Fichamento Hermenêutica Soares

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Fichamento: Hermenêutica e interpretação jurídica (Ricardo Maurício Freire Soares) Parte I: Noções fundamentais de hermenêutica e interpretação do direito 1- Etimologicamente, hermenêutica (hermeneuein) é a revelação de uma mensagem, do significado daquilo que se mostra, é torna-lo compreensível. “Tudo o que é apreendido e representado pelo sujeito cognoscente depende de práticas interpretativas. Como o mundo vem à consciência pela palavra, e a linguagem é já a primeira interpretação, a hermenêutica torna-se inseparável da própria vida humana” (p. 4). O autor coloca, portanto, hermenêutica como teoria da interpretação, cabendo a ela refletir sobre o substrato (método, essência do objeto, pressupostos, etc.) da tarefa de interpretar (concebida pelo autor como “compreensão dos fenômenos culturais por meio da mediação da obra com a comunidade humana”). 2- Soares destaca a necessidade de ir além da hermenêutica técnica, buscando sua face filosófica, de onde nasce e para a qual sempre retorna diante de questões mais complexas, no limiar do saber solidificado (e instável) da técnica. Contra os mitos de neutralidade e cientificidade restrita, a historicidade hermenêutica, mais abrangente, compreendendo o direito como fenômeno amplo, “normativo-comportamental”. Traçando um panorama histórico, o autor ressalta a importância de Schleiermacher por seu olhar sobre o sujeito comunicativo, uma visão hermenêutica psicologizada, além de ter contribuído ao sustentar uma teoria geral da interpretação por trás da arte que é cada interpretação singular. Já Dilthey voltará sua atenção para a “experiência concreta, histórica e viva” como ponto de partida e chegada do conhecimento humano; a compreensão da mensagem constituiria nova experiência, em vez de um resgate pleno da antiga. Outro filósofo importante na constituição das ideias hermenêuticas foi Heidegger, para o qual “compreender é um modo de estar, antes de configurar-se como método científico” . Seu conceito de Dasein (Ser-aí, Ser-no-mundo) rompe o dualismo sujeito c e objeto, fundindo-os, em favor de um pensamento temporal, que

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Fichamento: Hermenêutica e interpretação jurídica (Ricardo Maurício Freire Soares)

Parte I: Noções fundamentais de hermenêutica e interpretação do direito

1- Etimologicamente, hermenêutica (hermeneuein) é a revelação de uma mensagem, do significado daquilo que se mostra, é torna-lo compreensível. “Tudo o que é apreendido e representado pelo sujeito cognoscente depende de práticas interpretativas. Como o mundo vem à consciência pela palavra, e a linguagem é já a primeira interpretação, a hermenêutica torna-se inseparável da própria vida humana” (p. 4). O autor coloca, portanto, hermenêutica como teoria da interpretação, cabendo a ela refletir sobre o substrato (método, essência do objeto, pressupostos, etc.) da tarefa de interpretar (concebida pelo autor como “compreensão dos fenômenos culturais por meio da mediação da obra com a comunidade humana”).

2- Soares destaca a necessidade de ir além da hermenêutica técnica, buscando sua face filosófica, de onde nasce e para a qual sempre retorna diante de questões mais complexas, no limiar do saber solidificado (e instável) da técnica. Contra os mitos de neutralidade e cientificidade restrita, a historicidade hermenêutica, mais abrangente, compreendendo o direito como fenômeno amplo, “normativo-comportamental”. Traçando um panorama histórico, o autor ressalta a importância de Schleiermacher por seu olhar sobre o sujeito comunicativo, uma visão hermenêutica psicologizada, além de ter contribuído ao sustentar uma teoria geral da interpretação por trás da arte que é cada interpretação singular. Já Dilthey voltará sua atenção para a “experiência concreta, histórica e viva” como ponto de partida e chegada do conhecimento humano; a compreensão da mensagem constituiria nova experiência, em vez de um resgate pleno da antiga. Outro filósofo importante na constituição das ideias hermenêuticas foi Heidegger, para o qual “compreender é um modo de estar, antes de configurar-se como método científico”. Seu conceito de Dasein (Ser-aí, Ser-no-mundo) rompe o dualismo sujeito c e objeto, fundindo-os, em favor de um pensamento temporal, que dialogue passado, futuro e presente. Um novo paradigma hermenêutico foi inaugurado por Gadamer, ao colocar que “o significado não aguarda ser desvendado pelo intérprete, mas é produzido no diálogo estabelecido entre o hermeneuta e a obra”. Assim, em vez de haver um significado em si da mensagem, o que há é um constante diálogo entre texto e interprete (a partir de seus pré-conceitos, da sua bagagem), do qual surge toda condição de possibilidade de significado. Por fim, Soares expõe brevemente a contribuição de Ricoeur, o qual concilia a divisão diltheyana entre compreensão e explicação através do dualismo da experiência humana: estruturante – o intencional e possível, e estruturado – o involuntário e o explicável. Assim, desvelar o conteúdo de certa obra requer análise de sua estrutura interna (sentido) e do seu poder de estender-se para além de si (alcance ou referência).

3-Sobre a singularidade da intepretação do direito, Soares arma-se com a construção de Betti, para quem “a interpretação é um reconstruir um espírito que, através da forma de representação, fala ao espírito do intérprete, como fenômeno inverso do processo criativo”. Destaca também o papel criativo e renovador que a hermenêutica jurídica apresenta, arejando um ordenamento que deve ser dinâmico para bem acompanhar uma vida social dinâmica, sempre procurando como resultado uma decisão e ação prática (função normativa), ou mesmo com função cognoscitiva, apenas para interpretar o pensamento pretérito.

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4- A hermenêutica jurídica não se separa de sua dimensão axiológica. Isto se dá porque o direito precisa ser compreendido (como ocorre com os objetos das ciências do espírito), isto é, deve ser envolto em suas possibilidades de sentido. Coisa diferente ocorre com os objetos das ciências naturais, que carecem de explicação, movimento de ordem causal. Dualidade semelhante se encontra em Perelman (argumentação x demonstração). Toda ordem (inclusive e sobretudo a jurídica) possui uma estrutura de significação, a ser confirmada pelas ações no plano concreto (o cumprimento ou não da norma já implica sua significação a priori, sua existência e valor como referencial). Para Soares, seguindo o raciocínio de Machado Neto e Cossio, para compreensão jurídica, deve-se procurar amparo em um método empírico-dialético. A empiricidade do fato concreto (substrato) interage dialeticamente com a norma (que lhe confere sentido).

5- Interpretação e linguagem: Todo objeto hermenêutico é mensagem transmitida de um emissor para um destinatário, é, pois, linguagem. Sobre este objeto, cabem análises semióticas (entendida aqui como teoria geral dos signos linguísticos). Ora, a função da linguagem é plural, mas é possível destacar seu papel de representação do real, de tornar viável a comunicação de valores, condutas, ideias, etc. A plurivocidade é sua nota característica, é sempre equívoca (“Todos os dicionários juntos não contêm nem metade dos termos de que precisaríamos para nos entendermos uns aos outros”, Saramago). Então é possível dizer que o “significado não constitui um dado prévio – é o próprio resultado da tarefa interpretativa”, ou seja, diante da pluralidade de sentidos, é o intérprete que ativamente elege (e sustenta discursivamente) um deles como significado. O direito é texto e é linguagem, cabendo, portanto, sua análise através dos ramos da semiótica: sintaxe (estudo de relações entre signos), semântica (entre o signo e a realidade à qual remete) e pragmática (entre o signo e os sujeitos da comunicação). A interpretação jurídico-legal é uma paráfrase do texto original, criada a partir de valores presentes em uma comunidade sociolinguística (sua eficácia argumentativa dependerá da compatibilidade com a plateia – Perelman). Assim, “fixar um sentido, dentro do horizonte de significações possíveis, é a ingente tarefa do hermeneuta”.Se o direito pode ser concebido por uma linguagem, o conhecimento sobre ele se estrutura como metalinguagem. Através da interpretação, o hermeneuta “põe palavras na boca da lei”, já que ela, por si só, nada fala. É ele quem fará a mediação entre o direito positivo e a realidade concreta.

6- Sem embargo de sua carga filosófica, pode-se exigir também da hermenêutica um papel pragmático, como tecnologia para extrair interpretações. Essa tecnologia se compõe conforme a doutrina clássica em cinco métodos: gramatical, lógico-sistemático, histórico, sociológico e teleológico. Soares destaca que a teleologia (busca do fim, do objetivo do preceito) perpassa toda a tecnologia hermenêutica em seus variados métodos, constituindo esta busca dos fins o objetivo mesmo desta operação.

7- Neste ponto, Soares introduz uma querela pertinente à hermenêutica jurídica: seu papel seria buscar a vontade do legislador historicamente situado (subjetivismo) ou da lei como texto consolidado (objetivismo)? No primeiro caso, dá-se uma interpretação de cunho conservador, porque o jurista, como que médium, resgata do passado a vontade pessoal dos que deram origem à lei. No segundo, haverá um pensamento mais progressista por parte do

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jurista-cientista, que resgata o sentido da lei socialmente situada. Portanto, há um debate entre a fixidez da ordem e a dinamicidade jurídica. Para além deste debate, o que Soares reforça é que o significado do texto não pode ser encontrado completamente na norma, como também não pode ser inteiramente fruto do sujeito que o procura. Ele se encontra, pois, entre o objeto e o sujeito, havendo espaço para criação de uma paráfrase, com participação do intérprete mas sem prescindir do texto original. Por isso falar em um novo objetivismo.

Parte II: A pós-modernidade jurídica e o paradigma hermenêutico emergente

1- Aqui, o autor retraça em linhas gerais o paradigma moderno, seu contexto e espírito intelectual geral. Com Bacon constrói-se a esperança de dominar a natureza a partir do conhecimento. Descartes concebe um cogito racional como essência do sujeito. Locke marca a teoria política por sua defesa do mercado e dos direitos fundamentais. Com Kant a dimensão ética do homem alcança um novo patamar, o crivo da razão e da universalidade. Lembra-se também a contribuição kantiana na construção de um sujeito cujo conhecimento tem limites, mas que são amplos e abrem um horizonte de esperança e possibilidades. Como ideia geral da modernidade, coloca-se a fé na razão, em um conhecimento imparcial, objetivo e fiel ao real. Mais ainda: a fé na capacidade de gerir a vida humana, política, jurídica, econômica, ética, etc., através deste saber racional, que levaria a um progresso, bonança e felicidade inevitáveis.

2- Inserem-se agora as particularidades do paradigma jurídico moderno, cujo pilar foi (e é) o Estado de Direito, no qual o político e o jurídico se fundem, estando aquele conformado às normas deste. Esta nova configuração, em oposição ao absolutismo, trará como megaprincípios a separação de poderes (da qual surgirá o dogma da não intervenção do juiz na lei, da subsunção direta e calada), o constitucionalismo (pedra angular do movimento de codificação, que solidifica um direito e impõe ao poder uma racionalidade legal-burocrática) e a soberania nacional. Soares complementa passim com a interconexão deste paradigma jurídico aos históricos interesses da classe burguesa, que ascendeu reclamando um direito natural e que se consolidou através do direito positivo, que arrasta consigo uma leva de crenças, como a da perfeição e completude do ordenamento, o da subsunção perfeita, etc.

3- Sobre o colapso da modernidade jurídica, Soares afirma que as promessas modernas foram perdidas em meio a suas contradições (universalidade versus desigualdades, por exemplo). O vetor regulação muito avançou sem que houvesse correspondente emancipação (sociedade disciplinar, diria Foucault? Ou em crítica marxista: quem se emancipou?). Foi denunciado o interesse do discurso, que ao invés de ser neutro, é intencional e parcial. Haverá avanço técnico, mas não igualitário progresso material, como prometido, desembocando assim em uma sociedade individualista, alienada, coisificada e massificada. Novas formulações surgem para novos paradigmas científicos, colocando em xeque a incontestabilidade da razão moderna. “A verdade brota de uma comunidade específica”, sendo, pois, cultural, não revelada. Ela exige a falseabilidade como condição de possibilidade (Popper) e só é possível em paradigmas que não são totalizantes, mas contextuais e históricos (Kuhn). Nada é racional em si porque nada fala por si, tudo depende mesmo que minimamente de um discurso enunciativo e de uma argumentação, funções do sujeito.

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4- Cultura jurídica pós moderna e reflexos hermenêuticos: o colapso da razão indolente parece deixar o homem com duas rotas possíveis: o choro ou o luto (há quem defenda uma outra, inteiramente diversa, a intempestividade). A crise de uma razão universal e totalizante abriu brechas para um novo panorama, no qual a multiplicidade e historicidade permitem um devir e uma tolerância à relativização. Desconfia-se de modelos unificantes. Com a crise sociológica provocada pelos excessos do industrialismo e do mercado, os princípios éticos e sociais do direito público invadem a seara interpretativa (e mesmo positiva) do direito civil. Um direito cada vez mais plural, descodificado, menos monista (ver Wolkmer). Um direito-moringa, poroso, aberto para ser dinamicizado pela axiologia principiológica (ver, por exemplo, CF, art. 5º, §2º). A experiência jurídica contemporânea também se preocupa em inserir standarts, isto é, em positivar princípios, que normalmente gravitam em torno do valor da dignidade da pessoa humana, para nortear a interpretação e a elaboração do direito. Há uma consciência cada vez mais nítida da importância da hermenêutica (vista também como metateoria jurídica), porque a interpretação é extremamente necessária (pode-se dizer que inevitável) em processos diversos, como a subsunção e a integração. “Na transição pós-moderna, é este fenômeno jurídico plural, reflexivo, prospectivo, discursivo e relativo que decreta a quebra do mito da certeza do conhecimento jurídico. [...] torna-se impossível fundamentar o raciocínio jurídico em premissas absolutas e incontestáveis.” (p. 54-5). O Saber jurídico encontra-se cada vez mais aberto (e qual foi a transformação correspondente nos jogo de poder? O que mudou na velha sociedade disciplinar, Foucault?).

5- No positivismo jurídico em geral, direito e lei se confundem, de forma que a interpretação é exegese do texto e a subsunção uma operação lógica e direta. As exigências por um sistema aberto, plural, romperam (ou estão rompendo) com este paradigma, os princípios emergem como força reativa. Nesta seara principiológica e pós-positivista, Soares destaca o trabalho de três grandes pensadores: Perelman, Dworkin e Alexy. O primeiro, a partir de uma crítica à Teoria Pura de Kelsen, afirmará a importância dos valores para a experiência jurídica, que existe no mundo do verossímil, alcançado pela dialética e construído como argumentação para convencer uma plateia (não há, pois, transcendentalismo a-histórico, como em Kelsen). Os princípios, neste caso, seriam topoi, lugar-comum argumentativo, racionalidade comunitariamente aceita, com potencial de convencimento.

Dworkin, por seu turno, critica a visão positivista do direito como sistema unicamente formado por regras. As divergências entre juristas quando diante de um hard case não são mero capricho, são questões de princípio, cuja colisão exige sopesamento polêmico, ponderação. Outrossim, a prática jurídica seria constante interpretação, mormente na common law, quando se configura como um romance em cadeia, pois os juízes precisam reconstruir racionalidades passadas, preocupando-se com a continuidade – o futuro, diante do sistema de precedentes. Os princípios seriam justamente os referenciais axiológicos. Por fim, para Alexy, “o Direito não pode prescindir de uma teoria do discurso, embasada numa racionalidade prática”. Segundo ele, os princípios seriam regras de alta generalidade, mandados de optimização, que não perdem validade se não forem completamente aplicados, suas colisões não se resolvem no tudo ou nada característico das normas.

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6- Como o nome sugere, princípios são pressupostos necessários de um sistema particular de conhecimento. Para Bobbio são “normas fundamentais ou generalíssimas do sistema”. Possuem “inegável densidade valorativa”, importando dar-lhes máxima eficácia. Irradiam por todo o ordenamento jurídico (e por isso servem como fonte integradora). Diante de colisão, que costuma ocorrer ad hoc (mas nada impede que ocorram in abstracto), não se elimina um ou outro, antes são sopesados e aplicados em diferentes níveis de intensidade, mas sem exclusão total de um deles (ver Canotilho). Seu complemento são as normas, que trazem em si uma previsão fática e têm carga axiológica menos evidente, são de alcance mais limitado mas uma aplicabilidade normalmente mais disciplinar, direta e prática. Ambos, princípios e normas, são necessários a um ordenamento jurídico sadio, para manter o equilíbrio entre ordem rígida e mutabilidade ou flexibilidade social, fornecendo deste empasse níveis sadios e aturáveis de segurança jurídica. A funçãodos princípios é tríplice: supletiva (colmatam lacunas), fundamentadora (embasam decisões, dão força e poder de convencimento às argumentações jurídicas) e hermenêutica (funcionam como topoi para a atividade do magistrado e mesmo do legislador). Exigem esforço do intérprete, por sua carga valorativa, para densificação e posterior concretização e aplicação.

7- A tópica “pode ser entendida como uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica. [...] uma techne no pensamento que se orienta para o problema” . Representa outra forma de argumentação jurídica, contraposta ao método lógico-formal ou sistemático-dedutivo do positivismo. Foi forjada por Viehweg, buscando referências anteriores (em Aristóteles, por exemplo). Considera o direito como sistema aberto e, partindo-se do caso concreto, deve-se buscar premissas (topoi) para resolvê-lo. Desta forma, para a tópica a subsunção cede lugar à interpretação como força criativa das decisões, inventam-se respostas. A teoria da justiça, dentro da tópica, ganha relevância, constituindo lugar do qual se extraem premissas e norte axiológico para a resolução da lide. É criticada por alguns como sendo “artificialismo” e por ignorar, de certo modo, a jurisprudência e o direito positivado.

8- Sobre a lógica do razoável, é dito por Soares que ela foi fundada por Siches a partir do raciovitalismo de Ortega y Gasset. Segundo o raciovitalismo, o homem é um imerso em leis e necessidades naturais, do mundo físico, mas que delas pode emergir, mesmo que parcialmente, por seu agir consciente, dos valores e fins que escolhe para dar sentido à existência sociocultural. Bem, Siches procura “conciliar a objetividade dos valores jurídicos com a historicidade do Direito. [...] a lógica do razoável tem por objetivo problemas humanos, de natureza jurídica e política”, abarcando o reino dos valores e finalidades. Ataca o desligamento entre a norma jurídica e a vida: aquela não deve ser mera abstração, volta-se para esta e deve ser meio para consecução de objetivos concretos, de resolução dos problemas humanos. As decisões judiciais têm natureza axiológica e construtiva e, através da lógica do razoável, buscará ser “compatível com as especificidades histórico-culturais de cada caso concreto, tendo em vista a singularidade que envolve a vida humana”.

9- Perelman reabilita a filosofia da lógica argumentativa, esquecida de certa forma na tradição pós-socrática, para o mundo jurídico em particular e para a cultura em geral. Para este autor, deve-se ter em mente que “os julgamentos de valor nem podem ser justificados simplesmente através da observação empírica (naturalismo), nem por qualquer tipo de

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autoevidência ou dedução lógica (intuicionismo)”, de forma que sempre caberá espaço, em se tratando das ciências do espírito, para a argumentação, a construção subjetiva, mas racional, do discurso, nada é evidente por si mesmo. Na tentativa de encontrar uma “argumentação racional dos valores”, Perelman “busca valorizar meios de prova distintos do modelo dedutivo-silogístico”, o que se dá sobretudo com sua ideia de audiência. No reino dos valores, a verdade de um argumento depende do endosso do auditório que o aprecia, portanto, depende do público, é questão de convencimento, acordo. “Para ele as premissas do raciocínio jurídico não são previamente dadas, mas, em verdade, são escolhidas pelo orador.”. A partir desta ideia geral de audiência e da necessidade de argumentação tópica justificadora e racional (condições para o convencimento), Perelman estabelece princípios para a boa retórica, como sinceridade e seriedade, imparcialidade, universalizabilidade, abertura ao criticismo e condição de tolerância, inércia, etc. (Cf. pp. 80-1). Esta discursão racional sobre os valores é que constituirá o objeto de conhecimento da justiça.

Sobre justiça, o professor de Bruxelas estabelece alguns topoi possíveis para a racionalidade do justo, que se concentram na justiça abstrata, descolorida ou formal: tratar igualmente aqueles que se encontram em posição de igualdade a partir de dado critério. A inserção deste critério (universalidade irrestrita, mérito, obra, necessidade, posição social, etc.) converterá a justiça formal em material, que apresenta formulações inúmeras. A aplicação da justiça formal é absurda e impossível. A da justiça material apresenta o problema da escolha, já que suas várias modalidades são, por vezes, antinômicas e incompatíveis entre si. Não há, em Perelman, um a priori de justiça, uma modalidade natural e incontestável, “a solução para o problema do justo deve ser construída no âmbito da razoabilidade prudencial do diálogo e da prática dos processos argumentativos”.Há preferência por uma racionalidade dialógica e processual, favorecendo a elaboração de um ordenamento aberto e flexível e de uma justiça concreta.

10- Cf. pp. 86 a 94, sobre a teoria do discurso e argumentação jurídica de Robert Alexy, preciso reler e pesquisar mais depois.

Parte III: Problemas hermenêuticos

1- Integração e lacunas: Há duas posições doutrinárias quanto à completude do sistema jurídico, alguns o consideram sistema fechado e completo, outros o veem como aberto e incompleto, lacunoso. O argumento dos primeiros é que a completude se dá em razão da obrigatoriedade de julgar. Mesmo diante da lacuna no ordenamento, o magistrado se valeria de mecanismos para sua integração (colmatação de lacunas), como analogia, costumes, princípios gerais de direito e equidade. Proferindo a sentença, o juiz supre, ad hoc, a lacuna. Contudo, em razão da dinamicidade da vida social e do relativo caráter estático do direito positivo, Soares argumenta em favor do segundo grupo doutrinário: a experiência jurídica é lacunosa. Estas lacunas se apresentam em três espécies: normativa (ausência de lei), fática (desuetudo, perda de efetividade social) e valorativa (a lei considerada injusta).

2- Antinomias: são contradições existentes entre as normas jurídicas em dado ordenamento. Podem ser próprias (contradição direta – uma proíbe e a outra permite uma mesma conduta, p. ex.) ou impróprias, mais sutis, “envolvendo o conflito de valores, finalidades, sentidos e terminologias do sistema jurídico”. Para a resolução de antinomias,

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usam-se três metacritérios: hierárquico (lei superior prevalece sobre a inferior), cronológico (lei posterior revoga anterior) e especial (lei específica revoga lei geral). Para Soares, o hierárquico prevalece sobre todos os outros (Diniz, por outro lado, não concebe saída para a antinomia real de segundo grau entre hierarquia e especialidade). Contra o simplismo positivista da subsunção lógica e direta, um novo cenário jurídico preza pelos princípios, os quais, contudo, podem entrar em colisão, o que exige um trabalho hermenêutico conciliador, uma ponderação. A subsunção simples não é útil para o horizonte principiológico porque a um mesmo caso aplicam-se vários princípios, daí a necessidade de sopesamento. Neste quadro, Soares reforça a necessidade de fundamentação, desmistificando a ideia de voluntarismo hermenêutico como essência da argumentação jurídica ponderada.

3- Cláusulas gerais: contrapõe-se à matriz positivista de ordenamento jurídico, fechado em suas regras, hermético. São “elementos de conexão entre as normas rígidas (pontuais) e a necessidade de mudança de conteúdo de determinados valores, em meio a um ambiente social em transformação”.Compreendem uma compreensão do direito como “fenômeno plural, reflexivo, prospectivo e relativo”.São, de certo modo, conceitos jurídicos indeterminados, deixando margem para o trabalho da doutrina e jurisprudência, que captam da realidade social valores a serem enxertados para seu preenchimento e determinação, contribuindo, portanto, para a flexibilização do ordenamento jurídico. A boa-fé, dignidade, solidariedade, probidade, etc. são exemplos de cláusulas gerais.

4- Regras ou máximas de experiência são juízos gerais extraídos por indução da práxis de uma comunidade jurídica, leva em consideração “a experiência do homem médio, que vive em determinada cultura, em certo momento histórico”, uma forma de senso comum. São aplicados dedutivamente a um caso concreto, com vistas à elaboração de presunções judiciais e apreciação de provas.

5- Conceito jurídico indeterminado: “Entende-se por conceitos jurídicos aquelas ideias gerais, dotadas de pretensão universal, geralmente sintetizadas pelo doutrinador e passíveis de aplicação nos mais diversos ramos do conhecimento jurídico.” (p. 111). Na verdade, não é o conceito, mas tão somente sua expressão que é indeterminada, cujo sentido carece de complementação por dados concretos (ele se deixa determinar na situação específica, ad hoc). Sua ideia parece ser confusa, porque, afinal, não há conceito absolutamente determinado, sempre há alguma vagueza, por isso o trabalho do hermeneuta é sempre necessário. Exemplos de conceitos jurídicos indeterminados são: “boa-fé, bons costumes, ilicitude ou abuso de direito”, etc. Soares alerta, contudo, que existe diferença entre os CJIs e as cláusulas gerais na ordem de sua eficácia e finalidade, pois nestes a complementação axiológica se faz necessária, enquanto que naqueles a determinação ad hoc já o torna aplicável.

6- Discricionariedade: contrapõe-se à ideia de vinculatividade. Ato discricionário é o que deixa margem para a autoridade agir livremente, ao passo que em um ato vinculado, o autor se prende à estrita legalidade. Sobre essa liberdade, averba Soares: “[é] dever-poder do aplicador, após um trabalho de interpretação e de confronto da norma com os fatos, e restando ainda alguma indeterminação quanto à hipótese legal, fazer uma apreciação subjetiva para estabelecer qual é, no caso concreto, a decisão que melhor atende à vontade da lei”. Neste sentido, questiona-se se haveria margem discricionária na decisão judiciária. Para alguns, não, porquanto o juiz deve se prender necessariamente ao disposto na lei. Para o

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autor do livro, todavia, por estar todo o fazer jurídico permeado pela necessidade de interpretação, haveria uma discricionariedade em sentido fraco (Dworkin), a liberdade hermenêutica para interpretar a norma com o sentido que melhor concretiza sua teleologia. Não se pode olvidar, porém, que “a discricionariedade está calcada dentro da legalidade e exige, obrigatoriamente, uma motivação na tomada da decisão considerada mais justa”, isto é, um embasamento dentro dos limites legais e jurídicos.

7- O papel da jurisprudência: jurisprudência é entendida aqui como o conjunto das decisões reiteradas pelos juízes e tribunais, forjando padrões interpretativos que tendem a influenciar decisões futuras. Neste sentido, ela é fonte formal (absorve elementos das fontes materiais, como a doutrina) e estatal do direito. Soares destaca o papel diferenciado de cada uma no sistema de civil law e no de common law. Neste, é fonte principal, naquele, acessória e subsidiária. Contra os que não consideram a jurisprudência como fonte do direito no sistema romano-germânico por ser única função judiciária a mera aplicação mecânica da lei, o autor argumenta que “no âmbito do processo decisório, os julgadores criam uma norma jurídica para o caso concreto, o que permite asseverar o papel criativo e construtivo do magistrado”. A atividade judiciária veicula interpretações do direito positivo e, diante de lacuna deste, a efetiva integração pela criação direta de um direito ad hoc. Há dois posicionamentos possíveis diante da construção jurisprudencial: o estático (conservador, crê no direito como sistema fechado e preza como dogma não negociável a segurança jurídica) e o dinâmico (progressista, direito como sistema aberto, acompanhando as evoluções fáticas e valorativas da sociedade). Soares defende o segundo deles, porquanto o trabalho do juiz, como já averbado antes, envolve certa discricionariedade hermenêutica e poder criativo.

8- Stare decisis: diz respeito à força hermenêutica do precedente judicial, pedra angular do sistema de common law. Requer coerência do magistrado ou do tribunal com as decisões judiciais do passado, construindo o que Dworkin chamou de “romance em cadeia”. Sua finalidade é conferir segurança, estabilidade e racionalidade à vida jurídica, “além de preservar a isonomia de tratamento aos jurisdicionados e propiciar a coerência do sistema jurídico”. Na common law, pode ter força vinculante, se houver identidade de fato ou direito entre os casos analisados, ou mera força argumentativa, quando se extrai um princípio ou valor para servir de elemento hermenêutico ou argumentativo no caso sub judice. Sua aplicação, contudo, não é mecânica. Têm relevância como freio ao voluntarismo arbitrário dos juízes e por dar solidez ao sistema jurídico.

9- Segurança jurídica x justiça: a segurança jurídica se estatui como estabilidade e previsibilidade das relações jurídicas dentro de dado ordenamento, exigindo, por exemplo, respeito à coisa julgada, ao direito adquirido, etc. Sua incorporação pela consciência individual, do cidadão, consiste no sentimento de certeza jurídica subjetiva, conforme o direito positivo. A segurança jurídica é tão central que foi colocada como núcleo axiológico de diversos dispositivos constitucionais do artigo quinto. Contudo, seu valor merece relativização quando a justiça do caso concreto assim exigir, em determinadas circunstâncias. Para Soares, a segurança jurídica é meio necessário (embora não suficiente, como queriam os positivistas modernos) para alcançar o justo.

10- Neoconstitucionalismo: diz respeito ao paradigma constitucional forjado no pós-guerra para reconciliar o constitucionalismo com a democracia, prejudicada em razão das atrocidades do autoritarismo implementado em estados de direito. Considera central o

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reconhecimento da força normativa da constituição, exigindo aplicabilidade direta e eficácia imediata para os preceitos da carta magna, estruturante do futuro da sociedade jurídico-política e estruturada a partir dela mesma, de seu repertório axiológico. Sobre a necessidade de dar máxima efetividade às normas programáticas do texto magno, estabelece-se uma querela entre o legislativo e o judiciário: diante da inércia daquele, justifica-se o ativismo deste? Ou estará comprometida a segurança jurídica e a tripartição de poderes? Enfim, importa dizer que este novo paradigma requer uma reavaliação não só do fazer judiciário (já que a mera subsunção mecânica se torna anacrônica perante a multiplicidade principiológica), mas sobretudo da própria ciência jurídica, devendo-se repensar os lugares-comuns da separação entre direito e moral, da ciência pura e despolitizada, do legalismo, etc; “as diversas teorias neoconstitucionalistas convergem para o entendimento de que o direito é um constructo axiológico e teleológico, que impõe a compreensão e aplicação de princípios jurídicos [...]”. (p. 136).

11- Dignidade da pessoa humana: construída na modernidade considerando homem como centro e fim de todo o direito (ética kantiana – a pessoa como fim em si), ganha força após a segunda guerra como fundamento ético da ordem jurídico-política. Contra os totalitarismos, coloca o indivíduo como “limite e fundamento do domínio político da república”. Serve como fundamento, base e sustentáculo de todo o ordenamento jurídico-positivo, dando-lhe suporte axiológico. Este valor é o da existência digna, irradiado para todo o direito, compreendida nos seguintes aspectos: a) preservação da igualdade – na e perante a ordem jurídica; b) não degradação ou coisificação da pessoa – com reflexos penais, limitações à autonomia da vontade e proteção aos direitos de personalidade; c) garantia do mínimo existencial – que para Soares deve prevalecer contra a alegação de reserva do possível. Os direitos fundamentais da constituição, calcados no núcleo ético da dignidade da pessoa humana, devem ter sua eficácia plena e aplicabilidade imediata, mediante mandado de injunção, dentre outros. Envolvem tanto a eficácia positiva, de exigir sua concreção, quanto a negativa, de obstar tentativas de mitiga-los. Veda-se o retrocesso (são cláusulas pétreas e fundamento da república). Enfim, o autor alerta para a eficácia hermenêutica deste princípio tão importante (a dignidade da pessoa humana), que deve ser o norte para as interpretações judiciais, legislativas e administrativas do direito pátrio.

12- Proporcionalidade: é conceito sempre relacional, mede a coerência entre o meio e o fim de dada ação, isto é, a racionalidade e razoabilidade entre eles (por exemplo, matar uma barata com uma espingarda ou secar uma piscina com uma seringa parecem ações desproporcionais). Desprende-se como princípio implícito do texto constitucional, tendo como fim último a concreção da dignidade da pessoa humana.Divide-se em análise tripla, de adequação (a conduta-meio resulta no fim pretendido?), de necessidade (dentre as condutas notadamente adequadas, qual é a que permite maior expansão ou menor restrição dos direitos fundamentais? Ou qual apresenta menor “custo”?) e de proporcionalidade em sentido estrito (os benefícios superam os custos? Há “lucro”?). É importante na seara penal para a determinação da pena, que deve ser menos gravosa possível para alcançar a ressocialização (risos) do apenado. Também se revela extremamente útil diante de colisão entre princípios constitucionais, quando é preciso sopesá-los. Sobre este sopesamento, Soares afirma que é a última etapa (atribuição de pesos) no processo de aplicação da proporcionalidade, antecedido pela apreciação dos fatos e das regras pertinentes ao caso. Em última análise, um juízo de

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proporcionalidade representa uma reflexão sobre a melhor maneira de concretizar os fins pretendidos.

13- No fechamento desta parte, o autor retoma uma constatação da semiótica já apresentada anteriormente: o direito, além de sua linguagem comum, possui uma linguagem técnica (semasiologia), que se apresenta extremamente exacerbada atualmente. A ciência jurídica em sentido amplo, compreendendo aqui também o fazer hermenêutico, costumam se fechar em um hermetismo linguístico, em um juridiquês incompreensível aos olhos do homem comum. Em face do paradigma neoconstitucionalista, no qual a democracia se apresenta como pedra fundamental, é mister também democratizar a linguagem jurídica, torna-la mais acessível e menos hermética, entendendo a carta magna como obra aberta e coletiva, que só tem a ganhar com a democratização do saber jurídico. Soares afirma também que se o juiz decide com base em uma axiologia que é sociocultural, a partir de valores comunitários, é inadmissível que o direito se tranque em castelos e labirintos linguísticos, devendo antes ser patrimônio e construção democrática. (Ou: seria possível construir um “Estado democrático de direito” sem um “Estado de direito democrático?)