Fichamento Literatura Comparada Eduardo Coutinho 1

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INTRODUÇÃO Este fichamento é referente à reunião de ensaios sobre a Literatura Comparada na América Latina, escritos em meados da década de 1990, pelo autor Eduardo Coutinho. Os dois elementos mencionados – a Literatura Comparada e a América Latina – que constituem referenciais importantes deste livro, por indicarem o espaço de uma disciplina e um contexto geográfico, não podem ser mais vistos como conceitos rígidos ou ontológicos, mas antes como construções flexíveis, plurais e historicamente situadas, sujeitas a constantes reformulações. (p. 09) SENTIDO E FUNÇÃO DA LITERATURA COMPARADA NA AMÉRICA LATINA Pensar a Literatura Comparada na América Latina é tarefa altamente complexa, marcada no início por uma perspectiva de teor historicista, calcada em princípios científico-causalistas, decorrentes do momento e contexto histórico em que se configurara. Para tecer indagações sobre o sentido e a função da Literatura Comparada na América Latina, faz-se necessária uma breve revisão crítica dos principais caminhos trilhados pela disciplina em seu processo de constituição e consolidação. (p. 11) No séc. XIX, à diferença do que ocorrera até então, surge a necessidade de sistematização do comparatismo e a Literatura Comparada principia a erigir-se como área de conhecimento. É também a época em que se incrementa o pensamento cosmopolita e se amplia o interesse por culturas que fogem ao eixo europeu. (p. 12) Em 1816, antes ainda da voga cientificista, Noel e Laplace publicaram na França um série de antologias de diversas literaturas, sob rótulo genérico de Curso de literatura Comparada. Em 1830, J. J. Ampère refere-se à “história comparativa das artes e literatura” em seu Discurso sobre a história da poesia. Embora as obras mencionadas tenham na realidade muito pouco do que hoje se vem compreendendo por Literatura Comparada. (p. 13) LITERATURA COMPARADA NA AMÉRICA LATINA: DO ETNOCENTRISMO AO DIÁLOGO DE CULTURAS

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INTRODUÇÃO

Este fichamento é referente à reunião de ensaios sobre a Literatura Comparada na América Latina, escritos em meados da década de 1990, pelo autor Eduardo Coutinho. Os dois elementos mencionados – a Literatura Comparada e a América Latina – que constituem referenciais importantes deste livro, por indicarem o espaço de uma disciplina e um contexto geográfico, não podem ser mais vistos como conceitos rígidos ou ontológicos, mas antes como construções flexíveis, plurais e historicamente situadas, sujeitas a constantes reformulações. (p. 09)

SENTIDO E FUNÇÃO DA LITERATURA COMPARADA NA AMÉRICA LATINA

Pensar a Literatura Comparada na América Latina é tarefa altamente complexa, marcada no início por uma perspectiva de teor historicista, calcada em princípios científico-causalistas, decorrentes do momento e contexto histórico em que se configurara. Para tecer indagações sobre o sentido e a função da Literatura Comparada na América Latina, faz-se necessária uma breve revisão crítica dos principais caminhos trilhados pela disciplina em seu processo de constituição e consolidação. (p. 11)

No séc. XIX, à diferença do que ocorrera até então, surge a necessidade de sistematização do comparatismo e a Literatura Comparada principia a erigir-se como área de conhecimento. É também a época em que se incrementa o pensamento cosmopolita e se amplia o interesse por culturas que fogem ao eixo europeu. (p. 12)

Em 1816, antes ainda da voga cientificista, Noel e Laplace publicaram na França um série de antologias de diversas literaturas, sob rótulo genérico de Curso de literatura Comparada. Em 1830, J. J. Ampère refere-se à “história comparativa das artes e literatura” em seu Discurso sobre a história da poesia. Embora as obras mencionadas tenham na realidade muito pouco do que hoje se vem compreendendo por Literatura Comparada. (p. 13)

LITERATURA COMPARADA NA AMÉRICA LATINA: DO ETNOCENTRISMO AO DIÁLOGO DE CULTURAS

A disciplina Literatura Comparada sofreu muitas modificações nos meados dos anos 70, embora essa transformação se tenha originado dentro do grande eixo dos estudos comparatistas, formado pela Europa Ocidental e América do Norte, essas mudanças e suas implicações daí decorrentes, sobretudo no que se diz respeito ao contexto latino-americano, que serão investigadas neste trabalho. (p. 31)

Dentre os pilares, que permanecem quase inabalados até os anos de 1970, o discurso de apolitização apregoado sobretudo pelos remanescentes da chamada Escola Americana, que dominou a área nos meados do século XX. (p. 32)

O questionamento da postura universalizante e a desmistificação da proposta de apolitização, que se tornaram uma tônica da Literatura Comparada a partir dos anos 70, atuaram de modo diferente nos centros hegemônicos e nos focos de estudos comparatistas até tidos como periféricos, mas em ambos estes contextos verificou-se um fenômeno similar: a aproximação cada vez maior comparatismo a questões de identidade nacional e cultural. No

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eixo Europa Ocidental/América do Norte, o cerne das preocupações deslocou-se para grupos minoritários, de caráter étnico ou sexual. O mundo clamava-se um desvio de olhar, com o qual se pudessem enfocar questões literárias ali surgidas a partir do próprio locus onde se situava o pesquisador. (p. 33)

O desvio de olhar operado no seio do comparatismo, como resultado da consciência do teor etnocêntrico que dominara em fases anteriores. Uma das instâncias vitais de luta é contra eurocentrismo que vem sendo travada nos meios acadêmicos. (p. 35)

O cânone ou cânones tradicionais não têm mais base de sustentação, afetando toda a estrutura da Historiografia, da teoria e da Crítica Literárias. (p. 36)

Pela antítese periférica, os comparatistas atuais que questionam a hegemonia das culturas colonizadora abandonam o paradigma dicotômico e se lançam na exploração da pluralidade de caminhos abertos como resultados do contato entre o colonizador e o colonizado. (p. 37)

O cânone ou os cânones literários dos diversos países latino-americanos eram constituídos por critérios estipulados pelos setores dominantes da sociedade, que reproduziam o olhar europeu, primeiramente ibérico, à época da colônia, e posteriormente, após a independência política, de outros países, mormente a França. (p. 38)

O questionamento e renovação da Literatura Comparada na América Latina parece ter assumido com firmeza a necessidade de enfocar a produção literária a partir de uma perspectiva própria, calcada na realidade do continente, e vem buscando um diálogo no plano internacional.

A reestruturação do cânone ou cânones das diversas literaturas latino-americanas vem ocupando a cena com grande intensidade no meio acadêmico latino-americano, como a inclusão das línguas indígenas ainda vivas, cordel brasileiro e corrido mexicano. A urgência é desenvolver uma reflexão teórica que tome como ponto de partida ou de referência o corpus literário do continente. (p. 39)

A Literatura Comparada, hoje é uma seara de inúmeras possibilidades de exploração, que ultrapassou o anseio totalizador de suas fases anteriores e se erige como um diálogo transcultural, calcado na aceitação de diferenças. (p. 40)

MESTIÇAGEM E MULTICULTURALISMO NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL LATINO-AMERICANA

O olhar dominante do colonizador sempre marcou a construção da identidade do colonizado. A jornada em busca de identidade porque passou o continente e que se observa, sobretudo através de sua ensaística, será focalizada aqui especialmente por meio de dois topoi, de presença marcante nessa produção, sobretudo em sua fase mais recente: a mestiçagem e o multiculturalismo. (p. 41)

A América Latina é uma construção múltipla, plural, móvel e variável, e, por conseguinte, altamente problemática, criada para designar um conjunto de nações, ou melhor, povos, que apresentam entre si diferenças fundamentais em todos os aspectos de sua conformação – étnicos, culturais, sociais, econômicos, políticos, históricos e geográficos – mas que ao mesmo tempo apresentam semelhanças significativas em todos esses mesmos traços, sobretudo quando se compara como os outros passos.

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Assim como no plano espacial, o conceito de América Latina é também, no plano temporal, nitidamente problemático, tendo evoluído de uma perspectiva política originária, mas calcada num referencial etnolinguistico, para outra ainda mais acentuadamente política, mas centrada em torno de referencial de ordem socioeconômica. (p. 42)

O discurso americanista do século XX se caracteriza pelo esforço sistemático de reconstruir a imagem eufórica da América. O ensaio tem o interesse de desviar o foco de oposição da Europa para os Estados Unidos, cujo crescimento exorbitante na virada so século começava a ser percebido como ameaça para América Latina. (p. 47-48)

A idéia de aluvionalidade da literatura hispano-americana, de Uslar Pietri, da transculturação do universo cultural latino-americano, de Fernando Ortiz, mas tarde aplicada à literatura por Angel Rama, do universalismo da inteligência americana, de Afonso Reyes (1942), da “cultura bastarda”, de Martínez Estrada (1943), resultante de contribuições heteróclitas, da superposição de culturas em perene busca da forma unitária, de Leopoldo Zea (1953), do “protoplasma incorporativo”, de Lezama Lima (1957), e do “realismo maravilhoso”, de Carpentier (1949), somado com os brasileiros Gilberto Freyre (1933), Sérgio Buarque de Holanda (1936) e Oswald de Andrade (1928). (p. 48-49)

As teses sobre a “ideologia sobre a mestiçagem” na América Latina giram em torno da ideia de hibridez, ou heterogeneidade que resulta do provisório cruzamento de influências heterogêneas em constante mutação, tomando o conceito de hibridez de Bakhtin. (p. 51)

As teses da heterogeneidade cultural, dentre as quais as elencadas no ensaio, trazem contribuições importantes para uma revisão do discurso de identidade latino-americana e consequentemente para os estudos de Literatura Comparada desenvolvidos no continente. (p. 52)

A questão das minorias étnicas ou sexuais que vem lutando por espaço num contexto marginalizado, e no caso da literatura, o alvo principal das reivindicações desses grupos é o cânone, que deve ser reestruturado para contemplá-los, corrigindo constantemente desvios e injustiças, que excluíam toada uma produção vigorosa. As lutas pela reestruturação do cânone priorizam mais frequentemente a inclusão de formas da chamada cultura popular, tão ostensivamente marginalizada pelo veio da tradição culta ou erudita. (p. 55)

Sobre o multiculturalismo, ele rejeita toda sorte de assimilacionismo e defende utopicamente a coexistência harmônica de grupos étnico-culturais distintos, se poderia perguntar também se por outro lado ele não estaria a serviço de uma política segregacionista de guetização. (p. 56)

No entanto, o saldo apurado da atuação das teorias multiculturalistas no contexto latino-americano vem sendo positivo e as transformações operadas na pesquisa e ensino da literatura já produzem frutos. (p.57)

A RECONFIGURAÇÃO DE IDENTIDADES NA PRODUÇÃO LITERÁRIA DA AMÉRICA LATINA

A identidade nacional é uma construção histórica relativamente nova. A noção de “literatura nacional” originou-se na virada do século XIX, particularmente pelos românticos alemães, que divulgavam a ideia de que uma literatura se define pela sua afiliação nacional e pelo fato de que se deve incorporar o que se entendia como características específicas de uma nação. O conjunto de idéias nacionalistas levou-os à ilusão de que tanto a nação quanto as

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literaturas nacionais eram fatos naturais que surgiam sem interferência de indivíduos específicos. (p.59)

A “literatura nacional” nunca constituirá num conceito homogêneo, mas, ao contrário, será sempre uma construção em aberto, com facetas múltiplas e diversas, variando de acordo com a necessidade de afirmação e auto-definição de cada momento. A construção dos cânones literários nacionais sempre esteve vinculada ao processo de formação e constituição das nações. (p. 60)

A preocupação com a afirmação de uma identidade cultural viesse a respaldar a imagem da nação cedeu lugar a uma constante indagação, que põe em xeque o caráter hegemônico de construções como as anteriores e apontam na direção de uma pluralidade de caminhos, sempre provisório de instáveis. (p. 61)

Os movimentos estéticos europeus eram importados pela intelligentsia latino-americana e transformados significativamente no contato com a nova terra, mas a visão de mundo que os havia originado se mantinha muitas vezes inalterada. (p. 61-62)

O Indianismo, vertente talvez mais expressiva e mais nacionalista do romantismo na América latina. (p. 61)

Se no período romântico, pós-independentista, fora grande a preocupação com a construção da identidade em nações que se vinham formando, e em cujo processo de formação os intelectuais desempenhavam papel de relevo, na década de 1920 a questão ocupou o cerne dos debates culturais, tendo sido inclusive uma das bandeiras da fase inicial das vanguardas, como Oswald de Andrade (1928), muito bem expressou, de modo paródico, em seu manifesto antropófago, com a formula”tupy or not tupy”. (p. 63)

À diferença do Romantismo, os movimentos de vanguarda se originaram da assimilação de aspectos das diversas correntes da chamada Vanguarda européia, e a essa importação múltipla, a que não faltou um filtro critico, acrescentaram outro: uma leitura crítica da própria tradição latino-americana, sobretudo do período romântico, momento crucial de afirmação da nacionalidade. (p. 63)

Apesar desse tom crítico, que se encontra na base de todos os movimentos de Vanguarda na América Latina – desde o Ultraísmo de Borges e o Creacionismo de Huidobro até o modernismo brasileiro –, a questão da identidade cultural e nacional ainda foi abordada nesses movimentos por uma perspectiva ontológica. (p. 63)

Fortemente influenciados pelo que Jean-François Lyotard (1979) chamaria de “grandes narrativas da modernidade”, que tiveram ampla repercussão àquela época, e especialmente pelo marxismo, os intelectuais da América Latina desenvolveram um gosto acentuado por questões locais, que, no campo da literatura, tomaram a forma desses movimentos regionalistas: ciclos como o do “gaúcho” e da “selva” na América hispânica, por exemplo, o movimento indigenista nos países andinos, o romance da Revolução Mexicana e o romance do Nordeste no Brasil. (p. 64)

Todo tipo do que poderia ser designado de “produção popular”, ou a produção de outros grupos desprivilegiados, como as comunidades indígenas ou africanas espalhadas por todo o continente, era excluído do veio da chamada “literatura nacional” e relegado a segundo plano, geralmente sob o rótulo de folclore. (p. 65)

Tomando a “identidade” agora, nas palavras de Stuart Hall, como “uma ‘produção’ que não está nunca completa, mas sempre em processo, e é sempre constituída por dentro, e não

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por fora, da representação” (1994, 392), e a “ação” como uma “comunidade imaginada”, a idéia de um cânone único e oficial foi abandonada. (p. 65)

Comunidades indígenas ou africanas, cuja produção nunca havia sido levada a sério, passaram a ser estudadas em instituições acadêmicas, e criaram-se centros especializados no desenvolvimento desses estudos. (p. 66)

A heterogeneidade da cultura do continente passou a ser enfatizada, e conceitos como os de “literatura nacional”, forjados no meio acadêmico europeu e baseados em noções de unidade e coesão (...), revelaram-se impróprios para expressar a realidade cultural híbrida de um continente onde nações como a Aymara, por exemplo, foram divididas pela imposição arbitrária de fronteiras políticas. (p. 66)

Mas a grande contribuição decorrente da substituição de macro por micronarrativas no panorama cultural da América Latina foi a consciência que se desenvolveu da importância das diferenças contextuais. Importado da América do Norte, onde as lutas pelos direitos dos grupos minoritários conquistaram espaços cada vez maiores a partir dos anos 1960. (p. 66-67)

O fator sociocultural é tão significativo no contexto da produção latino-americana que tem constituído uma marca tanto nos estudos sobre a mulher quanto no de qualquer grupo étnico-cultural. (p. 67)

Como a “identidade” não pode mais ser vista em termos ontológicos, mas antes como um conceito múltiplo e em constante mutação, e a “nação” se revelou um constructo como outros, baseado por exemplo em referenciais de outra sorte, tais como a etnia, a religião ou a língua, a História Literária abandonou seus pilares tradicionais s se tornou a articulação de sistemas ao mesmo tempo imbricados, superpostos e dinâmicos. É como uma disciplina marcada pelo signo da pluralidade e do dinamismo que ela vem realizando hoje, na América Latina, sua tarefa de reconfiguração de identidades. (p. 68)

FRONTEIRAS IMAGINADAS: O COMPARATISMO E SUAS RELAÇÕES COMA TEORIA, A CRÍTCA E A HISTORIOGRAFIA LITERÁRIAS

Com o questionamento empreendido em torno de noções como a de “identidade”, que vêm sofrendo constante reconfiguração, o confinamento das disciplinas dentro de seus próprios limites revelou-se absolutamente inadequado. (p. 69-70)

A literatura Comparada, disciplina surgida no século XIX, à época da grande voga dos estudos de teor comparatista, e marcada pelo positivismo e historicismo então dominantes, sempre ocupou, no quadro das ciências humanas do período, um lugar sui generis, por se ter constituído como disciplina acadêmica em oposição ao estudo das chamadas “literaturas nacionais” e por ser portanto desde o inicio caracterizada por uma perspectiva transdisciplinar. (p. 70)

Apesar do seu caráter eminentemente transnacional e interdisciplinar, a Literatura Comparada nunca chegou, em sua fase de configuração e consolidação. (p. 70)

Era abordado por um viés que enfatizava o literário e não o psicanalítico ou o sociológico respectivamente, com o objetivo explicito de deixar clara a diferença entre as duas áreas –, hoje estas fronteiras foram lançadas por terra, em conseqüência do questionamento que vem sendo empreendido cada vez mais com vigor em torno de seu próprio objeto de estudo – a obra literária – e dos demais pilares que até então sustentaram a sua construção, como os conceitos de “nação” e “idioma”. Até recentemente a obra literária era vista como

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uma espécie de “fato natural” e os discursos que se erigiam sobre ela partiam dessa premissa: tratava-se um texto que em algum momento fora definido como literário. Agora, porém, este privilégio concedido ao texto literário vem sendo posto em xeque, tornando problemático todo tipo de estudo que o toma como ponto de partida, Para muitos estudiosos, não há na realidade um discurso literário – a literaura é uma prática discursiva intersubjetiva como muitas outras – e sua especificidade, ou melhor, sua “literalidade”, não passa de uma construção elaborada por razões de ordem histórico-cultural. (p. 71)

Agora, o interesse maior do comparatista deslocou-se, entre outras coisas, da preocupação com a natureza e função da literatura no plano internacional, para a tentativa de compreensão das diversas contradições da categoria do literário em diferentes culturas. A contextualização tornou-se uma palavra de ordem nos estudos comparatistas e o estético passou a ser visto como um valor entre outros, sempre associado a fatores de outra sorte, que incluem necessariamente o político. (p. 72)

A idéia da Teoria Literária, conforme definida por Wellek e Warren (1949, 29), como “o estudo de princípios da literatura, suas categorias, critérios e assim por diante”, somada ao anseio totalizador que dominou o Ocidente no período posterior à Segunda Guerra Mundial, levou os adeptos das correntes imanentistas à época em voga e da chamada Escola Americana de Literatura Comparada a uma busca desenfreada de modelos para a apreensão do fenômeno literário, que eram generalizados e extensivos a todo e qualquer contexto, independentemente das circunstâncias histórico-culturais em que a obra ou seu equivalente era produzida. (p. 72-73)

Com as mudanças ocorridas a partir dos anos 1970, sobretudo após a onda desconstrucionista que inundou o meio intelectual do Ocidente (...). Com isso, tanto o etnocentrismo quanto o monoculturalismo da fase anterior passam a ser postos em cheque e a Teoria se institui como espaço de reflexão. (...) Os textos literários são agora vistos como uma prática discursiva entre outras, num campo complexo, mutável e contraditório de produção cultural; assim qualquer reflexão sobre tais produtos terá de levar em conta essas questões. (p. 73-74)

Do mesmo modo que a Teoria, A Critica Literária também esteve voltada, na mesma época que a primeira, para uma preocupação acentuadamente universalizante, que a tornou profundamente etnocêntrica e calcada em valores de ordem monocultural. (...) os modelos criados passaram a integrara os currículos das instituições de ensino sob a forma de cursos como “As grandes obras da tradição ocidental”. Esses cursos eram oferecidos como requisitos indispensáveis para todos os estudiosos da literatura comparada em qualquer parte do mundo, que passaram então a internalizar um olhar monocultural, transformando aspectos de uma determinada Weltanschauung em constantes inquestionáveis. (p. 74-75)

O texto passa a ser abordado em suas relações com outros, sem o privilégio concedido pela “literalidade”, e seus critérios de avaliação passam a oscilar de acordo com o olhar adotado e o lócus de enunciação do estudioso. (...) Agora, além de estudar aqueles textos que até então tinham o status de literários, ela se volta para outros tipos de produção, incluindo as relações entre esses diversos textos e as tensões geradas pelo intercurso entre formas de expressão hegemônicas e contra-hegemônicas. (p. 75-76)

A historiografia literária sempre se instituiu como uma das principais searas de investigação da Literatura Comparada (...). A importância do contexto, embora nunca totalmente descartada, voltou, contudo, a primeiro plano outra vez no período pós-

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estruturalista, só que agora por uma ótica fundamentalmente distinta, que leva em conta não só o locus histórico-cultural de produção da obra como também o da recepção, e a relação estabelecida entre ambos. (p. 76)

Agora, ao lado do exame do texto, bem como dos gêneros, estilos e topos, que por tanto tempo constituíram a base das obras de História da Literatura, passa a ter relevância também a análise do campo em que se produziu a experiência literária, e o contexto de recepção da obra é equiparado ao da produção. (p. 78)

As barreiras entre os três discursos abordados, a teoria, a Crítica e a Historiografia literárias, apesar das tentativas de diversos estudiosos, nunca se sustentaram na prática, mas deram margem, ao largo dos estudos literários, a construções absurdas, como as que buscaram situar a Crítica no âmbito das Literaturas Nacionais e a Teoria na esfera da Literatura Comparada, ou ainda a afirmações pouco fundamentadas, como de que a Teoria teria substituído dos anos 1970 para o presente os estudos de História Literária. (...) a Literatura Comparada surgiu no bojo dos estudos de Historiografia para que a delimitação entre as duas esferas se revele tênue e escorregadia. Finalmente, no que se refere à Teoria, onde os esforços separatistas foram um pouco mais longe, recorde-se, se não mais, o fato óbvio de que a reflexão comparatista se acha na base de qualquer formulação teórica, e conclua-se coma lembrança de Godzich de que não há nenhuma abordagem ateorética da literatura. (p. 78-79)

REESCREVENDO A AMÉRICA LATINA: EM BUSCA DE UMA NOVA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA NO CONTINENTE

Sobre historiografia contemporânea, pós-moderna ou comparada, da literatura, que teceremos algumas considerações neste ensaio, sobretudo no que diz respeito ao contexto latino-americano. (p. 81)

Com a contribuição de correntes do pensamento como o Desconstrucionismo, a Nova História e os Estudos Culturais e Pós-Coloniais, a Historiografia Literária vem sofrendo, nas duas últimas Décadas, considerável transformação (...). Além do questionamento desses elementos, a noção de “literariedade”, que constituíra outro pilar da Historiografia Literária Nacional, vem sendo também constantemente repensada, a ponto de incluir categorias do discurso até então excluídas do considerado “literário”, como os designados “registro popular” ou “literatura oral” e a produção de grupos étnicos marginalizados. (p. 81-82)

Conscientes de que a História da Literatura não é mero registro acumulativo de tudo o que se produziu, nem a simples compilação de temas ou formas, mas a reescritura constante de textos anteriores com o olhar do presente, os historiadores da literatura engajaram-se no que Fernand Braudel designou de “uma verdadeira dialética entre passado e presente” e passaram a orientar suas obras por critérios calcados nessa dialética. (p. 82)

A História Literária é, assim, a história da produção e recepção de textos, e para o historiador esses textos constituem ao mesmo tempo documentos do passado e experiências do presente. (p. 83)

Agora, ao lado do exame do texto, bem como dos gêneros, estilos e topos, que por tanto tempo alicerçaram as obras de História da Literatura, torna-se relevante também a análise do campo em que se produziu a experiência literária, e o contexto de recepção da obra é tratado em pé de igualdade ao da produção. (p. 83)

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A Historiografia Literária contemporânea deixou de encarar a relação entre literatura e nação como dominante na constituição de suas histórias, passando a admitir variantes com a mesma força de expressão. Assim como a nação, havia outras “comunidades imaginadas” baseadas em referenciais de espécie diferente, como língua, etnia ou religião. (p. 84-85)

Na América Latina, onde os estudos literários sempre foram moldados à maneira européia, a preocupação com a Historiografia Literária é uma constante desde a independência política da maior parte das nações, mas a referencia na constituição das histórias literárias sempre foi a literatura européia. (...) Atualmente, porém, a questão vem mudando, graças, sem duvida, à episteme pós-moderna, e vem dando margem à criação de histórias literárias de alto teor inovativo. (p. 85-86)

Assim, comecemos por lembrar o próprio conceito de América Latina, que, pela sua pluralidade, requer constantemente um enfoque também plural (...). Em termos históricos, a América Latina é uma construção, primeiro européia, e posteriormente de seus próprios habitantes, ou, para empregar as palavras de alguns críticos, uma “ficção”, e mais tarde uma “autobiografia”. (p. 86)

Desse modo, uma história da literatura latino-americana tem agora que incluir a produção de todos esses locais e, qualquer que seja o enfoque adotado, é preciso que seja sempre problematizador. (p. 87)

Passaram a integrar a Historiografia Literária latino-americana não só a produção de grupos étnicos até então excluídos pela vertente canônica, dentre os quais indígenas com línguas ainda vivas e um repertório de textos tanto escritos quanto orais, como também outro registros, como o “popular”, sempre contraposto ao “erudito”, presente em expressões como o corrido mexicano ou o cordel brasileiro. (p. 88)

Uma História Literária Comparada encara as obras literárias como elementos históricos num contexto cultural dinâmico de transmissão e recepção. (p. 88)

“LEARNIG HOW TO CURSE IN THE MASTER’S TONGUE”: ESTRATÉGIAS DO PÓS-COLONIALISMO NA AMÉRICA LATINA

No quadro das correntes do pensamento contemporâneo que atuaram sobre a Literatura Comparada, ocupam lugar de relevo os chamados Estudos Pós-Coloniais, (...) calcado na dicotomia centro versus periferia. (p. 91)

A literatura oferece uma das formas mais importantes de expressar essas percepções, e é através dela e das outras manifestações artísticas que as vivências cotidianas dos povos colonizados têm sido mais poderosamente codificadas e se revelado mais influentes. (p. 91-92)

Assim, a chamada literatura pós-colonial tem constituído uma categoria relevante dentro dos Estudos Pós-Coloniais, e tal categoria geralmente é atribuída a literaturas de língua inglesa ou, mais especificamente, aquelas formas literárias que acompanharam a projeção e o declínio do imperialismo britânico. (p. 92)

E o início da Literatura Pós-Colonial, caracterizada justamente pelo seu cunho de resistência à colonização e de denúncia da ideologia colonizadora, com suas formas de objetificação do sujeito. (p. 92)

O colonizado dá a impressão de observar os imperativos políticos e semânticos do discurso colonial, mas ao mesmo tempo distorce as bases desse discurso ao articulá-lo. (p. 93)

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Os escritores anticoloniais mais expressivos são todos eles “mimic men”, pois, ao mesclarem o romantismo europeu com aspectos locais, ou ao introduzirem no idioma do colonizador uma polifonia de vozes locais, transgridem as fronteiras da literalidade ortodoxa, calcada em padrões europeus, e dão origem a formas novas, irreverentes e questionadoras. (p. 93-94)

A chamada Teoria Pós-Colonial surge da desconstrução de teorias européias e de sua reestruturação a partir de uma reflexão profundamente crítica sobre o elemento local e o diálogo estabelecido entre este e a tradição ocidental. (p. 94)

As teorias pós-coloniais portam como marca um caráter nitidamente político. Buscando desenvolver uma reflexão que dê conta das diferenças da produção chamada pós-colonial e aborde a tradição européia por um viés que põe em xeque o etnocentrismo da perspectiva tradicional, elas visam em última instância a um diálogo em pé de igualdade entre vozes anteriormente antagônicas, desconstruindo a dicotomia hierárquica que se ocultava sob o mito da sacralização estética. (p. 94)

Assim como a neutralidade política dos estudos literários tradicionais é revelada como falaciosa, também o é a pretensão de universalidade, que vem acompanhando o pensamento ocidental ao longo de toda a era moderna. (p. 95)

Foi com a preocupação de “provincializar”, ou melhor, relativizar, contextualizar, a episteme européia, associada a violência da colonização, que as teorias pós-coloniais se atribuíram o cargo de apropriar-se das correntes do pensamento europeu, transformando-as criticamente. (p. 95)

Autores como Helen Tiffin procuram definir o termo pós-colonialismo com um sentido duplo: primeiro como referindo-se àquelas sociedades cuja subjetividade se constituiu em parte pelo poder subordinador do colonialismo europeu, e em seguida para designar um conjunto de práticas discursivas que envolvem resistência ao colonialismo e às ideologias e legados coloniais. (p. 96)

Há um fator de complicação que esta no cerne das relações pós-coloniais (...) Trata-se do que Slemon denominou de “teatro moderno das relações internacionais neocoloniais”. Embora os críticos preocupados com o problema tenham voltado sua discussão mais para os contextos neocolonizados pelos antigos colonizadores, como é o caso da Índia e da maioria das nações africanas modernas, o neocolonialismo, de ordem sobretudo econômica e cultural, tornou-se uma marca das relações internacionais no século XX, a ponto de uma teórica como Gayatri Spivak afirmar: “Vivemos em mundo pós-colonial neocolonizado”. (p. 97)

Tendo passado por um processo de colonização de mais de três séculos e continuado dependente do ponto de vista econômico e cultural, embora não mais das mesmas matrizes, desde o início do século XIX até o presente, a América Latina – e agora referimo-nos mais especificamente à região de língua espanhola e portuguesa do continente – desenvolveu, ao longo de toda a sua história colonial e pós-colonial, modos de apropriação do aparato europeu, e mais recentemente também norte-americano. (p. 97)

Embora o Modernismo brasileiro se tenha originado da assimilação de contribuições das diversas Vanguardas européias do início do século XX, essas contribuições sofreram no processo de assimilação um filtro crítico rigoroso, que não só as mesclou, como as transformou consideravelmente, dando origem a algo novo, que portava marcas reconhecíveis de sua identidade primeira, mas acrescidas ou alteradas por outro elemento que lhe conferiram uma face diversa. (p. 98)

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Antropofagia, imagem central do movimento, sinalizava não só a ingestão seletiva dos aportes europeus e a importância da contribuição autóctone – aspecto da cultura indígena talvez mais criticada pelos europeus –, como também a assimilação crítica da própria tradição local, que ressurgia transformada no novo signo. (p. 98-99)

Os autores em questão em questão procederam a uma assimilação seletiva não apenas do idioma e das formas da literatura européia, mas da própria produção indigenista de gerações anteriores – como a dos anos de 1920 –, que criticava a estrutura de dominação que pesava sobre a figura do índio, mas não chegou a penetrar em sua cultura. No caso de Arguedas e de Astúrias, ao contrário, o mergulho é de tal modo evidente, que se deu o que Angel Rama (1982) designou de “transculturação narrativa”. (p. 99)

No Realismo Maravilhoso, o elemento de naturalidade coexiste com o de sobrenaturalidade, sem o sentido excludente do fantástico (...) e o resultado é um universo múltiplo, plural e contraditório, em que elemento excludentes tornam-se passíveis de convivência. (p. 100)

As formas de apropriação sempre foram freqüentes nas literaturas da América Latina, a ponto de se poder dizer que constitui uma de suas principais marcas – é a tradição da ruptura a que se referiam diversos críticos. (p. 100)

No primeiro espaço, o neocolonial, questões como a da classe social assomam de imediato em qualquer caso e se confundem ou sobrepõem muitas vezes às marcas de identidade etnoculturais. (p. 100)

Desde o século XIX já existia grande preocupação com a constituição de um discurso crítico calcado numa reflexão sobre a produção literária latino-americana e de teorias daí derivadas (...). Entretanto, essa preocupação sempre conviveu com a prática dominante de se importarem de maneira acrítica as tendências do pensamento europeu. (p. 101)

O PÓS-MODERNISMO E A LITERATURA LATINO-AMERICANA CONTEMPORÂNEA

O diálogo entre a conceituação teórica de Pós-Modernismo e a produção literária contemporânea, até recentemente restrito à América do Norte e à Europa Ocidental, chegou nos anos de 1980 à América Latina, dividindo a crítica em duas posições extremas. De um lado se situam os críticos que, baseados em teóricos euro-norte-americanos que consideraram Borges ou García Márquez como pontos de referência do movimento, vêem a América Latina inclusive como uma espécie de berço do Pós-Modernismo, e de outro aqueles que, denunciando o conceito como alienígena, como mais uma importação do meio acadêmico primeiro-mundista, e vendo nos que o empregam uma postura de ordem etnocêntrica, rejeitam o uso do termo com relação à literatura e às artes latino-americanas. (p. 103)

A coexistência de mundos absolutamente distintos, que levou um autor como Alejo Carpentier a afirmar que ”a América é o único continente onde eras diferentes coexistem , onde um homem do século vinte pode apertar a mão de um homem da era quaternária, que não tem idéia do que sejam jornais ou comunicações e que leva uma vida medieval” (1978, 58). (p. 104)

Todavia, o argumento peca sobretudo por não levar em conta o fato de que as formações socioculturais referidas não são o resultado de estratégias pós-modernas, mas, ao contrário, produzem-se, como afirmou George Yúdice (1991, 88), pela implementação desigual da modernidade. (p. 104)

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A segunda posição, de ordem essencialmente histórica, baseia-se no fato de que, sendo o pós-modernismo um fenômeno próprio de sociedades pós-industriais altamente desenvolvidas e baseadas na informação, pouco tem a ver com realidade latino-americana, caracterizando-se aí mais como elemento forâneo. (p. 105)

A grande pergunta que emerge dessa observação é se é possível estabelecer-se com rigidez uma relação entre Pós-Modernismo e sociedade pós-industrial, ou ainda, Pós-Modernismo e estagio avançado, multinacional do capitalismo. Tais questões, por mais interessantes que possam ser, implicam uma noção mais ou menos definida, coesa e unificada de Pós-Modernismo, o que, por si só, já constitui uma contradição de base, e apontam para a fragilidade do termo e o risco das generalizações. (p. 105)

Se admitimos a heterogeneidade como marca do Pós-Modernismo, bem como a desconstrução sistemática das grandes narrativas, que põe em xeque constantemente o papel do iluminismo para a constituição da identidade cultural do Ocidente e o problema da totalidade e do totalitarismo na episteme moderna, torna-se pelo menos viável um exame da produção cultural latino-americana sob a ótica do Pós-Modernismo. (p. 106)

Se mirarmos a produção latino-americana equivalente cronologicamente ao Modernismo – isto é, o Modernismo brasileiro e as Vanguardas hispano-americanas –, veremos que nesses movimentos o elemento lúdico-experimental, ao invés de opor-se ao social, em geral serviu para complementá-lo, revelando muitas vezes como inusitado o cunho dicotômico do par estético/político. A ruptura da forma, uma tônica no Modernismo brasileiro, bem como nas Vanguardas hispano-americanas, longe de constituir mera investida lúdica, era antes uma postura política, conscientemente assumida, que punha em xeque, através da contestação da dicção poética tradicional, todo o universo a que esta dicção se relacionava. Além disso, o elemento épico, o veio sociopolítico que sempre permeou a Literatura Latino-Americana desde suas mais remotas manifestações, nunca esteve completamente ausente nesse momento, ainda que oscilando seu grau de intensidade. (p. 107)

Num contexto neocolonizado, de forte dependência econômica, com diferenças sociais acentuadas e dose elevada de miséria, a revolta contra a cultura oficial, comum à grande maioria da produção estético-literária ocidental da primeira metade do século XX, não pôde deixar de fazer-se acompanhar de um processo antropofágico de assimilação seletiva, em que se expurgava a tradição autoritária, de teor colonialista e centralizador, mas se valorizava a tradição popular em suas faces múltiplas e regionais. (p. 108)

Essa produção, sobretudo a ficcional, que se vai caracterizar entre outras coisas pelo emprego constante da metalinguagem e da intertextualidade, e pelo questionamento da lógica racionalista através da exploração de outros níveis da realidade, como o fantástico, o onírico e o real-maravilhoso, recebeu vários rótulos da crítica latino-americana em suas tentativas de classificá-la, dentre os quais o de “nova narrativa” ou “narrativa do boom”, e, no caso brasileiro especifico, o de neomodernista ou modernista da terceira geração. (p. 109)

Não Há dúvida de que uma análise minuciosa de suas obras em comparação com a de autores tidos como representativos do que se vem chamando Pós-Modernismo no meio euro-norte-americano revelaria uma série de elementos que poderiam justificar a aproximação. (p. 109)

É preciso entender Pós-Modernismo como um conceito fundamentalmente heterogêneo que, na órbita da América Latina, constitui um conjunto de traços que distinguem a produção da segunda metade do século XX da que fora arrolada pelas histórias

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literárias como modernista, no caso brasileiro, e vanguardista, no caso hispano-americano. (p. 110-111)

O termo Pós-Modernismo e seus cognatos são evidentemente meros rótulos que, se não surgiram originariamente na América do Norte, ali se consolidaram, e seu código foi construído a partir de um corpus também determinado e por oposição a outro que dominava anteriormente naquele contexto. Portanto, tomá-lo para designar outra produção estético-literária e cultural emergente de um meio distinto – marcado inclusive por acentuado processo de transculturação – é algo que só pode ser realizado com extrema cautela. (p. 111)

“TEORIAS TRANSCULTURADAS” OU A MIGRAÇÃO DE TEORIAS NA AMÉRICA LATINA

No modus vivendi latino-americano: a mitificação do que vem de fora, revestido de uma capa de autoridade que se expressa pela dificuldade de compreensão. (...) Essa atitude, que Roberto Schwarz muito bem designou de “torcicolo cultural” (1981, 22), e que se expressa em quase todos os aspectos da vida cotidiana na América Latina, tem fortes raízes históricas (...). Com base nessa questão, que permeia todo o campo dos estudos literários no continente latino-americano, faremos neste trabalho uma reflexão sobre o discurso da teoria literária, focalizando, sobretudo o papel que desempenhou ao longo de seu desenvolvimento neste contexto e as transformações por que vem passando mais recentemente. (P. 113-114)

Uma leitura não é jamais neutra ou inocente, continua Said, ao contrário, cada texto e cada leitor trazem sempre marcas muito forte do seu locus originário; assim uma teoria não pode ser totalmente desvinculada desse locus. (p. 114)

Para Said, a peregrinação da teoria é um fato altamente positivo, como deixa claro em outro ensaio sobre o mesmo assunto, ao afirmar que “o trabalho da teoria... nunca está terminado” e que sua ”função... é assim viajar, mover-se sempre para além de suas fronteiras, emigrar, permanecer em certo sentido no exílio”. (p. 115)

Essa visão da Teoria Literária como um discurso situado historicamente nem sempre, porém, esteve em vigor. (p. 115)

O resultado foi o esvaziamento do sentido originário da teoria como reflexão a partir da própria literatura e sua substituição pela aplicação indiscriminada de modelos privilegiados aleatoriamente. Com isso, invertia-se a perspectiva dos estudos literários, que passavam da reflexão concreta baseada em textos à aplicação quase mecânica de construções abstraídas de seu contexto histórico. (p. 116)

O resultado foi uma visão profundamente eurocêntrica e monocultural, que tomava tanto a literatura européia quanto sua reflexão teórica como grande referencial canônico a atribuía às demais produções provenientes de outras regiões a pecha de periféricas. Essa visão, que atingiu seu apogeu nos anos dourados do Estruturalismo francês, vem sofrendo intenso questionamento da década de 1970 ao presente, graças às contribuições de correntes do pensamento contemporâneo como a Desconstrução, a Nova História e os chamados Estudos Culturais e Pós-Coloniais. (p. 116)

Na América Latina, os estudos literários sofreram uma grande transformação nas décadas de 1960 e 1970, passando do periodismo para o meio acadêmico e das mãos dos críticos em geral para as de professores e pesquisadores universitários. Tal transformação, contudo, se por um lado deu ensejo à profissionalização desses estudos, substituindo um tipo

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de apreciação diletante pela investigação sistemática da literatura, por outro levou a uma mistificação da disciplina acadêmica, que adquiriu foros de ciência. (p. 117)

A importação de correntes teóricas diversas oriundas de pontos diferentes é pratica cujos benefícios não cabe absolutamente pôr em dúvida; o que se questiona, contudo, é o teor dessas importações, feitas ainda em grande escala de modo acrítico e indiscriminado. (...) a titulo de amostragem, fiquemos com o caso da importação das teorias sobre o Pós-Modernismo e das teorias do Multiculturalismo. Oriundas do contexto norte-americano e tendo tido grande penetração no meio intelectual europeu, as teorias sobre o Pós-Modernismo chegaram a América Latina na década de 1980, desencadeando no meio universitário um amplo debate sobre a sua aplicabilidade ao contexto latino-americano. (p. 119)

As teorias do Multiculturalismo, importadas nas últimas décadas do meio acadêmico norte-americano, apresentam, por razões similares, graves distorções. Ao serem introduzidas no contexto latino-americano, marcado por uma espécie de “ideologia da mestiçagem” que neutralizava diferenças importantes. (p. 119-120)

Revestida de um teor de autoridade, decorrente talvez da identificação estabelecida no período estruturalista com o discurso da ciência, e mais tarde no pós-estruturalista com o da filosofia, a teoria é explorada muitas vezes pelo prestigio que confere, exercendo um papel talvez bem próximo ao do latim nos rituais da Igreja tradicional. (p. 121)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COUTINHO, Eduardo F. Literatura Comparada na América Latina: ensaios. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2008.