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FESTEJANDO A LIBERDADE NO BEMBÉ DO MERCADO Realizado pela primeira vez em Santo Amaro para comemoração do fim da escravidão, Candomblé de rua até hoje é uma das mais tradicionais festas do Recôncavo. Por Isadora Maria Lima da Silva, Bolsista PINAF do CAHL / UFRB E-mail: [email protected] Orientador: Leandro Antonio de Almeida LEHRB Acontece todos os anos, no dia 13 de maio, em comemoração a Abolição dos escravos, o Bembé do Mercado de Santo Amaro da Purificação. No centro da cidade do Recôncavo da Bahia, o largo principal do mercado é cenário do maior Candomblé de rua do Brasil. Durante três noites, todos os terreiros da cidade reunidos batem o Candomblé (o Bembé) com o objetivo de reverenciar seus ancestrais e Orixás. Para os participantes do Candomblé “bater o Bembé” significa reafirmar a liberdade do povo negro, “abrir os caminhos” para boas energias e bons acontecimentos durante o ano todo. Na canção “13 de Maio”, Caetano Veloso nos conta: “Dia 13 de maio, em Santo Amaro, na praça do mercado, os pretos celebravam, talvez hoje ainda o façam, o fim da escravidão, o fim da escravidão, da escravidão...”. Caetano nesta canção fala sobre o Bembé como reverência a Isabel: “tanta pindoba, lembro do aluar, lembro da maniçoba, foguete no ar..pra saudar Isabé, Isabé”. Entre os populares corre a ideia de que “bembé” seria a forma como os negros conseguiam pronunciar o nome Isabel associado a ideia de bem, bem-querer... isabé, bem bé. Para alguns pesquisadores, como Ubiratan Castro e Zilda Paim, a palavra bembé seria uma corruptela do termo candomblé, dai a expressão “bater o bembé”, “bater o candomblé”. Lutas pela Liberdade Seja qual for a origem da palavra, as primeiras celebrações da festa surgem no conturbado contexto pós-abolição do Recôncavo. A historiadora, Katia Mattoso diz :Quem pensa na Bahia dos séculos XVII e XIX pensa imediatamente na Bahia Capital do Açúcar, na opulenta cidade dos senhores de Engenho e de seus escravos. É impossível compreender a cidade da Bahia sem compreender seu Recôncavo.” Principal centro produtor e exportador de cana de açúcar, e também de grande variedade de cultivo agrícolas - fumo, mandioca, feijão - o Recôncavo Baiano era responsável pelo abastecimento dos gêneros de primeira necessidade da capital e região. Segundo o Historiador Walter Fraga, no século XIX as freguesias rurais das cidades de São Francisco do Conde, Santo

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FESTEJANDO A LIBERDADE NO BEMBÉ DO MERCADO

Realizado pela primeira vez em Santo Amaro para comemoração do fim da escravidão, Candomblé de rua até hoje é uma das mais tradicionais festas do

Recôncavo.

Por Isadora Maria Lima da Silva,

Bolsista PINAF do CAHL / UFRB

E-mail: [email protected]

Orientador: Leandro Antonio de Almeida

LEHRB

Acontece todos os anos, no dia

13 de maio, em comemoração a

Abolição dos escravos, o Bembé do

Mercado de Santo Amaro da

Purificação. No centro da cidade do

Recôncavo da Bahia, o largo principal

do mercado é cenário do maior

Candomblé de rua do Brasil. Durante

três noites, todos os terreiros da

cidade reunidos batem o Candomblé

(o Bembé) com o objetivo de

reverenciar seus ancestrais e Orixás.

Para os participantes do Candomblé

“bater o Bembé” significa reafirmar a

liberdade do povo negro, “abrir os

caminhos” para boas energias e bons

acontecimentos durante o ano todo.

Na canção “13 de Maio”,

Caetano Veloso nos conta: “Dia 13 de

maio, em Santo Amaro, na praça do

mercado, os pretos celebravam,

talvez hoje ainda o façam, o fim da

escravidão, o fim da escravidão, da

escravidão...”. Caetano nesta canção

fala sobre o Bembé como reverência

a Isabel: “tanta pindoba, lembro do

aluar, lembro da maniçoba, foguete no

ar..pra saudar Isabé, Isabé”. Entre os

populares corre a ideia de que

“bembé” seria a forma como os

negros conseguiam pronunciar o

nome Isabel associado a ideia de

bem, bem-querer... isabé, bem bé.

Para alguns pesquisadores, como

Ubiratan Castro e Zilda Paim, a

palavra bembé seria uma corruptela

do termo candomblé, dai a expressão

“bater o bembé”, “bater o candomblé”.

Lutas pela Liberdade

Seja qual for a origem da

palavra, as primeiras celebrações da

festa surgem no conturbado contexto

pós-abolição do Recôncavo. A

historiadora, Katia Mattoso diz

:“Quem pensa na Bahia dos séculos

XVII e XIX pensa imediatamente na

Bahia Capital do Açúcar, na opulenta

cidade dos senhores de Engenho e de

seus escravos. É impossível

compreender a cidade da Bahia sem

compreender seu Recôncavo.”

Principal centro produtor e

exportador de cana de açúcar, e

também de grande variedade de

cultivo agrícolas - fumo, mandioca,

feijão - o Recôncavo Baiano era

responsável pelo abastecimento dos

gêneros de primeira necessidade da

capital e região. Segundo o

Historiador Walter Fraga, no século

XIX as freguesias rurais das cidades

de São Francisco do Conde, Santo

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Amaro e Cachoeira concentravam

90% dos engenhos do Império.

Ainda segundo Fraga, o

Recôncavo Baiano experimentou crise

financeira desde a década de 1870,

provocada pela queda dos preços e

diminuição da exportação do açúcar;

aliado a extinção do tráfico negreiro

em 1850, e pelas leis que definiam

algum direito aos escravos, entre

décadas de 1870 e 1880 - como a lei

do ventre livre e a do sexagenário.

Mesmo assim, nos últimos anos do

século, representava do ponto de

vista econômico a mais importante

região da província, por consequência

era a região que reunia o maior

número de escravos. Daí porque os

senhores de engenho do Recôncavo

se opuseram a qualquer projeto ou

tentativa de acabar com a escravidão.

Logo no dia 14 de maio de

1888, dia seguinte à promulgação da

Lei que garantiria a liberdade dos

negros escravizados, os “ex-senhores

de escravos” santoamarenses,

inconformados com a abolição, se

articularam politicamente na tentativa

de revogar a nova lei. Toda ordem de

repressão aos negros tomou conta do

lugar, os “ex-senhores” mobilizaram

inclusive a força policial da cidade.

O esforço se justificava pelo

desejo de conter a população negra

em festa, restabelecer a ordem,

proteger a propriedade privada e,

principalmente, a relação

senhor/escravo. Tanto é que os

senhores de engenho renitentes com

a abolição acreditavam e falavam que

a lei seria revogada. Chamavam os

homens de cor agora livres

pejorativamente de os “treze de maio”.

Reza a memória popular que diziam

em versos: “Nasceu periquito, morreu

papagaio, não quero conversa com

Treze de maio”. Os barões de Santo

Amaro com apoio policial tentaram

inutilmente proibir o ajuntamento dos

negros ainda em festa pela abolição.

Apesar das manobras

empreendidas pelas elites locais, os

negros resistiram à repressão e as

tentativas de manutenção da

escravidão. Um ano após a assinatura

da Lei Áurea, o pai de terreiro João de

Obá organizou em Santo Amaro uma

celebração do primeiro aniversário da

liberdade. Trazido da África para

trabalhar na lavoura de açúcar, Obá

era muito respeitado como feiticeiro:

sabia a arte do Ifá (jogo de búzios),

profetizava e aconselhava sobre os

“trabalhos” a serem feitos pelos filhos

de santo para livra-los de problemas.

Em 13 de maio de 1889, João

de Obá juntou seus filhos de santo na

ponte do Xaréu e tocou o primeiro

Bembé em um barracão de pindoba

(nome popular de uma espécie de

palmeira), que foi enfeitado com

bandeirolas e armado no centro do

largo do mercado da cidade. Ao som

de atabaques e ritos do candomblé,

os negros festejaram e agradeceram

a liberdade a todos os Orixás.

O Bembé

O Bembé foi realizado durante

três noites, e finalizado com a entrega

do balaio de presentes no Rio Subaé

para a Mãe D’água. Seguiam para

São Bento das Lajes com canoas e

saveiros enfeitados. Ao som dos

atabaques, iam até o encontro entre o

rio e o mar para a entrega das

oferendas. Em sua dissertação de

mestrado sobre o Bembé, a

pesquisadora Ana Rita Machado

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destaca que a entrega do balaio de

presentes era um antigo costume dos

pescadores que ofertavam flores e

perfumes para a Mãe D'água. Até

hoje esse costume permanece nas

festas em homenagem a Iemanjá que

ocorrem no início de fevereiro em

Salvador e Cachoeira.

Após da morte de João de Obá,

os negros pescadores, adeptos do

candomblé, assumiram a realização

do Bembé. Algumas mudanças nos

festejos foram ocorrendo ao longo do

tempo. Em 1930, os negros decidiram

não mais bater o Bembé na ponte do

Xaréu e passaram para o prédio do

Mercado recentemente construído, o

que ampliou a participação da

comunidade nos festejos. Pouco a

pouco foram se inserindo a festa

grupos que representam a cultura

afro-brasileira, como capoeiras,

sambadeiras e maculelês.

Todos os anos, através do

babalorixá, ogãs e equedes, o terreiro

responsável pela organização do

Bembé do mercado cumpre algumas

cerimônias ritualísticas antes e

durante a festa. Por força dos

fundamentos do candomblé, os

iniciados reverenciam os ancestrais

fundadores do Bembé, saúdam os

orixás com oferendas, seguido de

diversos ritos destinados a Iemanjá.

Para os não iniciados a participação

no Bembé acontece apenas durante o

Xirê, a sequencia na qual os Orixás

são reverenciados com cânticos e

danças sagradas no barracão do

mercado nos três dias de festa.

Três dias antes da festa são

realizados ritos privados para Egum e

cerimônias para Exu, o padê. Antes

do início das cerimônias públicas ou

privadas, se oferecem a Exu

alimentos e bebidas votivas, animais

sacrificados, com o objetivo de que

permita os trabalhos, para que não

haja confusões e que interceda pelos

homens aos orixás que serão

invocados no culto. Também

conhecido como despacho de Exu,

acontecem nas encruzilhadas de

acesso a cidade.

Após o padê de Exu prepara-se

o espaço da festa. Os iniciados

levantam o mastro sagrado, o ixé, no

poste central do barracão do

mercado, com objetivo de sacralizar o

território, preparar o chão e os axés -

termo que significa "energia", "poder",

"força". No caso do ritual do Bembé

refere-se aos assentamentos de

orixás que ficam nos pejis - altares de

candomblé - mas também significa a

força mágica que sustenta os terreiros

de candomblé.

A véspera do dia 13 de maio é

o dia da preparação para o presente

de Iemanjá. Os integrantes do terreiro

aprontam a comida e as oferendas

para Ogum, Oxum, Oxossi, Nana,

Oxalá, Xangô, Agôdo e Oxaguiã,

orixás que têm alguma relação com

Iemanjá. Ocorrem ritos de fundamento

para que o barco que carrega as

oferendas seja sacralizado.

No ultimo dia da festa, no

barracão, a mãe de santo mais antiga

da cidade anuncia a aceitação das

oferendas pelos Orixás, através de

um rito com Obi, um fruto de palmeira

africana muito utilizado em rituais de

candomblé. Então os ogãs

reverenciam o presente com as

oferendas nas mãos e estouram fogos

de artifício. Por fim, as oferendas

seguem em um caminhão pelas ruas

da cidade até a praia de Itapema, ao

som de cânticos, atabaques e agogôs.

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Significado para Santo Amaro

Se a realização do Bembé

significa agradecimento pelo fim da

escravidão e “abertura dos caminhos”,

uma espécie de rito de benção para

bons acontecimentos, corre entre a

população que a sua não realização

significa mau presságio: “é de

responsabilidade não deixar de bater

o Bembé”, a custa de tragédias na

cidade. Em quatro ocasiões em que o

Bembé não foi realizado ocorreram

catástrofes em Santo Amaro.

Dentre as histórias que

colaboram para a certeza da

população quanto a relação entre ato

de proibição do Bembé e eventos

catastróficos, a de 1958 é a mais

marcante, pela proporção e

proximidade temporal. O prefeito da

época, Manoel Marques, alegando

que não fazia sentido três dias de

barulho, suspendeu a realização do

Bembé. Em junho, próximo aos

festejos de São João, Santo Amaro

experimentou um sentimento de luto

coletivo profundo quando uma

explosão das barracas de dinamite no

largo do mercado provocou a morte e

mutilação de muitas pessoas.

Automaticamente a tragédia foi

atribuída à não realização do Bembé.

Desde 1959, a Prefeitura

Municipal de Santo Amaro patrocina

os festejos, mas a coordenação do

ritual ainda pertence aos terreiros.

Vislumbrando exploração turística, a

prefeitura passou a inserir grupos

folclóricos na festa. Além dessa, outra

mudança ocorrida no Bembé do

Mercado foi a mudança do lugar da

entrega do balaio de presentes, que

passou de São Bento das Lajes para

a praia de Itapema.

Apesar das transformações

sofridas e da apropriação política de

uma manifestação popular, a

comemoração não perdeu o

significado de afirmação da liberdade.

O historiador Ubiratan Castro destaca

o Bembé do Mercado como ícone da

força da cultura afro-brasileira para

afirmação da cidadania negra, pois

representa a “histórica luta popular

contra o cativeiro” no Brasil.

SAIBA MAIS:

ALBUQUERQUE, Wlamira Ribeiro de Santos; FRAGA FILHO, Walter. Uma História do negro no Brasil. Salvador. CEAO e Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.

ARAUJO, Ubiratan Castro. O candomblé da liberdade. (2003) Disponivel em: http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2010/11/O-CANDOMBL%C3%89-DA-LIBERDADE.pdf Acesso em 20 jul. 2014.

FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhada da Liberdade: história de escravos e libertos na Bahia (1870 – 1910). Campinas: UNICAMP, 2006.

MACHADO, Ana Rita Araujo. Bembé do largo do mercado: memória sobre o 13 de Maio. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Dissertação de Mestrado, 2009.

RISÉRIO, Antonio. Uma história da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2004.

VELLOSO, Jorge. Candomblé de rua: o Bembé de Santo Amaro. Salvador: Casa de Palavras, 2011.