nmero de caixeiros sememprego. e o pior !ue no vejo !ue isto possa melhorar. aborracha cada vez desce mais. vo arrebentar muitas casas por a". ol se vo. por isso eume lembrei. sim, foi apenas uma lembrana. se tu no estiveres de acordo, pacincia2 a falar verdade,j no sei o !ue hei-de fazer. j no h empenhos !ue valham2 - mas o !ue 9 - eu tinha de te dizer... !ue est a" um seringueiro. - o balbino4 a!uele !ue anda sempre com um charuto na boca. - !ue foi ao cear buscar pessoal para o rio madeira. mas,

    ontem, fugiram-lhe trs homens. ora, eu pensei. sim, talvezfalando com ele, tu pudesses... mais uma vez macedo se deteve, vacilante, a contemplar osobrinho e !uase admirado de no ter sido ainda interrompido. - pelo menos por agora ficavas arrumado. - para eu ir para o seringal9

    -((-

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    - se tu !uiseres, est bem de ver. 3 c uma ideia minha. com a mo, o rapaz p

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    no o atra"am esses rios de lendrias fortunas, onde oshomens se enclausuravam do mundo, numa confrangida labuta paraa con!uista do oiro negro, l onde os ecos da civilizao s0chegavam muito difusamente, como de coisa long"n!ua,inveros"mil !uase. !uando desembarcara em belm, ido deportugal, a borracha ainda tinha altas cotaes e exerciaprofundo sortilgio sobre todos a!ueles !ue davam ao dinheiro

    a maior representao da vida. muitos dos empregados nocomrcio, vendo a pe!uenez dos seus ordenados, face # dosescrit0rios !ue se afirmava na europa, desertavam dos balcese embrenhavam-se amazonas acima, ansiando maior recompensas aotrabalho, onde !uer !ue ela existisse. algumas vezes tambm ohaviam tentdo essas estradas l"!uidas !ue cortavam a selvaimensa, mas sempre um pavor instintivo, amlgama do !ue sedizia de febres, perigos e de vida brbara e instvel, odetivera em belm. era, ento, a amaz0nia um "m na terrabrasileira e para ela convergiam copiosas ambies dos !uatro

    -(8-

    pontos cardeais, por!ue a ri!ueza se apresentava de fcilposse, desde !ue a audcia se antepusesse aos escrpulos. comos rebanhos, idos do serto do noroeste, demandavam a selvaexuberante todos os aventureiros !ue buscam pepitas de oiro aolongo dos caminhos do mundo. e como no era na brenha esp?ssa!ue se encontrava, para os ligeiros de conscincia, a aur"ferajazida, !uedavam-se os ladinos em belm ou manaus, a traficarcom o esforo mitol0gico dos !ue, entre todos os perigos, seentregavam # extraco da borracha. fora assim !ue seu tio enri!uecera e tinha j duas !uintasem portugal4 fora assim !ue pobretes sem eira nem beira setransformaram, dum instante para o outro, em donos de :casasaviadoras;, to poderosas !ue sustentavam no ddalo fluvialgrande frota de :gaiolas;. aos !ue desbastavam a sade e avida no centro da floresta, vendiam por cin!uenta a!uilo !uecustava dez e compravam-lhes por dez o !ue valia cin!uenta. e!uando o ingnuo conseguia triunfar de toda essa espoliao edescia, sorridente e perturbado pelo contacto com o mundourbano, a caminho da terra nativa, nos confins do maranho oudo cear, l estava macedo com os colegas e as suashospedarias, !ue o haviam explorado na subida e agora oexploravam muito mais ainda, com uma intrmina srie de ardis,!ue ia da vermelhinha, onde se comeava por ganhar muito e seacabava por perder tudo, at o latroc"nio, executado sob aproteco do lcool.

    de um dia para o outro, o seringueiro de saldo, !uesuportara uma dezena de anos na selva, em lta com a naturezaimplacvel, para ad!uirir os dinheiros necessrios aoregresso, via-se sem nada - e sem saber at como o haviamdespojado. de novo pobre, com a fam"lia e a terra,preocupaes constantes do seu ex"lio, a atra"rem-no de longe,ele sufocava, uma vez mais, as saudades, a dor do tempoperdido, e regressava ao seringal, to miservel como naprimeira hora em !ue l aportara$

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    -(-

    todos os cais de belm a manaus falavam desses dramasan0nimos, dos logros feitos # gente rude !ue ia desbravando,com desconhecido hero"smo, a selva densa e feroz.

    entretanto os espoliadores, na embriaguez da sbitaabastana, acendiam charutos com notas de banco e estadeavam asua fortuna com a prodigalidade !ue marca o aventureiro. noformavam sociedade4 enri!uecidos, demandavam o ponto deorigem, dando lugar a novo tropel de ambies por satisfazer.a vida decorria nos bote!uins, nos encontros fortuitos dos !ueno tm fam"lia nem raizes agrilhoadoras. com os mestres emespedientes, buscando rpidos lucros, vinham tambm, atra"dospelo fanal doirado, mulheres de todas as es!uinas do planeta,tornando-se belm e manaus dens do meretr"cio cosmopolita.mas todo esse :eldorado;, onde a manoa fantstica de juanmartinez se volvera em realidade, se alimentava do sangue !uerudes prias convertiam em oiro, no centro misterioso da

    floresta. um dia, porm, a :hevea brasilensis;, levadasub-repticiamente por mos brit6nicas, desdobrara a suanacionalidade, entregando tambm a seiva enri!uecedora emterras de ceilo. ferida pela emigrada, a borracha da amaz0niadeixara de ser meio de elsticas fortunas, limitando aperspectiva das ambies. era prata e no oiro o !ue secolocava agora no outro lado da balana. mas ningum, ningum, se dava por conformado dentro dosestreitos aros da nova verdade. a recordao do esplendorainda to pr0ximo incitava os ambiciosos, tornando-os maisfebris, mais din6micos e esvaziava-os dos ltimos escrpulos.deliravam na luta, para recolher o caudal antes !ue ele seesvaziasse totalmente sob a catstrofe !ue se avizinhava. era a confuso, era a loucura, um esbracejar de nufragos!ue no se afaziam # ideia de viver sem a antiga opulncia. den"tido ficava apenas o drama obscuro do seringueiro, na selvacmplice e silente.

    -(+-

    a revelao da senda espinhosa, ouvida a desenganados, !ueele conhecera meses antes, !uando o alto amazonas era aindauma possibilidade e uma miragem, e o !ue observara ali mesmo,na pr0pria hospedaria do tio, haviam afastado de alberto a

    hip0tese de ele vir a trilhar, um dia, o caminho fascinador. mas agora, ao sentir a humilhao do seu estado em casa doparente, o amor-pr0prio impelia-o para o novo des"gnio,deixando-lhe apenas um ressaibo, de onde a dist6ncia jextra"ra o 0dio, para a origem involuntria das suasdificuldades e vexames - o regime republicano !ue elecombatera na ptria long"n!ua. por onde andariam os outros9 o vasconcelos, o gonalo, omeireles. ainda estariam em espanha9 o meireles era rico eassim custava menos pegar em armas. mas os outros. mas ele9

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    faltava-lhe o ar, como se no !uarto o bafo ardente dum fornolhe crestasse a garganta e lhe pusesse murmrios nos ouvidos.vestiu-se apressadamente e saiu para o corredor, logo para asaleta desbotada da hospedaria, com o sof desconjuntado, rotaa palha das cadeiras e na parede dois calendrios da :boothline; - dois navios empenachados de fumo. estava ali um jornal da manh e os seus olhos caminharam,

    distraidamente, pelas colunas do noticirio. nada fixava do!ue lia, a perturbao continuava e, por fim, ele !uedouindeciso. a cidade atraiu-o, um momento, perante a ideia de!ue em breve a deixaria4 mas renunciou a sair, ao lembrar-sede !ue o tio no lhe comunicara ainda a deciso de balbino. ajanela constitu"a um refrigrio e ele encostou-se ao peitoril,procurando adivinhar, entre os muitos vapores !ue dali seviam, a!uele !ue o levaria. debruada, ao fundo, pela linhaverde e irregular da floresta, a ba"a do guajar mostrava-secheia de :gaiolas;, uns de cano fumando os ltimos carves daviagem, outros de bandeira desfraldada, assinalando a partida.ao seu lado, os :pontes;, velhos barcos a !ue haviam extra"doo corao mec6nico, !ue o tempo fatigara irremediavelmente,

    estavam paralisados para sempre, sem mastros onde flutuassem

    -(/-

    alegres galhardetes, tristonhos na condena de servirem apenasde dep0sito a tudo !uanto os outros, pintadinhos de fresco,respirando juventude e velocidade, para eles lanavam. eram tantos !ue a intuio de alberto para nenhum pendia.vindo de vale de ces, ap0s o repouso e cura do estilo, ou deregresso do alto amazonas, havia sempre um :gaiola;, de tezamarelada, a descer a 6ncora na gua tran!uila e suja, pertodas alvarengas atracadas ao costado de outros navios. toda aamaz0nia, de imensurvel grandeza, possu"a ali a sua salanobre, a sua grande porta para o mundo - e por ela entravam,imponentemente, os transatl6nticos de vasta tonelagem, !ue daeuropa se dirigiam a manaus ou, mais audaciosos e confiantesna profundidade do rio, levavam o espadanar das suas hlicesat e!uitos. contrastavam pelo casco acolchetado at acima,pela cor e perfil solene, com a garridice infantil dos:gaiolas;, abertos de lado a lado e oferecendo em cada recantoescpulas para redes de dormir. at no lanar do ferro, !ue os de longo curso faziam comrumor forte e imperativo, os :gaiolas;, amestrados em paragensimprevistas, ao sabor dos caprichos da sonda, em romarias deseringal para seringal, marcavam esp"rito ligeiro e moo,

    atirando a 6ncora como se soltassem uma risada. mesmo na sua decadncia, era ainda a borracha !ue movia tudoa!uilo, os navios de diferentes portes e os rebocadores deagudos silvos4 os guindastes de compridos braos e asvagonetas sobre os carris brunidos ao longo dos cais, com umvaivm constante dos estivadores entre a beira da gua e afila dos :galpes;, vastos armazns4 e # borracha comeavaalberto a sentir-se tambm incorporado, com uma sensao defbula, agitado de curiosidade e de temor. a nica sugestorom6ntica, paradoxalmente baseada na trivialidade domstica,

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    nas !uotidianas necessidades dos habitantes, vinha-lhe dasasas das :vigilengas;, as lestas canoas !ue abriam no mar assuas

    -(*-

    velas e corriam a trazer o peixe a belm, ziguezagueando entreos vapores fundeados na ba"a. principiava a anoitecer e l de baixo, da porta dahospedaria, situada mesmo em frente do porto, muito maispr0xima do !ue as casas das prostitutas, elevava-se um rumorde vozes em t"mido concilibulo. deviam ser os seuscompanheiros de viagem, eram eles, sem dvida, pois na pensodo tio no havia agora outros h0spedes - pensou alberto,debruando-se mais na janela, para os ver. parados sobre opasseio, conversando, vinham certamente recolher-se para ojantar, ap0s as surpresas !ue a cidade oferecia aos seusdeslumbrados esp"ritos de sertanejos. todos de cor, mulatos

    uns, mais carregado o escuro nos outros, iam da juventude atos trinta e cinco anos, at os !uarenta - idade mximaconcedida ao seleccionador para o recrutamento, j !ue nosseringais no tinham lugar os fracos ou os inteis. vestiamtecidos leves, brins e riscados e o chapu de palha, de formacitadina, mal se lhes dava na cabea, habituada aos largos eflex"veis carnabas. sumiram-se por fim na hospedaria, sempre em paroliceamigvel, e pouco depois alberto ouviu-os subir a escada. macedo no tardou a aparecer na saleta, com voz ressumandovit0ria$ - est tudo arranjado2 - tudo9 - o homem leva-te. estive agora a falar com ele. custou,por!ue eles preferem cearenses, mas l arranjei a coisa. fechou a porta atrs de si e, baixando o tom, acrescentou$ - o !ue tu tens de pagar a despesa do outro. do !ue fugiu. - do !ue fugiu9 - sim. 3 para o balbino se justificar l no seringal. assim, como se tivessem fugido s0 dois. - mas eu...

    -15

    - acho melhor no fazeres !uesto. uns mil ris a mais ou a

    menos. 3 !ue o homem teimou em !ue s0 te levaria se tupagasses a conta do outro. eu tambm no acho bem, mas !ue!ueres9 ele no deseja perder tudo. - e !ue !ue eu vou l fazer, tio9 ele no disse9 macedo embaraou-se$ - tu vais. sim, eu j te preveni !ue o homem preferecearenses. foi dif"cil arranjar. eu bem !ueria !ue tu fossescomo empregado. mas ele respondeu-me !ue para j, no4 !uedepois se veria4 !ue o !ue precisava era de seringueiros. - ah, eu vou, ento, extrair borracha9

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    - por um tempo. at te arranjarem l coisa melhor. eurecomendei-te bem2 e, temendo um sbito des6nimo, confortou$ - mas no te aflijas por isso2 depois de l estares e deverem de !uanto s capaz, estou certo de !ue te arranjam coisamelhor. de mais a mais, muitos donos de seringal comearam porseringueiros. !uantos tenho eu conhecido a!ui2 a !uesto uma

    pessoa ter sorte e esperteza2 o diabo no to feio como opintam. 3 verdade$ !uantos anos tens agora9 - vinte e seis. - vinte e seis9 foi isso mesmo !ue eu lhe disse. mas comono tinha bem a certeza. vinte e seis anos2 !uem mos dera2ests uma criana2 podes ter um grande futuro. a!uilo soterras para a gente ir com essa idade, !uando se novo. alberto !uedou-se em silncio, com os olhos pensativos fixosno velho sof. - !uando a partida9 - perguntou depois, como !uealheadamente. - 3 amanh # noite, no :justo chermont;. tens alguma coisa atratar9

    - no. nada.

    ii

    !uando o grupo chegou ao embarcadoiro, o :justo chermont;vivia as suas ltimas horas de prisioneiro do cais. os olhosda malta negrusca, subitamente especada por ordem do condutor,vasculharam o barco de lado a lado, varando-lhe os doisconveses, ambos encharcados de luz4 a de cima, discreta, muitosuave4 a de baixo, a jorrar, iluminando os negros pores. iamem faina intensa as vagonetas e os guindastes, todosconduzindo para bordo a carga !ue o :justo chermont; deviatransportar. ouviam-se vozes fortes de comando, ba!ues surdos,ru"dos d"spares - e, ao longo da muralha, entre sombras eclaridades, havia o mesmo movimento rumoroso junto dos outrosvapores atracados. mas, no meio de todos eles, o :justochermont;, orgulho da amazon river antes dos vaticanos de proade cetceo, pesados e ronceires, tinha solene primazia, comas duas chamins altivas e comprimento invulgar, !ue otornavam admirado onde !uer !ue passasse. o convs superior, reservado aos passageiros de primeiraclasse, apenas ao centro se fechava por curta fila decamarotes4 a popa abria-se dum lado a outro e jantar ali, nalonga mesa onde bran!uejava a toalha e rebrilhavam cristais decopos e garrafas, ou adormecer embalado numa rede, sob a brisa

    tpida das noites amasonenses devia ser regalo de truz,

    -1&-

    ines!uec"vel por muito !ue se vivesse. j l se encontravam, ainda de chapu na cabea, entre malase bas, muitos dos ditosos !ue iam fruir a volpia da!uelainstalao$ proprietrios de seringais, funcionrios do estado

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    e ricos bolivianos de volta # terra nativa. em derredor, osgestos, os movimentos dos !ue se iam despedir - os ltimossorrisos dos !ue pouco depois chorariam. balbino, feitas as indagaes e sempre temeroso de !ue selhe escapasse mais algum dos aliciados, surgiu declarando !uepodiam embarcar. e os seus olhos in!uietos envolviam orebanho, numa contagem rpida e tran!uilizadora.

    os novos habitantes do para"so foram descendo, em friso, aprancha !ue ligava o cais ao navio. alguns ade!uavam motejo aoreceio dos outros, !uando eles estendiam o brao para ocompanheiro da frente, em solidariedade pueril de caminhantesem corda bamba. l dentro, como se aproximassem da escotilha !uando umalingada descia, o mestre f-los deter com voz rude eimperiosa. !uedaram-se um momento hesitantes, depois virarampara a es!uerda, seguindo alberto, !ue ali descobrira refgio.o convs, ao contrrio do de cima, era hmido, sujo eescorregadio. dir-se-ia !ue visco fluido e repulsivo seexalava de toda a parte, estendendo-se sobre a pele, furandoat os poros.

    - fi!uem a!ui, !ue logo !ue o vapor acabe de carregar searmam as redes - disse balbino, antes de subir parainstalar-se na primeira classe. estavam j ali outros tabarus ignaros, gente destinada avrios seringais do madeira, l longe, onde o mistrioinsinuava bom futuro. alguns levavam as mulheres e os filhose, mesmo antes de aninhar-se, davam a sensao depromiscuidade - farraparia, misria errante, expressesmortias de sofredores.

    -1(-

    flutuava um cheiro de redil e as primeiras nuseas sacudiamalberto, incipiente na!uelas andanas, !uando surgiu, compassos curtos, olhos perscrutando # direita e # es!uerda, ocorpo gordalhucho de macedo. descoberto o sobrinho, avanou todo vivaz e resoluto$ - no vim logo, por!ue tive de ver as contas. sempre haviauma diferena a meu favor, mas pouca coisa. nem vale a penaincomodar, por isso, o balbino. o diabo da margarida engana-se!uase sempre. e reparando na situao de alberto$ - vocs a!ui esto mal, - percorreu, com o olhar, osderredores e, falho de soluo, consolou$ - 3 sempre assim. en!uanto o navio no larga, ningum pode

    acomodar-se # sua vontade. eu, antes de sair, hei-de falar aobalbino para ver se ele consegue !ue te dem comida deprimeira. e coragem, rapaz2 como alberto se !uedasse impass"vel, acrescentou$ - olha !ue eu tenho visto muito homem embarcar nas tuascondies e voltar, l em cima, podre de rico. alberto teve um vago sorriso e continuou silencioso, a vistadetida no negro portal0, agora bem iluminado. era cada vez maior a faina. marinheiros e moos de convssepultavam, ininterruptamente, caixas, fardos e barris nas

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    largas escotilhas, pois os :gaiolas;, abastecedores da selvaamazonenses, ao partir transportavam nos seus pores, mesmonas baleeiras de salvao, at nas casas de banho, em toda aparte onde existisse um palmo a ocupar, os produtos maisdiversos, os objectos mais imprevistos. macedo !uedou-se ainda uns momentos a conversar, sempre coma!uela voz !ue parecia !uerer suprimir toda a tristeza do

    presente, para s0 confiar nas alegrias do futuro. consideroudepois ser j boa hora de retirar-se e abriu, perante ainc0moda mudez do sobrinho, os braos robustos$ - bom, adeus2 estimo !ue sejas feliz. e sers, no tenhodvidas. vou agora ver se falo com o balbino. - obrigado.

    -11-

    - 3 verdade2 participaste # tua me9

    - sim4 escrevi-lhe hoje. - bem, bem. e se precisares de alguma coisa de c, s0mandares dizer. tu, mais ano, menos ano, ests a" ca"do combom dinheiro. adeus 2 adeus 2 e abalou, entremetendo com dificuldade o seu abdome nomagote dos cearenses. alberto ficou ainda aturdido, ao lado da gente desconhecida-toda ela de atitudes provis0rias no ambiente estranho. vibrou, com mais intensidade do !ue o ru"do dominante, oapito dum rebocador4 depois, no crebro de alberto cruzaram-sepalavras desconexas, frases soltas$ - si, si

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    intrusos o sinal de partida. cruzavam-se agora pernas lestas, muitos dos !ue estavam abordo volviam ao cais e todo o navio se alvoroava nesseinstante ltimo da largada. com o encerramento dos pores, ganhou-se mais superf"cie eum e outro sertanejo comeou a amarrar a sua rede. a sereia do navio tornou a fazer-se ouvir - trs silvos de

    despedida !ue abafaram o choro de uma criana, vindo dealgures, incomodamente. - prancha dentro2 tambm na proa se davam ordens para o cais, onde agora sesoltavam as amarras e uma fila de parentes e amigos dialogava,em voz alta e muitos gestos, com os !ue estavam a bordo, o:justo chermont;, atestadinho at mais no poder, expondo nosconveses tudo o !ue no lhe coubera nas entranhas, iniciava asua nova viagem ao madeira. a manobra da desatracao eralenta, por!ue o comandante patativa, !uanto mais fama ad!uiriade mestre no of"cio, mais cauteloso se mostrava4 a hliceenrodilhou, por vrias vezes, a gua # popa, por vrias vezestambm se deteve, no fosse o barco avanar muito e bater no

    cais, ou descair e amolgar-se na proa do gaiola atracado umpouco abaixo. finalmente, o :justo chermont;, flechado por acenos eadeuses dos !ue ficavam, foi-se distanciando na indiferena danoite tropical. e ainda ao longe deixava ver, dependurados numdos flancos da terceira e iluminados por detrs, doissangrentos bocados de carne - reserva da copa at a morte deoutro boi. os passageiros cuidavam de se instalar, numa rpidaadaptao ao novo meio. em breve, c em baixo, em redor de

    -1-

    alberto, as redes cruzavam-se tanto, tanto, !ue dificilmentese caminhava por entre elas. desejos, ideias, sensaes eram apenas murmurados, por!ueainda ningum estava senhor de si e, na 6nsia de con!uistarespao para dormir, haviam-se tresmalhado e avizinhado membrosde rebanhos diferentes. um co ladrava para a sombra dos pontes !ue o :justochermont; ia ladeando, na ba"a adormecida. - ch0, matuto2 - mas a voz do dono f-lo variar apenas deinteno e p

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    a todas as contingncias. magoava-o a facilidade com !ue outros recrutados dormiamtran!uilamente - um sono !ue era, para o ego"smo dele, !uaseuma afronta. e sorria, depreciativamente, ao pensar no apostolado dademocracia, nos defensores da igualdade humana, !ue elecombatera e o haviam atirado para o ex"lio. ret0ricos

    perniciosos2 !ueria v-los ali, ao seu lado, para lhesperguntar se era com a!uela humanidade primria !ue pretendiamrestaurar o mundo. via-se o !ue tinham feito2 tudo na mesma,sempre a mesma violncia, a demagogia at. e ainda havia os!ue !ueriam ir mais longe no desvario, destruindo fundo oscaboucos sociais, desmoronando uma obra constru"da e cimentadapela velha experincia dos sculos.

    -1+-

    para !u9 para !u9 possu"am alma essas gentes rudes e

    inexpressivas, !ue atravancavam o mundo com a sua ignor6ncia,!ue tiravam # vida colectiva a beleza e a elevao !ue elapodia ter9 se a possu"ssem, se tivessem sensibilidade, noestariam adaptados como estavam #!uele curral flutuante. masno. mas no. era o seu meio e, se as transplantassem,ficariam t"midas, desconfiadas e murchas, como bichosselvagens nos primeiros dias de jaula. ele e os seus,declarados inimigos da igualdade, defensores de lites, erambem mais amigos dessa pobre gente do !ue os outros, os !ue aludibriavam com a ideia duma fraternidade e dum bem-estar !ueno lhe davam nem lhe podiam dar. s0 as seleces e as castas,com direitos hereditrios, tesouro das fam"lias privilegiadas,longamente evolu"das, poderiam levar o povo a um mais altoestadio. mas tudo isso s0 se faria com autoridadein!uebrantvel - um rei e os seus ministros a mandarem e todosos demais a obedecer. o resto era fantasia malfica desonhadores ou arruaceiros. ah, se os outros estivessem ali2 belm tornara-se j um claro long"n!uo, poalha luminosafixada no espao. o co emudecera e ouvia-se, nitidamente, aproa do navio cortando a gua da ba"a, numa lenta aproximaoda mancha negra da floresta. na casa das m!uinas soaram horas, !ue ele, ignorante dosto!ues convencionais de bordo, desistiu de contar. procuravaagora, acocorado debaixo das redes, roando as curvas doscorpos deitados, a sua mala, perdida entre a frandulagem dossacos, paneiros e bas sertanejos. e, !uando a descobriu,p

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    a malta ocupara todos os vares, entranara-se,aconchegando-se4 e muitos dos !ue dormiam roncavam, como seestivessem em casa2 -enervado, com lgrimas nos olhos a gritarem a suaimpotncia, arremessou a rede sobre o oledo da escotilha - ede novo se encostou # amurada.

    e foi s0 madrugada alta !ue a frescura da atmosfera,acalmando-o, lhe deu poder de conformao para irresignadamente inventar, entre a teia das outras redes, unspalmos vagos onde pudesse armar a sua. manh nascente, ainda a cabea pedia mais sono comorecompensa da longa vig"lia e j a marinhagem, entregue #azfama da baldeao, obrigava todos eles a saltarem para oconvs, cruzado em vrias direces por agulhetas eesfregadores. o :justo chermont; ia agora na ba"a do maraj0, encrespada!ue nem um mar e de margens to distantes !ue se perdiam aolho nu. ao longe, em rumo contrrio, navegava outro :gaiola; - um

    rolo de fumo no ar e o amarelo dos cascos avivando-se sob osol forte, vibrtil e deslumbrante !ue subitamente sederramara no enorme oval l"!uido. depois de saber !ue todaa!uela gua no era pertena do oceano, mas sim o corpo daimensurvel aranha hidrogrfica da amaz0nia, vinha-lhe oassombro da vastido, do !ue pesa e esmaga pormenores e, pelasua grandeza, se recusa de comeo # fria anlise. o :justo chermont; cabeceava sobre ondas dedorso atl6ntico efundo regao4 e o outro navio, !ue singrava a dist6ncia,dir-se-ia, por vezes, subvertido, ficando na superf"cieabrangida pelos olhos apenas os mastros. surgia de novo,primeiro o cano, depois a linha do convs, para de novo tambmsubmergir, num jogo !ue estarrecia os esp"ritos profanos. ascanoas, balouando-se # es!uerda e # direita, eram comogigantescas aves mortas, arrastadas pelo vento, com uma asadistendida para o cu. e tudo coberto de sol, o implacvel soldos tr0picos, !ue se colava # gua, se filtrava na primeira

    -1*-

    camada e fazia movimentar no convs, conforme as voltas doleme, as sombras de bordo. a travessia demorou algumas horas. e sempre, sempre, naspupilas de alberto, a!uela grandeza inabarcvel. depois, alinha pardacenta, !ue se via ao longe, foi-se aproximando,

    crescendo, alastrando, mudando de cor. era verde agora e j severificava, nitidamente, o recorte do arvoredo. o :justochermont; seguia entre duas margens - terra baixa, terra emformao, arrastada das cabeceiras e detida ali, part"cula apart"cula, ora a esconder-se na gua, ora a expor ao sol a suacapa de lama, submissa # vontade das mars. cobria-a densavegetao !ue se entrelaava, dir-se-ia com frenesi, numacicl0pica muralha de troncos, ramos e folhas. eram mir"ades devariedades, roubando-se mutuamente o carcter, confundindo-se,fraternizando em abracadabrante luxria vegetal. 7rvore !ue

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    pretendera desgrenhar a cabeceira mais acima da das irms,fora seguida por to copiosa multido de lianas e parasitas,!ue dentro em pouco o seu desejo se tornara vaidade intil.!uase no se vislumbravam os caules, as plantas rasteiras, osarbustos, os tajs e os cip0s, tudo ocultavam, tudo fechavam,inexoravelmente. os olhos no iam para l da margem, dacortina espessa !ue resguardava as salas interiores, as

    clareiras - se, porventura, existiam. alguns fustes mostravamas ra"zes contorcionadas no declive !ue vinha, escorrendovasa, da crosta onde se emaranhava a!uele mundo de pesadeloat a gua barrenta !ue o :justo chermont; sulcava. e sempre a mesma coisa. sempre a mesma coisa. As vezes, ointerminvel valado recortava-se, no cimo, em curvascaprichosas, em rendas esmeraldinas, por onde o sol sefiltrava, caindo em desconhecidas profundidades4 outras,fechava-se em linha plana, como se por l houvesse andado atesoura colossal de imaginrio jardineiro. os olhos leigos de alberto s0 eti!uetavam as palmeiras,

    -85-

    de diversas espcies e alturas, !ue abriam a!ui e ali, entre aramagem da vizinhana, o seu grande le!ue. algum pronunciou um nome$ - os estreitos de breves. o mestre, dado o passageiro ser bem posto e falante,explicou-lhe !ue tinham sido dois irmos portugueses,possuidores duma roa no local, !uem fornecera o nome #!uela:teia de parans; - l"!uidos corredores, sobre a terra aindainconsistente, !ue os navios singravam para encurtar caminho.e no se admirasse ele$ dali em diante encontraria muitosnomes de portugal baptizando as cidades !ue se miravam no rioimenso. era santarm, era alen!uer, 0bidos, borba e faro -onde o :justo chermont; no chegava, e !ue pena2 !ue pena2por!ue l todas as mulheres, mesmo as casadas, gostavam defazer o seu jeitinho. j alberto conhecia, da sua estada no par, a!uelas saudadestoponimizadas !ue os colonizadores portugueses levaram,outrora, a long"n!uas plagas, juntamente com arcaicas peas deartilharia e uma soma formidvel de ambies. mas, agora, arecordao desse tempo remoto, !ue a dist6ncia cobria defausto e de hero"smo, afagava-lhe o esp"rito, numa "ntimavingana contra a indiferena !ue os cearenses e at os moosde convs, todos uns rudes prias, manifestavam pela condiode civilizado !ue ele creditava a si pr0prio.

    !uando estudava na universidade, o passado monr!uico deportugal surgia-lhe apenas como exemplo pol"tico aressuscitar, em oposio aos republicanos, !ue apregoavamoutros mtodos, vida nova para todos e liberdade. agora,porm, as faanhas !ue a hist0ria atribu"a aos ancestraisdoiravam-se fortemente, fazendo-o vibrar como se fossempertena sua, como se houvessem sido cometidas por elepr0prio, para !ue se pudesse orgulhar delas muitas geraesdepois e com elas fabricar um blsamo para a desdita. com as suas palavras, o mestre despertara-lhe a antiga

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    coragem.

    -8)-

    voltava a sentir-se superior ao meio em !ue se encontrava, os

    olhos baixando puerilmente, sobre o vinco das calas e afinura das mos, cuidadas atravs de todas as vicissitudes. pouco ap0s surgia no convs um caldeiro fumegante, !ue doiscriados traziam pelas alas, ao lado dum terceiro e!uilibrandosobre os braos, de encontro ao peito, alta rima de pratos,todos de folha, velhos e amolgados. os cearenses moveram-se, formaram roda junto do negropanelo e, com rosto alegre e ditos jocosos, iam recebendo oseu almoo, a!uelas duas gadanhas de carne seca e feijo preto!ue o copeiro distribu"a a cada um. alberto simulou no ver. o novo olor !ue se espalhara noconvs aulara-lhe ainda mais o apetite, mas ele resistiu-lhee decidiu no imitar os outros, !ue estendiam, em homenagem #

    fome, os m"seros pratos. continuava a importun-lo a promiscuidade em !ue a vida serealizava ali, a igualdade em !ue todos se fundiam, como secada um no tivesse o seu temperamento, as suas predileces,a autonomia !ue ele desejava para si. pois !ue o tio lhe haviadito !ue falaria a balbino para lhe fornecerem comida deprimeira classe, esperaria. vendo-o assim to !uieto e solitrio, de encontro # amuradae olhos vagueando l para fora, um dos cearenses, tomando-opor inexperiente ou acanhado, acercou-se e ofereceu-lhe umprato cheio. - muito obrigado. no tenho vontade de comer. era um preto. vexado pela recusa e avareza de palavras e jarrependido da sua fraternidade, morreu-lhe o sorriso !uetrazia nos lbios grossos, encolheu levemente os ombros evoltou ao rancho de onde partira, justamente !uando umape!uena simpatia, acabada de nascer, se p

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    eterna sombra, de criptas vegetais onde o sol jamais entrava,terra mole e ubrrima, lanando por todos os poros um troncopara o cu - um mundo em germinao fabulosa, alucinante edesordenada, negando hoje os princ"pios estabelecidos ontem,afirmando amanh uma realidade !ue ningum ousaria antever. eentre o raizame, !ue formava altas e largas cavernas, nasuperf"cie balofa da lama !ue ainda no se solidificara e de

    folhas apodrecidas, esvoaavam insectos de infinitasvariedades e coleavam, surdamente, rpteis monstruosos - olhosverdes de mortal fascinao e formas do mundo pr-hist0rico. de !uando em !uando, a linha da selva recolhia-se e iadebruar, mais alm, um pe!ueno campo aberto no matagal a fogoe a terado - o s"tio onde dois ou trs caboclos haviamfundado o seu lar. era sempre uma barraca coberta de folhas de palmeira e desoalho erguido um ou dois metros acima da terra, fixando-se emestacas, para !ue as guas do rio, nas grandes enchentes,passassem por baixo sem atingir corpos e haveres na!ueleisolamento profundo. ao lado, um girau-estrado onde sorriam,dentro de velhas latas, humildes plantas floridas. um

    mamoeiro, duas ou trs touas de bananeiras, #s vezes unsmetros de mandiocal, uma canoa balouando-se no porto - e maisnada. atreito a vida sedentria, o caboclo no conhecia asambies !ue agitavam os outros homens, j alberto o soubera

    -8(-

    em belm. a mata era sua. a terra enorme pertencia-lhe, senode direito, por moral, por ancestralidade, da foz dos grandesrios #s cabeceiras long"n!uas. mas ele no a cultivava e !uasedesconhecia o sentimento da posse. generoso na sua pobreza,magn"fico na humildade, entregava esse solo fecundo, plet0ricode ri!uezas, # voracidade dos estranhos - e deixava-se ficarpachorrento e sempre pauprrimo, a ver decorrer,indiferentemente, o friso dos sculos. um caminhito, serpeando no barranco, ligava a sua cabana #velha piroga. nos dias de boa disposio, ele embarcava eseguia rio acima ou rio abaixo, chape, chape, o remopreguioso espadanando a gua, at !ue uma das margensoferecesse entrada para lago onde existisse pirarucu. e !uandoos movimentos do peixe deixavam brilhar, num rel6mpago, osaparentes rubis das suas escamas vermelhas, o caboclosoerguia-se, esguichava a saliva negra do tabaco !ue vinhamascando e despedia o arpo. sentava-se depois,tran!uilamente, en!uanto o pirarucu, ferido e preso # canoa

    pela corda da farpa, a arrastava atravs do lago, em loucacorreria de barco-autom0vel. se o trajecto no se fazia rente# margem, sob galhos !ue obrigassem a baixar rapidamente acabea, o algoz s0 voltava a mexer-se !uando a v"tima, cansadado esforo, se rendia para sempre. cortado o grande peixe em mantas, secas no :girau; evendidas na cidadezita mais pr0xima as !ue sobejavam dapapana !uotidiana, o caboclo ad!uiria sal, farinha e cachaa- e en!uanto a proviso durasse vivia descuidado e no voltavaa trabalhar. a cachaa, para uso dirio, e um baile, de !uando

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    em !uando, para desentorpecer as pernas, em !ual!uer barracadas margens, constituiam as suas nicas aspiraes. o resto era a solido imenssa, uma vida encastoada na selva,alheia a todas as in!uietaes do mundo, uma vida to # parte,to obscura e ignorada !ue alberto ficava a pensar num retirode misantropos.

    -81-

    !uando o :justo chermont; passava, a fam"lia inteira vinhaespecar-se no cimo do barranco, a admirar o fugitivo sintomada civilizao, en!uanto um dos garotos descia a segurar acanoa, no fossem as ondas do navio desprend-la e a correntearrast-la, ao bubuiar rio abaixo. de longe a longe, alberto surpreendia tambm !uatro ou cincocruzes rsticas apodrecendo entre erva alta, nos pontos maiselevados da margem. a viso perdia-se rapidamente, abafadapela selva !ue avanava sobre o pe!ueno cemitrio, a espalhar

    a vida sobre a terra da morte. contudo, essas necr0poleshumildes, onde no existiam mrmores nem solenes epitfios,constitu"am o nico elemento rom6ntico da!uelas solitriasparagens. mas alberto acabou por fatigar-se. h muito tempo j !ueouvia tocar, l em cima, na primeira classe, a campainhaanunciando o almoo. deviam mesmo ter acabado de comer, poisda amura superior chegavam at ele vozes !ue dialogavam nessaindolncia de !uem pe, com um charuto, ep"logo ao repasto evai fazendo aprazivelmente a digesto. balbino tardava4 ter-se-ia es!uecido, no viria, talvez.sobretudo, a ideia de olvido humilhava alberto. os seus olhosj no se preocupavam com a paisagem4 estavam atentos # escada!ue ligava os dois conveses e, de tanto pensar no almoo, oapetite avolumara-se de modo obsessivo. cigarro sobre cigarro,para ludibriar o tempo e o despeito, j o est

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    realidade nenhuma das recalcadas admisses. passou por ele comum boa tarde seco, !uase altivo, e foi abranger, num olharsagaz de capito, o grupo dos contratados. via-se !ue a suavisita se realizava para tran!uilidade dele pr0prio e nopelos outros, pelos !ue se comprimiam c em baixo, no convsviscoso e nauseabundo. dois ou trs cearenses aproximaram-sehumildemente e alguma coisa lhe pediram, por!ue o gesto da sua

    mo foi negativo e as palavras breves e terminantes. com o desejo de se fazer lembrado, alberto colocou-se nocaminho !ue ele devia percorrer para alcanar de novo aescada. o expediente tornou-se, porm, intil$ balbino passouhirto, todo austero e silencioso, afastando os olhos !uandoencontrou involuntariamente os do faminto. um instante depois, dele s0 existia, no convs da terceiraclasse, o odor do seu charuto - um odor forte !ue a brisa seapressou a levar dali. alberto sentia impulsos de morder as pr0prias mos, dedespedaar fosse o !ue fosse, transformando em energia a suadebilidade. a humilhao dava-lhe c0leras mes!uinhas, desejosvis e ignaros. e a crise s0 terminou ao fechar do dia, !uando,

    com a fadiga do esp"rito, se adensou a tristeza da vida ali ea imperativa realidade. na penumbra dos corredores comearam a esboar-se os !ue iamformar cortejo junto ao caldeiro fumegante onde se racionavao jantar. e ele foi tambm estender o seu m"sero prato defolha # colheraa !ue o copeiro manejava, dum modo !uaseautomtico.

    iii

    subida lenta, !uinze dias bem puxados de belm ao para"so,impacientava alberto, moroso em adaptar-se ao meio. o :justo chermont; ora enfiava pelos estreitos :parans;,to ocultos nas margens !ue o barco dir-se-ia penetrar napr0pria floresta, ora despachava para o cu os rolos do seufumo em pleno centro do rio. e ento, se os olhos se dirigiampara a frente, a sa"da tornava-se to misteriosa como o fora aentrada - tudo selva, selva por toda a parte, fechando ohorizonte na primeira curva do monstro l"!uido. as suas veiasmais pe!uenas, !ue davam passagem a grandes transatl6nticos ena geografia europeia figurariam como rios primordiais, s0 serevelavam plenamente #s pupilas mestras dos :prticos; - ospilotos da assombrosa trama fluvial, !ue principiava emsalinas, debruada sobre o atl6ntico, e ia terminar, para a

    navegao brasileira, nas fronteiras do peru ou da bol"via,ap0s !uarenta dias de viagem. os olhos inexperientes noencontravam referncia nessas margens aparentemente sempreiguais, na vegetao !ue se repetia, seno na espcie, noentranado, despersonalizando o indiv"duo em prol do conjunto,nico !ue ali se impunha. cada curva se parecia com outracurva, cada recta com a recta antecedente4 onde no existiabarraca ou cidade, o esp"rito !uedava-se, perplexo,

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    a formular a pergunta "ntima$ j passei a!ui ou a primeiravez !ue passo a!ui9 contudo, os prticos do labirinto, humildes na profissoexercida na!uele princ"pio de mundo, conheciam o curso enorme

    em todas as direces e pormenores e, !uer sob o dia rtilodos tr0picos, !uer em cerradas noites, a sua voz ia indicandosurdamente, ao marinheiro do leme, a rota a seguir. muitasvezes, numa s0 hora, tornava-se necessrio andar da margemdireita para a es!uerda, no centro do rio ou juntinho # terra,por!ue o canal tinha caprichos de serpente e era verstil comouma mulher. onde, h um ano, a sonda marcava profundidade paraa maior !uilha do mundo, j hoje se erguia uma praia,esplndida para a desova das tartarugas no estio. a terrainconsistente, !ue se greta nos barrancos, parte e cai aosmilhares de toneladas, abalando a solido com o pavoroso rumordo seu mergulho, cria todos os dias novos obstculos # marchados navios. mas nem isso, nem os grossos troncos desprendidos

    das margens nativas, !ue flutuam na corrente e amolgam oufuram as proas descuidosas, perturbavam os pilotos doamazonas, subtis na previso das dificuldades e com mem0ria deprod"gio. de !uando em !uando, o :justo chermont; desembocava emtrecho amplo e os olhos de alberto corriam de norte a sul, numabrao # vastido luminosa. e, mais do !ue navegando num rio,lhe parecia !ue singravam em lago de remotos confins. nemsempre se divisava a outra margem e, se surgia, era um simplespespontado negro, na linha do horizonte. a gua dir-se-iasubir, subir em esplanada, para ir despenhar-se em long"n!ua,imponente e imaginria barragem. nas rvores mortas !uearrastava, preguiosamente, pousavam belas pernaltas, algumasadormecidas sobre uma s0 perna e o bico longo semi-oculto nocolo4 outras, de longas asas abertas, ensaiando um voo !uenunca tinha in"cio - um voo !ue era como uma saudaolitrgica ao sol radioso dos tr0picos.

    -8*-

    ainda mais adornos povoavam a gua barrenta, grossa evagarosa na sua marcha como a lava descendo dos vulces$ era omurur, era a aninga, o muri, as ilhas de canarana !ue sesoltavam das margens - um interminvel viveiro de plantasa!uticas e vagabundas, perante as !uais so pobres e tristes

    todos os nenfares orientais. esta, levava as folhas coladas #gua, formando ninho verde e macio4 a!uela, erguia as palmaspara o cu, deixando !ue a luz lhe trespassasse o recortefantasioso - e iam outras ainda, !ue vogavam ligadas entre si,constituindo plinto errante de garas melanc0l"cas. de longe a longe, a brenha rarefazia-se, perdendo altura,esfarrapando-se e entregando-se de todo ao sol, at recuar adescoberto e oferecer aos olhos vasta plan"cie. por landavam, de focinho no cho, incontveis manadas, nas !uaisabriam, por vezes, sinuosas veredas os cavalos corajosos dos

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    va!ueiros. mas logo, vencidas pelas palhetas mais duas ou trs milhas,a selva vinha novamente debruar as margens e to opulenta, toexuberante se mostrava, !ue dir-se-ia recon!uistar ali tudo!uanto perdera na terra calva. contudo, ao panorama magnificente sobrepunha-se no esp"ritode alberto, perturbado por essa pr0pria grandeza indita, !ue

    tanto contrastava com a mes!uinhez e imund"cie do convs, a6nsia de chegar ao seu destino. santarm, de velhas casas a humilharem-se entre as novas, aigreja antiga, seguida pelo adro, a indicar o suave decliveonde se plantara a cidade, foi a primeira pausa na viagem,!uase um per"odo de festa. mole!ues e adultos, negros, mulatose caboclos, invadiram o navio, em ruidosa venda de frutas e decuias de vrios tamanhos e feitios. exposta nos convs anovidade, ou ainda oferecida l de baixo, das canoasatestadas, travaram-se fortes regateios, por!ue os invasores,como os judeus, pediam vinte por a!uilo !ue nem dez valia naopinio dos compradores. as cuias, clebres por darem frescura e fino sabor # gua

    !ue por elas se bebesse, atra"am alberto, !ue em belm nunca

    -5-

    as vira com tanta fantasia decorativa. fruto grande e redondo,os nativos serravam-no pelo meio, extra"am-lhe a polpa intile nas duas metades da casca, submetidas a tratamentos,gravavam a branco sobre o fundo negro caprichosos arabescos,alguns impondo-se j por uma inteno de arte. vendo a curiosidade de alberto, a sua gravata #s riscas, ofato passado a ferro, os vendilhes, tomando-o por abastado,desprezavam os cearenses e, na terceira classe, s0 a eleperseguiam. tanto porfiavam, tanto, !ue o espectculoimprevisto, de comeo uma distraco, se lhe tornara molesto.dominado pelos intrusos, pelos seus constantes movimentos,suas vozes pertinazes, o convs mudara rapidamente defisionomia. e alberto sentiu ento, pela primeira vez, umavaga solidariedade com os cearenses, a solidariedade ego"sta esecreta dos viajantes de comboio, ao verem irromper no seucompartimento novos passageiros. !uando, enfim, os vendedoressa"ram e o barco recomeou a marcha, pareceu-lhe !ue algofraternal se exalava em seu redor, algo !ue lhe erarestitu"do. mas dali para cima no houve dia em !ue o :justo chermont;deixasse de lanar o ferro ante pe!uena cidade ou de atirar a

    amarra a uma ribanceira, "ngreme acesso a algumas raras casas,melancolicamente isoladas na orla da selva. primeiro fora o embar!ue, numa fazenda da margem direita, debois !ue ainda pastavam sossegadamente o capim ribeirinho!uando o vapor acostou. lanavam-nos com um voo apenas dacorda, to eficaz como a dos gachos nas pampas do sul, econduziam-nos para o declive do barranco, onde os ia buscar,pelos chifres, o anel forte do guindaste de bordo. subitamenteelevados, davam meia volta no ar e sempre suspensos entravamno navio, pousando no convs da terceira, entre escouceamentos

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    e arremetidas. alguns, de to irre!uietos durante o transporteareo, perdiam a c0rnea revestidura da armao e ficavamapenas com o cerne, oferecendo # impiedade das moscas duas

    -)-

    curtas hastes sangrentas, duas pobres hastes j inofensivas. de madrugada, alberto acordou com o mugido lamentoso demuitos deles. descerrando os olhos, ainda estremunhado, viuali mesmo, a alguns metros apenas da sua rede, dois vultosagindo numa cena de pesadelo. dir-se-iam dem0nios vermelhos,todos encharcados de sangue, manobrando grandes facas sobregrosso volume, meio imerso na sombra. um deles deteve-se uminstante, ergueu o busto e p

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    brasileiros9 chamando-se cidade #!uilo, o !ue se devia chamarao rio de janeiro9 de sbito ele visionava, por imperiosidadedo pr0prio esp"rito, imensas urbes rompendo do mundo fabuloso,nessas margens onde agora s0 existiam humildes povoados ouapenas selva, fechada em sombra e mistrio. a sua vida de isolado enchia-se de puerilidades, demon0logos interiores !ue a via-sacra ia sugerindo. ainda dera

    apenas uma simpatia$ ao filipe do pinheiro, !ue traziaagregado ao seu nome o da povoao maranhense onde nascera elhe havia oferecido um prato de feijoada no primeiro dia daviagem. palrador e folgazo, amigo de ser til, tinha !uasesempre nos lbios um sorriso de solicitude e uma mentirainofensiva. suprimia, como todos os seus conterr6neos, muitosrr, deixava em silncio s"labas sem conta, acentuava outrasarbitrariamente e entretinha alberto com hist0rias decurupiras e de caadas aventurosas. - uma vez, no acre, tava eu memo cum o rife no ombro a fazpontaria. - mas tu j tiveste no acre9 - interrompeu um dos parceiros. - into num tive9 int me aconteceu.

    todos juravam !ue ele nunca sa"ra de pinheiro, mas aimaginao de filipe era facilmente absolvida.

    -(-

    alberto no tardou, porm, a fatigar-se de seguir a!ueleslongos trotes pelas veredas da superstio e da fantasia. eainda faltavam onze dias2 cada manh ele descontava, comalegria, a noite !ue se esva"ra4 cada tarde, o dia a menos norosrio infindo. por muito mau !ue fosse o seringal, eradecerto melhor do !ue a vida vivida ali. a parintins sucedeu itacoatiara e, na outra margem, indicadapor um dos tripulantes, a bocarra do rio madeira, ondevoltariam ap0s escalar manaus, j perto. a ideia da chegada # capital do imenso estado alvoroavatodos os passageiros. seria uma pausa na subida fastidiosa,seria o prazer de encontrar, enfim, uma verdadeira cidade afulgurar no meio da brenha, uma cidade onde o homem impusera #natureza virgem muitas das con!uistas do seu esp"rito. mesmoaos senhores da primeira classe, !ue j a conheciam, aproximidade de manaus excitava-os. excitava-os mais do !ue aregata mec6nica em !ue o :justo chermont; agora se empenhavacom um outro :gaiola; sa"do do madeira e !ue, emboraintrpido, acabara derrotado, por ser pe!ueno. pouco depois comearam a surgir numerosas ilhas de gua

    negra na gua barrenta do amazonas, grandes n0doas !ue semultiplicavam de momento a momento, alastrando como se de 0leofossem. o curso transformara-se num tapete enorme de duascores movedias - uma a desvanecer-se e a outra aintensificar-se, vitoriosamente. alberto !uedara-se a ver esse fen0meno !ue o rio negroproduzia ao fundir-se no amazonas, repetio, em miniatura,da!uele !ue o amazonas lhe dera, l em baixo, ao afogar-se noatl6ntico. mas filipe veio interromper-lhe a admirao$ - vanc vai a terra, im manaus9

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    - no sei ainda. provavelmente vou. por!u9 - 3 !ui eu !ueria i cum vanc. na terra !ui a gente numconhece, !uanto mais home f

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    manaus era um claro radioso na noite amazonense. a suapoalha luminosa erguia-se at muito alto, empalidecendo asestrelas !ue espreitavam l de cima. e a ba"a estava tambmpovoada de luzes, congestionada de gaiolas, cujos contornos sereflectiam nas guas negras e profundas. de !uando em !uando -chape, chape - passava perto dali um escaler conduzindo

    passageiros de outros navios fundeados. eram vozes !ue seperdiam na noite, vultos !ue regressavam do prazer ou partiam# sua con!uista - esboando-se a!ui e acol nas estradas deluz !ue riscavam o ancoradoiro. tudo parecia voluptuoso echeio de clido mistrio$ a terra ignorada, a cidade avisitar, a rameira apetecida, um gelado ao ar livre - ajuventude desejando o !ue existia e o !ue inventava para suafascinao e tormento. alberto vasculhou a carteira, depois o bolso do colete, emcontagem de notas e moedas. no chegava para a noite. iria demanh, apenas para ver a cidade. a ba"a continuava a ser, para todos eles, uma miragemdeslumbradora, onde estremeciam fantsticos mundos de

    luminosidades e de sombras$ ao espelharem-se na gua, asvigias pareciam dar acesso a on"ricas profundidades e aslinhas dos barcos ad!uiriam expresses de palcios orientais.dum dos navios ancorados chegava o som roufenho dum:harmonium; - persistente e mon0tono como uma cantilena dapr0pria neurastenia. no entrara ningum, mas na!uela noite dir-se-ia haver menosespao na terceira do :justo chermont;, como se a luz !ueiluminava o portal0 ocupasse lugar tambm. alberto deitou-se, sentindo-se provis0rio, agora mais do !uenunca, no entranado de redes, onde todos dialogavam,esgotando o tempo, como se essa noite fosse realmenteexcepcional, ao mesmo tempo reprimida e acrescentada # vidadeles.

    --

    de manh, ao lado dos escaleres !ue vendiam frutas, goiabadae bebidas, surgiram outros a oferecer transporte para terra,!ue passageiros da primeira classe j utilizavam, por!ue onavio no atracaria aos cais flutuantes. alberto debruou-sena amurada e perguntou para fora o preo da travessia. !uasetodos os cearenses lhe seguiam os gestos e as falas, curiososde saber se ele realizaria a sua deciso.

    - !uatro9 - !uatro mil ris - repetiu l de baixo o poveiro,re!ueimado pelo sol. !uatro para a ida e !uatro para a volta. oito. chegava2 fez sinal para o escaler atracar, corrigiu a aba do chapu ecomeou a descer, pronto a insurgir-se contra nova proibiode balbino, se ele a articulasse. mas no. p

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    :gaiolas; fundeados, -enormes caixas de ferro e ar comprimidocom !ue a cidade se defendia do n"vel inconstante das guas,alberto desembarcou, percorreu o suave declive e !uedou-se, jna praa maioral, de mos nos bolsos e olhos no ar. a cidadesurgia-lhe alacremente aberta ao sol, sem prdios negruscos!ue falassem de pocas remotas, nem ruas escusas de temposidos. limpinha, ataviada de rvores por toda a parte,

    dir-se-ia orgulhosa da sua pouca idade, !ue a livrava def"stulas e cicatrizes, menos no leito das ruas, onde osautom0veis !ue passavam tinham balanceios de alto mar. Aes!uerda, por detrs do ren!ue do arvoredo, erguia-se umluxuoso pavilho4 a :bolsa universal;, !ue o fascinavagrandemente. lestos criados transportavam, para o aperitivodas onze horas, bandejas com garrafas de u"s!ue e de vermute,baldes com gelo e copos refulgindo # luz j forte da manh.mais adiante, outro bar, outro, outro e outro, "ndice dacidadebrasileira !ue mais lcool sorvia e onde os neg0cios eram

    -+-

    tratados, como cin!uenta anos antes, #s mesas dos bote!uins. com a tentao na boca e os dedos no bolso, sobre as poucasmoedas !ue l restavam, alberto enfiou na longa rua comercial!ue perto da praa se abria. como no !uinze de novembro, embelm, ali se enfileiravam grandes casas aviadoras - as casas!ue abasteciam os seringais do alto amazonas. algumas deixavamentrever, ao fundo de compridas e soturnas lojas, os seuslotes de borracha, escuras bolas !ue iam sendo cortadas aomeio, metidas em caixas e endereadas a firmas americanas eeuropeias, long"n!uas importadoras. em amos e subalternos eleidentificava muitas expresses patr"cias, pois no trfico elucros da!uela ri!ueza s0 turcos e judeus faziam concorrnciaaos portugueses. vista assim parecera-lhe mes!uinha !uandochegara ao par, ainda plet0rico dos sonhos de estudante, dosvisionados triunfos no foro, logo !ue terminasse o seu cursode direito, !ue a paixo ideol0gica interrompera. mas agora,ante a perspectiva do seringal, invejava tristonhamentea!ueles !ue rabiscavam nos escrit0rios ou presidiam, com asmangas da camisa arregaadas e um lpis na mo, # pesagem daborracha. As seis horas da tarde, #s sete, !uando muito,por!ue o trabalho no comrcio j no avanava pela noite fora,como no tempo do seu tio, estariam livres, no teriam mais !ueaturar os patres e podiam ir para onde !uisessem2 a ideia, apenas formulada, imp

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    -/-

    uma placa amarela, junto # porta de amplo edif"cio,renovou-lhe a confiana, deu-lhe mesmo !uase a certeza$ ouvira j falar na!uela firma. o comendador arago era

    clebre em toda a amaz0nia, pela sua enorme fortuna, vastidode neg0cios e curiosa biografia. fora dos !ue viera detamancos, rude, analfabeto, as ndegas juvenis sempre expostasaos pontaps dos superiores nessa poca, ainda no muitodistante em !ue o comrcio portugus, dentro e fora dametr0pole, se caracterizava por vida autoritria e rotineira.casando a humildade com a esperteza, de marano ascendera acaixeiro e, mais tarde, o amo, tendo de ir curar o f"gado aportugal, entendera !ue a melhor forma de no ser desfalcadopelos empregados, en!uanto estivesse ausente, era fazer de umdeles seu s0cio. arago levara o neg0cio a grandesprosperidades e !uando, anos depois, o abandonou, foi para sededicar a outro mais rendoso. A mercearia sucedera um

    escrit0rio de comisses e consignaes - porta aberta paratodas as grandes fortunas, nesse tempo em !ue no era simplesmetfora chamar-se oiro negro # borracha. arago possu"a j algum crdito e o !ue faltava veio depois.em breve, a sua casa era a !ue mais navios mantinha nos braosdo amazonas e a !ue maior tonelagem reservava nos barcos !uepartiam para a europa e para a amrica do norte e agora, !uerem manaus, !uer no par onde tambm a sua fama chegava,estimulavam-se os maranos, sempre !ue choramingavam pelosmaus tratos recebidos, com o exemplo edificante do comendadorarago, homem !uase fabuloso.

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    todo esse passado de luta e de sofrimento convencia albertode !ue o opulento triunfador compreenderia a angstia do seucaso e o resolvesse eficazmente. para um homem rico como eleno importava, decerto, dar um ordenado a mais ou a menos. ecomo era comendador, devia tambm ser monr!uico. de !ual!uer lado !ue examinasse a pretenso, encontrava-asempre defendida por uma srie de circunst6ncias muito maisfavorveis do !ue as do combate !ue travara em monsanto. elehavia de comover-se. entrou. - o escrit0rio no primeiro andar - disseram-lhe.

    tomou a escada e subiu, o corao acelerado e os nervos emvibrao de !uem se prepara para lance decisivo. l em cima, ao guichet, a cabea !ue o atendeu p

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    duras todas as linhas. - 3 v. ex.a o senhor comendador9 - perguntou alberto,duvidoso ante a!uela expresso !ue tra"a a imagem por elecriada do rico comerciante. - no. o senhor comendador est muito ocupado e mandaperguntar o !ue o senhor deseja. alberto hesitou.

    - 3 assunto particular. para tratar s0 com ele. 3 urgente4so dois minutos apenas. - vamos a ver. mas o senhor comendador est hoje muitoatarefado. o postigo tornou a ficar vazio, mas agora aberto, servindode moldura # m!uina de escrever, !ue se via l dentro. novos passos e, ao fim da divis0ria, abriu-se uma porta,

    -+5-

    deixando vislumbrar o nariz do grave medianeiro$

    - faa favor. mas tem de demorar tempo nenhum !ue o senhorcomendador no dispe de tempo. - no demoro nada - prometeu alberto, entrando noescrit0rio. foi dobrando 6ngulos de carteiras e secretrias entre amsica seca das dactil0grafas, at !ue o outro lhe disse$ - 3 a". alberto estendeu o brao e empurrou suavemente a pp0rtapron>nciando um d-me licena9 humilde. - entre. A mesa preta, farta de papis, sentava-se um homem de facesgordas, bigode branco e larga calv"cie. devia ser baixo epossuir vasto abdome, ao !ue enunciava o tronco, sobre cujacamisa se cruzavam uns suspens0rios de cor.. ao lado reluzia ocofre e, em pe!uena prateleira o telefone, com a lista dosassinantes dependurada numa escpula. nas paredes, asfotografias dos navios da casa, em molduras doiradas. - 3 o senhor comendador9... - balbuciou alberto. - sou. !ue deseja9 - perguntou, sem levantar os olhos, semindicar a cadeira !ue junto da mesa se oferecia e sem deixarde examinar os seus papis. ante o frio acolhimento, todo o discurso !ue alberto haviatecido se baralhou, perdendo l0gica e se!uncia as palavras deefeito !ue pensara dizer. e, na confuso do instante, disparouo seu melhor argumento, a!uele !ue supusera decisivo no 6nimodo comendador. - eu sou um exilado pol"tico. sou monr!uico e tomei parte

    na ltima revolta de monsanto, de !ue vossa excelncia4decerto, ouviu falar. como arago no se mostrasse pressionado, nem disposto aabandonar a papelada, repetiu$

    -+)-

    - como disse a vossa excelncia, sou monr!uico. de monsanto

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    tive de fugir para espanha e de l vim para a!ui. o comendador, pressentindo inc0modo, !uebrou, enfim, o seusilncio$ - e !ue !ue deseja9 - encontro-me sem recursos... e como sei !ue vossaexcelncia um corao generoso e tem uma grande casacomerial, vinha pedir-lhe um emprego. !ual!uer coisa me serve

    - acrescentou apressadamente, vendo o gesto de enfado !uearago fazia. - no !uero grande ordenado4 apenas o suficientepara eu poder viver. - 3 imposs"vel2 - exclamou o comendador, !uase gritando. -todos os dias me fazem pedidos desses$ nem !ue eu fosse donode todo o comrcio de manaus, podia empregar toda a gente !ueme recomendam. compreende9 - eu tenho algumas habilitaes4 fiz o !uarto ano de direitoe j estaria formado se no fosse ser monr!uico... - pois isso !ue o mal2 os senhores, em vez de teremju"zo, andam sempre l aos tiros e #s revolues, !ue at noscausam vergonha2 - mas o senhor comendador no ignora o !ue tem sido a

    repblica. - ora2 ora2 tanto faz uma coisa como outra. o !ue cada umdevia era tratar de si, pois todos so portugueses. mudou de tom$ - no. no pode ser. eu no preiso de empregados. com aactual crise da borracha, o !ue eu precisava era de despediralguns !ue tenho a mais. - est muito bem, senhor comendador. desculpe t-loincomodado - disse alberto, com dignidade$ - espere a". levou o brao rolio e felpudo, de manga arregaada, aocasaco !ue estava dependurado nas costas da cadeira4 e de umbolso extraiu algumas notas, das !uais separou uma de cincomil ris, a mais pe!uena.

    -+&-

    - pegue l. as faces de alberto coloriram-se e pareceu-lhe vacilar ocho !ue ele pisava. - eu no vim pedir-lhe uma esmola, senhor comendador4 vimpedir-lhe trabalho. surpreendido, arago olhou-o, de mau modo. e ele saiu,formalizado. o negociante recolheu o dinheiro e disp

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    alegria do tr6nsito em cidade desconhec"da. renunciou a ver de perto o teatro amazonenss, famoso em todoo norte do brasil, com sua cpula orgulhosa, !ue lhe sugeria,!uando a vislumbrara de bordo, velha perspectiva deconstantinopla, encontrada nas pginas duma revista. lentamente tomou o caminho do porto. passavam carroselctricos, autom0veis e carroas, muitas carroas, em cujos

    condutores reconheceu tambm vozes de portugueses. todos iamarranjando a sua vida, menos ele2 e !uem sabe9 !uantos outroshaveria !ue nem uma carroa... no cais, l estavam os escaleres dos poveiros, com um poucode gua a estremecer no fundo e encharcados de sol. embarcou num deles, o esp"rito mole perante o destino epronto a submeter-se a todas as circunst6ncias, num deixa -irde tronco arremessado # corrente, como esses !ue encontraradurante a subida do rio.

    -+(-

    !uando o bote se avizinhou do :justo chermont;, os primeirosolhos !ue se cruzaram com os seus foram os de balbino, !ue ofitava longa e friamente, l de cimada primeira classe. imaginou, ento, uma vasta srie de conflitos, de !ue ooutro seria autor e ele a v"tima. mas no. entrou a bordo com a mesma facilidade com !uesa"ra. da amurada, os cearenses entretinham se a pescar, comum alfinete transformado em anzol na ponta dum barbante,pe!uenos e escuros peixes !ue fervilhavam, em bando, junto donavio. umas simples migas os atra"a e !uando algum, maisfrgil, se deixava iar, era estrepitosa a recepo entre orebanho encarcerado. filipe veio colher impresses$ - into9 !ui tal a cidade9 - 3 bonita. no contente com o laconismo, filipe insistiu$ - e a respeito de muieres9 - tambm as h por l bem boas. alberto afastou-se, cerrando o dilogo, !uase desejoso de!ue balbino surgisse para li!uidar o epis0dio e ele saber como !ue podia contar.

    iv

    em a sua subalternidade de afluente, de simples brao dogigante, tirava ao madeira grandeza e imponncia. nele :justochermont; navegava h !uatro dias j e anunciavam-se aindamais !uatro ou cinco antes !ue a veia colossal deixasse deoferecer tr6nsito # !uilha do barco. ao seu lado, tomando-lhea dianteira, por irem em rota directa, passavam, causando oassombro de alberto, navios de alto mar, vindos dos estadosunidos a itacoatiara, e dali a porto velho, tran!uilos como se

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    andassem em gua onde a sonda no encontra fundo. e to longecresciam as margens, !ue a cantilena dos guaribas, ao ecoar abordo, parecia vir de outro mundo. os grandes rios de portugal, o tejo e o douro, comparadoscom a!uele, faziam sorrir alberto. cada pe!ueno :igarap; !uedesaguava no madeira, cujo nome ningum lhe sabia dizer, tinhamais largueza do !ue o vouga, o cvado, o ave ou o guadiana,

    de existncia decorada nos primeiros bancos escolares e agoraevocados com saudade, pela sua gua de azul pur"ssimo e suascurvas rom6nticas, !ue os amieiros debruavam. ali tudo perdia as propores normais. olhos !ue enfiassem,pela primeira vez, no vasto panorama, recuavam logo sob asensao pesada do absoluto, !ue dir-se-ia haver presidido #formao da!uele mundo estranho.

    -+-

    a terra ia crescendo e a mata fechando-se cada vez mais. j

    no se viam, como nos arredores do maraj0, os troncos dasrvores a penetrarem na vasa !ue as correntes e as marstraziam e alimentavam, nem longos per"odos de calv"cie,aproveitados para a indstria pastoril. terra livre !ue seencontrasse, fora limpa a ferro e fogo pelo brao humano, noseu primeiro contacto com a selva dominadora. as margens ofereciam agora, no meado do vero, uma alturaenorme e eram barro gretado, desvendando ra"zes e caindo aospedos, iam corroendo tudo a!uilo, assoreia a!ui, dragaacol, numa faina silenciosa e constante. algumas casas demanicor, !ue certamente tinham lanado outrora os seusalicerces a muitos passos da margem, estavam agora debruadassobre o abismo e outras j haviam nele tombado, deixando dasua existncia vagos escombros apenas. e, para cima, o drama repetia-se sempre$ descolavam-se"ngremes ribanceiras, arrastando na !ueda algumas nesgas dafloresta, bos!ues !ue depois flutuavam, destroados, ao saborda corrente e !ue teriam sugerido ao lusitano melo palheta osegundo nome do rio. mas essa madeira de raiz # vela, antes mesmo de ter dadocrisma # via condutora, assassinara o portugus audacioso !uepor ali se aventurou, em cate!uese e exterm"nio dos selv"colas!ue na brenha tinham ptria livre. saira do par a flotilhados calhambe!ues !uando o sculo xvii iniciava os seusprimeiros passos4 e navega, navega, ora a pano enfunado, ora aremo bem batido, entrara, ap0s muitas semanas de admirao,esforo e receio de ciladas, na boca do madeira, larga de

    !uil0metros. comandava-a, com toda a altivez, joo de barrosguerra, capito-mor do par, onde a metr0pole distanteintensificava o seu poderio, desejosa de obter projeco novasto territ0rio !ue mais se adivinhava do !ue se conhecia. do assombro !ue nas almas lus"adas, audazes, cobiosas erudes, erguera a!uele mundo embrionrio, !ue sculos depois

    -++-

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    ainda espanta e amedronta, no ficara linha nas cr0nicas. massoube-se, !ue indo barros guerra beirando uma das margens dorio - um olho no leme, outro na terra, no fosse surdir damaranha ribeirinha a flecha certeira e envenenada do "ndio -grande rvore se desprendera e ca"ra, esfrangalhando aembarcao e dando morte ao desbravador. a selva virgem

    parecia !uerer assim castigar a!uele !ue ousava violar o seumistrio. o rio, de novo fechado # insaciedade lusitana, s0 em )+&(volta a encontrar excursionista temerrio. francisco de melopalheta. transposta a foz, ele v em cada rvore !ue desce,escura, sem folhas j, metade da raiz escondida na gua eoutra metade ao lu, um inimigo - o defensor mudo e erradioda!uelas paragens incognosc"veis. a proa do seu barcofoge-lhes de instante a instante. mas so muitas, atrs de umaoutra vem, a mais pe!uena logo seguida por outra maior, comose a sua marcha lenta de vagabundas obedecesse a uma vontadeoculta. vendo esse destacamento da selva, melo palheta,conhecedor do perigo !ue os troncos escondiam sob a aparente

    inofensividade, exclamou um dia$ - rio ca@ar@9 no. rio da morte. rio da madeira. prudente na sua audcia, o lus"ada foi remontando sempre ocurso !ue parecia interminvel - um ms atrs de outro, umesforo sobre outro esforo. em cada curva !ue fechava aperspectiva desenhava-se e crescia, subitamente, umainterrogao. tudo era brenha e tudo era dado admitir paraalm do !ue no se via. o estranho, vindo de outro cenrio,com a sua ambio, subia o mundo ignorado, entregando-lhe avida. no sabi