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Filosofia, Lógica e Existência

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Filosofia, Lógica e Existência

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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL Reitor:

Prof. Ruy Pauletti Vice-Reitor:

Prof. Luiz Antonio Rizzon Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento Institucional:

Prof. José Clemente Pozenato Pró-Reitora de Graduação:

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CONSELHO DIRETOR da Fundação Universidade de Caxias do Sul

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Conselho Editorial da EDUCS: Prof. Mário Gardelin (Presidente)

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Luiz Antônio Assis Brasil Prof. Paulo Luiz Zugno

Prof. Sílvio Paulo Botomé.

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Filosofia, Lógica e Existência Homenagem a Antonio Carlos Kroeff Soares

Organização de LUIZ CARLOS BOMBASSARO e JAYME PAVIANI

Angelo Cenci • A. Berten • Circe Mary Silva da Silva • Cláudio de Almeida • Darlei Dall’Agnol • Décio Osmar Bombassaro • Delamar Volpato Dutra • Edvino A. Rabuske • Ernildo Stein • Evaldo A. Kuiava • Gregorio Piaia • Heloísa Pedroso de Moraes Feltes • Idalgo J. Sangalli • Jane Rita Caetano da Silveira • Jayme Paviani • Jorge Campos • José Carlos Köche • Lino Casagrande • Luis Alberto De Boni • Luiz Antonio Rizzon • Luiz Carlos Bombassaro • Luiz Carlos Santuário • Oclide José Dotto • Reinholdo Aloysio Ullmann • Silvestre Gialdi • Silvio Paulo Botomé • Sônia Maria Schio Kuiava • Ursula Rosa da Silva • Valentim Angelo Lazzarotto • Wolfgang Neuser •

EDUCS Editora da Universidade de Caxias do Sul 1997

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© dos autores

1ª edição: 1997

Capa: Luiz Carlos Bombassaro

José Fernando Fagundes de Azevedo

Editoração e composição: Suliani – Editografia Ltda.

R. Veríssimo Rosa, 311 – Porto Alegre – Fone/fax (051) 336.1166

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Universidade de Caxias do Sul

Biblioteca Central – Processamento Técnico

F488 Filosofia, Lógica e existência / organização Luiz Carlos Bombassaro, Jayme Paviani. – Caxias do Sul: EDUCS, 1997. 456p. Apresenta bibliografia 1. Filosofia 2. Lógica 3. Matemática: fundamentos, Lógica

I. Bombassaro, Luiz Carlos II. Paviani, Jayme CDU 1:16 16:1

510

Índice para catálogo sistemático 1. Filosofia: Lógica 1:16 2. Lógica: Filosofia 16:1 3. Matemática; Fundamentos, Lógica 510

Catalogação na fonte elaborada pela Bibliotecária

Fabiane pacheco Martino

Direitos reservados:

EDUCS Editora da Universidade de Caxias do Sul

Rua Francisco Getúlio Vargas, 1130 – Bairro Petrópolis – Caixa Postal 1352 95070-560 Caxias do Sul-RS – Tel.: (054) 212.1133

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Sumário

Apresentação Corina Dotti 9

Prefácio Jayme Paviani e Luiz Carlos Bombasaro 11

DO MÉTODO 13

Os pressupostos da pragmática universal habermasiana e a reconstrução da teoria dos atos de fala

Angelo Cenci 15

Habermas crítico de Rawls. A posição original do ponto de vista da pragmática universal

A. Berten 24

Demonstrar por refutação Delamar Volpato Dutra 48

O método da Ética aristotélica Edvino A. Rabuske 67

Anamorfose e interpretação Ernildo Stein 79

Riforma del metodo e fini morali in Cartesio Gregorio Piaia 84

A gênese da dialética em Platão Jayme Paviani 97

O acesso ao real: reflexão sobre os caminhos da ciência José Carlos Köche 105

Começando a pensar no acesso ao real Luiz Antonio Rizzon 123

O cogito cartesiano Sônia Maria Schio Kuiava 130

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LÓGICA E MATEMÁTICA 139

No paraíso dos símbolos: surgimento da Lógica e Teoria dos Conjuntos no Brasil

Circe Mary Silva da Silva 141

A significação filosófica do Paradoxo da Predição Cláudio de Almeida 169

Forma lógica, explicatura e implicatura: graus de explicitude do conteúdo proposicional pela Teoria da Relevância

Jane Rita Caetano da Silveira e Heloísa Pedroso de Moraes Feltes 176

A teoria dos nomes na lógica de Mill Jorge Campos 184

O alfabeto do pensamento: notas sobre a história da Lógica no Renascimento

Luiz Carlos Bombassaro 207

A Matemática e a sociedade Oclide José Dotto 230

O silogismo e a Matemática na ciência natural durante o Renascimento

Wolfgang Neuser 242

FILOSOFIA E EXISTÊNCIA 257

É um falso debate a anterioridade do ato sobre a potência? Cláudio Almir Dalbosco 259

Sobre o Faktum da razão Darlei Dall’Agnol 268

Razão, sujeito, autonomia. Temas ainda atuais? Décio Osmar Bombassaro 288

Subjetividade transcendental e alteridade Evaldo A. Kuiava 302

A questão da lex naturalis em Tomás de Aquino Idalgo J. Sangalli 317

O problema do outro ou a percepção do próximo em Ortega y Gasset

Lino Casagrande 330

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Significado e limites do pensamento aritotélico na prova da existência de Deus de Duns Scotus

Luis Alberto De Boni 343

A des-presença da filosofia e o processo de coisificação do humano-ser (ou a filosofia e a domesticação do espanto)

Luiz Carlos Santuário 360

Plotino e os gnósticos Reinholdo Aloysio Ullmann 367

Fundamentos franciscanos de justiça, paz e ecologia Silvestre Gialdi 386

Parecer acadêmico: a lógica clandestina de uma avaliação Silvio Paulo Botomé 405

Descobrimentos e invenções (um estudo sobre os pressupostos epistemológicos na produção científica de Albert Einstein)

Valentim Angelo Lazzarotto 419

A filosofia da arte em Jean-Paul Sartre Ursula Rosa da Silva 437

CURRICULUM VITAE de Antonio Carlos Kroeff Soares 449

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Apresentação

“[...] o homem tornava-se aquilo a partir do qual todo o conhe-cimento podia ser constituído em sua evidência imediata e não-problematizada, tornava-se, a posteriori, aquilo que autoriza o questionamento de todo conhecimento do homem” (Michel Fou-cault).

O presente trabalho, coordenado pelos professores Jayme Paviani e Luiz Carlos Bombassaro, deseja contribuir para o debate teórico sobre a questão do conhecimento e as relações imbricadas nesse processo.

Reunindo contribuições de autores de diferentes países e institui-ções, de diversas áreas de atuação e perspectivas teóricas, Filosofia, Lógica e Existência é continente de um leque alargado de estudos que tomam como referência temas vinculados a processos atribulados e múltiplos nos quais se produzem os pensares e fazeres humanos. Mais do que isso, representa o esforço de um conjunto de professores, parcei-ros na produção e nas trocas, na direção de dar sentido e inteligibilida-de à existência em suas representações, linguagens e instituições.

A homenagem ao Professor Antonio Carlos Kroeff Soares redimen-siona a obra na medida em que revela carinho e respeito, tanto o con-quistado pelo professor “Tonico” em seu testemunho de intelectual que se coloca no lugar de “aluno privilegiado de si mesmo”– eterno apren-dente –, quanto o do grupo que, ao reconhecê-lo se reconhece, no afã incansável de “polir lentes” na tentativa de ver mais fundo e mais lon-ge.

O Centro de Filosofia e Educação se regozija com a publicação da presente obra e se associa à homenagem ao Professor Antonio Carlos, acreditando que este livro, construído a partir de olhares localizados nas realidades humanas, pode nos ajudar a refletir a nossa realidade.

Profª CORINA DOTTI Diretora do Centro de Filosofia e Educação

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Prefácio

As razões desta homenagem apresentam-se como a possibilidade de reconhecimento de ações, de representação de sucessos e práticas que seguem os princípios de gratidão, de amizade e da história de um grupo de pessoas ligadas, talvez, pela investigação das mesmas questões e, principalmente, dentro dos mesmos espaços institucionais. Não se ho-menageia um professor da mesma maneira que um político, um empre-sário ou um artista. As razões deste ato de respeito e cortesia estabele-cem as diferenças. O filósofo sabe que a história não é um processo que transcorre objetivamente e, por isso, nada pode ser alegado sem cair num certo dogmatismo, nada nos afasta de uma fundamentação dis-cursiva. Apesar disso, as razões existem, estão sedimentadas nos signi-ficados que transparecem nos fatos e eventos da vida pessoal e profis-sional de cada um de nós e na vida em sociedade. Qualquer homena-gem, nesta perspectiva, é, ao mesmo tempo, fidelidade e reflexão. A fide-lidade nos aproxima; às vezes, nos funde num único acontecimento. A reflexão é a distância crítica necessária. O homenagear possui o sentido que celebra a urgência de atribuir o valor à vida, ao homem e às suas circunstâncias.

Jorge Luiz Borges, em Perfis, ensaio autobiográfico, escreveu: “O prazer de estudar, não a vaidade de ensinar, tem sido meu principal objetivo.” Estas palavras podem ser atribuídas ao professor Antonio Carlos Kroeff Soares, nesses mais de trinta anos de magistério, inten-samente marcados pelo rigor e pela dedicação no trato de assuntos de suas aulas. Para ele, o prazer de estudar e a liberdade acadêmica de investigação tornaram-se a alma do trabalho docente. Seu estilo ou conduta de ensinar o que sabe, o que está pesquisando e, principalmen-te, o que não sabe, deu-lhe um grande domínio dos problemas lógicos, uma notável cultura filosófica, um modo peculiar de análise e interpre-tação de textos e, ao mesmo tempo, a imagem do professor humilde e cortês. Ao propor invariavelmente as inúmeras dúvidas, alguns resul-tados e poucas conclusões, ensina o caminho da pesquisa.

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Antonio Carlos Kroeff Soares segue, ao pé da letra, o conceito de Heidegger: “ensinar é deixar o aluno aprender”. Sua preocupação com o texto e o contexto permite-lhe o ensino da filosofia e da ciência, mas também da universidade. Seus discípulos, já tão numerosos e presentes em diversas instituições, aprenderam, desde cedo, o método de fazer universidade. Uma universidade desescolarizada exige rigor e respon-sabilidade acadêmica que só a pedagogia nascida da investigação cientí-fica é capaz de fornecer. Sempre foi notável sua contribuição à tentati-va de pensar e construir uma universidade dentro de padrões interna-cionais de exigência e qualidade. Os procedimentos de um verdadeiro professor universitário exigem condições estruturais adequadas às suas necessidades de agir.

Homenagear um colega é uma cerimônia complexa. Trata-se de projetar no tempo o sentido de uma trajetória, de articular uma dialéti-ca do individual e do coletivo, de esboçar um esquema de avanços e resistências, de discernir entre o “vivido” e o “pensado”, de identificar o nó das significações presentes nas tramas que as sustentam. Pois, toda homenagem ultrapassa o próprio homenageado. Toda honra dada a alguém merecedor dignifica seus pares. O professor Antonio Carlos Kroeff Soares recebe esta homenagem por seus méritos, mas a figura dele enaltece a história de um departamento de filosofia e de uma uni-versidade. Os trinta anos da jovem Universidade de Caxias do Sul tes-temunham o trabalho e a dedicação daqueles que, às vezes, com bri-lhantismo, ergueram os alicerces da produção científica e cultural.

Caxias do Sul, 1º de julho de 1997.

LUIZ CARLOS BOMBASSARO JAYME PAVIANI

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DO MÉTODO

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ANGELO CENCI

Universidade de Passo Fundo

Os pressupostos da pragmática universal habermasiana e a reconstrução da teoria

dos atos de fala

A pragmática universal de Habermas parte do pressuposto do en-tendimento como telos imanente da linguagem humana. Esta, assim entendida, visa fundamentalmente a um processo de obtenção de um acordo. Nela, Habermas se propõe a investigar “como é possível a utilização da linguagem orientada ao entendimento” (CyEP, p. 417).1 Utiliza, para tanto, o método reconstrutivo, que visa tornar explícito um saber pré-teórico implícito. É no nível deste saber que são encon-tradas as condições universais de possibilidade do entendimento. Tais pressupostos podem ser tomados como fundamentais para a funda-mentação tanto do conhecimento quanto da ética em Habermas.

Nosso intuito aqui, no entanto, não é o de avançar no interior do pensamento de Habermas para demonstrar, de forma detalhada, co-mo tais pressupostos se vinculam a essas duas esferas. Pretendemos nos restringir à exposição de alguns pressupostos básicos que susten-tam a pragmática universal a partir de seu âmbito objetual, bem como retomar a reconstrução operada por Habermas acerca da teoria dos atos de fala de Austin. Procuraremos, pois, após fazer referência à questão da base de validez da fala, ou seja, à distinção entre os papéis da linguagem e da fala, tratar dos aspectos a partir dos quais é desen-volvida a reconstrução habermasiana da teoria dos atos de fala. Tal reconstrução é de fundamental importância para a sustentação de uma pragmática universal, bem como para o próprio programa filosófico de Habermas.

1 No presente texto utilizaremos as seguintes abreviaturas: TAC, para Teoria de la accion

comunicativa; CyEP , para Teoria de la accion comunicativa: complementos y estudios pre-vios; QDF, para Quando dizer é fazer.

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/ Os pressupostos da pragmática universal habermasiana e a reconstrução... 16

1 – A base de validez da fala e o âmbito objetual da pragmática universal

Habermas atribui à pragmática universal a tarefa de identificar e reconstruir as condições universais do entendimento possível. Ao i-dentificar os pressupostos necessários de qualquer entendimento pos-sível, desenvolve a caracterização da base de validez da fala. Reto-mando Apel, observa que , no que se refere aos pressupostos univer-sais dos atos de fala consensuais, devemos levar em consideração “a-quilo que necessariamente temos de pressupor desde sempre em nós mesmos e nos demais como condições normativas da possibilidade do entendimento e naquilo que, nesse sentido, necessariamente temos aceito desde sempre” (CyEP, p. 300).

Na execução de um ato de fala “podemos tornar-nos conscientes de involuntariamente termos feito determinadas pressuposições [...]” (idem). Por conseguinte, qualquer agente, ao atuar comunicativamen-te, necessita, na execução de qualquer ato de fala, estabelecer “preten-sões universais de validade e precisa pressupor que tais condições possam desempenhar-se” (idem). Como sabemos, tal desempenho ocorre de maneira discursiva. Isso faz com que o entendimento tenha como meta a produção de um acordo. O entendimento se identifica com o próprio processo de “consecução de um acordo sobre a base pressuposta de pretensões de validade reconhecidas em comum” (CyEP, p. 301).

Habermas distingue a partir daí o papel da lingüística em relação ao papel da pragmática.2 A primeira trata da linguagem, que tem co-mo unidade a oração; a segunda se vincula à fala, que tem como uni-dade a emissão. A fala, para Habermas, é passível de uma análise formal, ou seja, é capaz de estabelecer regras como condições univer-sais do entendimento. Como ele próprio observa, “não somente a lin-guagem, mas também a fala, isto é, o emprego de orações em emis-sões, se torna acessível a uma análise formal” (CyEP, p. 304). Ocorre que não somente as orações, enquanto unidades elementares da lin-guagem, podem ser analisadas na perspectiva metodológica de uma

2 O desenvolvimento da análise lógica da linguagem , oriundo de Carnap, restringiu seu foco de

interesse aos traços sintáticos e semânticos da linguagem. Esta só poderia então ser considera-da através de uma análise empírica (psicologia, etc.), mas não lógica. Também a lingüística restringiu seu âmbito à fonética, à sintaxe e à semântica, transferindo a dimensão pragmática ao âmbito das investigações empíricas como a psico e a sociolingüística. Habermas denomina esse processo restritivo do âmbito pragmático de falácia abstrativa. Para ele, a “abstração da ‘linguagem’ a respeito do emprego da linguagem na ‘fala’ (‘langue vs. parole, languagem vs. Speech’) [...] tem sentido. Mas este corte analítico não deve levar à idéia de que a dimensão pragmática da linguagem, da qual se faz abstração, não possa ser submetida a uma análise for-mal” (CyEP , p. 303-304). Por essa mesma razão, o aspecto central da pragmática universal deverá versar sobre as “condições universais do entendimento possível” (idem, p. 304).

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ciência reconstrutiva, mas também emissões (estas enquanto unidades elementares da fala) (idem). A pragmática trata então, não da geração de orações de acordo com as regras da gramática, mas do emprego de orações (ou seja, emissões), conforme “as regras que estabelecem a base da fala voltada ao entendimento” (Dutra, p. 16-17). Gerar e em-pregar uma oração são coisas distintas, pois a gramaticalidade só pre-cisa cumprir a pretensão de inteligibilidade. Isso significa, portanto, que enquanto a lingüística se resume ao estudo da sentença, a pragmá-tica a estuda enquanto enun-ciado, ou seja, por meio de seu vínculo com o contexto no qual ela é formulada. Por essa razão, o ato lingüís-tico (ato de fala) é aquele no qual a sentença se transforma em enunci-ado, dada sua dupla estrutura (parte performativa e parte proposicio-nal). A parte performativa do ato de fala permite ao falante, simulta-neamente à sua fala, realizar a ação a que se refere o elemento per-formativo. Ao enunciar “prometo que partirei”, o falante realiza ao mesmo tempo a ação à que se refere a sentença. Ao fazer esta promes-sa ele realiza uma ação, a ação de prometer.3

Como observa Habermas, “com a dupla estrutura da fala se rela-cio-na um traço fundamental da linguagem, a saber: a reflexividade que lhe é imanente” (CyEP, p. 342). Em função disso, “as possibilida-des estandardizadas de menção direta e indireta da fala se limitam a fazer explícita uma auto-referencialidade que já está contida em todo ato de fala. Os participantes de um diálogo, ao satisfazer a dupla es-trutura da fala, têm de comunicarem-se simultaneamente em ambos os níveis, tem de unir a comunicação de um conteúdo com a comunicação acerca do sentido em que se emprega o conteúdo comunicado” (CyEP, p. 342).

Habermas enraíza a própria moral no mundo da vida, e as rela-ções sociais que aí ocorrem assumem a forma de ação comunicativa. Este tipo de ação se caracteriza por ser um “processo comunicativo, lingüisticamente mediatizado, pelo qual os indivíduos coordenam seus projetos de ação e organizam suas ligações recíprocas” (Rouanet, p. 24). Tal coordenação é possibilitada pela dupla estrutura da comunica-ção lingüística. Isso significa que a linguagem contém sentenças que 3 Austin distingue , na base da teoria dos performativos, duas espécies de proferimentos: os

constatat ivos, com os quais se constata algo , e os performativos, com os quais se realizam a-ções (Costa, 1992, p. 82). Os proferimentos performativos não podem ser considerados ver-dadeiros ou falsos, mas felizes (bem sucedidos) ou infelizes (malogrados). Eles são performati-vos porque com eles se pode realizar ações, como as de pedir, prometer, declarar, etc. Uma promessa será infeliz quando quem promete o faz insinceramente, i. é., sem a intenção de rea-lizar o que prometeu (idem, p. 82-83).

Austin distingue também entre proferimentos performativos explícitos e implícitos. Os pri-meiros são aqueles que fazemos aplicando verbos claramente performativos, como por exem-plo , pedir, prometer, declarar, proibir, etc. Os implícitos aparecem em frases como Não fume, Feche a porta , Eu voltarei amanhã. Aqui são as “circunstâncias envolvidas que indicam que tipo de ação está sendo realizada” (idem, p. 83).

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possuem um determinado conteúdo descritivo e prescritivo. Ela con-tém também as “condições de aplicação extralingüística destas senten-ças” (idem). Essas condições orientam a compreensão e o comporta-mento dos atores. Uma mesma sentença pode ter sentido pragmático diferente, dependendo da forma como for verbalizada, ou seja, como afirmação, ordem, promessa ou crença.

2 – A reconstrução habermasiana da teoria dos atos de fala

Habermas, na esteira de Searle, toma o ato de fala como unidade elementar da comunicação lingüística. O ato de fala não é uma palavra ou uma oração, mas a “produção ou emissão de uma ‘instância’ de uma oração sob certas condições, o emprego de uma oração em uma emissão” (McCarthy, p. 319). As orações possuem um conteúdo pro-posicional e uma força ilocucionária. Nas emissões: eu prometo que p e eu ordeno que p, o mesmo conteúdo proposicional, p, aparece com forças ilocucionárias distintas. Assim, todo ato de fala se compõe de duas orações: a) uma oração principal, realizativa (te prometo, te ordeno , etc.). Esta estabelece a “força ilocucionária da emissão, o modo de comunicação entre falante e ouvinte e, portanto, a situação pragmática da oração subordinada” (McCarthy, p. 319); b) uma oração subordi-nada, de conteúdo proposicional, composta de “uma expressão identi-ficante (referencial) e de um predicado” (idem). Esta última estabelece a conexão da comunicação com o mundo dos objetos e sucessos.

Habermas distingue entre regras para a geração de orações em qualquer língua (teoria gramatical) e regras para situar orações em qualquer ato de fala (pragmática universal). O falante, no momento em que converte uma oração bem formada em um ato de fala orienta-do ao entendimento, atualiza “aquilo que já está implícito nas estrutu-ras da oração” (CyEP, p. 327).

O ato de emissão coloca a oração em relação com a realidade ex-terna (o mundo dos objetos, sobre os quais se pode fazer enunciados verdadeiros ou falsos), com a realidade normativa da sociedade (o mundo social das normas e dos valores compartilhados que podem ser corretos – legítimos – ou não corretos) e com a realidade interna (o mundo das experiências intencionais do falante que podem ser ex-pressas de forma veraz ou não). Por essa razão, ao emitir uma oração um falante necessariamente coloca pretensões de validez de diferentes tipos.

A infra-estrutura pragmática das situações de fala consiste em re-gras gerais para ordenar os elementos das situações de fala dentro do sistema de coordenadas formado pelos três mundos expostos acima. Desta forma, a análise da competência comunicativa se diferencia da

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análise da competência lingüística e exige uma explicação da habilida-de do falante não apenas para produzir orações gramaticalmente cor-retas, mas para expressar intenções verazes, realizar atos de fala que cumpram normas reconhecidas, etc.4

O papel dos verbos performativos será o de gerar o vínculo co-municativo e definir a natureza deste vínculo. Essa natureza varia conforme os verbos performativos, sejam constatativos, regulativos ou representativos. A característica fundamental de tais verbos é que eles sempre envolvem pretensões de validade. Além disso, a dupla estru-tura da linguagem permite estabelecer a coordenação comunicativa entre os falantes. Tal coordenação ocorre através da “expectativa de que se necessário cada interlocutor poderá justificar essas pretensões de validade por meio de provas e argumentos” (Rouanet, p. 25). Quando isso se torna problemático , ou seja, quando as pretensões de validade são colocadas em dúvida, requer-se outro procedimento. No que se refere às pretensões de veracidade, a confiança, para ser resta-belecida, dependerá de que o ator prove na comunicação normal, a-través da consistência entre sua fala e seu comportamento, que não estava mentindo (idem). No caso das pretensões de verdade ou reti-tude, a problematização destas exige o abandono da interação espon-tânea do contexto do mundo da vida e o ingresso na comunicação discursiva, o discurso (teórico e prático).5 O ponto de partida da ar-gumentação discursiva é a suspensão (epoché) na crença da validade daquilo que era afirmado. A crença na validade é colocada entre pa-rênteses até que se conclua o processo de discussão discursiva (pelo consenso) que pode levar ou não à confirmação dos fatos apresenta-dos como verdadeiros e à justificação ou não das normas apresentadas como justas.

Habermas, na pragmática universal, parte da distinção de Austin entre ilocução e perlocução, com a finalidade de mostrar que o uso da linguagem voltado ao entendimento é o modo original do emprego da linguagem; os demais modos são parasitários deste (TAC I, p. 370).

Em sua teoria, Austin distingue entre atos de fala constatativos, ou seja, as emissões que descrevem fatos e que podem ser considera- 4 A pretensão da pragmática universal é a de construir uma teoria da competência comunicat i-

va. Sendo a fala o “único meio distintivo e onipresente da vida no nível humano”, a teoria da comunicação é o que constitui a “disciplina universal e básica das ciências humanas” (McCar-thy, p. 327).

5 É a partir daqui que Apel vai justificar a própria denominação de ética do discurso. Para ele, de um lado , esta denominação se refere ao discurso argumentativo, ou seja, a uma “forma especi-al de comunicação”. De outro lado , isso “remete à circunstância de que o discurso argumenta-tivo”, e não outra forma qualquer de comunicação no mundo da vida , é que “contém também o a priori racional da fundamentação do princípio da ética” (Apel, 1993, p. 506). É nessa es-fera, portanto, que se dá a fundamentação de normas morais. O princípio do discurso (ou me-tanorma), que permite a fundamentação destas, deriva da própria estrutura da linguagem hu-mana.

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das verdadeiras ou falsas, e atos de fala performativos, que preten-dem coordenar ações, dar ordens, fazer promessas, etc. Com tais enuncia-dos não apenas se diz (descreve), mas se faz (realiza) algo. Estes po-dem ser felizes ou infelizes e não verdadeiros ou falsos (QDF, p. 24-31).

A segunda distinção se dá entre os atos locucionários, ilocucioná- rios e perlocucionários.

a) locucionários: são aqueles atos que têm sentido e referência bem determinados, ou seja, têm significado (QDF, p. 85). É o ato de dizer alguma coisa, de proferir uma sentença com sentido. Ele pode ser de-composto em três outros: “1) um ato fonético, que consiste na emissão de uma seqüência de ruídos ou fonemas; 2) um ato fático, que consiste na emissão de uma seqüência de palavras pertencentes a um vocabulá-rio e organizados em concordância com uma gramática; 3) um ato réti-co, que consiste na emissão de uma seqüência de palavras dizendo ‘alguma coisa’ sobre ‘algo’, isto é, com sentido e referência” (Costa, 1992, p. 85).6

b) ilocucionários: são aqueles que permitem, ao se dizer algo, reali-zar uma ação. Eles têm força ilocucionária (QDF, p. 89). Juntamente com o ato de dizer algo “há também um ato que realizamos ‘ao’ di-zermos algo” (Costa, p. 86). Ao dizer-se, por exemplo, Voltarei amanhã, está sendo feito algo mais além da expressão da idéia (ato ilocucioná-rio) de que a pessoa irá voltar amanhã. Ela, com tal ato, pode estar informando, fazendo uma ameaça, realizando uma promessa, etc. In-dependentemente do uso feito aqui, a pessoa estará realizando atos ilocucionários “explicitáveis pela adição de verbos performativos à frase original” (idem). Austin denominou forças ilocucionárias às dife-rentes significações dadas aos proferimentos por estes verbos.

c) perlocucionários: consistem em se obter certos efeitos sobre al-guém pelo fato de se dizer alguma coisa (QDF, p. 103).7 Ele consiste no “efeito do ato ilocucionário sobre os sentimentos, pensamentos ou

6 Conforme Costa, “embora cada um desses atos pressuponha os anteriores, nenhum deles

pressupõe os que se seguem. Assim , um papagaio pode repetir certos sons, sem necessariamen-te encadeá-los gramaticalmente em um ato fático, e alguém pode ler um texto em latim , rea-lizando , portanto, um ato fonético e um ato fático, mas sem realizar um ato rético, isto é, sem saber o que as expressões significam ou a que elas se referem. O que falta são as circuns-tâncias adequadas para que tais atos se dêem [...]” (p. 86).

7 Austin substitui a teoria dos performativos pela teoria das forças ilocucionárias ou dos atos de fala partindo da idéia de que sempre que somos bem sucedidos em dizer alguma coisa , reali-zamos três atos: um ato locucionário , um ato ilocucionário e um ato perlocucionário (Cos-ta, p. 85).

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ações do ouvinte” (Costa, p. 86). Um exemplo disso é quando um as-saltante diz a alguém: o dinheiro ou a vida. Nesse caso é realizado o ato ilocucionário de ameaçar e o ato perlocucionário é “aquilo que o ato ilocucionário causa no ouvinte”, ou seja, o efeito de intimidá-lo (Costa, p. 86). Os três atos, na verdade, são abstrações que analisam um mes-mo fato, a saber: “o de que o falante, sempre que diz alguma coisa, o faz com certa força ilocucionária e com intenção de produzir no ouvin-te um certo efeito” (Costa, p. 87).8

O aspecto fundamental que Habermas absorve da teoria dos atos de fala de Austin é a idéia do ato de fala como uma ação e o conceito de força ilocucionária. O correspondente habermasiano de força ilocu-cionária é o conceito de pretensões de validade.9 As pretensões de validade requerem um reconhecimento intersubjetivo e precisam estar fundadas em razões. Por esse motivo, o significado de um ato de fala (ou aquilo que permite entendê-lo) se vinculará às condições de acei-tabilidade deste. O entendimento deve basear-se em razões e, no caso das pretensões de validade de verdade e retitude, estas se farão pre-sentes nos discursos teórico e prático , onde deverá predominar a for-ça do melhor argumento (Dutra, p. 18). O essencial, para Habermas, é o fato de o ato de fala possuir uma força ilocucionária presente na capacidade de gerar uma relação intersubjetiva, o “fazer coisas com palavras” de Austin. Como o próprio Habermas observa, o ato de fala se constitui através de uma dupla estrutura: a) a parte ilocucionária, executada com o auxílio de uma oração performativa. A função desta é a de fixar a pretensão de validade exigida (o sentido pragmático); b) o componente proposicional, formado com uma oração de conteúdo proposicional. Nos atos de fala constatativos este é mencionado expli-citamente; nos performativos, implicitamente. Sua função é a de fixar 8 Conforme Costa (p. 87), as duas teorias de Austin podem ser opostas da seguinte forma:

Proferimentos: Atos de fala:

CONSTATATIVOS (dizer algo verdadeiro ou falso)

LOCUCIONÁRIOS fonético fonético rético (de dizer algo com sentido e referência em circunstâncias adequadas)

PERFORMATIVOS (fazer algo feliz ou infeliz)

ILOCUCIONÁRIOS (diferentes forças ilocucionárias) PERLOCUCIONÁRIOS (efeitos nos ouvintes)

9 Para Habermas, um falante ao emitir uma oração coloca necessariamente pretensões de vali-dade de diferentes tipos. O termo pretensões de validade é derivado da distinção de Austin en-tre as formas em que os atos ilocucionários podem estar ou não em ordem e as formas em que podem ser corretos ou não corretos. Habermas vai estabelecer o termo Geltungsanprüche (pretensões de validade) como equivalente. A esse respeito também TAC II, p. 106.

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/ Os pressupostos da pragmática universal habermasiana e a reconstrução... 22

aquilo de que se fala. Um exemplo disso é a pergunta, pois o próprio ato de perguntar já reflete que estamos perguntando. Todo ato de fala possui uma dupla estrutura que resulta da reflexividade à linguagem (CyEP, p. 342). Isso implica que em todo ato de fala os falantes se co-municam em dois níveis, ou seja, no ilocucionário e no proposicional. Por essa razão, sempre que um falante emite um ato, simultaneamente já diz o que exige. Habermas transforma a distinção austiniana entre constatativo e performativo em uso cognitivo e uso interativo da lin-guagem. Ambas comportam quatro pretensões de validade, as quais estão inscritas na própria estrutura da fala.10 São elas:

a) verdade: em relação ao conteúdo proposicional afirmado; b) retitude: em relação às normas que se pretende estabelecer; c) veracidade: em relação à manifestação de suas intenções; d) inteligibilidade: é pressuposto para a compreensão de qualquer

ato de fala. Somente haverá geração de consenso (entendimento) quando as

pretensões de validade forem cumpridas. Elas exigem reconhecimento pelo ouvinte e devem estar em condições de oferecer uma justificativa de sua própria pretensão. Esta é a base do consenso racionalmente motivado (CyEP, p. 362-363). No caso do uso normativo da lingua-gem, a pretensão de retitude em relação a normas é inicialmente justi-ficada com base nas normas vigentes no contexto social. Se apesar disso essa pretensão de validade se manter problemática, deverá ser justificada num discurso prático.

Verdade e retitude são pretensões de validade passíveis de resolu-ção discursiva. A veracidade, quando problematizada, pode ser resol-vida recorrendo-se à coerência prática da pessoa, relacionando-a com o que ela expressa. A inteligibilidade, quando tornada problemática, pode ser clarificada no discurso hermenêutico.

O desdobramento de tais pretensões de validade possibilita a Ha-bermas, além de reconstruir a teoria austiniana dos atos de fala, preservar as três dimensões da razão já antes tematizadas por Kant. 10

Verbos performativos > atos de fala

Pret. de validade se refere

constatativos verdade mundo objetivo das coisas

regulativos retitude mundo social das normas

representativos veracidade mundo subjetivo das vivências

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Filosofia, Lógica e Existência / 23

servar as três dimensões da razão já antes tematizadas por Kant. Tal desdobramento é o que lhe permite mais tarde, no início da Teoria da ação comunicativa, enunciar a tarefa fundamental da Filosofia como sendo a de pensar a razão. A pragmática universal de Habermas se constitui portanto na estrutura fornecedora dos pressupostos necessá-rios para a sustentação de um programa filosófico baseado em uma teoria da racio-nalidade comunicativa. A pragmática universal se iden-tifica, pois, com a tarefa de uma filosofia pensada em termos pós-metafísicos e com o núcleo do próprio projeto filosófico habermasiano.

Referências bibliográficas

APEL, K. O. L’étique du discours comme étique de la responsabilité: une transfor-mation postmétaphisyque de l’étique Kantienne. In.: Revue de Métaphisyque et de Morale, 98e anée, n. 4, 1993.

AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. COSTA, C. F. Filosofia analítica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. DUTRA, D. Razão e consenso. Pelotas: Ed. Universitária, 1993. HABERMAS, J. Qué significa la pragmática universal? In: Teoria de la acción comuni-

cativa: complementos y estudios previos . Madrid: Catedra, 1989. . Teoria de la acción comunicativa. Madrid: Taurus, 1989. v. 1 e 2. McCARTHY, T. La teoria crítica de Jürgen Habermas. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1992. ROUANET, S. P. Ética iluminista e ética discursiva. In: Tempo Brasileiro, n. 98,

jul./set. 1989.

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/ Habermas crítico de Rawls. A posição original do ponto de vista da pragmática... 24

A. BERTEN

Université Catholique de Louvain

Habermas crítico de Rawls. A posição original do ponto de vista

da pragmática universal1

Advertência

As notas que seguem resultam de uma exposição feita no Seminá-rio conjunto de filosofia contemporânea e de ética econômica e social da Chaire Hoover, em 4 de março de 1993. O texto de base do seminário foi o manuscrito de John Rawls, Justice as Fairness. A Restatement. (Har-vard University, Cambridge, 1990, dat., 167 p.). É essencialmente a este texto que eu me refiro e não à Teoria da Justiça de 1971. As refe-rências ao texto de Rawls reenviam aos § e às alíneas numeradas (10.2 significa § 10, alínea 2). Quanto aos textos de Jürgen Habermas, trata-se de (1) Morale et communication, tr. Chr. Bouchindhomme , Paris, Cerf, 1986, citado (MC) no texto; (2) De l’éthique de la discussion, tr. M. Hunyadi, Paris, Cerf, 1992, citado (ED) no texto; e (3) da tradução inglesa dos seis primeiros capítulos de Faktizität und Geltung: Facticity and Validity. Contribution to a Democratic Theory of Law and the Constitu-tional State, tr. Wil-liam Regh, chap I-VI, dat., s/d, citado (FV) no tex-to. Estas notas foram completadas pelo comentário de um debate mais recente. Trata-se de “Reconciliation througt the Public Use of Reason: Remarks on John Rawls’s Political Liberalism”, de Habermas (Journal of Philosophy. vol. XCII, nº 3, march 1995, p. 109-131), citado (JH, JPh), artigo ao qual Rawls respondeu em “Reply to Habermas” (Journal of Philosophy. vol. XCII, nº 3, march 1995, p. 132-180, citado (JR, JPh).

A. Berten. 24/11/95.

1 Título original: Habermas critique de Rawls. La position originelle du point de vue de

la pragmatique universelle. (NT).

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A construção da posição original feita por Rawls suscitou um grande número de debates. Pode-se perguntar, com efeito, se seria necessário elaborar com tal minúcia uma posição original com o fim de deduzir os princípios de justiça: Rawls não poderia, simplesmente, propor os princípios de justiça, estes que, após reflexão e discussão com outras pessoas, lhes parecem os mais aceitáveis e, em seguida, desenvolver os argumentos suscetíveis de os justificar? Em outros termos, por que conceder um tal luxo à discussão ao redor de uma posição original fictícia?

Nós sabemos que Harsanyi utiliza também este meio de representação (device of representation) da posição original para justificar uma concep-ção utilitarista de justiça. Mas, numerosos outros autores não parecem ter necessidade deste artifício e o criticam. Deste ponto de vista, po-de-se perguntar se a situação ideal de comunicação, que Habermas de-fende a partir de uma perspectiva pragmática, é análoga à posição original de Rawls, quer dizer, é igualmente um device of representation, permitindo justificar os princípios.

Quando Rawls diz que a posição original é um meio de represen-tação, isto significa que é uma maneira cômoda de construir os princí-pios de justiça, que se poderiam eventualmente construí-los segundo outros métodos.

Poder-se-ia formular a questão de uma outra maneira: qual é o ti-po de justificação que podemos utilizar para defender os princípios de justiça.

Em Rawls, com efeito, pareceria que há um duplo movimento de justificação: em primeiro lugar, a partir da posição original, podem-se deduzir – idealmente ao menos – os princípios de justiça, ou, ao menos, pode-se racionalmente escolher entre diversos princípios de justiça. Mas, alhures, nós devemos saber o que nós devemos pôr no nosso modelo da posição original, como conceber as partes contratantes, como pensar as pessoas livres e iguais, o que colocar sob o véu da igno-rância. Manifestamente, tudo isto não pode ser deduzido da posição original, mas repousa sobre alguns axiomas (ou postulados) sem os quais toda a empresa perderia o sentido. (Eu penso aqui particular-mente aos postulados seguintes: nós devemos considerar as pessoas como livres e iguais, como suficientemente racionais; e como razoáveis no sentido de que elas são dotadas de dois poderes morais, de ter um senso de justiça e de poder fazer e revisar planos de vida.)

Minha questão concerne, portanto, ao papel de um segundo modo de justificação: sobre o que concerne, com efeito, o equilíbrio reflexivo e a justificação pública (ou o uso público da razão)? Isto deve nos ajudar a discernir isto que nós devemos colocar na posição original (elaborar os postulados); ou o uso público da razão e o equilíbrio reflexivo não intervêm a não ser ulteriormente, uma vez que os princípios de justiça

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/ Habermas crítico de Rawls. A posição original do ponto de vista da pragmática... 26

são propostos e que as pessoas são levadas, seja a tomar posição por referência a estes princípios de justiça, seja a discutir sua aplicação? Parece-me que, em Rawls, é a esta segunda tarefa que reenviam o e-quilíbrio reflexivo e o uso público da razão. Quanto à construção da posição original e à dedução dos princípios de justiça, esta parece ser a tarefa específica do filósofo. É um pouco como se não houvesse, ago-ra, a não ser um controle da constitucionalidade (ou um controle da validade) das proposições pelo filósofo a posteriori.

Eu compararei, agora, este modelo de justificação à exigência de discussão real (e ao sentido que pode ter esta idéia de discussão real) em Habermas. Entre outras, eu queria me perguntar em que medida, atrás do aparente realismo desta discussão real, não há uma forma de utopismo mais forte que aquele que se poderia reprovar em Rawls, utopismo que se ligaria a um fundamentalismo mais forte.

Relembremos, rapidamente, em que sentido Rawls dá à posição original a função de ser um meio de representação. Rawls responde, com efeito, a uma séria objeção: como a posição original é hipotética, “os a-cordos hipotéticos não são obrigantes”, e, então, “o acordo das partes na posição original aparece como despido de significação” (6.4). Mas Rawls estima que a posição original é somente um device of representa-tion ou um thought-experiment (experimento mental) visando a um pu-blic-and self-clarification. Ela deve nos permitir modelar duas coisas:

“primeiramente ela modela o que nós consideramos – aqui e agora – como condições eqüitáveis às quais os representantes dos cidadãos , conside-rados como pessoas livres e iguais, devem se pôr em acordo sobre os ter-mos da cooperação pela qual a estrutura de base deve ser regrada. Em se-gundo lugar, ela modela o que nós consideramos – aqui e agora – como restrições aceitáveis, à base de razões , sobre as quais as partes , situadas nestas condições, podem corretamente avançar certos princípios de justi-ça política e rejeitar outros” (6.4).

As restrições das quais se trata, concernem à prioridade do justo sobre o bem e do razoável sobre o racional. Em (23.3), Rawls volta à distinção entre o racional e o razoável. Ele escreve:

“O procedimento do imperativo categórico de Kant submete uma máxima racional e sincera de um agente (estabelecida à luz da razão prática empí-rica do agente) às obrigações (contraintes) razoáveis contidas neste proce-dimento e, então, ela obriga a conduta do agente pelas exigências da ra-zão pura prática. Da mesma forma, as condições razoáveis impostas às partes na posição original os obriga a chegar a um acordo racional sobre os princípios de justiça quando eles tentam estabelecer o bem dos que e-les representam” (23.3).

Resulta deste texto que o razoável tem prioridade sobre o racio-nal: “esta prioridade exprime a prioridade do justo [sobre o bem]; e

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justiça como eqüidade se parece, deste ponto de vista, como a concep-ção kantiana” (23.3). Numa nota Rawls observa que , deste ponto de vista, ele corrige

“uma observação da Teoria da justiça: (16.47), onde está dito que a teoria da justiça é uma parte da teoria da escolha racional. A partir disto que eu acabo de dizer, aquilo é simplesmente um erro, e implica que a justiça como eqüidade seria, no fundo, hobesiana [...] antes que kantiana. O que deveria ter sido dito é que a descrição [account] das partes e de seu racio-cínio, utiliza a teoria da escolha racional (decisão), mas que esta teoria é ela mesma uma parte de uma concepção política de justiça, que tenta dar uma concepção [account] dos princípios de justiça razoáveis. Está fora de questão derivar estes princípios do conceito da racionalidade como os únicos normáticos” (23.3 , n. 3).

Esta prioridade do razoável sobre o racional corresponde aos postulados prévios, à construção da posição original e permitem com- preender quais são as características desta posição original (e, por exemplo, porque deve-se construir uma posição original que dirá res-peito aos princípios de justiça de Rawls e não aos princípios de justiça utilitarista). É neste sentido que a posição original modela as restrições que nós julgamos aceitáveis.

Não devemos, apesar de tudo, retornar à uma questão que con-cerne à relação do racional e do razoável: saber se, na posição origi-nal, em agindo racionalmente, os indivíduos agem também razoavel-mente. Ou mais precisamente: se em agindo somente racionalmente nas condições de imparcialidade impostas pela posição original, os indiví-duos escolherão os princípios de justiça que são razoáveis.

Para responder a estas questões, eu procederei indiretamente, quebrando a linearidade do argumento, a partir das críticas formula-das por Habermas, em diversos momentos, à teoria da Justiça de Rawls.

As críticas de Habermas a Rawls

1 – Em Moral e comunicação

Em Moral e comunicação, Habermas busca fundar normas válidas. Ele constata que todas as éticas cognitivas que buscam um fundamento racional, concebem o princípio moral “de tal sorte que as normas que não podem obter a adesão qualificada de todas as pessoas concernidas são consideradas como não-válidas e, então, excluídas” (MC, 84). En-tão, pode-se afirmar que um princípio de universalização (U) deve orien-

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tar a escolha de normas válidas. Tal princípio pode ser assim formula-do:

“toda norma válida deve satisfazer a condição segundo a qual: as conse-qüências e efeitos secundários que (de maneira previsível) advenham do fato da norma ser universalmente observada, na intenção de satisfazer os interesses de todos e de cada um, possam ser aceitas por todas as pessoas concernidas” (MC 86-7).

O que é aqui pressuposto é que a escolha de normas pode ser justi-ficada aos olhos de todos, quer dizer, pode receber uma forma uni-versal. É a partir deste pressuposto (que Habermas discute em detalhe em seguida) que pode-se enunciar o princípio (D) de uma ética discur-siva,2 princípio que afirma que “uma norma não pode pretender vali-dade a não ser que todas as pessoas que possam ter concernidade, estejam de acordo (ou poderiam acordar), enquanto ‘participantes a uma discussão prática’, sobre a validade desta norma” (MC, 87).

No princípio (U), enuncia-se a condição que deve satisfazer uma norma válida. Pode-se dizer que (U) é um princípio geral da argumen-tação (que, enquanto tal, não é moral), ao passo que (D) precisa das condições de aplicação de (U) em nível de uma discussão sobre nor-mas morais. Mas Habermas acrescenta:

“é um fato que eu dou a (U) uma forma que exclui todo emprego monoló-gico deste princípio; ele não regra, com efeito, a não ser os argumentos real-mente conduzidos entre diferentes participantes e contém mesmo a perspectiva da argumentação que se trata de conduzir realmente e nas quais, a cada vez , são admitidas, enquanto participantes , todas as pes-soas concernidas” (MC 87).

Habermas acrescenta:

“numa tal ótica, nosso princípio de universalização se diferencia da fa-mosa proposição de John Rawls. Ele quereria que a tomada em conside-ração de todos os interesses em jogo fossem assegurados pelo fato que a pessoa que emite um julgamento moral se transporta , num estado origi-nal fictício, que exclui toda diferença de poder, que garante as mesmas li-berdades para todos e deixa cada um na ignorância das posições que e-les adotariam numa ordem social futura , qualquer que seja a organiza-ção” (MC, 87).

2 Optamos por traduzir o termo alemão Diskursethik por ética discursiva , isto porque o

adjetivo discursiva qualifica a ética como tal. A outra opção em português seria ética do discurso. O problema desta tradução é que do discurso não significa um qualitati-vo de ética, mas que podemos achar uma ética do discurso, assim como podemos a-char uma ética da política ou uma ética do mercado. Cabe observar que a tradução francesa utiliza o termo éthique de la discussion (N. do T.).

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O que Habermas critica em Rawls é a construção de uma posição original à qual nem todos podem aceder ou, ao menos, não acederiam naturalmente e assim conceder demais ao filósofo: todo indivíduo pode, por si mesmo, buscar justificar as normas fundamentais, da mesma maneira que o filósofo, e, então, ele não concebe sua própria pesquisa como “a ‘contribuição’ de alguém que, a propósito das instituições fundamen-tais da sociedade capitalista avançada, toma parte na argumentação”, mas como resultado de uma teoria da justiça “pela qual ele tem, en-quanto que especialista, toda competência” (MC, 88).

Uma primeira diferença residiria então nisto: que , para Habermas, a elaboração e a justificação de normas não podem, em nenhum caso, ser feitas a priori e a propósito de normas em geral, mas que se trata unica-mente de testar por meio de discussões reais, entre todas as pessoas concernidas, normas existentes problematizadas ou normas propostas; então, a elaboração de princípios de justiça (e toda a construção teórica da posição original) procedem, para Rawls, do domínio do trabalho do filósofo político. Esta é a razão, me parece, porque não há, em Ha-bermas, uma filosofia política (no sentido normativo do termo): a ela-boração de normas não procede do filósofo, mas é o produto de dis-cussões reais.

Há ainda uma outra diferença. Rawls concebe efetivamente a tare-fa do filósofo político como sendo de formular, de clarificar e de propor os princípios de justiça que correspondem às intuições morais as mais profundas de seus contemporâneos.

A discussão e, entre outras, o método do equilíbrio reflexivo, inter-vém após, e visam o arbitramento dos diferentes modelos de justiça. Isto pressupõe que se possa propor princípios gerais (como os dois princí-pios da Teoria da justiça). Habermas pensa que a elaboração de normas parte de normas já dadas e não intervém a não ser quando uma ou outra destas normas é problematizada:

“o princípio de uma ética discursiva é um procedimento que consiste, em ocorrendo, em honrar, pela discussão, as exigências normativas de validade. Taxar-se-á, então, a justo título, a ética discursiva de formal. Ela não diz respeito a orientações relativas ao conteúdo, mas a uma maneira de proceder: a discussão prática. O objeto desta maneira de proceder não é uma segurança de produção de normas legitimadas. Ela consiste, antes de tudo, em testar a validade de normas que são propostas ou visadas a título de hipóteses. É necessário, pois, que as discussões práticas rece-bam seus conteúdos do exterior” (MC, 125).

A argumentação intervém para restaurar um consenso perturbado, sob o horizonte de um mundo vivido compartilhado. Existe, pois, como situação original sempre presente, um consenso não crítico – a-quele de um mundo vivido feito de certeza.

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/ Habermas crítico de Rawls. A posição original do ponto de vista da pragmática... 30

Além disso, Habermas estima que o princípio de universalização pode ser justificado “a partir do conteúdo das pressuposições pragmá-ticas da argumentação em geral” (MC, 131). E ele acrescenta: “o prin-cípio de universalização pode ser, então, compreendido, se se segue o modelo do equilíbrio reflexivo que propõe John Rawls, como uma reconstrução de intuições cotidianas que compreendem a avaliação de conflitos morais que advêm na ação” (MC, 131).

Isto significa que, para Habermas, o princípio de universalização corresponde à prática real dos indivíduos, quando eles argumentam (é uma regra de argumentação). A pragmática universal, proposta por Ha-bermas, tenta, com efeito, mostrar que, quando nós discutimos, nós avançamos pretensões de validade que poder-se-iam formular da maneira seguinte: minha proposição pretende verdade, ou retitude ou sinceri-dade, até prova em contrário. É deste ponto de vista que Habermas estima o equilíbrio reflexivo de Rawls demais contextual: de fato, Rawls ateve-se às exigências de sentido, às exigências semânticas (aos conteú-dos semânticos de uma cultura determinada): “é necessário, agora, demonstrar que ‘U’ tem valor universal, dito de outra forma, que ele ultrapassa a perspectiva de uma cultura determinada. É o segundo tempo. Ele repousa sobre a prova pragmático-transcendental que es-tabelece as pressuposições universais e necessárias da argumentação” (MC, 131).

No que concerne a esta prova pragmático-transcendental, Haber-mas reconhece que não se pode aqui proceder a uma dedução transcen-dental no sentido kantiano: pode-se, no máximo, mostrar que “não há nada de conhecido que pudesse substituir ‘nossa’ maneira de argumentar”, e a ética discursiva, “como outras ciências reconstrutivas, não repousa senão sobre reconstruções hipotéticas” (MC, 131). A questão que está em jogo nesta crítica – questão que será reto-mada ulteriormente – é a seguinte: a reconstrução que propõe Rawls das intuições morais que são subjacentes aos princípios de justiça, tem um valor somente descritivo para a cultura democrática liberal, ou tem um valor normativo a uma pretensão universal? Deve-se recordar que a Teo-ria da justiça poderia ser interpretada como uma teoria geral no sentido seguinte: não importa qual pessoa (todo indivíduo) que fosse colocada na posição original, ela escolheria necessariamente os dois princípios de justiça de Rawls. E sabemos que Rawls tem, nos escritos ulteriores, relativisado esta pretensão universalista, aceitando que as instituições morais profundas, às quais ele se refere, são aquelas de uma cultura determinada (eu retomarei a questão).

A idéia de equilíbrio reflexivo

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Por ora, e a título de transição, eu gostaria de me interrogar sobre o alcance deste equilíbrio reflexivo na formulação que lhe é dada no Res-tatement.

Rawls parte da idéia de “pessoas livre e iguais, de cidadãos que têm uma aptidão à razão (teórica, bem como também prática) e um senso de justiça”, quer dizer, pessoas capazes de formular “numerosos tipos de julgamentos de justiça, estendo-se sobre todos os tipos de conteúdos” (10.1). Ele se interessa, agora, pelos considered judgements, pelos julgamentos refletidos ou bem-pensados. Ele observa que nossos julgamentos refletidos diferem, freqüentemente, dos de outras pesso-as, e que nossos próprios julgamentos refletidos não são sempre coe-rentes entre si. “(Muitos de nossos mais sérios conflitos são conflitos no interior de nós mesmos. Aqueles que supõem que seus julgamentos são sempre coerentes são irrefletidos ou dogmáticos e eles são fre-qüentemente ideólogos ou zelotas.) (10.2). É necessário, então, nos perguntarmos como nós podemos fazer nossos julgamentos mais coe-rentes. Para tornar nossos julgamentos mais coerentes, nós devemos reconhecer que eles “devem, eventualmente, ser revisados, suspensos ou recusados se o fim prático de chegar a um acordo razoável sobre matéria de justiça política deve ser realizado” (10.2).

Como acontece esse processo de correção, revisão ou recusa de nossos julgamentos bem-refletidos? Rawls distingue três estágios deste processo de colocar em ordem nossos julgamentos, três estágios disto que podemos chamar de o processo de equilíbrio reflexivo.

No primeiro estágio a pessoa não visa a não ser uma concepção de justiça, aquela que ocasiona menos revisões nos seus julgamentos inici-ais:

“a pessoa em questão adora esta concepção e alinha seus outros julgamentos sobre esta; nós diremos, agora, que esta pessoa está num equilíbrio reflexivo estreito [narrow], porque, ainda que suas convicções gerais, que seus primeiros princípios e seus julgamentos particulares estejam alinhados , nós não visamos senão a concepção de justiça que apela ao mínimo de revisões para chegar à coerência e que, nenhumas concepções alternativas de justiça, nem a força dos diversos argumentos por estas concepções foram tomadas em conta pela pessoa em questão” (10.3). Mas se – segundo estágio – alguém tem, saudavelmente, tomado

em consideração as principais concepções de justiça política na nossa tradição filosófica (compreendidas as críticas do conceito de justiça ele mesmo), “neste caso, nós supomos que as convicções gerais, os primei-ros princípios e os julgamentos particulares desta pessoa são alinha-dos, mas, agora, o equilíbrio reflexivo é ‘largo’ [wide], estando dada a reflexão largamente aberta e as numerosas mudanças de visão que

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/ Habermas crítico de Rawls. A posição original do ponto de vista da pragmática... 32

eventual-mente precederam. É o equilíbrio largo e não o estreito que é o conceito importante” (10.3).

Observemos que o processo de equilíbrio reflexivo em questão trata sobre as concepções de justiça existentes no seio de uma tradição determinada, e não sobre a justiça em geral, ou às condições universais de uma concepção de justiça.

Então, na concepção que dá aqui Rawls (e que é posterior à Teoria da justiça), o equilíbrio refletido – de encontro ao que Habermas afir-mava a propósito da Teoria da justiça – não é uma atividade monológica, salvo se se compreende a discussão no sentido estreito, onde as pes-soas se parecem efetivamente e discutem verbalmente (uma espécie de cidade rousseauniana, alguma espécie de...). Mas, no sentido largo, a leitura de livros, a discussão com a tradição através de artigos, os intercâmbios e toda outra forma de informação são uma atividade dialógica. Isto sublinha, apesar de tudo, uma certa pertinência aos pri-meiros argumentos de Habermas.

Segundo Rawls, é este conceito largo de equilíbrio refletido que é o mais importante: aquele ao qual deve conduzir uma discussão no qua-dro das democracias constitucionais.

Contudo, Rawls contrasta com esta perspectiva realista, uma tercei-ra forma (ou um terceiro estágio) de equilíbrio reflexivo: o que será (idealmente) um equilíbrio reflexivo pleno. Este pode existir numa so-ciedade bem-ordenada, quer dizer, regrada por uma concepção públi-ca de justiça (o adjetivo pleno nós o reservamos para as características tais que elas são realizadas numa sociedade bem-ordenada) (10.4).

“Numa tal sociedade, não somente existe um ponto de vista público a partir do qual todos os cidadãos podem endereçar suas reivindicações à vista de outros, mas este ponto de vista é mutuamente reconhecido e a-firmado por eles num equilíbrio reflexivo pleno. Esta é a condição essen-cial de uma reflexão razoável a qual distingue uma base pública de justi-ficação de um simples acordo” (10.4).

Há que se observar que o equilíbrio reflexivo é um procedimento que se pode qualificar de formal ou pragmático (em todo caso não-substancial):

“mutuamente reconhecido e afirmado por eles num equilíbrio reflexivo pleno. Esta é a condição essencial de uma reflexão razoável a qual dis-tingue uma base pública de justificação de um simples acordo” (10.4).

“[...] disto que nós dissemos mais acima (10.2), a idéia de justificação, co-nectada com o pleno equilíbrio reflexivo, não é fundamentalista , no sen-tido seguinte: não existe qualquer tipo específico de julgamento reflexivo de justiça política, nem algum nível de generosidade que seja portador de todo o peso da justificação pública. Os julgamentos refletidos de todos os

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tipos e níveis podem ter uma razoabilidade, ou aceitabilidade intrínseca, para as pessoas razoáveis que persistem após a devida reflexão. A con-cepção política, a mais razoável para nós , é aquela que corresponde me-lhor a todas as nossas convicções bem-pensadas, após reflexão, e as or-ganiza numa perspectiva coerente. Em nenhum momento do tempo, nós podemos fazer melhor que isto” (10.4).

Isto responde, talvez, a uma dificuldade que poderia ter surgido na confrontação entre Rawls e Habermas: em Rawls existe uma teoria da justiça e princípios de justiça que são propostos e discutidos; nós vi-mos que em Habermas não há nada assim, mas somente as condições nas quais poder-se-ia dizer que os princípios de justiça seriam norma-tivamente válidos. Lendo a última citação de Rawls mencionada, po-de-se sugerir que Rawls mistura, ou ao menos trata no mesmo nível, questões que se situam em dois níveis diferentes (por mais que se pu-desse efetivamente distinguir, o que é uma questão difícil sobre a qual eu não posso me estender aqui): o primeiro nível é aquele do “conteú-do” da discussão: o processo efetivo no seio do qual os princípios de justiça ou uma teoria da justiça (ou concepções de justiça plurais) são efetivamente colocados em debate, argumentados (por exemplo, o debate de rawlsianos, libertários, radicais, comunitaristas, etc.). Ha-bermas entrou pouco neste debate, a não ser em artigos de circunstân-cia ou por considerações metaéticas. O segundo nível é aquele, justa-mente, do procedimento (é o nível pragmático): é aquele no qual situa-se preferencialmente Habermas, é aquele que aparece quando Rawls estima que o procedimento do equilíbrio reflexivo é o que determina a validade dos princípios de justiça.

Mas, segundo minha visão, permanece na perspectiva de Rawls uma ambigüidade. O equilíbrio reflexivo, tal qual ele é definido, é um procedimento que permite tomar posição, vis-à-vis, de uma ou mais concepções de justiça. Ele não resolve a questão de saber como elabora-se uma concepção de justiça, entre outros, qual é o processo específico que permite (1) construir as características da posição original; (2) de-duzir, a partir da posição original, os critérios de escolha de princípios de justiça determinados.

Quanto a (1): pode-se dizer que as características da posição origi-nal correspondem a nossas intuições morais profundas. Mas, pode-se dizer também que intuitivamente, ou espontaneamente, ninguém cons-trói uma posição original para dar conta destas intuições morais. É, en-tão, um trabalho específico do filósofo de sintetizar num device of repre-sentation estas intuições morais, em uma forma (fictícia), suscetível de gerar (para todo mundo?) a coerência.

Quanto a (2): de uma parte pode-se pensar que a derivação de princípios de justiça é racional (resultado da teoria da escolha racional);

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de outra parte, pode-se pensar que a posição original serve de base a uma discussão generalizada e que o processo de equilíbrio reflexivo (discussão entre pessoas racionais e razoáveis) é o que permite decidir entre as diferentes derivações possíveis (por exemplo entre dois prin-cípios de justiça e um princípio de utilidade mediana).

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2 – Em Da ética discursiva

Habermas voltou ulteriormente à teoria de Rawls e, entre outras, para dar conta de modificações, no sentido de um abandono de posi-ções mais fortemente universalistas. No prefácio da obra Da ética dis-cursiva, ele situa os diferentes estudos publicados da forma seguinte: “estas são, antes de tudo, as objeções formuladas de encontro aos con-ceitos universalistas da moral, objeções originadas em Aristóteles, em Hegel e no contextualismo contemporâneo que constituem o pano de fundo da discussão” (ED, 11).

Habermas, num artigo de 1989 (Justice and solidarity: on the discus-sion concerning ‘Stage 6’),4 retoma a questão da posição original, tal qual ela é desenvolvida na Teoria da justiça. Ele distingue três tipos de filosofia moral – utilitarista, contratualista hobesiana (fundada sobre o egoísmo racional) e deontológica (de Kant e Rawls) – situa a si mesmo no terceiro grupo e afirma que as éticas formalistas (que são as éticas deontológicas) fornecem um procedimento que deve permitir julgar de forma imparcial (ou resolver de forma imparcial) um conflito moral (ou de justiça). Habermas julga que a base comum a Rawls e a ele pró-prio são uma certa versão do imperativo moral kantiano – sua versão universalista: o julgamento será imparcial se ele puder, de uma forma ou outra, corresponder a um ponto de vista sobre o qual “todos po-dem se por em acordo (Ao qualificar existencial ‘todos’, se refere a qualquer um que possa ser concernido – quer dizer, limitado em seu espaço de ação – por uma norma litigiosa)” (EC, 55). Trata-se de um acordo que todos podem querer, no sentido em que lhes parece moti-vado racionalmente e, da mesma forma, sem violência.

Mas, isso admitido, qual é o melhor modelo (meio de representa-ção) deste procedimento de produção do consenso? O modelo tradi-cional do contrato que Rawls mesmo defende? Em todo caso, a figura (advinda habitual no direito racional moderno depois de Hobbes) do acordo contratual entre os sujeitos de direito autônomos (ED, 56) não passa de uma posição pré-kantiana (no fundo somente racional e não razoável). Se se quiser integrar-se no sistema de um kantian constructivism, é ne-cessário corrigi-la. É a isto que serve, segundo Habermas, a posição original: “é o porquê Rawls coloca seus contratantes, que gozam da mesma liberdade de escolha, decidindo segundo a racionalidade tele-ológica e não devendo seguir senão seus próprios interesses (quer dizer que eles não estão interessados em seu bem-estar ‘mútuo’), na posição original” (ED, 56).

4 In: The Philosophical Forum, v. 21, n. 1-2, outono-inverno 1989-1990, p. 32-52, artigo

reimpresso em Ética discursiva.

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/ Habermas crítico de Rawls. A posição original do ponto de vista da pragmática... 36

É a posição original – e o véu de ignorância – que obriga a tomar em conta o ponto de vista do outro numa perspectiva universal. A po-sição original permite juntar, tornar isomorfa, poder-se-ia dizer, a orientação moral (razoável) e a orientação instrumental (racional). A orientação moral – que pode-se igualar ao imperativo categórico kan-tiano – “não é doravante mais que o resultado da ‘combinação’ do egoísmo racional e das posições normativamente consistentes da posi-ção original, sob as quais ele opera” (ED, 56). Isso tem uma vantagem: “dispensa a ‘Teoria da justiça’ das premissas, ricas em pressuposições, da doutrina moral de Kant. As partes contratantes não têm necessida-de de agir senão inteligentemente, e não por dever” (ED, 56).

Habermas interpreta, então, a posição original como um meio es-pecífico que permite (1) ultrapassar uma posição contratualista hobe-sia-na, em obrigando os indivíduos a abandonarem um ponto de vista particular e a adotarem uma posição imparcial e (2) tornar convergen-tes as ações razoáveis (morais) e racionais (instrumentais). Isto quer di-zer que quando se aceita o ponto de vista moral (a imparcialidade), pode-se, sobre esta base, conduzir a discussão e deduzir os princípios de justiça segundo a teoria da escolha racional (por exemplo, a regra do máxmin).

Críticas

Habermas empreende, agora, uma crítica da posição original (de sua interpretação da posição original), que desenvolve os argumentos seguintes:

(1) Habermas considera que se na posição original “alguém tem a necessidade de somente atribuir-se a capacidade de decisões tomadas segundo a racionalidade teleológica” (ED, 57), ele perde o senso moral ou, mais precisamente, se se pode agir unicamente de forma teleológi-ca (racional), não existe mais a necessidade do discernimento moral.

(2) Se as obrigações morais são os postulados que estão à base da posição original, “o saber prático-moral acaba reservado ao teórico , o qual deve tornar plausível a razão pela qual ele constrói sua posição original de tal maneira e não de outra” (ED, 57). Mas, surge a questão de saber “como Rawls pode, de uma maneira geral, motivar seus des-tinatários a colocarem-se na posição original” (ED, 57).

Esta dupla crítica é justificada? A meu ver, (1) não é justificada, pois as partes, na posição original, são pessoas morais, as quais, se elas podem, com efeito, agir racionalmente, são, no entanto, dotadas de dois poderes morais (não se vê por que eles perderiam seu senso moral, ou não teriam mais necessidade do discernimento moral). Quanto a (2), esta crítica retoma aquela de Moral e comunicação (a construção da po-

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sição original é reservada ao teórico), mas acrescenta-lhe um elemento novo: como, então, motivar os cidadãos a colocarem-se na posição ori-ginal? Esta segunda questão reenvia àquela da convergência entre o racional e o razoável: os indivíduos têm um interesse racional (do ponto de vista da possibilidade da escolha de seus planos de vida) em agir razoavelmente e, então, serão motivados a colocarem-se nas con-dições específicas da posição original para decidir os princípios de justiça.

A terceira, a quarta e a quinta críticas são mais substanciais e têm a ver com os debates entre liberais e comunitaristas.

(3) Habermas pergunta-se, agora, como, na reflexão sobre o que é justo ou moral (no sentido público), os indivíduos podem aceder ao ponto de vista universal ou imparcial. Se a perspectiva contraturalista da posição original não chega a ultrapassar o dualismo entre razoável e racional, pode-se imaginar um outro procedimento para colocar-se no lugar de qualquer outro (Scanlon)? Pode-se, por exemplo, contentar-se com a adoção de papéis (Mead)? Em outros termos, pode o indivíduo, por ele mesmo, por uma exigência reflexiva, colocar-se no lugar de todos os outros? Habermas estima que esta perspectiva é demais em-pática (supõe uma capacidade do indivíduo de compreender intuiti-vamente o ponto de vista de um outro). É porque , mais que um mode-lo contratualista ou um modelo de adoção ideal de papéis, Habermas pro-põe o modelo da ética discursiva (que ele compartilha com Apel): “o sujeito que julga moralmente não pode verificar solitariamente, mas somente socialmente, com todos os outros concernidos, se uma manei-ra de agir litigiosa será, enquanto que prática universal, do interesse comum” (ED, 60). Este objetivo não pode ser atingido senão por uma confrontação real, quer dizer, uma discussão argumentada por meio de boas razões.

Mas nós não sabemos, ainda, por que uma discussão real nos per-mite escapar a uma lógica instrumental ou estratégica (racional). Ora, aqui intervém uma das teses teóricas mais fortes (e mais contestáveis?) de Habermas. Ele escreve, com efeito, isto:

“se a discussão pode tomar o papel de um procedimento explicitando o ponto de vista moral, é por causa destas pressuposições idealizantes que deve fatualmente operar quem se engaja seriamente numa argumentação. A discussão prática deixa-se conceber como um processo de intercom-preensão que, pela sua forma mesma , quer dizer, unicamente sobre a ba-se de inevitáveis pressuposições da argumentação, leva todos os concer-nidos a uma adoção ideal de papéis” (ED, 61).

A convergência entre o racional e o razoável é, de qualquer ma-neira, deduzida dos pressupostos pragmáticos da comunicação. A

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/ Habermas crítico de Rawls. A posição original do ponto de vista da pragmática... 38

discussão real (e não somente a projeção monológica numa posição original ideal) é indispensável, não somente por motivos falibilistas (porque, com efeito, o indivíduo isolado não pode realmente chegar ao verdadeiro ou ao justo, ele pode enganar-se). Ela é indispensável também em outro sentido: é que somente na discussão real eu sou obrigado, apenas para poder compreender do que se trata, e, então, para poder acompanhar a discussão, adota um ponto de vista transub-jetivo, quer dizer, um ponto de vista potencialmente universal, e, en-tão, moral ou razoável (e não somente racional). Habermas não tem ne-cessidade de pressupor indivíduos livres e iguais, como partes da posi-ção original. Ele quer mostrar que os indivíduos, nas discussões reais, são obrigados a confrontarem-se com exigências de comportamento que são morais.

Habermas acrescenta que esta idéia é puramente regulativa, não so-mente porque uma discussão em foro interno não faz mais do que simu-lar um procedimento que não pode ser conduzido a bom termo (quer dizer, nós podemos ser levados a discutir conosco mesmos na ausên-cia dos interessados), mas: “mesmo as discussões realmente ‘conduzi-das a bom termo’ desenvolvem-se sob limitações sociais e espaço-temporais que não autorizam senão uma satisfação aproximativa dos pressupostos da argumentação, operada, na maior parte das vezes, contrafatualmente” (ED, 61).

(4) O ponto de vista de Habermas, sobre a necessidade da discus-são real, é justificada, igualmente, a partir de uma crítica do individua-lismo rawlsiano. As teorias contratualistas e as éticas de inspiração kantiana partem “do sujeito individualizado, autônomo e privado, possuindo-se a si mesmo como de uma propriedade – e não por refe-rência ao reconhecimento recíproco no qual os sujeitos adquirem, in-tersubjetivamente – e afirmam – sua liberdade” (ED, 65). É o sujeito que é pressuposto como tomando parte do contrato na posição origi-nal.

Para ultrapassar este individualismo, as tentativas comunitaristas não podem senão fracassar, pois elas querem restaurar as posições éticas pré-modernas (em termos rawlsianos, elas não levam em conta o fato que o indivíduo , necessariamente confrontado com o pluralis-mo, não pode remeter-se simplesmente a uma concepção moral englo-bante). Ademais, os valores que poderiam completar os valores liberais da liberdade e igualdade estão mal fundados. Assim, Habermas criti-ca Kohlberg (um psicólogo americano que, inspirando-se entre outros em Rawls, tentou reconstruir as etapas do desenvolvimento psicológi-co) por ter tentado completar os princípios morais universais com a benevolência (ou a solicitude), quer dizer, a atenção ao particular. Com

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efeito, ele estima que Kohlberg baseia-se sobre um equívoco no conceito de pessoa:

“o respeito igual por toda pessoa , enquanto sujeito capaz de agir de ma-neira autônoma em geral, significa tratamento igual; respeito igual por toda pessoa enquanto sujeito singular individuado quanto a sua história de vida, pode, no entanto, significar qualquer coisa outra que o tratamen-to igual, a saber, não a projeção da pessoa como ser determinando-se a si mesmo, mas a ajuda à pessoa enquanto que ser realizando-se a si mesmo. Nesta segunda variante, o sentido de ‘respeito’ modifica-se subrepticia-mente: do respeito pela integridade de uma pessoa vulnerável não resulta , rigorosamente, a solicitude pelo seu bem-estar” (ED, 66).

Habermas propõe, então, uma outra estratégia de fundamentação. Apoiando-se sobre pesquisas de psicologia social, ele constata que “os indivíduos capazes de falar e agir não podem ser individuados senão pela via da socialização” (ED, 67). Ora, esta socialização, necessária para a afirmação da individualidade, engendra uma vulnerabilidade específica. Desta forma, “a integridade dos indivíduos não pode ser protegida sem proteger a integridade de seu mundo vivido” (ED, 67). É uma argumentação que se encontraria, por exemplo, em Kymlicka, em sua defesa da proteção, em certas circunstâncias, das minorias cul-turais. Habermas deduz que o ponto de vista complementar da justiça não é a benevolência (ou a solicitude) – mas a solidariedade. É a solida-rie-dade que introduz agora o ponto de vista das comunidades parti-culares no seio da visão de universalidade.

(5) Enfim, Habermas ensaia aqui uma crítica – que ele retomará em Facticity and validity – do contextualismo que ele imputa a Rawls. Re-lembremos que a questão posta por Habermas era aquela de saber como os indivíduos podem aceder ao ponto de vista moral, quer di-zer, a um ponto de vista universalista. A crítica do individualismo, implícito no contratualismo, permite mostrar como , nas discussões reais, os indivíduos são levados necessariamente a adotar um ponto de vista universalista. Mas este ponto de vista poderia, ainda, ser res-tringido àquele de uma dada comunidade: pela discussão, eu encontro os indivíduos com os quais eu discuto realmente, e existe a quase cer-teza de que sejam os indivíduos que pertencem à mesma cultura que a minha. Portanto, meu ponto de vista moral, justiça e solidariedade, não se estenderá além dos democratas liberais que compartilham, final-mente, ideais análogos aos meus próprios. Mas aqui intervém, mais uma vez, a ética discursiva e seu enraizamento numa pragmática univer-sal. Os limites culturais

“não podem ser ultrapassados a não ser nas discussões , já que, nas soci-edades modernas, estas são institucionalizadas. As argumentações ul-

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trapassam, por si, os mundos vividos particulares; pois, nas suas pres-suposições pragmáticas, o conteúdo normativo das pressuposições do agir comunicativo é universalizado, abstraído e aberto, estendido a uma comunidade de comunicação compreendendo todos os sujeitos capazes de falar e agir” (ED, 69).

É o modelo desta comunidade de comunicação, estendida a todos os sujeitos capazes de falar e agir, que Habermas opõe ao modelo contratua-lista de Rawls, pois, no seio deste modelo, os sujeitos originalmente individuados poderiam não ser compreendidos senão como os cida-dãos de uma cultura particular: aquela das democracias liberais.

3 – Em Facticidade e validade

É, entre outras, esta questão da universalidade que é retomada em Faktizität und Geltung, no momento no qual Habermas retoma a dis-cussão das teses mais recentes de Rawls. Se a questão é saber como articular as pretensões universais e o quadro restrito de uma cultura particular, pode-se dizer que “o interesse de John Rawls pelas condi-ções de aceitação política de sua teoria da justiça, uma teoria agora desenvolvida no vazio, aparece [...] como o retorno de um problema reprimido” (FV, 85).

Obliquamente nós iremos, agora, encontrar a questão do estatuto da justificação do equilíbrio reflexivo.

Habermas distingue dois estágios da argumentação.

a) O primeiro situa-se na hipótese de uma sociedade bem-ordena-da. Nesta, haveria congruência do justo e do bem.

“As instituições justas criariam as circunstâncias sob as quais seria no interesse bem compreendido de qualquer um, perseguir seus próprios planos de vida livremente escolhidos , nas mesmas condições que aque-las que garantissem às outras pessoas que elas poderiam perseguir seus próprios planos de vida. Numa sociedade bem ordenada, seria também sempre bom para mim satisfazer as exigências da justiça. Ou, em termos hegelianos , a moralidade dos indivíduos (Moralität) encontraria sua fun-damentação ética (sittliche) nas instituições de uma sociedade justa. A au-to-estabilização de uma sociedade bem ordenada é baseada não sobre a força coercitiva do direito, mas sobre a força socializante de uma vida sob instituições justas, pois, uma tal vida desenvolve e reforça simultanea-mente as disposições dos cidadãos à justiça” (FV, 86).

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Pode-se supor que a posição original nos permite modelar abstra-tamente esta sociedade bem-ordenada. Com efeito, se as pessoas livres e iguais da posição original escolhessem os princípios de justiça e os aplicassem, a forma de cooperação social que resultaria corresponde-ria ao que é uma sociedade bem-ordenada. Assim, na posição original, como na sociedade bem-ordenada, pode-se dizer que é do interesse (racional) dos indivíduos agir razoavelmente, seja escolhendo os prin-cípios de justiça, seja aplicando-os e respeitando-os.

b) Mas existe um segundo estágio de argumentação: como as insti-tuições justas podem ser estabelecidas nas circunstâncias presentes, quer dizer, numa sociedade pluralista? “Neste contexto, estima Ha-bermas, o conceito de ‘equilíbrio reflexivo’ joga, antes de tudo, um papel ambíguo, papel que Rawls ele próprio não diferenciou suficien-temente” (FV, 87).

Habermas parece pensar que o método do equilíbrio reflexivo já operou em nível da construção da posição original, em nível da teoria, da maneira seguinte: “aquele designa o procedimento característico das teorias reconstrutivas em geral, segundo as quais deve-se apoiar sobre enunciados exemplares para explicar a forma racional do conhe-cimento intuitivo de sujeitos competentes” (FV, 87).

O método reconstrutivo é, com efeito, aquele que, para Habermas, tem a tarefa de reconstruir as competências necessárias para compre-en-der as performances atuais dos indivíduos (por exemplo, suas per-formances lingüísticas, ou suas habilidades estratégicas). Deste ponto de vista, o equilíbrio reflexivo deveria estar em jogo quando nós (os filósofos que construímos o modelo da posição original) atribuímos às partes as características de pessoas livres e iguais, razoáveis e racio-nais. O problema é que, como a posição original não é uma perfor-mance real, existe circularidade. Deve-se, então, admitir que o que nós projetamos, na posição original, são as características de pessoas mo-rais exemplares, tais que nós podemos observar nas sociedades demo-cráticas liberais (fazendo abstração de todas as particularidades, como a pertença a uma classe, a um sexo, etc.).

Mas o equilíbrio reflexivo opera em um segundo nível, que Rawls bem definiu:

“o fim da filosofia política, quando ela apresenta-se ela mesma a uma cultura pública de uma sociedade democrática, é de articular e tornar ex-plícitas as noções e princípios compartilhados , já latentes no senso co-mum; ou, como é freqüentemente o caso, se o senso comum é hesitante e incerto, de lhe propor certas concepções e princípios da mesma natureza [congenial] que suas convicções e tradições históricas mais essenciais.”5

5 Kantian constructivism in moral theory, Jph, 77 (1980), 518, apud FV, p. 87-8.

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/ Habermas crítico de Rawls. A posição original do ponto de vista da pragmática... 42

Mas, segundo Habermas, neste segundo momento, neste segundo uso do equilíbrio reflexivo, Rawls obscureceu a clara diferença entre o trabalho filosófico (elaborar os princípios de justiça, a partir do mode-lo da posição original) e a discussão generalizada de princípios de justiça. Sustentar a teoria da justiça, a partir de intuições morais cultu-ralmente localizadas é, com efeito, obscurecer

“a fronteira entre, de uma parte, a tarefa de fundamentar os princípios de justiça filosoficamente e, de outra parte, a empresa de uma comunidade jurídica concreta de chegar a uma autocompreensão política dela mesma a propósito das bases normativas de sua vida em comum. Por este último processo, as explicações que propõe a filosofia podem ter no máximo uma função de catálise ou de clarificação” (FV, 88).

O que Rawls mostra, aqui, é que uma teoria da justiça, tal qual ele a propôs, pode ser aceitável – quiçá aceitada, o que é uma outra coisa – nas sociedades que têm uma forte tradição democrática liberal. Isto significa que esta teoria pós-metafísica da justiça não é senão, como sugere Richard Rorty, a colocação em forma das “percepções intuitivas e dos princípios típicos dos liberais americanos”.6 Habermas não pensa assim, pois senão não seria compreensível o luxo de justificações e de argumentações colocadas em cenário por Rawls para defender a sua posição.

Se se quiser resumir a crítica feita aqui por Habermas a Rawls, po-der-se-ia dizer isto: é porque Rawls não distinguiu suficientemente os dois níveis de argumentação, que ele não consegue sair do dilema universalismo-contextualismo. Se os princípios de justiça e a posição ori-ginal são somente o resultado de intuições morais, culturalmente de-terminadas de uma sociedade, há uma circularidade, e estes são os encargos da razão (ou o sentido de uma argumentação racional ou razoá-vel) de onde advém a problemática. Em outros termos, a argumenta-ção fica confinada aos conteúdos semânticos de uma comunidade de-terminada e não contém, enquanto argumentação, nada de universal e, então, nada de normativo fora dessa comunidade.

A questão é, portanto, saber se existe uma terceira via entre um contextualismo (descrever corretamente as intuições morais dos ame-ricanos no final do século XX) e um universalismo (uma Teoria da justi-ça válida para todas as sociedades). Habermas responde a esta ques-tão de uma dupla maneira. Em primeiro lugar, ele sugere que o senti-do profundo da teoria da justiça de Rawls ultrapassa os limites meto-

6 RORTY, Rawls. The priority of democracy to philosophy. In: Objectivity, Relativism

and Truth. Philosophical Paper, v. 1, Cambridge: Cambridge University Press, 1991. Apud FV, p. 91.

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dológicos (ou as contradições) que aparecem numa freqüência exage-rada no texto mesmo de Rawls. Ele avalia que não são somente os felizes herdeiros de Jefferson capazes de chegar ao julgamento imparcial, exigido por uma teoria da justiça como eqüidade:

“as pressuposições comunicativas sob as quais as partes fazem seus a-cordos [Vereinbarungen] desvela um ponto de vista moral que não é privi-légio de alguma cultura particular, mas vai mais profundamente e, de fa-to, é, em última análise, ancorado nas simetrias do reconhecimento mú-tuo de sujeitos em geral, agindo comunicativamente” (FV, 93).

Em segundo lugar, Habermas distingue entre o que ele chamou em outro momento lógica do desenvolvimento e uma dinâmica do de-senvolvimento:

“estas condições abstratas, que tornam possível o julgamento imparcial nas questões práticas, não coincidem com as condições sob as quais nós estamos dispostos a agir de um ponto de vista moral. Isto conduz Rawls à procura da confiança motivacional de uma cultura política adaptada – e a encontrar no lugar privilegiado de uma tradição constitucional contí-nua, que se estende por duzentos anos , e, ainda que desafiada constan-temente por conflitos de classe e de raça, foi ainda e sempre renovada e vitalizada por novas interpretações. Se se toma esta literalmente, a força da convicção política da teoria é, por isto, é verdade, limitada a um pe-queno número de contextos” (FV, 93).

Segundo a lógica da justificação – que é uma lógica pragmática – o julgamento imparcial não pode se subscrever aos princípios de justiça. Mas, segundo as dinâmicas empíricas, a adesão psicológica ou cultu-ralmente determinada nada pode nos garantir , pois a vontade boa se dobrará às exigências do julgamento correto.

4 – Em Reconciliation through the public use of reason

O debate chegou a uma espécie de conclusão no Journal of Philoso-phy (mar. 1995), pela troca de argumentos que permitiu a Habermas expor explicitamente suas críticas a respeito de Rawls e a este de res-ponder longamente. A oposição entre posição original e situação ideal de comunicação aparece como decisiva, pois Rawls assinala que entre ele e Habermas a diferença between our devices of representation7 é essencial – ainda que a diferença primeira e mais fundamental seja que a posição de Habermas aparece a Rawls como filosoficamente englobante (com-preen-siva) ao passo que a sua não é senão uma concepção política e limitada a esta (JR, Jph, 132). 7 “Entre nossas estratégias de representação” (N. do T.).

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/ Habermas crítico de Rawls. A posição original do ponto de vista da pragmática... 44

Em seu artigo, Habermas retoma a questão da posição original e reitera a crítica segundo a qual é muito difícil conciliar, de forma coe-rente, a racionalidade das partes com a necessidade de construir uma ordem moral (razoável). As partes devem, com efeito, agir como indi-víduos racionais, interessados somente neles mesmos, segundo a lógi-ca da escolha racional, mas elas devem, simultaneamente, ter em conta que representam clientes que são cidadãos livres e iguais, logo, indivíduos razoáveis (JH, JPh, 112).

Acrescente-se: o modelo da escolha racional, que orienta a condu-ta dos indivíduos na posição original, obriga Rawls a interpretar as liberdades fundamentais como “bens primários, o que o conduz a as-similar a significação, deontológica das normas obrigatórias à signifi-cação teleológica de valores preferidos” (JH, JPh, 114). As normas são absolutas, categóricas e universais, ao passo que os valores se expri-mem por relações de preferência e são relativos a grupos ou culturas particulares. Deste ponto de vista, Habermas estima que a prioridade do primeiro princípio – que faz jus a uma intuição deontológica – não pode ser justificada a partir da posição original – que se situa num contexto teleológico.

Habermas propõe, ao contrário, um procedimento mais realista, que não seja obrigado a colocar entre parênteses, pelo véu da ignorân-cia, o pluralismo de convicções e de concepções de mundo, e que, a-demais, não deve fazer apelo a conceitos substanciais, os quais Rawls é obrigado a utilizar na sua construção (conceitos tais que “cidadãos autônomos, cooperação ou sociedade bem-ordenada). Eu tenho no espírito, escreve Habermas, o procedimento mais aberto de uma prá-tica argumentativa que procede sob as pressuposições exigentes no ‘uso público da razão’.” (JH, JPh, 118).

Se se faz jus ao pluralismo de fato que caracteriza as democracias contemporâneas, a questão não é somente aquela (empírica e ligada à dinâmica do desenvolvimento) da estabilização, mas o fato que a teoria, enquanto tal, e no seu todo, pode “ser submetida à crítica pelos cida-dãos sob o fórum da razão pública” (JH, JPh, 121). O consenso conver-gente, deste ponto de vista, não pode exprimir somente a contribuição funcional da teoria da justiça à estabilidade da cooperação, mas deve-ria ser uma confirmação da correção da teoria. Em outros termos, não se trata somente da questão empírica da aceitação, mas da questão epistêmica da aceitabilidade: não somente do problema da estabilidade da sociedade, mas daquele da validade das pretensões à justiça.

Nós sabemos que a questão da validade, em Habermas, deve se ins-crever na arquitetônica diferenciada, desenvolvida pela pragmática da comunicação. Deste ponto de vista, razoável é um predicado para a validade dos julgamentos teóricos. É isto que uma certa leitura de Rawls autoriza:

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Filosofia, Lógica e Existência / 45

“Rawls introduz agora o razoável como uma propriedade das pessoas morais. Conta como razoável quem possui um senso da justiça e então deseja e é capaz de ter em conta as condições de eqüidade da cooperação, mas que é também consciente da falibilidade do conhecimento e – em re-conhecendo os encargos da razão – quer justificar publicamente sua con-cepção de justiça política” (JH, JPh, 123).

Mas, a concepção rawlseana do razoável não se reduz a estas a-firmações, pois não se pode compreender razoável como um predicado para a validade das proposições normativas e, ao mesmo tempo, sus-tentar, como Rawls o faz, “que as visões de mundo não têm necessi-dade de ser verdadeiras, mesmo quando elas são razoáveis” (JH, JPh, 124). A questão não é saber se é ou não necessário aderir ao realismo moral, mas saber se se pode atribuir o predicado verdade (um predi-cado de verdade semântica) às visões de mundo e às doutrinas morais e religiosas. Segundo Habermas, as visões de mundo, as doutrinas morais religiosas são “respostas às questões éticas essenciais: elas arti-culam de uma maneira exemplar as identidades coletivas e elas guiam os planos individuais de vida” (JH, JPh, 125). Agora, as visões de mundo “são medidas mais pela autenticidade dos estilos de vida que elas formam do que pela verdade das proposições que elas admitem” (JH, JPh, 126). Habermas, então, censura Rawls por confundir os dife-rentes níveis de validade: o nível epistêmico das pretensões de ver-dade, o nível moral de uma teoria da justiça (das normas práticas) e o nível valorativo dos estilos de vida (quer dizer, aqui, as visões de mundo e a maneira de viver autenticamente).

Perguntando-se por que Rawls pensa, todavia, que as visões de mundo que estabelecem as identidades são suscetíveis de verdade, ele sugere que um motivo possível poderia ser a convicção de que uma moralidade profana, independente [freestanding], é insustentável; que as convicções morais devem ser ancoradas em crenças metafísicas ou religiosas. O que repugna manifestadamente à visão mais Aufklärung8 de Habermas, para quem a tolerância ou a neutralidade, vis-à-vis de di-ferentes concepções de mundo, deve ser “uma validade ‘independen-te’ da religião e da metafísica” (JH, JPh, 126).

É interessante assinalar que , na sua réplica, Rawls considera que a posição de Habermas é uma posição metafísica, porque trata-se de uma perspectiva fundacional: uma vontade de encontrar um fundamento para a validade das pretensões à justiça: “o fim de sua teoria do agir comunicativo é dar conta, de forma geral, da significação, da referên-cia e da verdade ou validade, tanto para a razão teórica, quanto para as diversas formas de razão prática” (JR, JPh, 135) – trata-se de uma filosofia geral. 8 “Esclarecida” (N. do T.).

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/ Habermas crítico de Rawls. A posição original do ponto de vista da pragmática... 46

É por isto também que Rawls avalia que – ao inverso da posição original, que não é senão uma conjectura – a situação ideal de discus-são é uma concepção “lógica e hegeliana (no sentido amplo do termo): uma análise filosófica das pressuposições do discurso racional que aparentemente inclui em seu seio todos os elementos substanciais das doutrinas religiosas e metafísicas” (JR, JPh, 139).

É esta diferença fundamental que explica também a distinção es-sencial entre as concepções do espaço público ou da esfera pública, em Rawls e Habermas. Se, com efeito, para Habermas, a discussão pública deve ser real e sem limitações, isto supõe que as crenças éticas ou reli-giosas não sejam excluídas da discussão pública, na medida em que elas têm implicações sobre a formulação de normas a uma pretensão universal. O espaço público, em Habermas, é equivalente ao conceito de sociedade civil, enquanto Rawls restringe explicitamente a esfera pública – aquela onde o uso público da razão deve se desdobrar – ao espaço público no sentido restrito do termo (aquele do Parlamento, dos políticos de título, dos candidatos às eleições, dos líderes de par-tido, etc.)9 .

A meu ver, a solução esboçada por Habermas – e ela suporia a co-locação em perspectiva de sua filosofia da história, o que eu não posso fazer aqui – implica uma dupla distinção.

(1) Uma distinção entre semântica e pragmática da discussão. O con-teúdo semântico das normas é dado pela tradição. Trata-se de um pano de fundo, de “um plano intuitivo [que] determina a situação her-menêutica de partida” (ED, 181). É por exemplo o contexto das tradi-ções democráticas liberais que constitui o pano de fundo não proble-mático da teoria da justiça. Mas, do ponto de vista de uma pragmática da discussão, independentemente do conteúdo mais ou menos particular do que é discutido, os pressupostos imanentes à discussão argumenta-da ultrapassam e põem em questão todo conteúdo concreto, permitindo revisar ou contestar toda forma de vida dada. O ponto de vista pragmático – que Rawls jamais isolou enquanto tal – tem em mira, então, a universalidade e permite elaborar uma teoria da justiça – aquela de Rawls ou uma outra – com pretensão universal (pretensão sempre falível e problemática, que não se concretiza senão em discus-sões sempre retomadas).

(2) É necessário, em seguida, distinguir entre dois tipos de contex-to hermenêutico, dois tipos de tradição. Aqui intervém a discussão, por

9 Sobre esta questão, que não se pode desenvolver aqui, pode-se consultar: McCARTHY,

Thomas (1994). Katian constructivism and reconstructivism: Rawls and Habermas in dialogue. Ethics, 105. October, p. 44-63.

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Filosofia, Lógica e Existência / 47

Habermas, da significação de consenso convergente10 proposto por Ra-wls, e uma idéia da concepção da justiça somente política (e não moral, no sentido de uma concepção do bem globalizante). Habermas obser-va que: “um conceito pós-metafísico de justiça não é, de nenhuma ma-neira, conciliável com todas as doutrinas englobantes, mas somente com as interpretações não fundamentalistas de mundo” (ED, 182).

Isto significa que o consenso convergente pode funcionar a não ser entre doutrinas englobantes que não são irrazoáveis, que aceitam, portanto, ao menos um princípio de discussão.

Deste ponto de vista, pode-se dizer que o universalismo não é possível senão para as sociedades onde opera a regra pragmática da argumentação – ao menos como uma possibilidade que não é excluída a priori, por um sistema autoritário. O universalismo se restringe, agora, às sociedades modernas. Habermas pensa que o que Rawls pressupõe, quando ele fala de consenso convergente, não é a distinção entre os conceitos globais do bem e o da ordem política, mas “a dis-tinção entre formas modernas e pré-modernas de consciência, entre interpretações do mundo ‘racionais’ e ‘dogmáticas’.” (ED, 183). Ora, o que distingue as interpretações pré-modernas e modernas não é que as últimas recusa-riam doutrinas englobantes como interpretações de mundo, mas que elas são caracterizadas por “um gênero de reflexivi-dade que nos permite adotar uma perspectiva exterior, com respeito a nossas próprias tradições, e de as colocar em relação com outras tradi-ções” (ED, 183). Ora, isto supõe, segundo Habermas, uma premissa forte: que há uma comunicação possível entre culturas, e é então que se coloca um ultrapassar os particularismos culturais.

Habermas pode agora acrescentar:

“Rawls não pode defender o primado do justo sobre o bem, a partir do conceito de consenso convergente, a não ser que seja verdadeiro que as interpretações de mundo pós-metafísicas, advindo reflexivas sob as con-dições da modernidade, sejam epistemologicamente superiores às ima-gens de mundo fundamentalistas, consolidadas dogmaticamente; e se é

10 A expressão inglesa de Rawls é overlapping consensus que foi traduzida para o francês

como consensus par recoupement. A tradução por consenso convergente traduz a idéia central de Rawls ; a saber, trata-se de um consenso cujas razões ou motivos de acordo são diferentes , fincam raiz em tradições e concepções de mundo, justiça e bem as mais diferentes possíveis. Overlap pode ser traduzido por imbricar. A idéia de convergência traduz esta noção de imbricamento, de dirigir-se a um ponto onde as posições se cru-zam. Trata-se, portanto, de um consenso razoável. O importante é o acordo sobre um núcleo comum mínimo, não importando as razões ou os motivos deste acordo. “A i-déia de um consenso convergente deve nos permitir compreender como um regime constitucional, caracterizado pelo fato do pluralismo, pode assegurar, apesar de divi-sões profundas e graças ao reconhecimento público de uma concepção política razoá-vel de justiça, a estabilidade e a unidade social” (RAWLS, J. Justice et démocratice. Pa-ris: Seuil, 1993, p. 247-248). (N. do T.).

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/ Habermas crítico de Rawls. A posição original do ponto de vista da pragmática... 48

verdade que uma tal distinção pode, de maneira geral, ser operacionali-zada com todo rigor” (ED, 184).

Poder-se-ia então afirmar que o que está em jogo na posição origi-nal são as condições puras, pragmáticas, de uma discussão moderna, quer dizer, argumentada, independentemente de formas de vida e de concepções de bem (independentemente também de posições sociais), mas não independentemente de uma concepção moderna de pessoa: pois representar os indivíduos, como livres e iguais e como capazes de dois poderes morais, não é dar um conteúdo particular a uma tradição, é somente reconhecer o estágio ao qual acedem os indivíduos que re-conheceram os pressupostos pragmáticos de seu próprio agir comunica-tivo. Quanto ao equilíbrio reflexivo, ele não fará mais do que descrever as condições reais, sempre obscuras e imperfeitas, da discussão moral e política. O que pode-se esperar, no entanto, é que, numa sociedade moderna e num mundo vivido racionalizado, as discussões reais serão obrigadas, sempre mais, a confrontarem-se às exigências pragmáticas da comunicação. Deste ponto de vista, a convergência entre o racional e o razoável não fará mais do que refletir a consciência que os atores tomam da adequação entre a melhor sociedade (para eles) e uma sociedade bem-ordenada (para todos).

Tradução: Delamar José Volpato Dutra. Professor da UFSC e bolsista do CNPq na Université Catholique de Louvain. (Tradução revisada pelo autor).

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/ Demonstrar por refutação 48

DELAMAR VOLPATO DUTRA Universidade Federal de Santa Catarina

Demonstrar por refutação

Dentro da ética discursiva, há uma querela entre Apel e Habermas com relação ao status da fundamentação, por intermédio do princípio da autocontradição performativa a ser evitada. Trata-se de saber se a fundamentação é última (Apel) ou apenas universal, como sustenta Habermas. A melhor forma de solucionar esse dilema, ou ao menos torná-lo um pouco mais claro, é perguntar pelo próprio status do prin-cípio da autocontradição performativa. Deve-se, antes de tudo, de-terminar os fundamentos desse princípio fundamental.

Aristóteles enfrenta um problema semelhante com a fundamenta-ção do princípio de não-contradição. Queremos defender a tese que as divergências entre Apel e Habermas já podem ser encontradas no próprio Aristóteles. Há que se notar que essa problemática é como latente no próprio texto de Aristóteles. Usaremos a formulação da problemática em Aristóteles, a partir de Lukasiewicz, com o fito de determinar os contornos precisos do que está em questão, bem como os contornos de uma possível solução.

Com essa questão podemos tratar, também, com mais rigor, a no-ção de transcendental em Habermas.

I

Lukasiewicz1 distingue três formulações diferentes para o princí-pio de não-contradição:

1. uma formulação ontológica: “é impossível que o mesmo atributo pertença e não pertença ao mesmo tempo, ao mesmo sujeito e sob a mesma referência”;2 1 LUKASIEWICZ, J. Aristotle on law of contradiction. In: BARNES, J. et al. (ed.). Articles

on Aristotle. 3: Metaphysics. London: Duckworth, 1979, p. 50-62. 2 “Il est impossible que le même attribut appartienne et n’appartienne pas en même

temps, au même sujet et sous le même rapport” (ARISTOTE. Métaphysique, Ed. Tricot, IV, 3, 1005b, 19-20).

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2. uma formulação lógica: “a mais firme de todas as crenças é que proposições opostas não são verdadeiras ao mesmo tempo”;3

3. uma formulação psicológica: “não é jamais possível, com efeito, conceber que a mesma coisa é e não é”.4

Aristóteles, segundo Lukasiewicz, considera as formulações lógica e ontológica logicamente equivalentes. Ele pretende provar a formula-ção psicológica a partir da formulação lógica, como podemos ver a seguir. Sua prova tem duas partes:

1. “e se não é possível que os contrários pertençam ao mesmo tempo e ao mesmo sujeito [...], e se uma opinião, que é a contradição de uma outra opinião, é seu contrário, é impossível, para o mesmo espírito, conceber, ao mesmo tempo, que a mesma coisa é e não é, pois ter-se-ia opiniões con-trárias simultaneamente, se alguém engana-se sobre este ponto.”5

2. “mas, sendo que é impossível que contraditórios sejam verdadeiros , ao mesmo tempo, do mesmo sujeito, é evidente que não é possível também que contrários coexistam no mesmo sujeito. Com efeito, de dois contrários um é privação não mais que contrário, a saber, privação da essência: ora , privação é negação de alguma coisa num gênero determinado. Se, então, é impossível que a afirmação e a negação sejam verdadeiras ao mesmo tempo, é impossível também que contrários coexistam no mesmo sujei-to.”6

Logo, se duas crenças, correspondendo a sentenças contraditórias, pudessem existir ao mesmo tempo numa consciência, então, proprie-dades contrárias poderiam pertencer, ao mesmo tempo, àquela cons-ciência. Mas, pelo princípio de não-contradição, é impossível que pro-priedades contrárias pertençam a um mesmo objeto ao mesmo tempo. Logo, duas crenças relacionadas a duas sentenças contraditórias não podem existir numa consciência singular ao mesmo tempo.

A prova de Aristóteles não tem validade, segundo Lukasiewicz, porque ele não provou que crenças referentes a sentenças contraditó- 3 “La plus ferme de toutes les croyances , c’est que les propositions opposées ne sont pas

vrais en même temps” (ARISTOTE. Métaphysique, Ed. Tricot, IV, 6, 1011b, 13-14). 4 “Il n’est pas possible, en effet , de concevoir jamais que la même chose est et n’est pas”

(ARISTOTE. Métaphysique, Ed. Tricot, IV, 3, 1005b, 23-4). 5 “Et s’il n’est pas possible qu’en même temps des contraires appartiennent au même

sujet [...], et si une opinion, qui est la contradiction d’une autre opinion, est son contrai-re, il est évidemment impossible, pour le même esprit , de concevoir, en même temps, que la même chose est et n’est pas, car on aurait opinions contraires simultanées , si on se trompait sur ce point” (ARISTOTE. Métaphysique, Ed. Tricot, IV, 3, 1005b, 26-32).

6 “Mais, puisqu’il est impossible que les contradictoirs soient vraies , en même temps, du même sujet , il est évident qu’il n’est pas possible non plus que les contraires coexistent dans le même sujet. En effet , des deux contraires l’un est privation non moins que con-traire, à savoir privation de l’essence; or privation est une négation de quelque chose dans un genre déterminé. Si donc il est impossible que l’affirmation et la négation soi-ent vrais en même temps, il est impossible aussi que le contraires coexistent dans un sujet” (ARISTOTE. Métaphysique, Ed. Tricot, IV, 3, 1005b, 15-21).

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/ Demonstrar por refutação 50

rias são contrárias. Aristóteles converte, aqui, lógica em psicologia e psicologia em lógica. Isto porque: 1. ele caracteriza crenças como verdadeiras ou falsas, mas crenças,

como atos mentais, não podem ser verdadeiras ou falsas no senti-do primário das sensações. Estas (verdade e falsidade) pertencem a sentenças que correspondem a tais atos e a relações lógicas entre sentenças;

2. Confunde conseqüência lógica com causação psicológica.7 A formulação psicológica não pode ser provada a priori, ela só po-

de ser estabelecida por indução como uma lei empírica. Uma lei nunca pode ser, stricto sensu, estabelecida empiricamente, como nos mostrou Hussel.8 Além disso, há casos na história onde as pessoas asseriram proposições contraditórias ao mesmo tempo , por exemplo Hegel. 9

A formulação lógico-ontológica é um princípio último não-passível de prova. Aristóteles não prova esta afirmação, apenas diz: “e se exis-tem verdades das quais não é necessário procurar demonstração, que se nos diga por qual princípio é preciso menos que por este (o princí-pio de não-contradição)”.10 Lukasiewicz pensa que há princípios mais simples e não menos evidentes que poderiam ter preferência ao prin-cípio de não-contradição, como o princípio de identidade: uma pro-priedade pertence a um objeto ao qual ele pertence.11 Este princípio é diferente do de não-contradição, porque sua formulação não faz uso dos conceitos de negação e conjunção lógica, expressos nas palavras e ao mesmo tempo na formulação do princípio de não-contradição.

Apesar de não passível de prova, Aristóteles busca uma prova: “no entanto, é possível demonstrar por refutação a impossibilidade de que a mesma coisa seja e não seja, desde que o adversário diga somen-te alguma coisa”.12 A refutação (elenchus)13 é um silogismo cuja conclusão é contraditória com a tese.14 Assim, se alguém asserir a falsidade do princípio de não-contradição, será forçado a asserir , ao final, a sua verdade.

7 Como, por exemplo, em De Int. 14, 23b, 25-27. 8 Cfr. HUSSEL, E. Logical investigations. London, 1970. I, p. 114. 9 Cfr. HEGEL, W. F. Sciense of logic. London, 1929, II, p. 67. 10 “Et s’il y a des vérites dont il ne faut pas chercher de démonstration, qu’on nous dise

pour quel principe il le faut moins que pour celui-là” (ARISTOTE. Métaphysique, Ed. Tricot, IV 4, 1006a, 10-11).

11 Esta formulação evita a confusão com o princípio de não-contradição que a antiga fórmula (A é A) permitia.

12 “Il est cependant possible d’établir par réfutation l’impossibilité que la même chose soit et ne soit pas, pourvu que l’adversaire dise seulement quelque chose” (ARISTOTE. Métaphysique, Ed. Tricot, IV, 4, 1006a, 11-13).

13 Sobre a relação elenchus e refutação ver o artigo de VLASTOS, G. The socratic elenchus. In: Oxford Studies in Ancient Philosophy. I, 1983, 27-58.

14 Cf. ARISTÓTELES. A. PR. II, 20, 66b, 11.

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Filosofia, Lógica e Existência / 51

Por isso é uma prova negativa. Ele é um meio de refutação e não de prova positiva. Esta é a razão pela qual o próprio Aristóteles distingue demonstrar de refutar.15

Lukasiewicz distingue ao menos cinco provas do princípio de não-contradição. As duas primeiras por elenchus, por refutação e três ou-tras por reduction ad impossible:

a) “então, se alguém designa com verdade alguma coisa com o nome de homem, esta coisa é necessariamente um animal bípede, porque é este o sentido que nós havíamos dado ao homem. E se isto é necessário, não se pode admitir que esta mesma coisa não seja um animal bípede; pois tal é a significação de ser necessário: a de não poder não ser. Conclusão: não é possível dizer que seja verdadeiro, ao mesmo tempo, que a mesma coisa é homem e não é homem.”16

Formalmente, a prova pode ser estabelecida como segue: pela palavra A eu denoto alguma coisa que é essencialmente B. Então o objeto A é, necessariamente, B. Mas, se A é necessariamente B, então, pelo signifi-cado da palavra necessário, é impossível para A não ser B. Então A po-de ao mesmo tempo ser e não ser B;

b) “que esteja então entendido, como havíamos dito no começo, que o nome possui um sentido definido e uma significação única. Isto posto, não se pode admitir que a essência de homem signifique precisamente a essência de não-homem [...]. E não é possível que a mesma coisa seja e não seja o que ela é, então sob o ponto de vista da simples homonímia, como se isto que nós chamamos homem, outros chamassem não-homem; mas a questão não é saber se é possível que o mesmo ser, ao fim, seja ou não seja um homem quanto ao nome, mas se é possível que ele seja quan-to à coisa mesma.”17

Formalmente: pela palavra A eu denoto alguma coisa que é essencial-mente unitária (B). Então, o objeto A, que é essencialmente B, não

15 ARISTOTE. Métaphysique, Ed. Tricot, IV, 4, 1006a, 15-18. 16 “Donc, si on désigne avec verité quelque chose du nom d’homme, cette chose est

nécessairement un animal bipède, parce que c’était là le sens que nous avion donné ‘homme’. Et si cela est nécessaire, il ne peut pas se faire que cette même chose ne soit pas um animal bipède; car telle est la significacion de ‘être necessaire’: c’est de ne pouvoir pas ne pas être. Conclusion: il n’est pas possible qu’il soit vrai, en même temps, de dire que la même chose est homme et n’est pas homme” (ARISTOTE. Métaphysique, Ed. Tricot, IV, 4, 1006b, 28-34).

17 “Qu’il soit donc entendu, ainsi que nous l’avons dit au début, que le nom posséde un sens défini et une signification unique. Ceci posé, il ne peut pas se faire que la quiditté d’homme signifie précisément la quiddité de non-homme [...]. Et il ne sera pas possible que la même chose soit et ne soit pas ce qu’elle est, sinon au poit de vue de la simple homonymie, comme si ce que nous, nous appelons ‘homme’, d’austres l’appelaient ‘non-homme’; mais la question n’est pas de savoir s’il est possible que le même être, à la fois soit et ne soit pas un homme quant au nom, mais s’il est possible qu’il soit quant à la chose elle-même” (ARISTOTE. Métaphysique, Ed. Tricot, IV, 4, 1006b, 11-22).

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pode ao mesmo tempo não ser essencialmente B. Então A não pode ao mesmo tempo ser e não ser B essencialmente;

c) “se todas as contradições relativas ao mesmo sujeito são verdadeiras ao mesmo tempo, é evidente que todos os seres não seriam senão um. E haveria, com efeito, identidade entre um navio, uma muralha e um ho-mem.”18

d) “da mesma forma, mesmo no caso onde pode-se enunciar cada predi-cado como verdadeiro separadamente, resulta disto que expusemos , e es-ta outra conseqüência ainda, que todos dirão o verdadeiro e todos dirão o falso, e que nosso adversário evoca estar no erro.”19

e) “disto segue-se, como toda evidência, que ninguém se encontra , em rea-lidade, neste estado de espírito, nem entre os que professam esta doutri-na, nem em meio aos outros. Por que, em efeito, nossa filosofia faz rota por Mégara, e não fica em casa se contentando de pensar que vai? Por que se, ao raiar do sol, ele encontra um poço ou um precipício, não conti-nua a andar, mas por que o vemos, ao contrário, vigilante, como se ele pensasse que não é igualmente bom e mau cair? É bem claro que ele esti-ma que tal parte é melhor e tal outra pior.”20

Críticas de Lukasiewicz às provas aristotélicas:

a) é inadequada porque, no melhor dos casos, prova o princípio de dupla negação, a saber, se alguma coisa é B ela não pode ser não-B. Mas, i) este princípio é distinto do princípio de não-contradição, pois ele pode ser perfeitamente formulado sem o conceito de conjunção lógica e aquele não; ii) há objetos contraditórios, por exemplo, o maior número primo (Lukasiewicz não explica por que), ao qual o princípio de dupla negação pertence, mas não o princípio de não-contradição;

b) é, também, inadequada, pois i) estabelece o princípio de não-contradição para um restrito âmbito de objetos, para as essências ou 18 “Si toutes les contradictions relatives au même sujet sont vrais en même temps, il est

evident que tous les êtres n’en ferront qu’un. Il y aura , en effet , identié entre une trirè, un rempart et un homme” (ARISTOTE. Métaphysique, Ed. Tricot, IV, 4, 1007b, 18-21).

19 “Pareillement , même au cas où l’on peut énoncer chaque prédicat comme vrai séparé-ment, il s’ensuit tout ce qu’on vient d’exposer, et cette autre conséquence encore que tout le monde dira le vrai et tout le monde dira le faux, et que notre adversaire lui-même evoue être dans l’erreur” (ARISTOTE. Métaphysique, Ed. Tricot, IV, 4, 1008a, 28-30).

20 “De la vient , de toute évidence, que personne ne se trouve en réalité dans cet état d’esprit , ni parmi ceux que professent cette doctrine, ni parmi les autres. Pourquoi, en effet , notre philosophie fait-il route pour Mégare, et ne reste-t-il pas chez lui en se con-tentant de penser qu’il y va? Pourquoi si, au point du jour, il rencontre un puits ou un précipice, n’y marche-t-il pas, mais pourquoi le voyons-nous, au contraire, se tenir sur ses gardes , comme s’il pensait qu’il n’est pas également bon et mauvais d’y tomber? Il est bien clair qu’il estime que tel parti est meilleur, et tel autre, pire” (ARISTOTE. Méta-physique, Ed. Tricot,. IV, 4, 1008b, 12-19).

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as substâncias. Sua validade para os acidentes é uma questão aberta. “Deve haver, mesmo assim, alguma coisa que signifique a substância. Mas nós mostramos que se é assim, as contradições não podem ser atribuídas simultaneamente”;21 ii) a existência da substância é somente provável; iii) a prova contém uma falácia formal, pois usa uma premis-sa que só pode ser provada por recuctio, que pressupõe o princípio de não-contradição;

c, d, e) todas as provas por recuctio são inadequadas, pois contêm dois erros formais: i) cometem petitio principii, isto é, dependem do princípio de não-contradição. Formalmente: se A fosse o caso, B deve-ria ser o caso, mas B não é o caso, portanto A não pode ser o caso. Por que não? Porque se A fosse o caso, então haveria uma contradição, pois B seria também o caso, mas ele (B) não é o caso; ii) todos os ar-gumentos aristotélicos por reductio, cometem a falácia de ignoratio elen-chi: Aristóteles não prova que a simples negação do princípio de não-contradição leva-nos a conseqüências absurdas, mas espera estabelecer a impossibilidade de assumir que tudo é contraditório (prova c), mas quem nega o princípio de não-contradição, ou pede uma prova, não assume que tudo é contraditório.

Por essas razões, Aristóteles não provou o princípio de não-contradição. Na verdade, Aristóteles opera uma transformação do objeto de prova. Ele não quer provar o princípio, mas somente desco-brir alguma verdade absoluta e não-contraditória que mostre a falsi-dade do contrário do princípio de não-contradição. Além disso, Aristó-teles não rejeita de todo o ponto de vista dos que defendem as muta-ções e contradições das sensações, por isso, restringe, na mais impor-tante prova (b), a validade do princípio de não-contradição à substân-cia.22 Logo, o princípio de não-contradição não é construído como um princípio ontológico universal, mas como uma verdade metafísica que pertence primariamente à substância e que sua aplicação ao mundo das aparências é, no mínimo, duvidosa.

Aristóteles pretendeu que o princípio de não-contradição fosse não só o último, mas o supremo princípio. Mas, a lógica simbólica mostra que há muitos princípios e teoremas independentes do princí-pio de não-contradição: o princípio de identidade, as leis básicas de simplifica-

21 “Il doit donc y avoir, même ainsi, quelque chose qui signifie la substance. Mais nous

avons montré que, s’il en est ainsi, les contradictions ne peuvent pas être attribuées si-multanément” (ARISTOTE. Métaphysique, Ed. Tricot, IV, 4, 1007b, 16-18).

22 Cf. ARISTOTE, Métaphysique, Ed. Tricot, IV, 4, 1011a, 15-25.

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ção e composição, o princípio de distribuição, a lei da tautologia e absorção, bem como os princípios de indução e dedução. O princípio de não-contradição só é necessário para as provas indiretas e não para as diretas.

O princípio de não-contradição: a) não pode ser mostrado como imediatamente evidente, pois a

evidência não é um critério legítimo de verdade, já que sentenças fal-sas são e foram tomadas por evidentes, e o princípio de não-contradição não aparece evidente a todos, como aos megáricos e a Hegel;

b) não pode ser provado por uma lei da contingente psicologia humana;

c) não pode ser provada pela definição de falsidade e negação, pois estas noções não contêm o conceito de conjunção lógica, que é o caráter fundamental do princípio de não-contradição.

Pode-se por fim dizer que não haja nenhum objeto contraditório. O que podemos afirmar é que não há nenhum objeto contraditório perceptível (embora existam pessoas que afirmam que existem objetos contraditórios). Então, não podemos dizer com completa certeza que objetos reais não contêm contradição. “O homem não criou o mundo, e ele não pode penetrar em seus mistérios; ele não é sempre mestre de suas próprias criações conceituais.”23

Em suma, o princípio de não-contradição não tem valor lógico , já tem o status de uma pressuposição que não pode ser provada. Mas ele tem valor prático e ético , que é mais importante que aquele. “A lei de contradição é nossa única arma contra o erro e a falsidade.”24 Se tudo pode ser assim e não assim, sob o ponto de vista da constituição da significação, como organizar nossa vida em sociedade? O princípio de não-contradição é fundamental para a aceitação do que alguém diz.25 Então, a necessidade de reconhecer tal princípio é um sinal da imper-feição moral e intelectual do homem, da finitude humana. E só isto compensa, por si só, a sua falta de valor lógico. Assim, no tempo de Aristóteles, com o declínio de Atenas, defender tal princípio era fe- 23 “Man did not create the world, and he cannot penetrate all its mysteries ; he is not even

master of his own conceptual creatins” LUKASIEWICZ, J. Aristoteles on Law of con-tradiction. In: BARNES, J. et al. (ed.). Articles on Aristotle 3: Metaphysics. London: Duckworth, 1979, p. 62.

24 The law of contraction is our only weapon against error and falsehood. LUKASIE-WICZ, J. Aristotle on law of contradiction. In: BARNES, J. et al. (ed.). Articles on Aristo-tle 3: Metaphysics. London: Duckworth, 1979, p. 62.

25 Cf. DANCY, R. M. Sense and contradiction: a study in Aristotle. Dordrecht , Boston: Reidel Publishing, 1975, p. 11.

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char as portas à mentira e possibilitar a vida social. Por isso Aristóteles ataca os oponentes do princípio: megáricos erísticos, cínicos da Escola de Antístenes, os seguidores de Heráclito, os partidários da Protágo-ras. “Ele deve ele próprio ter percebido a deficiência de seus argu-mentos; e isto levou-o a apresentar sua lei como um último axioma – um dogma inatacável.”26

Até aqui a argumentação de Lukasiewicz.

II

Apesar do brilhantismo de Lukasiewicz, ele deixou de explorar ao menos um outro aspecto da prova de Aristóteles, a saber, o aspecto mesmo da refutação a partir dos Cânones da própria refutação. Luka-siewicz não dá cidadania à refutação. Seu argumento é: já que não há demonstração do princípio de não-contradição, então ele só pode ser tomado como um dogma. Mas pode-se interpretar Aristóteles de um outro modo, a saber, já que há refutação, então não é um dogma.

Como veremos, a lógica desta prova não está sob os Cânones de uma demonstração. Mas, seu estatuto é tal que pode evitar o recurso a um dogma tout court. Achamos ser possível reconstruir o argumento aristotélico pragmaticamente, a partir da noção mesma de refutação reformulada em termos de autocontradição pragmática, de tal forma que, se por um lado não podemos exigir o rigor lógico de uma dedu-ção, de uma demonstração, como exige Lukasiewicz, por outro lado permite-nos não cair em outro extremo , o de considerar o princípio de não-contradição, ou da autocontradição performativa, como um dog-ma, como o faz Lukasiewicz.

Lukasiewicz partiu de uma consideração de Aristóteles de que “demonstrar por via de refutação eu digo que é uma outra coisa que demonstrar”,27 por isso “demonstrar por refutação (apodeixai elegki-kõs)”28 é uma contradição em termos.

Esta problemática surge em Aristóteles, porque ele quis corrigir Platão, introduzindo uma distinção entre demonstração (apodeixis) e 26 “He may himself have felt the weakness of his arguments; and that many have led him

to present his law as an ultimate ‘axiom’ – an unassailable ‘dogma’.” LUKASIEWICZ, J. Aristotles on Law of contradiction. In: BARNES, J. et al. (ed.). Articles on Aristotle 3: Metaphysics. London: Duckworth, 1979, p. 62.

27 “Établir par voie de réfutation, jes dis que c’est là tout autre chose que démontrer.” ARISTOTE. Métaphysique, Ed. Tricot, IV, 4, 1006a, 15-17.

28 “Établir par réfutation (apodeixai elegkikõs)”. ARISTOTE. Métaphysique. Ed. Tricot,. IV, 4, 1006a, 12.

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dialética (dialéktikós). “É uma demonstração quando o silogismo parte de premissas verdadeiras e primeiras, ou ainda de premissas tais que o conhecimento que nós temos tem ele mesmo a sua origem nas premissas primeiras e verdadeiras.”29 Aqui Aristóteles, define dialética como um silogismo que conclui de premissas prováveis. Mas, nas Re-futações Sofísticas ele os define como dedutivos a partir da contradi-tória.30 Ora, esta é exatamente a definição de refutação: “a refutação (elegkhon) é a dedução da contraditória”31 que é a mesma das Refuta-ções: “dedução (elegkhon) com a contradição da conclusão (met’ antipha-seõs tou sumperasmatos)”.32 Na Metafísica, Aristóteles atribui à dialética apenas uma função crítica e não positiva como a filosofia.33 O proble-ma é que as proposições do livro Gama não são passíveis de demons-tração. Isto porque o princípio de não-contradição “é necessário co-nhecê-lo para conhecer não importa o que, é necessário, assim, possuí-lo necessariamente antes de tudo”.34 “É por isto que toda demonstra-ção se refere a este último princípio, pois ele é naturalmente princí-pio.”35 Isto porque ele é um princípio primeiro, o que em Aristóteles significa: “as coisas que tiram sua certeza, não de outras coisas, mas delas mesmas”.36 Acontece que há demanda de prova de tal princípio, por parte do cético , mas, como ele é primeiro, “uma demonstração não pareceria nada mais do que uma petição de princípio”.37 É então que Aristóteles fala em “demonstrar por refutação”. A seguir Aristóteles foge ao convencional das refutações sofísticas, que consistia em fazer o adversário ver o absurdo, ou seja, um valor de verdade contrário à sua tese. Normalmente Aristóteles deveria exigir do cético que ele negasse o princípio de não-contradição, mas não, Aristóteles pede que ele signifique algo para si e para um outro.38 Ora, qual a condição des-sa significação? É a univocidade do que é dito: “não significar uma

29 “C’est une ‘démonstration’ quand le syllogisme part de prémisses vrais et premières ,

ou encore de prémisses telles que la connaissance que nos en avons prend elle-même son origine dans des prémisses premières et vrais.” ARISTOTE, Organon. V. Les Topi-ques. Trad. Tricot, Paris: Vrin, 1939. I, 1, 100a, 25-100b.

30 Cf. Ref. Sof. 165b, 4. 31 “La réfutation (elegkhon) est la déduction de la contraditoire.” A. Apr. II, 20, 66b, 11. 32 “Déduction (elegkhon) avec contradiction de la conclusion (met’ antiphaseõs tou

sumperasmatos).” Ref. Sof. 165a, 2-3. 33 Cf. ARISTOTE. Métaphysique. Ed. Tricot,. IV, 4, 1004b, 25-28. 34 “Il faut nécessairement connaître n’importe quoi, il faut aussi le posséder nécessaire-

ment déjà avant tout.” ARISTOTE. Métaphysique. Ed. Tricot, IV 4, 1005b, 17-9. 35 “C’est pourquoi toute démonstration se ramère à cet ultime principe, car il est naturel-

lement principe.” ARISTOTE. Métaphysique. Ed. Tricot, IV, 4, 1005b, 30-5. 36 “Les choses qui tirent leur cetitude, non pas d’autres choses , mais d’elles-mêmes.”

ARISTOTE, Organon. V. Les Topiques. Trad. Tricot, Paris: Vrin, 1939, I, 1, 100b, 18-20. 37 “Une démonstration ne semblerait être qu’une pétition de principe.” ARISTOTE. Méta-

physique. Ed. Tricot, IV, 4, 1006a, 16-7. 38 Cf. ARISTOTE. Métaphysique. Ed. Tricot, IV, 4, 1006a, 21.

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coisa una é nada significar [...] o nome [...] possui um sentido definido e um sentido único”, ou seja, “uma significação para si mesmo e para um outro”.40 Há, então, qualquer coisa definida (ti horismenon), de uní-voco. Essa é a condição da prova: dizer algo com sentido. A significa-ção das palavras toma em Aristóteles o sentido de definição. “O ponto de partida da discussão, com todos os adversários, deve ser a defini-ção, e a definição repousa sobre a necessidade de dar uma significação a cada termo: a noção, com efeito, exprimida por um nome, é a defini-ção mesma da coisa.”41 É neste sentido que, em se falando, já se tem alguma coisa definida42 e já se admitiu o princípio. Mas como não há prova lógica, a forma de operacionalizar esta análise é pelo ato concre-to de significar algo, onde, em significando, seja lá o que for, já se usou o princípio de não contradição. Num caso extremo, a negação do princípio, se pronunciada significativamente, já fez uso do próprio princípio. Eis a contradição performativa. Se o sofista significar, então há uma demonstração por refutação.43

Platão distinguia dedução dialética e erística (sofística), mas havia uma identidade entre demonstração e refutação (na dialética), de tal forma que a expressão apodeixai elegktikõs seria redundante e não con-traditória.44 Em Aristóteles encontramos três termos distintos apodei-xis, elegkhos e elegkhos aparente; ao que corresponde a filosofia (ciência), a dialética e a sofística.45 O problema, em Aristóteles, é que todo o Livro IV é construído não sobre a demonstração, mas sobre a refuta-ção. Isto porque não pode haver prova, demonstração, de primeiros princípios, somente refutação.

40 “Une signification pour lui-même et pour autrui.” ARISTOTE. Métaphysique. Ed. Tricot,

IV, 4, 1006a, 21-2. 41 “Le point de départ de la discussion, avec tous ces adversaires , ce doit être la définiti-

on, ou repose sur la nécessité de donner une signification à chaque terne: la notion, en effet , exprimée par un nom, est la définition même de la chose.” ARISTOTE. Métaphysi-que. Ed. Tricot, IV, 4, 1012a, 21-4.

42 “La seule lumière que jettent ces lignes sur l’expression ‘demontrer par réfutation’ en accentue l’énigme: l’enjeu n’est absolument pas de quitter le terrain de la réfutation pour gagner celui de la démonstration et le statut de science, mais de mettre en place un dispositif au sein duquel la réfutation sera la même chose que la démonstration. Dispositif que consiste à en rebattre, en quelque sorte, sur l’exigence dialectique norma-le, comme si de se placer en-deçà de cette exigence donnait accès , aussi, à un en-deçà de la frontière entre démonstration et réfutation, science et dialectique. [...] Transgres-sant pour sa part une frontière qu’il a lui-même posée entre les deux formes de raison-nement, Aristote rappelle l’existence de cette frontière au moment même où il la trans-gresse.” (CASSIN, B., NANCY, M. La décision du sens. Le livre Gamma de Métaphysique d’Aristote, introcuction, texte, traduc- tion et commentaire. Paris: Vrin, 1989, p. 100).

43 Cf. ARISTOTE. Métaphysique. Ed. Tricot, IV, 4, 1006a, 24. 44 Cf. CASSIN, B., NANCY, M. La décision du sens. Le livre Gamma de Métaphysique

d’Aristote, introcuction, texte, traduction et commentaire. Paris: Vrin, 1989, p. 98. 45 Cf. CASSIN, B., NANCY, M. La décision du sens. Le livre Gamma de Métaphysique

d’Aristote, introcuction, texte, traduction et commentaire. Paris: Vrin, 1989, p. 99.

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Dentro da própria lógica do raciocínio aristotélico , trata-se da di-

ferença entre argumentos que partem de primeiros princípios e de argumentos em direção a (para) primeiros princípios.46 Esta considera-ção pode aplicar-se à Metafísica, pois ela busca estabelecer os primei-ros princípios enquanto tais, logo não poderia ter uma estrutura silo-gística, demonstrativa, pois não há primeiros princípios anteriores de onde partir. Pode-se inclusive dizer que Aristóteles estava iniciando as várias ciências e, portanto seus primeiros princípios.47

O fato é que Aristóteles acaba identificando filosofia e dialética e, por isso, essas expressões paradoxais. Parece claro que a intenção de Aristóteles é construir uma ciência do ser enquanto ser, não dispondo de outro procedimento a utilizar senão a dialética, pois tratava-se de estabelecer os primeiros princípios dessa ciência. É neste sentido que Aristóteles também é dúbio, pois fala em demonstrar por refutação uma recaída para trás de sua nova terminologia contra a dialética pla-tônica como método de demonstração.

Uma outra consideração a ser feita sobre a análise de Lukasiewicz é a importância que ele dá ao conceito de substância na estrutura da argumentação aristotélica. Tal problemática surge no contexto da dis-cussão do que pode garantir a univocidade do significado, ou como este pode ser estabelecido. Aristóteles parte da constatação de que , sendo as palavras em número finito, mas, sendo as coisas infinitas, a linguagem porta uma equivocidade essencial, pois uma mesma palavra tem que poder significar mais de uma coisa. Esta equivocidade é que é corrigida pela distinção de significações.48 A sofística toma como pa-râmetro essa equivocidade radical da linguagem e explora até à raiz essa peculiaridade essencial da linguagem. Segundo Aubenque, Aris-tóteles introduz um elemento analítico novo para dar conta da refuta-ção da tese sofística da completa equivocidade da linguagem, a saber, a noção de intenção significativa..49 Isso fica claro na passagem seguin-te: “tudo o que alguém diz não é necessário que o pense.”50 Trata-se de uma diferença entre dizer (legein) e sustentar, defender (hupolamba- 46 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco . 1095a, 30-2. 47 Cf. REEVE, C. D. C. Practices of reason. Aristotle’s Nicomachean ethics. Oxford: Claredon

Press, p. 31-2. 48 Cf. Ref. Sof. 18, 176b, 35. 49 Cf. AUBENQUE, P. Le problème de l’être chez Aristote. 5. ed., Paris: PUF, 1983, p. 121s. 50 “Tout ce qu’on dit, il n’est pas nécessaire qu’on le pense.” ARISTOTE. Métaphysique.

Ed. Tricot, IV, 4, 1005b, 24. Cf. Também 1008b, 9, e 1008a, 21. Aubenque observa que nestas últimas passagens a oposição é entre dizer e dizer e não entre o dizer e a inten-ção, mas isso acontece porque, normalmente, não se pode separar as duas coisas. O er-ro da sofística é exatamente crer que eles podem dizer coisas que eles na verdade não poderiam razoavelmente dizer (Cf. AUBENQUE, P. Le problème de l’être chez Aristote. 5. ed., Paris: PUF, 1983. p. 126, n. 4).

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nein). Ora, é precisamente esta intenção que permite uma interpreta-ção pragmática51 da prova aristotélica, pois o sofista, ao usar a lingua-gem tem a intenção de dizer algo, e se esse algo é algo de definido, deve ser algo unívoco , mesmo que seja a proposições de negação da univocidade, mas isto tem que ser unívoco. É por isso que Aristóteles diz que ao usar do discurso eles tombam nas regras do discurso.52 Podemos então dizer que o sofista, ao entrar no discurso, faz uma ação com intenção significativa que entra em contradição com o conte-údo da proposição que afirma, pois sua intenção significativa pressu-põe a univocidade do sentido, explicitado por Aristóteles no princípio de não-contradição.

Porém, essa colocação só resolve aparentemente o problema do ce-ticismo. Ou melhor, ele resolve o problema de um ceticismo bem-comportado, de um ceticismo que envolve convicção, que envolve, na linguagem de Habermas, o querer participar seriamente de uma ar-gumentação. Na verdade Aristóteles considera um ceticismo muito mais extremo e radical. Ele faz uma distinção entre dizer (legein) e sustentar (hupolambanein) o que se diz (1005b 23-6). Isso permitiu a Aristóteles fazer uma distinção entre os adversários do princípio de não-contradição. A saber, entre os que discutem convictos do que falam e os que discutem por discutir. Aos primeiros é possível persu-adir, pois pode-se recorrer ao que pensam, mas aos segundos há que se refutá-los, recorrendo para tal ao que é expresso no som da voz, ou seja, o significado das palavras.53 Neste último caso, o que fala por falar não pode desfazer-se da intenção de dizer algo, de significar algo. É isso precisamente que significa a impossibilidade de falar por falar (na tradução de Tricot, “Ceux qui argumentent por argumenter”54 (logou kharin legein).

Em termos habermasianos, podemos dizer que

“desde que nós refletimos, na atitude performativa de falantes e ouvintes , no emprego de expressões lingüísticas, nós encontramos idealizações , e é sob a forma destas operações inevitáveis e triviais das quais se nutre o agir comunicativo. Nós atribuímos às expressões significações idênticas, conferimos às pretensões de validade um sentido transcendental e su-pomos nos falantes racionalidade e responsabilidade [...]. Elas têm sua origem nas pressuposições pragmáticas.”55

51 “Ce que disent les sophistes est réfuté en fait par ce qu’ils pensent et par ce qu’ils font.”

Aubenque toma como comprovação de sua tese a passagem da Metafísica 1088b, 13s (AUBENQUE, P. Le problème de l’être chez Aristote. 5. ed., Paris: PUF, 1983, p. 129-130. Cf. p. 126).

52 Cf. ARISTOTE. Métaphysique. Ed. Tricot, IV, 4, 1006a, 26. 53 Cf. ARISTOTE. Métaphysique. Ed. Tricot, IV, 4, 1009a, 17-22. 54 ARISTOTE. Métaphysique. Ed. Tricot,. IV, 4, 1009a, 20-21. 55 HABERMAS, J. De l’éthique de la discussion. Paris: Cerf , 1992, p. 145.

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/ Demonstrar por refutação 60

Ou seja, a univocidade das palavras é uma pré-condição de qual-quer56 discurso. A univocidade do sentido, nos termos de Habermas, é uma condição da inteligibilidade das palavras.

Assim, temos um primeiro nível, lógico, onde Aristóteles estabele-ce o princípio de não-contradição, como condição do discurso. Mas há que se tratar também do que se poderia chamar a operacionalização do princípio de não-contradição, ou seja, como nós podemos estabele-cer a univocidade do significado. No primeiro nível é suficiente per-manecer no domínio da condição performativa da linguagem e do discurso, analisando a intenção do discurso e a conditio sine qua non de significação das palavras.

Com relação ao segundo ponto, abrem-se duas perspectivas inter-pretativas. Uma é a definida por Aubenque , segundo o qual só a con-venção é insuficiente para garantir a univocidade do significado, por isso a sua teoria pressupõe uma ontologia, como uma axiomática da comunicação.57 Ora, se é a unidade da coisa, do ser, da essência, que garante a univocidade do sentido,58 a questão que se pode colocar à interpretação de Aubenque é: como explicar a univocidade de pala-vras que não têm um correspondente ontológico , por exemplo, o caso da palavra bode-servo. É a partir dessa consideração que podemos construir uma segunda alternativa interpretativa.59 Para usar termino-logia moderna, há que se fazer uma distinção entre descrever e deno-tar (Russel), sentido e referência (Frege). Com isso temos acesso à natureza significante tout court da linguagem. Que Aristóteles pense assim o comprova seu estudo do significado da palavra bode-servo, que mostra como as palavras podem significar o que não é60, o que não existe. Há que se entrar no domínio da convenção: “é necessário antes admitir que a convenção, protegida é claro por todos os procedimen-

56 Cf. ARISTOTE. Métaphysique. Ed. Tricot, IV, 4, 1011a, 123-124. 57 Cf. AUBENQUE, P. Le problème de l’être chez Aristote. 5. ed., Paris: PUF, 1983. p. 132-

133. Aubenque observa a própria dificuldade dessa posição sob o ponto de vista da própria metodologia a partir da qual Aristóteles constrói sua ontologia. Já que não se pode fazer uma analítica do ser enquanto ser diretamente, há que se fazê-la por uma analítica da linguagem. Tem-se então uma espécie de círculo, porque caímos no domí-nio da convenção de onde se havia saído rumo à ontologia. A solução proposta por Aubenque é que, a partir da noção de axioma, Aristóteles identifica convenção e objeti-vidade.

58 Cf. AUBENQUE, P. Le problème de l’être chez Aristote. 5. ed., Paris: PUF, 1983, p. 127-128.

59 É exatamente essa falta de uma garantia objetiva para o significado, um significado sem referência e sem essência , ou seja, um significado remetido à convenção, que dei-xará sempre, na perspectiva de Cassin, um espaço indeterminado de equivocidade da qual a sofística é o exemplo, bem como a retórica. (Cf. CASSIN, B., NANCY, M. La dé-cision du sens. Le livre Gamma de Métaphysique d’Aristote, introduction, texte, traduction et commentaire. Paris: Vrin, 1989, p. 59-60).

60 Cf. Apo. II, 7, 92b, 4-30.

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tos que servem para dissipar as homonímias, mas sem outra garantia que ela mesma, é suficiente para que uma palavra signifique”.61

Em última análise, presumir a identidade do significado das pala-vras, sendo o mesmo puramente convencional, é uma suposição con-trafática que nós fazemos, não podendo haver garantias objetivas para isso. Não há como fugir para um outro domínio que pudesse garantir a univocidade do significado. A única garantia que se tem é a necessi-dade incontornável de presumir a univocidade do significado como condição da inteligibilidade das palavras, mas não há como garantir, logicamente, a priori, um determinado significado a uma palavra.

O erro de Lukasiewicz, ao criticar a prova b) de Aristóteles é não distinguir estes dois níveis da teoria aristotélica, ou seja, o nível de prova lógica e o nível de operacionalização da univocidade. Além dis-so, ao reduzir a prova lógica à ontológica, Lukasiewicz confunde estes dois níveis que nós distinguimos. De tal forma que podemos conside-rar a distinção entre estabelecimento lógico do princípio de não-contradição, pelo argumento da autocontradição performativa, e a problemática da operacionalização desse princípio. Em ambos os ní-veis não há como sair fora da linguagem, nem para provar os princí-pios últimos da racio-nalidade, nem para operar com a própria lingua-gem.

III

Nosso ponto aqui é tentar demonstrar que já na própria formula-ção inicial do argumento envolvendo proposições que tratam do transcendental, de condições de possibilidade, enfrentamos o mesmo problema que divide Apel e Habermas com relação ao problema da fundamentação. A grande questão, como sublinha Habermas, com relação à racionalidade comunicativa, é que não há uma demonstra-ção, coisa admitida por Aristóteles também. O problema, então, é se podemos ou não transformar uma refutação numa demonstração. In-dependente da própria posição de Aristóteles, podemos dizer que , para Habermas, a refutação não é uma demonstração, por isso a fun-damentação não é última. Já para Apel é uma demonstração e é últi-ma. Nas próprias palavras de Habermas,

61 “Il faut bien plutôt admettre que la convention, protégée bien sûr par toutes les procé-

dures qui servent à dissiper les homonymies , mais sans autre garantie qu’elle-même, suffit pour qu ’un mot signifie.” CASSIN, B., NANCY, M. La décision du sens. Le livre Gamma de Métaphysique d’Aristote, introduction, texte, traduction et commentaire. Paris: Vrin, 1989, p. 38.

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“a filosofia se distingue pela auto-referencialidade de algumas de suas ar-gumentações. Somente, a auto-referencialidade da análise, certamente central, de pressuposições universais da argumentação, que nós não po-demos empreender senão como sujeitos argumentantes , não assegura à empresa filosófica esta autarquia e esta infalibilidade que Apel liga à i-déia de fundação última. Esta segunda reserva se refere ao status e ao sen-tido dos argumentos transcendentais, dos quais eu não posso tratar aqui em detalhes. Eu não quero senão trazer à memória o fato que, até o pre-sente, falta o equivalente a alguma coisa como a dedução transcendental das categorias do entendimento de Kant – e esta alguma coisa não está também em vista. Mas sem um tal equivalente, nós somos remetidos a ar-gumentos transcendentais fracos , no sentido de Strawson.”62

Strawson concebe a filosofia primeira como uma tarefa descritiva do que pode chamar-se transcendental. 63 Trata-se de buscar encontrar um núcleo do pensamento humano que não tem história:

“existem categorias e conceitos que no que, concerne à sua natureza fun-damental, não mudam. [...] trata-se de lugares comuns do pensamento mais refinado. E, entretanto, eles constituem o nó indispensável do equi-pamento conceitual dos seres humanos mais refinados. Uma metafísica descritiva trata principalmente destas categorias e de conceitos , de suas referências recíprocas e das estruturas conceituais resultantes.”64

O que está em questão, portanto, é o nosso esquema conceitual de ver o mundo. E, uma das condições deste esquema, segundo Strawson, é, por exemplo, a identidade dos particulares.65

Strawson não concebe uma prova dedutiva para suas descrições, como a citada acima, mas apenas uma prova refutativa, ou seja, “as dúvidas do ceticismo não são verdadeiras dúvidas [...], porque são dúvidas que equivalem a uma rejeição de todo o sistema conceitual no interior do qual somente tais dúvidas fazem sentido.”66 Então, o ceti-cismo é uma empresa autocontraditória que visa a oferecer um sistema alternativo, mas não o pode fazer sem usar o que é contestado.67 No caso específico de Strawson, podemos dizer que o cético , ao tentar construir um esquema conceitual outro, não pode deixar de incluir neste sistema particulares idênticos. Ou melhor, sua dúvida só faz 62 HABERMAS, J. De l’éthique de la discussion. Paris: Cerf , 1992, p. 172. 63 STRAWSON, P. F. Skepticism and naturalism: some varieties. London: Methuen, 1983, p.

22. 64 STRAWSON, P. F. Les individus: essai de métaphysique descriptive. Paris: Seuil, 1973, p.

10. 65 Cf. STRAWSON, P. F. Les individus: essai de métaphysique descriptive. Paris: Seuil, 1973,

p. 15 e 38. 66 STRAWSON, P. F. Les individus: essai de métaphysique descriptive. Paris: Seuil, 1973, p.

38. 67 STRAWSON, P. F. Les individus: essai de métaphysique descriptive. Paris: Seuil, 1973, p.

278.

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sentido se presumirmos a identidade do significado, do qual ele não pode desfazer-se.

Em suma, se nosso argumento a propósito de Aristóteles for cor-reto, ou seja, se a estratégia argumentativa do livro Gama é insuficien-te para demonstrar o princípio de não-contradição, então, podemos, num primeiro momento, afirmar que Habermas tem razão contra Apel. A fundamentação não tem um caráter último, porque ela não é logica-mente estabelecida, isto é, demonstrada. Ele é provado, sim, mas in-diretamente, negativamente, ou seja, por refutação, mesmo que em cada caso e universalmente. Estritamente e precisamente somente nes-te sentido Apel estaria mais perto da terminologia platônica e Haber-mas da aristotélica:

“em termos aristotélicos, e ainda em toda boa doutrina aristotélica, Ha-bermas não admite que uma refutação possa jamais constituir uma de-monstração. É, então, a cada vez que se recusa admitir os a priori éticos, com cada sofista , que é necessário SE PÔR a demonstrar que ele se contra-diz e trai a intenção de seu discurso, que é de convencer e chegar a um acordo intersubjetivo.”68

Se por um lado Habermas discorda de Apel com relação à funda-mentação última, por outro lado não faz uma mera fenomenologia do mundo vivido como sugere Ferry. Segundo Ferry, há uma diferença entre reconstruir e fundamentar. A segunda perspectiva é devedora da auto-refencialidade da filosofia da consciência.69 Já a primeira pers-pectiva, assumida por Habermas, é mais fenomenológica, reconstruti-va, implicando possibilidade de falsificação.70 Há duas considerações importantes a fazer a partir de nossa análise de Habermas. A primeira é que a auto-refencialidade não é característica da filosofia da consci-ência, mas é característica de proposições em geral e ações comunica-tivas. Pode-se dizer que Aristóteles formulou o problema paradigmá-tico destes enunciados. Poderíamos dizer que a auto-refencialidade é uma característica de enunciados transcendentais, fracos ou fortes. Assim, os enunciados da filosofia da consciência são apenas uma espé- 68 “En termes aristotéliciens , et d’aileurs en toute bonne doctrine aristotélicienne, Haber-

mas n’admet pas qu ’une réfutation puisse jamais constituer une démonstration. C’est donc à chaque fois que quelqu’un refuse d’admettre le ‘a priori’ éthiques , avec chaque sophiste, qu’il faut s’atteler à démontrer que par là même il se concredit et trahit l’intention de son discours , que est de convaincre et de parvenir à un acord intersubjec-tif.” CASSIN, B. ‘Parle si tu es un homme’ ou l’éxclusion transcendantale. In. Les Éthu-des Philosophiques. Avril-juin, 1988, p. 152.

69 FERRY, J.M. Philosophie de la communication: 1. De l’antinomie de la verité à la fondation ultime de la raison. Paris: CERF, 1994, p. 19.

70 Cf. FERRY, J.M. Philosophie de la communication: 1. De l’antinomie de la verité à la fondation ultime de la raison. Paris: CERF, 1994, p. 55 e 63.

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cie de autorefencialidade. Ora, é exatamente a auto-refencialidade que está presente em certos atos comunicativos. A segunda consideração é que, como vimos, o método reconstrutivo, ou descritivo (por exemplo em Strawson), não implica a contigência de um núcleo conceitual mí-nimo, mas apenas a contigência da formulação deste núcleo conven-cional a partir das várias linguagens filosóficas. Mas em todas as re-construções permanece o elemento de auto-refencialidade destas proposições que nos permite ao menos refutar a posição que afirma a contingência des-te núcleo racional. Pode-se citar: a) a argumentação do livro Gama; b) o cogito cartesiano; c) a afirmação de Kant: “que poderia, porém, a-contecer de mais deplorável a estes esforços do que alguém fazer a descoberta inesperada de que não há, nem pode haver de modo al-gum conhecimento ‘a priori’! Só que aqui não existe tal perigo. Seria como se alguém quisesse demonstrar pela razão que nenhuma razão existe”;71 d) a refutação do ceticismo em Strawson; e) o próprio argu-mento transcendental-pragmático. O que Strawson, e com ele Haber-mas, sublinha é a contingência das formulações.

O que está em questão, com relação a este particular, é o próprio método reconstrutivo utilizado por Habermas.72 As reconstruções racio-nais “apreendem sistemas anônimos de regras que podem ser seguidas por qualquer sujeito, desde que este tenha adquirido a com-petência correspondente no uso das regras.”73 Elas referem-se “a um saber pré-teórico de tipo universal, a uma ‘capacidade universal’ [...]; têm como meta a reconstrução de competências da espécie”.74 Têm uma pretensão especialista de descrever e tornar explícitas estruturas profundas de competência.

Ao menos em seu programa de fundamentação da ética, Haber-mas usa os trabalhos de Apel. Quando posto frente a situações-limites Habermas não regride ao ceticismo , mas toma a posição de Apel para defender o ponto de vista da racionalidade comunicativa. Não é pro-

71 KANT, I. Crítica da razão prática . Lisboa: Ed. 70, 1989. A 23. 72 Assim, “Conhecimento e interesse são uma reconstrução de condições do Conhecimen-

to com intenção crítica de abalar a falsa autoconsciência cientificista das ciências.” (HABERMAS, J. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Guanabara , 1987, p. 354). A pragmática universal é um “programa de investigação que tem por objeto reconstruir a base universal de validade da fala.” (HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa: complementos y estudios prévios. Madrid: Cátedra , 1989, p. 302). E mesmo “a filosofia moral se estabelecerá como ciência que reconstrói.” (HABERMAS, J. Conhecimento e inte-resse. Rio de Janeiro: Guanabara , 1987, p. 354).

73 Trata-se da explicitação de “um saber intuitivo, que forma um know-how, que está dado com a competência do uso das regras.” (HABERMAS, J. Teoria y práxis. Madrid: Tecnos, 1987, p. 33).

74 HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa: complementos y estudios prévios. Madrid: Cátedra , 1989, p. 312.

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priamente o ponto de vista de Apel, mas o caráter auto-referencial das proposições desse núcleo mínimo irrecusável da racionalidade. A dis-cordância está com relação ao status que cada autor dá à prova por refutação. Não está em questão, em hipótese alguma, aderir ao falibi-lismo ou ceticismo com relação à racionalidade comunicativa.

O que Habermas observa é que essa fundamentação da racionali-dade contra o ceticismo é quase sempre desnecessária. Isto porque , para Habermas, o ceticismo é uma figura acadêmica que, como diz Kant, serve para ver de quanto a razão é capaz. No mundo vivido, porém, as intuições morais não precisam de uma Crítica da razão pura para fundamentá-las; elas funcionam perfeitamente, elas não precisam do esclarecimento do filósofo75. “Mesmo sem a orientação da crítica da razão, os filhos e as filhas da modernidade aprendem a dissociar e desenvolver a tradição cultural sob cada um desses três aspectos de racionalidade, em questões de verdade, da justiça ou de gosto.”76 Nes-te sentido, Habermas parece concordar com a noção de filosofia de Wittgenstein que afirmava que “a filosofia não deve, de modo algum, tocar no uso efetivo da linguagem; em último caso pode apenas des-crevê-lo. Pois também não pode fundamentá-lo. A filosofia deixa tudo como está.”77 Aqui, mais uma vez, Habermas é dúbio, pois como conci-liar isso com sua intenção crítica? Salvo se não considerarmos a crítica uma atividade filosófica, mas política, ou sociológica, e que não se pronuncia sobre seus fundamentos filosóficos (que , no caso de Ha-bermas, são dados pela teoria da ação comunicativa).

O transcedental, entendido como a busca de condições de possibi-lidade, tem características especiais em Habemas, como pode-se ob-servar a partir da perspectiva de Strawson aceita por Habermas, isto porque “abandona-se o forte apriorismo do projeto kantiano (a dedu-ção transcendental) em favor de um ‘a priori relativizado’, de um a priori que reconhece condições empíricas de contorno , o desenvolvi-mento filogenético e ontogenético das estruturas universais, e a inte-ração estrutural de experiência e ação.”78 Habermas define transcen-dental como segue: “a base de validade do discurso tem, para um ser vivo que se mantenha nas estruturas de uma comunicação fundada na linguagem cotidiana, o caráter vinculante de pressupostos gerais e inevitáveis e, neste sentido, ‘transcendentais’.”79 O adjetivo inevitáveis 75 HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

1989, p. 121. 76 HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

1989, p. 32; cfr. Cf. HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa (II). Madrid: Taurus, 1987, p. 563.

77 WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. Oxford: Blackwell, 1953, § 124. 78 Mac CARTHY, Th. La teoria crítica de Júrgen Habermas. Madrid: Tecnos, 1987, p. 323. 79 HABERMAS, J. Para a reconstrução do materialismo histórico . 2. ed., São Paulo: Brasilien-

se, 1983; p. 157; Cf. HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa: complementos y estu-

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advém exatamente do caráter auto-referencial destas proposições. Está convencido de poder partir das colocações transcendentais de Kant, sem necessidade de compartilhar seu método. De fato ele afir-ma: “tratei de assumir as colocações da filosofia transcendental, ten-tando destranscendentalizar o procedimento e as metas de prova.”80 Mesmo assim, a reconstrução filosófica não é meramente calcada na circunstância. Ela salvaguarda o “momento de incondicionalidade que, com as pretensões de validade suscetíveis de crítica, vem inscrito nas condições mesmas dos processos de formação de um consenso, en-quanto pretensões elas transcendem os limites espaciais e temporais.”81 Em cada caso, universalmente, a mesma estrutura se repete em cada ato comunicativo concreto, “chamo ‘transcenden-tal’ à estrutura con-ceitual que se repete em todas as experiências coerentes, ainda que não fique refutada a afirmação de sua necessidade e universalidade. Nesta versão mais débil, abandona-se a pretensão de que dessa neces-sidade e universalidade possa dar-se uma prova ‘a priori’.”82 Este é o ponto. A fundamentação não é última porque a contradição é perfor-mativa, dá-se em cada caso na ação comunicativa, universalmente, mas não de forma última, ou seja, esse é o caráter próprio da refutação. Ela é performativa. Essa é a versão débil do transcendental. Ela não é uma prova lógico-matemática. Então, por analogia a Kant, a razão não é mais uma ilha firmemente estabelecida, “uma ilha fechada pela natu-reza mesma dentro de limites imensuráveis”.83 “A razão comunicativa não passa certamente de uma casca oscilante – porém, ela não se afoga no mar das contingências, mesmo que o estremecer em alto mar seja o único modo de ela ‘dominar as contingências’.”84

dios prévios. Madrid: Cátedra , 1989, p. 208.

80 HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa: complementos y estudios prévios. Madrid: Cátedra , 1989, p. 423.

81 HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa (II). Madrid: Cátedra , 1989, p. 566. 82 HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa: complementos y estudios prévios. Madrid:

Cátedra , 1989, p. 321. 83 KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1980, B 294. 84 HABERMAS, J. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasi-

leiro, 1990, p. 181.

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Filosofia, Lógica e Existência / 67

EDVINO A. RABUSKE

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

O método da Ética aristotélica

No começo da Ética a Eudemo, Aristóteles cita uma inscrição de Del-fos: “O mais belo é o mais justo; porém o melhor é a saúde. E o mais prazeroso é conseguir o que se ama.” Segundo esta inscrição, deve-se distinguir entre o moralmente bom, o útil e o agradável. Aristóteles aceita a distinção, mas não aceita separar moralidade e bem-estar, razão e interesse, teoria e prática, indivíduo e comunidade. Quer pen-sar o conjunto. Neste contexto cria a expressão: “Uma andorinha só não faz verão nem tampouco um dia.” Não aceita isolar a moralidade.

O problema deste trabalho é este: Qual o método da Ética? Se se quer integrar a moralidade na vida humana, quais são os elementos essenciais da Ética? E, supondo um estudo da obra de Aristóteles, em que sentido a Ética é menos exata do que a Matemática e a Física?

O pano de fundo deste trabalho é a controvérsia: Aristóteles versus Kant e os autores inspirados nele, Apel, Habermas, Rawls... No meu entender, deve-se evitar as simplificações, por exemplo a oposição frontal entre teleologia e deontologia, entre moral formalista e con-teudista, entre princípio da universalização e phronesis, etc. Acusar Aristóteles de naturalismo ou de naturalistic fallacy, como veremos, é um mal-entendido. Deixo clara a minha tese: Se os modernos são su-periores no rigor dos conceitos e princípios, Aristóteles apresenta uma visão global da Ética que pode servir de estrutura de acolhida para as descobertas posteriores. A Ética deve ser aplicável na vida concreta. De que adianta discutir interminavelmente sobre as fórmulas do im-perativo categórico ou sobre a situação ideal de fala, se na prática a teoria é outra?

Antes de discutir o método, é preciso dar umas noções gerais sob o título A Ética como Filosofia Prática. E, antes mesmo, é preciso formu-lar mais claramente a problemática. Nota: Somos nós que queremos interpretar corretamente a Ética aristotélica. Assim, não é de estra-nhar que a nossa leitura empregue termos não-aristotélicos como a priori e a posteriori, níveis do saber, metaética, etc.

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1 – A problemática

Segundo Aristóteles, a Ética é uma Filosofia prática. Pergunta: É possível uma Filosofia prática como Ciência? Para responder, deve-se inicialmente distinguir três níveis teoréticos:

1) O saber moral, que julga o agir humano, fazendo juízos morais. Por exemplo: Dentro de uma semana deves devolver-me o dinheiro que te emprestei.

2) O saber ético , que analisa os juízos morais, procurando a sua es-trutura e seus princípios. Por exemplo: Prometer é assumir uma obrigação.

3) O saber metaético , que analisa a análise dos juízos morais, exa-minando a estrutura e a cientificidade de teorias éticas. Por exemplo: A Ética é uma Ciência esquemática. Como veremos, esquema é o conceito metaético central da Ética aristotélica.

Há duas tensões internas na Ética aristotélica: 1) entre o interesse prático de ajudar os homens e o interesse científico; 2) entre o método que procura conhecimentos permanentes e o objeto pesquisado que muda segundo as situações concretas. Consegue Aristóteles suportar racionalmente esta dupla tensão?

Deve-se evitar interpretações deficientes do método aristotélico. Vou mencionar quatro:

1) O modelo teorético: Separa o saber teorético (Ética) e o saber práti-co (prudência): o primeiro visaria um conhecimento universal; o se-gundo, orientar no particular.

2) O modelo moral: O saber da Ética coincide com o saber moral, com a única diferença no grau de generalidade.

3) O modelo tópico: Distingue em Aristóteles dois métodos, a apodíti-ca e a dialética, estudada nos Tópicos. O conhecimento prático seria exclusivamente dialético ou tópico.

4) O modelo estatístico: As sentenças sobre o agir moral são necessa-riamente limitadas, não na sua certeza, mas na sua validade universal.

Segundo a nossa proposta, cada modelo tem algo de válido, mas nenhum dá plena conta da complexidade do método aristotélico. Infe-lizmente as reflexões metodológicas de Aristóteles são muito resumi-das – ocorrem principalmente nos dois primeiros livros da Ética a Ni-cômaco. Antes de esboçar a resposta de Aristóteles ao problema do método, como dissemos acima, é preciso recordar os traços essenciais do conteú-do da Ética aristotélica.

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2 – A Ética como Filosofia Prática

2.1 – O objeto da Ética: o agir moral

A Ética a Nicômaco inicia assim: Toda atividade busca algo. Nisto a natureza e liberdade não se opõem.

Aquilo a que tudo tende é o bem. O bem é o fim, o telos. A Ética aristotélica é teleológica, sem negar que também é deontológica (deon = obrigatório).

A consecução dos fins do agir moral não está pré-fixada, mas de-terminada pela virtude ética. Tal virtude não é dada pela natureza (physis), mas formada pelo hábito (ethos). Por exemplo, o homem deve aprender a ser corajoso. Específico do homem é que o movimento para o fim é determinado pela razão. Resumindo, o agir moral é expli-cado pelo gênero próximo (tender ao bem) e pela diferença específica (hábito formado sob a orientação da razão).

Na tendência humana há três momentos: 1) o racional; 2) o irra-cional; 3) o não-racional em si, mas que pode obedecer à razão, como os sentimentos, as emoções, que devem ser fixados no bem pela a-prendizagem. A razão está numa distância das inclinações e daí as pode dirigir. A tendência natural está incluída constitutivamente no agir moral. É tarefa da razão dirigir os impulsos. A determinação do agir pela razão é apenas parcial. A tendência tem um fim; a vontade, segundo Kant, põe um fim. Segundo Aristóteles a Ética da tendência e a Ética da vontade são complementares.

Aristóteles, como Platão, parte do conflito psíquico. Quem não tem domínio de si, fracassa no meio de desejos e emoções contraditó-rios. A faculdade apetitiva não é simplesmente irracional, pode obe-decer à razão. Quando obedece , surge o caráter, a disposição, o hábito que se chama virtude ética. Não é dada por natureza, mas desenvol-vida pelo exercício. Daí a grande importância da educação, dos cos-tumes e das leis dominantes. O aprendiz começa imitando o mestre; mas só se torna artista quando se torna independente e desenvolve um estilo próprio. Agir legal é fazer o justo, seguindo critérios exter-nos; agir moral é agir de modo justo, sabendo que o ato é moralmente bom e porque é bom. O agir moral se deve tornar uma segunda nature-za. O virtuoso é autônomo no sentido de que pessoalmente faz um juízo sobre o bem e se responsabiliza por sua decisão e atuação. Se para Kant a razão é autônoma, para Aristóteles o homem deve tornar-se autônomo.

Há duas modalidades na relação entre tendência e fim: ou o fim está fora do tender ou dentro. Daí surgem dois tipos de atividade: a poiesis, o fazer técnico ou artístico , que visa um produto exterior ao

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/ O método da Ética aristotélica 70

fazer (actio transiens), e a práxis, o agir moral e político , que tem o seu sentido em si mesmo (actio immanens). A estrutura do fazer funda um regresso ao infinito. Aristóteles introduz o conceito formal de fim úl-timo: o que é aspirado por ele mesmo e que abarca tudo. Para justifi-car este conceito, Aristóteles recorre a dois fatos: o fato lingüístico de que os homens falam de felicidade e o fato de que há uma Ciência que tem por tarefa coordenar as atividades humanas, para que sirvam à vida boa na comunidade – a Política.

O absurdo do regresso ao infinito é evitado pela práxis, em que a-tividade e fim coincidem. O agir que é procurado sempre por si mes-mo é a eudaimonia, a felicidade. A vida feliz é auto-suficiente; é uma atividade que em si mesma dá satisfação. O homem é um fim em si mesmo e por isto é livre. A felicidade é um agir auto-suficiente e não um princípio heterônomo. Para Aristóteles, a felicidade é um agir e só por concomitância é uma emoção.

Mas só na pólis a vida humana atinge o seu sentido pleno. Como ser livre, moral, o homem procura uma comunidade, determinada pelo direito e pela lei. O agir moral é um tender racional, cujos fins são fixados pelo hábito. Este se forma na comunidade, no processo de louvor e censura. A pólis cria as condições para que o indivíduo seja bom e livre. Isto é expresso pela conhecida sentença: “O homem é, por natureza, um ser político.”

2.2 – O fim da Ética: tornar bom ou melhor

O modelo do agir também vale para a Ética. Com que fim se filo-sofa sobre o agir moral? Aristóteles é moralmente engajado: quer tor-nar bons os homens. A Ética tem uma função pedagógica ou terapêuti-ca. É prática não só na sua temática, mas também na sua finalidade.

Mas há uma dialética entre o engajamento cognitivo e o moral. A-ristóteles não pergunta apenas o que é o bem, mas como o homem se torna bom. Mas entre o saber da exigência moral e sua aceitação práti-ca há um hiato. O agir moral surge pelo saber, mas não só. A energia e o fim surgem da tendência. Entre saber e agir há uma diferença moral.

A Ética serve ao agir , fornece conhecimentos, mas estes ficam a-quém daquilo que o objeto exige. A Filosofia moralmente engajada não consegue cumprir plenamente a sua tarefa. Há uma diferença en-tre a teoria da práxis e a própria práxis. Como o fim se atinge pela ra-zão e pelo hábito, o fim não pode ser atingido pela Ética apenas enquan-to forma uma razão. Esta diferença entre o saber filosófico e o agir prático é a diferença ética fundamental. Esta, como veremos adiante, não designa uma falta de cientificidade, mas aquela Ciência que é adequa-

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Filosofia, Lógica e Existência / 71

da ao objeto ético. A gente deve contentar-se com a idéia de que a Ética tem parte na virtude (Ética a Nicômaco, X, 10).

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2.3 – O ponto de partida da Ética: a moralidade real

O pensar, segundo Aristóteles, começa com o conhecido – o co-nhecido para nós. Este é um saber não-diferenciado, que assumimos numa compreensão vaga. O objeto é captado apenas em geral. É o ponto de partida duma diaírese, que explicita o implícito, que mostra os elementos sinteticamente contidos na coisa. Tal pré-saber é o ponto de partida de toda a Filosofia. Como dizem os hermeneutas atuais: nunca começamos de zero.

O método é diairético e redutivo: é análise. A comprovação é um vaivém: a diaírese pela síntese, a redução pela dedução. O método da investigação filosófica, também da Ética, é a análise. A Ética é uma investigação de princípios e causas, é o desenvolvimento metódico dum saber pressuposto da moralidade. A Ética pressupõe ter-se for-mado em hábitos morais. “Por isso, um jovem não é bom ouvinte de preleções sobre a Ciência política” (Ética a Nicômaco, I, 3). Os jovens não têm suficiente experiência da vida na polis.

A Ética aristotélica começa com aquilo que os homens pensam e dizem da sua vida. “O que é prudência podemos apreender ao obser-var o que denominamos prudente” (Ética a Nicômaco, VI, 5). Mas a Ética aristotélica também é crítica: não critica fatos, mas interpreta-ções. Não diz dogmaticamente: Não deves procurar o prazer. Diz criticamente: Se a vida deve ter um sentido, então a vida do mero pra-zer fica excluída. Explicita a racionalidade imanente da realidade hu-mana – é hermenêutica.

2.4 – O círculo da Filosofia prática

A vida moral na pólis é o objeto, o ponto de partida e o fim da Éti-ca. Esta parte de experiências morais, analisa-as e reconduz à vida moral. O primeiro e o último conhecido é o mesmo: o agir moral. Mas dum saber ainda não articulado destaca os elementos e os princípios. O que inicialmente é vago se torna transparente pela análise. Há um progresso formal, não conteudista.

O moralista é sujeito e objeto, espectador e ator. A Ética é uma re-flexão do moralista no duplo sentido do genitivo. Visada é a auto-consciência moral. Mas não funda uma autoconsciência absoluta – co-mo absoluto vale apenas o pensamento do pensamento (noesis noeseos). A Ética aristotélica não investiga o saber moral, mas o agir. A própria teoria é um agir – atividade livre e auto-suficiente. O fim último da Ética não é a autocerteza moral, mas o agir moral. Recordando a dife-rença ética fundamental, deve-se dizer: O círculo não está na Ética, mas a Ética está num círculo, entre um agir moral pressuposto e um

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agir moral intencionado. Fazer Ética não é agir como pensador (Filo-sofia teorética), mas pensar como agente.

O ser moral deve ser pensado dinamicamente. O ser moral não educam os filósofos, mas os pais, a escola e a própria pólis. A Ética visa um nível superior. Não pretende tornar os homens bons, mas melho-res.

2.5 – A Filosofia prática como incremento do agir moral

O livro VI da Ética a Nicômaco trata das virtudes intelectuais ou di-anoéticas. A principal é a prudência: a capacidade de descobrir o que concretamente é bom. É para o agir o que o ver é para o caminhar. Mas a prudência é superada pela análise filosófica, pela Ética, que não mostra ao agente como deve comportar-se aqui e agora, mas revela o que o agente é como agente, torna-o autoconsciente e feliz.

A reflexão ética exerce uma função crítica, um controle científico, não só sobre o agir fáctico , mas também sobre os seus princípios. Liberta de preconceitos e ideologias. Revela não só o que o homem é, mas o que pode e deve ser. Quem reflete, quebra a evidência da mo-ralidade primária e a substitui por uma crítica responsável. A morali-dade se torna autopossessão livre no sentido duma mudança de cons-ciência. Então, o agente não age por coação, mas por compreensão. Como a razão é o essencial no homem, o aperfeiçoamento reflexivo do saber é um dever. O engajamento filosófico e o moral são conciliados, e o conceito de Filosofia prática é justificado.

3 – A Filosofia prática como Ciência esquemática

3.1 – O problema

A Ética segue o método analítico. Mas, ligada ao engajamento mo-ral, a análise prática tem outras condições que a teorética e segue outro método.

“Fala-se adequadamente, quando se consegue a clareza corres-pondente à matéria subjacente” (Ética a Nicômaco, I, 3). Aristóteles, ao falar do conhecimento, emprega o esquema matéria e forma. Parte da unidade original: a uma matéria corresponde necessariamente a forma correspondente. O conceito de Ciência é uma relação, em que os dois momentos se exigem reciprocamente. O saber já sempre é saber de algo; o sabido já sempre é objeto dum saber. Saber é a unidade duma

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diferença, portanto, um processo dialético, um diálogo entre o pesqui-sador e a natureza da coisa.

Claro, é o conhecimento que divide um saber, inicialmente indife-renciado em seus elementos, em suas causas e em seus princípios. A Ética a Nicômaco acrescenta que a clareza deve ser “adequada ao assun-to” estudado: “pois não se deve exigir a precisão em todos os raciocí-nios por igual, assim como não se deve buscá-la nos produtos de to-das as artes mecânicas” (Ética a Nicômaco, I, 3). A exatidão é um con-ceito análogo. No artesanato, trabalhar com exatidão um material é esgotar as suas possibilidades, que são diferentes na argila, na madei-ra, no mármore, no ouro...

Segundo Aristóteles, a análise é o método de toda a Filosofia. A clareza adequada ao assunto é o princípio, segundo o qual o método deve ser aplicado no domínio da práxis. Também o conceito de Ciência é análogo.

O belo e o justo não têm constância e validade universal. Isto é uma descoberta dos gregos, já dos trágicos e dos sofistas. Mas, se-gundo Aristóteles, não há uma antítese total entre thesis e physis, entre por lei humana e por natureza. O conceito de direito, além do momento a posteriori da validade fáctica, inclui o momento a priori da incondi-cionalidade. Eliminar da teoria moral o conceito a partir da natureza é negar o momento crítico da incondicionalidade e cair no relativismo.

Como aplicar a clareza analítica aos assuntos morais? “Quando fa-lamos de tais objetos e sob tais pressupostos, devemos contentar-nos em mostrar a verdade de modo grosseiro e em esquema” (Ética a Ni-cômaco, I, 3). Traduzo por esquema o termo aristotélico tipo: só apresen-ta os traços básicos do objeto.

Aplicação à Ética: o agir moral não pode ser conhecido na sua rea-lidade concreta. A Ética certamente visa um conhecimento controlável, universal e necessário, mas não abrange totalmente a coisa. Esta é uma descoberta original de Aristóteles. Explicando: qualquer conceito da Fi-losofia e das Ciências abstrai do particular, do acidental, do vivido. Dizia Einstein: não é tarefa da Ciência dar o gosto da sopa. Mas os conceitos da Ética também não alcançam elementos essenciais do seu objeto, tão essenciais que decidem a moralidade ou imoralidade.

Aristóteles distingue três espécies de sentenças: 1) as necessárias; 2) as válidas às mais das vezes; 3) as casualmente válidas. Exemplo de 2): o mel é saudável ao doente de febre. Isto não ocorre necessaria-mente, pois às vezes estão misturadas outras substâncias... depende da doença de que a febre é sintoma. As sentenças válidas às mais das vezes não tratam dos princípios da natureza, mas descrevem fatos concretos, principalmente da área humana. A explicação probabilística não elucida juízos éticos, mas morais e estes somente enquanto empí-rico-práticos. Quem tira conclusões de sentenças válidas às mais das

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Filosofia, Lógica e Existência / 75

vezes não é o ético , mas o agente. A pesquisa do ético é esquemática, o saber do agente é probabilístico. Aqui a distinção entre saber ético e saber moral é decisiva.

Aristóteles concorda com os relativistas que as formas de compor-tamento moral mudam. Mas, enquanto os adversários negam qualquer obrigação moral e somente admitem uma Ciência dos costumes, Aristóteles afirma que também no campo do agir moral se pode chegar a uma verdade. Na crítica duma forma de consciência procura uma nova forma de consciência.

Com o conceito metaético de esquema, Aristóteles reflete o que a Ética pode saber: faz uma crítica das suas possibilidades e dos seus limites científicos a partir do princípio da clareza adequada ao assunto e a partir da natureza do objeto ético.

3.2 – A singularidade do agir moral

Aristóteles rejeita a consciência ingênua que se prende a costumes. Mas também rejeita a consciência pretensamente esclarecida, que re-duz o agir moral a meras convenções sociais. Aristóteles esclarece o agir moral com o modelo básico do tender racional. O agir moral é o tender ao bem, que se torna consciente na livre comunicação, cujos fins são consolidados pelo hábito e cujos meios são determinados pela razão. Mas impõe-se atentar à situação concreta. A escolha (prohaiseris) prioriza uma das possibilidades, e o indivíduo pode ser responsabili-zado pela escolha, porque é livre. Agir livremente é, com impulso próprio, por uma causa, cuja conexão com seu efeito é sabida. A pon-deração deve descobrir a decisão correta. Os gregos lembravam o conselho dos mais velhos na epopéia e o da comissão que presidia as assembléias populares.

Aristóteles analisa a ponderação não psicologicamente, mas logi-camente. Ponderamos coisas que 1) estão no nosso poder; 2) são reali-záveis concretamente; 3) não ocorrem sempre do mesmo modo. O agir é uma relação entre a situação (o fato) e o dever. O fim do agir está posto no tender, os meios é que são escolhidos pela razão, depois da ponderação. Mas a ponderação somente chega a resultados plausíveis. A decisão é o fim da ponderação e o começo da realização.

Segundo Aristóteles, o homem sempre está fundamentalmente de-cidido para o bem. Resta-lhe a tarefa de ver corretamente o bem nas situações concretas e buscá-lo realmente. Aristóteles pensa a obrigação com a idéia de meio para nós, que depende das necessidades, da consti-tuição biopsíquica do indivíduo, das condições externas. Por exemplo, a coragem é aquele ponto entre a covardia e a temeridade, em que o fim correto é visualizado. O autor faz uma comparação com o médico:

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/ O método da Ética aristotélica 76

deve dosar adequadamente o remédio, conforme o estado concreto do pa-ciente. Meio termo para nós é uma fórmula propositadamente vazia, que deve ser preenchida por uma aplicação cada vez diferente. Não se pode dar a um bebê a dose dum remédio que seria adequada a um atleta dos jogos olímpicos. A virtude está entre dois vícios que , cada um, exageram uma emoção. De modo algum Aristóteles fomenta a mediocridade (por exemplo: não ser corajoso demais nem de menos). O meio para nós visa um incondicional condicionado.

Os dois momentos da decisão, a ponderação e escolha dos meios e a descoberta dos fins sempre dados, são grandezas relacionais. Se-gundo as circunstâncias mutáveis, o agente mesmo deve fixar e de modo cada vez novo aquele que age, que domina otimamente a situa-ção. O agir moral está num contexto, sem ser dedutível deste contex-to.

3.3 – A relativa constância do agir moral

Este breve item pretende alertar contra a afirmação simplista de que Aristóteles, no fundo, defende uma Ética da situação. A Ética a Nicômaco é um tratado político. Boa é a conduta que se confirma na convivência e gera o reconhecimento dos outros. O agir moral tem uma dupla origem: a decisão própria e a convivência dos livres, na amizade (philia) e na justiça (dikaiosyne).

A justiça tem uma significação específica, sendo uma virtude ao lado de outras, e uma significação geral, sendo o conjunto das virtu-des no seu aspecto social. Justiça social é agir por responsabilidade social. Aristóteles freqüentemente usa as categorias do louvor e da repreensão. Bom é o comportamento que a gente louva, virtude é a atitude digna de louvor. O juízo moral é proferido pela comunidade. Na forma de expectativa entra nas ponderações do agente. Com isto abrimos todo o leque dos problemas éticos, que na época moderna vão suscitar discussões intermináveis. (Para recordar, estudem-se as respostas à pergunta O que é bom? em Rousseau, Kant, Hegel e em autores contemporâneos.)

3.4 – Analogia e dialética na Filosofia prática

Aristóteles determina a lógica da Ética não a partir duma idéia abstrata de Ciência, mas a partir do seu assunto, do agir moral. Este é uma unidade composta duma exigência e dum acontecer fáctico; dum incondicional e dum condicionado. Como resolver a tensão entre a multiplicidade do agir bom e a unidade do conceito de bem?

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A Ética aristotélica quer dar ao agente uma orientação para tor-nar-se moralmente adulto. Isto requer um método que una cientifici-dade e desejo de orientar e emancipar. Pergunta: Como determinar o agir bom sem pré-julgá-lo? Em que consiste uma determinação inde-terminada?

Aristóteles responde com a analogia, como instrumento lógico para pensar a unidade do bem na multiplicidade dos bens.

A relação na direção de um (pros hen) funda a analogia da atribuição (o termo é posterior, medieval). Na base da relação com um objeto, que possui primariamente um atributo, o mesmo atributo pode ser trans-ferido a outros objetos. Por exemplo, primariamente saudável é o or-ganismo vivo; secundária, analogamente, também a medicina, um modo de vida, uma cor do rosto... são saudáveis. Aplicando: o bem pode ser praticado em diversas categorias: da substância (Deus , espí-rito), qualidade (virtude), etc.

Aristóteles dá maior importância à analogia da proporcionalidade. E-xemplo: “O que no corpo é a capacidade de ver, isto na alma é o espí-rito” (Ética a Nicômaco, I, 6). Esta analogia implica três momentos: 1) Dá um conhecimento sobre relações, sem determinar o material (os relata); 2) não visa as relações como tais, mas a relação entre as rela-ções; 3) esta relação entre as relações é inteiramente determinada. Aplicando: o que concretamente é bom, não é fixado; nem se encobre o apelo cada vez outro da situação. A analogia é o meio lógico duma determinação indeterminada. O bem é uma relação, melhor, uma or-dem. A analogia fundamenta a Ética como Ciência. É o princípio me-todológico da clareza adequada ao assunto.

Um exemplo é o conceito de meio para nós. É um conceito dialético. Pensa o agir na sua relacionalidade. Não designa a forma concreta do agir moral, mas a forma das formas morais, a moralidade. Na indeter-minação dos elementos relacionados, aquela categoria revela uma exi-gência concreta, cada vez diferente, sem dissolver relativisticamente o agir. A dialética compreende a relação entre ser e dever; articula a microestrutura do agir moral. A analogia compreende a identidade das relações e articula a macroestrutura do agir moral.

3.5 – O conceito de Ciência esquemática

Como se relacionam os métodos analógico e dialético com o fim da Ética, que é emancipar o homem como ser moral mediante a análise científica? A palavra-chave da metodologia da Ética aristotélica é es-quema (tipo). O livro V da Ética a Nicômaco trata da justiça. Inicia di-zendo que a representação corrente “também para nós é colocada na base como algo primeiro, de modo esquemático”. O saber esquemático

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não pertence ao método dedutivo. Também não é provisório no sen-tido de que deve ser substituído por um melhor. Tem a função dum pressuposto. A sua inexatidão consiste na falta duma análise detalhada.

No livro I da Ética a Nicômaco se diz: “Isto pode valer como es-quema do bem procurado, pois, primeiro se deve traçar as linhas bási-cas e depois executar o quadro” (Ética a Nicômaco, I, 7). É um avançar imanente, não por descoberta dum novo material. Algo conhecido se torna mais conhecido. No início da Física, Aristóteles diz que a inves-tigação progride do que por natureza é mais não-claro, mas para nós é mais claro, para aquilo que por natureza é mais claro, mas para nós é mais não-claro. O que na Física é considerado pré-científico, na Ética a Nicômaco é considerado positivamente como fase inicial do saber cientí-fico.

O fim do saber esquemático é o oposto ao fim da abstração. Não se afasta do particular, mas se dirige ao particular, sem o atingir. É um conhecimento não-saciado. A Ética se interessa menos pelos membros em si do que por sua relação. O espaço aberto não é preenchido con-ceitual-mente, mas pelo agir. Senão surge a estratégia ou a tática, que são técnicas. A Ética aristotélica confia no agente!

A idéia de Ciência esquemática não está ligada a um determinado ethos histórico; está além da oposição entre Ética da tendência e Ética da vontade. Não cabe nas divisões tradicionais: Ética formal ou mate-rial, transcendental ou hermenêutica. Vale para toda Filosofia que pen-sa o bem em relação ao agir histórico.

A Filosofia prática deve dar conta, simultaneamente, da irredutibi-lidade do histórico e das exigências do dever. A dificuldade metódica está em pensar um dever condicionado. Resumindo, os passos são os seguintes:

1) A Ética, enquanto não quer ser vazia ou puramente formal, re-quer uma base indutiva – elevar as experiências morais-políticas a um pré-conceito;

2) redução transcendental: explicitar, no dever histórico , um mo-mento de incondicionalidade;

3) a diaírese desmembra o preconceito em seus elementos e prin-cípios;

4) a dialética e a analogia articulam logicamente os elementos e princípios;

5) a Ciência esquemática determina a clareza adequada ao assunto.

4 – Considerações finais

a) Pode-se criticar Aristóteles por apresentar uma Ética conservadora, que supõe uma polis unida em torno dos valores básicos, que aceita tranqüilamente como naturais a escravatura, a

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aceita tranqüilamente como naturais a escravatura, a inferioridade da mulher... Nas grandes mudanças históricas também há mudança de fins, por exemplo, em vez da vingança, o amor aos inimigos; em vez da escravatura, a igualdade perante a lei. Mas pode-se responder a esta crítica dizendo que as deficiências de conteúdo não atingem o método. Pelo contrário, é o método aristotélico que pode dar conta da historicidade das normas concretas, pelo menos melhor do que o for-malismo e o princípio da universalização.

b) Uma outra crítica se refere ao conceito de felicidade. Os crité-rios da felicidade são: ser a atividade mais perfeita, ter continuidade, dar satisfação e ser independente das circunstâncias exteriores, mutá-veis. O que melhor satisfaz estes critérios é a vida teórica, a sabedoria, a contemplação, portanto, as virtudes dianoéticas. Permitem ao ho-mem conhecer que ele não é o ser melhor do cosmos. A felicidade não é possível sem relação ao divino. Mas há uma felicidade de segunda ordem: a vida prática segundo a phronesis e as virtudes éticas. As vir-tudes éticas são especificamente humanas. Aqui a felicidade é a uni-dade da pessoa e sua integração na comunidade. É na comunidade, mantida pela justiça e pela amizade, que o indivíduo chega à plena consciência de si e sua vida ganha estabilidade e intensidade.

Mas a distinção entre as virtudes dianoéticas e as éticas supõe um dualismo antropológico: o espírito, o nous, é imortal; não é, como o resto da alma, forma do corpo e mortal. Talvez não se deva exagerar este dualismo que aparece em raros textos do autor. Mas atrás disto está um problema ontológico e mesmo teológico: a relação entre o mundo (substância sensível e móvel) e Deus (substância supra-sensível e eter-na). Do ponto de vista lógico , é o problema da analogia não-satisfato-riamente resolvido por Aristóteles. Talvez o método da Ética aristoté-lica seja um bom ponto de partida para repensar a sua Metafísica.

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ERNILDO STEIN

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Anamorfose e interpretação

I

Para quem se aproxima, hoje, dos temas que tratam da interpreta-ção, do valor da interpretação, da hermenêutica, do não-hermenêutico, a extensão das análises é inibidora pela sua amplitude e pela dificuldade em estabelecer critérios de delimitação para o exame específico.

Todo o campo da hermenêutica tradicional, com suas rotinas fun-cionando na filosofia hermenêutica, hermenêutica filosófica e herme-nêutica técnica e sua habilidade no tratamento dos textos, vem acres-cido pelas discussões filosóficas sobre o interpretacionismo.

Acrescente-se a tudo isso ainda a ligação entre interpretação e filoso-fia, textos filosóficos e história da filosofia e teremos mais questões de pri-meira importância. Depois de ocupar-me com questões da tradição hermenêutica, dediquei parte de minha pesquisa às teorias do inter-pretacionismo contemporâneo. Nelas pude observar duas linhas que vão desde posições fracas até doutrinas exacerbadas. E elas, por sua vez, podem ser divididas em teorias de caráter material, ontológico e teorias de caráter formal, metódico.

De um lado, temos as teorias dos mundos de interpretação e de outro lado, temos as teorias dos constructos da interpretação. Daquele lado, tudo que é, somente é pela interpretação, e, deste lado, o acesso ao que é, somente é conhecido pela interpretação. Ambas as teorias estão de acordo de que tudo é interpretação, mas para as primeiras ela consti-tui o mundo e para as últimas com ela chegamos ao mundo constituí-do.

Sem aprofundarmos o exame dessa questão, desloquemos o pro-blema para a relação entre interpretação e textos da filosofia e autores ou história da filosofia. De um lado, apresentar-se-ão aqueles para os quais a arte da interpretação dos textos da filosofia consiste numa atitude que empreende a produção de uma transparência do texto e

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/ Anamorfose e interpretação 80

pretende alcançar uma positiva univocidade. De outro lado, a inter-pretação é apresentada como uma tarefa de Sísifo: a interpretação dos textos de filosofia toma as formas e as perspectivas de seu tempo. A posição que assume como intérprete já é produto do próprio texto com que se defronta: há uma circularidade hermenêutica, mais ou me-nos forte, mas circularidade. Com os que crêem na transparência do texto, podemos ter discussões metodológicas, mas sob a condição de que aceitemos a possibilidade dessa transparência. O texto é tratado com a fé numa espécie de possibilidade sincrônica.

Com os que admitem uma circularidade hermenêutica como limite na interpretação de um texto da Filosofia – esta é uma tarefa infinita de elucidação – a discussão será sempre mais do que uma simples questão de método.

Para que esta circularidade não seja paralisante, o intérprete deve estabelecer critérios para afirmar, de um lado, os limites da interpre-tação e, de outro lado, a justificação de sua posição de intérprete. A-quele que aceita a circularidade pode fundamentar os critérios que usa para afirmar os limites da sua interpretação do texto filosófico , ou a partir da especificidade do texto ou da relação que o intérprete esta-belece com o texto. Mas pode-se dar o caso de o intérprete desenvol-ver os seus critérios ou a sua posição, a partir da própria interpretação do texto ou dos textos da história da filosofia, e fazer de sua posição uma teoria sobre a totalidade da nossa relação com o texto e com o mundo. O intérprete, portanto, não assume a teoria ou posição do autor do texto que ele interpreta, mas desenvolve uma teoria sobre o mundo e sobre a interpretação a partir de sua interpretação de um texto ou de diversos textos da história da filosofia.

Dessa maneira, o leitor consolida sua posição como intérprete e apresenta uma teoria diferente da do autor a partir de seu modo de interpretar o texto. Temos então, um texto (o do intérprete) produzi-do na leitura de outro texto (o do interpretado). O novo texto que evoluiu da interpretação do primeiro texto, passa a ter autonomia e não apresenta a perspectiva do texto interpretado (no caso ele se es-gotaria como interpretação), mas vem com uma perspectiva própria (no caso nasce um novo texto passível de ser interpretado). Temos, então, uma perspectiva sobre uma perspectiva. E quem nos garante de que dessa perspectiva não possa nascer uma terceira perspectiva? Um filósofo nasce lendo Filosofia e não necessita mais da realidade (de problemas) para a sua Filosofia. Temos assim uma visão da história da Filosofia? Um aristotélico, um tomista, um hegeliano, um heideggeria-no, que mais seriam eles do que intérpretes que foram – pela interpre-tação – além dos textos e tomaram autonomia (com que critérios, com que legitimidade?) diante dos textos que leram.

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Mas não exageremos. Nem todo leitor de Espinosa e Kant se torna um Hegel, nem todo leitor de Aristóteles e de Kant se torna um Heideg-ger. Mas para nós mortais comuns o problema fica: o que fizeram Hegel e Heidegger para se tornarem o que são na história da Filosofia?

Não quero resolver esse problema. Mas na interpretação que lê o texto entre as linhas, que adivinha o não-escrito, que mostra o que estava oculto, há algo mais do que interpretação, isto é, apresentação do conteúdo do texto do autor que se leu. Temos, no caso, uma teoria que o intérprete produz em seu retorno a Aristóteles, Kant, etc. O que vale esta teoria, esta posição, esta perspectiva a partir da perspectiva?

II

É no desenvolvimento desse raciocínio, no exame dessa questão, que me ficou do estudo do interpretacionismo uma curiosidade sobre a relação entre anamorfose e interpretação. Situemos a questão desde o início. Há interpretações que são anamorfoses. Há relações com textos que representam uma determinada estratégia de leitura. Há intérpre-tes que manejam a arte da interpretação, como os pintores lidavam com a obra de arte a partir dos séculos XVI e XVII, e cuja inovação passou para os literatos e os filósofos da época. Kircher a denominou “prospettiva segreta e magia anamorphotica”.

A anamorfose surge na confrontação entre maneirismo e classicismo. Ela se torna um instrumento do gênio e da arte quando o mundo dei-xa de ser harmônico, figurado, e quando é percebido como labirinto. O mundo deixa de ser concreto, real, e se torna abstrato, metafórico. Ser e parecer passam a ser coisas bem-diferentes. Por que então, não pare-cer do parecer? E assim ao infinito, perspectiva de perspectiva, de... Assim a concepção clássica de que as coisas aparecem como são, cede lugar ao que Descartes já denominava “uma filosofia da realidade mu-tável”.

“A anamorfose é, antes de mais nada, uma reação ‘construtivista’ que, com as suas ‘deformações paradoxais’, pretende introduzir re-gras de deformação e impedir o caos que ameaça quando se admite que ser não é como parece, mas que pode haver um parecer do pare-cer, do parecer, do...”

Anamorfose é a representação, geralmente deformada se a olhar-mos através de um aparelho cônico ou cilíndrico ou se a contemplar-mos sob um prisma diferente. Baltrusaitis escreve: “A anamorfose causa a transformação de elementos e de princípios. Ao invés de re-duzir as formas dentro de seus limites visíveis, trata-se de uma proje-

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/ Anamorfose e interpretação 82

ção de formas para além delas mesmas, de maneira que elas se dila-tam, quando vistas sob um determinado ângulo.”

Numa época em que se começava a duvidar da realidade (Descar-tes) a figura anamorfótica podia significar o aparecimento de outra essência ou a forma aparente da aparência, conforme o ângulo do qual se olhava. O aparente pode ser visto em sua aparência ou em seu ser. Qualquer “fenômeno” pode ser visto sob dois pontos de vista (vide Heidegger).

Daniele Barbaro (1559) denomina a técnica da anamorfose de pros-pettiva segreta, pela qual nos deparamos com o “velado”, o “mistério”, o “inteligível” e o “sem fundamento”. A anamorfose teve seu auge no maneirismo, mas reaparece nas teorias da fragmentação, no surrealis-mo, no cubismo, nos construtivismos, nos interpretacionismos. Mas, para compreendermos o sentido do vínculo que estabelecemos entre anamorfose e interpretação, convém que acentuemos seu caráter pa-radoxal. O maneirismo se opõe ao classicismo de um mundo ontologicamente em ordem. O ser humano (artista, pintor, poeta) passa a ter na mão a maneira de aparecer e ninguém mais sabe o que é o não ser, o iniciado que brinca com a seriedade do que é, com novas formas, formas de formas, de... Para isso a anamorfose inverte, distorce , engana, mas não dá a chave para quem quiser entender. Assim ela pressupõe o clássico, o texto, a obra.

Anamorfose e interpretação se aproximam por esse lado. O intér-prete de Freud pode inverter Freud e dizer que o interpreta. Interpre-ta Freud , mas faz da inversão uma nova teoria. É legítimo tal proce-dimento? O leitor anamorfótico de um texto sempre dependerá da interpretação do texto, mas pode ele fazer da interpretação e da in-versão uma teoria?

III

No estudo da relação entre anamorfose e interpretação posso condu-zir-me no exemplo de Heidegger, em sua arte de interpretar os clássicos da história da Filosofia e voltar-me, em determinados momentos, a Lacan como leitor anamorfótico de Freud. Heidegger deve, certamen-te, muito ao paradigma clássico da hermenêutica, mas ele desenvol-veu, ao mesmo tempo, uma teoria da compreensão que ultrapassou os limites da hermenêutica do século passado. Há um duplo aspecto na obra do filósofo: antes de o compreender e o interpretar tomarem forma em Ser e tempo, ele já fala de uma “situação hermenêutica” do projeto de interpretação em que pretende uma nova leitura de Aristóteles. Há, portanto, já em 1922, uma consciência nítida na obra do filósofo, em que ele toma uma posição diante da interpretação dos textos clás-

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sicos da Filosofia. O compreender como existencial já terá acompa-nhado essa antecipação, mas toma forma definitiva em Ser e tempo e material postumamente publicado de suas preleções e seminários.

Portanto, a introdução de terminologia binária (velamento-desvelamento, etc.), do projeto de destruição e inversão da obra dos clássicos como Descartes, Kant, e Aristóteles e da visão global da his-tória da Filosofia como encobrimento do ser, já fora conquista da in-terpretação dos textos clássicos. A obra agora publicada, em grande parte, apresenta um enorme painel hermenêutico, resultado de uma interpretação de clássicos da Filosofia. Mas ela não apresenta um tra-balho fragmentário, por duas razões: de um lado, o filósofo tem uma nítida idéia do que estava fazendo no todo e, de outro lado, só podia ter essa consciên-cia porque pela própria interpretação se fora urdindo uma determinada concepção da história da Filosofia, isto é, de que nela acontecera o esquecimento, isto é, a entificação do ser.

Que há uma imensa circularidade é inegável na tese: a idéia do ve-lamento do ser, como evento fundamental dessa história, nasceu da interpretação; mas essa interpretação somente podia ser conduzida por essa idéia do velamento do ser.

No entanto, apesar disso podemos nos perguntar se essa atitude anamorfótica do intérprete, Heidegger, diante dos clássicos não se converteu de hipótese em tese por uma espécie de teoria nascida da in-terpretação, teoria que se converteu no dogma que vivemos na Era do esquecimento do ser e na sua própria história.

A hipótese que conduz à interpretação, se quiser respeitar a circu-laridade, não poderia ter-se convertido em tese mediante a interpre-tação. Ou dá Heidegger razões teóricas anteriores não nascidas da interpretação?

O ser que se encobre na aparência é mostrado em outra aparência (perspectiva). Mas possui Heidegger a chave para nos iniciar a ver esta perspectiva que ele apresenta? De onde lhe vem esta chave?

O filósofo nos servirá de matéria e guia para o exame dos vínculos entre anamorfose e interpretação. Há um sutil idealismo , talvez mais nominalismo, na teoria do ser e do esquecimento do ser de Heideg-ger. Há uma busca de fundamento no sem fundamento.

Tudo isso nos remete para a questão da anamorfose – ela é, mais do que tudo, uma estratégia para nos dar uma razão na crise do princípio da razão (suficiente).

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/ Riforma del metodo e fini morali in Cartesio 84

GREGORIO PIAIA

Università di Padova

Riforma del metodo e fini morali in Cartesio

“Comme sappiamo, Signori, il giorno, l’anno in cui la filosofia greca è stata messa al mondo [il riferimento è alla nascita di Socrate], cosi sap-piamo, con la stessa certezza e con maggiori dettagli ancora, il giorno e l’anno in cui la filosofia moderna è nata. [...] E’ dunque dal 1637 che data la filosofia moderna! E qual è, Signori, il titolo di quest’opera eminentemente storica? Il metodo. Vi ho detto che Socrate non aveva affatto avuto un sistema; vi diró che importa assai poco che Cartesio ne abbia avuto uno. Il pensiero di Cartesio che appartiene alla storia è quello del suo metodo. Socrate era la riflessione libera; Cartesio è la riflessione libera innalzata all’altezza di un metodo, anzi il metodo nel-la sua forma più severa.”1

É con questo tono enfatico che Victor Cousin, nella seconda lezio-ne del suo corso di storia della filosofia alla Sorbona (24 aprile 1828), consacrava um ritratto di Cartesio ch’era già stato abbozzato nella cultura settecentesca e che si sarebbe fissato in profundità nell’imaginario filosofico dell’Otto-Novecento, pur nella varietà delle interpretazioni. Domina in questo ritratto, accanto al topos che vede in Cartesio l’iniziatore della filosofia moderna, il tema della centralità del metodo, colto ed esaltato nella sua struttura formale, anzi nel suo valo-re simbolico e nella sua portata futura, più che nei contenuti che ne costituirono lo sbocco materiale. La qual cosa – vale la pena ricordarlo – andava contro gl’intendimenti dello stesso Cartesio, per il quale il breve Discours de la méthode pour bien conduire sa raison et chercher la vérité dans les sciences doveva servire da introduzione alle successive, ampie (e per lui ben più importanti) trattazioni sulla diottrica, sulle meteore e sulla geometria analitica, che nell’edizione di Leida, apparsa anonima 18 giugno 1637, occupano oltre 500 pagine in-4º.

In realtà il Discours ci appare una sorta di vetrina in cui l’autore espone, in una cornice autobiografica, um variegato campionario dei

1 V. COUSIN, Cours de philosophie. Introduction à l’histoire de la philosophie, texte revu

par P. Vermeren, Paris 1991, p. 59-60.

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filosofici prodotti legati all’applicazione del suo metodo, dal progetto di una radicale riforma del sapere alle prove della dimostrazione di Dio, dalla tesi sulla circolazione del sangue alla teoria dell’automatismo animale. Un campionario che non mira soltanto a vendere, ma anche a saggiare (nella Parte quinta) le reazioni delle autori-tá politico-religiose in vista della stampa dell’impegnativa opera Le monde ou Traité de la lumière, sulla quale poi – com’è noto – il prudente Cartesio soprassedet-te sino alla fine dei suoi giorni, memore della sorte toccata a Galileo.

Fra i prodotti esposti dal filosofo v’è pure, nella Parte terza, la mora-le, che a prima vista risulta però ai margini o addirittura fuori campo, anche perché l’attributo provvisoria (une morale par provision) sembra stonare con la mentalità geometrica dell’autore e con il carattere rigo-roso e definitivo delle regole metodiche. Questa terza parte del Dis-cours parrebbe quasi una toppa messa lì per prevenire possibili accuse di sovvertimento politico o religioso, garantendo così quella tranquil-lità di vita cui l’autore teneva altamente. Benchè si riconosca l’estrema importanza del contributo cartesiano alla filosofia della conoscenza – nota in proposito John Cottingham –, il suo contributo alla filosofia pratica è gene-ralmente giudicato trascurabile:2 trascurabile rispetto alla communis opinio e alla mole enorme della bibliografia cartesiana, giacché, per quanto concerne la morale, non mancano certo i volumi e i saggi dedicati a tale problematica.3

In effetti nell’economia complessiva della riforma intellettuale pro-gettata da Cartesio – e imperniata su una rigorosa deduzione dei vari rami del sapere dai primi principi – la morale rappresenta ad un tempo il presupposto e il culmine. É quanto appare con chiarezza nella Préface alla traduzione francese dei Principia philosophiae (1647), ov’è indicato l’ordine che l’uomo-tipo deve seguire per un itinerario che non è soltanto conoscitivo, ma mira a perfezionare l’intera natura u-mana: egli deve innanzi tutto cercare di formarsi una morale, che possa bas-tare per regolare le azioni della sua vita, poiché ciò non ammette nessuna pro-roga, e noi dobbiamo sopra tutto cercare di viver bene4. É la medesima istan-za sottesa alla morale provvisoria del Discours, che, lungi dall’esaurirsi in un espediente tattico, si rivela la pre-condizione stessa di una cor-retta riforma intellettuale: non solo in base all’adagio primum vivere, ma anche perché un’esistenza in balìa dell’arbitrio e del disordine 2 J. COTTINGHAM, Cartesio, tr. it., Bologna 1991, p. 196. 3 Cfr. (oltre al prezioso lavoro di G. SEBBA, Bibliographia Cartesiana. A critical guide to the

Descartes, 1800-1960, The Hague 1964) G. CRAPULLI, Introduzione a Descartes, Roma-Bari 1992, pp. 278-280. Fra gli studi più recenti segnaliamo l’articolo dello stesso J. COTTINGHAM, Cartesian Ethics: Reason and the Passions , Revue Internationale de Phi-losophie, 50 (1996), p. 193-216.

4 CARTESIO, Opere, a cura di E. Garin, Bari 1967, II, p. 19 (ed. Adam-Tannery, IX-2, p. 13).

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morale pregiudica ogni indagine razionale; il binomio romantico ge-nio-sregolatezza è inconcepibile per Cartesio, che non a caso vive nell’âge classique...

La morale ricompare al termine del percorso autoformativo, illus-trato con una rinnovata versione della metafora dell’arbor scientiarum. Così tutta la filosofia è come un albero, di cui le radici sono la metafi-sica, il tronco è la fisica, e i rami che sortono da questo tronco sono tutte le altre scienze, que si riducono a tre principali, cioè la medicina, la meccanica e la morale, intendo la più alta e perfetta morale, che, pre-supponendo un’intera conoscenza delle altre scienze, è l’ultimo grado della saggezza (le dernier degré de la sagesse).5 Sono queste discipline che rappresentano la principale utilità della filosofia, come Car-tesio aveva già precisato nella definizione introduttiva della filosofia come studio della saggezza6. Una definizione onnicomprensiva, che si estende a tutto ciò che (essendo specifico dell’uomo come res cogitans, ossia pensiero e azione cosciente e responsabile) ci distingue dai bruti.7

Se per Aristotele la massima realizzazione dell’uomo consisteva nell’esercizio delle virtù dianoetiche e quindi nella contemplazione delle cause prime e dei principi ultimi, per Cartesio la ricerca delle prime cause, cioè dei principi non è fine a se stessa, ma è in funzione dei frut-ti ultimi dedotti da tali principi e fra i quali primeggiano i frutti morali: eredità della filosofia ellenistica, in cui lo studio della logica e della fisica era finalizzato all’etica; un’eredità mediata dalla cultura dell’umanesimo, e poi arricchita e trasfigurata dalle applicazioni che l’incipiente rivoluzione scientifica già lasciava intravvedere, e che Ba-cone aveva profeticamente illustrato nella Nuova Atlantide. Non a caso, richiamandosi esplicitamente al suo Discours e alle tre opere che l’accompagnavano, Cartesio scende nel dettaglio dicendo ch’era suo intento “far vedere che si poteva progredire assai nella filosofia, per giungere per suo mezzo alla conoscenza delle arti che sono utili alla vita, perché l’invenzione delle lenti d’ingrandimento [...] è una delle più difficili che siano state mai oggetto di ricerca.”8

5 CARTESIO, Opere, II, p. 19 (ed. Adam-Tannery, IX-2, p. 14). 6 “[...] ce mot Philosophie signifie l’estude de la Sagesse, et [...] par la Sagesse on

n’entend pas seulement la prudence dans les affaires , mais une parfaite connoissance de toutes les choses que l’homme peut sçavoir, tant pour la conduite de sa vie, que pour la conservation de sa santé et l’invention de tous les arts; et [...] afin que cette connoissance soit telle, il est necessaire qu’elle soit déduite des çpremieres causes [...]” (ed. Adam-Tannery, IX-2, p. 2).

7 “C’est proprement avoir les yeux fermez , sans tascher jamais de les ouvrir, que de vivre sans philosopher; et le plaisir de voir toutes les choses que notre veuë découvre n’est point comparable à la satisfaction que donne la connoissance de celles qu’on trouve par la Philosophie; et enfin cet estude est plus necessaire pour regler nos moeurs , et nous conduire en cette vie, que n’est l’usage de nos yeus pour guilder nos pas” (ed. Adam-Tannery, IX-2, pp. 3-4).

8 CARTESIO, Opere, II, p. 20 (ed. Adam-Tannery, IX-2, p. 15).

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Stupisce, a dire il vero, che nello schema del sapere qui tracciato manchi quel prodotto tipicamente umano che sono le leggi ordinatrici della vita associata, tanto più che in quella stessa pagina Cartesio pone un rapporto diretto tra sviluppo della civiltà e sviluppo della filosofia, e si spinge ad esaltare il beneficio che i veri filosofi arrecano allo Stato9. Avremo modo di ritornare più avanti sui rapporti tra la filosofia e l’autorità costituita, depositaria delle leggi civili e religiose; c’interessa ora rilevare alcune significative assonanze con la quattrocentesca dis-puta sulle arti, che verteva sulla superiorità del diritto oppure della medicina. Al contrario di Coluccio Salutati (che rivendicava il primato della giurisprudenza, fondata su princìpi non empirici ma interni all’uomo e quindi universali) Poggio Bracciolini, ad es., sottolineava l’arbitrarietà delle leggi civili, buone solo per il popolo minuto, giac-ché “gli uomini gravi, saggi, modesti, non hanno bisogno di leggi. Si sono dati da sé la legge del vivere onesto, educati alla virtù e al buon costume dalla natura e dallo studio”: um ritratto che si attaglierebbe al nostro Cartesio, per il quale l’obbedienza alle leggi e ai costumi del proprio paese risponde a un’esigenza generale di ordine e di sicurez-za, garanzia esteriore per un perfezionamento individuale in cui il saggio diventa legge a se stesso. Dal canto suo il celebre averroista padovano Nicoletto Vernia aveva proclamato il primato della scientia naturalis sulla politica, escludendo recisamente che quest’ultima possa condurre alla vera felicità dell’uomo, posta nella cognitio Dei et aliarum intelligentiarum, cui si può pervenire solo attraverso la scienza natura-le. E Antonio de Ferrariis (detto il Galateo) affermò con convizione il primato della medicina, intesa come scienza complessiva della natura (in quanto studia gli elementi, i luoghi e i climi, le virtù delle erbe e dei metalli...) e di quella mirabile costruzione che è il corpo umano (opificium humani corporia): essa è una scienza contemplativa e non solo pratica, mentre la giurisprudenza e la politica si risolvono tutte nell’azione, e la contemplazione è, aristotelicamente, superiore all’azione...10

Certo, Cartesio rifiuta l’impostazione aristotelica, ma a ben vedere il suo ideale di sagesse, in cui la soddisfazione che nasce da una conos-cenza bene fondata si coniuga con le applicazioni utili all’anima (la morale), al corpo (la medicina) e alla vita associata (le arti meccani-che), senza toccare l’ambito strettamente giuridico , non è lontano da- 9 “I’aurois en suite fait considerer l’utilité de cette Philosophie, et monstré que, puis

qu’elle s’estend à tout ce que l’esprit humain peut sçavoir, on doit croire que c’est elle seule qui nous distingue des plus sauvages et barbares , et que chaque nation est d’autant plus civilisée et polie que les hommes y philosophent mieux; et ainsi que c’est le plus grand bien qui puisse estre en un Estat, que d’avoir de vrais Philosophes” (ed. Adam-Tannery, IX-2, p. 3).

10 Sugli autori que citati si veda E. GARIN, Storia della filosofia italiana, III ed., Torino 1978, I, p. 272-279 e la relativa bibliografia.

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gli autori sopra citati: è un’eredità rinascimentale (meglio, di un certo Rinascimento) che possiamo cogliere in lui, senza per questo dover riproporre la tesi – fortunata ma anche contestata – di chi poneva un legame di derivazione fra l’aristotelismo eterodosso italiano e il liber-tinismo francese.11

Il richiamo alla lettera-prefazione dei Principes ci consente di rileg-gere il Discours de la méthode in maniera alquanto diversa da quella in uso nelle nostre scuole, che risente fortemente dell’interpretazione hegeliana, tutta incentrata sull’unità tra pensiero ed essere e sulla fondazione logico-metafisica dell’interiorità, quale premessa storica e speculativa all’idealismo tedesco. É una lettura solitamente basata sulle regole del metodo, sul cogito e sulle prove dell’esistenza di Dio, con qualche accenno alla critica della cultura tradizionale (quale intro-duzione al metodo) e alla morale provvisoria, intesa per lo più come un atteggiamento di comodo. Le parti V e VI sono regolarmente o-messe, perché – si sa – il tempo manca, e poi esse sembrano discostarsi dal razionalismo cartesiano così ben codificato nei manuali e manualetti, e registrato a suo tempo dallo scrittore Gustave Flaubert nel suo iro-nico dizionarietto di luoghi comuni, dove alla voce Descartes compare l’immancabile cogito ergo sum...12

La chiave di lettura alternativa che qui proponiamo è costituita, per l’appunto, dal nesso organico fra la ricerca di un nuovo metodo e la prospettiva morale, sulla base di quel principio intellettualistico che viene formulato esplicitamente e con forte convinzione nel corso della Parte terza del Discours: “La nostra volontà, infatti, per sé, non è porta-ta a seguire o a fuggire cosa alcuna se non in quanto l’intelletto (notre entendement) gliela presenta buona o cattiva; e dunque basta giudicar bene per bene fare (il suffit de bien juger, pour bien faire), e giudicare il meglio che si può per fare anche in tutto il proprio meglio, ossia per acquistare tutte le virtù e insieme tutti gli altri possibili beni. E non si può essere contenti quando si è certi che è così.”13

11 Cfr. In particolare J. R. CHARBONNEL, La pensée italienne au XVI e siècle et le courant

libertin, Paris , 1919. 12 Le dictionnaire des idées reçues , ou le cataloque des opinions chic, in G. FLAUBERT ,

Oeuvres, Paris 1959, II, p. 1004 (si veda pure, a p. 1015, la voce Jansénisme: On ne sait pas ce que c’est, mais il est très chic d’en parler...).

13 Discorso sul metodo, p. 75 (ed. Gilson, p. 28). L’intellettualismo etico verrà ribadito con vigore nella lettera a Elisabetta del Palatinato (4 agosto 1645) e poi nel trattato Les passions de l’âme, ad esempio negli articoli XLVIII-XLIX, CXLIV e CXLVIII. La con-clusione di quest’ultimo articolo (il quale chiude a sua volta la seconda parte del trat-tato) offre un quadro sintetico in cui ritroviamo i concetti (e i termini) tipici della mora-le cartesiana , compresa la definizione di virtù: “Car quiconque a vescu en telle sorte, que sa conscience ne luy peut reprocher qu’il ait jamais manqué à faire toutes les cho-ses qu’il a jugées estre les meilleures (qui est ce que je nomme icy suivre la vertu), il en reçoit une satisfaction, qui est si puissante pour le rendre heureux, que les plus violens

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Questa prospettiva – sia pure in filigrana – è presente nel Discours de la méthode assai prima della Parte terza, espressamente dedicata alla questione etica. Il nesso metodo-morale, che già ispirava il titolo pri-mitivo del Discours (Projet d’une science universelle qui puisse éléver notre nature à son plus haut degré de perfection) si coglie infatti nelle considera-zioni iniziali su le bon sens ou la raison, una facoltà distribuita in tutti gli uomini, ma impiegata in maniere diverse, il che dà luogo alla diversità di opinioni. “Poiché” – nota Cartesio – “non basta avere un buon in-gegno (l’esprit bon): quel che più importa è di applicarlo bene (de l’appliquer bien).” É una pregiudiziale metodica che viene subito proiet-tata, senza mediazioni, al centro della sfera morale, dominato dall’opposizione virtù-vizio: “Le anime più grandi sono capaci dei più grandi vizi come delle più grandi virtù; e quelli che seguono sempre la via dritta, anche se camminano assai lentamente, possono andare mol-to più innanzi di coloro che più corrono e più se ne allontanano.”14

Il concetto squisitamente morale di vizio è dunque correlato agli er-rori nel metodo conoscitivo, e tali errori – dirà Cartesio nella parte seconda – sono favoriti dal numero eccessivo delle regole, come avve-niva nella logica peripatetico-scolastica. E qui ritorna l’accenno al vizio, in una prospettiva non soltanto individuale ma riferita alla società orga-nizzata, ossia allo Stato, il cui corpus legislativo è significativa-mente paragonato alle regole metodiche (un’eco degli studi in utroque iure compiuti a Poitiers?): come nello Stato meno leggi ci sono, meno si favoriscono i vizi, così, minori regole ci sono nel metodo, minori sono le possibilità di errore15.

Lo stretto legame con la filosofia pratica riaffiora quando Cartesio ricorda di aver sempre avuto “un ardente desiderio d’imparare a dis-tinguere il vero dal falso per veder chiaro nelle mie azioni e cammina-re con sicurezza nella vita”; un’esigenza cui fa subito da pendant nega-tivo la constatazione della grande disparità di comportamenti e cos-tumi (moeurs) fra gli uomini, analoga alla disparità di opinioni tra i filosofi. 16 Queste enunciazioni di carattere più generale si alternano a minuti riferimenti agli stati d’animo, in cui la dimensione psicologica assume i connotati di una vera e propria etica della conoscenza: l’extrême

effors des passions n’ont jamais assez de pouvoir pour trouble la tranquillité de son âme” (ed. Adam-Tannery, XI, p. 442).

14 DESCARTES, Discorso sul metodo, a cura di A. Carlini, XXVIII ed., Roma-Bari 1991, p. 41 (Discours de la méthode, texte et commentaire par E. Gilson, Paris 1962, p. 2).

15 “Et comme la multitude des lois fournit souvent des excuses aux vices , en sorte qu’un État est bien mieux réglé lorsque, n’en ayant que fort peu , elles y sont fort étroitement observées; ainsi, au lieu de ce grand nombre de préceptes dont la logique est composée, je crus que j’aurais assez des quatre suivants, pourvu que je prisse une ferme et cons-tante résolution de ne manquer pas une seule fois à les observer” (ed. Gilson, p. 18). Ma la costanza è anche una virtù morale e non solo un requisito metodologico...

16 Dicorso sul metodo, p. 51-52 (ed. Gilson, p. 10).

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satisfaction per i progressi nella ricerca della verità, accompagnata però dalla dé-fiance – più che dalla présomption – nel giudicare se stesso (una défiance che si estende anche ai giudizi degli amici, a volte troppo be-nevoli nei nostri confronti); la presunzione di chi s’impiccia a dar pre-cetti agli altri, rischiando poi il biasimo; il rifiuto di acquistare gloria in campo scientifico grazie a falsi titoli (pur non condividendo il dis-prezo dei Cinici per la gloria umana); la denuncia delle mauvaises doc-trines di maghi, astrologi ed alchimisti (fruto di impostures) e della van-terie di quanti fanno professione di sapere quel che non sanno; la criti-ca dell’atteggia-mento mentale di chi, chiuso nel suo studiolo, si dedi-ca a speculazioni prive di effetti e che lo rendono tanto più vanitoso quanto più si allontana dal senso comune...17

La corrispondenza fra il piano conoscitivo e quello etico non è però totale e assoluta. Se è metodologicamente corretto sospendere il giudizio in attesa di pervenire ala verità, per Cartesio l’irresolutezza nel comportamento non è ammissibile, perché compromette la felicità del nostro vivere (“vivre [...] le plus heureusement que je pourrais”), ed è su questo divario che s’innesta il discorso sulla morale provvisoria, quale prima applicazione del nuovo metodo.18 Come già rilevò effica-cemente il Gilson, questa morale è tale non perché si contrappone a quela definitiva: anzi, essa può essere definitiva – e in questi termini è ripresentata nella lettera a Elisabetta del Palatinato del 4 agosto 1645 –, ma noi non sappiamo ancora se lo sia, perché la più elevata conoscenza dei princìpi morali è possibile solo dopo aver esaurito le altre scienze, e poi perché l’ordine del vero non coincide sempre con l’ordine del bene.19

In tale modo la nozione di verosimile o di probabile, espunta dal pro-cesso conoscitivo, è ammessa nella sfera del comportamento, ove può anzi raggiungere lo stesso grado di certezza della verità, assurgendo a seconda massima della morale provvisoria: “E così, quando, come spesso accade nella vita, le azioni non ammettono indugio, e non sia in poter nostro discernere le opinioni più vere, non c’è dubbio alcuno che dobbiamo seguire le più probabili; e se pure non notiamo maggio-ri probabilità nelle une che nelle altre, bisogna bene nondimeno de-terminarci per alcune, e considerarle perciò in sèguito, praticamente (en tant qu’elles se rapportent à la pratique), non più come dubbie, anzi come verissime e certissime (très vraies et très certaines), in quanto taale è la ragione che ce le ha fatte preferire alle altre.”20 Come dire che l’esigenza della ragion pratica di mantenere la risolutezza e la costan-za nel nostro agire (per non cadere in preda ai “pentimenti e rimorsi [les repentirs et les remords] che sogliono agitare la coscienza degli spiriti 17 Dicorso sul metodo, pp. 43, 44, 50, 51 (ed. Gilson, pp. 3, 4, 9, 10). 18 Dicorso, p. 68 (ed. Gilson, p. 22). 19 Discours, ed. Gilson, Commentaire historique, pp. 230-234. 20 Dicorso, pp. 71-72 (ed. Gilson, p. 25).

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deboli e sempre oscillanti” prevale sul criterio dell’evidenza conosciti-va: la scienza è in funzione della felicità umana, ma la complessità del-la vita e le esigenze immediate possono far sì che l’equilibrio della nostra condotta – che è condizione di una vita felice – faccia talora aggio sulla rigorosa ricerca della verità.

Primum vivere, dunque...; sed bene vivere, ossia vivere beate, per usare l’espressione di Seneca, che Cartesio nella ricordata lettera a Elisabet-ta tradice vivere felicemente (vivre heureusement), distinguendo poi subito tra la felicità (heur) e la beatitudine (béatitude): “la felicità dipende esclu-sivamente dalle cose che sono fuori di noi, onde deriva che sono sti-mati piuttosto felici che saggi coloro a cui è capitato qualche bene che non si sono procurati da sé. La beatitudine, invece, consiste, mi sem-bra, in una perfetta contentezza dello spirito (en un parfait contentement d’esprit) e in una soddisfazione interiore che ordinariamente non pos-seggono coloro che più sono favoriti dalla fortuna, mentre i saggi l’acquistano senza la fortuna. Così vivere beate, ossia vivere in beatitu-dine, non è altro che avere lo spirito perfettamente contento e soddis-fatto.”21 Ne consegue che la sovrana contentezza (souverain contentement) in cui consiste la piena felicità non deriva dai beni che non dipendono da noi (onori, riccheze, salute) bensì dalla virtù e dalla saggezza, che sole sono in nostro potere. Sicché Cartesio giunge alla paradossale – per noi – conclusione che, “prendendo la gioia di ciascuno come la pienezza e il compimento dei suoi desideri regolati secondo ragione, [...] i più poveri, i più perseguitati dalla fortuna o maltrattati dalla natura possono essere completamente felici”, nel senso, ovviamente, della béatitude. É questo principio che sottende in particolare la terza massima della morale provvisoria, quale viene riproposta alla princi-pesa Elisabetta; ed è un principio che nel Discours era stato enunciato con grande chiarezza, in conformità con l’intellettualismo etico sopra evidenziato22.

La chiave della felicità vera (la béatitude) sta dunque nella piena padronanza di sé, ovvero nell’esercizio delle virtù, come verrà ribadi-to nel trattato Les passions de l’âme (1649), in cui Cartesio tenta di stabi-lire un collegamento fra il controllo razionale degli stati emotivi, debitamente analizzati e classificati, e i meccanismi psico-fisiologici del corpo umano; ed a questo trattato egli aveva alluso nella lettera all’amico Chanut del 15 giugno 1646, in cui dichiara che, “invece di 21 CARTESIO, Opere, II, p. 546 (ed. Adam-Tannery, IV, p. 264). 22 “Car notre volonté ne se portant naturellement à désirer que les choses que notre enten-

dement lui représente en quelque façon comme possibles , il est certain que, si nous con-sidérons tous les biens qui sont hors de nous comme également éloignés de notre pou-voir, nous n’aurons pas plus de regrets de manquer de ceux qui semblent être dus à notre naissance, lorsque nous en serons privés sans notre faute, que nous avons de ne posséder pas les royaumes de la Chine ou du Mexique” (Discours, ed. Gilson, pp. 25-26).

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scoprire [con lo studio della medicina] i mezzi per conservare la vita, ho trovato [mediante la riflessione morale, fondata sulla conoscenza della fisica] qualcosa di molto più confortevole e sicuro, cioè il mezzo di non temere la morte; senza per questo essere malinconico [chagrin, oggi diremmo depresso], come lo sono per lo più coloro la cui saggez-za è ricavata completamente dagl’insegnamenti altrui e fondata su basi che dipendono solo dalla prudenza e dall’autorità degli uomini”, ossia da fattori estrinseci23.

L’influsso della morale stoica è evidente. D’altronde – e qui torni-amo alla Parte terza del Discours – Cartesio esprime apertamente la sua ammirazione per “quei filosofi che [grazie a un lonque exercice e ad una méditation souvent réitérée] hanno potuto in altri tempi sottrarsi all’impero della fortuna e, malgrado i dolori e la povertà, gareggiare in felicità con i loro dèi (disputer de la félicité avec leurs dieux).”24 E non a caso, intrattenendo la principessa Elisabetta sui mezzi con cui acquis-tare la felicità interiore, proporrà la lettura di qualche libro degli anti-chi, da arricchire con le proprie riflessioni, e fra questi segnalerà il De vita beata di Seneca25. Se poi riandiamo al celebre inizio della Parte se-conda, là dove il filosofo racconta che in un quartiere invernale di Germania, non essendo turbato da cure o da passioni (“n’ayant d’ailleurs, par bonheur, aucuns soins ni passions qui me troublassent”), poté dedicarsi interamente alla riflessione filosofica, sembra quasi di aver a che fare con una moderna versione del saggio stoico.26

Eppure proprio Cartesio, rievocando – poche pagine addietro – gli studi compiuti a La Flèche, aveva demolito i “trattati di morale degli antichi pagani”, paragonandoli a “superbi e magnifici palazzi, ma cos-truiti su sabbia e fango”. Anche in questo caso l’allusione è generica, ma è chiaramente riferita agli stoici, ai quali si rimprovera d’elevare al massimo grado le virtù come se fossero l’oggetto più pregevole al mondo, senza però insegnare a sufficienza a conoscerle; anzi, “spesso quello a cui danno un così bel nome non è che insensibilità, o orgoglio, o disperazione, o parricidio [con riferimento, forse, all’uccisione di Cesare].”27 Analogamente, l’invito ad Elisabetta a leggere Seneca non è esente da critiche al filosofo latino: nella lettera successiva egli giu-dica poco exacte la trattazione svolta nel De vita beata, e nella chiusa si richiama nuovamente al nesso verità-virtù, ossia intelletto-volontà, che è al centro della sua prospettiva filosofica (“[...] mi sembra che Seneca avrebbe dovuto insegnarci tutte le principali verità la cui conoscenza è richiesta per facilitare l’uso della virtù, per regolare i nostri desideri e 23 CARTESIO, Opere, II, p. 587 (ed. Adam-Tannery, IV, p. 442). 24 Discorso, p. 73-74 (ed. Gilson, p. 26). 25 CARTESIO, Opere, II, p. 545 (ed. Adam-Tannery, IV, p. 252-253). 26 Discorso, p. 53 (ed. Gilson, p. 11). 27 Discorso, p. 48 (ed. Gilson, p. 7-8).

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le nostre passioni e godere così della beatitudine naturale. Questo avrebbe reso il suo libro il migliore e il più utile che un filosofo paga-no potesse scrivere”)28. Ma ciò presuppone una riforma del sapere (grazie all’elaborazione e all’aplicazione di un nuovo metodo, diverso anche dalla logica degli stoici, probabilmente confusa con quella peri-patetico-scolastica), che è la garanzia per un effettivo perfezionamen-to, intellet-tuale e morale ad un tempo.

Il rapporto di Cartesio con lo stoicismo è dunque ambiguo e ambi-valente, sospeso com’è fra l’ammirata condivisione di alcuni temi di fondo e la critica a certo astratto estremismo , cui si aggiunge la riven-dicazione di una novità ed originalità che è epistemologica più che morale (o, meglio, che è compiutamente morale in quanto rigorosa-mente scientifica...). Ed è un rapporto reso più complesso dallo svilup-po, fra Cinque e Seicento, di un vero e proprio neostoicismo , che ebbe in Giusto Lipsio il suo alfiere e in Seneca il suo nume tutelare, e che esercitò un largo influsso sugli uomini di cultura29. Ad ogni modo, pur in forma autonoma ed anomala rispetto ai neostoici, il debito di Carte-sio verso il Portico di Atene, verso Seneca e verso Epitteto rimane profondo. Lo stesso carattere fortemente individuale dell’autoperfezionamento, così com’è teorizzato e vagheggiato nel Discours, sembra rifarsi al modello dell’antico saggio stoico , isolato nella sua libertà interiore e nel suo cosmopolitismo che lo tiene lonta-no da ogni impegno nel mondo (“più spettatore che attore nelle com-medie che vi si reppresentano”)30, anche se l’universalità del logos (e del nomos) è principio di un’unità superiore.

In tale prospettiva le precisazioni di Cartesio sul carattere stretta-mente personale della sua proposta di un nuovo metodo assumono un significato che va oltre l’ovvia precauzione nei confronti del potere politico (e religioso). É l’eco dei saggi stoici (o più in generale dell’individualismo ellenistico) che si coglie nella contrapposizione fra le difficoltà non insormontabili che s’incontrano nella riforma della propria condotta intellettuale (e quindi morale) e gli enormi ostacoli che intralciano la “sia pur minima riforma della cosa pubblica (en la 28 CARTESIO, Opere, II, p. 546 e 548. 29 Sul neostoicismo tardo rinascimentale e sui rapporti fra la morale di Cartesio e quella

stoica crf. L. ZANTA, La renaissance du Stoïcisme au XVIème siècle, Paris 1914; J . SE-GOND , La sagesse cartésienne et la doctrine de la science, Paris 1932, pp. 63-71; J. L. SAUNDERS , Justus Lipsius. The philosophy of Renaissance Stoicismus, New York 1955; A. BRIDOUX, Le stoïcisme et son influence, Paris 1966; V. BROCHARD , Descartes stoïcien, in ID., Études de philosophie ancienne et de philosophie moderne, Paris 1966, pp. 320-326; J. DELHEZ, Descartes lecteur de Sénèque, Latomus, 114 (1970), pp. 392-401; J.E. d’ANGERS , Recherches sur le stoïcisme au XVIe et XVIIe siècles, Hildesheim 1976 (in particolare pp. 453-480: Sénèque, Epictète et le Stoïcisme dans l’oeuvre de René Descartes); Atoms, Pneuma and Tranquillity. Epicurean and Stoic themes in European thought, ed. by M.J. Osler, Cambridge (N.Y.) 1991.

30 Discorso, p. 76 (ed. Gilson, p. 28).

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réformation des moindres choses qui touchent le public)”; giacché – e l’osservazione è oggi quanto mai attuale – “questi grandi corpi sono difficili a rialzare quando sono abbattuti, o anche solo a tener in piedi quando sono scossi, e le loro cadute sono sempre molto gravi”, anche se l’usage finisce per attenuare e correggere le imperfections dello Stato, che risultano alla fine più sopportabili di un radicale cambiamento... Cartesio prende quindi le distanze da “quei caratteri turbolenti ed irrequie-ti che, non chiamati al maneggio degli affari pubblici né per la loro nascita né per altra fortuna, han sempre in mente nuovi progetti di riforme”, ribadendo con umiltà invero eccessiva che “il mio disegno è stato sempre di riformare soltanto i miei pensieri e di edificare in un fondo tutto mio: nulla di più.”31

Lóssequio del filosofo verso l’autorità costituita, la quale gli con-sente di godere di una vita serena e tranquilla (tranquillo otio), era stato affermato a chiare lettere da Seneca, in opposizione a chi pensa che i veri filosofi siano arroganti e ribelli (contumaces ac refractarios).32 Ma lo stesso Seneca nella lunga Ep. 90, in contrasto con Posidonio di Apamea, es-ponente del cosiddetto mediostoicismo , aveva distinto nettamente la filosofia (che siede più in alto ed è maestra non delle mani, ma delle ani-me) dalle arti manuali e meccaniche, che con le loro invenzioni danno luogo ad un progresso sociale che è del tutto superfluo , poiché “a soddisfare le esigenze della natura basta la natura stessa (Sufficit ad id natura quod poscit).”33

Non a Seneca, quindi, ma semmai a Posidonio si può accostare l’interesse di Cartesio per quelle applicazioni che costituiscono il culmi-ne della filosofia stessa, come s’è rilevato nella préface ai Principes. Si tratta di un tema ben presente nel Discours, anche se ai nostri sprov-veduti studenti può apparire più baconiano che cartesiano. Già nelle pagine introduttive, dopo aver ricordato fra le sue giovanili acquisizi-oni culturali il fatto che “le matematiche hanno invenzioni sottilissime, utili assai tanto a contentare i curiosi, quanto a facilitare le arti tecni-che e a diminuire il lavoro degli uomini”, Cartesio confessa che non aveva ancora preso coscienza del vero uso delle matematiche, limitato allora alle arti meccaniche (“mi stupivo che su fondamenti così fermi e solidi non si fosse ancora costruito nulla di più alto e di più importan-te”).34 Tuttavia la ricostruzione ex novo dell’edificio della filosofia su basi matematiche non fa passare in secondo piano le applicazioni pra-tiche, bensì dà loro nuovo incremento grazie ed una più adeguata co-noscenza dei princìpi della fisica. 31 Discorso, pp. 56-57 (ed. Gilson, p. 14-15). 32 Ep. 73 (L.A. SENECA, Lettere a Lucilio, intr. di L. Canali, trad. e note di G. Monti, testo

latino a fronte, Milano 1989, p. 478-479). 33 Ivi, p. 694-701. 34 Discorso, p. 46 e 48 (ed. Gilson, p. 6 e 7).

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É qui che s’innesta una prospettiva etico-sociale che pare estranea alla prospettiva individualistica così enfatizzata da Cartesio e ancora ribadita all’inizio dell’ultima parte del Discours, quando il filosofo esprime piena soddisfazione per il suo metodo, con cui è in grado sia di risolvere questioni speculative sia di regolare la propria condotta di vita: un’impostazione tutta personale e “privata, poiché – egli nota con un disincanto che ci richiama Montaigne – quanto ai costumi, ognuno è così persuaso di essere nel giusto, che si potrebbero trovare tanti ri-formatori quante teste”, ammesso che il compito di riformare i costu-mi non fosse riservato da Dio solo ai prìncipi e ai profeti. “E quanto alle speculazioni, benché le mie mi piacessero molto, ho pensato che anche gli altri ne avevano, le quali forse piacevano loro anche di più”35 Ma proprio quando il discorso parrebbe definitivamente rinchiuso in quest’ottica individuale, Cartesio lo rovescia appellandosi al principio che impone di comunicare anche agli altri ciò che può essere utile all’umano consorzio:

“Ma, non appena venni in possesso di alcune nozioni generali di fi-sica, e, cominciando a sperimentarle in diverse difficoltà particolari, mi accosri fin dove potevano condurre, e quanto differissero i loro princìpi da quelli di cui si è fatto uso sino ad oggi, io reputai di non poterle tener nascoste senza peccare grandemente contro la legge che ci obbliga di procurare, per quanto è in noi, il bene di tutti gli uomini (le bien général de tous les hommes). Esse, infatti, mi han fatto vedere ch’è possibile pervenire a conoscenze utilissime nella vita; e che, invece di quella filosofia meramente speculativa che s’insegna nelle scuole, se ne può trovare una pratica, per la quale, conoscendo distintamente la potenza e gli effetti del fuoco , dell’acqua, dell’aria, degli astri, dei cieli e di tutti gli altri corpi a noi circostanti, [...] noi potremmo impie-garli similmente a tutti gli usi a cui sono adatti, e renderci così quasi padroni e possessori (comme maîtres et possesseurs) della natura. Il che non solo è desiderabile per l’invenzione d’una infinità di congegni (artifices) che ci fareb-bero godere senza fatica dei frutti della terra e di tante altre comodità, ma anche, principalmente, per la conservazio-ne della salute, la quale è, senza dubbio, il primo e fondamento di tutti gli altri beni in questa vita [...].”36

É una pagina che va meditata, perché ricca di collegamenti (si pen-sa allo sviluppo del’anatomia nel Seicento) e d’implicazioni. Se la criti-ca alla filosofia delle scuole e l’analogia con il progetto baconiano di dominare la natura con il binomio scienza-tecnica bálzano subito agli occhi, meno evidente ma non meno importante è il tema della funzio-ne del dotto, ovvero – con termine moderno – dell’intellettuale. Difat-

35 Discorso, p. 123 (ed. Gilson, p. 61). 36 Discorso, p. 123-125 (ed. Gilson, p. 61-62).

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ti non si tratta solo di comunicare algi altri dotti i risultati delle pro-prie scoperte, in linea con lo spirito della respublica litterarum, ma di far sì che tali scoperte siano utili a tutta l’umanità; e se la nozione di una legge (loi) generale cui tutti siamo assoggettati ci riporta nuovamente all’eredità stoica (ma anche al moderno giusnaturalismo), è questa funzione sociale dell’uomo di scienza che rappresenta l’aspetto più nuovo, non esente – forse – da contatti con le idee dei Rosacroce 37. Senza voler intaccare il potere dei prìncipi e della Chiesa, di origine divina, è una sorta di terzo potere che qui si configura, per cui il nesso primitivo tra riforma del metodo e fini morali si allarga dal perfezio-namento del singolo al progresso della società, dalla felicità individuale a quella che nel Settecento verrà comunemente chiamata pubblica felici-tà. Se la società politica e quella ecclesiastica rimangono per Cartesio un tabù, è la società civile il campo in cui l’uomo di scienza – che è tale non per investitura divina ma grazie al suo metodo – può e anzi deve operare.

37 Cfr. in proposito W. R. SHEA, Descartes and the Rosicrucians, Annali dell’Istituto e Museo

di storia della scienza di Firenze, 1979, n. 2, p. 29-47.

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JAYME PAVIANI

Universidade de Caxias do Sul Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

A gênese da dialética em Platão

Uma das origens da dialética, indicada por Aristóteles, encontra-se nos argumentos de Zenão de Eléia, defensor de Parmênides. Contra a realidade concebida como devir , Parmênides afirma que o ser é e que é impossível que não seja. O ser é imutável, eterno , ilimitado, perfeito e, por isso, não pode ser gerado ou destruído. A realidade ou nature-za, physis, não oferece contradições. A percepção dos contrários é ape-nas uma falsa ilusão. A verdadeira imagem das coisas é a esfera, a realidade acabada e perfeita. Posicionado nesta concepção da physis, Zenão elabora seus argumentos contra o movimento e a multiplicida-de. Os argumentos têm um caráter lógico-semântico e tendem a ser desenvolvidos numa linguagem formalizada. O paradoxal desta ori-gem da dialética é que ela se situa na área da lógica ou da lógica retó-rica. Isto talvez explique por que a dialética é vista como um adjetivo que acompanha o substantivo arte, techne, ou capacidade, dynamis: a arte dialética.

Platão fala da dialética também como ciência, episteme. Ciência que pode empregar recursos lógicos ou analíticos em seus desenvolvimen-tos iniciais e parciais, mas que se constitui de modo autônomo como a ciência dos opostos, conservados e superados, pela Idéia final ou sín-tese de Bem ou Uno. Todavia, a visão aristotélica de dialética, ligada a uma lógica fraca e próxima à retórica, aproxima-se, via os sofistas, ao diálogo socrático , ao discurso caracterizado como procedimento ar-gumentativo, como processo de refutação, interrogação, elenchos. Nes-ta perspectiva, a influência dos argumentos de Zenão, certamente di-luídos e descaracterizados em seus aspectos lógicos, marca presença nos processos retóricos e, em conseqüência, no diálogo socrático. Tal dedução parece ter sentido quando se examina o esforço de Platão, no Fedro, e em outros diálogos, ao demonstrar a diferença entre a dialéti-ca e a retórica.

A passagem dos argumentos lógicos de Zenão para a constituição do discurso sofístico , retórico e, conseqüentemente, para a caracteri-

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zação do diálogo socrático , pode apresentar-se como uma hipótese válida capaz de explicar uma das origens da dialética de Platão. Tal suposição exige naturalmente uma releitura dos textos filosóficos gre-gos, especial-mente de Platão. A tese de Parmênides, afirmando que o Ser é e o Não-Ser não é, eliminando a oposição entre ambos e o Devir , indica, primeiro, que as oposições existentes na natureza, physis, são um problema e, segundo, que o modo de pensar de Parmênides não explica as contradições, as transformações e a multiplicidade dos en-tes. Tal posição, contraposta à de Heráclito, afirmando o Devir e as oposições na physis, introduzida na filosofia de Platão, constitui-se duplamente como uma oposição dialética teórica e como uma lição de necessidade de busca de uma síntese, já tentada por algumas filosofias anteriores, para o problema da natureza. O complexo de problemas filosóficos acumulados na época de Sócrates, examinados nos diálogos de Platão, aponta, ao mesmo tempo, o abandono dos argumentos ló-gicos em favor da elaboração dos processos dialéticos e, assim, como examinaremos adiante, aponta também uma segunda via para a gêne-se da dialética, o Devir de Heráclito.

A oposição entre as duas teses, na filosofia de Platão, além da superação de ambas, implica a necessidade de busca de uma síntese, de uma unidade, para explicar a multiplicidade, sem a eliminar. A busca da unidade já havia sido tentada por diversos filósofos. Empédocles, por exemplo, ensina que o que nasce e morre tem sua unidade original no ser. A efetivação dessa unidade através dos elementos básicos que são a água, a terra, o ar e o fogo, raízes de todas as coisas, não se realiza através da superação dialética das oposições, mas através da mistura de elementos que originam distintas formas de realidade, physis, que são, ao mesmo tempo, eternas e mutáveis. Anaxágoras, por sua vez, aceita que o ser é único e permanente e que cada ente pode se tornar múltiplo, graças às homeomerias, isto é, às sementes que são partes iguais e pequenas de massa imperceptíveis. A descoberta mais importante de Anaxágoras, todavia, consiste na idéia de uma Inteligência ordenadora, Nous, na qual não existe nenhuma mistura. É essa Inteligência sutil, independente, ilimitada que conhece tudo e tem imensa força.

Essas e outras tentativas de solução do problema da unidade e da multiplicidade, tendo sempre presente o confronto entre as posições de Parmênides e Heráclito e, ainda, o atomismo de Demócrito, podem ter posto em crise o valor do conhecimento para os sofistas, e ter in-fluen-ciado suas posições relativistas, mas certamente forneceram para Platão a necessidade de uma síntese. Talvez de uma síntese dada a priori e, por isso, só alcançada no estágio de máximo desenvolvimento da dialética, após superadas todas as explicações naturalistas. A dialé-tica é para Platão, por própria experiência, um longo aprendizado, um

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efetivo amadurecimento intelectual e emocional. Os sofistas são inca-pazes de perceber os processos presentes nas oposições e na necessi-dade de síntese da physis. Reduzem os opostos a problemas retóricos, de concordância e discordância, sem saber se as oposições estão nas coisas ou no conhecimento das coisas e de si mesmos, ou ainda em ambos. Por isso, Platão empreende a tarefa de superar a falsa retórica e de estabelecer as condições da verdadeira dialética. Enquanto a re-tórica é a arte dos discursos longos, continuados, expositivos, persua-sivos, fundados em argumentos aparentes, a dialética, ainda próxima da retórica, define-se como diálogo específico, socrático, arte da per-gunta e da resposta, ou, mais exatamente, processo de refutação. O diálogo socrático prepara o caminho da dialética, interpondo-se, de um lado, entre os processos eurísticos, agonísticos, de disputas, dos eleatas e, de outro lado, entre os processos de reunião, synagoge, e de divisão, diairesis. A superação dos primeiros permite o desenvolvimen-to dos segundos. O diálogo procura o ponto de vista comum dos in-terlocutores. A dialética tem como fundamento comum o Bem, o Uno, a Verdade.

Uma outra gênese da dialética tem início no pensamento de Herá-clito. Hegel chega mesmo a declarar que Heráclito é o fundador da dialética. A origem que aponta os argumentos de Zenão como começo da dialética influi, sem dúvida, na retórica sofística e no diálogo socrá-tico. Porém, o ponto de partida em Heráclito desloca o problema do enfoque lógico-lingüístico ou meramente retórico para o problema da constituição da realidade ou da natureza, da physis. O “tudo flui”, pan-ta rei, supõe a realidade em estado de movimento, de permanente transformação. A physis não é Ser, também não é Não-Ser, mas tudo isso efetivado num terceiro estado, o Devir. Essa concepção, todavia, não é afirmada por Heráclito de um modo tão explícito. A explicitação pressupõe a leitura dos textos de Platão, vistos em conjunto, e inter-pretados a partir da Doutrina Não-Escrita. De fato, Heráclito não es-clarece a exigência de uma síntese. Ela está pressuposta. Em Platão, poder-se-ia dizer, está imposta. É imposta no sentido de que ela é dada a priori e pressuposta nas diversas tematizações dos diálogos. Demonstrações da necessidade da síntese em Platão encontram-se, por exemplo, em Carlos Cirne Lima, em Dialética para principiantes.

Pode-se destacar no pensamento de Heráclito dois aspectos: a) a realidade em movimento como algo definitivo para a dialética e b) a oposição entre Ser e Não-Ser que se efetiva como Devir. Essa concep-ção apresenta os elementos fundamentais da dialética hegeliana e constitui um dos problemas básicos da dialética platônica. Mais do que isso, a posição relativa às oposições da physis, ou tentando eliminar os opostos, reduzindo em grande parte o problema ao nível lingüístico , como fez Aristóteles, ou tentando entender e explicar os movimentos

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da physis num nível de superação das contradições a partir de princí-pios unificadores, sem eliminar os opostos, como fez Platão, divide a história da filosofia em duas grandes linhas de pensamento. Entretan-to, essa divisão tem um sentido, e o sentido reside nas razões que a provocaram. Paradoxalmente, Parmênides e Heráclito, apontados co-mo os pontos de partida desencadeadores da origem da dialética, com suas posições reais e emblemáticas, são também, depois de dois milê-nios de filosofia, a possibilidade de entrelaçamento do pensamento dialético e analítico. A tese de Cirne Lima de que dialéticos e analíti-cos podem se entender, e de que não existe um método filosófico puro que não necessite de outro em seu desenvolvimento, pode ser articu-lada com os problemas que constituem a gênese da dialética e da ana-lítica.

O exame processual do diálogo socrático constitui uma espécie de filtro usado por Platão, na aprendizagem do filósofo, para alcançar o estágio do pensamento dialético. A passagem do diálogo socrático para a dialética vista como reunião, synagoge, e divisão, diairesis, pode ser reexaminada de diversas maneiras nos diálogos platônicos. São ilustrativas, por exemplo, as referências típicas de uma autobiografia intelectual de Platão, no Fédon (a partir de 96 b), onde descreve como o problema da física se transforma em problema dos opostos e das Idéias. Ele abandona as explicações pelas causas naturalistas (fogo, água, terra, ar, etc.) e mesmo intelectualistas (Inteligência superior) adotando um novo modo de pensar. Nesse sentido, Platão visto em geral como um filósofo dualista, sempre enredado em aporias, praticando uma espé-cie de dialética negativa, pode ser visto, através da Teoria das Idéias e dos Princípios do Uno e da Díade, que Aristóteles não aceitou, como um filósofo que pratica uma dialética plena.

Em sua juventude, narra Platão, sentiu-se apaixonado pelo gênero de estudo a que dão o nome de exame da natureza. Parecia-lhe admirá-vel conhecer as causas de tudo, saber por que tudo existe, por que nasce e morre (Fédon, 96 a, b). Descobre que a origem, o fundamento, o arkhé, de todas as coisas não se encontra nos elementos como a água, o fogo, os números... Após estudar o problema da physis está longe de saber a causa de qualquer coisa. O máximo de explicação que encontra é a existência da unidade que origina os opostos e não que os suplan-te. Por isso, escolhe um outro método. Não se trata ainda do método dialético em seu mais alto grau. Mas é um passo decisivo. Conta que ouviu alguém ler num livro de Anaxágoras que a Inteligência, o Espí-rito, Nous, é o ordenador e a causa de todas as coisas. Num primeiro momento, tal descoberta causa-lhe alegria, e parece-lhe que havia, sob certo aspecto, vantagem em considerar a Inteligência, o Nous, como causa universal (Fédon, 97 c). Todavia, a leitura de Anaxágoras não lhe fornece explicação satisfatória. Confessa, então, que abandona

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todas as causas sensíveis ou ligadas às explicações sensíveis e opta por uma segunda navegação capaz de fornecer uma explicação de nível inte-ligível do problema da physis (Fédon, 99 d). Esta segunda navegação, se-gundo Giovanni Reale, simboliza na linguagem dos marinheiros que cessando o vento e não mais sendo possível avançar com as velas, torna-se agora necessário avançar com os remos, isto é, com o esforço próprio. A metáfora representa para Platão a necessidade de um nova tentativa, diferente daquelas dos autores pré-socráticos, para solucio-nar o problema dos opostos e da multiplicidade da natureza. Platão afirma que tem medo de tornar-se cego olhando as coisas com os o-lhos e captando-as com os sentidos. Por isso, busca refúgio nas idéias (logoi) e procura nelas a verdade das coisas (Fédon, 100 a). Convence-se que há um bom em si, um belo em si, um grande em si e assim por diante, e o que faz alguma coisa ser bela ou grande é o belo em si e o grande em si. Embora, não explique como se realiza essa participação, essa relação entre as idéias e as coisas sensíveis e a relação entre as idéias entre si, Platão procura encontrar uma solução para o problema, além de uma explicação analítica, lingüística, lógica. Não se trata ape-nas de formas ou modelos, as idéias são entidades, com características próprias, mas, de um certo modo não explicitado satisfatoriamente por Platão, presentes nas coisas sensíveis. Independente desta explica-ção, interessa no momento perceber como o pensamento dialético pressupõe a busca de uma síntese para as contradições da realidade.

Depois de admitir as realidades inteligíveis como causas verdadeiras, Platão evoca o príncipio, arkhé, ou postulado, hypothesis, que funda-menta a teoria das Idéias. Os Princípios, ensinados na Doutrina Não-Escrita, aceitos pelos verdadeiros filósofos, explicam os seres, como uma coisa se forma ou não de coisa contrária.

A leitura do Fédon chama atenção sobre o itinerário intelectual de Platão e serve concomitantemente para mostrar que o diálogo socráti-co não é apenas um exercício formal, um recurso externo e arbitrário. Processa-se no próprio diálogo o desenvolvimento dos problemas abordados. A opinião corrente de que a dialética platônica muda con-forme as características dos diálogos precisa ser revista. Na realidade, existem períodos que caracterizam os escritos de Platão. Se são dois ou três, segundo os estudos dos comentaristas, não é o caso agora de examinar. Há um certa concordância de que os diálogos da juventude e do início da maturidade, em torno de problemas socráticos e éticos, a dialética procede por refutação, interrogação, elenchos; e que nos diálogos da maturidade avançada e nos últimos, em torno de proble-mas metafísicos, desenvolve-se uma dialética configurada pelos pro-cessos de reu-nião e divisão, synagoge e diairesis. Se estes diferentes momentos podem ser justificados, embora com critérios não tão rígi-

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dos, é possível demonstrar que o chamado diálogo socrático está na origem constitutiva da dialética de Platão.

O diálogo socrático desenvolve-se por refutação ou interrogação (pergunta e resposta), nos diálogos juvenis, predominantemente in-vestigando uma determinada tese. Nos diálogos da maturidade, o processo por refutação, elenchos, confronta teses opostas. Esta maneira de ver a dialética dos diálogos juvenis e do início da maturidade, ten-dência dominante entre os comentaristas, é questionada por Cristina Rossitto, pois, segundo ela, esses procedimentos, próprios do diálogo socrático, encontram-se ainda presentes nos últimos diálogos de Pla-tão, nos diálogos chamados dialéticos, que procedem por divisão, diairesis, em duas ou mais partes e por reunificação, synagoge, de diver-sas partes numa única (1995, p. 39 a 57). No Sofista, por exemplo, onde se teoriza pela primeira vez a dialética como synagoge e diairesis, não se abandona totalmente o procedimento por elenchos. A dialética diairéti-ca entra em ação a partir dos resultados conseguidos pela dialética interrogadora de estilo socrático. Rossitto argumenta indicando a pas-sagem onde o Estrangeiro afirma que abandonar essas argúcias pró-prias aos novatos, e que não envolvem dificuldade alguma, e mostrar-se capaz de seguir a marcha de uma argumentação, criticando-a passo a passo, e, quer ela firme ser o mesmo sob uma certa relação o que é o outro, ou outro o que é mesmo, discuti-la de acordo com a própria relação e o ponto de vista que ela considera em uma outra assertiva, é ainda insatisfatório sob o ponto de vista dialético. Platão continua ainda dizendo que mostrar não importa como , que o mesmo é outro, e o outro, o mesmo; o grande, pequeno; o semelhante, dessemelhante, sentindo prazer em apresentar perpetuamente essas oposições nos argumentos, isso não constitui a verdadeira crítica: é apenas, eviden-temente, o fruto prematuro de um primeiro contado com o real (Sofis-ta, 259, c, e). Esta citação mostra com clareza que não há um salto en-tre o método dos diálogos socráticos e o método dos diálogos dialéti-cos, apesar de uma divisão dos diálogos em períodos com característi-cas predominantes. O predomínio não significa eliminação das carac-terísticas secundárias. Pode-se concluir, igualmente, que a dialética praticada exemplarmente no Sofista, no Parmênides, e em outros diálo-gos da última fase, não exclui absolutamente o recurso analítico.

Para aprofundar a questão, talvez seja oportuno examinar a ten-dência da história da filosofia de ontologizar a pergunta socrática o que é. A interpretação que insiste na centralização da pergunta em tor-no da essência de algo, em busca do universal, relega a um plano infe-rior os demais elementos da pergunta, a relação, por exemplo, entre os interlocutores no exame do problema. Com os estudos atuais da pragmática e da semântica talvez seja possível investigar os aspectos lingüísticos do diálogo socrático. Afinal, uma pergunta requer uma

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resposta e como tal supõe um encadeamento que provoca sempre no-vas perguntas com outras respostas. O movimento da indagação pode coincidir ou não com o que é perguntado. O modo de perguntar pode determinar o que é indagado. A pergunta socrática pode ser interpre-tada não apenas como a busca da essência de algo, do eidos, do univer-sal, mas como uma questão que visa ao esclarecimento do que é dito no diálogo. Nesse caso, como lembra Gabriele Giannantoni, “o que é” significa o que dizes ou o que queres dizer com tais palavras (1995, p. 5). Não se trata então de definir conceitualmente algo, mas de saber o que o interlocutor quer dizer. Nessa perspectiva, o dialogar é uma forma de meditar, de refletir sobre uma série de problemas comuns aos debates da época e que precisavam ser melhor situados. Mas, para Platão, a solução parece não estar no diálogo, pois ele não tem condi-ções de alcançar verdadeiramente a Verdade. O diálogo, devido às dificuldades do consenso, acaba em aporias. Ele precisa de uma nor-ma, de um critério, para progredir. Por isso, a pergunta socrática, vista como o que é (ontológica) ou o que dizes (semântica), ocupa uma posição subalterna em relação à contemplação dialética. Dito de outro modo, por refutação, elenchos, é possível progredir , porém, só se al-cança o Bem, o Uno, através da dialética. E é exatamente a contempla-ção do Bem, do Uno, da Verdade que possibilita o diálogo.

As conexões entre os aspectos lingüísticos e ético-ontológicos es-truturam o diálogo socrático. Sócrates, para obter respostas às per-guntas, procede por refutação. No entanto, a refutação socrática é diferente da argumentação dos sofistas. Esta é manifestamente um discurso persuasivo, aquela um discurso de convencimento. Em outras palavras, os sofistas não pretendem resolver as contradições, os opos-tos, não sabem explicar a multiplicidade, sejam da natureza ou da conduta moral. Tomam partido frente aos problemas conduzidos por interesses pessoais. Movimentam-se apenas no círculo das opiniões, da doxa. Ao contrário, Sócrates conduz o diálogo refutativo à superação das opiniões, através da investigação da verdade. Sócrates age como se ainda não tivesse alcançado a verdade, por isso, assume o procedi-mento metódico da descoberta, o processo maiêutico, sempre supon-do a existência da verdade, isto é, uma síntese, uma unidade, princí-pios capazes de explicar a realidade. Quando o diálogo socrático não toma posição, como no Crátilo, é evidente a tendência de não eliminar os opostos e o esforço de busca de uma síntese que reconstrua os o-postos num outro nível. Assim, a inconclusão dos diálogos socráticos não é um defeito, mas a indicação clara de que ainda não se alcançou a plenitude do pensamento dialético.

O procedimento refutativo, interrogativo do diálogo socrático não é apto a resolver as questões já postas pelas filosofias de Heráclito e Parmênides, agravadas por outros filósofos e sofistas. Por isso, a dia-

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lética de Platão substitui esses procedimentos propedêuticos, sem os eliminar, e assume os procedimentos diairéticos. Nesse sentido, torna-se necessário examinar os processos dialéticos dos últimos diálogos e especialmente do Sofista e do Parmênides.

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JOSÉ CARLOS KÖCHE Universidade de Caxias do Sul

O acesso ao real: reflexão sobre os caminhos da ciência

É possível, para o homem, ter o conhecimento da realidade? A pergunta que fazemos sobre a possibilidade de acesso ao real

nos conduz a outras que são conseqüências dessa interrogação inicial. Perguntar-se sobre o acesso ao real é perguntar-se sobre a possibilidade de o homem ter conhecimento, elaborá-lo, julgar a sua validade e compreender de que forma ele é construído. Questionar a possibilidade de acesso ao real pressupõe respostas sobre o que é este real e o que é quem pergunta pelo real, como os dois se relacionam, se há um canal direto, física e biolo-gicamente pré-determinado, ou se é por caminhos indiretos, mediados por fatores externos ao sujeito biológico e psicológico, fatores estes de ordem cultural e histórica. Existe o real ou é uma criação subjetiva do homem? Como se sabe se o real existe e se pode ser conhecido?

Para essas perguntas há duas respostas possíveis: ou admitimos o acesso ou o rejeitamos. No caso de admiti-lo, temos que explicar a forma como ele acontece; no caso de rejeitá-lo, temos que justificá-lo.

O objetivo do presente trabalho é analisar os caminhos trilhados pela ciência enquanto tentativa de acesso ao real.

1 – A abordagem do empirismo ingênuo

A primeira postura que temos é pensar que o acesso ao real está totalmente franqueado: o mundo está aí, à nossa frente. Basta tomá-lo e apreendê-lo. Nós o temos perante nós e o apalpamos, sentimos, de-gustamos, usamos, modificamos, construímos e o destruímos. Para esse modo ingênuo de pensar a apropriação do real, parece absurda a interrogação sobre a possibilidade do seu acesso. O real passa a ser algo naturalmente apreendido. O real é o mundo, são suas imagens captadas pelos canais da percepção sensorial, tal qual afirmam os se-guidores do empirismo.

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Esta postura ingênua, própria de quem não se interroga sobre a possibilidade do acesso ao real, é comum entre a maioria das pessoas. Afirmam que é pela percepção sensorial que o alcançam, através da recepção de suas manifestações (o real se dá a conhecer), numa típica postura empirista. Afirmam que a imagem que têm elaborada, a partir da apreensão destas manifestações, é a imagem verdadeira (fidedig-na) do real, e sobre ela falam para os outros com propriedade, po-dendo entendê-lo, explicá-lo e descrevê-lo. Por essa forma de acesso pensam ter obtido a compreensão do real. O real é aquilo que é per-cebido através dos sentidos: do gosto, do tato, do olfato, da audição e da visão. São os fatos, os fenômenos, as pessoas, os animais, os obje-tos, as coisas, tudo aquilo, enfim, que pode ser captado pelo canal da percepção sensorial, com suas características, formas e propriedades.

Nesta postura ingênua não se questiona a possibilidade de os sen-tidos, que são os mecanismos da percepção sensorial, se enganarem, distorcerem ou não apreenderem o real. Admite-se como evidente que eles são o canal natural através do qual se vêem e se percebem as imagens do real, que as suas formas e aparências são vistas e sentidas e suas vozes ouvidas. À pergunta o que é o real?, responde o empirista ingênuo: é o que está aí sendo visto, ouvido, sentido e percebido. As imagens decorrentes dessa percepção são, para ele, um espelho fide-digno que reproduz com fidelidade o que as coisas são, no cérebro do sujeito cognoscente.

E o que faz o cérebro ao receber essa imagem? O cérebro, seguin-do um ritual mecânico que obedece a regras apriorísticas, desempe-nharia a função de protocolar o recebimento dessas imagens, execu-tando a tarefa de selecioná-las, classificá-las, inter-relacioná-las e ar-mazená-las. O homem, nesta visão, seria igual a uma máquina de co-nhecer, tal qual uma filmadora que recebesse as imagens externas para serem impressas na fita virgem.

A subjetividade não existiria nessa máquina, pois o empirismo não admite lugar para ela. A total apreensão do real, através de suas for-mas de manifestação, é proporcionada exclusivamente pela percepção sensorial. Apenas o sujeito que tivesse ou deficiências nos mecanismos de sua percepção sensorial – na visão, por exemplo – ou algum defeito no seu cérebro, não apreenderia corretamente o real. No empirismo é descartada a possibilidade de ocorrerem, portanto, interpretações com distorções subjetivas.

Nesta postura confunde-se o real com a aparência do real, confun-de-se a apreensão do real com a apreensão das suas manifestações acessíveis aos órgãos dos sentidos. Para o empirismo , o real é descrito e explicado pelas suas características e manifestações empíricas e com elas se confunde. A realidade eqüivale à imagem físico-sensorial que o sujeito tem desta realidade, formada pelo somatório das característi-

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cas empíricas que compõem o contorno fotográfico apreendido pela percepção sensorial. O empirista, portanto, não questiona a possibili-dade de acesso ao real. Admite-a ingenuamente.

Esse contorno , porém, representa e retrata com fidelidade o real? Para que isso pudesse ocorrer, haveria a necessidade de satisfazer

quatro requisitos. Primeiro: que a realidade pudesse ser reduzida às suas aparências

externas; segundo: que o processo de percepção sensorial contivesse um mecanismo biológico, físico, químico e psicológico inato, capacita-do e totalmente confiável para captar e receber, sem interferência de elementos estranhos a esse mecanismo , essas aparências, característi-cas externas e manifestações da realidade, sem distorção ou viés al-gum. Além disso, que esse mecanismo por si só oferecesse garantias de traduzir sem distorção algumas dessas aparências empíricas, que ma-nifestam facetas do real, em imagens conceituais e as colocasse dire-tamente no cérebro do homem, sem qualquer necessidade de tradução ou intermediação de outros recursos ou mecanismos. Que o cérebro, fazendo parte dessse mecanismo , fosse um mero mecanismo biológico, físico e químico que apenas reproduzisse essas imagens empírico-sensoriais captadas pela percepção, traduzindo-as em imagens concei-tuais, sem tirar, filtrar, modificar ou acrescentar nada, tal qual a fil-madora que reproduz na fita virgem, com total fidelidade, as imagens vindas do exterior; terceiro: que cada vez que o homem quisesse se referir novamente a esta realidade ele a retomasse novamente na sua memória, na sua forma original, sem distorções, acréscimos ou rein-terpretações, provocadas por devaneios subjetivos ou por interferên-cia de outros fatores culturais; quarto: que fosse possível ao homem expressar esta realidade através de enunciados constituídos de uma linguagem que contivesse uma significação unívoca, destituída de am-bigüidades e de múltiplas interpretações subjetivas. Para que houvesse total objetividade na comunicação entre os sujeitos, a significação de-veria estar presa às palavras, e esta às coisas, sem qualquer possibili-dade de interferência de ordem subjetiva ou cultural. O discurso lin-güístico possibilitaria, então, a expressão objetiva do real.

2 – Crítica ao empirismo ingênuo

Acontecendo estes quatro requisitos, poder-se-ia dizer que o ho-mem teria o acesso direto ao real: captasse o que ele é de fato, pudes-se dele ter uma imagem representada no seu cérebro igual à real e sobre ela se pronunciar sem ambigüidades.

Esses quatro requisitos, porém, não podem ser satisfeitos. Veja-mos por que:

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Primeiro: pode o real ser reduzido às suas aparências externas, às suas manifestações empíricas, características ou propriedades materi-ais que chegam à nossa mente através dos sentidos ou das suas exten-sões? Para se responder a essa questão, deve-se antes especificar o que pode ser classificado como aparência, isto é, o que se entende como aparência ou manifestação das coisas ou dos fenômenos. Por exemplo: o que podemos selecionar como aparências de uma folha de um arbus-to, para entendê-la, explicá-la ou descrevê-la? Sua cor, seu formato, sua consistência, seu odor, seu tamanho, sua temperatura? Vistas a olho nu e vistas através de microscópios de diferentes potências, que aparências surgirão ao observador? Um homeopata, um narcotrafican-te, um floricultor, um agrônomo, um químico, um nutricionista, um decorador e um botânico utilizarão os mesmos instrumentos e técnicas para observá-las? Perceberão e selecionarão as mesmas manifestações ou as mesmas aparências? Certamente não. Alguns perceberão a sua aura, outros a sua composição química, outros ainda a estrutura de suas células, o seu poder de fotossíntese, o seu grau de toxicidade, peso atômico de seus átomos, o seu valor nutritivo, o seu poder tera-pêutico, a sua resistência às pragas e tantas outras características e manifestações quantos forem os interesses, os enfoques teóricos, os instrumentos e as técnicas de observação utilizados. Os objetos, fatos, fenômenos e tudo aquilo que pode ser chamado de realidade podem se manifestar de indefinidas formas, ajustadas ao tipo de observador, formas, fundo teórico , instrumentos e técnicas de observação utiliza-dos. Não há, portanto, aparên-cias unívocas e uniformes, inerentes ao objeto analisado. O que há são diferentes formas subjetivas, pragmáti-cas e teórico-culturais de perceber as possíveis aparências da realida-de.

O segundo requisito também é insustentável, pois se constata, entre diferentes pessoas, como é comum a discordância a respeito das apa-rências das coisas, da sua natureza, mesmo as mais triviais. Essa dis-cordância, revelada com notoriedade no desenvolvimento da história das ciências, mostra-nos que as apreensões a respeito da mesma reali-dade não são idênticas, motivando, para épocas distintas, diferentes ima-gens, diferentes discursos e diferentes teorias, apesar de a realidade parecer ser sempre a mesma. Por quê? Não é porque os órgãos e os mecanis-mos biológicos de cada ser humano sejam radicalmente diferentes uns dos outros. Não são. O que ocasiona a diferenciação é o conjunto das crenças teóricas admitidas e utilizadas como referencial que orienta as observações e sustenta a sua interpretação. Não há um sistema neuro-lógico que funcione mecânica e automaticamente, transportando ima-gens prontas vindas da realidade. O cérebro recebe impressões senso-riais que são decodificadas à luz de um referencial teórico existente e reelaborado continuamente na mente de cada indivíduo. Esse referen-

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cial, no entanto, é distinto de acordo com a cultura e época nos quais está inserido.

O exemplo claro que evidencia a impossibilidade da existência de um mecanismo biológico automatizado é o do ex-cego, descrito por Bohm e Peat (1989, p. 90). A pessoa, cega de nascença, ao abrir os o-lhos, após o sucesso da cirurgia que recupera o sistema fisiológico da visão, não conseguirá selecionar, unir e atribuir significações à infini-dade de impressões visuais que chegam juntas, pela primeira vez, ao seu cérebro se não passar por um processo de aprendizagem que o eduque para selecionar e decodificar essas impressões e transformá-las em imagens mentais que tenham alguma significação. Possivelmente, para isso, deverá executar exercícios que relacionem e associem o sen-tido das impressões visuais novas com as antigas e já conhecidas im-pressões tácteis e auditivas. Alguns conceitos como profundidade, distância, tamanho e perspectiva, por exemplo, serão assimilados e desenvolvidos a partir do movimento e deslocamento do corpo.

A diversidade e o pluralismo de opiniões e de teorias não são, portanto, conseqüência da manifestação diferenciada da realidade para cada sujeito, grupo ou época histórica e nem porque os sujeitos têm processos e mecanismos biológicos distintos para apreendê-la. A diversidade está no fato de cada sujeito, em cada época, poder orien-tar diferentemente a percepção dessa mesma realidade em função dos distintos referenciais teóricos utilizados.

Esse mesmo argumento impede também que o terceiro requisito possa ser aceito, pois os conceitos e suas imagens conceituais sofrem contínua reinterpretação em função da reestruturação constante, de-corrente da experiência individual e coletiva do sujeito, tal como afir-ma Piaget (1970). Não apenas os conceitos, mas também o próprio referencial teórico, enquanto corpo sistematizado de conhecimentos, de modelos explicativos, se reestruturam constantemente em função do diálogo crítico-criativo que o sujeito opera com outras concepções teóricas e com os fatos. Não há uma memória acumulativa de concei-tos e de imagens imutáveis da realidade. Há uma memória que se realimenta com as reconstruções conceituais e teóricas, produto do convívio, da análise e do confronto crítico e permanente com outras teorias e outros fatos.

O reconhecimento da intencionalidade da linguagem põe por terra a inviabilidade do quarto requisito. O significado não está preso às palavras e nem há uma identidade entre palavras e coisas, tal qual pretendiam os positivistas do Círculo de Viena. A palavra, enquanto manifesta na fala, como afirma Heidegger (1971, p. 179-180), é a arti-culação, a manifestação, a expressão da compreensibilidade inerente à abertura do ser humano. Para ele, falar é articular significativamente a compreensibilidade do ser no mundo. As palavras, como nos diz

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Merleau-Ponty (1974), não têm significação, mas são essa significação no momento que expressam uma intenção significante produzida pelo homem enquanto ser interpretante. As palavras, portanto, dependen-do do contexto e dos sujeitos que as utilizam, podem assumir signifi-cações específicas, impossibilitando a univocidade pretendida pelos positivistas.

Este empirismo ingênuo, portanto, é insustentável e inaceitável. O cami-nho que ele indica é por demais mecanicista e não conseguiria, com seu modelo, responder às seguintes perguntas mais triviais: Como falamos de coisas que não vemos, sentimos ou ouvimos? É somente o percebido que pode ser objeto do pensamento e conhecimento? Como explicar as diferentes opiniões a respeito do mesmo objeto? Como é possível que uma mesma pessoa mude sua opinião a respeito do mes-mo objeto por várias vezes sucessivamente? É possível que os sentidos se enganem? Quem julga e como se julga o erro? Como é possível eli-miniar os ídola, como propunha Bacon?

3 – A abordagem platônica e a aristotélica

Se não é pelo empirismo, podemos, então, ceder ao ceticismo ou há outros caminhos não-empíricos, intuitivos ou racionais?

No modelo platônico1, o real não está na empeiria. O verdadeiro mun-do platônico é o das idéias, que estabelece os modelos de como as aparências devem se estruturar. A forma, acessível aos sentidos, ape-nas nos mostra como as coisas são, mas não o que elas são. Os sentidos são apenas a fonte de opiniões e crenças sobre as aparências do real. O que nos fornece o que são as coisas, o seu verdadeiro conhecimento, a scientia, é a inteligência, o entendimento, que é o conhecimento racional intuitivo, desenvolvido através da dialética – intuição dos princípios universais, análise e síntese –, concebido por Platão como um método científico racional. A essência do mundo só é acessível ao entendimen-to, pois as Idéias, os modelos de todas as coisas, enquanto entidades reais, eternas, imutáveis, imateriais, perfeitas e invisíveis, não estão neste nosso mundo de aparências sensíveis e mutáveis, mas num mundo superior e eterno. Nesta interpretação platônica, de desvalori-zaçao dos sentidos, a percepção sensorial apenas tem a função de con-fundir, de proporcionar as sombras da realidade, que enganam, ludi-briam. Para Platão, o real é o pensado, o intuído. Nem a imaginação nem a razão discursiva, que são as que possibilitam trabalhar com os concei-

1 As concepções de Platão a respeito de opinião, conhecimento, dialética e ciência estão ex-

postas, principalmente, nas obras: Crátilo , República, Fédon, Sofista , Górgias, Filebo e Fe-dro .

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tos de número e quantidade, nos proporcionam o verdadeiro conhe-cimento. Platão destrói o valor da experiência empírica como fonte e critério de julgamento do conhecimento, da verdade, e valoriza a intu-ição racional como mecanismo para se apropriar da essência do real, do Ser.

Aristóteles, discípulo de Platão, em sua Metafísica, é o primeiro a suprimir o mundo platônico das idéias. Para ele, a ciência é produto de uma elaboração do entendimento em íntima colaboração com a expe-riência sensível. É resultado de uma abstração indutiva das sen-sações provenientes dos sentidos e da iluminação do entendimento, agente que abstrai as particularidades individualizadas dessas sensa-ções e constrói a idéia universal que representa a essência da realida-de. Dessa forma, o modelo aristotélico propõe uma ciência (episteme) que produz um conhecimento que pretende ser um fiel espelho da reali-dade, pelo seu caráter de necessidade e universalidade. Desenvolve um conhecimento da essência das coisas e das suas causas, respon-dendo às perguntas o que é? e por que é? A ciência aristotélica é uma ciência do discurso, qualitativa.

4 – A abordagem da ciência moderna

Esses dois caminhos, o platônico e o aristotélico , apesar de coexis-tirem por mais de 2.000 anos, são duramente atacados a partir do sé-culo XVII, com a revolução científica moderna que introduz a experi-mentação científica.

As principais verdades defendidas pela concepção aristotélica de ciência, principalmente na Física e na Cosmologia, foram questionadas. O modelo cosmológico que afirmava ser o universo eterno , geocêntri-co, fechado na última esfera das estrelas visíveis a olho nu, finito, do-tado de movimentos circulares, fundamentado em uma física dualista, uma para explicar os movimentos terrestes – dos corpos imperfeitos – e outra para os movimentos celestes – dos corpos perfeitos –, foi posto em dúvida juntamente com a forma de produzir e justificar esses co-nhecimentos. Nem mesmo o endosso do cristianismo a essas teorias, impregnadas que foram pelo dogmatismo e radicalismo religioso e teológico da época, conseguiu conter a revolução científica que come-çava a se instaurar.

O principal responsável pela chamada revolução científica moderna foi Galileu, ao introduzir a matemática como linguagem da ciência e o teste quantitativo-experimental das suposições teóricas como o meca-nismo necessário para estipular a chamada verdade científica, mudando radicalmente a forma de produzir e justificar o conhecimento. Com Galileu se desenvolve a idéia de se traçar um caminho do fazer cientí-

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fico desvinculado do caminho do fazer filosófico , quer fosse platônico ou aristotélico. Foi através da revolução galileana, como nos demons-tra Koyré (1982), que começa a explosão da ciência moderna.

Galileu estabelece o diálogo científico, o diálogo experimental, isto é, o diálogo da razão com a realidade. Galileu acreditou na possibilidade de acesso à realidade e traçou um caminho para que este acesso se con-cretizasse. O caminho consistia no diálogo experimental desenvolvido entre o homem e a natureza. Galileu tomou como pressuposto que os fenômenos da natureza se comportavam segundo princípios que esta-beleciam relações quantitativas entre eles. Os movimentos dos corpos eram determinados por relações quantitativas numericamente deter-minadas. A visão de universo de Galileu era mecânica, determinista e quantitativa. Caberia, então, à razão, descobrir que princípios eram estes, elaborando perguntas inteligentes, expressas na forma de hipó-teses quantitativas, e endereçando-as a essa natureza para que ela lhe respondesse, quando forçada por um experimento. A razão construi-ria, com suas perguntas, uma armadilha experimental capaz de forçar a natureza a fornecer respostas concretas, quantitativamente mensu-ráveis. O homem construía, com sua razão, a interpretação matemática do real e a natureza respondia se concordava ou não com o modelo sugerido. Essas respostas seriam utilizadas para avaliar o modelo hipotético-quantitativo racionalmente construído.

A scientia, o conhecer, acabou se reduzindo, a partir de Galileu, à forma experimental de desenvolvê-la, como uma interrogação endere-çada à natureza para saber (scire) quais as possíveis relações quantitati-vas que existiam entre as propriedades dos fenômenos.

Foi com o surgimento desta ciência que começou a se concretizar a esperança de que o homem poderia ter, finalmente, o caminho do a-cesso total à realidade. Foi com Galileu e, posteriormente, com New-ton e Kant que esta esperança tomou matéria e forma.

A partir deste momento, o homem começa a trabalhar tendo como modelo de acesso à realidade o procedimento do experimento científico, que estipula critérios para julgar quando esse acesso é realmente alcançado e quando não. Isto é, este procedimento estipula quando o homem acessa plenamente a realidade – a tal ponto de dizer e descrever com exatidão quantitativa como é que ela funciona e como ela se relaciona: se o acesso é verdadeiro, ou, quando não a acessa plenamente, se o aces-so fornece uma imagem falsa. Esse procedimento passou a se chamar método científico e obteve várias interpretações, principalmente a posi-tivista, decorrente da física newtoniana, expressa na obra Princípia Matemática (1987) de Newton.

A interpretação newtoniana de método científico , de acordo com Duhem (1914), espelha o pensamento de Newton contido na expressão Hypotheses non fingo. No Scholium generale, que está no final dos Princi-

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pia Mathematica, Newton afirma não aceitar nenhuma hipótese física que não possa ser extraída da experiência pela indução (1987, p. 705).2 Isto é: em física, toda proposição deve ser tirada dos fenômenos pela observação e generalizada por indução. Esse seria o método ideal, o experimental, através do qual se poderia submeter à prova, uma a uma, as hipóteses científicas. À ciência caberia aceitar apenas as que apresentassem a certeza conferida pelo método experimental. Com esse método estaria se propondo uma espécie de órganon experimen-tal pretensamente universal, tal qual o órganon aristotélico na lógica.3

Hypotheses non fingo era a atitude empirista correta. Como diz Du-hem,

“enquanto durasse a experiência, a teoria deveria permanecer à porta do laboratório, guardar silêncio e, sem perturbá-lo, deixar o experimentador face a face com os fatos. Estes últimos deveriam ser observados sem idéi-as pré-concebidas, recolhidos com a mesma imparcialidade minuciosa, quer confirmassem as previsões da teoria, quer as contradissessem. O re-lato que o observador daria de sua experiência deveria ser um decalque fiel e escrupulosamente exato dos fenômenos; não deveria nem mesmo deixar suspeitar em qual sistema o experimentador tivesse confiança, nem de qual ele desconfiasse” (1993, p. 89).

Para Newton e seus discípulos, tais como Laplace, Fourier e Ampère,4 estaria claro que uma proposição física seria ou uma lei, ob- 2 Textualmente, Newton (1686) afirma: “La gravedad hacia el Sol se compone de las graveda-

des hacia cada una de las partículas del Sol, y separándose del Sol decrece exactamente en ra-zón del cuadrado de las distancias hasta más allá de la órbita de Saturno, como se evidencia por el re-poso de los afelios de los planetas, y hasta los últimos afelios de los cometas, si semejantes a-felios están en reposo. Pero no he podido todavia deducir a partir de los fenómenos la razón de estas propriedades de la gravedad y yo no imagino hipótesis. Pues, lo que no se deduce de los fenómenos, ha de ser llamado Hipótesis; y las hipótesis, bien metafísicas, bien físicas, o de cualidades ocultas, o mecánicas, no tienen lugar dentro de la Filosofia experimental. En esta filosofia las proposiciones se deducen de los fenómenos, e se convierten en generales por in-ducción. Así, la impenetrabilidad, la movilidad, el ímpetu de los cuerpos e las leyes de los mo-vimientos e de la gravedad, llegaron a ser esclarecidas” (1987, p. 785).

3 Tem sentido , sob esse prisma, o título dado por Francis Bacon à sua obra Novum Organum (1620), teorizando sobre o modelo metodológico empirista e indutivista que a ciência deveria ter.

4 Ampère (1775-1836), matemático, químico e físico francês, discípulo do método newtonia-no, que constrói a teoria do eletromagnetismo, em sua obra Théorie mathematique des phénomènes électrodynamiques uniquement déduit de l’expérience afirma: “Newton esteve longe de pensar que a lei da gravidade universal pudesse ser inventada , partindo de considera-ções abstratas mais ou menos plausíveis. Ele estabeleceu que ela deveria ser deduzida dos fatos observados, ou melhor, de suas leis empíricas que , como as de Kepler, são resultados generali-zados de um grande número de fatos.

Observar primeiro os fatos, modificando-se as circunstâncias tanto quanto possível, acompa-nhar esse primeiro trabalho de medir com precisão para daí inferir as leis gerais, independen-temente de qualquer hipótese sobre a natureza das forças que produzem os fenômenos, o valor matemático dessas forças, isto é, a fórmula que as representa, tal é o caminho que Newton se-guiu. Ele foi por todos adotado na França, pelos cientistas aos quais a Física deve os imensos

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tida pela observação e generalização indutiva, ou um corolário dedu-zido matematicamente desse tipo de lei. Em ambos os casos, as teorias sempre seriam proposições confiáveis e destituídas de dúvida ou de arbitrariedade.

5 – O dogmatismo e o cientificismo da ciência moderna

O paradigma newtoniano, impregnado pelo indutivismo e empi-rismo, gerou uma cega confiabilidade na ciência, sem dúvida alguma, sustentada na certeza e exatidão dos resultados das teorias obtidas por um procedimento julgado perfeito: pensou-se que se poderia, sem interferências de ordem subjetiva, teórica, ou metafísica, descobrir as leis ou princípios que comandavam os fenômenos da realidade. O ex-perimento da física, seguindo a teorização coerente com o paradigma newtoniano, passou a ser o modelo ideal que deveria ser copiado por todas as outras áreas de conhecimento.

Esse novo paradigma de verdade e do fazer conhecimento, que chegou à sua plenitude com Newton, é racionalmente justificado por Kant que, na sua Crítica da Razão Pura (1787), expõe os argumentos que fundamentam a crença nessa forma de acesso à realidade, não de um acesso total, do em si, dos noúmena, mas dos fainômena. A ciência expe-rimental newtoniana, para Kant, se transforma no modelo de conhe-cimento. Segundo ele, o homem constrói um conhecimento dos fenômenos captados a partir dos conceitos fundamentais a priori de tempo e espaço, universais e absolutos, condicionantes de toda a apreensão sensível, e agregados pelas categorias intelectuais, também universalmente presentes no homem. A partir de Newton e Kant , o conhecimento verdadeiro é dado pela ciência. O pensar com a razão pura é ciência, que põe o homem em contato com o real, enquanto fenômeno.

Finalmente, pensava-se, o homem havia descoberto o verdadeiro caminho de acesso ao real. Esse caminho era o da ciência. E na ciência, conhecer significava experimentar, medir e comprovar. A ciência, orientada pelo poderoso método científico experimental, poderia che-gar às verdades exatas, verificadas e confirmadas pelos fatos. O cres-cimento da ciência seria acumulativo, através da superposição de verdades demonstradas pelas provas fatuais geradas pelas observações particulares. Foi o início do surgimento do cientificismo , isto é, da crença de que o único conhecimento válido era o científico e de que tudo poderia ser conhecido pela ciência. Todo o conhecimento,

progressos que ela fez nesses últimos tempos, e foi ele que me serviu de guia em todas as mi-nhas pesquisas sobre os fenômenos eletrodinâmicos. Eu tenho consultado unicamente a expe-riência para estabelecer as leis desses fenômenos, e deles deduzir a fórmula que pode sozinha representar as forças para as quais eles são devidos. (apud: DUHEM, 1993, p. 297-8) – (nossa tradução).

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tudo poderia ser conhecido pela ciência. Todo o conhecimento, para ter valor, deveria ser verificável experimentalmente e apresentar pro-vas confirmadoras de sua veracidade.

O dogmatismo, presente nas teorias aristotélicas divulgadas sob a proteção do cristianismo , manifesta-se, agora, com intensidade no interior da ciência, no final do século XIX, motivado por esta pregação positivista do modelo científico dominante, como ideal do conheci-mento, que não admitia outras formas válidas de se atingir o saber, a não ser através do método científico experimental.

O sucesso das aplicações teóricas e práticas da física newtoniana, no decorrer de três séculos, gerou uma confiabilidade cega nesse tipo de ciência, fazendo com que as outras áreas de conhecimento, não apenas das ciências naturais mas também das sociais e das humanas, também procurassem esse ideal científico e o aplicassem para obter resultados teóricos comprovados experimentalmente. Todas queriam gozar do status de cientificidade granjeado pela física.

6 – Crítica ao paradigma newtoniano: a incerteza e a ruptura com o cientificismo

Esse tipo de interpretação de possibilidade de acesso à realidade, porém, também se desfaz, a partir do momento em que se descobre que os conceitos fundamentais que estão sustentando a interpretação e a construção de um modelo teórico não são, como dizia Kant, univer-sais e apriorísticos, mas históricos, culturais e alicerçados em uma me-tafísica. Os referenciais que servem de base para a apreensão da reali-dade, portanto, modificam-se. Mudando os fundamentos teóricos e metafísicos, como fica a questão do acesso à realidade? Se partirmos do princípio de que não há um tempo e espaço absolutos, como fica a compreensão do universo? – nos pergunta Einstein. E se se modifica-rem as compreensões e as definições dos conceitos com que trabalha-mos nas armadilhas que organizamos para apreender a realidade, como ficam as suas interpretações? A realidade, olhada a 300.000 km/s, que tipo de fenômeno passa a ser para nós? Será ela diferente do que a olhada a 80 km/h?

É no interior da própria Física que se inicia a ruptura com o dog-matismo e a certeza da ciência. Um dos primeiros a denunciá-la foi Pierre Duhem (1861-1916). Para ele o cientista constrói instrumentos, ferramentas - suas teorias - para se apropriar da realidade, estabele-cendo com ela um diálogo permanente. A aceitação da validade dos instrumentos de observação e quantificação, a seleção das observações de manifestações empíricas e sua interpretação dependem da aceitação da validade ou não dessas teorias. Os critérios do fazer científico de-

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vem ser entendidos, de acordo com Duhem, como condicionados his-toricamente. São convenções articuladas no contexto histórico-cultural. E, como tal, permitem a renovação e o progresso das teorias, revelan-do o caráter dinâmico da ciência e a historicidade dos princípios epis-temológicos do fazer científico. Duhem, através da análise da história da ciência, desmitifica o positivismo calcado no empirismo e na indu-ção do método newtoniano.

Nessa mesma época, principalmente com o advento da Mecânica Quântica, a partir das teorias dos quanta de Max Planck (1900), das teorias da relatividade de Einstein5 (1905), do princípio da comple-mentaridade de Bohr 6 (1913), do novo modelo de átomo idealizado por Schrödinger (1926), do princípio da incerteza de Heisenberg7 (1927), da microfísica e de outras teorias importantes na Física, desva-neceu-se a pretensão cientificista e dogmática do determinismo e do mecanicismo.

A atitude dogmática da ciência moderna foi denunciada, no início do século XX, por De Broglie (1924), físico francês, que afirma: “[...] muitos cientistas modernos adotaram, quase sem se aperceber disso, uma certa metafísica de caráter materialista e mecanicista e a consideraram como a própria expressão da verdade científica. Um dos grandes serviços prestados ao pensamento contemporâneo pela recente evolução física é o de ter arruinado esta metafísica simplista” (Apud Moles, 1971, p.4).

5 Einstein afirma que o referencial espaço-temporal é diferente para observadores em movi-

mentos diferentes, contrariando a postura clássica que prega o valor absoluto para o espaço e tempo. Isto é: as longitudes e as distâncias diferem segundo o observador em questão. É o mesmo que afirmar que o espaço e o tempo – a distância e a duração – e todas as magnitudes que delas derivam (velocidade , aceleração, força, energia, ...) não dizem relação com algo ab-soluto do mundo externo, mas que são grandezas relativas que se modificam de acordo com a velocidade em que estiver o observador. O marco de referência não está no mundo , mas no observador e dele depende. É o mesmo que afirmar que um valor monetário , por exemplo R$ 100,00 (cem reais) , pode valer num lugar o equivalente a R$ 120,00 e noutro R$ 85,00, isto é, tem um determinado valor de compra de acordo com determinados mercados.

6 Bohr foi o primeiro físico a reconhecer que , na Física moderna, não se pode aplicar simulta-neamente de maneira completa, para a descrição da realidade , os conceitos de onda e corpús-culo , localização no espaço e tempo e estado dinâmico bem-definido, pois são inconciliáveis e contraditórios. No entanto, são concepções complementares. Isso significa que , para se efe-tuar uma descrição completa dos fenômenos físicos da realidade , deve-se utilizar, alternada-mente, uma e outra concepção.

7 O Princípio da Incerteza afirma: “É lei da natureza não podermos conhecer com exatidão o estado atual de nenhum corpúsculo”. Com isso Heisenberg sustenta que , na observação e na experimentação, encontramos apenas indeterminação, imprecisão. Por exemplo: não é pos-sível conhecer ao mesmo tempo e com precisão a velocidade e a posição do movimento de um elétron no interior de um átomo. É impossível determinar com exatidão absoluta, no mesmo momento, duas quantidades conjugadas. E isso não se deve à imperfeição dos instru-mentos, mas à própria natureza dos fenômenos. A indeterminação faz parte da própria essên-cia das partículas microcósmicas. Assim é que a indeterminação essencial fundamenta a incer-teza, que não pode ser eliminada pelo aperfeiçoamento dos mecanismos e instrumentos de ob-servação ou de experimentação.

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A principal contribuição para uma nova concepção de ciência foi dada por Einstein. As suas teorias da relatividade restrita e da relati-vidade geral foram importantes não apenas pelo conteúdo que apre-sentaram, mas pela forma como foram alcançadas. Bacon (1620) afir-mara que as idéias pré-concebidas deveriam ser eliminadas da mente do investigador. Einstein não as eliminou. Ao contrário, semelhante ao artista, deu asas à sensibilidade e à imaginação. Projetou subjeti-vamente um modelo de mundo que não fora captado, registrando passivamente dados sensoriais, mas infuenciado por suas emoções, paixão mística, impulsos de sua imaginação, convicções filosóficas e, como ele próprio afirmou, por um sentimento religioso cósmico (Apud Thuillier, 1979, p. 29). Com Einstein, Bohr, Heisenberg, Schrödinger e tantos outros, quebrou-se o mito da objetividade pura, isenta de in-fluências das idéias pessoais dos pesquisadores. Demonstrou que , mais do que uma simples descrição da realidade, a ciência é a proposta de uma interpretação. O cien-tista se aproxima mais do artista do que do fotógrafo.

Como conseqüência dessa primeira ruptura que atingiu diretamen-te o processo de descoberta da visão renascentista de ciência, aparece uma segunda contribuição de Einstein: a demonstração de que , por maior que seja o número de provas acumuladas em favor de uma teo-ria, ela jamais poderá ser aceita como definitivamente confirmada. Os esquemas explicativos mais sólidos podem ser substituídos por outros melhores. O progresso científico , então, deixa de ser acumulativo para ser revolucionário. E o critério até então adotado para distinguir a ciên-cia da não-ciência, o da confirmabilidade obtida pelo uso do mé-todo experimental, cai por terra, e junto com ele a crença de o cami-nho da ciência ser o acesso seguro ao real.

7 – Ciência: revoluções e redes

De que fatores depende o acesso ao real? Se modificarmos o nosso referencial teórico ou os fundamentos que sustentam nossos referen-ciais teóricos, como fica o acesso ao real? À luz de teorias diferentes, se vê o mundo diferente? Se não há um acesso natural ao real, é a partir de nossas teorias e das categorias por nós elaboradas que o construímos e o acessamos? E de onde vêm as teorias e categorias que usamos para construir o caminho de acesso ao real? Nos são dadas de uma forma inata, sendo comuns e universais para todos os sujeitos, ou as construí-mos subjetivamente? Se construídas, como o são? Quais são os fatores de ordem subjetiva, biológicos e psicológicos, e quais são os fatores de ordem objetiva, histórico-culturais, que interferem nessa produção? Esses fatores são um produto cultural, espaco-

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historicamente situados e, portanto, em contínua reconstrução, ou são rigidamente imutáveis e estáticos? É o real o que conseguimos apre-ender à luz de nossas redes teóricas, por nós mesmos elaboradas?

Popper (1902-1994) introduziu a idéia que a ciência progride por revoluções constantes. A história da ciência nos revela que muitos dos seus princípios básicos foram modificados ou substituídos em função de novas conjeturas ou de novos paradigmas. Assim, Galileu modifi-cou parte da Mecânica de Aristóteles. O mesmo fez Einstein com rela-ção às teorias de Newton. As conclusões da investigação científica não se sustentam em princípios auto-evidentes ou em provas conclusivas e, conseqüentemente, não são necessariamente verdadeiras. Popper a-firma que “a ciência não é um sistema de enunciados certos ou bem estabelecidos, [...] ela jamais pode proclamar haver atingido a verdade ou um substituto da verdade, como a probabilidade” (1975, p. 305). Para ele, há uma atitude crítica permanente na ciência, que consiste na atitude do cientista em adotar procedimentos que tentem localizar os possíveis erros de suas teorias, através de testes de falseabilidade e do confronto com outras teorias, para substituí-las por outras que não contenham os erros da anterior e com maior conteúdo informativo. Dessa forma, segundo Popper, a ciência progride de forma revolucio-nária pela permanente correção de seus erros e pela audácia de seus pesquisadores na formulação de novas hipóteses. Para Popper, uma teoria para ser científica deverá ser testada e avaliada criticamente pela comunidade científica. Os testes intersubjetivos atribuem aos co-nhecimentos científicos a objetividade. A objetividade, porém, não é garantia da verdade. Os conhecimentos da ciência permanecem, por isso, com o caráter permanentemente hipotético. A ciência, portanto, para Popper, proporciona um caminho de acesso ao real, sem, porém, assegurar-lhe um caráter dogmático.

Thomas Kuhn, discípulo de Popper, destaca principalmente a his-toricidade das descobertas científicas. Para ele, nos períodos de nor-malidade da ciência, desenvolvem-se linhas de pesquisa, com a cola-boração da comunidade científica que trabalha de forma coletiva e convergente, dentro e sob a orientação de um mesmo paradigma (1978, p. 43-55), articulando, desenvolvendo e aperfeiçoando suas teo-rias. Durante esse período, contrariamente ao que afirma Popper, não há a preocupação de criar novas teorias e nem de tentar falseá-las. O surgimento de novas teorias, segundo Kuhn, aconteceria em períodos extraordinários, em momentos de crise em que o paradigma vigente se esgota e não consegue mais explicar os novos problemas que vão surgindo. Como afirma Kuhn, apenas em períodos extraordinários haveria a mudança de paradigmas. No período da ciência normal ha-veria a adesão da comunidade científica ao paradigma vigente. As

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teorias, portanto, para Kuhn, têm um caráter pragmático e social e se sustentam temporalmente através da adesão da comunidade científica.

Com esta versão não concorda Imre Lakatos (1922-1974), para quem as revoluções científicas não são mudanças repentinas e irracio-nais de pontos de vista. Para ele a ciência não é uma seqüência de en-saio e erro ou conjeturas e refutações, como também não são os êxitos de uma teoria que demonstram a sua veracidade. Não há na ciência uma racionalidade instantânea. A refutação de uma teoria só acontece quanto há outra melhor para substituí-la (1983, p. 14-16). Uma teoria permanece enquanto for útil para gerar investigação de novos pro-blemas, isto é, enquanto programa de pesquisa. A teoria que possibili-tar a maior geração de investigações, isto é, a possibilidade de se ter novos e mais conhecimentos, é a que sobreviverá.

A concepção contemporânea de ciência, como se percebe, está mui-to distante das visões aristotélica e moderna, nas quais era aceito co-mo conhecimento científico o que pudesse ser justificado como verda-deiro. O objetivo da ciência ainda é o de tentar tornar inteligível o mundo, é atingir um conhecimento sistemático e seguro de toda a realidade. No entanto, a concepção de ciência, na atualidade, é a de ser uma investigação constante, em contínua construção e reconstru-ção, tanto das suas teorias, quanto dos seus processos de investigação. A ciência não é um sistema de enunciados certos ou verdadeiros. Para Popper, “o velho ideal da ‘episteme’ – do conhecimento absolutamen-te certo, demonstrável – mostrou não passar de um ‘ídolo’. A exigên-cia da objetividade científica torna inevitável que todo enunciado cien-tífico permaneça provisório para sempre” (1978, p. 308). Essa transito-riedade dos resultados da atividade científica - suas teorias - provém do fato de, além de ter que se submeter permanentemente à crítica objetiva, ser um produto criativo do espírito humano , de sua imagina-ção, e não a de ser uma revelação discursiva do real, copiando da na-tureza o conhecimento que dela precisa.

Não é a ciência o produto de um processo meramente técnico , mas um produto do espírito humano. A imagem inteligível do mundo pro-porcionada pela ciência é construída à imagem da razão e apenas con-trastada com esse mundo exterior. Bachelard afirma que

“a ciência suscita um mundo, não mais por um impulso mágico, imanen-te à realidade, mas antes por um impulso racional imanente ao espírito. Após ter formado, nos primeiros esforços do espírito científico, uma ra-zão à imagem do mundo, a atividade espiritual da ciência moderna de-dica-se a construir um mundo à imagem da razão. A atividade científica realiza, em toda a força do termo, conjuntos racionais” (1978, p. 19).

Os enganos, quer pessoais, quer coletivos e constatados ao longo da história da humanidade, mostram-nos com clareza que o que pen-

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/ O acesso ao real: reflexão sobre os caminhos da ciência 120

sávamos ser conhecimento, entendido como acesso direto e livre ao real, não passa de uma mera suposição, sustentada, algumas vezes, na doksa, em uma opinião ou ponto de vista, e, outras vezes, profunda-mente impregnada de um fundo teórico de caráter ou científico , ou religioso, ou ideológico, ou político ou metafísico. Passou-se a desco-brir, pelos enganos, que não há esse acesso direto ao real. Aprendemos, com nossos erros, a ter consciência das limitações do caminho empíri-co do acesso ao real.

Como afirma Bachelard:

“[...] o espírito científico é essencialmente uma retificação do saber, um alargamento dos quadros do conhecimento. Julga seu passado histórico, condenando-o. Sua estrutura é a consciência de suas faltas históricas. Cientificamente, pensa-se o verdadeiro como retificação histórica de um longo erro, pensa-se a experiência como a retificação da ilusão comum e primeira. Toda a vida intelectual da ciência move-se dialeticamente sobre esta diferencial do conhecimento, na fronteira do desconhecido. A pró-pria essência da reflexão é compreender que não se compreendera. Os pensamentos não-baconianos , não-euclidianos , não-cartesianos estão re-sumidos nestas dialéticas históricas que apresentam a retificação de um erro, a extensão de um sistema , o complemento de um pensamento (1968, p. 147-148).

Conclusão

Retornamos sempre ao problema de como se dá a passagem do acesso dos dados vindos do mundo externo para o sujeito e como ocorre a sua interpretação. Temos que concordar com Popper (1978) quando afirma que todas as nossas observações estão embebidas de teorias. Não só nossas observações: toda nossa ação está impregnada de fundo teórico , proveniente de nossas crenças, quer sejam elas cien-tíficas, teológicas, empíricas ou metafísicas. Com elas formamos redes para apreender o mundo. E somos escravos de nossas redes. Escravidão que não se reduz a uma dependência passiva, mas a uma construção ativa constante. Renovamos nossas redes. Não podemos nunca, po-rém, delas abrir mão. E é com o seu uso que nos aproximamos do a-cesso à realidade. As teorias, como modelos explicativos e descritivos, são instrumentos que nos colocam em contato com o real, nos estritos limites da própria teoria.

Atualmente se tem consciência de que, à luz de diferentes teorias, elaboram-se diferentes hipóteses, experimentos e interpretações de experimentos. A interpretação científica do mundo modifica-se à me-dida que se modificam os seus pressupostos e os seus fundamentos. A

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avaliação das limitações e do valor de uma teoria é feita com o con-fronto de outras teorias.

A ciência atual deixa de lado a pretensão dos justificacionistas que tentavam estabelecer bases firmes, sobre as quais se construiria todo o edifício do conhecimento científico. Não há uma verdade transmissí-vel de uma base firme para os seus resultados finais, suas teorias. O que há na ciência, de acordo com a opinião de Rescher (1988), é a construção de uma rede teórica de conhecimentos, interligados nos planos diacrônico e sincrônico, que se complementam como um siste-ma coerentemente estruturado e proporcionam uma aproximação do real e da verdade. Nenhum critério racional, porém, assegura a cor-respondência desse conhecimento sistematizado com a realidade.

As respostas às perguntas anteriores, abordadas pelos diferentes enfoques teóricos, desmascaram a tentativa exclusiva de a ciência, através de seu procedimento experimental, ser o caminho seguro e único de acesso ao real. Atualmente sabe-se que a ciência tanto é um caminho seguro quanto inseguro, pois os seus pressupostos não são auto-evidentes mas sim construídos por uma razão que se organiza dentro de um espaço cultural e historicamente determinado. A ciência não pode ser este diálogo ingênuo da razão com a realidade, mas sim um diálogo entre razões e realidades. Na ciência, a razão se transforma numa razão prática: na prática da discussão. Transforma-se, assim, a ciência, em um dos lugares práticos de discussão segura, em que os critérios, os procedimentos, os métodos e os resultados produzidos são objetiva-mente questionáveis. Há na ciência uma tentativa de racionalidade, que consiste em manter um diálogo permanente das razões entre si (crítica intersubjetiva entre os diferentes referenciais teóricos) e entre as razões com a realidade.

Este diálogo mostra que nós não definimos a realidade, mas que estamos nela, que somos a realidade. “Ela nos constitui, nos fala, nos diz o que é aceitável e o que não é aceitável. A falta de racionalidade é um fato real” (Pérez de Laborda, 1985). E as teorias científicas, não podem ter a pretensão de querer afirmar que aquilo que descrevem ou explicam existe realmente conforme explicam ou descrevem.

Em todas as formas de tentativa de acesso à realidade, inclusive a científica, usamos nossos referenciais teóricos, quer sejam revolucioná-rios ou tradicionais. Construímos, subjetiva e intersubjetivamente a-través da história, nossas redes teóricas das quais somos dependentes para acessar a realidade. Isso porém não nos leva novamente a um ceticismo e nem a um relativismo. O que fazemos é, como história humana, um contínuo reconstruir, um refazer, um dialogar do sujeito consigo mesmo, com sua razão, com os critérios de sua racionalidade, com os outros, num diálogo no tempo e no espaço e com o mundo externo no qual estamos inseridos. E é este diálogo racional do ho-

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mem consigo mesmo, com os outros e com o mundo que o coloca no caminho do acesso à realidade, elaborando teorias, libertando-se de-las e sendo por elas influenciado. É através deste diálogo que o ho-mem usa sua razão que, apesar de não se reduzir apenas à lógica, usa-a como ferramenta básica. E é com esse diálogo que se descobre que o pensa-mento não tem uma forma linear de um raciocínio lógico, mas que se entrelaça em rede com outras formas do pensar. E a essência destas formas do pensar está na liberdade do pensar, que escolhe, discrimina, elabora, selecio-na e decide. Esse jogo racional, que se fundamenta na liberdade, é o que propõe caminhos para as soluções do acesso ao real, um acesso que é possível porque é mediado por teorias elaboradas pelo homem que historicamente se modificam e se reconstroem.

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LUIZ ANTONIO RIZZON

Universidade de Caxias do Sul

Começando a pensar no acesso ao real

Antes de falar em acesso ao real, caberia perguntar: O que é real? Sem dúvida, a resposta irá variar dependendo de a quem a pergunta for dirigida.

Para a criança, para o trabalhador, para a dona de casa, enfim, pa-ra as pessoas não diretamente relacionadas à ciência ou à filosofia, o real é o que se vê, o que se ouve, o que se cheira e toca. São os dados dos sentidos, nada mais.

Mas os sentidos nos enganam e há muita realidade que não pode ser alcançada diretamente por eles, como, por exemplo, os átomos e os germes.

Para o cientista, a realidade é dada pela ciência. Segundo esse prisma, toda realidade seria expressa por teorias, leis e dados científi-cos.

Porém se poderia perguntar: Nada mais há além de ciência? Quais são os fundamentos da ciência? As teorias e os dados científicos são sempre verda-deiros? Por que, então, Newton e Einstein têm teorias diferentes relativas ao mesmo fenômeno? A ciência é infalível? Seria ela a única porta válida de acesso ao real?

Buscando as respostas, reflete-se sobre algumas dessas portas.

A percepção

Os sentidos são as janelas através das quais percebemos o mundo, são as antenas através das quais captamos os sinais e construímos nos-sas imagens, sempre muito precárias, distorcidas, parciais e limitadas, mas indispensáveis ao pensamento, ao raciocínio, à reflexão e à razão. O homem, sem seus sentidos, seria um ser totalmente fechado, limita-do, incapaz de captar o mundo, dialogar com ele, pensá-lo e transfor-má-lo. É impossível pensar o homem sem os sentidos. A consciência ou mente humana seria um grande vazio sem os sentidos. A razão tem

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um de seus sustentáculos básicos no empírico, nos dados da realidade captados pelos sentidos.

Os sentidos são dirigidos aos dados da realidade pela atenção, e a atenção pressupõe a vontade, e a vontade se inscreve na liberdade humana. Os sentidos, dirigidos pela vontade e liberdade humanas, atentam a determinados estímulos. Determinadas sinapses se produ-zem, em nível de sistema nervoso. Assim, da observação surgem as sensações que, aliadas às experiências e às informações prévias, pro-duzem certas percepções do mundo. As compreensões assim obtidas podem ser mais ou menos claras, coerentes, abrangentes. As percep-ções já não são resultado puramente físico dos dados dos sentidos. A percepção que temos do mundo não necessariamente coincide exata-mente com o mundo. Ela está entre o objetivo e o subjetivo. É deter-minada pelo bom, regular ou mau funcionamento de nossos sentidos, pelas características do estímulo e pelas características do percebedor. Nossas emoções, experiências prévias e expectativas interferem cons-tantemente no processo.

Os estudos gestaltistas dos fenômenos relacionados à percepção das ilusões perceptivas, da percepção social, etc., convergem todos no sentido de mostrar a precariedade das nossas percepções e, conse-qüentemente, a fragilidade de tudo o que nelas se sustenta.

A percepção é como uma lente através da qual vemos o mundo que nos cerca. A lente pode estar suja, ser inadequada, assumir cores e matizes diferentes conforme o momento e as circunstâncias. Mas é a lente de que dispomos. Sem ela a visão do mundo não acontece.

Apesar de suas precariedades e limitações, a percepção oferece dados à razão e é constantemente aperfeiçoada, reelaborada por ela.

Os dados da percepção são submetidos à análise crítica da razão, que os questiona, confronta e refaz, podendo-se gerar, assim, novas e mais acuradas percepções do mundo.

A linguagem

Da percepção surgem os conceitos que, de início, são muito con-cretos, mas aos poucos caminham para a abstração. Com os conceitos nasce a linguagem.

Assim como não podemos pensar o homem sem os sentidos (que possibilitam sua abertura para o mundo), não podemos concebê-lo sem a linguagem. Ela é um instrumento para o desenvolvimento da razão; permite ao homem pensar o mundo, falar sobre o que percebe, partilhar a experiência, as análises e as conclusões sobre o mundo. A linguagem permite a troca, o diálogo. Através dela incorporamos as

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conquistas da racionalidade humana e legamos aos nossos descenden-tes a racionalidade que construímos.

A linguagem é um gigantesco e potentíssimo instrumento que nos ajuda no acesso ao real. Mas não é o real. Temos acesso ao mundo e ao real pela linguagem, mas há um fosso entre o que dizemos e o que o mundo é. O acesso ao real não pode prescindir da linguagem, mas ela continua sendo um instrumento que pode produzir ou conduzir a diferentes caminhos e resultados. Do mesmo modo que ela nos revela o real, também nos vela (oculta) o real.

A ciência

A ciência é um empreendimento humano e social, uma tentativa de discurso ordenado, metódico, rigoroso e bem-fundamentado sobre a realidade física, química, biológica, psicológica e sociológica. É fruto do esforço humano para conhecer mais e melhor, conhecer o quê, o como, o quanto, o porquê dos fenômenos. A ciência é um esforço ra-cional para a aproximação do real. Ser científico, fazer ciência, é buscar o real usando a razão.

No passado, o homem acreditou que chegaria ao real por ilumina-ção ou força dos deuses; hoje, muitos crêem que se chega ao real pela ciência, e só pela ciência.

Os positivistas analisaram e criticaram as posturas teológicas e fi-losóficas, classificando-as como estágios inferiores da evolução huma-na, e propuseram a postura científica e positiva como solução final e como ponto de partida. Somente o que é científico teria valor, e tudo o que tem valor seria científico. O científico é o racional, é o verdadei-ro.

Bem rapidamente, entretanto, desfez-se o mito positivista (embora ainda esteja muito presente a crença no valor absoluto da ciência). Logo se percebeu que ciência não é sinônimo de verdade.

Como qualquer outro empreendimento humano, a ciência é limi-tada e imperfeita. Nada mais é do que um conjunto de conhecimentos obtidos com métodos próprios, aplicados com atitude científica. Tanto os métodos, como a atitude e os conhecimentos assim adquiridos, mudam com o decorrer do tempo.

Para alguns, a ciência fundamenta-se em fatos e para outros em teorias. Tanto os fatos como as teorias são construções verbais, verba-lizações que tentam descrever a realidade. E as descrições são sempre fruto das observações e percepções que , por sua vez, são parciais, produtos das limitações dos sentidos, do tempo, do espaço, dos ins-trumentos de observação, das crenças, das opiniões. Kepler, Galileu, Newton e Einstein foram todos grandes cientistas que tinham diante

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de si a mesma realidade física. Apesar disso, cada um elaborou teorias diferentes, acreditou em fatos diferentes.

Além disso, as teorias científicas hoje amplamente aceitas poderão ser rejeitadas amanhã. Popper propôs que o valor de uma teoria resi-de na possibilidade de ser submetida à falseabilidade.

Estas constatações, no entanto, não invalidam o conhecimento ci-entífico. As hipóteses, as leis, as teorias, as conclusões científicas são aproximações que convergem em direção ao real. Nenhum ser huma-no, realmente preocupado em chegar ao real, pode ignorar o conheci-mento científico. Contudo, a razão não se reduz ao conhecimento.

A ciência representa boa parte do esforço humano no caminho do real, da verdade, mas este esforço , via de regra, está contaminado por erros, por interesses, por preconceitos. A ciência não vê o mundo co-mo ele é, mas como ele se nos mostra, é uma construção baseada na percepção e expressa em linguagem.

A construção que fazemos através de nosso discurso científico se aproxima da realidade, mas não pode ser considerada a realidade. Nosso discurso expressa uma tendência para ela. Mesmo assim, não é o discurso da Física, da Química, da Psicologia ou da Sociologia, to-mados isoladamente, que nos aproximam do real. O conjunto do dis-curso cien-tífico é que pode fazê-lo.

A ciência é um dos caminhos que conduz ao real desde que esteja disposta a rever seus dados, a construir novas hipóteses e teorias. Em outras palavras, a ciência ajudará a caminhar em direção ao real desde que sem regras fixas, sem leis imutáveis, sem teorias dogmáticas.

A ciência é um elemento essencial na racionalidade de hoje, é um elemento de manipulação do mundo. Lidar com ciência é lidar com poder, com dominação, com o futuro da humanidade.

Mas a razão não é só razão científica, a verdade não é apenas a verdade da ciência empírica.

A lógica, a matemática e o método

A Lógica e a Matemática têm sido utilizadas como recurso para fugir à ambigüidade da linguagem.

O Círculo de Viena propôs a linguagem pura, livre de toda a escó-ria histórica. A Matemática e a Lógica se constituiriam na linguagem adequada para a ciência, pois a linguagem ordinária não serviria. Esta precisaria ser purificada pela análise lógica que substitui a generalida-de pela especificidade. Só tem sentido a linguagem que reduz os con-ceitos a fatos empíricos. A isso se chama empirismo lógico.

Os filósofos do Círculo de Viena, bem como B. Russel, acabaram desviando-se do real e preocupando-se apenas com a estrutura lógica.

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O método foi outra preocupação dos filósofos do Círculo de Vie-na. Buscavam eles unificar as ciências pelo método. A ciência só seria ciência enquanto adotasse um método, que seria o mesmo para a So-ciologia, para a Física e para a Química.

Segundo eles, a ciência conteria toda a verdade. Através da ciência se chegaria às verdades absolutas. Conforme este prisma, toda a rea-lidade seria redutível à ciência e toda a ciência seria redutível à Física. Assim, unificavam a ciência em seu método e em seu conteúdo. O pen-samento ficaria, então, reduzido a cérebro (biologia) e a impulsos e sinapses nervosas (química e física).

Os procedimentos matemáticos (estatísticos), lógicos e metodoló-gicos podem desempenhar um papel importante para submeter os dados e enunciados científicos a um maior rigor e, assim, aumentar-lhes a confiabilidade. Mas os procedimentos estatísticos, as análises lógicas, bem como o método científico são apenas instrumentos capa-zes de ajudar no avanço da ciência. E, como instrumentos, podem nos auxiliar a chegar mais perto do real, mas também nos afastar dele.

Não existe um caminho único para a ciência, para a racionalidade. Não há um método infalível que nos levará ao real. A pergunta pelo método é a pergunta de quem acredita na razão pura. A realidade não é monista; ao contrário, é complexa e tem vários contornos.

A filosofia

O real não é captado somente pela razão científica. A racionalida-de empírica não consegue compreender toda a realidade. Além das limitações inerentes à própria natureza da ciência e das limitações de quem faz ciência (contexto histórico em que vive o homem, seus pre-conceitos, interesses, etc.), há campos da experiência humana que não podem ser objeto de estudo científico.

Perguntas que acompanham o homem desde sempre, tais como: “qual a origem e o fim do universo?”, “qual o sentido e a finalidade da vida humana?”, questões como a da liberdade, da ética, da morte, da existência de Deus, dos fundamentos do conhecimento científico , sua utilidade e finalidade, etc., não puderam ser respondidas adequada-mente, até agora, pela ciência.

Quem fez as primeiras perguntas com que a ciência veio a se ocu-par foram os filósofos. A ciência nasceu da Filosofia que continua le-vantando problemas para a ciência, desafiando a razão científica, ana-lisando e criticando as teorias e as hipóteses e, assim, fazendo a ciên-cia menos soberba e mais próxima do real.

Fazer filosofia é tentar pensar o tempo todo, o todo que inclui a ciência, as letras, as artes, o mundo, o homem, a moral, a religião e

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/ Começando a pensar no acesso ao real 128

Deus. Fazer filosofia é perguntar-se sobre as condições em que vivem milhões de seres humanos, sobre o sofrimento, a felicidade, a guerra e a paz. Tudo isso constitui o real. Por isso, buscar o real é, também e principalmente, filosofar. O acesso ao real passa necessariamente e fundamentalmente, embora não exclusivamente, pela Filosofia.

A razão humana, a razão prática, está sempre, incansavelmente, na busca do real. A Filosofia, tomada em seu todo e como forma de co-nhecer, tem ajudado no acesso ao real, mas é um empreendimento humano, e, como tal, é falho, sujeito a muitas limitações, não pode atingi-lo em toda plenitude.

A razão

A razão é a nossa força para o real. Ela problematiza, pergunta, constrói e reconstrói modelos, critica-os, compreende o mundo, do-mina-o e lança redes para captar o real.

Para isso, examina todas as formas de conhecimento (filosófico , ar-tístico, mítico, religioso, do senso comum, científico) e avalia a abertu-ra para o real que cada um deles proporciona.

A razão se constrói no diálogo. Diálogo do homem com a nature-za, do homem com o outro, consigo mesmo, com a ciência, com a Filo-sofia, diálogo com todas as formas de conhecimento e com toda a ex-periência humana.

A razão busca todas as contribuições na direção da realidade. Por isso não pode ter preconceitos, não pode excluir qualquer tipo de co-nhecimento, não pode fechar-se em estreitos limites. Deve dialogar em plena liberdade com todos os campos do conhecimento, quaisquer que sejam.

A razão humana é também limitada, não se funda em si mesma, mas em valores que escolhemos e adotamos, porém, na busca do real, a razão não pode ser autoritária e nem escrava de nenhum pensamen-to, teoria, ciência ou filosofia.

Ela não procede de qualquer tipo de autoridade, seja governamen-tal, militar, religiosa, parlamentar, popular, oficial ou oficiosa. Tam-bém não procede da autoridade histórica, do terror, do medo, da ameaça ou das ansiedades. Deve ser livre. Só a liberdade total permite à razão buscar o real onde quer que ele esteja.

Apesar de expressar-se através da Literatura, da Arte, da ciência da Filosofia, da Tecnologia e de outras ações e produtos da atividade humana, não pode estar presa a nenhuma delas. Deve caminhar livre e soberana rumo ao real, na busca coerente da verdade, revisando con-tinuamente seus pressupostos, resolvendo problemas, sem nunca, en-tretanto, esgotar o real.

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Filosofia, Lógica e Existência / 129

Como conclusão

O acesso ao real é um caminhar permanente. Caminhar no mundo, abertos para os dados que se nos oferecem a cada momento, incorpo-rando-os, tendo sempre a certeza, no entanto, de nunca ter a certeza definitiva. Caminhar seguros, mas dispostos a refazer, acrescentar, crescer.

O homem é um ser aberto ao real e é constantemente afetado pe-los dados da realidade que o cerca; é inquieto porque dotado de ra-zão.

A razão humana, embora limitada, é ampla e profunda. Atinge fantásticos limites, muda e surpreende a cada momento, desmente as previsões mais sábias.

Cada geração, a partir das razões estabelecidas, alcança vôos mais altos, mergulhos mais profundos, círculos mais amplos. A realidade do homem de hoje é diferente da realidade do homem de ontem, porque o homem constrói e modifica o mundo e porque o homem é livre para enveredar por diferentes e surpreendentes caminhos.

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/ O cogito cartesiano 130

SÔNIA MARIA SCHIO KUIAVA

Universidade de Caxias do Sul

O cogito cartesiano

Descartes, em suas obras, expôs seu objetivo, que era, entre outros, mas certamente o principal, encontrar bases firmes e duráveis para a ciência. Esta busca objetivava os fundamentos primeiros1 para o em-preendimento da época chamado ciência.

No tempo de Descartes o conceito de ciência não era restrito como o é hoje. Por ciência entendia-se a reunião de todo o saber, o qual en-globava a realidade inteira (a realidade é entendida aqui em sentido formal, como existência, atual e extramental, e não objetiva, pois neste caso é a existência, na mente, de um objeto do entendimento2). Por esse motivo, certamente, o autor usava o termo Filosofia como sendo sinônimo de ciência.3

1 – A dúvida

Nesta busca Descartes vai introduzir a dúvida4 como instrumento para a obtenção das certezas pretendidas. Esta dúvida não é compa-rável àquela dos céticos, pois as dúvidas céticas são vazias, não visam obter algo e, por isso, não conduzem a qualquer certeza.

Descartes, ao fazer uso da sua dúvida metódica, desmonta todo o conhecimento existente até então (pelo menos, como ele mesmo acre-ditava, o seu conhecimento), oriundo através da tradição e dos senti-dos, e passa a buscar certezas, como lemos no Discours:

“Mais, aussitôt après , jes pris garde que, pendant que je voulais ainsi pen-ser que tout était faux, il fallait nécessairement que moi, qui le pensais, fus-se quelque chose. Et remarquant que cette vérité: je pense, donc je suis, é-

1 Cf. DESCARTES, René. Méditations métaphysiques (MM), p. 29. 2 Exclui-se também a realidade referente às idéias e o princípio causal. 3 Cf. COTTINGHAM, John. A filosofia de Descartes. p. 15-16. 4 DESCARTES, MM, Primeira meditação.

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Filosofia, Lógica e Existência / 131

tait si ferme et si assurée [...] je jugeai que je pouvais la recevoir, philoso-phie, que je cherchais.”5

A dúvida metódica utiliza como recurso a descrença em tudo o que é pretensamente conhecido. O que resta serão os verdadeiros conheci-mentos, os quais embasarão os restantes.

Nas Meditations, com o objetivo de fundamentar metafisicamente as ciências (leia-se: física cartesiana, mas que ele acabou por não torná-la pública), Descartes aprofunda a dúvida: dos sentidos, que são en-ganosos, ele passa para o argumento do sonho e após acresce o do gênio maligno. A conclusão obtida é:

“Il n’y a donc pas de doute, moi aussi je suis, s’il me trope; et qu’il me tro-pe autant qu’il peut, il ne fera pourtant jamais que je ne sois rien tant que je penserai être quelque chose; de sorte que, tout bien pése et soupesé, il faut finalement poser que cet énoncé, ‘je suis, j’existe, moi’ toutes les fois que je le prononce ou que je le conçois mentalement, est nécessairement vrai.”6

Assim, o término da dúvida assinala o início da certeza7, a qual se dá através do pensamento, pois para duvidar é preciso existir , e a partir deste ponto o Pai da Filosofia Moderna desenvolve seu argumento conhecido como cogito ou res cogitans.

2 - O cogito

2.1 – Conceituação

O cogito é a primeira verdade. Ele ocorre sem qualquer mediação, seu conhecimento é intuitivo, ou seja, apreendido diretamente. Isso é possível por pertencer a uma mente aberta que consegue , mesmo que momentaneamente, livrar-se dos sentidos, permitindo-lhe perceber

5 DESCARTES, René. Discours de la méthode (DM) , p. 32 (o grifo é nosso). “Mas, logo em

seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria ne-cessariamente que eu , que pensava , fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: ‘eu penso logo existo’, era tão firme e tão certa [...] [que] julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava.” (trad. De J. Guinsburg e Bento Prado Júnior, v. 1, São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 46).

6 DESCARTES, MM, p. 53. (O grifo é nosso). “Não há , pois , dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa; de sorte que, após ter pensado bastante nis-to e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir, e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira to-das as vezes que anuncio ou que concebo em meu espírito.” (Trad. De J. Guinsburg et al., v. 2, São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 24).

7 Cf. HAMELIN, Octave. El sistema de Descartes, p. 130.

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/ O cogito cartesiano 132

clara e distintamente o que a intuição capta, não restando espaço para dúvida.

O cogito é conhecido por inteiro, clara e distintamente por uma ex-periência imediata: o pensar. A certeza por ele trazida é inabalável. O cogito foi instituído a partir da dúvida e faz abstração de todo conteú-do, mas não é possível abstrair do pensar, o qual é condição da repre-sentação em geral, ou seja, para a formação de um quadro ou de uma imagem da coisa que substitui o objeto na consciência. Por esse motivo traz certeza científica, ao existir como inteligência pura.

As condições de necessidade e universalidade da representação em geral ocorrem porque o cogito é obtido a partir da análise de da-dos do conhecimento, ou seja, pela análise e abstração no processo de reflexão. Ao pensar surge a intuição intelectual dele. Por isso, pode-se dizer que ele é poder intelectual de conhecer. A natureza intelectual do cogito é simples e absoluta, a qual possui a generalidade que Descartes atribuiu a todas as naturezas simples.8

As naturezas simples incluem conceitos fundamentais, tais como: unidade, existência e duração, podendo ser aplicados tanto às nature-zas simples materiais quanto às intelectuais. São simples e fáceis de conhecer. O intelecto humano tem o poder de intuir essas naturezas simples, pois há uma estrutura formal manifesta em todos os sistemas válidos de conhecimento. Esta estrutura consiste essencialmente em uma ordenação hierárquica, não podendo ser decomposta em algo mais simples. As naturezas simples também demonstram a importân-cia conceitual de certas noções, como as que representam os atributos principais da substância pensante, entre outras.

2.2 – Fundamentação

Para chegar à demonstração da indubitalidade do cogito, Descartes expôs os passos para obtê-lo.9 Primeiramente, observa o que se apre-senta espontânea e naturalmente: o corpo. Ele o define como sendo algo suscetível de limitação por uma figura, circunscrição em um lugar e ocupando um espaço,10 incapaz de mover-se, de sentir e de pensar autonomamente. É a substância corpórea, a res extensa, possuindo três dimensões: comprimento, largura e profundidade, que constituem o universo físico. O sentir , o comandar o corpo e o pensar são atributos concernentes à alma.

8 Cf. GUEROULT, Martial. Descartes selon l’ordre des Raisons. p. 50 e s. 9 Cf. DESCARTES, MM, p. 55. 10 Idem , p. 57.

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Filosofia, Lógica e Existência / 133

A alma, ou o espírito, “ambos os termos são meras designações cômodas para res cogitans – aquilo que pensa [...] e o que Descartes tem em mente neste caso é todo o âmbito da atividade mental conscien-te”.11 Desta forma, ele pretendia ter demonstrado a distinção entre o corpo e a alma: o primeiro como algo vago e ainda não provado (o que ele procurará fazer nas Meditações seguintes), e a alma como algo claro e evidente através da certeza obtida pelo penso, logo sou (ou exis-to).

Continua seu argumento utilizando a imaginação, fazendo de conta que não tem corpo, e mesmo assim percebe que há algo que não deixa suspeitas: o pensamento, o qual não pode ser separado do seu eu12. Pode então concluir que “j’etais une substance dont toute l’essence ou la nature n’est que de penser, et qui, pour être, n’a besoin d’aucun lieu, ni ne dépend d’aucune chose metérielle”.13 Desta forma fica defi-nitivamente distinto o corpo , coisa não-pensante, e o pensamento, coisa não-extensa.

2.3 – Caracterização

Sendo indubitável que o pensamento existe, Descartes passa a a-profundar o questionamento sobre ele: o cogito é auto-evidência do sujeito pensante de onde é extraída a garantia de sua própria existên-cia enquanto tal. A existência é descrita por Descartes como uma natu-reza comum e simples que se aplica indiferentemente às coisas corpó-reas, às mentes ou aos espíritos. Ainda, segundo ele, a própria palavra já aponta para seu significado, ficando imediato seu conhecimento.

Retomando o raciocínio do autor, mesmo que todos os objetos pensados fossem falsos, e por uma hipótese o sujeito pensante desapa-recesse, os objetos não perdurariam14. Esta auto-evidência é consciên-cia de si como realidade pensante que se apresenta com as característi-cas de clareza e distinção. Segundo o método cartesiano , tudo o que assim se apresentar será tido como verdadeiro15.

Mas, por quanto tempo o pensar fornece certeza? O autor respon-de: “autant de temps que je pense”, porque “je ne suis pas donc une chose qui pense, c’est-à-dire, un esprit, ou une intelligence, ou un en- 11 COTTINGHAM, op. cit., p. 151. 12 Cf. DESCARTES, MM, p. 59. 13 DESCARTES, DM, p. 33. “que era uma substância cuja essência ou natureza consiste

apenas no pensar, e que, para ser não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material.” (trad. De J. Guinsburg et al., op. cit., v. 1, p. 47).

14 Cf. DE MATTOS, Carlos L. Francis Bacon, Descartes, Spinoza, p. 52. 15 Cf. DESCARTES, DM, p. 33. Mais adiante Descartes perceberá que este critério não é

suficiente para fornecer certezas, momento em que recorrerá a Deus, na Terceira Medi-tação.

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/ O cogito cartesiano 134

tendement, ou une raison”.16 Esta afirmação é de capital importância pois nos mostra:

a) “autant de temps que je pense”: a consciência da existência exige um sujeito autoconsciente de seu pensar. Ao pensar ele alcança a no-ção de sua atividade psíquica e de sua própria existência enquanto ser pensante, espiritual, com capacidade intelectiva. A certeza da existên-cia do eu não é como uma certeza de alguma verdade atemporal e necessária, como as da Lógica ou da Matemática. Na existência do eu não há nada de necessário (pois o gênio onipotente poderia aniquilá-la a qualquer momento). Mas é certo que , enquanto o ser estiver pen-sando, ele terá de existir. Ao duvidar ou refletir , ele existe. O pensa-mento pressupõe a existência.

O que mais importa para Descartes, na descoberta da certeza da existência, é o ato individual do pensamento. Na realização desse ato, para cada meditador individual, a certeza de sua existência se torna evidente e indubitável17.

b) “je ne suis pas donc que une chose qui pense”: o sujeito do cogito é uma coisa que pensa, não no sentido de coisificar tornando material, corpóreo aquele que pensa, conforme parece afigurar-se a crença de alguns autores.18 Coisa entendida como substância pensante, insepará-vel do conhecimento que o sujeito pensante tem de si.

Por outro lado, pelo pensamento é possível abstrair de todas as coi-sas, de tudo o que é material, mas mesmo assim ele, o pensar, perma-nece no sujeito como algo, tornando-o pensante. Com o pensamento há a percepção do sujeito como natureza intelectual, quer dizer, razão, alma ou entendimento, separado de todos os possíveis acidentes.19

Obviamente o termo coisa poderá denotar entidades fora do pen-samento, as quais estão fora do objetivo do autor. Para deixar mais clara esta questão, Descartes usa o exemplo da cera, momento em que distingue a substância imutável e seus acidentes, estes totalmente pas-síveis de engano pelos sentidos e pelas modificações oriundas de fato-res como temperatura e outros.

c) “un esprit, ou une intelligence, ou un entendement, ou une rai-son”: pensar tem como sinônimos atividades mentais, tais como: que-

16 DESCARTES, MM, p. 59. “por todo o tempo em que eu penso [...] nada sou, pois

falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimen-to ou uma razão.” (trad. de J. Guinsburg et al., op. cit., v. 2, p. 26).

17 Cf. HINTIKKA, Jaakko. Cogito ergo sum: inférence ou performance. p. 26 e s. 18 KUJAWSKI, Gilberto. Descartes existencial, p. 112 e GUENANCIA, Pierre, Descartes, p.

87. 19 Cf. GUEROULT, op. cit., p. 59.

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rer, sentir, julgar, perceber.20 Então qualquer verbo de intelecção po-deria substituir o cogito e não se sabe os motivos que levaram o autor a privilegiá-los.

Quando, na passagem das Meditations citada acima, Descartes ex-pôs sua concepção de coisa pensante como sendo um espírito, uma inte-ligência, um entendimento ou uma razão, ele não deixou suspeitas quanto à sua crença de que o cogito tem por atributo principal a facul-dade intelectiva, que torna o sujeito consciente de seus atos,21 pois o eu está em todos os juízos, ações ou em estados da consciência.

Há uma diferença entre a maneira pela qual a consciência se co-nhece e aquela pela qual ela conhece a coisa. No primeiro caso, as i-déias não provam a existência das coisas, mas a existência daquele que as experimenta. O conhecimento de si não depende de algo desconhe-cido ou de imagens que o representam para si mesmo, pois “a consci-ência ou o conhecimento do meu eu é uma consciência sem imagem, uma consciência pura ou estritamente intelectual”.22 No conhecimento das coisas há a formação de imagens, idéias, isto é, ocorre a formação de um certo conteúdo representacional, em sentido lógico (pois no psicológico só há a valorização da realidade extraída do pensamento).

Por idéia Descartes entendia “esta forma de cada um de nossos pensamentos por cuja percepção imediata temos conhecimento desses mesmos pensamentos.”23 Também as classifica em inatas, adquiridas (ou adventícias) e inventadas (ou construídas pela mente). Aquelas que estão presentes desde o nascimento, como as idéias de Deus, pen-samento e objetos matemáticos, são inatas. As adquiridas originam-se do contato do pensamento com o mundo externo. As últimas, por sua vez, formam-se através da composição das outras duas, mesclando-se idéias inatas e as aprendidas24.

Distingue, também, as idéias como matéria, conteúdo ou objeto de percepção, as quais tornam o sujeito consciente de seus modos de pen-samento e também das representações como coisas, conteúdos da cons-ciência. Cada ato ou modo do sujeito pensante terá por base uma idéi-a, e esta o tornará consciente de ser sujeito de seus atos de consciên-cia. Assim, a idéia, como forma do pensamento, tem dupla função: torna o sujeito consciente de seus atos por um lado, e, por outro, fá-lo consciente de ser sujeito. Como tal não há ato de consciência sem su-jeito cons-ciente, ocorrendo um retorno ao enunciado referente. Por outro lado existem as idéias enquanto imagens de coisas, momento em

20 Cf. DESCARTES, MM, p. 73 e HINTIKKA, op. cit., p. 47. 21 Cf. LANDIN FILHO , Raul. Evidência e verdade no sistema cartesiano. p. 50. 22 GUENANCIA, op. cit., p. 86-87. 23 DESCARTES, Col. Os Pensadores, v. 2. p. 101. 24 DESCARTES, MM, p. 109 e 111.

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/ O cogito cartesiano 136

que são representações. Representação significa ser o substituto de uma realidade na consciência.

3. O cogito agostiniano

Existem controvérsias quanto ao surgimento do cogito, pois no tempo de Descartes ele já fora advertido por Gassendi e por um cor-respondente hoje desconhecido, de que o argumento do cogito já fora utilizado por Santo Agostinho em suas obras Livre arbítrio e a Cidade de Deus. Conforme nos relata Gilson,25 não há clareza se Descartes lera o Filósofo de Hipona antes de escrever sobre o cogito. Descartes apenas respondeu aos seus interlocutores que Santo Agostinho não fizera o mesmo uso do cogito que o seu, pois não tinha a mesma finalidade.

Segundo Hintikka,26 as conclusões obtidas pelos filósofos do sécu-lo IV são que (1) a alma humana é tripartida, sendo composta por ser, conhecer e querer; (2) o cogito é resultado da observação de um fato; (3) para duvidar é preciso existir. No entanto, o Pai da Filosofia Moderna acreditava que (i) a alma humana é algo pensante (res cogitans); (ii) não se pode pensar que se duvida sem demonstrar a si mesmo que existe; (iii) o penso, logo sou demonstra a distinção entre a natureza material e espiritual.

Gilson27 lembra que não se pode buscar em Santo Agostinho um fundamento para a Física mecanicista do tipo cartesiano, pois o argu-mento agostiniano tem finalidade teológica. Porém, o mesmo comen-tador aponta as semelhanças entre os filósofos em questão: ambos “se appuie sur la certitude immédiate de la pensée pour en déduire la espiritualité de l’âme [...], c’est par un acte de la pensée pure que l’âme se saisit comme existante”.28

Esta discussão continua em aberto, pois existem outros comenta-dores29 que afirmam ser São Tomás de Aquino, em sua obra Suma teo-lógica,30 seu predecessor, tendo em vista as semelhanças entre ambos, as quais para eles são mais manifestas.

25 Etudes sur le rôle... 1984, p. 191 e s. 26 Op. cit., p. 42 e s. 27 Op. cit., p. 194. 28 Idem , p. 195. “Apóiam-se sobre a certeza imediata do pensamento para deduzir a

espiritualidade da alma [...]; é por um ato do pensamento que a alma se reconhece como existente.” (trad. livre).

29 Como por exemplo HINTIKKA, op. cit., p. 42: “S’il existe un prédécesseur qui soit proche de Descartes , c’est bien plutôt Saint Thomas que Saint Augustin.” (Se existir um predecessor a Descartes parece ser mais São Tomás que Santo Agostinho – [trad. livre]).

30 I-Q 87, Art. 1, in Hintikka, op. cit., p. 43.

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O que nos importa, porém, é que partindo do método desenvolvi-do por Descartes, ele conseguiu obter certeza na Matemática. A arit-mética e a geometria, são evidentes e estáveis porque tratam de coisas simples e gerais, contêm algo de nítido e que fica fora de dúvida, de-vido à clareza e à distinção que apresentam. Por isso o autor pretende obter certezas também na Metafísica, a qual fundamenta todo o saber. E isso porque ele vai do pensamento à coisa, e não o contrário. E esta é uma importante contribuição de Descartes, o qual substituiu o ponto de vista do objeto por aquele do sujeito.

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4 – Considerações finais

O já citado Gassendi, ferrenho adversário intelectual de Descartes, sustentava que a premissa cartesiana referente ao cogito poderia ser substituída por qualquer outra que tratasse das atividades humanas, como por exemplo, “ambulo ergo sum, ‘je me promène donc je suis’.”31

Isso, porém, não se verifica, pois caminhar é uma ação humana simples. Mas apenas tal afirmação não é suficiente para refutá-la. O que Gassendi não considerou, motivo pelo qual votamos à questão, é que quando esta colocação for submetida à dúvida metódica, ela não resistirá. Os sentidos podem enganar aquele que pensa caminhar: po-derá ser apenas uma ilusão de caminhar, mas que na realidade não ocorre. Também poderá ocorrer que ele sonhe estar passeando, quan-do não está caminhando, mas sim, dormindo. Por último escreveu Descartes, poderia haver um gênio maligno a se divertir fazendo-o acreditar que passeava enquanto estava inerte em algum lugar.

Por outro lado, mesmo que o sujeito tenha impressão de que pen-sa, sonhe que pensa, ou seja enganado, ou, talvez tente provar a al-guém que ele próprio não exista, para que ocorra qualquer destas hi-póteses, ele que acredita nisso existe, assim como o pensamento que lhe mostra isso.

Fica demonstrado desta forma que o cogito, para existir, necessita de alguém que tome consciência dele. Cada sujeito terá que fazer sua própria experiência, a qual é individual. O “je pense, donc je suis” tem sua validade repousando essencialmente em pressupostos existenciais, tendo-se em vista que todos os argumentos pertinentes ao enunciado cartesiano levam a “admitir um sujeito atualmente existente no mo-mento em que pensar e tiver consciência disso”.32

Desta forma sua verdade é provada pela autoverificabilidade do cogito, do fato de pensar ele fica confirmado. Por outro lado, o cogito é condição sine qua non da possibilidade de todo conhecimento, isso porque as idéias não provam a existência dos objetos, entendidos co-mo entidades dissociadas do sujeito. As idéias somente não poderão ser distintas daquele que as tem. Deste modo poder-se-ia concluir que restaria apenas a inteligência do ser pensante povoada de idéias sem objetos33.

Já foi mencionado acima que as idéias são representações dos obje-tos devido à impossibilidade de um acesso direto a estes pelo sujeito cognoscente. O que Descartes fez então não foi deixar o sujeito em um mundo rodeado por idéias apenas, mas sim demonstrar o papel deste 31 Citado por HINTIKKA, op. cit., p. 25. “Caminho, logo sou; passeio, logo existo.” (trad.

livre). 32 Cf. HINTIKKA, op. cit., p. 26 e s. 33 Cf. DE MATTOS, op. cit., p. 55.

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sujeito no ato de conhecer, de tomar consciência do objeto, pois a rela-ção direta, imediata sujeito-objeto inexiste.

Mesmo tendo descoberto a subjetividade do sujeito cognoscente, Descartes precisará demonstrar duas coisas: a primeira é como ocorre, em sua imediatez, o conhecimento do objeto através da idéia, do pen-samento, da intelecção. Em segundo lugar, de que forma há certeza da veracidade do conhecimento a partir de um ser finito e passível de erro, como é o caso dos seres humanos. Para tanto, o autor buscará, a partir da Terceira Meditação, provar a existência de Deus, e assim obter segurança da veracidade da realidade externa.

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LÓGIGA E MATEMÁTICA

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Filosofia, Lógica e Existência / 141

CIRCE MARY SILVA DA SILVA

Universidade Federal do Espírito Santo

No paraíso dos símbolos: surgimento da lógica e teoria dos conjuntos no Brasil

Introdução

A divulgação de uma nova simbologia lógica e de conceitos mate-máticos sofisticados, como o do infinito, ocorreu de forma lenta e gradual no início deste século, no Brasil. Atualmente, se abrirmos um livro-texto de Matemática das séries iniciais, encontraremos um paraí-so de símbolos, numa linguagem sincopada e extremamente formali-zada, que fala sobre conjuntos, conjuntos de conjuntos, infinitos e va-zios, implicações e eqüivalências, cálculo dos predicados, conceitos desconhecidos de nossos conterrâneos do final do século passado. Crianças de nossas escolas falam em conjuntos finitos e infinitos com familiaridade, e as revistas de divulgação científica falam de Cantor como o homem que colocou o infinito no bolso assim como de Einstein co-mo o pai da relatividade. Isso tudo era inimaginável no século passado. Foi preciso muito tempo para que o homem perdesse o medo do infinito e começasse a utilizar a notação simbólica para as regras da lógica.

Grandes nomes como Cauchy, Gauss entre outros, não se atreve-ram a entrar no misterioso conceito do infinito. Até o início do século XIX, os matemáticos relutavam em aceitar o conceito de infinito atual, ou melhor, em aceitar que um segmento de reta ou a reta toda fosse uma totalidade atualmente dada de pontos e não apenas pontos que se obtenha um a um. Foi Bolzano que iniciou discussões aprofundadas sobre o tema. Essas discussões culminaram com o trabalho magistral de Cantor, mostrando a existência de diferentes infinitos.

A busca de uma linguagem universal ocupou a atenção de muitas mentes brilhantes na história, a começar com o alemão Leibniz. No século XIX, nomes como Boole, De Morgan, Peano e Frege construí-ram um novo mundo de símbolos, distanciando-se das idéias da lógica clássica de Aristóteles. Esse novo mundo que se abriu permitiu inclu-sive a existência de inúmeras lógicas chamadas atualmente de lógicas

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não-clássicas, como por exemplo, a lógica fuzzy de Zadeh, a lógica pa-raconsistente de Jaskowski e Newton da Costa, etc.

Falar sobre o desenvolvimento da lógica simbólica separadamente da evolução da teoria dos conjuntos é um tanto artificial, uma vez que as fronteiras destas áreas se entrelaçam historicamente. Como muito bem observou Moore “a fronteira entre a lógica e a teoria dos conjun-tos é alguma coisa porosa, encorajando o intercâmbio em ambas as direções, já que a noção de classe ou conjunto pertence naturalmente a ambos os lados da fronteira” (Moore, 1994, p. 635).

Temos por objetivo principal apresentar alguns resultados de nos-sas pesquisas sobre a introdução destas áreas no Brasil, chamando a atenção para personagens pioneiros, como Manuel Amoroso Costa, Lélio Gama e Antonio Monteiro, e para seus seguidores como Leo-poldo Nachbin e Newton da Costa.

Breves comentários sobre o surgimento da Lógica Simbólica e Teoria dos Conjuntos

Alguns historiadores creditam a Leibniz (1646-1716) a criação da Lógica Simbólica em 1680. Todavia, há controvérsias sobre a questão. Parece que antes de 1903, não foi publicado nada sobre o pensamento de Leibniz a respeito da Lógica Simbólica. Há hipóteses de que Lam-bert (1728-1777) e Boole (1815-1864) tenham sido direta ou indireta-mente influenciados por Leibniz.

O filósofo alemão tinha como meta construir uma linguagem uni-versal (esta já havia surgido com Descartes (1596-1650) com o nome de Matemática Universal). A procura de uma linguagem universal, que substituísse o latim, foi uma tarefa empreendida por muitas pessoas no século XIX. Peano, por exemplo, trabalhou muito com a Interlíngua, motivado provavelmente por Leibniz. Esta meta foi perseguida tam-bém por Frege (1848-1925), no século XX, que repercutiu nas lingua-gens Loglan e na linguagem de computadores Prolog. Além da busca da linguagem universal, Leibniz propôs um Calculus ratiocinator, ou seja, um cálculo para raciocinar. Para isto, é claro, era necessário o estabelecimento de um simbolismo apropriado. O cálculo simbólico de Leibniz foi motivado pelo fato de que muitos conceitos eram compos-tos, eles eram coleções ou conjunções de outros conceitos mais sim-ples. A simbologia de Leibniz incluía letras, linhas e círculos, que eram usados para representar conceitos e suas relações. É por este motivo que sua lógica é chamada intensional, e não extensional, já que seus ter-mos representam propriedades ou conceitos em lugar de objetos que têm estas propriedades. O que Leibniz simbolizava por A B, podemos escrever em notação moderna como A = B, isso significava que todos

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os con- ceitos compondo o conceito A também estavam no conceito B e vice-versa. Outro exemplo que pode ser citado é a sua notação A B C, para indicar que o conceito em A e aquele em B constituem totalmente o conceito em C. Isto pode ser escrito, com a notação atual, da seguin-te forma: A + B = C ou A B = C. É preciso lembrar que A, B e C re-presentam os conceitos ou propriedades e não os objetos individuais. Além disso, Leibniz usou também a justaposição dos símbolos dos termos da seguinte maneira: AB C, que se pode escrever, moderna-mente, como A × B = C ou A B = C.

Em 1685, Jakob Bernoulli (1654-1705) publicou um artigo estabele-cendo uma comparação entre a lógica e a álgebra. Este é um trabalho interessante para a época.

No século XVIII, os nomes que se destacaram na área foram: Plou-c-quet (1716-1790), Lambert e Euler (1707-1783). O primeiro usou em seu cálculo simbólico o símbolo > para indicar conceitos que são disjuntos, isto é, que não têm propriedades comuns. As letras maiús-culas eram usadas para distribuir termos, e os símbolos + e x usados, respectivamente para a intersecção e a união. Para a negação ele em-pregou a notação A, que significava todos os não-A. O maior lógico do século XVIII foi Lambert com o trabalho Seis tentativas de um método simbólico para a teoria da razão, em 1777, no qual apresentou um interes-sante tratamento simbólico do cálculo. Euler utilizou diagramas em círculos muito parecidos com os modernos diagramas de Venn, nas Cartas para uma princesa alemã, que escreveu entre 1768 e 1774.

No século XIX, os dois britânicos que mais contribuíram para o desenvolvimento da lógica foram Boole e De Morgan (1806-1871). Boole publicou dois grandes trabalhos: A Análise Matemática da Lógica em 1847 e Uma investigação das leis do Pensamento, em 1854. Ele usou letras maiús-culas para representar as extensões dos termos, e as refe-ria como classes de coisas (não no mesmo sentido, mais tarde, empre-gado por Cantor). À classe universal ou termo , ele chamou de o Uni-verso, e representou pelo símbolo 1, e utilizou o símbolo 0 para a clas-se vazia. As notações que se seguem são todas devidas a Boole: “AB” para representar a intersecção; “A+B” para representar a união disjun-ta (elementos que estão em A ou B); ? A para representar algum ele-mento de A. Incluiu também as seguintes equações:

1A = A A+ 0 = A AA=A AB =BA A(B+C)= AB + AC 0A = 0 A+ 1 = 1 A+B=B+A (AB)C= A(BC) A+(BC)=(A+B) (A+C)

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Boole fez uma apresentação sistemática, mas não axiomática. Ele aspirava a construir uma lógica como uma ciência normativa do raciocí-nio. Augustus De Morgan (1806-1871) deu um passo à frente, desco-brindo a lógica das relações e foi o primeiro a usar o termo Lógica Ma-temática para distinguir da lógica filosófica.

Posteriormente, modificações do trabalho de Boole foram feitas por Pierce e Jevons (1835-1882). Pierce, seguindo a tradição de Boole, considerava que a lógica formal nada mais era do que a aplicação da Matemática à Lógica. Pierce e Frege foram os responsáveis pela intro-dução das variáveis e dos quantificadores. Foi Jevons que , em 1864, ampliou o sentido das operações de união e intersecção, estendendo-as para quaisquer x e y.

Outras importantes contribuições para o avanço da lógica simbóli-ca vieram da escola italiana: Burali-Forti (1861-1931), Pieri e Peadoa. Os trabalhos desta escola caracterizam-se pelo uso sistemático do sim-bolismo ideográfico.

Peano (1858-1932) nasceu numa pequena aldeia no Norte da Itália. Estudou na Universidade de Turim e lá posteriormente foi docente. Atuou como professor também na Academia Real Militar e dedicou suas principais pesquisas às áreas de Análise, à Lógica e aos Funda-mentos da Aritmética (são muito conhecidos seus axiomas para a cons-trução dos números naturais) e à da Geometria. Gastou muita energia tentando alcançar uma linguagem formal para a lógica matemática, assim como mais tarde o fez Russell. Em 1889, ele apresentou um im-portante trabalho intitulado Arithmetices principia, nova methodo exposita, no qual conseguiu, segundo suas palavras, alcançar uma análise com-pleta das operações da lógica, reduzidas a um número muito limitado de símbolos, que ele designou como:

? ? = ? ? ˜ ?

Considerando que K é uma classe, ele explicou o significado destes símbolos da seguinte maneira:

“Se a está em K; x ? a significa que x está em a”. “Se p e q são sentenças, as quais contêm as letras variáveis x,....z; a

fórmula p ? x,... zq significa que ‘x,...z, que podem ter valores quais-quer, se elas satisfazem a condição p então elas devem satisfazer a condição q’.”

“pq designa a colocação simultânea das sentenças p e q”. “Se a e b têm um significado dado, designamos a ? b , a totalidade

de indivíduos, os quais pertencem a cada classe c, na qual ambas as classes estão contidas”.

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“Se a e b são membros de K, com o símbolo a ? b , ou simplesmen-te com ab, significa que as coisas estão ao mesmo tempo em a e b”.

“O símbolo ? entre duas classes significa a classe vazia, isto é, a-quela que não possui nenhum elemento”.

Sob o símbolo “-a” entendemos a totalidade dos x, os quais per-tencem à classe b, e que junto com a formam o todo.

Para o sinal de igualdade, Peano acrescentou discussões mais am-plas. Para maiores detalhes ver Arbeiten zur Analysis und mathematischen Logik, citado na bibliografia.

Na conclusão deste artigo, o autor afirma ter apresentado as defi-nições simbólicas de todos os sinais que surgem na lógica matemática, os quais ele designou como conceitos primitivos ou conceitos funda-mentais. Todavia, chamou a atenção para o fato de que, nesta área, há ainda muito trabalho a ser feito.

Outra contribuição significativa, para o desenvolvimento da lógica simbólica, foi dada pelo alemão Frege (1848-1925) que quis mostrar que toda a Matemática pode ser reduzida a princípios lógicos. Na sua obra de 1893, intitulada Grudlagen der Arithmetik (Fundamentos da A-ritmética) ele afirmou que esperava “ter tornado verossímil, neste escrito, que as leis aritméticas são juízos analíticos e, por conseguinte, que são a priori. Nesta base, a Aritmética não seria mais que uma Lógi-ca mais desenvolvida, e cada proposição aritmética não seria senão uma lei lógica, mesmo se derivada” (Frege, 1922:99). Frege incorporou à Lógica a Teoria dos Conjuntos.

O trabalho de Frege não teve muito reconhecimento na Alemanha, mas na Inglaterra teve grandes repercussões. Russell e Whitehead, no trabalho que desenvolveram querendo provar a hipótese de Frege, criaram uma nova corrente da filosofia da matemática conhecida por Logicismo. Só no final de sua vida, Frege reconheceu a impossibilida-de de reduzir a Aritmética à lógica e tentou empreender o projeto de reduzi-la à Geometria, tarefa que não conseguiu realizar.

Russell encontrou Peano em 1900 por ocasião do Congresso Inter-nacional de Matemática em Paris e tomou conhecimento de seu traba-lho. A partir de então, adotou grande parte da notação de Peano.

Em 1910, no prefácio do primeiro volume do Principia Mathematica, os autores previnem que seguiriam tanto quanto possível o simbolis-mo de Peano, mas quando necessário este seria substituído pelo de Frege ou Schröder (1841-1902). A seguir apresenta-se um pequeno quadro ilustrativo das notações utilizadas no Principia:

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letras minúsculas para variáveis (excepto p e q)

letras maiúsculas para constantes

as letras p, q, r usadas para pro-posições variáveis

as letras f, g,.. para funções variáveis

~p significa a negação de p

p ? q significa que ao menos p ou q é verdade

p.q significa que p e q são verdades

p ? q significa p implica q

p ? q significa que p implica q e q implica em p

(x)..fx significa que é verdade

( ? x ).? x signifi-ca que existe um x para o qual ? x é verdade

? x .~fx significa que não existe x para o qual fx é verdade

Para Russell, a Matemática era uma ciência dedutiva e ele procu-rou em sua obra Principia Mathematica estabelecer os princípios formais para a sua construção. Estabeleceu cinco: 1) “p ou q” implica p, isto é, ou p é verdadeira ou q é verdadeira, então p é verdadeira; 2) q impli-ca “p ou q”, isto é, a disjunção de “p ou q” é verdadeira quando uma de suas alternativas é verdadeira; 3) “p ou q’ implica “q ou p”; 4) se ou p é verdadeira ou “q ou r” é verdadeira então q é verdadeira ou “p ou r” é verdadeira; 5) se q implica r, então “p ou q” implica “p ou r”. Es-tes foram os princípios de dedução que utilizou em sua obra.

Russell aspirava a alcançar através do uso dos símbolos, expres-sões matemáticas mais precisas. Além disso, buscava resolver, com a teoria dos tipos, todos os paradoxos da Teoria dos Conjuntos.

Embora Russell não tenha conseguido atingir seus objetivos, como mostrou mais tarde Gödel, o alcance e a importância de sua obra con-tinuam a merecer estudos aprofundados como os que realiza atual-mente Grattann-Guinness.

As maneiras matemáticas de raciocinar estão baseadas no princípio lógico de que qualquer afirmação matemática é ou verdadeira ou fal-sa, isto é, que tem dois valores lógicos. Este princípio também foi uti-lizado por Russell.

Os raciocínios com o senso comum levam à incerteza, particular-mente sobre as afirmações concernentes ao futuro. A idéia de que há afirmações que não são nem verdadeiras nem falsas levou Lukasie-wiczs (1920) à formulação de seu cálculo proposicional com três valo-res, e mais tarde com m-valores, e mesmo generalizações para incon-táveis valores (Lukasiewiczs e Tarski em 1930). Independentemente de Lukasiewiczs, Post, em 1921, introduziu um cálculo proposicional de m-valores. Todos esses cálculos não foram construídos como sis-temas axiomáticos formalizados, mas sim por meio do método de ta-belas verdades. A partir daí, surgiram muitas lógicas multivaloradas.

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A construção de lógicas multivaloradas foi uma das maiores des-cobertas lógicas do século XX. O interessante trabalho de Lukasiew-cizs motivou o surgimento de outras lógicas, como por exemplo a ló-gica paraconsistente do brasileiro Newton da Costa e a Lógica Fuzzy (lógica difusa) de Zadeh que introduziu os conjuntos e as medidas difusas para representar a subjetividade.

Tanto os matemáticos quanto os filósofos utilizaram raciocínios envolvendo conjuntos, de maneira mais ou menos consciente; mas na história da evolução deste conceito é preciso separar seu uso intuitivo do seu uso formal. Já no final do século XIX, não havia mais dificulda-des em se falar em conjunto que apresentasse uma certa propriedade dada. Para Cantor, o conjunto era um agrupamento em um todo de objetos bem-distintos de nossa intuição e do nosso pensamento. Fo-ram as necessidades oriundas da Análise, particularmente, da teoria das funções de variável real, que exigiram o surgimento da moderna teoria dos conjuntos.

Bolzano estava preocupado em entender o conceito de infinito, quando em 1851 estabeleceu a idéia de conjuntos arbitrários. Para ele, o infinito podia ser interpretado como uma qualidade de conjuntos.

“Embora o todo ou a totalidade ‘Inbegriff’ compreenda as mesmas partes A, B, C, D,..., estas podem representar diferenças. Por exemplo, um vidro inteiro e um pedaço de vidro quebrado podem ser considerados como um copo. Por causa dessas diferenças que a totalidade se compõe, nós nome-amos o tipo de ligação ou disposição de suas partes. Uma totalidade na qual está subordinada uma tal idéia, e na qual é indiferente a disposição ou ordenação das partes , eu denomino um conjunto ‘Menge’.” (Bolzano, 1851, p. 4)

Observamos aqui, que Bolzano usou diferentes palavras para a i-déia de conjunto: “Inbegriff” e “Menge” (em língua alemã). É bom ressaltar que vários autores, como Peano, Frege, Bolzano e Cantor estavam usando diferentes palavras para identificar o mesmo objeto, ou seja, o conjunto como hoje o entendemos. Os alemães utilizaram as palavras Mannifaltigkeit (Multiplicidades), Inbegriff (totalidade), Klassen (Classe), Menge (Conjunto). Mas, foi Cantor que tornou popular a pa-lavra Menge, que passou a ser traduzida como set (em inglês), ensemble (em francês) e conjunto em português.

Bolzano definiu neste trabalho a idéia de equipotência de dois conjuntos. Mostrou que dois intervalos compactos em ? (não-unitários) são eqüipotentes. Todavia, Bolzano fracassou nas suas ten-tativas para formar conjuntos infinitos de potências superiores e vol-

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tou sua atenção para outros assuntos, como por exemplo, as séries divergentes.

Cantor (1845-1918), inspirado por Riemann, apresentou em seus primeiros trabalhos uma classificação dos conjuntos. Assim como Bol-zano, ele estava interessado no problema do infinito e precisou para isso introduzir o conceito de conjunto de uma forma mais geral e mais formalizada, de como era empregada até então. De maneira informal, a palavra conjunto já era utilizada desde os gregos, e também na lin-guagem usual: conjunto de trilhos de trem, conjunto de pássaros, con-junto de objetos quaisquer, etc.

Com o objetivo de definir os números reais, Cantor começou a se interessar por equipotência de conjuntos e foi ainda mais inovador quando se interessou por não-eqüivalências. Em 1874, outro problema lhe chamou a atenção – a dimensão. Procurou em vão estabelecer uma correspondência biunívoca entre ? e ? n , para n>1. Conseguiu, neste ano, mostrar não apenas a existência de conjuntos infinitos de distin-tas e diferentes magnitudes. Ele conseguiu mostrar que o conjunto dos números algébricos era enumerável e possuía, portanto, a mesma car-dinalidade que os naturais. Para este número, ele deu o nome de ( ? 0 – alephzero). Estava iniciada, assim, a construção de um novo tipo de números – os números transfinitos, onde ? 0 era o menor deles. Toda-via, percebeu que o conjunto dos números irracionais transcendentes possuía cardinal muito maior do que o conjunto dos números algébri-cos e que era, portanto, impossível estabelecer uma correspondência 1 a 1 com o conjunto dos números naturais. Para este novo número, ele deu o nome de c (continuum). A partir daí, várias questões surgiram. Existe algum número entre ? 0 e c? Existe algum número maior do que c? Cantor não soube responder à primeira pergunta, mas ele sus-peitava que entre ? 0 e c não existia nenhum outro número transfinito. Isso conhecido como a hipótese do contínuo. Só recentemente foi de-monstrado que Cantor estava certo. A próxima tarefa era criar uma aritmé-tica para esses números. Ele criou uma aritmética para os nú-me- ros transfinitos e mostrou que o conjunto dos números transfinitos é infinito.

Entre 1879 e 1884 foram publicados importantes artigos de Cantor. O primeiro deles publicado no “Journal de Crelle” apresentava a im-portante definição de potência de conjuntos: “Dois conjuntos têm a mesma potência se for possível uma correspondência um a um entre seus respectivos elementos”. (Cantor, p. 69)

A maior contribuição do Grundlagen einer allgemeinen Mannigfaltig-keitslehre de Cantor, em 1883, foi a apresentação dos números transfini-tos como uma extensão sistemática e autônoma dos números naturais. Até então, os matemáticos estavam acostumados a tratar o infinito

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como uma variável, que crescia acima de qualquer limite ou decrescia para infinitésimos arbitrários. Tanto Cauchy como Gauss pensavam em termos de infinito como limite de algum valor que cresce indefini-damente, mas que não é um número.

O surgimento dos paradoxos, na teoria intuitiva dos conjuntos de Cantor, por exemplo, o paradoxo de Russell de 1903, implicou a neces-sidade de se construírem teorias matemáticas axiomatizadas. O pri-meiro sistema axiomático para a teoria dos conjuntos foi proposto por Zermelo, em 1908, depois por Frankel em 1922 e por Bernays em 1937. Entretanto, o método axiomático não excluía o aparecimento de novos paradoxos. Isto inspirou a introdução de uma precisão ainda maior na construção de teorias matemáticas, levando ao conceito de uma teoria formalizada, mais ou menos no sentido da escola formalista de Hil-bert.

Além de uma teoria dos conjuntos abstratos, surgiu a partir dos trabalhos de Henri Lebesgue (1902) e das investigações de Borel (1912) uma teoria métrica dos conjuntos, que serviu de base para a teoria da integração. Também se dedicaram a teoria geral da medida os matemáticos Caratheodory e Hausdorff, entre outros. Frechèt (1906) e Hausdorff (1914) em suas investigações sobre a conexidade, introduzida por Cantor, desenvolveram a topologia dos conjuntos. A teoria dos conjuntos influenciou profundamente o desenvolvimento da Matemática no início do século XX, servindo de base à teoria das funções de va-riável real, topologia, álgebra, teoria dos grupos e aná-lise funcional.

Em 1939, surgiu o primeiro volume de uma extensa obra do grupo Bourbaki. 1 O primeiro volume tratou amplamente da teoria dos con-juntos, com uma linguagem rigorosa. A intenção da obra era enfatizar o conceito de estrutura para propociornar uma grande economia de pensamento. Ou dito com outras palavras, encorajar o aluno a substi-tuir os cálculos por idéias. Dois nomes importantes do grupo Bourba-ki: André Weil e Jean Dieudonné estiveram na Universidade de São Paulo. O primeiro esteve em 1945, na mesma época que Zariski e o segundo entre 1946 e 1947 (ver trabalho Ubiratan D’Ambrosio a ser publicado).

Introdução da Lógica Simbólica no Brasil

1 Bourbaki é um nome dado a um grupo de matemáticos, franceses em sua maioria, que forma-

ram uma espécie de sociedade anônima e juntos escreveram uma longa obra matemática que in-fluenciou profundamente o ensino da Matemática, a partir da década de 60, deste século.

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Nos livros-textos de Matemática, escritos no Brasil, no século XIX, por nós examinados, não há qualquer referência à existência de uma Lógica Simbólica. Alguns princípios da Lógica Clássica, como por e-xemplo, a idéia de axioma, teorema e método dedutivo, aparecem em várias obras, como a de Aragão2 Elementos de Matemática, em 1858; Aarão3 Curso elementar de Matemática (Teórico , prático e aplicado; 3ª edição de 1910), entre outros. Provavelmente, a primeira referência, no Brasil, à existência de uma lógica simbólica só tenha ocorrido no século XX.

O inglês Jevons foi um autor de Lógica muito popular no século XIX, escrevendo livros para diferentes níveis de leitores. Em 1869, fez uma previsão quanto à introdução da lógica simbólica nos programas de ensino: “Temo que transcurrirán muchos años antes que el viejo silogismo sea desplazado y que se introducan símbolos como los pro-puestos por Boole en los programas ordinarios de enseñanza” (Grat-tan-Guinness, 1991, p. 358). Pelo menos no que se refere ao Brasil, Jevons acertou. As novas idéias sobre lógica simbólica só começaram a surgir, no século XX, e mesmo assim de forma muito lenta e para um grupo muito restrito.

Manuel Amoroso Costa (1885-1928) nasceu em 1885 no Rio de Ja-neiro e com quinze anos de idade ingressou na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde bacharelou-se em ciências físicas e matemáticas, e engenharia civil e onde foi mais tarde docente. Recebeu uma influên-cia forte de Otto de Alencar Silva (1874-1912), de quem foi aluno. Foi talvez um dos primeiros brasileiros a se interessar pela Filosofia da Matemática. Permaneceu aproximadamente três anos em Paris,4 fre-qüentando a Faculdade de Letras de Paris, onde teve a oportunidade de ser aluno de Abel Rey, Leon Brunschwicg e Andoyer. Por influên-cia de Abel Rey, historiador da ciência, concebeu o projeto de escrever uma história da filosofia matemática, mas não concluiu o trabalho, e documentos inéditos são mantidos pela família. Foi um divulgador das idéias de Brunschwicg, no Brasil, publicando artigos em que anali-sou as idéias do historiador das ciências. Um capítulo de seu livro é dedicado à análise da obra As Etapas da Filosofia Matemática.

Outros matemáticos que tiveram papel importante na formação de Amoroso Costa foram Poincaré e Borel. Faziam parte do grupo de intelectuais contemporâneos de Amoroso Costa os professores Lélio Gama (1892-1981), Teodoro Ramos (1895-1935) e Felipe Santos. Eles

2 Antonio Muniz de Aragão (1813-1887) estudou em Paris, onde conheceu Comte. No Brasil,

iniciou a divulgação das idéias positivistas no livro-texto de Matemática para o ensino secun-dário.

3 Aarão Reis foi professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. 4 Permaneceu em Paris de maio de 1921 a dezembro de 1921 e de agosto de 1923 a fevereiro de

1925.

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Filosofia, Lógica e Existência / 151

foram sem dúvida responsáveis por fortes das discussões filosóficas e científicas da época, que culminaram com a criação da Academia Brasi-leira de Ciências, fundada em 1916. Amoroso Costa escreveu além de inúmeros artigos sobre Filosofia das Ciência, Astronomia, Matemática e Física, a primeira obra sobre Filosofia da Matemática, no Brasil. Morreu tragicamente num acidente aéreo em 1928, deixando uma la-cuna na área que ele começava a divulgar no Brasil – a Filosofia da Matemática.

Amoroso Costa soube avaliar muito bem o alcance da lógica sim-bólica, mas o rigor da formulação de Russell lhe pareceu excessivo e atreveu-se a prever que a maioria dos textos matemáticos não utiliza-ria essa escrita tão rigorosa, com o que concordamos:

“Convém aqui observar que o requinte de rigor da lógica simbólica é so-bretudo útil quando se tem em vista aprofundar a análise da estrutura matemática. A grande maioria dos trabalhos sobre essa ciência continua-rá a ser escrita na forma semi-rigorosa a que estamos habituados , sem que em geral se sofra com isso a exatidão dos resultados obtidos. Nessa forma semi-rigorosa, há de fato o apelo constante a princípios lógicos que tanto o autor como o leitor subentendem por hábito.” (Costa, 1929, p. 216)

Encontramos na obra de Manuel Amoroso Costa intitulada As idéi-as fundamentais da Matemática,5 editada em 1929, um capítulo dedicado a este tema. Amoroso Costa apresentou uma breve resenha histórica dos desenvolvimentos da Lógica Simbólica, creditando sua origem a Leibniz:

“Duas idéias principais dominam os estudos que ele consagrou a estes assuntos: a de uma característica universal, linguagem simbólica desti-nada a traduzir o sistema dos conhecimentos científicos por meio de um código de sinais representando as noções elementares; a de um cálculo lógico, operando sobre os sistemas expressos por essa ideografia de mo-do a reduzir o trabalho e o raciocínio dedutivo a simples transformações de fórmulas.” (Costa, 1929, p. 205)

5 As idéias fundamentais da Matemática estão divididas em 19 capítulos, abrangendo

temas atuais da Matemática tais como: 1) a descoberta e a demonstração; 2) definição e demonstração; 3) as noções e proposições primitivas; 4) a estrutura da dedução ma-temática; 5) a lógica simbólica e a matemática; 6) a evolução histórica da noção de número; 7) as noções de conjunto, correspondência e número cardeal; 8) a generaliza-ção algébrica da noção de número; 9) as noções de ordem e continuidade; 10) os núme-ros transfinitos; 11) as noções de variável e de limite; 12) as noções de função e de deri-vada; 13) as noções de integral e de diferencial; 14) as funções variáveis complexas; 15) a noção de grupo; 16) os princípios da geometria euclidiana ; 17) geometrias não-euclidianas e não-arquimedianas; 18) a noção de dimensionalidade; 19) Matemática pura e Matemática aplicada.

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/ No paraíso dos símbolos: surgimento da lógica e teoria dos conjuntos no Brasil 152

Utilizou diferentes qualificativos para a lógica,6 entre os quais des-taca-se: lógica clássica, lógica formal, lógica simbólica, lógica matemá-tica e álgebra da lógica.

Segundo seu entendimento, na lógica clássica o raciocínio dedutivo se reduz ao silogicismo, extraindo o particular do geral. Por sua vez, a lógica formal é uma espécie de mecanismo algébrico, enquanto a álgebra da lógica consiste numa teoria das classes nas suas relações de identi-dade de inclusão. O fundamento da lógica matemática seria o cálculo das proposições. O termo lógica simbólica foi usado em sentido amplo, creditando a origem a Leibniz e o apogeu a Whitehead e a Russell: “Pela riqueza dos seus conceitos primitivos e pelo emprego de uma notação ideográfica que é uma garantia de rigor, a lógica simbólica fornece um instrumento perfeitamente adequado à análise dos princí-pios da matemática”. (Costa, 1929, p. 214)

Amoroso Costa faz referência à obra Principia Mathematica de Whi-tehead e Russell, a qual foi publicada em três volumes entre os anos de 1910 e 1913. Extremamente impressionado com o simbolismo ideo-gráfico e com as raras utilizações da linguagem vulgar nos textos dos autores ingleses, o nosso autor - divulgador das novas idéias - procu-rou dar uma visão geral da obra antes referida. Inicia com a apresen-tação do cálculo das proposições, introduzindo seis idéias: proposição elementar, função proposicional elementar, asserção de uma proposi-ção, negação de uma proposição, disjunção ou soma lógica de duas proposições (a expressão p ? q significa a alternativa ou p é verdadei-ra ou q é verdadeira) e algumas definições: 1) implicação entre duas proposições, com a seguinte notação p ? q. =.~ p ? q ; 2) produto lógi-co, com a seguinte notação pq. =.~ (~ p ? ~ q) ; 3) equivalência materi-al duas proposições, com a seguinte notação p ? q.?. p ? q.q ? p .

Após a apresentação das noções primitivas e derivadas, seguem-se dez postulados que, segundo os lógicos ingleses, compõem as leis da lógica dedutiva e apresentam os conceitos de classes e relações. “Para exprimir que x é membro de uma classe a, emprega-se a notação de Peano x ? a ; ? representa a relação pertence a”. (Costa, 1929, p. 212)

Costa aborda, também, as propriedades formais das relações, tais como a simétrica, não-simétrica, assimétrica, transitiva, não-transitiva e intransitiva. Nada afirma, porém, sobre a propriedade reflexiva.

Estranhamente, não se encontra no texto de Amoroso Costa qual-quer referência ao cálculo quantificacional. Leibniz parece ter tido dificuldades para tratar do quantificacional e das proposições negati-vas. Mas, nosso divulgador brasileiro da Lógica foi extremamente

6 Para um maior aprofundamento sobre a terminologia lógica simbólica, lógica formal,

etc., ver o interessante artigo de Grattan-Guinness intitulado Pierce: entre a lógica y las matemáticas.

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Filosofia, Lógica e Existência / 153

feliz com a avaliação que fez do logicismo de Russell e Whitehead, sendo muito precavido nas afirmações que fez. Segundo ele, a escola inglesa procurava demonstrar que toda a matemática pura se funda-mentava sobre as idéias lógicas, mas:

“Seria temerário afirmar que ela executou integralmente e impecavelmen-te o seu programa, ou mesmo que o programa seja exeqüível. A lógica simbólica atual nos parecerá algum dia tão estreita como nós já hoje con-sideramos a lógica clássica. E quando mesmo toda a nossa matemática atual se possa exprimir em ternos de um sistema de noções primitivas, nada prova que o seu desenvolvimento ulterior dispense a adjunção de novas noções primitivas.” (Costa, 1929, p. 216)

Nesta época ainda não eram conhecidos os resultados de Gödel que viriam fazer ruir as pretensões dos logicistas e formalistas em tentar reduzir toda a Matemática à Lógica. Mesmo tendendo mais para o intuicionismo de Poincaré, Amoroso Costa soube reconhecer a importância da lógica formal para o desenvolvimento do pensamento matemático:

“Se o simbolismo por si só não conduz à descoberta , em compensação torna as demonstrações mais rigorosas, suprime o enunciado de condi-ções supérfluas, e exige que sejam explicitamente formuladas as condi-ções necessárias, que tantas vezes se admitem tacitamente nos raciocí-nios pouco precisos.” (Costa, 1929, p. 204)

Desde a publicação em 1928 do livro de Amoroso Costa até o sur-gimento do primeiro livro-texto de lógica moderna transcorreram vários anos. Em 1940, foi publicada a obra de Vicente Ferreira da Silva intitulada Elementos de Lógica Matemática. Isto ocorreu depois da vinda ao Brasil do lógico Quine, que publicou em língua portuguesa, em 1944, a obra O sentido da nova lógica. A partir da década de 60 surgem os livros de Lógica simbólica de Leônidas Hegenberg.

Em 1973, por ocasião do 9º Colóquio de Matemática, em Poços de Caldas, cidade do interior de Minas Gerais, surge o texto de Jacob Zimbarg intitulado Introdução à Lógica Matemática. Neste, o autor já apresenta o teorema de Gödel-Henkin-Malcev e os teoremas de in-completude. O autor opta por tratar a lógica como um ramo da Mate-mática, em lugar de concebê-la como a disciplina que fundamenta a Matemática. Está muito preocupado com as questões de consistência da Matemática.

“A idéia de consistência desempenha em Matemática um papel básico. Apesar de terem sido desenvolvidos sistemas lógicos interessantes nos quais contradições são permitidas (Vasiliev, Jaskovski, da Costa , Raggio e outros), tradicionalmente, os matemáticos partem implicita ou explici-tamente, da hipótese da não-contradição.” (Zibmarg, 1973, p. vi)

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Os temas escolhidos pelo autor incluem, entre outros, o teorema da compacidade, a definição de verdade segundo Tarski, a forma fra-ca do teorema da completude, eliminação de quantificadores, aritme-tização da linguagem, a indefinibilidade das noções de verdade e de incompletude da aritmética de Peano.

Um nome que despontou no panorama da Lógica Matemática, no Brasil, foi o de Newton da Costa. Ficou conhecido através de seus trabalhos sobre lógica paraconsistente publicados no país e em revis-tas internacionais.7

A lógica paraconsistente é um tipo de lógica formal que pertence ao grupo das lógicas não-clássicas. Estas, por sua vez, são de duas espé-cies: 1) aquelas que são sistemas lógicos complementares à lógica clássica e 2) aquelas que são formuladas como uma alternativa ao sis-tema lógico clássico. Newton da Costa chegou à conclusão de que a lógica não é nem única nem absoluta. A lógica como um instrumento da ciência não pode ser imutável. Portanto, a existência de lógicas não-clássicas justifica-se não apenas pragmaticamente, mas também do ponto de vista filosófico é razoável que assim seja.

Uma breve caracterização da Lógica paraconsistente de Newton da Costa pode ser obtida através da leitura do artigo intitulado: The Philosophical Import of Paraconsistent Logic de Newton da Costa de 1981.

“Let us suppose that the underlying language of a deductive theory T contains a symbol for negation. T is said to be inconsistent if, and only if, T has two theorems one of which is the negation of the other; otherwise, T is called consistent. T is said to be trivial if, and only if, all formulas (or all sentences) of the language of T are also theorems of T; otherwise, we call T non-trivial.[...] Rougly speaking, a system of logic is paraconsistent if it can be employed as the underlying logic of incosistent but non trivial theories.” (Da Costa, 1981, p. 7)

Newton da Costa é um pesquisador da Lógica muito atuante, re-conhecido nacional e internacionalmente. Seus trabalhos mais recentes tratam da lógica indutiva. A lógica indutiva utiliza uma implicação probabilística: Se p então provavelmente q. Para um maior aprofunda-mento sobre o trabalho do lógico brasileiro mais conhecido no meio acadêmico, consulte as referências bibliográficas.

4 – Introdução da Teoria dos Conjuntos no Brasil

Em 1954 por ocasião do Segundo Symposium Sobre Alguns Problemas Matemáticos, na Argentina, Julio Rey Pastor apresentou um panorama 7 De 1958 a 1982 Newton da Costa publicou mais de quarenta trabalhos, principalmen-

te, em revistas estrangeiras.

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da Matemática Moderna na América Latina. Sua análise sobre o de-senvolvimento da Matemática nos países de língua espanhola e portu-guesa nas Américas, permitiu-lhe afirmar que:

“No hay quizá ninguna teoría de la inmensa ciencia Matemática de hoy que sea completamente ignorada por nuestra gran hermandad de tronco ibérico; pero tampouco hay ninguna teoría que cuente con bastantes a-deptos de alta jerarquía, para llenar una mesa redonda colocada a nivel elevado.” (Pastor, 1954, p. 11)

Uma breve introdução à teoria dos conjuntos já se encontra pre-sente na obra de Amoroso Costa de 1929, antes referida. Conceitos tais como conjunto, pertinência, relação de inclusão, conjuntos iguais, relação de correspondência, correspondência um a um, número carde-al, relação de ordem, conjuntos finitos e conjuntos infinitos. Nada é comentado sobre as operações de união e intersecção de conjuntos.

É interessante observar que Amoroso Costa, ao apresentar a no-ção de conjunto, fez uma associação com a Lógica, afirmando que “a noção de Matemática de conjunto se confunde com a noção lógica de classe”, e ainda que esta idéia é muito intuitiva, não sendo necessário defini-la, mas apenas precisar o sentido em que ela é empregada. Des-ta forma “um conjunto fica determinado quando se formula uma con-dição que cada entidade, no universo das coisas consideradas, deve satisfazer ou deixar de satisfazer”. O autor introduziu de forma meio-camuflada o conceito de conjunto universo, admitindo em sua teoria a necessidade de existência de um conjunto universo.

Um assunto que mereceu muita reflexão por parte de nosso autor é o que diz respeito aos números transfinitos de Cantor. Creio que esta seja a primeira referência, no Brasil, aos números transfinitos, que tanta polêmica gerou entre os matemáticos europeus.

“A concepção dos números transfinitos , apresentada por G. Cantor em 1883, provocou desde o seu aparecimento numerosas controvérsias, e até hoje não foram inteiramente resolvidas certas dúvidas a que ela dá lugar. Quer nos parecer, entretanto, que essa concepção não se reduz a um jogo ilusório da imaginação matemática, e que as dificuldades encontradas, como tantas vezes aconteceu na evolução da idéia de número se desva-necerão um dia. A questão central, nas discussões sobre o transfinito, é a da existência ou não-existência do infinito atual.” (Costa, 1929, p. 251)

O texto de Amoroso Costa, além de divulgar as idéias cantorianas sobre o transfinito, apresenta uma análise aprofundada e muito refle-tida sobre os problemas que a teoria envolvia. Ele expôs em linhas muito gerais os principais aspectos da teoria dos transfinitos conforme Cantor. Iniciou definindo segmento fundamental: “denomina-se seg-mento fundamental, em uma dada seqüência, a toda a parte integrante

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C, pos-suindo as seguintes propriedades: 1) se x é um elemento qual-quer de C, todos os elementos que precedem x também precedem a C; 2) C não tem último elemento.” A partir daí, apresentou o conceito de conjunto bem-ordenado como aquele que satisfaz os seguintes axio-mas: 1) A seqüência tem primeiro elemento; 2) cada elemento, à exce-ção do último, tem sucessor imediato; 3) cada segmento fundamental admite um limite. É possível mostrar que se pode definir uma escala de conjuntos bem-ordenados, que fornece um critério de classificação. Os números ordinais de Cantor são os tipos de ordem dos conjuntos bem-ordenados. Fica assim introduzida a idéia de ordinal transfinito. O próximo conceito a introduzir é o de cardeal transfinito. Segundo o autor, os números cardeais dos conjuntos finitos são os cardeais fini-tos, e o número cardeal de um conjunto qualquer da segunda classe é a possança do enumerável, que é chamado o primeiro número cardeal transfinito ou o número No ( ? 0 - alephzero). Interessante é o que Cantor mostrou que , dado um conjunto qualquer é sempre possível construir um outro conjunto que possua um número cardeal superior ao primeiro, de forma a se obter uma seqüência crescente que se pro-longa transfinitamente. Amoroso Costa considerava que o conceito de transfinito de Cantor se constituia numa admirável extensão da noção de número. Todavia, não deixa de apontar as dificuldades lógicas presentes na construção de tais números. Novamente cita Russell co-mo aquele que tentou resolver as antinomias do transfinito com a hie-rarquia dos tipos lógicos.

Todo o texto de Amoroso Costa e a bibliografia citada deixam en-trever que ele estava muito bem informado a respeito das discussões sobre o tema dos números transfinitos (Burali-Forti: Una questione sui numeri transfiniti, em 1897; Russell: Principles of mathematics, 1903; Can-tor, 1895). Beitrage zur Begrundung der transfiniten Mengelehre.

É necessário salientar o trabalho de outro pioneiro brasileiro, tra-ta-se de Theodoro Augusto Ramos (1895-1935). Em 1918 defendeu sua tese intitulada Sobre as Funções de Variáveis Reais perante à Congregação da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. A atualização da tese é sur-preendente. O trabalho baseia-se em recentes resultados como: Bores, Leçons sur les fonctions de variables réelles (1912 e 1914); Egoroff (1912); Riezs (1912); Lebesgue , Leçons sur l’integration, Leçons sur les séries trigo-nometriques (1903 e 1917); Goursat, Cours d’Analyse (1917); Tannery, Introduction à la theorie des fonctions e Leçons d’Algèbre et d’Analyse; To-nelli; Frèchet; Baire, Leçons sur les théories générales de l’Analyse; Pinche-rie, Lezioni di Calcolo (1915); Berstein, Leçons sur les principes de l’Analyse 1913); Gomes Teixeira, entre outros. Theodoro Ramos introduziu a recente linguagem formulada por Lebesgue , sobre conjuntos fechados e medida de conjuntos. Abordou a continuidade uniforme , as deriva-

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das laterais, discutiu questões de diferenciabilidade, conjunto de me-dida nula, condição de Lipscjitz, funções somáveis e funções analíticas.

Merece destaque a sua abordagem sobre o conceito de função. Theodoro Ramos apresentou um breve histórico do conceito de fun-ção e colocou uma definição, por ele considerada como moderna. Tra-ta-se provavelmente da definição apresentada por Carathéodory em 1917 (Vorlesungen über reelle Funktionen), que, segundo Monna, apresen-ta a função como uma correspondência de um conjunto A para o con-junto dos números reais.

“A moderna noção de função real de variáveis reais é uma noção abstrata que repousa na idéia de correspondência entre os elementos do conjunto (X) dos valores das variáveis x1,.x2, ...., xn, e os elementos do conjunto (Y) dos valores da função y. Para lembrar esta correspondência escreve-se y= f(x1, x2,...., xn).” (Ramos, 1918, p. 16).

Theodoro Ramos se refere ao trabalho de Borel, de 1917, intitula-do Leçons sur les fonctions monogènes e não cita Carathéodory.

Lélio Gama (1892-1981), que atuou como docente de Matemática na Universidade do Distrito Federal, em 1935, foi um dos primeiros divulgadores da linguagem de conjuntos de Cantor, espaços abstratos e a formalização do grupo Bourbaki,8 no nosso país. Na opinião de Oliveira de Castro, foi Lélio Gama quem ministrou pela primeira vez, no Rio de Janeiro, um curso moderno sobre funções de variáveis reais, atraindo um grande público ouvinte. Outro tema importante que se tornou conhecido foram as séries numéricas, numa publicação de 1946.9 Esta é uma obra merecedora de análise.

Um livro-texto destinado exclusivamente à teoria dos conjuntos só surgiu em 1941: Introdução à Teoria dos Conjuntos de Lélio Gama, onde além das operações com conjuntos foram abordados o axioma de Zer-melo, espaços métricos, conexidade, espaços de estrutura esferoidal, multiplicação cartesiana, espaços regulares e espaços normais.

Nas noções preliminares da Teoria dos Conjuntos, Lélio Gama a-presentou a noção de conjunto sem definição, mas fez uma longa dis-cussão teórico-filosófica sobre esse importante conceito. Segundo o autor, um conjunto é considerado definido quando se conhece a con-dição necessária e suficiente para que um elemento pertença ao con-junto. Todavia, há autores que defendem a idéia de conjuntos ideal-mente definidos, ou seja, procura-se admitir a priori a possibilidade lógica de formulação de um critério de definição, embora não se possa

8 Sobre o assunto veja Ubiratan D’Ambrosio. In: Temas & Debates, n°4, ano VII, 1994. 9 Grande parte dos assuntos apresentados no livro havia sido exposta no curso de Aná-

lise Matemática que Lélio Gama ministrou na Universidade do Distrito Federal em 1935.

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enunciar esse critério. Em oposição aos conjuntos idealmente defini-dos, estariam os realmente definidos ou mencionáveis.

“Os matemáticos divergem quanto à aceitabilidade, como elemento do raciocínio matemático, de um conjunto idealmente definido. Os empiris-tas (Borel e Lebesgue) contestam ou põem em dúvida a existência de um conjunto, de que não se tenha formulado a norma de definição. Alguns empiristas (Borel e Lusin) vão mesmo ao ponto de exigir que a definição de um conjunto implique um modo de construção efetiva de seus elemen-tos. Para os idealistas, ao contrário (Hadamard, Sierpinski, R. L. Moore), a existência dos conjuntos não mencionáveis é perfeitamente legítima. Para Hadamard a diferença dos dois pontos de vista é apenas de ordem psicológica.” (Gama, 1941, p. 6)

Embora Lélio da Gama tenha definido conjunto vazio ou nulo co-mo um conjunto em que não exista nenhum objeto que verifique a sua definição, ele chama a atenção, em nota de rodapé , que seria mais preciso definir-se o conjunto nulo como sendo a classe de todos os conjuntos vazios. A apresentação rigorosa do conceito de conjunto vazio e universo não preocupava muito os autores brasileiros que es-tamos analisando. Ele não apresentou uma notação específica para o conjunto vazio.

A notação utilizada por Lélio da Gama difere um pouco daquela de Amoroso Costa. Para as operações elementares de união e intersec-ção de conjuntos utilizou os seguintes símbolos.

“Dado um conjunto, finito ou infinito, de conjuntos C, chama-se reunião dos conjuntos C, ao conjunto definido pelo seguinte critério: é elemento da reunião todo objeto que pertence a um, pelo menos, dos conjuntos C. Representa-se a reunião dos conjuntos C por _C. Quando os conjuntos são em número finito, por exemplo, A, B, C, emprega-se, também a nota-ção A +

.

B+.

C , ou qualquer das outras notações que desta se podem de-duzir permutando as letras. [...] Dado um conjunto finito ou infinito de conjuntos C, chama-se produto ou intersecção desses conjuntos ao con-junto dos elementos comuns a todos os conjuntos C. Representa-se o produto dos conjuntos C por ? C . No caso de uma sucessão de conjuntos A, B, C, ...empregam-se as notações A.B.C...., ABC, ou ainda qualquer das suas variantes obtidas por permutações das letras.” (Gama, 1941, p. 8 e 10)

A formulação de Lélio da Gama sobre conjuntos finitos e infinitos não difere muito daquela apresentada nos livros didáticos atuais de Análise. Um conjunto é finito, se é vazio ou se, não sendo vazio, existir um número natural n tal, que o conjunto seja eqüivalente10 ao conjunto dos núme-ros 1,2,3,...n. (Gama, 1941, p. 6)

10 Segundo Lélio da Gama: “Dois conjuntos A e B dizem-se (cardialmente) equivalentes ,

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De forma muito clara e rigorosa, o autor introduz os conceitos de continuum real (a propriedade de o conjunto dos números reais não ter lacunas e a de ser bem concatenado) e de continuum geométrico. Mostra a equivalência dos dois continuum e a determinação de um novo nú-mero cardinal para estes conjuntos. Além disso, enuncia um importan-te resultado de Cantor: “O conjunto dos pontos do plano; ou dos pon-tos da superfície de um polígono convexo; ou dos pontos do círculo – contornos completos ou incompletos – é equivalente ao continnum linear” (Gama, 1941, p. 27). Ainda apresenta uma extensão deste resul-tado, que afirma que o conjunto de pontos do espaço ou da esfera é equivalente ao continuum linear.

Conclui a abordagem dos números transfinitos, fazendo algumas observações sobre as dificuldades que surgem para aceitarmos estas idéias que fogem à nossa intuição:

“O mal-estar de nossa intuição ao verificarmos a possibilidade de estabe-lecer uma correspondência biunívoca entre os pontos de todo o espaço e os pontos de um segmento de reta, deve desaparecer no momento em que se demonstra que essa correspondência não é contínua. Quer isso dizer, no caso, por exemplo, da equivalência entre um quadrado e um segmen-to, que, fazendo-se o ponto a descrever o segmento, como se fosse um mó-vel, movendo-se sempre no mesmo sentido, o ponto correspondente a, não descreveria o quadrado movendo-se sobre o quadrado, mas, sim, a-penas, deslocando-se, aos saltos , de uma posição para outra. [...] Assim, o paradoxo que se apresenta na descoberta de Cantor provém de atribuir-mos, incons-cientemente, àquela espécie de ‘danse folle’ (imagem de Maurice Frechet) que o ponto executa sobre o quadrado. O paradoxo po-de ainda apresentar-se sob outro aspecto. Dizer que existe uma corres-pondência biunívoca entre todos os pontos de um segmento de reta , e-quivale, realmente, a afirmar na aritmética dos números transfinitos , que há tantos pontos no espaço como num segmento retilíneo, arbitrariamen-te pequeno. Se com isso sentimos ferida a nossa intuição, devemos atri-buí-lo a assimilarmos , inconscientemente, a igualdade de dois números transfinitos , à igualdade dos números de objetos de duas coleções fini-tas.” (Gama, 1941, p. 29)

Leopoldo Nachbin afirmava, em 1962, que a vinda, em 1945, de Andre Weil para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Uni-versidade de São Paulo (FFCLUSP), para um período de três anos de permanência no Brasil, mudou a faceta do ensino da Matemática em São Paulo. Essa mudança significou a introdução da Álgebra, Análise Funcional, Geometria Algébrica, Geometria Diferencial e Topologia no ensino da Matemática, tornando São Paulo o foco de irradiação de

se forem ambos vazios, ou se, não sendo vazios, existir uma correspondência biunívoca entre seus elementos.”

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novas idéias para outros pontos do país. São Paulo tomou o primeiro lugar, sendo seguido pelo Rio de Janeiro. Além de Weil, estiveram no Brasil outros matemáticos de primeira linha como Dieudonné, Oscar Zariski, Jean Delsarte, Alexandre Grothendieck, D. Murnagham, Kuo-Tsai Chen, Ruy Luiz Gomes, Mitio Nagumo, entre outros.

O terreno começara a ser preparado por nossos pioneiros: Amoro-so da Costa e Lélio Gama, no Rio de Janeiro, e pelos italianos Luigi Fan-tappi’e e Giacomo Albanese, em São Paulo. O próximo persona-gem a ingressar na nossa história é o português Antonio Monteiro.

Antônio Aniceto Ribeiro Monteiro (1907-1980)

Antonio Monteiro nasceu em Angola, em 30 de maio de 1907, e foi aluno do Colégio Militar em Lisboa. Seus estudos de graduação foram realizados na Universidade de Lisboa, onde obteve o título de licenci-atura em Ciências Matemáticas, em 1930. Como estudante já revelava talento para a pesquisa e publicou, nessa época, dois artigos nos Ar-quivos da Universidade de Lisboa. Com bolsa de estudos do Ministé-rio de Educação viajou para Paris, onde obteve o título de doutor em 1936, na Faculdade de Ciências de Paris. Fez seus estudos sob a orien-tação de Maurice Fréchet e defendeu a tese intitulada Sur l’additivité des noyaux de Fredholm. Um ano depois fundava, juntamente com ou-tros colegas, a Revista Portugaliae Matemáticae, que foi o primeiro peri-ódico dedicado exclusivamente a artigos de Matemática. Com a força que move os jovens empreendedores, em 1940, fundava uma segunda revista - a Gazeta de Matemática e fundava a Sociedade Portuguesa de Ma-temática, da qual foi durante os anos de 1941 e 1942 o seu primeiro secretário geral. Em 1943, fundou em parceria com Aureliano de Mira Fernandes e Rui Luis Gomes, a Junta de Investigação Matemática. No período de 1940 a 1943, dirigiu os trabalhos do Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa do I.A.C.

Segundo o professor Edgardo Fernandez Stacco , do Instituto de Matemátiva da Universidad Nacional del Sur , Bahia Blanca, Argenti-na, a vinda de Monteiro para o Brasil, em 1943, foi devida a motivos políticos – o brilhante matemático português, Antonio Monteiro esta-ria assim como outros (por exemplo, Ruy Luiz Gomes) fugindo da ditadura Salazarista.

Monteiro chegou ao Brasil recomendado por nomes de peso: Al-bert Einstein, J. von Neumann e Guido Beck e iniciou as suas ativida-des docentes na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Seu primeiro curso ministrado foi de Análise Superior e em seguida ingressou como pesquisador do Núcleo Técnico Científi-co de Matemática da Fundação Getúlio Vargas. O Núcleo foi fundado,

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em 1945, por iniciativa de Paulo de Assis Ribeiro. Entre as principais realizações de Monteiro, no Centro, está a criação da revista Summa Brasi- liensis Mathematicae.

Monteiro esteve no Brasil até 1950, e durante este tempo marcou sua presença com atividades importantes, influenciando um grande número de futuros matemáticos no Brasil como , por exemplo, Leopol-do Nachbin. Segundo Oliveira de Castro, Monteiro deu grande impul-so ao desenvolvimento da Matemática no Brasil, onde exerceu grande in-fluência (Castro, p. 65). Foi também membro fundador da Socieda-de Matemática de São Paulo. Em 1948, tendo como liderança Cesar Lates e apoio do ministro João Alberto Lins de Barros, criou-se o Cen-tro Brasileiro de Pesquisas Físicas, que passou a distribuir a Summa Brasiliensis Mathematicae e onde foi criado um departamento de Mate-mática, que substituiu o Núcleo da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Nesse Centro, foi criada uma boa biblioteca de Matemática e atuaram aí Antonio Monteiro. F.D. Murnaghan, Maurício Matos Peixoto, Maria Laura Mousinho, Paulo Ribenboim e Moema Sá Carvalho. Monteiro também foi membro do comitê editorial da revista Summa Brasiliensis Mathematicae. Em 1948, iniciou a publicação de Notas de Matemática, que dirigiu enquanto esteve no Brasil. Durante sua permanência na Universidade Federal do Rio de Janeiro, orientou Maria Laura Mousi-nho, num trabalho sobre reticulados projetivos. Esta foi a segunda tese em Matemática, escrita por uma brasileira. Maria Laura escreveu sob a orientação de Monteiro e defendeu sua tese perante uma banca de professores de Matemática da Universidade Nacional. A amizade entre orientador e aluna continuou por muitos anos e Maria Laura, seguindo os passos do mestre, tornou-se uma grande educadora da área de matemática, contribuindo para o desenvolvimento do ensino da mesma, no país.

Suas publicações até 1950 foram as seguintes: 1) Sur les noyaux dans la theorie de équations intégrales (C.R. Acad. Sci. Paris, 1934); 2) Sur une classe de noyaux développables en séries de noyaux princi-paux (C.R. Acad. Sci. Paris, 1935); 3) Sur l’additivité des noyaux de Fredholm (tese de doutorado, 1937); 4) Sur l’additivité dans les An-neau (Portugaliae Mathematicae, vol. 1, fasc. 4, 1940); 5) Sur l’axiomatique des espaces V, (Portugal Math. 1, 1940, com Hugo Ribei-ro); 6) Caractérisa-tion des Espaces de Hausdorff au moyen de l’opération de dérivation (Portugal Math. 1, 1938-1940); 7) Os conjun-tos mutuamente connexos e os fundamentos de la Topologia Integral (Congreso Luso-Español para el progreso de las ciencias, Zaragoza, 1940, com Armando Gilbert); 8) Les Ensembles Fermés et les Fonde-ments de la Topologie (Portugal Math. 2, 1941); 9) La Notion de Fer-meture et les Axiomes de Separation (Portugal Math. 2, 1941); 10)

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L’Operation de Fermeture et ses Invariants Dans les Systemes Partiel-lement Ordonnés, em colaboração com Hugo Ribeiro (Portugal Math. 3, 1942); 11) Caractérisation de l’operation de fermeture par un seul axiome (Portugal Math. 4, 1944); 12) La Notion de Function Continue (Summa Mathematicae Brasiliensis 1, fasc. 1, 1945 com Hugo Ribeiro); 13) Aritmética Racional, escrita com José da Silva Paulo, publicada pela Livraria Avelar Machado, Lisboa, 1945); 14) Arithmétique des Filtres Premiers (C.R. Acad. Sci. Paris 225, 1947); 15) Filtros e Ideais, vol. i, Notas de Matemática, nº 2, Rio de Janeiro, 1948); 16) Filtros e Ideais, vol. ii, Notas de Matemática, nº 2, Rio de Janeiro, 1948); 17) Réticules distributifs de dimensión linéaire n (C.R. Acad. Sci. Paris 226, 1948); 18) Note on uniform continuity (Proceding of International Congress of Mathematicians, 1950).

No ano de 1950, Monteiro viajou para a Argentina, onde permane-ceu até sua morte em 1980. Sua primeira tarefa foi criar um Instituto de Matemática na Universidad Nacional de Cuyo. Deste núcleo, saí-ram diversos jovens matemáticos argentinos que contribuíram signifi-cativamente para o desenvolvimento da Matemática na Argentina. Mesmo tendo sido aprovado por concurso como titular para a cátedra de Análise da Faculdade de Ciências Exatas e Naturais da Universi-dade Nacio-nal de Buenos Aires, preferiu radicar-se na recém-fundada Universidad Nacional del Sur em Bahia Blanca, em 1956. Chegou à Bahia Blanca em 1957, onde organizou e dirigiu o Instituto de Matemática, impulsionando a licenciatura em Matemática. Traba-lhou arduamente para a criação de uma biblioteca adequada para as pesquisas matemáticas (uma das mais importantes da América Latina) e estimulou a contratação de bons matemáticos, além do intercâmbio de bolsistas. Formou um grupo de investigações em Lógica Algébrica e foi orientador de várias teses de doutorado. Empenhou-se na for-mação dos futuros matemáticos argentinos. Iniciou a publicação de uma série de Monografias de Matemática e Notas de Matemática. Pu-blicou mais de 50 trabalhos de investigação científica, sendo, predo-minantemente, na área de Álgebra e Lógicas não-clássicas. Em 1977, viajou para Portugal, onde ficou por dois anos, a convite do Instituto de Investigações Científicas de Portugal. Faleceu em 1980 e desde 1991 se realiza em Bahia Blanca a cada dois anos o Congresso de Matemáti-ca Dr. A. Monteiro.

Sob a direção do ativo Antonio Monteiro, a divulgação de novas idéias matemáticas no meio acadêmico brasileiro tomou, então, novo impulso. Foi publicada uma série de apostilas intituladas Notas de Ma-temática, que começaram a circular em 1948. Leopoldo Nachbin (1922-1933) escreveu Combinação de Topologias e Espaços Vetoriais Topológicos, temas ainda pouco conhecidos nos meios universitários. J. Abdelhay abordou o tema Reticulados Vetoriais; Maurício Peixoto redigiu notas

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sobre a Convexidade das Curvas, e o próprio Monteiro dois fascículos sobre Filtros e Ideais. Nestes dois trabalhos, Monteiro tornou público conhecimentos recentemente produzidos por matemáticos como Fre-chét, Brouwer, Birkhoff, Stone, Nachbin, Wallman, etc.

A publicação de Filtros e Ideais I ocorreu no ano de 1947. Segundo Monteiro foi Boole quem fez a primeira tentativa para formular de maneira completa as idéias fundamentais da Lógica por meio de um cálculo simbólico. As principais regras de cálculo das álgebras de Boo-le constituem-se numa parte importante da álgebra dos conjuntos e por isso ela tem tanta importância para o matemático. Chegar a perce-ber uma analogia na forma de elaboração de teorias matemáticas, que eram tratadas de forma estanque , levou à criação da teoria de reticu-lados, que é uma generalização da álgebra da lógica. Nesta linha de generalização, Monteiro destaca os trabalhos de Dedekind , seguidos por Emmy Noether, Birkhoff, Stone, Menger, Ore, Tarski, J. von Neumann, Glivenko, Kantorovitch e Gelfond. A grande importância destes trabalhos é que eles esclareceram os fundamentos de várias teorias além de unificá-las. Para o matemático português, o conceito de filtro torna-se relevante no estudo de convergência, compactifica-ção e uniformidade.

No primeiro parágrafo do primeiro capítulo, o autor aborda o conceito de ordem. Inicia com a noção de conjunto, considerada como noção primitiva, e destaca como importantes as relações de pertinência e inclusão.

“Se todo o elemento do conjunto A for também elemento do conjunto B, is-to é, se x ? A implica x ? B , diremos que A é uma parte de B e escreve-remos A ? B . [...] A relação binária ? tem o nome de relação de inclu-são”. (Monteiro, 1955, p. 2)

Quando aborda a família de todos os subconjuntos de um conjunto dado, define o conjunto vazio como o conjunto que não contém ele-mento algum e atribui a este conjunto o símbolo ø. É provável que esta notação tenha sido extraída da obra de Birkhoff, citada por Mon-teiro. Lê-se na Álgebra Moderna de Birkhoff e MacLane, cuja primeira edição surgiu em 1941, o seguinte: “Para expressar que o elemento x pertence ao conjunto C se utiliza a notação x ? C. É perfeitamente lícito considerar um conjunto no qual não haja nenhum elemento, ele se chama conjunto vazio e se indica ø”. (Birkhoff e MacLane, 1970, p. 32)

A seguir define conjunto ordenado pela relação ? , aquele conjun-to cujos elementos satisfazem as propriedades reflexiva, anti-simétrica e transitiva. Apresenta inúmeros resultados envolvendo a relação de inclusão e os importantes conceitos de máximo, mínimo, maior ele-

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mento, maximal, elemento minimal, supremo e ínfimo. Para represen-tar o

ínfimo A do conjunto ?A = A? , podemos usar A = inf A, A = ?? A?

. Como caso particular, se A possuiu apenas dois elementos A e B, o seu ínfimo quando existir, será representado pela notação A ? B ? C . Monteiro fala também em dualidade e apresenta o supremo como o dual do

ínfimo, com a seguinte notação: A = sup A, A ? ?

?A?

. Todos esses conceitos foram introduzidos com o objetivo de apresentar o conceito de reticulado, que era o interesse maior do autor, devido à sua gene-ralidade.

Dá-se o nome de estrutura, ou reticulado, a um conjunto ordena-do R , em que cada par ordenado A e B, de elementos de R , tem um supremo A ? B e um ínfimo A ? B .

Monteiro apresenta os conceitos de união e intersecção de conjun-tos a partir da noção de supremo e ínfimo. “Ao supremo A ? B tam-bém se dá o nome de soma ou união de A e B, e ao ínfimo A ? B , o de produto ou intersecção de A e B.

Tratando a união e intersecção como casos particulares, ele define as operações básicas entre dois conjuntos da seguinte forma: A soma ou reunião de A e B é o conjunto de todos os elementos que pertencem a pelo me-nos dois conjuntos A e B. Representa-se a reunião de A e B por A ? B , di-zendo: “ x ? A ? B se e só se x ? A ou x ? B ”. De forma análoga, a in-tersecção ou produto de A e B, pela notação A ? B , dizendo “ x ? A ? B se e só se x ? A e x ? B ”. Ele ilustrou as duas operações com o atualmente conhecido diagrama de Euler:

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A primeira representando a união dos conjuntos A e B, simbolica-mente: A ? B , e a segunda, representando a intersecção dos conjuntos A e B, simbolicamente: A ? B .

Outro importante capítulo introduzido nos Filtros e Anéis I é a ál-gebra de reticulados. Monteiro mostra que num reticulado qualquer valem as propriedades associativa, comutativa, de absorção e as leis idempotentes. Outra ilustração interessante apresentada são as tábuas de supremo e ínfimo.

Monteiro explora muito a noção de dualidade, e os dois principais conceitos que divulga - os filtros e ideais - são apresentados como duas definições duais.

Filtro Ideal

Diz-se que uma coleção não-vazia F de elementos de O (um conjunto bem-ordenado) é um filtro se: i) Todo elemento de O que segue um elemento de F é um elemento de F. ii) O ínfimo de dois elementos de F é um elemento de F. iii) O primeiro elemento 0 não per-tence a F.

Diz-se que uma coleção não vazia I de elementos de O (um conjunto bem-ordenado) é um ideal se: i) Todo elemento de O que precede um elemento de I é um elemento de I. ii) O supremo de dois elementos de I é um elemento de I. iii) O último elemento de 1 não per-tence a I.

Filtros e Ideais I é um trabalho dedicado à introdução de novos e importantes conceitos tais como: reticulado, dualidade, aderência, conjunto fechado, espaços topológicos, isomorfismos, homomorfis-mos, filtros e ideais e o teorema de Zorn.

Em Filtros e Ideais II, publicado em 1948, destacam-se os conceitos dos reticulados distributivos, reticulados de Brouwer, lógicas de Brouwer, reticulados de Boole e lógicas de Boole. Importantes resul-tados são demonstrados, como o teorema fundamental na teoria de reticulados distributivos com mais de um elemento, devido a Garrett

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Birkhoff, que garante a existência de filtros primos e o teorema de Nachbin que demonstra que os únicos reticulados distributivos com primeiro e último elemento (onde o filtro primo coincide com o ultra-filtro) são as Álgebras de Boole. Outro resultado importante que o autor enuncia e demonstra é o seguinte: Se num reticulado R todo o filtro for a intersecção de filtros primos então o reticulado é distributivo, bem como o seu dual: Se num reticulado todo o ideal for intersecção de ideais primos então o reticulado é distributivo. (Monteiro, 1948, p. 90)

Os resultados apresentados sobre filtros teriam, segundo o autor, um público mais amplo, uma vez que os lógicos também os poderiam utilizar, interpretando-os como um sistema dedutivo.

Sobre a importância dos trabalhos desenvolvidos por Monteiro manifestou-se Julio Rey Pastor em 1954:

“La ponencia de nuestro querido Monteiro, gran incitador de la investi-gación matemática y recatado motor del D.I.C. es fruto de varios anos de trabajo. Puesto que los espacios topológicos generalizan la recta , es decir, el campo real, ocurre preguntar por los entes que en todo espacio topoló-gico generalizan los números interos investigando sus propriedades. E-sos entes so los filtros y a ellos viene dedicando Monteiro mucho y fructí-fero esfuerzo inquiriendo las propriedades aritméticas, es decir, aquellas relaciones entre números naturales que subsisten entre los filtros de un espacio topológico, especialmente de los compactos , prepoderantes en la moderna Topología a partir de Frechét. esta nueva Aritmética nos depara interesantes novedades, tal por ejemplo ésta: Condición necesaria y sufi-ciente para que un reticulado (Lattice) sea normal, es que cada filtro irre-ducible sea divisible por un solo ultrafiltro.” (Pastor, 1954, p. 19)

Outro brasileiro influenciado por Monteiro foi Mario Tourasse Teixeira (1925-1993) um dos fundadores do Departamento de Mate-mática da UNESP de Rio Claro. Segundo Hegenberg, Teixeira estuda-ra também a Lógica Algébrica, área de pesquisa de Monteiro.

A divulgação da teoria dos conjuntos continuou a ser efetuada com Maria Laura Mousinho Leite Lopes, Omar Catunda, Benedito Castrucci, Cesar Dacorso Neto, Elon Lages Lima, Ernesto Cossi, todos docentes de Matemática de universidades brasileiras, entre outros.

Em 1949, Maria Laura defendeu a sua tese sobre Espaços projetivos: reticulado de seus subespaços, sob a orientação de Antonio Monteiro, que foi publicada nas Notas de Matemática, nº 7. Conforme afirmação da autora, na introdução do trabalho , no século XIX, atribuia-se à Geo-metria Projetiva o nome de geometria da união e intersecção, porque acreditava-se ser possível fundamentá-la nas duas operações básicas da teoria dos conjuntos. Trabalharam nesta direção Menger, Birkhoff, Von Newmann, Veblen e Frink. Nesta tese, Maria Laura emprega am-plamente na linguagem de conjuntos, o importante conceito de reticu-

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lado, que se tornou muito conhecido devido à divulgação de Antonio Mon-teiro. Em 1946, Orrin Frink havia iniciado estudos sobre os espaços projetivos de dimensão arbitrária. A autora estudou o problema da caracterização ordinal dos espaços projetivos de dimensão arbitrária, conseguindo uma demonstração11 que é uma extensão do teorema de Frink.

Leopoldo Nachbin (1922-1993), primeiro matemático brasileiro de destaque internacional, em meados desde século, dando prossegui-mento ao trabalho de Antonio Monteiro assumiu, juntamente com Cândido da Silva Dias a direção das Notas de Matemática. Em 1954, Elon Lages Lima publicou a Topologia dos Espaços Métricos. Segundo o autor, as notas faziam parte do curso de Topologia Geral que minis-trava na Faculdade Nacional de Filosofia. O texto foi revisto por Ma-ria Laura Leite Lopes e Leopoldo Nachbin. Nas preliminares da obra, Lima introduziu noções de teoria dos conjuntos baseado nas obras de Bourbaki e Birkhoff, usando uma linguagem já bastante formalizada.

A divulgação da chamada Matemática Moderna, nas escolas de 1º e 2º Graus de ensino do País, provocou grandes polêmicas e trouxe mo-dificações significativas no ensino, não apenas em nível nacional, mas de forma geral em quase todos os países. Em 1962, realizou-se o IV Congresso Brasileiro de Matemática. Na ocasião, foram feitos fortes apelos para a introdução da Teoria dos Conjuntos no ensino secundá-rio:

“A teoria dos conjuntos é o conceito unificador mais recente que ingres-sou na matemática, e suas idéias, convenientemente adaptadas, deveri-am figurar no presente programa secundário, sem aguardar influências de matemáticos estrangeiros. No campo da álgebra , conceito de grupo, anel e corpo tratam dos aspectos estruturais e não dos manipulativos. Algo a propósito caberia dar já no colégio especialmente se lembrarmos as ramificações (álgebras lineares , vetoriais, etc.) em que se desenvolve-ram esses conceitos e o fato de que constituem atualmente campo ainda virgem aberto à pesquisa.” (Hegenberg, 1966, p. 5)

Uma pesquisa aprofundada sobre as conseqüências do movimento de Matemática Moderna para a educação matemática brasileira foi realizada por Beatriz D’Ambrosio em sua tese de doutoramento. Con-cluiu que a presença da Matemática Moderna já foi evidente no início

11 Maria Laura demonstrou que para que um reticulado R seja isomorfo à família de todos os

subespaços de um espaço projetivo, ordenados pela relação de inclusão, é necessário e sufici-ente que R seja completo, atômico, modular, complementado e com a propriedade da depen-dência finita.

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dos anos 50 deste século, nos currículos das universidades brasilieiras. A partir de 1961 sob a liderança de Oswaldo Sangiorgi, que publicou livros-textos introduzindo as novas idéias, o movimento começou a atingir o ensino da matemática secundária no Brasil. Uma análise detalhada sobre esse movimento, não faz parte do escopo desse traba-lho, mas pode ser encontrada na tese da autora, citada na bibliografia.

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CLÁUDIO DE ALMEIDA

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

A significação filosófica do Paradoxo da Predição

Na versão mais popular do Paradoxo da Predição, um professor anuncia a seu grupo de alunos que lhes será aplicado um exame num dos cinco dias letivos da semana seguinte àquela em que o anúncio é feito, e promete-lhes, ainda, que o exame ocorrerá de surpresa, isto é, que a turma será incapaz de prever a ocorrência do exame na véspera de sua ocorrência. Refletindo sobre o anúncio do exame , um aluno esperto conclui que o professor será incapaz de cumprir sua promessa de aplicar um exame inesperado. O exame não poderia ser aplicado na sexta-feira, pensou o aluno, porque, sendo a sexta o último dia da semana letiva, se o exame não tivesse sido aplicado na aula de quinta, então, na própria quinta, a turma esperaria um exame na sexta – o que impediria o cumprimento da promessa de um exame inesperado. Por-tanto, o exame não poderia ocorrer na sexta. Mas, dada a exclusão da sexta, aparentemente, o mesmo raciocínio se encarregaria de eliminar a possibilidade de um exame inesperado na quinta, já que este seria, então, o último dia da semana para a aplicação de um exame que não tivesse ocorrido até a quarta. E, assim, procede-se à eliminação dos demais dias da semana. Foi, então, com a mais absoluta perplexidade que o aluno recebeu, do professor, a folha do exame na aula de terça, conforme prometido. Aqueles, de nós, que se sentem incapazes de identificar imediatamente o elemento que compromete a cogência do argumento do aluno terão visto um paradoxo aqui.

Não resta dúvida de que o problema é objeto da atenção do filó-sofo e do lógico filósofo quando se observa que a vastíssima literatura sobre o assunto, produzida nas últimas cinco décadas, inclui títulos de autores tão prestigiados quanto Quine, Popper, A. J. Ayer, Richard Montague, Crispin Wright, Roy Sorensen e Mark Sainsbury. Para al-guns, o Paradoxo da Predição assemelha-se a certos paradoxos epis-têmicos, cuja identificação remonta a Buridano. Outros desejam incluí-lo na família do Paradoxo do Mentiroso. Há, também, quem veja, no

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problema, evidência contrária à Tese KK (a tese segundo a qual S sabe que p somente se S sabe que sabe que p). Outros, ainda, buscam apro-ximá-lo do Paradoxo da Loteria e vêem, nele, razão para rejeitar o princípio segundo o qual, se S crê no enunciado contingente p porque S crê corretamente que outras de suas crenças justificadas confirmam p, então S está justificado ao crer que p. Além disso, há quem conside-re que o paradoxo envolve a prova da incompletude de Gödel e, tam-bém, quem perceba, nele, o problema acerca dos enunciados contin-gentes sobre o futuro.1 Mas, parece-me correto descrever a aborda-gem na qual o Paradoxo da Predição envolve crucialmente aquilo que Laurence Goldstein (1993) chamou uma proposição Moore-paradoxal [em português, é claro, perdemos o trocadilho] e que faz dele uma versão (ou membro da família) do Paradoxo de Moore como sendo a concepção dominante acerca do problema.2 Como veremos, no entanto, a concep-ção dominante deve ser rejeitada. E, esse resultado fará ver que o argumento sobre o qual se constrói o paradoxo tem sido devidamente negligenciado pelos defensores da abordagem inspirada no Paradoxo de Moore.

Convém lembrar, desde logo, que a significação filosófica do de-bate sobre o paradoxo é assegurada pela observância de algumas re-gras básicas. Há consenso (pelo menos, entre aqueles que representam a concepção dominante) quanto ao fato de que uma proposta de reso-lução do problema deva ser desprezada se presumir que o estudante esperto possa ter sido vitimado por uma crise de amnésia, ou que ele possa ter evidência indicadora da aplicação do exame que não seja derivada do anúncio feito pelo professor, ou que ele possa ter evidên-cia enganadora segundo a qual o professor esteja incapacitado de cumprir sua promessa, ou que ele tenha razões para duvidar da since-ridade do professor, ou que ele não seja um lógico infalível. É possí-vel, mesmo, que tenhamos de nos dizer, repetidas vezes, que o estu-dante esperto deve ser tão esperto quanto for consistentemente possí-vel em vista da formulação oficial do problema dado acima. Assim, é entendido que toda reconstrução da situação posta pelo paradoxo (obviamente subdescrita naquela formulação) em que sejam respeita-das essas regras básicas será incluída no debate.

O que torna a concepção dominante atraente é o fato de que ela nos deu uma lição sobre o anúncio do exame. Na análise de Doris O-lin, o anúncio se reduz à asserção do seguinte enunciado conjuntivo:

1 Para uma história do debate sobre o paradoxo em que se discute a contribuição dos

autores mencionados acima (à exceção de Sainsbury (1995), obviamente) , entre muitos outros, veja Sorensen (1988).

2 A concepção dominante é representada, mais notoriamente, por Robert Binkley (1968), Doris Olin (1983), Roy Sorensen (1988 e 1992) e Laurence Goldstein (1993).

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(A) Será aplicado um exame num único dia durante o período se-gunda-sexta; e, se o exame ocorrer no dia D, você não estará justifica-do ao crer nisso antes desse dia.

No entanto, de uma crença justificada em A (dada a confiabilidade do professor), como ela observou, segue-se que, depois de uma aula sem exame na quinta, o estudante teria de estar justificado ao crer no seguinte:

Será aplicado um exame na sexta e eu não estou, agora, justificado ao crer que será aplicado um exame na sexta. Mas, há virtual consenso quanto à idéia de que isto não pode ser objeto de crença justificada. Este é, afinal, um enunciado Moore-paradoxal – um enunciado da forma p e eu não estou, agora, justificado ao crer que p.3

Não tenho qualquer discordância com a concepção dominante quando esta conclui que, no contexto do argumento do aluno , o anún-cio do exame acarreta aquele enunciado Moore-paradoxal. Portanto, observemos claramente que , pelo que se viu até aqui, o estudante não pode estar justificado ao crer no anúncio. Mas, será, mesmo, que se segue disto, como sustenta a concepção dominante, que o mundo de-saba sobre o estudante se ele chega a crer no anúncio? Vale dizer, es-tamos, mesmo, obrigados a aceitar a conclusão de Goldstein segundo a qual [um] estudante astuto verá que não pode confiar na palavra do professor sem que, ao mesmo tempo, deixe de confiar na palavra dele; portanto, ele não confiará na palavra do professor, e não confiará em qualquer conclusão derivada do anúncio que ele fez? A meu ver (tal como expresso em meu 1996), decididamente, não. Sustento que Goldstein está errado ao crer que , se [o estudante] é suficientemente brilhante para ver que [ o anúncio conduziu a um enunciado Moore-paradoxal], então o curso de ação racional, para ele, é rever seus passos, é recuar dessa inconsistência bocejante.

Para ver em que ponto a concepção dominante perde o rumo , re-corde-se de nossas regras básicas, em particular, da regra segundo a qual é ad hoc impor um teto à habilidade intelectual do estudante (a menos, é claro, que o argumento a que seu brilhantismo conduz seja significativamente diferente daquele que é oferecido pela formulação 3 Uma discussão que revelasse a extensão de minha discordância das conclusões de

Cristopher Janaway em seu importante artigo de 1989, não pode ser empreendida a-qui. Mas, devo fazer duas observações que são diretamente relevantes para nossos propósitos. Em primeiro lugar, não consigo ver que ele tenha demonstrado que a leitu-ra que Sorensen faz do anúncio seja significativamente distinta da de Olin. Em segun-do lugar, sua alegação de que, se o anúncio fosse como Sorensen... quer que seja, o paradoxo ficaria... informulável, porque não haveria a menor tentação para que o estudante construísse o argumento problemático parece-me grosseiramente injusta. Claramente, tudo que se es-pera é que o estudante esteja justif icado ao crer no anúncio para efeito de argumentação, e, não, que sua justificação ao crer no anúncio inibisse sua motivação para argumentar contra ele. Em outras palavras, é exigido que o estudante esteja justificado ao crer que o professor deseje tornar verdadeiro o anúncio, mas, não, que ele creia que o professor seja logicamente capaz de fazê-lo.

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oficial do paradoxo). Agora, com isso em mente, devemos perceber que o estudante estará, afinal, em condições de confiar no anúncio. Ele terá percebido que, em vista do fato de que o professor conseguiu ma-nifestar suas intenções examinadoras por meio da asserção de um e-nunciado (A) em que nenhum aluno poderia crer com justificação, o professor se pôs na melhor condição possível para tornar verdadeiro o anúncio. Mas, se o aluno está, agora, justificado ao crer que a ver-dade de A depende exclusivamente da sinceridade do professor, en-tão, obviamente, nossas regras básicas asseguram que ele pode racio-nalmente confiar no anúncio e em qualquer enunciado que seja (vali-damente) derivado deste. Sendo ele o melhor, o lógico que podemos permitir que ele seja, ele sabe disso (sem, é claro, saber de regras básicas ou G. E. Moore). Assim, ele confiará racionalmente no anúncio, tendo notado que pode validamente inferir ‘Estou justificado ao crer que A’ a partir da conclusão do argumento acima, a saber, ‘Se não estou justifica-do ao crer que A [porque A se torna Moore-paradoxal para mim], então estou justificado ao crer que A [porque o professor deseja e pode tornar A verdadei-ro]’. Ao fim e ao cabo, portanto, o anúncio pode ser usado, pelo estu-dante, em seu argumento contra a possibilidade de um exame inespe-rado – em todo caso, de qualquer exame que seja anunciado por meio de A.

É crucial observar, aqui, que, para que o estudante seja vitimado pela inconsistência bocejante de Goldstein, ele teria de ser capaz de infe-rir cogentemente ‘Não estou justificado ao crer que A’ a partir da conclu-são de nosso argumento anterior, a saber, ‘Estou justificado ao crer que A’. Como conseguiria ele uma tal proeza? De fato, a única razão adu-zida pela concepção dominante em favor da tese de que o estudante será abatido por uma contradição é a alegação segundo a qual jamais se pode estar justificado ao crer numa proposição que é Moore-paradoxal para o crente. Mas, com certeza, esta alegação não pode ser usada pelo estu-dante para gerar uma contradição, pois ele acaba de ver razão para crer que essa alegação foi refutada por seu argumento aparentemente cogente, segundo o qual ele está, afinal, justificado ao crer que A. As-sim, tudo indica que, se aceitamos a tese da concepção dominante de que A é Moore-paradoxal para o aluno, como eu a aceito, somos levados à conclusão de que o Paradoxo da Predição nos oferece um contra-exemplo àquela generalização.

Agora, no entanto, estamos em condições de ver que a lição que a concepção dominante nos havia dado sobre o paradoxo parece com-pletamente inútil na busca de uma resolução do problema. Aparente-mente, voltamos à estaca zero. Na verdade, podemos muito bem ter sido prejudicados pela expectativa de derivar uma lição importante da insistência da concepção dominante em rebaixar o Paradoxo da Predi-ção à condição de variante-de-paradoxo. A razão para pensar assim é

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o fato de que a concepção dominante nos levou a crer que , ao formu-larmos o paradoxo em termos de cinco dias letivos, teríamos sido dis-traídos, nas palavras de Goldstein, por “uma irrelevância óbvia, já que um padrão semelhante de argumentação é iterado para cada dia”. Segundo a concepção dominante, devemos supor que possamos captar tudo que é essencial ao paradoxo numa versão do problema que men-cione um único dia – uma versão na qual o aluno considere o enuncia-do Moore-paradoxal expresso por ‘Será aplicado um exame hoje, mas eu não estou, agora, justificado ao crer que será aplicado um exame hoje’. No entanto, dado já termos visto que a concepção dominante erra ao sus-tentar que o aluno não possa usar o anúncio para forjar um argumento aparentemente cogente contra o exame inesperado, vemos, agora, razão para crer que pode ter sido imprudente negligenciar o próprio argumento do aluno enquanto buscávamos, desesperadamente, os meios para barrar aquele argumento.

Observe, uma das coisas que nos deve parecer patentemente im-plausível em qualquer versão do paradoxo que mencione um único dia é que ela terá de ignorar aquilo que a própria Olin considerava digno de nota (mesmo que parenteticamente): o fato de que o argumento para a exclusão da quinta-feira procede a partir da suposição de que a sexta-feira já tenha sido excluída. Parece-me que a tentação de negli-genciar um tal aspecto potencialmente importante do argumento do aluno só poderia advir de um apego tenaz à concepção dominante. Mas, aqueles que, como nós, não estão comprometidos (em todo caso, não suficientemente comprometidos) com a concepção dominante, po-derão considerar interessante ver que há um argumento aparentemen-te à prova d’água para a exclusão da sexta-feira, que não pode ser usado para a exclusão de qualquer outro dos dias da semana. Vamos precisar das seguintes rubricas para as sentenças que expressam os enunciados relevantes sobre o caso:

B: O exame pode ocorrer surpreendentemente na sexta. C: Estou justificado ao crer que o exame ocorrerá na sexta. D: O exame ocorre antes da sexta.

Usando apenas os enunciados acima, o estudante teria o seguinte ar-gumento aparentemente cogente a seu dispor.

(1) B Suposição (2) B>~C Suposição (3) ~D>C Suposição (4) D>~B Suposição (5) ~C de 1 e 2, por Modus Ponens (6) ~~D de 3 e 5, por Modus Tollens (7) D de 6, por Dupla Negação (8) ~B de 4 e 7, por Modus Ponens

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/ A significação filosófica do Paradoxo da Predição 174

Assim, a suposição de que o exame possa ocorrer surpreendente-mente na sexta, em conluio com as suposições 2-4, leva à exclusão da sexta. Há razão para rejeitar qualquer de 2-4? Não que eu saiba. Se estamos certos ao concluir que o aluno está justificado ao crer no a-núncio do exame, não é possível rejeitar qualquer de 2-4. Ainda assim, percebo que alguém poderá sucumbir à tentação de contestar nosso uso da suposição 2 sob a alegação de que o conseqüente daquele con-dicional não acarreta que não se creia na ocorrência do exame na sex-ta, e que a mera crença é tudo de que precisamos para liquidar com uma surpresa. Mais uma vez, no entanto, parece-me que esta será con-siderada uma boa objeção, somente se esquecermos que o aluno é, supostamente, um lógico infalível. Se isto for observado, deverá parecer perfeitamente natural supor que, para um lógico infalível cujo proces-so referencial é detonado apenas pelo anúncio do exame , ‘Não estou justificado ao crer que p’ deve, sim, acarretar ‘Não creio que p’’ – vale dizer, este enunciado não pode ser falso do aluno se aquele não o for. As-sim, a objeção fracassa.

Deve estar claro que o argumento acima, para a exclusão da sexta-feira, não pode ser usado para excluir a quinta-feira. Observe que a tentativa de excluir a quinta, enquanto data possível para o exame, pela simples substituição de cada ocorrência de sexta por uma ocorrên-cia de quinta em B, C e D tornaria inaceitável a suposição 3. Obvia-mente, os termos do problema são tais que, do fato de que o exame não ocorre antes da quinta, não se segue que se estivesse justificado ao crer que o exame ocorreria na quinta. Dado o que sabemos, se ele não ocorre antes da quinta, ocorrerá na quinta ou na sexta. Portanto, o fato de que a sexta já tenha sido excluída deve, é claro, ser levado em conta quando argumentamos para a exclusão da quinta – aquilo que eu havia considerado evidente em face da formulação oficial do parado-xo. Usemos, então, a seguinte convenção em nosso argumento para a exclusão da quinta:

B: O exame pode ocorrer surpreendentemente na sexta. E: Estou justificado ao crer que o exame será aplicado em um úni-

co dia da próxima semana letiva. F: O exame pode ocorrer surpreendentemente na quinta. G: Estou justificado ao crer que o exame ocorrerá na quinta. H: O exame ocorre antes da quinta. I: O exame ocorre na sexta.

Agora, estou certo de que será observado que , mutatis mutandis, o seguinte argumento aparentemente cogente para exclusão da quinta pode ser usado, pelo aluno, para a exclusão de cada um dos restantes dias da semana, e que, portanto, nesta versão, o Paradoxo da Predição requer um mínimo de dois dias.

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(1) E Suposição (2) ~B Suposição (3) F Suposição (4) F>~G Suposição (5) H>~F Suposição (6) ~B>~I Suposição (7) [E& (~H&~I)] >G Suposição (8) ~~F de 3, por Dupla Negação (9) ~H de 5 e 8, por Modus Tollens (10) ~I de 2 e 6, por Modus Ponens (11) ~H&~I de 9 e 10, por Conjunção (12) E& (~H&~I) de 1 e 11, por Conjunção (13) G de 7 e 12, por Modus Ponens (14) ~~G de 13, por Dupla Negação (15) ~F de 4 e 14, por ModusTollens

Talvez, tenhamos de nos reconciliar com a idéia de que não po-demos preservar nossa autoridade perante um aluno esperto que o tratamos de forma Moore-paradoxal.4

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Cláudio de. No Moore on the Surprise Exam. Inédito. 1996 BINKLEY, Robert. The Surprise Examination in Modal Logic. The Journal of Philoso-

phy, n. 65, 1968, p. 127-136. GOSDSTEIN, Laurence. Inescapable Surprises and Acquirable Intentions. Analysis,

v. 53, 1993, n. 2, p. 93-99. JANAWAY, Christopher. Knowing about surprises: A Supposed Antinomy Revisi-

ted. Mind, n. 98, 1989, p. 391-409. OLIN, Doris. The Prediction Paradox resolved. Philosophical Studies, n. 44, 1983,

p. 225-233. SAINSBURY, Mark. Paradoxes. 2. ed., Cambridge: Cambridge University Press,

1995. SORENSEN, Roy. Blindspots. Oxford: Clarendon Press, 1988. . Surprise examination Paradox. In: DANCY, J., SOSA, E. (orgs.). A compa-

nion to epistemology. Oxford: Blackwell, 1992.

4 Sou muito grato a Mark Sainsbury, a peter Klein e a Roy Sorensen pela discussão dos

ideais aqui apresentadas.

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/ Forma lógica, explicatura e implicatura: graus de explicitude do conteúdo... 176

JANE RITA CAETANO DA SILVEIRA

HELOÍSA PEDROSO DE MORAES FELTES Universidade de Caxias do Sul

Forma lógica, explicatura e implicatura: graus de explicitude do conteúdo proposicional

pela Teoria da Relevância

Uma das grandes contribuições ao estudo da semântica das lingua-gens naturais foi a convicção de que estas são sistemas interpretados do mesmo tipo que as linguagens formais (construídas), caracterizá-veis, portanto, pelas mesmas técnicas descritivas. Kempson (1988) resume bem essa visão:

“Em particular, a interpretação das linguagens naturais é idêntica àquela das linguagens formais, uma relação entre expressões da linguagem e as entidades não lingüísticas a que elas referem ou denotam (se de um mo-do tarskiano extensional, como defendido por Davidson , ou à maneira da teoria dos modelos , como defendida por Montague). De acordo com essa visão, a gramática contém: (i) um conjunto de regras para caracteri-zar as expressões da linguagem cada uma com sua estrutura associada e (ii) um conjunto de regras semânticas que determinam, composicional-mente, a partir de valores atribuídos aos valores terminais (as expressões lingüísticas), o valor extensional da expressão como um todo. E é suposto que o valor das expressões sentenciais seja o valor-verdade: o verdadeiro ou falso” (p. 7).

Essa convicção pressupõe que o significado de um enunciado en-contre-se explicitamente expresso. Sabe-se, entretanto, que um enun-cia-do pode significar mais do que explicitamente expressa, conforme estudos na tradição da filosofia da linguagem e da pragmática lin-güís- tica.

Grice (1967), na tentativa de construir uma teoria que desse conta do nível implícito do significado, avança em direção a uma lógica não-simplificada nas línguas naturais, atentando para a pragmática da con-versação. Ele afirma que, embora essa lógica deva ser auxiliada e gui-

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Filosofia, Lógica e Existência / 177

ada pela lógica simplificada dos símbolos formais, não pode ser por ela suplantada.

Grice desenvolve um conjunto de noções que justificam um mode-lo inferencial de comunicação que utiliza informações do contexto re-ferencial e situacional. Nesse modelo inferencial, a idéia básica é a de que existe um hiato entre a construção lingüística do enunciado pelo falante e a sua compreensão pelo ouvinte. Esse hiato no processo in-terpretativo não é preenchido por decodificação, ou seja, no nível do conteúdo explícito pela gramática, mas sim por inferências.

Através do processo inferencial, seria possível explicar como os enunciados podem comunicar o que tradicionalmente se tem chamado de conteúdos explícitos e implícitos das mensagens. Grice sugere que as inferências são derivadas num cálculo dedutivo, supondo a exis-tência de um acordo tácito de cooperação entre falante e ouvinte. A esse acordo deu o nome de Princípio de Cooperação, o qual está ligado a quatro categorias constituídas por máximas, que deveriam ser obede-cidas, a fim de possibilitar uma comunicação bem-sucedida.1

Desdobramentos da teoria griceana, envolvendo reformulações severas no modelo inicial, passam a tomar como objeto da interpreta-ção não mais a sentença, entidade lingüística abstrata, mas a proposi-ção, entendida como uma representação mental. Estudos desse tipo situam-se no âmbito da Pragmática Cognitiva.

A Pragmática Cognitiva preocupa-se com o processo de interpre-tação dos enunciados no plano das representações mentais, a partir da compreensão dos processos cognitivos centrais, que têm acesso a todo tipo de informação contextual advinda de sistemas perceptuais perifé-ricos (módulo lingüístico, visual, auditivo, etc.).

Dentro dessa perspectiva, a Teoria da Relevância, desenvolvida por Sperber e Wilson (1986), na obra Relevance: communication and cog-nition, trata do processo interpretativo na comunicação, descrevendo e explicando os níveis da compreensão desde a forma lógica, lexical e gramaticalmente determinada, até a forma proposicional da implica-tura, obtida através de um processo pragmático inferencial. 2

1 O Princípio de Cooperação é o seguinte: Faça sua contribuição conversacional tal como

é requerida no momento em que ocorre, pelo propósito ou direção do intercâmbio con-versacional em que você está engajado. A ele são ligadas as máximas de quantidade (informação suficiente) , qualidade (informação verdadeira), relação (informação relevan-te) e modo (informação clara , concisa e ordenada).

2 Dado o espaço limitado deste artigo, não será possível avançar no detalhamento da Teoria da Relevância , um modelo bastante complexo. Serão tratados, portanto, apenas os aspectos estritamente articulados às questões em foco. Uma apresentação global da Teoria encontra-se em Silveira (1995) e em Silveira e Feltes (em fase de publicação: Pragmática e cognição: a textualidade pela relevância).

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/ Forma lógica, explicatura e implicatura: graus de explicitude do conteúdo... 178

Essa abordagem de processamento inferencial da informação é fundamentada na Relevância, entendida como uma propriedade inata e não-representacional da cognição humana.

Considerando o processo interpretativo nessa perspectiva, afir-ma-se que o único conteúdo atribuído a uma sentença pela gramática é a forma lógica, uma representação muitas vezes incompleta, composicionalmente determinada a partir (i) dos conceitos que as expressões individuais nomeiam e (ii) de sua configuração lógica associada, como determinada pela estrutura sintática da construção. (Kempson, 1988) Para Sperber e Wilson (1986) “uma forma lógica é uma fórmula bem-formada, um conjunto estruturado de constituintes que sofrem operações lógicas formais determinadas pela sua estrutura” (p. 72). Uma forma lógica é proposicional se ela é semanticamente completa e, portanto, capaz de ser verdadeira ou falsa.

O que se pretende discutir aqui, em linhas bem gerais, é o meca-nismo pragmático de desenvolvimento da forma lógica no processo interpretativo do enunciado, tal como proposto na Teoria da Relevân-cia.

Inicialmente, três níveis representacionais são hipotetizados nesse processo: (i) o nível da forma lógica, numa forte dependência da deco-dificação lingüística; (ii) o nível da explicatura, em que a forma lógica é desenvolvida através de processos inferenciais de natureza pragmáti-ca; e (iii) o nível da implicatura, que parte da explicatura para a cons-trução de inferências pragmáticas. (Sperber e Wilson, 1986; Carston, 1988)

Ao contrário do que propõem Grice e seus seguidores, Sperber & Wilson e Carston não consideram apenas a distinção dito (tudo o que é decodificado lingüisticamente) e implicado (o que é inferencialmente construído). Entre esses dois pólos, inserem um nível intermediário do conteúdo explícito: a explicatura.

Nessa perspectiva, a explicitude é definida como segue:

“Uma suposição comunicada por um enunciado é explícita se e somente se ela for um desenvolvimento de uma forma lógica codificada pelo e-nunciado”. (Sperber e Wilson, 1986, p. 182)

Uma explicatura, portanto, é uma combinação de traços codifica-dos lingüisticamente e de traços conceituais inferidos contextualmen-te. A forma lógica é a base para construir a representação proposicio-nal completa, a qual é alcançada através de um processo dedutivo, envolvendo informação contextual. Em outras palavras:

“A forma proposicional de um enunciado é obtida ao se selecionar a for-ma lógica lingüisticamente codificada, completando-a (se necessário) até o ponto em que ela represente um determinado estado de coisas e (se ne-

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cessário) enriquecendo-a de várias maneiras”. (Wilson e Sperber, 1988, p. 134)

Um exemplo dos três níveis representacionais pode ser dado to-mando-se o enunciado (1b) do diálogo abaixo:

(1) (a) Ana conseguiu entrar no apartamento? (b) Ela encontrou a chave e abriu a porta.

No nível da forma lógica, tem-se (2) Encontrou (ela, chave) ^ abriu (0, porta). [S [S’ [NP Pro] [VP encontrou [NP a chave]]e[S”[NP 0][VP a-

briu[NP a porta]]]]3

No nível da explicatura tem-se: (3) Ela i [Ana i] encontrou a chave j e [então] [Ana i] abriu a porta

[do apartamento] [com a chave j].

No nível da implicatura tem-se: (4) Ana <possivelmente> conseguiu entrar no apartamento.

Seguindo a hipótese dos três níveis representacionais, (a) a forma (2) não é proposicional, porque é semanticamente in-

completa; (b) a forma (3) é proposicional, porque é semanticamente comple-

ta, podendo ser a ela atribuído um valor-de-verdade; (c) a forma (4) é uma proposição que, possivelmente, é a represen-

tação da interpretação última pretendida pelo falante de (1b). Para que se possa compreender como se chega às estruturas pro-

posicionais (3) e (4), é preciso apresentar os mecanismos envolvidos nos níveis da explicatura e da implicatura.

Desse modo, tem-se em (3): (i) Ela i [Ana i] encontrou a chave. Atribuição de referência pelo discurso anterior (1a). (ii) [Ana i] abriu a porta. Preenchimento de material elíptico, pela relação de relevância en-

tre as ações do agente [ Ana encontrou /Ana Sujeito Sintático de ‘a-briu’].

(iii) [Ana i] abriu a porta [do apartamento]. Enriquecimento da forma lógica pelo discurso anterior (1a), mais

uma suposição advinda da memória enciclopédica (Apartamentos têm portas.), que gera a conclusão A porta referida é a do apartamento. 3 A notação S’ e S” não caracteriza a adoção da Teoria X’ do modelo de Regência e Liga-

ção de Chomsky. Dá conta apenas da coordenação de duas orações (S’ e S”) em um período (S).

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(iv) [Ana i ] abriu a porta [do apartamento] [com a chave j ]: Enriquecimento da forma lógica a partir de uma suposição advin-

da da memória enciclopédica e de parte do enunciado, conforme abai-xo:

S 1 Chaves servem para abrir portas. S 2 Se Ana encontra a chave, ela abre a porta. S 3 Ana encontrou a chave. S 4 Ana abriu a porta com a chave. (v) Ela i [Ana i] encontrou a chave j e [então] [Ana i] abriu a porta

[do apartamento] [com a chave j ]: Enriquecimento do conetivo através da conotação temporal de su-

cessividade-causalidade das ações. Em (3), portanto, existe uma ligação entre as propriedades lin-

güísticas do enunciado (1b) e a proposição que é recuperada através da informação contextual.

Mas isso não ocorre entre (1b) e (4). A estrutura (4), Ana <possivel-mente> conseguiu entrar no apartamento, é derivada, pelo ouvinte, do enunciado (1b), cuja forma proposicional completa foi obtida pela ex-plicatura (3), mais a contribuição de uma suposição contextual, a qual não depende diretamente da ligação com as propriedades lingüísticas contidas em (1b), uma vez que nesta resposta não foi explicitamente dito que ‘Ana possivelmente entrou no apartamento’. As suposições contextuais, que envolvem uma seleção adequada do contexto, advêm da organização da memória enciclopédica, habilidades perceptuais e outras habilidades cognitivas.

A suposição contextual assim obtida teria a forma de (5): (5) Se Ana encontrou a chave do apartamento e abriu a porta, en-

tão possivelmente conseguiu entrar no apartamento. Processada no contexto da resposta (1b), (5) leva o ouvinte a de-

rivar (4). Para Sperber e Wilson, suposições derivadas desse modo consti-

tuem implicaturas, mas a sua construção não segue os moldes gricea-nos. Os autores distinguem, nesse processo inferencial, premissas impli-cadas e conclusões implicadas. No exemplo em questão, (5) constitui uma premissa implicada, ou seja, uma suposição contextual combinada com a proposição expressa para derivar a conclusão implicada (4).

O papel da suposição implicada é capacitar o ouvinte à recupera-ção da proposição expressa pelo enunciado, a qual constitui um pré-requisito para derivar a conclusão implicada.

Na visão de Sperber e Wilson, o principal aspecto problemático da distinção que Grice faz entre o dito (explícito) e a implicatura está relacionado ao modo como esse autor caracteriza o explícito, sobre-tudo por não considerar o enriquecimento inferencial da forma lógica, necessário para a interpretação do enunciado. A maioria dos pragma-

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ticistas de orientação griceana supõe que qualquer aspecto - pragmati-camente determinado - da interpretação do enunciado é uma implica-tura.

Analisemos, para exemplificar, o enunciado (6): (6) É melhor encontrar o amor de sua vida E casar, do que casar E

encontrar o amor de sua vida. Nesse caso, a interpretação do ‘e’ numa conotação temporal e cau-

sal se dá no nível da explicatura, não no da implicatura conversacional generalizada, como proposto por Grice. Essas conotações contribuem para as condições-de-verdade dos enunciados complexos em que o-correm (Carston, 1988). As implicaturas conversacionais generalizadas e as implicaturas convencionais são tratadas por Sperber e Wilson (1986) e Carston (1988) como explicaturas num nível intermediário entre o dito e o implicado.

Portanto, Sperber e Wilson vêem o lado explícito da comunicação como mais rico, inferencial e, portanto, muito mais merecedor de in-vestigação pragmática do que a maioria dos seguidores de Grice. Além disso, ressaltam o fato de que no modelo inferencial griceano muito pouco é dito sobre como as atitudes proposicionais são comuni-cadas e, o mais importante, nada é dito sobre a noção de graus de explicitude.

Quanto às atitudes proposicionais, Sperber e Wilson afirmam que o processo de enriquecimento não se resume à recuperação da propo-sição expressa por um enunciado. Há outras suposições possíveis de serem obtidas, encaixando-se o conteúdo de um enunciado em uma descrição de alto-nível da atitude do falante em relação à proposição que ele expressou.

Assim, por exemplo, conforme Blackemore (1994), a intenção de um falante ao enunciar (7) pode ser a de comunicar as descrições de alto-nível em (8):

(7) Tenho muito trabalho a fazer. (8) (a) O falante acredita que ele tem muito trabalho a fazer. (b) O falante lastima que tenha muito trabalho a fazer. Em (7), a atitude particular de crença ou lamento não é evidencia-

da pela forma lingüística; já em (8b), a atitude poderia ser recuperada, por exemplo, pelo tom de lamento na voz do falante, como uma pista paralingüística, intencional ou não.4 Entretanto, em (9a-b), a atitude torna-se evidente através da forma lingüística:

(9) (a) Lamentavelmente, tenho muito trabalho a fazer (advérbio sentencial, de dicto).

4 As pistas paralingüísticas dizem respeito aos sons vocais não-lingüísticos, no nível

supra-segmental, envolvendo entonação, altura da voz , pausas, inalações audíveis , etc.

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(b) Lamento que tenho muito trabalho a fazer (verbo per-formativo).

Os autores consideram, assim, que a atitude proposicional do fa-lante é mais um aspecto a ser considerado no enriquecimento da for-ma lógica. Em termos comunicacionais, esta atitude pode ser mais relevante para a proposição expressa, do que a própria proposição, pois contribui para a explicatura do enunciado.

Em relação aos graus de explicitude, omitidos no modelo de Gri-ce, os autores de Relevance enfatizam o seu papel fundamental no pro-cesso comunicativo. Dizem que o falante decide ser mais ou menos explícito dependendo do acesso que ele tem às fontes contextuais do ouvinte. Vejamos os exemplos abaixo:

(10) É naquele prédio. (11) O Simpósio é no Prédio 40. Embora (10) e (11) expressem a mesma proposição e tenham as

mesmas explicaturas, (11) é mais explícita, pois depende menos do material contextualmente inferido.

Na verdade, no modelo de comunicação de Sperber e Wilson, a própria Relevância é uma questão de graus.

Os autores caracterizam a Relevância como uma relação entre uma proposição P e um conjunto de suposições contextuais C, ou seja, uma suposição torna-se relevante para o indivíduo se ela interage com as suas suposições anteriores sobre o mundo. A relevância, então, é al-cançada quando a adição de uma proposição a um contexto leva a uma modificação do mesmo. Essa modificação é chamada de efeitos contex-tuais, que podem ocorrer de três maneiras: (a) combinando a informa-ção nova com o contexto prévio para fornecer implicações contextuais; (b) fortalecendo suposições existentes; (c) contradizendo e eliminando suposições anteriores (as mais fracas).

Os graus de Relevância resultam de uma estimativa entre esforço de processamento e efeitos contextuais, sendo as informações proces-sadas num cálculo não-demonstrativo e não-trivial. As inferências não-demonstrativas derivadas de um cálculo não-trivial não podem ser provadas, apenas confirmadas, pressupondo que não há, necessariamente, um conjunto de regras que, aplicadas a um conjunto de premissas localizadas, gere apenas conclusões válidas. Isso é devido ao fato de que em tais processos dedutivos, diferentemente do que é proposto pela lógica clássica, há livre acesso à informação contextual durante o processo interpretativo.

O esforço de processamento está relacionado à construção de su-posições e ao acesso ao contexto. Tanto a seleção do contexto como a interpretação de enunciados são restringidas pelo Princípio da Relevância, que é formulado como:

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“Todo ato de comunicação ostensiva comunica a presunção de sua Rele-vância Ótima”. (Sperber e Wilson, 1986, p. 161)

A seleção de um contexto no processo de comunicação é afetada pelos objetivos de minimizar esforço de processamento e maximizar efeitos contextuais, ou seja, pelo critério de consistência com o Princí-pio da Relevância. Esse princípio é formulado com base em uma carac-terística da cognição humana: os seres humanos prestam atenção ao fenôme-no mais relevante disponível, tendem a construir a representação mais relevante desse fenômeno e a processá-la num contexto que maximiza sua relevância.

Entende-se que em todo ato de comunicação deliberado há uma garantia de Relevância Ótima: equilíbrio entre esforço de processa-mento e efeitos contextuais, em que esforço adicional é compensado com mais efeitos.

Nesse quadro teórico , relativiza-se a fronteira entre os domínios da Semântica e da Pragmática, na base de uma nova forma de conce-ber a explicitude do conteúdo proposicional. Em suma:

“[A] semântica é entendida como a tradução de formas lingüísticas em formas lógicas, representações conceituais parcialmente articuladas que são o output da gramática. A semântica das linguagens naturais é autô-noma e fornece o input para a pragmática que desempenha um papel maior ao determinar a explicatura de um enunciado assim como as im-plicaturas, ambas formas proposicionais distintas e completas e que, co-mo tal, são o domínio da semântica das condições-de-verdade”. (Cars-ton, 1988, p. 178)

Referências bibliográficas

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/ A teoria dos nomes na lógica de Mill 184

JORGE CAMPOS

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

A teoria dos nomes na lógica de Mill1

No primeiro livro do seu A system of logic, cujo título é Of names and propositions, J. S. Mill desenvolveu a análise da linguagem, dentro da qual aparece a sua teoria dos nomes em geral e do nome próprio em particular2.

Enraizado num contexto de expressivos debates filosóficos entre o empirismo e o idealismo do século XIX, o A system of logic representa, para Mill, a necessária tentativa de demonstrar que são falsas as pode-rosas e atraentes teses em defesa do conhecimento a priori e que, con-seqüentemente, é possível oferecer uma fundamentação empirista à Lógica e à Matemática.

(1) “[...] Por que são certeza matemática e evidência de demonstração fra-ses comuns para expressar o próprio grau mais alto de segurança alcan-çável pela razão? Por que as matemáticas, por quase todos os filósofos e (por alguns) mesmo aqueles ramos da filosofia natural que, através do instrumento da matemática, tem sido convertidas em ciências dedutivas, são consideradas como independentes da evidência da experiência e ob-servação e caracterizadas como sistemas de Verdade Necessária?”3

Evidentemente, a resposta que Mill oferece à sua própria indaga-ção percorre um longo e exaustivo argumento que se constitui no eixo teórico de todo o seu trabalho.

Um primeiro e fundamental aspecto diz respeito a um certo tipo de naturalismo subjacente a toda a arquitetura argumentativa que Mill 1 A citação dos textos de Mill refere-se sempre a The collected works of John Mill, v. 7 e 8

(1973), correspondentes ao A system of logic: ratiotinative and inductive de J. M. Robson, editor geral para a University of Toronto Press – Routledge & Kegan Paul. Também é utilizada a útil tradução brasileira de J. M. Coelho de parte do Sistema de Lógica de Mill para a Coleção Pensadores, da Abril, de 1984.

2 As idéias básicas de Mill (cf. sua Autobiografia , v. 1, p. 72-73) foram desenvolvidas em encontros da Society of Students of Mental Philosophy, um pequeno grupo de dis-cussões sobre Economia e Lógica do qual Mill participou nos seus anos vinte. (Veja-se, também , a Introdução textual de J. M. Robson ao System of logic p. 1iii e o interessante trabalho John Stuart Mill de J. Skorupski (1989).

3 Mill, System of logic, v. 7, p. 224.

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Filosofia, Lógica e Existência / 185

propõe em defesa do empirismo. Para ele, os seres humanos fazem parte integralmente da natureza, enquanto sistemas causais dentro de uma ordem natural mais ampla a ser investigada pela ciência. E, se a mente humana é parte do mundo físico, e nele constitui a sua história, é inconcebível, para Mill, que o conhecimento da realidade possa ser a priori. De fato, para ele, ou todo o conhecimento é a posteriori, baseado na experiência, ou nenhum conhecimento é possível; e, se isso é assim, a recusa à alternativa cética é, ao mesmo tempo, uma opção necessária pelo empirismo4.

Um segundo ponto decisivo para o sucesso do argumento milliano refere-se à sua concepção de lógica. Reavaliando-a em suas relações com a mente e com o mundo, Mill compreende a Lógica como a ciên-cia das operações do entendimento que são subservientes à estimação da evidência5. Ela é, neste sentido, uma parte da arte do pensamento, exatamente aquela dedicada ao raciocínio inferencial que está a servi-ço da verdade. Não lhe interessam a natureza do pensamento ou as propriedades subjetivas da mente, objetos próprios da Psicologia, mas as proposições e inferências que expressam as coisas e os fatos do mundo e, conseqüentemente, possibilitam o progresso do conhecimen-to.6

Uma última e crucial questão localiza-se na forma como Mill con-cebe a linguagem natural. Para ele, as operações do entendimento essenciais à Lógica encontram na linguagem o seu mais poderoso veí-culo. Isto significa, em outras palavras, que a linguagem é o instru-mento mediador fundamental das relações entre a mente e a realida-de. Se, de fato, para Mill, a Lógica é a disciplina das formas pelas quais o conhecimento do mundo evolui, então o exame das proprie-dades semânticas da linguagem passa a ser uma parte inescapável das atividades dos lógicos. Especialmente porque a natureza do instru-mento lingüístico apresenta impropriedades e imperfeições que po-dem obscurecer o rigor dos resultados desejáveis.

(2) “A lógica é uma parte da arte de pensar; a linguagem é, evidentemen-te, e pelo consenso de todos os filósofos , um dos principais instrumentos ou auxiliares do pensamento; qualquer imperfeição no instrumento ou modo de empregá-lo está, evidentemente, sujeita mais ainda do que em qualquer outra arte, a confundir e entravar a operação e destruir qual-quer confiança em seus resultados... Eis por que a investigação crítica so-bre a linguagem tanto quanto é necessária para evitar os erros que ela o-

4 Cf. Skorupsky, John Stuart Mill, p. 5. 5 Essa é uma forma supersimplificada de expressar o que parece ser a essencial concep-

ção de Lógica de Mill, discutida, por ele, nas 14 páginas de sua introdução ao System of logic.

6 Para Mill (System of logic, p. 20), Verdade é apenas um termo frouxo para a expressão proposição verdadeira.

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rigina, sempre foi considerada uma introdução necessária ao estudo da lógica.”7

Dado, assim, esse quadro de premissas epistemológicas, lógicas e lingüísticas, tudo de que depende o argumento de Mill, agora, é de-monstrar que a Lógica e, por extensão, a Matemática, são disciplinas constituídas de proposições e inferências que não são sustentadas por princípios a priori ou verdades do pensamento puro independentes da experiência. Tal tarefa, então, começa, necessariamente, pela análise da natureza da proposição, tomada como unidade semântica básica da linguagem natural e se estende, automaticamente, à natureza do pro-cesso inferencial constituído, basicamente, de proposições em relação.

Em A system of logic a proposição não é tratada, absolutamente, de maneira uniforme. Ela, na maioria das vezes, é definida como a parte do discurso em que algo é afirmado ou negado de algo8. Dadas estruturas como S é P, S não é P, todo S é P, nenhum S é P, algum S é P e algum S não é P, convenientes à sintaxe da teoria silogística, além das palavras estruturais (sincategoremáticas), como todo, nenhum, algum e não, a proposição é constituída, para Mill, de três partes fundamentais: o (P)redicado, representado pelo nome que designa o que se afirma ou se nega, o (S)ujeito, representado pelo nome que refere àquilo de que se afirma ou se nega algo e a cópula, signo de que há uma relação entre as coisas nomeadas.9

Dentro dessa forma de conceber a proposição como estrutura lin-güística concreta, instrumento da razão a serviço do conhecimento, passa a ser decisiva, para Mill, a compreensão de que os nomes são nomes das próprias coisas e não de entidades mentais como as nossas idéias das coisas. Criticando uma passagem de Hobbes, que caracteri-za o nome como marca para um pensamento na mente do usuário, Mill abre o segundo capítulo, Of names, com uma expressiva observação:

(3) “Quando digo ‘O sol é a causa do dia’ não quero dizer que a minha i-déia do sol causa ou provoca em mim a idéia do dia, ou, em outras pala-vras, que pensar no sol me faz pensar no dia. O que quero dizer é que um certo acontecimento físico, denominado a presença do sol (que, em última análise, se reduz a sensações , não idéias), provoca outro fenômeno físico, denominado dia. Parece apropriado considerar uma palavra como o no-

7 Ibidem , p. 19. 8 De fato, conforme bem observa Skorupski (1989, p. 49), nem sempre Mill adotou esta

forma de compreender a proposição. Ele mantém uma certa ambigüidade (hoje mais familiar) entre a idéia de proposição como ato de asserção ou como sentença indicativa resultante de tal ato.

9 Mill não se detém na diferença entre proposições com a cópula ou sem ela como, por exemplo, Sócrates morreu. Ele, provavelmente, poderia considerá-las como tendo uma estrutura comum de três partes a despeito de sua enganadora forma gramatical (cf. Skorupski, 1989, p. 50).

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me daquilo que pretendemos que seja entendido através dela quando a usamos; daquilo que deve ser entendido de algum fato que afirmamos; daquilo, em suma, com respeito ao qual, quando empregamos a palavra , pretendemos informar. Os nomes, portanto, deverão sempre ser mencio-nados nesta obra como os nomes das próprias coisas e não meramente de nossas idéias das coisas.”10

De fato, para Mill, a proposição, instrumento de conhecimento verdadeiro ou falso, para o qual os nomes semanticamente contribu-em, não deve ser confundida com o juízo, objeto determinado pelo ato psicológico de julgar.11 O papel dos nomes, nesse sentido, é veicular informações sobre o mundo e não sobre a mente. Por isso, constitui-se num grave erro de fundamentação da Lógica a concepção de sujeito e predicado, base da proposição, como relação entre idéias e não entre fenômenos.

(4) “A noção de que o que é de importância principal para o lógico numa proposição é a relação entre as duas idéias correspondentes a sujeito e predicado (em vez de a relação entre os dois fenômenos que eles expres-sam respectivamente) parece-me um dos erros mais funestos já introdu-zidos na filosofia da lógica, e a causa principal por que a teoria da ciên-cia teve um progresso tão insignificante durante os dois últimos sécu-los.”12

A legitimidade da Lógica, acredita Mill, só é possível à medida que a proposição é tomada em sua destinação epistemológica e não em sua natureza puramente psicológica ou puramente lingüística. É fun-damental, então, distinguirem-se proposições reais de aparentes e, conseqüentemente, inferências relevantes de inócuas. Nesse sentido, Mill observa que, enquanto uma proposição puramente verbal

(5) afirma de uma coisa sob um nome particular, somente o que é afirma-do dela pelo fato de chamá-la por aquele nome; e que, portanto, ou não dá nenhuma informação, ou a dá com relação ano nome, não à coisa.13

Proposições reais

10 Mill, op. cit., p. 25. 11 A distinção que Mill oferece entre proposições e juízo, entre a expressão do conheci-

mento verdadeiro ou falso e o ato de julgar é uma das formas mais claras para a dife-rença que ele faz entre Lógica e Psicologia quanto ao objeto e, conseqüentemente, quan-to aos métodos dessas disciplinas. Apesar disso, desde que ele entendia o raciocínio in-ferencial como apenas uma parte do pensamento em sentido amplo, e não defendeu nenhuma tese forte de vacina da Lógica contra a Psicologia , há quem acredite, a partir de Husserl – capítulos III e IV de suas Logical investigations – que se pode atribuir às re-flexões millianas sobre lógica uma inevitável contaminação do psicologismo (cf. Sko-rupski, 1989, p. 166 e McRae, em sua Introdução ao A system of logic, p. XI viii).

12 Mill, op. cit., p. 89. 13 Ibidem , p. 115.

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(6) ... predicam de uma coisa algum fato não envolvido na significação do nome pelo qual a proposição fala dela; algum atributo não conotado por aquele nome. Tais são todas as proposições relativas a coisas individu-almente designadas, e todas as proposições gerais ou particulares em que o predicado conota qualquer propriedade não conotada pelo sujeito. Todas estas, se verdadeiras, aumentam o nosso conhecimento... Somente proposições desta classe são instrutivas em si mesmas, ou das quais quaisquer proposições instrutivas podem ser inferidas.14

E, com isso, distingue as proposições vazias de qualquer genuíno conteúdo informativo (verbais), daquelas (reais) que, de fato, transmi-tem informação e são veículos de conhecimento novo. A idéia básica, na verdade, que orienta Mill para essa distinção é a de que as proposi-ções reais e relevantes para a ciência são as que representam informa-ções sobre as coisas. As verbais, relativas ao significado das palavras, como é o caso das definições, são importantes, isto sim, para a Filoso-fia, uma vez que subjazem a elas, não coisas ou fatos, mas, apenas, convenções de linguagem.15

Da mesma forma, observa Mill, se o valor de uma proposição é o conteúdo semântico que ele traz para o processo inferencial, as infe-rências também ou são reais e informativas, ou são apenas aparentes, como puras transformações da linguagem que as expressa. Se se infere uma proposição-conclusão de uma proposição-premissa que lingüisti-camente já a continha, então a inferência é puramente Verbal. Inferir-se da premissa de que nenhum ser humano é destituído de razão a conclusão de que todo homem é racional é inferir exclusivamente ao nível de palavras. A inferência Real é aquela pela qual o conhecimento aumenta, como acontece quando se infere de experiências particulares de que Platão morreu, Kant morreu e N morreu, que todos os homens são mortais, ou que João é mortal. Estas, pensa Mill, são, de fato, infe-rências instrutivas e relevantes para a ciência. Elas caracterizam um certo tipo de raciocínio lógico natural, a indução, que é próprio da inferência real e do conseqüente avanço do conhecimento.16 Se a dedu-ção (ou silogismo) pode, nos mesmos termos, ser considerada como constituída de inferências reais, fica na dependência de demonstração. Para Mill, rigorosamente, toda inferência é de particular para particu-

14 Ibidem , p. 115-116. 15 Na época em que escreveu o A system of logic, Mill não dá evidências de que tivesse lido

Kant diretamente. Só mais tarde, no An examination of Sir William Hamilton’s philosophy ele se refere explicitamente a posições kantianas. Mas em nota de rodapé, acrescentada à edição de 1862 do System , considera a sua distinção correspondente à de Kant entre analítico e sintético.

16 A forma como Mill concebe a indução, em toda a sua complexidade, escapa aos limi-tes deste trabalho. De qualquer maneira , para Mill, diferentemente de Hume, a indução é a base natural do conhecimento, e a dedução é que precisa ser justificada. Mill não é cético e tenta, de fato, fazer isso.

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lar, uma vez que a afirmação universal não passa de uma generaliza-ção, autorizada pelo passado, de casos particulares dos quais, em si mesmos, poderia ser derivada a conclusão. Assim, o possível argu-mento de que Sócrates é mortal a partir de que Sócrates é homem e todos os homens são mortais depende de uma proposição geral que é, na verdade, um registro, em forma breve, de todas as experiências do passado com a morte de cada indivíduo , experiência essa que poderia, sem essa intermediação, levar à conclusão de que Sócrates é mortal. Não obstante isso, Mill acredita que o silogismo, em sua forma nor-mal, com proposições gerais, pode ser justificado, desde que a lógica da consistência seja entendida como um instrumento importante na propagação inferencial da verdade.

Se esse quadro faz sentido, então, Mill está a um passo de comple-tar o seu tortuoso argumento contra a tese do conhecimento a priori e, ao mesmo tempo, de base para a justificação empirista da Lógica e da Matemática. Trata-se de demonstrar que tais disciplinas podem ser constituídas de inferências Reais, sobre proposições Reais e que ne-nhuma proposição Real é a priori. Mas, para isso, Mill ainda depende de uma investigação esclarecedora sobre como a linguagem, em sua problemática complexidade, autoriza, interna e efetivamente, a dife-rença entre proposições Verbais e Reais. E ele se vê, então, na indis-pensável perspectiva de uma teoria dos Nomes, que fica, finalmente, contextualizada.17

Na direção de uma teoria dos nomes, Mill começa observando que, ao contrário das expressões sincategoremáticas, partes que só funcionam com outras palavras, os nomes, termos categoremáticos como tais, possuem a propriedade de denotar o que se afirma ou nega de algo e o de que se o faz.18 Assim, distinguem-se, para ele, palavras como de, para, verdadeiramente, etc., que não podem ser usadas, isola-damente, para designar algo, de nomes como João, branco, pedra, etc., que, sozinhos, podem designar o que se predica ou o de que se predi-ca.19

17 Mill considera a Teoria dos Nomes como parte da Lógica. Primeiramente porque a

linguagem natural, instrumento do raciocínio é fonte de erros e, na metáfora milliana , se é preciso trocar os óculos que distorcem os objetos por outros mais adequados, isso se faz com a análise das palavras. (cf. Mill, System , p. 19). Além disso, a investigação da linguagem se faz necessária porque, sem ela , não se pode avaliar o papel semântico da proposição com que ela contribui para o conhecimento da verdade e para o proces-so inferencial.

18 Mill emprega o termo denotar ora de forma mais frouxa, ora mais técnica. Num sentido amplo, ele usa o termo para dizer, por exemplo, que o sujeito denota a coisa ou a pes-soa , que o predicado denota o que se afirma ou se nega e que a cópula denota a existên-cia da relação entre o sujeito e o predicado (Mill, System , p. 21). Num sentido mais pre-ciso, o termo é usado, em Mill, para ser equivalente às expressões é verdadeiramente pre-dicável de ou, ainda, é verdadeiramente afirmável de (cf. Skoupski, 1989, p. 51).

19 Aqui, duas considerações necessárias. Em primeiro lugar, cabe observar que, ao usar o

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Dada essa propriedade básica dos nomes em geral de denotarem ou, como diz Mill, de serem todos nomes de alguma coisa real ou i-maginária, trata-se, então, de examinar as diversas formas como o fazem.20

Mill apresenta uma exaustiva classificação dos nomes de acordo com sua forma de atuação semântica, porém, três de suas divisões são especialmente relevantes para o exame das questões do sentido e da referência que estão envolvidos no fenômeno da nomeação.21

A primeira grande divisão dos nomes separa-os em gerais e indi-viduais ou singulares. Sobre ela, diz J.S. Mill:

(7) Um nome geral é familiarmente definido, um nome que é capaz de ser verdadeiramente afirmado, no mesmo sentido, de cada uma de um inde-finido número de coisas. Um nome individual ou singular é um nome que é capaz somente de ser verdadeiramente afirmado, no mesmo senti-do, de uma coisa.22

O que, de fato, Mill está observando é a diferença de papel semân-tico que existe entre nomes como homem e Aristóteles, por exemplo. Enquanto homem pode ser verdadeiramente asserido de Aristóteles, Kant, Tarski, como nome geral, enfim, de uma infinidade de indiví-duos, no mesmo sentido, uma vez que tais indivíduos possuem a pro-priedade comum de seres humanos, Aristóteles só pode ser verdadei-ramente afirmado, no mesmo sentido, como nome singular de um único indivíduo. Realmente, afirma Mill, ainda que mais de uma pes-soa tenha o nome Aristóteles, como tal nome não as indica mediante qualquer propriedade, não o faz em qualquer sentido, conseqüente-

critério clássico de distinguir termos sincategoremáticos daqueles que podem funcionar isoladamente, como sujeito e predicado, Mill não ignorou o caso em que uma palavra estrutural, como de em de é uma preposição, pode funcionar como sujeito. Nesse caso de menção (suppositio materialis), entretanto, como ele observa , a palavra não está em seu uso normal e, apenas, designa as próprias letras de que se compõe. A segunda consi-deração diz respeito ao fato de que Mill não vê problemas em enquadrar adjetivos tipo branco em A neve é branca ou Branco é agradável como nomes , embora admita que se po-deria considerar esse uso de branco, como predicado ou sujeito, uma forma abreviada de objeto branco ou cor branca, respectivamente. Para ele, a diferença é mais gramatical do que propriamente lógica. Não há diferença de significação entre a forma simples e complexa, e isso é o que importa. De maneira análoga , ele não vê dificuldade em acei-tar que um conjunto de palavras como O discípulo de Platão possa funcionar como um nome só, à medida que pode ser usado para denotar um único indivíduo, a saber Aris-tóteles (A system of logic, p. 25 e 26).

20 Ao oferecer tal caracterização, Mill parece não ter nenhuma preocupação específica com nomes de entidades sem existência real. A questão, entretanto, reaparece, no exa-me das formas de denotação dos nomes próprios e descrições.

21 Além das divisões que se seguem , Mill ainda considera uma quarta entre nomes posi-tivos e negativos, tipo homem e não-homem , uma quinta entre relativos e não-relativos, como pai, filho e civil e, finalmente, uma divisão entre unívocos e equívocos que, para ele, é menos uma diferença de tipos de nomes do que de formas de aplicá-los. Tais classificações são, aparentemente, menos expressivas e têm recebido menor atenção.

22 Mill, A system of logic, p. 28.

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mente não no mesmo sentido. Isto não significa que só os nomes tipi-camente próprios sejam individuais para Mill. Expressões como o rei que sucedeu Guilherme o Conquistador ou, até mesmo, o rei, quando as circunstâncias definem uma única pessoa a quem se as aplique verda-deiramente, podem ser entendidos como nomes individuais. Da mes-ma forma, observa Mill, coletivos não devem ser confundidos com nomes gerais. Eles não podem ser predicados de cada indivíduo da classe, mas, apenas, da classe inteira, que, então, é tomada como algo singular. O 76º regimento de artilharia da armada britânica é um coletivo a ser entendido como um nome individual, à medida que designa o regimento singular composto de John, Peter, Paul, etc., mas não é apli-cável a cada um deles individualmente.23

Sobre a segunda classificação dos nomes, em concretos e abstratos, Mill propõe para ela uma concisa caracterização:

(8) Um nome concreto é um nome que designa uma coisa; um nome abs-trato é um nome que designa um atributo de uma coisa.24

Aqui, Mill está dividindo os nomes pela forma como eles podem ser usados para designar ou coisas ou propriedades. Sócrates, o mar, este livro são nomes de coisas. Juventude é o nome de um atributo pos-suído pelas pessoas jovens. Nesse sentido, branco é, também, um nome de uma coisa ou, mais precisamente, de muitas coisas, como, por e-xemplo, uma cegonha, o leite ou a neve; brancura é o nome do atributo comum a estas coisas. À objeção de que branco não deixa de ser, tam-bém, o nome da cor como brancura, Mill argumenta que não se pode abstrair , nesse caso, a diferença de uso das duas expressões. Ao dizer a neve é branca, não se diz que a neve é uma cor, mas que aquela coisa possui aquela cor. Já brancura, em a brancura da neve, não designa a ne-ve, mas o atributo cor que tal coisa possui.25 Se tais nomes abstratos como brancura são gerais ou individuais é uma questão problemática para Mill. De fato, diz ele, alguns nomes abstratos como cor ou brancu-ra podem ser considerados gerais, à medida que o primeiro parece ser nome de uma classe de atributos como brancura, vermelhidão, etc., e o segundo porque se aplica a vários tipos de brancura. Já nomes como visibilidade podem ser entendidos como individuais, uma vez que pare-

23 Não se entenda que Mill aceite um nome geral tipo homem como nome da classe dos

seres humanos. Para ele, não se define a noção mais clara – a de nome geral – pela mais obscura – a de classe. Ao contrário, deve-se pensar em definir classe como a mul-tidão indefinida de indivíduos denotados pelo nome geral. Homem , então, não denota a classe como uma entidade abstrata, mas cada indivíduo da coleção ao qual se aplica verdadeiramente, dado que possui a propriedade comum a todos os outros.

24 Mill, A system of logic, p. 29. 25 Aqui, mais uma vez , destaque-se que, para Mill, o nome abstrato não indica a propri-

edade enquanto uma entidade abstrata. Ele não aceitaria uma ontologia desse tipo. A propriedade para ele existe em cada objeto que a possui.

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cem designar um único atributo. De qualquer maneira, diz Mill, talvez o problema devesse ser encaminhado na direção de que nomes abstra-tos não sejam subclassificados em gerais ou individuais.26

Quanto à terceira divisão dos nomes em conotativos e não-conotativos, Mill atribui a ela importância especial.

(9) Esta é uma das mais importantes distinções que nós teremos oportu-nidade de mostrar, e uma das que vai mais fundo na natureza da lingua-gem. Um termo não-conotativo é aquele que significa somente um sujeito ou somente um atributo. Um termo conotativo é aquele que denota um su-jeito e implica um atributo.27

Nesse ponto, a distinção a que Mill se refere diz respeito à dife-renciada atuação semântica de palavras como Platão, Londres ou brancu-ra, nomes cuja função é apenas denotar um sujeito ou um atributo, em oposição a outras como branco, homem ou filósofo, que denotam todos os indivíduos a que se aplicam, exatamente conotando a propriedade comum que os identifica. Assim, Platão denota Platão diretamente sem indicar-lhe, através dessa denotação, qualquer propriedade. Platão não informa nada de Platão a não ser que este é o seu nome. Da mesma forma, brancura é um nome abstrato não-conotativo à medida que fun-ciona como nome do próprio atributo. Ao contrário, um nome conota-tivo tipo branco denota coisas como neve, leite, cegonha, etc., conotan-do a propriedade da brancura comum a essas coisas, ou seja, conotan-do o que brancura denota. Nessa perspectiva, os nomes concretos ge-rais como branco e homem são os genuinamente conotativos, enquanto os genuinamente não-conotativos são os nomes próprios típicos. Sub-jacente a essa diferença está, na verdade, a concepção milliana de que a sig-nificação de um nome conotativo é a sua conotação e que, exata-mente por isso, um nome próprio, que nada conota, não tem a rigor significação nenhuma.28

Dado esse quadro teórico sobre o fenômeno da nomeação e seu papel na filosofia da linguagem e da lógica de J.S. Mill, trata-se, agora, de proceder a uma síntese de avaliação do que é mais relevante da concepção milliana de denotação e conotação dos nomes para um pro-grama de investigação semântica da linguagem humana. Isto quer dizer, em outras palavras, que o ponto de interesse de tal avaliação não será, mais amplamente, a lógica ou a filosofia de Mill, mas, de 26 Cf. Mill, A system of logic, p. 30. 27 Mill, op. cit., p. 31. 28 Mill observa que o nome próprio esgota a sua função semântica na denotação do seu

objeto, mesmo que um nome tenha , em sua origem , uma motivação conotativa , ela fica esvaziada. Em seu exemplo, ainda que Dartmouth possa ter sido um nome para signi-ficar que a cidade que designa está situada na boca do Dart , o desaparecimento do rio não impediria que a cidade continuasse, sem estranhezas semânticas, com o mesmo nome. (Cf. Mill, A system of logic, p. 33 e 34).

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maneira restrita, a sua semântica, entendida como a sua teoria da re-ferência e a sua teoria do significado para os nomes da linguagem natural.29

Se Mill foi, com suas especulações lógico-lingüísticas, o pioneiro dos estudos modernos sobre o significado é questionávelv;30 mas o que não se discute é a relevância das suas investigações sobre os no-mes e sua importante influência sobre trabalhos de grande repercus-são contemporânea para a semântica e a filosofia da linguagem como os de Frege, Russell e Kripke. De fato, Mill é um dos filósofos que abre o conjunto de problemas e de respostas possíveis para os enig-mas semânticos da linguagem natural, tendo em vista os obstáculos que eles oferecem à fundamentação moderna da Lógica. Aqui, entre-tanto, cabem algumas primeiras e básicas considerações, indispensá-veis para avaliá-lo, adequadamente, em sua contribuição semântica. Mill pertence a uma tradição de discussões filosóficas em que a Lógica é a disciplina central para a investigação da racionalidade humana e a base de sustentação do pensamento científico. Nessa tradição, a lin-guagem natural é entendida essencialmente como um instrumento do raciocínio e da comunicação. Um instrumento fundamental, é verdade, mas não mais do que isso. Essa, exatamente, é uma herança que Mill recebeu e deixou aos seus sucessores na filosofia da linguagem no século XX. A linguagem humana é vista exclusivamente em sua natu-reza mediadora entre o pensamento e o mundo das coisas. Nessa me-dida, não se trata de examiná-la em todos os seus aspectos ou em sua estrutura global articulada em termos de sons, formas, sentenças, proposições e usos; se ela não é tomada como um objeto em si mesmo de investigação, só o que é essencial ao seu papel mediador deve ser elucidado. Nas origens da moderna filosofia da linguagem, então, a vertente lógico-filosófica reduz a essência da linguagem à sua nature-za semântica, à medida que tal é a instância própria da mediação entre a mente e a realidade. Uma constatação fundamental, entretanto, de-corre desse ponto de partida: Se a relação entre a mente e o mundo parece ser abordável inescapavelmente através da linguagem natural, então as complexidades do instrumento podem caracterizar defeitos na mediação a serem elucidados e dissolvidos na direção de uma lin-guagem logicamente perfeita. Evidentemente, toda essa tradição filo-sófica tem como pano de fundo desse tipo de constatação uma apro-ximação subjacente da linguagem quotidiana, em seu uso frouxo para

29 De fato, o que interessa da lógica e da filosofia milliana é, apenas, o relevante para

uma contextualização da sua teoria dos nomes , o que parece indispensável para que se possa avaliar, adequadamente, a contribuição que ele deixou à semântica.

30 Ryle (1966), por exemplo, destaca o pioneirismo de Mill; Bennett (1972), diferentemen-te, acredita que as questões sobre o significado já estavam em Locke, Berkeley e Hume, no que não é apoiado por Hacking (1976). Veja-se, também , De Jong (1982).

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fins de comunicação com a linguagem matemática, em sua notável precisão no rumo do rigor científico. Assim, como a Matemática era um padrão de linguagem instrumental das diversas ciências, sendo a linguagem natural o instrumento de fundamentação da Lógica, era necessário retificá-lo em suas impropriedades e inexatidões para que esta disciplina pudesse ser tão confiável quanto àquela. De modo que quando, em (1), Mill questiona o dedutivismo da Matemática e seu exemplo para as outras ciências, no sentido de que não aceita toda essa extensão de conhecimento científico como decorrente de valores necessários ou independentes da experiência31. Mas ele pressupõe que aceita o papel da Matemática para as demais ciências à medida que fundamentá-la logicamente parece ser decisivo para a sustentação do próprio pensamento científico. É dentro desse contexto, então, que Mill se preocupa com a linguagem natural. Como se observa em (2), ele concebe como o principal veículo do processo inferencial cujo ri-gor, fundamental à Lógica, depende de retificações quanto às imper-feições da natureza do veículo e do modo de empregá-lo. Tais pro-blemas, para Mill, decorrem, basicamente, da ambigüidade das pala-vras, de sua vaguidade, do desacordo entre a forma gramatical da superfície e a forma lógica, da mudança que as expressões lingüísticas sofrem na evolução histórica da línguas, etc32; de defeitos, enfim, que podem e devem ser consertados. A linguagem perfeita, então, para Mill, não é exatamente um código novo construído, senão a própria linguagem natural reformada para os fins logicistas a que ele se pro-põe.33

Dentro desse restringido horizonte de preocupações com a lin-guagem, a concepção semântica de J. S. Mill sofre naturalmente de algumas limitações. Ele não se questiona seriamente, por exemplo, sobre a natureza do fenômeno lingüístico em suas propriedades in-trínsecas. Com exceção de raras passagens, Mill não demonstra maior interesse nos aspectos fonéticos, mórficos ou sintáticos da língua que examina. Ao contrário, ele os reduz aos interesses semânticos, quan-do, para citar um caso, ele trata expressões complexas inteiras do tipo O lugar que a cultura ou diplomacia da antigüidade tinha destinado como

31 Mill defende uma concepção indutivista da Matemática, tendo em vista a sua concep-

ção de filosofia da ciência como centrada no progresso do conhecimento. Se todo co-nhecimento humano é resultado da experiência e não ancorado em verdades a priori, então a demonstração disso passa pela necessidade de mostrar que também a Mate-mática é caracterizada por proposições reais e inferências indutivas.

32 Cf. Mill, A system of logic, p. 79-80. 33 Mill considera que a reforma da linguagem natural não só é necessária para o trabalho

dos lógicos como também é indispensável à adequada argumentação cotidiana das pessoas. A sua metáfora , conforme a nota 17, de que os professores sentem a necessi-dade de trocar, em seus discípulos, os óculos que distorcem o objeto, é ilustrativa e inspirou idéias análogas na filosofia da linguagem do século XX.

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residência para os príncipes abissínios como simples nomes34. Fica mais patente, ainda, o seu desinteresse pela natureza própria da linguagem e a subserviência aos interesses lógicos a que ele a condena, por ocasi-ão de sua análise do papel dos nomes, proposições e inferências em sua teoria. Quando em (3) e (4), Mill acentua a necessidade de se en-tender que a relação fundamental é aquela entre o nome e a coisa no-meada e não entre o nome e a idéia da coisa, ele, evidentemente, está destacando aquela relação que é relevante para o conhecimento cientí-fico e para a lógica, e não a que poderia ser crucial para a linguagem propriamente dita. De fato, tendo em vista a natureza da linguagem humana, a relação entre o nome e a idéia da coisa ou, em outras pala-vras, entre o código lingüístico e o mental poderia ser considerada de decisiva importância.35 Da mesma maneira, quando, em (5) e (6), ele distingue proposições reais de verbais, com a perspectiva de separar inferências informativas daquelas irrelevantes para o progresso do conhecimento, Mill pressupõe uma concepção de semântica própria para a sua filosofia da ciência. Fosse uma Semântica Lingüística o que estivesse em jogo, certamente as ditas proposições e inferências ver-bais, a que Mill atribui valor menor, teriam uma outra dimensão já que elas expressam relações de hiponímia e sinonímia, por exemplo, de relevância para a mencionada disciplina.36 E é ilustrativo, ainda, um último exemplo de que o fenômeno lingüístico, fora dos interesses lógicos, não faz parte das preocupações de J. S. Mill. Embora a mente, para ele, tal como o corpo, faça parte da ordem natural do mundo,37 e isso sugira um questionamento sobre as relações entre linguagem e cérebro, não lhe ocorre que possa haver uma base biológica subjacente às variações de cada língua, uma espécie de gramática natural e uni-versal por trás da aquisição da linguagem humana. O aprendizado da linguagem, para ele, é explicável, naturalmente, pela capacidade que as crianças têm de generalizar as suas experiências lingüísticas particu-

34 Cf. Mill, A system of logic, p. 26. 35 De fato, ainda que Mill não tivesse uma tese forte de despsicologização da Lógica, ele

tentou distingui-las claramente e, nessa medida, procurou descaracterizar a relação lin-guagem-mente, tratando-a como não-essencial para a semântica.

36 Katz (1972) pode ser um exemplo de interesse para o estudo de inferências lingüisticamente dependentes ou, no dizer de Mill, puramente verbais. Katz (1977, p. 3), aliás, reconhece a influência da teoria milliana dos nomes sobre o seu trabalho.

37 Skorupski (1989, p. 8-9) é um dos que acredita que a filosofia milliana é precursora do movimento atual, em termos quinianos, por exemplo, de naturalização da epistemolo-gia. Ele cita uma passagem do A system of logic – vol. VIII, p. 833 como contendo todos os ingredientes para satisfazer os seus critérios do que se entende por epistemologia naturalizada. Realmente, embora Mill trata a mente como um lugar misterioso e ainda a ser desvendado, ele, já nos seus rascunhos iniciais do A system of logic, a caracteriza, como ao corpo, pela categoria de substância. O ser humano, então, em seu corpo e sua mente, é uma parte da ordem natural do mundo. (Para mais detalhes , De Jong (1982, p. 192) e Skorupski (1985, p. 5) podem ser úteis.)

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lares38. Nesse sentido, se algum universalismo é pressuposto, então é o da forma geral da proposição enquanto entidade lógica e não lingüís-tica. Muito ao contrário, a estrutura das línguas particulares, em suas imperfeições léxico-sintáticas, produz um verdadeiro ocultamento da universalidade da forma lógica a ser explicitada.

Se, então, a concepção semântica de J. S. Mill é completamente de-terminada pelas formas como ele compreende a natureza da lingua-gem, da lógica e suas inter-relações, a sua teoria dos nomes, parte essencial de tal semântica, é um conseqüente produto das mesmas bases.

De fato, já na definição do que seja um nome como uma expressão que denota o que se afirma ou se nega de algo ou ainda aquilo de que se afirma ou nega, o ponto de referência milliano é, claramente, o qua-dro da lógica escolástica. Dentro dela, a tradicional oposição entre termos categoremáticos e sincategoremáticos não só está por trás da distinção que Mill defende entre nomes, palavras que denotam, e ex-pressões não-denotativas ou estruturais, como, ainda, o dirige para a relação entre o processo de denotação dos nomes e os papéis proposi-cionais de sujeito e predicado39. Tal aproximação, entretanto, entre a categoria dos nomes em sua atividade denotadora e as funções de sujeito e predicado não é, de forma alguma, não-problemática. A pri-meira complicação que surge para Mill diz respeito aos adjetivos. Ele observa que tal espécie de palavra não ocupa, normalmente, o lugar do sujeito. Uma sentença como O pesado caiu não é quotidianamente aceitável, porque pesado parece não poder designar uma coisa de que algo possa ser afirmado ou negado. Mas se isso é assim, se o adjetivo não designa uma coisa, por que tratá-lo como um nome? A solução que Mill encontra, como já se disse em outra parte,40 é interpretar-se o adjetivo, em seu uso isolado, como equivalente, em termos semânti-cos, a uma expressão nominal mais complexa que sofreu elipse grama-tical e, por meio disso, tratá-lo, naturalmente, como nome. Assim, em A neve é branca, por exemplo, a substituição do adjetivo branca pela expressão nominal uma coisa branca não altera, em nada, o importe da proposição e, se isso é assim, a equivalência semântica autoriza, argu-menta Mill, a incluir o adjetivo na classe dos nomes41. Isso explicaria,

38 Cf. Mill, A System of Logic, p. 37. 39 Para isso, Mill já toma a expressão categoremático como derivada de katégoreó no sentido

de predicar. E como, pelo que Geach (1972) chamou a tese da intercambialidade de Aristó-teles, tudo o que aparece como predicado pode também aparecer como sujeito, Mill i-dentificou o papel do nome de maneira absolutamente compatível com o espírito clás-sico.

40 Veja-se a nota 19. 41 Ao tratar dessa questão dos adjetivos, Mill observa que sua interpretação é mais

sustentável levando-se em consideração que entre os gregos e romanos este tipo de elipse era permitido pelas regras da linguagem e que, se em inglês, Round is easily moved não é aceitável como equivalente à a round object..., isto é um problema gramatical, não

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ainda, os casos esporádicos em que o adjetivo aparece sem problemas como sujeito. O branco é agradável seria, na mesma direção, interpretá-vel como semanticamente equivalente à A cor branca é agradável. Mas, evidentemente, ainda que essa solução seja intuitivamente plausível, ela não evita, em sua concepção reducionista da linguagem, o surgi-mento de outras problemáticas questões. Por que , por exemplo, a elip-se gramatical não sustenta a legitimidade de todas as situações de uso do adjetivo, incluindo aquelas em que esse tipo de palavra, no papel de sujeito, torna a sentença inaceitável como o próprio Mill reconhece ser o caso de O pesado caiu? Além disso, a distinção entre a forma de-notativa dos nomes típicos, os ditos substantivos, e a dos, então no-mes adjetivos, fica carente de explicação, à medida que, se os últimos são formas elípticas de expressões mais complexas em que aparecem os primeiros, isso deve ter causas e conseqüências semânticas. Em última análise, mesmo que não o queira, Mill abre, com a sua solução, o complexo problema das relações entre a forma gramatical e a forma lógica ou, mesmo, entre a sintaxe e a semântica. Finalmente, ainda em conseqüência de sua subordinação aos cânones da silogística clássica, Mill não consegue evitar que a sua aproximação entre a teoria dos nomes e a teoria dos termos da escolástica torne problemáticas algu-mas de suas definições. De fato, ao caracterizar o nome como a ex-pressão que, exceto o seu uso em suppositio materialis, pode constituir o sujeito ou o predicado de uma proposição e ao definir o sujeito e o predicado como nomes que denotam o que se assere ou o de que se assere, o quadro teórico milliano apresenta um pano-de-fundo indese-javelmente circular.42

Mas as complicações da teoria dos nomes de J. S. Mill não se res-tringem, apenas, aos fundamentos e definições. A forma de classificá-los também é problemática. Para a distinção entre universais e singu-lares, por exemplo, já na definição, oferecida em (7), aparece uma razoável questão a ser resolvida. A determinação do caráter singular ou universal de um nome parece estar problematicamente dependente de ele ser verdadeiramente afirmado de uma coisa ou de cada uma de um número indefinido de coisas. Assim, branco é um nome geral à medida que se pode predicá-lo verdadeiramente do leite, da neve, da cegonha, etc., ou em outras palavras, à medida que o é branco, a neve é branca, a cegonha é branca são proposições verdadeiras. Da mesma for-ma, um nome como Kant pode ser considerado singular dado que só se aplica a um único indivíduo, no caso, ao autor da Crítica da razão pura. Mas isso parece inicialmente problemático e provavelmente falso.

aceitável como equivalente à a round object..., isto é um problema gramatical, não se-mântico.

42 Cf. De Jong (1982, p. 7).

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Conforme a formulação da chamada Lei de Buridan por Geach (1970), a determinação da referência de uma expressão não deve depender da determinação da verdade da proposição em que tal expressão partici-pa. Evidentemente, isso faz sentido, porque a verdade da proposição, por sua vez, depende da determinação da referência de seus constitu-intes. A forma como Mill encaminha, portanto, a sua definição parece apontar para uma espécie de violação da Lei de Buridan43. Além disso, a questão dos nomes individuais também parece mais complexa do que a maneira como Mill a apresenta. Ele diz que não importa que mais de uma pessoa tenha o mesmo nome, porque tal nome não as designa em qualquer sentido e, portanto, não pode designá-las no mesmo sentido. De fato, se Aristóteles é um nome que designa o filóso-fo ou o armador grego, mas não o faz através de qualquer proprieda-de, não o faz em qualquer sentido, e isso o distingue de um nome geral. Mas e um nome familiar do tipo Kennedy, por exemplo, como seria classificado na teoria de Mill? Ele parece um nome individual de uma família tomada como singular, mas, ao mesmo tempo, poderia ser aplicado verdadeiramente a cada membro daquela família, o que o credencia como geral. Ainda assim, entretanto, não parece ter qual-quer sentido que o identifique nessa última categoria. Isso sugere que a oposição geral-individual, nos termos de Mill, é bastante tênue. Re-almente, quando ele discute casos problemáticos envolvendo nomes como sol, Deus, o rei que sucedeu Guilherme o Conquistador ou, ainda, o rei, a explicação que oferece não é absolutamente clara e sugere uma alta dependência de fatores extralingüísticos ou pragmáticos de uso. Mill diz, por exemplo, que uma descrição como o rei pode ser um nome geral, mas, dadas certas circunstâncias de uso para um único indiví-duo, pode ser considerado um nome individual, como é o caso de o rei que sucedeu Guilherme o Conquistador, por exemplo. Ao contrário, nomes como sol e Deus, embora predicáveis de uma única coisa, não apresen-tam nada em seu significado que implique isso, devendo ser conside-rados como nomes gerais como justificado pelo uso daquelas pessoas que aceitam deuses e sóis.44 O que parece difícil na análise de Mill é, na verdade, a forma como ele pretende relacionar a questão da refe-rência, externa à linguagem, com a questão da expressão lingüística e seu significado. A sua classificação, em última instância, ou falha ou é resgatada por circunstâncias específicas de uso, mas, nesse caso, trivia-liza o seu valor semântico. Em outras palavras, dizer que um nome é individual desde que ele seja usado para um único indivíduo é seman-ticamente trivial e pouco esclarecedor das diferenças entre as expres-sões propriamente lingüísticas.

43 Cf. De Jong (1982, p. 9). 44 Mill, A system of logic, p. 33.

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A segunda classificação dos nomes em concretos e abstratos tam-bém não é isenta de problemas apesar de ser mais facilmente formulá-vel. Mill parece centrá-lo sobre a diferença de referente do nome co-mo uma coisa ou como atributo. Mas, aqui, já surge a primeira ameaça de dificuldades para o sistema milliano. A pergunta sobre se o atribu-to é ou não uma coisa parece deixar Mill numa aparente falta de alter-nativa45. Se a resposta é sim, a oposição concreto-abstrato se dissolve; se é não, os termos abstratos não se ajustam à definição milliana de nomes como palavras que denotam coisas. Mill certamente diria que o atributo é uma propriedade da coisa e não ela própria e que a defini-ção de nome tomava a palavra coisa num sentido amplo que envolvia coisas e atributos. Mas, nesse ponto, estaria assumindo, de qualquer forma, um compromisso com a vaguidade e amplitude do termo coisa, o que não seria sem conseqüências para a sua teoria dos nomes46. Uma outra questão que Mill enfrenta com um certo preço teórico envolve a articulação entre as classificações concreto-abstrato/geral-individual. Brancura, por exemplo, é um nome abstrato à medida que designa um atributo. É tal nome geral ou individual? Mill opta por tratá-lo como geral, tendo em vista que ele parece aplicar-se a diversas matizes de branco. Já não acontece o mesmo , ele admite, com atributos como a igualdade ou a visibilidade que dão a impressão de ser uma coisa úni-ca. Seja como for, a avaliação de Mill é pouco convincente, especial-mente porque a classificação dos nomes parece ficar em completa de-pendência de uma decisão empírica sobre a natureza dos atributos referidos. Justamente isso, aliás, aponta para um dos problemas na classificação milliana. É certo que Mill, mesmo propondo a existência de nomes abstratos, não aceitaria qualquer compromisso com uma ontologia de coisas abstratas. Os atributos, para Mill, são as próprias e naturais propriedades das coisas e não entidades platônicas. Também não aceitaria, é claro, considerá-los idéias das propriedades na mente à medida que os nomes são nomes das coisas e não de idéias delas. Mas isso implicaria, então, a completa identificação da referência se-mântica com o referente real o que é de altíssimo custo para a plausi-bilidade de sua teoria.47 45 Cf. De Jong (1982, p. 10). 46 Mill, na verdade, trata o termo coisa como designando ora a substância , ora o atributo e

ora ambos ao mesmo tempo, como no caso da definição de nome. 47 Como bem observa Skorupski (1989, p. 53), os atributos da semântica e os atributos da

ciência não podem ser os mesmos. Cabe, ainda, observar, aqui, que a questão da natu-reza do atributo está evidentemente ligada ao clássico problema dos universais e que Mill criticou, explicitamente, as três posições tradicionais do realismo, conceptualismo e nominalismo. Como seu ataque, entretanto, é absolutamente mais forte quanto à e-xistência de entidades abstratas e quanto ao papel de unidades mentais na lógica, ele se encontra mais próximo de uma variação do nominalismo, tal como entendido hoje. Na época, Mill condena o nominalismo por se reduzir tudo à denotação e ficar, conse-qüentemente, sem explicações para o significado e o papel informativo das proposi-

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Quanto à divisão dos nomes em conotativos e não-conotativos, Mill está certo em atribuir-lhe a mais alta significação. Ela representa, sem dúvida, a mais destacada contribuição da sua teoria dos nomes à Semântica e à Filosofia da Linguagem. Através dele, Mill produz um sistema de análise bastante esclarecedor de alguns aspectos funda-mentais da linguagem, em termos do significado e referência de pala-vras e expressões e seu papel semântico na estrutura proposicional. Associando-se às outras subdivisões propostas, a oposição conotati-vo/não-conota-tivo permite a Mill estabelecer inúmeras relações alta-mente elucidativas para uma abordagem da significação dos nomes48. Seguem-se, sob a forma de tópicos, as mais relevantes para uma avali-ação da teoria semântica de Mill:

• A conotação é uma relação pela qual um nome pode implicar um ou mais atributos para denotar os objetos que possuem tais atributos.

Se branco denota as coisas brancas, implicando a propriedade da brancura que as identifica, então pode-se dizer que branco conota brancura. Da mesma forma, é compatível com a análise milliana que solteiro denote as pessoas solteiras, conotando os atributos de adultez e não-casado, por exemplo;

• A conotação determina a denotação, mas não vice-versa. Se branco denota a neve, o leite, etc., por conotar o atributo da

brancura comum a tais coisas é possível dizer-se que, em Mill, a última relação determina a primeira. O contrário já não é possível de se afir-mar, em primeiro lugar porque há nomes, como os tipicamente pró-prios que denotam sem conotar. Kant denota o autor da CRP mas na-da conota; além disso, porque duas expressões podem ter a mesma denotação e diferentes conotações. O discípulo de Sócrates e O mestre de Aristóteles podem denotar a mesma pessoa, a saber, Platão e conotar coisas diferentes como a propriedade de ser discípulo e a de ser pro-fessor;

• Todos os nomes são conotativos. De fato, se branco pode denotar um número indefinido de coisas

brancas, o que o caracteriza como geral, isso é possível exatamente porque conota o atributo comum a elas;

• Os nomes concretos são geralmente conotativos, exceto os próprios. Assim, homem, vermelho e largo denotam coisas e conotam os atribu-

tos humanidade, vermelhidão e largura. Platão denota um indivíduo, também é concreto, mas, como já se disse, nada conota;

ções. Cf. Skorupski (1989, 2.5 e 3.9). 48 A afirmação de tais relações parece justificada, explícita ou implicitamente, pelas

análises de Mill entre as páginas 24 a 40 do A system of logic. Sob a forma tópica de a-presentá-las, veja-se Skorupski (1989, p. 53-57).

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• Alguns abstratos são conotativos, outros não. Isso ocorre, segundo Mill, porque atributos também podem ter a-

tributos atribuídos a eles. Assim, se se aceita que o nome defeito deno-te atributos como preguiça, inveja e covardia, por exemplo, isso pode ser interpretado como possível por meio da conotação de má propriedade ou nocividade49; já visibilidade não conota nada.

• O significado de um nome é a sua conotação. Aqui aparece um dos pontos fundamentais da teoria dos nomes de

Mill, a saber, a relação que ele estabelece entre a noção de significado e a de conotação. Se branco conota brancura, esse é o seu significado;

• Nomes próprios típicos não têm significado. Essa oposição dos nomes próprios aos nomes comuns parece ser

uma das intuições básicas do uso da linguagem que Mill deseja captu-rar com sua distinção. Ao contrário dos nomes gerais, ou comuns, que são conotativos e, portanto, têm significado, os próprios são não-conotativos e, conseqüentemente, não têm significado;

• O significado de um nome não-conotativo abstrato é a sua denotação. Esse tópico parece ser mais problemático , mas também responde a

uma das impressões de senso comum no uso da linguagem. Se brancura denota a mesma coisa que branco conota, assim como a conotação do último é o seu significado, também a denotação do primeiro deve sê-lo. E essa constatação corresponde à intuição dos usuários do portu-guês na direção de que brancura e branco têm o mesmo significado.

Como se pode ver, de fato, as relações que Mill estabelece entre denotação, conotação e significado representam uma de suas mais relevantes contribuições à semântica da linguagem natural, através da teoria dos nomes. Mas um tópico merece, ainda, uma discussão espe-cial, porque ele pode ser considerado um dos pontos-chave para o debate contemporâneo e, principalmente, porque tal debate tem sua origem no trabalho de Mill. Trata-se da complexa questão dos nomes próprios.

Parece consensual que a teoria dos nomes de Mill contempla a in-tuição básica de que os nomes próprios são palavras sem significado que servem, apenas, para denotar:

(10) Nomes próprios são não-conotativos: eles denotam os indivíduos que são chamados por eles; mas eles não indicam ou implicam qualquer atributo como pertencentes àqueles indivíduos. Quando nós nomeamos uma criança pelo nome Paulo, ou um cachorro pelo nome César, estes nomes

49 Mill parece, nesse caso, estar tentando mostrar que sua distinção pode explicar certas

relações semânticas um tanto vagas mas que, de fato, são estabelecidas no uso da lin-guagem. Cf. A system of logic, p. 32. Veja-se, também para isso, Skorupski (1989, p.).

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são simples marcas usadas para permitir àqueles indivíduos se tornarem sujeitos do discurso. Pode ser dito, na verdade, que não devemos ter tido algum motivo para dar a eles aqueles nomes antes que outros; e isto é verdade; mas um nome, uma vez dado, é independente do motivo.50

Sem dúvida, como argumenta solidamente Mill a propósito do nome Dartmouth, os elementos conotativos que poderiam ter origina-do a constituição de tal nome parecem esvaziar-se na centralidade da sua função denotativa. Isso explica, inclusive, por que um nome, que teve origem num atributo do objeto denominado, pode permanecer denominando-o, mesmo quando esse objeto já não mais possui aquele atributo.51

Apesar dessa plausibilidade intuitiva, entretanto, a teoria dos no-mes próprios de Mill carrega, nos seus insights, inúmeras perplexida-des. A mais imediata delas e, provavelmente, a que tenha tido mais conseqüências, decorre do fato de que Mill, ao dizer que os nomes gerais denotavam os objetos mediante a conotação da propriedade co-mum a eles e ao dizer que os próprios nada conotavam, deixou inex-plicada a forma como a denotação destes últimos poderia ser deter-minada. Real-mente, a determinação do referente do nome próprio é indispensável para a determinação das condições de verdade da pro-posição de que tal nome participa. A proposição de que Aristóteles morreu no século XX é verdadeira do armador grego e falsa do filóso-fo antigo. Mill não ofereceu, na verdade, nenhuma explicação concei-tual para a forma de fixação da referência dos nomes próprios, embo-ra, quando analisou o contexto de uso de tais nomes, tenha produzido um quadro teórico em que o ato convencional de origem de pôr o nome no objeto é a essência do processo. É o que Mill sugere, quando diz, a propósito de uma comparação com a marca para identificar ca-sas, na história de Ali Babá, que

(11) Quando nós impomos um nome próprio, nós desempenhamos uma operação em algum grau análoga àquela que o ladrão pretendeu ao ris-car a casa. Nós pomos uma marca, não na verdade sobre o objeto em si mesmo, mas, por assim dizer, sobre a idéia do objeto. Um nome próprio é uma marca não significativa que nós conectamos em nossa mente com a idéia do objeto, para que quando quer que a marca encontre nossos olhos ou ocorra em nossos pensamentos , nós possamos pensar sobre aquele objeto individual. Não sendo fixada sobre a coisa em si mesma , ela não nos permite, como o risco, distinguir o objeto quando o vemos; mas ele permite-nos distingui-lo quando falamos dele, ou nos registros de nossa própria experiência ou no discurso de outros; para saber que o que nós encontramos asseverado em alguma proposição da qual é o sujeito, é as-

50 Cf. Mill, A system of logic, p. 33. 51 Cf. nota n°. 28.

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severado da coisa individual com a qual nós estávamos previamente fa-miliarizados.52

Se essa passagem, no entanto, apresenta, como se disse, um certo quadro explicativo, ainda está longe da esclarecedora claridade teori-camente desejável. Isso ocorre exatamente porque Mill, de maneira até certo ponto contraditória, apela para a idéia do objeto que ele mesmo condenara em (3). Um tanto traído pela própria comparação que pro-duz e não tendo como explicar a forma de referir do nome próprio, ele acaba por introduzir uma nova relação entre a palavra e a idéia do referente que, evidentemente, também chama por uma explicação. Curiosamente, na comunicação moderna, são infinitos os usos de no-mes próprios fixados sobre os objetos, justamente num processo aná-logo à marca nas casas que inspirou Mill e que acabou por empurrá-lo para a saída via mente que, embora ele não temesse, provavelmente não desejasse.53 Além disso, é de se destacar em (11) a dependência da semântica milliana para os nomes próprios de fatores pragmáticos. São invocadas as noções de uso, de contexto, do discurso e, inclusive, de familiaridade.

As próximas perplexidades estão ligadas à concepção milliana de que o nome próprio não apresenta qualquer conotação e é destituído, então, de qualquer significado. Num primeiro momento, observe-se que Mill, ele próprio, deixa uma certa margem para interpretações dúbias.

(12) Assim, eu chamo um certo homem pelo nome Sophroniscus. Eu o chamo por outro nome, o Pai de Sócrates. Ambos esses nomes são do mesmo indivíduo, mas seu significado é completamente diferente. Eles são aplicados para aquele indivíduo por dois diferentes propósitos: um, meramente para distingui-lo de outras pessoas de quem se fala; o outro para indicar fato relacionado a ele, o fato de que Sócrates era seu filho.54

De fato, (12) pode, sem nenhuma violência interpretativa, ser en-tendido como pressupondo que o nome próprio tem algum tipo de significado, que este significado é a forma de determinar a referência, e que ele se distingue do nome conotativo apenas pelo modo como refere sem indicar qualquer propriedade. É claro que tudo isso acon-tece porque, mais uma vez, Mill está usando a palavra significado num sentido amplo. Mais especificamente, ele identificaria, é certo, a noção 52 Mill, A system of logic, p. 34. 53 Essa é uma das passagens que têm levado alguns críticos, conforme nota 11, a denun-

ciar o psicologismo de Mill. Não obstante isso, parece que há uma importante diferença entre escorregar em algum tipo de mentalismo e construir um sistema teórico sobre as bases não-confessadas de Psicologia. Se o psicologismo circunstancial é um possível problema para a consistência do sistema milliano, a defesa da última alternativa seria uma tese muito forte sobre ele e, provavelmente, sem evidências textuais suficientes.

54 Mill, A system of logic, p. 36.

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/ A teoria dos nomes na lógica de Mill 204

de significado com a de indicar uma propriedade, mas isso não exime o seu texto de alguma responsabilidade por interpretações ambíguas. Essa questão, aliás, da relação entre nomes próprios típicos e o que viria a se consagrar com o rótulo de descrições definidas caracteriza um dos problemas que, possivelmente, Mill não enxergou em toda a sua extensão. Ele apenas reconhece , como em (12), que as descrições po-dem-se aplicar a indivíduos, mas, ainda assim, distinguem-se deles por serem conotativos. Suponha, entretanto, um nome comercial como Casa da Borracha. É ele um nome próprio ou uma descrição definida? À primeira vista, tal nome parece enquadrar-se no mesmo tipo de análi-se que Mill oferece para Dartmouth, ou seja, a de que embora o nome possa ter sido motivado por partes conotativas em sua constituição pode vir a denotar uma casa comercial que já não mais tenha a propri-edade de vender borracha. Isso parece possível, mas não deixaria de provocar estranheza em quem encontrasse o nome do estabelecimento no guia telefônico, por exemplo, e estivesse procurando borracha. Por quê? A resposta parece ser a de que nada impede que o nome Casa da Borracha seja, ao mesmo tempo, o nome oficial do estabelecimento e mantenha o significado das partes. Como , na verdade, nada impediria que viesse a denotar um objeto sem essa propriedade. De qualquer maneira, o que é certo é que Mill teria dificuldade de estabelecer, co-mo tenta em (12), fronteiras tão claras para esse caso. Veja-se um e-xemplo análogo como é o do nome Geografia. Aqui, também não seria absolutamente natural que a disciplina viesse a ter esse nome ainda que estudasse a mente humana, por exemplo. Ocorre que o nome foi criado com uma certa intenção de que seu significado não seja descon-siderado. Nesse tipo de caso, o que se poderia dizer, pelo menos, é que, enquanto o significado das partes do nome está funcionando, não se pode dizer dele que não tem significado. Talvez Mill dissesse que Geografia está mais próximo de o pai de Sócrates do que de Sophroniscus, mas, então, pareceria estar trabalhando contra a intuição, e isso não seria, certamente, do seu agrado. Um outro caso problemático diz respeito a nomes próprios de família, como Kennedy, por exemplo. Tais nomes, como já se disse antes, parecem pertencer, naturalmente, à categoria dos próprios, inclusive por não ter conotação ou significa-do. Apesar disso, eles podem ser aplicados verdadeiramente a cada membro da família e, com isso, se aproximam dos nomes gerais. Mas não se tem a clara idéia de que conotem algo como a kennedidade, ou propriedade dos que pertencem àquela família. Talvez Mill pudesse compreendê-las assim, ou ainda, observasse que eles não se aplicam, como no caso normal dos nomes gerais, a uma infinidade de coisas, mas, apenas, a um número limitado de pessoas daquela família. Esse tipo de observação não pareceria, contudo, acrescentar qualquer insi-ght novo e esclarecedor para essa situação e, provavelmente, não eli-

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Filosofia, Lógica e Existência / 205

minaria o caráter problemático do exemplo para a sua teoria dos no-mes.55 Ainda na mesma direção surge, para a concepção milliana de nomes gerais, um outro tipo de palavra problemática como tigre, por exemplo. Este nome parece denotar cada animal que pertence ao mesmo tipo, podendo ser aplicado verdadeiramente de cada um de-les. Paralelamente, porém, não parece poder oferecer a propriedade que permita dizer exatamente se um dado animal é ou não um tigre, ou seja, o critério para identificá-lo.56 Mas uma mais complexa dificul-dade para a teoria milliana dos nomes poderia, ainda, ser levantada contra a sua concepção de que os nomes próprios são palavras sem nenhum significado. Trata-se do problema dos enunciados de identi-dade tipo Túlio é Cícero. Mill, de fato, assume que proposições dessa forma são apenas verbais, e que tudo o que elas dizem é, tão somente, que ambas as palavras são nomes do mesmo objeto.

(13) Pois, como já tem sido destacado, nomes próprios não tem estrita-mente nenhum significado; eles são meras marcas para objetos individu-ais: e quando um nome próprio é predicado de outro nome próprio, toda a significação transmitida é que ambos os nomes são marcas para o mesmo objeto.57

A solução milliana, porém, não é tão não-problemática como ele a pretende. Se os nomes próprios, como eles os considera, não possuem qualquer conotação ou significado, então a sua denotação esgota toda a informação que eles podem oferecer e, conseqüentemente, se, em tais enunciados, a denotação é a mesma, nada é informado, e a propo-sição é absolutamente trivial. Mas isso não é, absolutamente, o que se pode aceitar sem discussão. Túlio é Cícero não parece ser exatamente igual a Túlio é Túlio e a Cícero é Cícero. Enquanto as duas últimas sen-tenças parecem veicular proposições verdadeiras a priori, nada impede que a primeira proposição fosse o resultado de uma descoberta a poste-riori. Nesse sentido, a primeira, ao contrário das demais, poderia ser informativa. Mill não pensa assim. Para ele, é incompreensível que Túlio é Cícero seja uma sentença veiculando uma proposição verdadeira a posteriori, se ela não expressa nenhum fato no mundo que tenha vin-do a se constituir com a experiência. Se alguém aprende que Túlio é Cícero, não aprende um fato sobre um objeto nomeado, mas apenas um fato sobre a linguagem, a saber, que aquele objeto tem aqueles dois nomes.58 Seja como for, esse tipo de enunciado de identidade se cons-

55 Cf. Skorupski (1989, p. 56-57). 56 Cf. Skorupski (1989, p. 58). 57 Mill, A system of logic, p. 36. 58 Skorupski (1989, p. 67-69) propõe uma forma mais elaborada de se interpretar o insi-

ght milliano, em termos de que alguém pode saber que Túlio denota Túlio, ou seja, a

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/ A teoria dos nomes na lógica de Mill 206

titui num dos obstáculos mais resistentes para a teoria milliana de que o papel semântico dos nomes próprios se esgota completamente em sua forma direta de referir. Cabe, ainda, considerar uma última ques-tão que, surpreendentemente, não foi desafiada por J. S. Mill como mereceria. Ela diz respeito à possibilidade de o nome próprio ou não denotar nada ou denotar um objeto sem existência real. 59 Realmente, se se considera que todo o papel do nome próprio é denotar, se não é bem-sucedido nisso, então semanticamente o que resta? A desatenção de Mill talvez não seja tão estranha. Quando ele define o nome , atri-bui a ele a propriedade de denotar coisas reais ou imaginárias.60 Nesse sentido, ele parece não considerar a hipótese de qualquer comprome-timento ontológico com objetivos sem existência, mas, apenas, a de que constata mais uma das intrigantes propriedades da linguagem. Mill pressupõe, então, uma aceitação simplista de que os nomes fun-cionam assim e basta. De maneira análoga, talvez, a falta de importân-cia que ele atribui à ausência de denotação pressupõe uma compreen-são similar de que os nomes não só podem denotar coisas imaginárias como, inclusive, não denotar. De qualquer forma, o que é certo, mais uma vez, e finalmente, é que se Mill reduz toda a semântica do nome próprio à denotação, sua teoria não tem o que dizer para casos de vacuidade referencial, a não ser que não há nada semanticamente con-siderável. E isso não é, absolutamente, incompatível com a sua con-cepção de linguagem enquanto instrumento imperfeito de mediação do pensamento para a realidade. Apenas chama a atenção que ele não a tenha denunciado enfaticamente por isso.

Se é verdade que a teoria dos nomes de J. S. Mill enfrenta, como se pôde constatar, um número expressivo de perplexidades, esse é, ao mesmo tempo, o seu indiscutível valor para as Semânticas Lingüística e Lógica e para a Filosofia da Linguagem. Como a história mais tarde evidenciaria, obras de extraordinária repercussão contemporânea co-mo as de Frege, Russell, Kripke recolheram dos insights de Mill pro-blemas e encaminhamento de soluções que dirigiram as relações entre lógica e linguagem nos últimos anos. E, seja para endossá-lo, seja para contestar as suas posições, participaram intensamente da estória con-tada por ele.

Referências bibliográficas

regra de denotação para Túlio, saber que Cícero denota Cícero, ou a regra de denotação para Cícero, e, ainda assim, não saber que Túlio é Cícero. Nesse sentido, o conteúdo semântico do nome seria dado pela regra de denotação para ele.

59 Cf. Skorupski (1989, p. 68). 60 Veja-se nota 20.

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Filosofia, Lógica e Existência / 207

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Filosofia, Lógica e Existência / 207

LUIZ CARLOS BOMBASSARO

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

O alfabeto do pensamento: notas sobre a história da Lógica no Renascimento

Se quisermos saber algo sobre a Lógica no Renascimento e, para nos informamos preliminarmente sobre o assunto, fizermos uma consulta aos livros de História da Lógica, poderemos ficar surpresos. Não tan-to pela falta de informações sobre o tema, mas principalmente pelas ava-liações do desenvolvimento da Lógica nessa época, seremos obri-gados a reconhecer que , na maioria das vezes, os historiadores não conseguem reconstruir o amplo horizonte no qual se inscreve a produ-ção filosófica renascentista no âmbito da Lógica. É objetivo deste tex-to, em primeiro lugar, mostrar como há uma produtiva controvérsia dos historidores da Lógica sobre o assunto. Em segundo lugar, apon-tar para a insuficiência da redução historiográfica ao apresentar as tendências da Lógica renascentista como unicamente vinculadas à Ló-gica tradicional e à Lógica humanista. Em terceiro lugar, nossa inten-ção é revisitar uma tradição renascentista de estudos lógico-filosóficos, geralmente ignorada pelos historiadores da Lógica, a tra-dição da combinatória, cuja importância se inscreve na elaboração e fundação do moderno conceito de método científico. Evidentemente, nem é necessário dizer que não temos a pretensão de esgotar nessas notas um tema que demanda uma longa e rigorosa investigação.

William e Martha Kneale,1 referindo-se à complexidade inerente aos estudos da história das idéias, apresentam uma avaliação pouco honrosa para a Lógica renascentista. A avaliação do casal Kneale está consubstanciada na seguinte afirmação: “Quando consideramos o que é que os homens fizeram da Lógica tradicional durante e depois do Renascimento, encontramos uma tal complexidade na história das i-déias que deixa de ser útil manter a ordem estritamente cronológica na referência aos diversos aspectos que temos que fazer.”2 Não gosta- 1 KNEALE, William, KNEALE, Martha. O desenvolvimento da Lógica. 3. ed. Lisboa: Ca-

louste Gulbenkian, 1991. v. 8, 773 p. 2 KNEALE, William, KNEALE, Martha. Op. cit., p. 303.

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ria de tratar da questão da complexidade ao qual os autores se refe-rem. Neste aspecto sua avaliação parece ser adequada, pois o Renas-cimento é caracterizado pelo efetivo operar histórico das mais diver-sas tradições de pensamento. Entretanto, gostaria de me deter somen-te na expressão “o que é que os homens fizeram da Lógica tradicional durante o Renascimento”.3

O tom de indignação presente nessa afirmação mostra que , na o-pinião dos seus autores, alguma coisa de anormal aconteceu à Lógica neste período da história. Parece fora de dúvida que o casal Kneale quer expressar um juízo de valor negativo sobre a produção teórica dos renascentistas no âmbito da Lógica. E a avaliação que eles apre-sentam indica um certo espanto diante dos rumos do desenvolvimen-to da Lógica nessa época. Muito mais, como se a Lógica não tivesse tido nenhum progresso e, por isso mesmo, quase nenhum sentido para os estudos filosóficos realizados durante o Renascimento.

Contudo, a adjetivação que acompanha a palavra Lógica, poderá significar muito para salvar alguma coisa daquilo que então se produ-ziu, pois os autores citados sempre fazem referência a uma tradição específica da Lógica, a Lógica tradicional. Eles inequivocamente estão se referindo à Lógica aristotélica, que já havia atravessado os séculos e que agora estava sendo duramente criticada pelos homens da Renas-cença. Mas, por alguns momentos, quando lemos a avaliação dos Kne-ale, temos a impressão de que se esteja tratando não somente da Lógi-ca tradicional mas de toda a Lógica. Simplesmente porque, na avalia-ção que apresentam, eles mesmos dão margem a um reducionismo que identifica a Lógica com a Lógica tradicional, a Lógica aristotélica, que no Renascimento parece-lhes ter deixado de ser interessante. Sua ava-liação deixa de considerar outras manifestações dos estudos no âmbi-to da Lógica em curso durante o Renascimento. Mas os Kneale consi-deram como argumento decisivo em favor de sua tese a opinião de que embora a Lógica “continuasse a ser ensinada nos primeiros anos dos cursos universitários, deixou no entanto de atrair a atenção das melhores inteligências”.4

A posição crítica dos Kneale sobre a Lógica renascentista se emba-sa na análise do conteúdo dos manuais de Lógica usados nas escolas e universidades daquele tempo , manuais escritos sob o peso da tradi-ção. Nisso os autores arriscam uma crítica que vai muito mais longe, quando afirmam que, da metade do século XV à metade do século XIX, embora tenham surgido vários manuais de Lógica, poucas obras contêm “alguma coisa que seja ao mesmo tempo nova e boa”.5 Ou seja,

3 KNEALE, William, KNEALE Martha. Op. cit., p. 303. 4 KNEALE, William, KNEALE Martha. Op. cit., p. 303. 5 KNEALE, William, KNEALE Martha. Op. cit., p. 303.

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aceitando essa avaliação parece que o pensamento renascentista não contri-buiu em nada para o desenvolvimento da Lógica, uma vez que nos manuais não foram introduzidas coisas novas. Assim, as possíveis mudanças ocorridas nessa época não passariam de um novo arranjo do material produzido pela filosofia aristotélica antiga.

A crítica do casal Kneale avança ainda mais. Para eles, “os homens do Renascimento adquiriram uma atitude romana perante a investiga-ção acadêmica, com o resultado que a Lógica genuína foi desprezada e substituída pela Retórica e os livros que pretendiam ser acerca de Ló-gica tinham muitas vezes tantas citações de Cícero como de Aristóte-les.”6 Aqui começam a surgir as razões da crítica. A importância da Lógica aristotélica reduziu-se, porque a retórica veio tomar o seu lu-gar. Por isso, para evitar a complexidade da história das idéias, que poderia levar o historiador da Lógica a considerar a importância do renovado interesse pela Retórica e mostrar como a Lógica poderia servir de fundamento, resta-lhe somente citar como mau argumento para sua avalia-ção a mesmice com a qual tratavam do assunto os ma-nuais de Lógica utilizados nas escolas e universidades da época.

A perspectiva exageradamente negativa em relação ao desenvol-vimento da Lógica no Renascimento, não deixa o casal Kneale desacompanhado. Carl Prantl considera a História da Lógica do século XV ao século XVII “o interregno da decadência”.7 Ernst Cassirer, mesmo afirmando que nesse período a Lógica procura libertar-se da Metafísica para se transformar numa metodologia do pensamento científico, compara a produção de comentários e obras sobre temas de Lógica realizados na Idade Média com a produção dos séculos XV e XVI e chega à conclusão de que os estudos no âmbito da Lógica produzidos pela Filosofia renascentista, em especial no humanismo, mostram “um saldo pobre e até insignificante”.8 Nesta perspectiva também se concentram as análises de Ivo Thomas, quando afirma que esse interregno, o período de transição entre a Lógica medieval e a Lógica moderna, foi marcado pela esterilidade.9 Ao tratar deste mesmo período, Robert Blanché fala do ‘adormecimento’ da Lógica, embora atribua valor aos estudos lógicos de Petrus Ramus e à Lógica de Port-Royal.10 Mas será que as coisas se passaram mesmo desse modo? Teria a Lógica deixado de ter importância para os renascentistas? Teriam sido os estudos da Lógica realizados durante o Renascimento ocupação de 6 KNEALE, William, KNEALE Martha. Op. cit., p. 305. 7 VON PRANTL, Carl. Geschichte der Logik im Abendlande. Leipzig, 1870. p. 855. 8 CASSIRER, Ernst. El problema del conocimiento en la Filosofia y en las ciencias modernas.

México: Fondo de Cultura Económica, 1986. v. 1, p. 149. 9 THOMAS, Ivo. El interregno entre la logica medieval y la moderna. In: PRIOR, Arthur

N. Historia de la logica. Madrid: Tecnos, 1976. p. 99-109. 10 BLANCHÉ, Robert. História da lógica de Aristóteles a Bertrand Russel. Lisboa: Ed. 70,

1985. p. 171.

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inteligências menos brilhantes? Atualmente existem estudos que pro-curam mostrar que opiniões como aquelas apresentadas acima não fazem justiça à produção teórica renascentista no âmbito da Lógica, mesmo se sua maior riqueza não se encontre no desenvolvimento da Lógica tradicional, a Lógica aristotélica defendida pela escolástica medieval.

Bochenski concorda que o Renascimento tenha sido um período de transição entre a Lógica clássica e a Lógica matemática, mas sua avali-ação é mais parcimoniosa, especialmente quando identifica nesse perí-odo as raízes da Lógica matemática no método do cálculo lógico.11 Nisso Bochenski é acompanhado por Blanché, que identifica no Renas-cimento o desenvolvimento dos primeiros estudos da Lógica matemá-tica.12 Ashworth e Jardine13 também não aceitam uma avaliação nega-tiva do desenvolvimento da Lógica renascentista. Ashworth mostra que o Renascimento apresentou importantes contribuições ao estudo da Lógica, mesmo quando se considera a produção dos comentários aos textos clássicos da tradição aristotélica recebidos através da filoso-fia medieval.14 Já Jardine mostra que as considerações dos humanistas sobre a dialética não podem ser entendidas sem sua vinculação à Ló-gica tradicional, a silogística aristotélica medieval.15

Como sabemos, na Idade Média o estudo da Lógica baseava-se no chamado Organon de Aristóteles, que para os medievais estava divi-dido em duas partes. Uma, considerada a Lógica vetus, formada pelas Categorias – transmitidas ao ocidente latino especialmente pela inter-pretação e comentário apresentados na Isagoge de Porfírio – e pelo De interpretatione. A outra parte, também chamada Lógica nova, era forma-da pelos Primeiros analíticos, Segundos analíticos, Tópicos e Refutações sofís-ticas, cuja interpretação e comentários mais difundidos foram estabelecidos por Boécio.16 Para Crombie, na Idade Média as principais fontes para o estudo da Lógica e da Matemática estavam embasadas na obra de Boécio, que no século VI, além de recompilar tratados básicos de Geometria, Aritmética, Astronomia e Música a partir das obras de Euclides, Nicômaco e Ptolomeu, traduziu as obras lógicas de Aristóteles para o latim.17 Segundo Crombie, a Filosofia medieval pouco conhecia da obra de Aristóteles, já que antes do 11 BOCHENSKI, Innocenty M. Historia de la lógica formal. Madrid: Gredos, 1966. 595 p.

Sobre esse assunto ver, especialmente, a quarta e a quinta partes. 12 BLANCHÉ, Robert. História da lógica de Aristóteles a Bertrand Russel. Lisboa: Edições 70,

1985. p.167. 13 ASHWORTH, E. J. Traditional logic. JARDINE, Lisa. Humanistic logic. In: SCHMITT,

Charles B., SKINNER, Quentin. The Cambridge history of renaissance of philosophy. Cam-bridge: Cambridge University Press, 1988. 968 p.

14 ASHWORTH, E. J. Traditional logic. In: Op. cit., p. 143-172. 15 JARDINE, L. Humanistic logic. In: Op. cit., p. 173-198. 16 CROMBIE, A. C. Historia de la ciencia: de San Agustín a Galileo. Madrid: Alianza, 1987. v.

1, p. 25-26. 17 CROMBIE, A. C. Op. cit., p. 25.

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nhecia da obra de Aristóteles, já que antes do século XIII do Organon aristotélico eram conhecidas somente as Categorias e o De interpretatio-ne, ou seja a Logica vetus. Contudo, a partir da metade do século XII começaram a surgir novas traduções latinas dos textos de Aristóteles, especialmente dos Analíticos, o que permitiu a inclusão da Logica nova no acervo biblio-gráfico da cultura ocidental, que influenciaria sobre-maneira os estudos da Lógica realizados pelos renascentistas.18

Se considerarmos o Renascimento dos séculos XV e XVI, percebe-remos que o estudo do Organon aristotélico entrou numa nova fase, em primeiro lugar, porque surgiram novas traduções, agora feitas não mais a partir do latim mas sim do grego, a língua na qual o próprio Aristóteles havia escrito os seus textos. As primeiras traduções feitas a partir do grego por Johannes Franciscus Burana, Hieronymus Bagoli-nus e Giulio Pace, por exemplo, possibilitaram o surgimento de uma nova interpretação dos textos de Aristóteles. Em segundo lugar, essa nova fase torna-se importante para o estudo da obra de Aristóteles, porque, nessa época, também começaram a ser traduzidos e publica-dos os comentadores gregos da obra de Aristóteles, tais como Ale-xandre de Afrodísias, Themistius, Ammonius, Philoponus e Simplici-us.19 Por isso, o Renascimento dá lugar a uma vasta produção de co-mentários à obra lógica de Aristóteles, comentários que não podem ser considerados simplesmente insignificantes. Dentre eles, destacam-se o comentário aos Primeiros analíticos , de Marsilio de Inghen, publi-cado em Veneza em 1516; o comentário aos Segundos analíticos, de Pau-lo Veneto, que em 1518 já havia sido publicado sete vezes; os comen-tários à Logica vetus e à Logica nova produzidos pelos tomistas da Bursa Montis em Colônia e por Johannes Versor em Paris; e mais os comen-tários de Bartholomaeus Arnoldi, Walter Burley, George de Bruxellas e Petrus Tartaretus , Jacques Lefèvre d’Étaples, Johannes Eck e muitos outros.20

Além disso, por volta da metade do século XVI, enquanto a publi-cação e a influência dos escritos de Tomás de Aquino ia se tornando cada vez menor, os renascentistas reestudaram Aristóteles pela inter-pretação de Averróes. No entender de Ashworth, no final do século XVI podem ser encontrados novos textos de Lógica, que passam a ser adotados nas escolas e universidades. Dentre eles, os comentários de Jacopo Zabarella aos Segundos analíticos, os Commentarii in universam dialecticam Aristotelis de Sebastian Couto, a Introductio in dialecticam de Franciscus Toletus e as Instituitiones dialecticae de Pedro Fonseca.21 Isso mostra que, apesar de se embasar quase que exclusivamente na pro- 18 CROMBIE, A. C. Op. cit., p. 26. 19 ASHWORTH, E. J. Traditional logic. In: Op. cit., p. 143. 20 ASHWORTH, E. J. Op. cit., p. 144. 21 ASHWORTH, E. J. Op. cit., p. 146 e p. 163.

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dução de comentários, o estudo da Lógica no Renascimento não pode ser menosprezado ao ponto de dizer-se que a Lógica deixou de atrair a atenção das melhores inteligências.

Se retomarmos agora aquela afirmação indignada dos Kneale – o que é que os homens do Renascimento fizeram da Lógica –, à luz desses no-vos estudos da história da filosofia renascentista poderemos segura-mente obter novas respostas também para a questão do desenvolvi-mento da Lógica. Se nos ativermos a esta questão, veremos que as críticas à Lógica escolástica ou as tentativas de sua reformulação efe-tuadas por Lorenzo Valla, Luís Vives, Petrus Ramus, Rudolfo Agrico-la, Jacopo Zabarella, Pico della Mirandola, Mario Nizolio e Agostinho Nifo, por exemplo – somente para indicar algumas das melhores inte-ligências da época –, representam não um momento de decadência da Lógica tradicional mas a sua própria superação. Por isso, o encontro de diferentes tradições de pesquisa e, em especial, o surgimento dos estudos humanistas deve ser entendido como um dado positivo para a História da Lógica, pois desempenha um papel muito importante para a revisão da Lógica no Renascimento. O problema central que vincula os humanistas ao estudo da Lógica, como encontrar e justificar bons argumentos, somente poderia ser resolvido mediante o reestudo da Lógica clássica. Isso mostra como o desenvolvimento da Lógica e a revalorização da Retórica são partes de um mesmo processo, processo que leva os humanistas a se afastarem aos poucos do tratamento esco-lástico da Lógica e a criar as condições históricas para um novo mo-mento na história do pensamento ocidental. Neste sentido, trabalhos como aqueles apresentados pelos autores acima referidos estão muito longe de uma produção que poderia ser considerada insignificante.22

Se perguntassemos agora sobre a existência de algo que pudesse identificar os representantes da tradição aristotélica e os seus contendores, os humanistas, teríamos de reconhecer que em pelo menos uma questão suas disputas convergem. Tanto para os escolásticos quanto para os humanistas, a Lógica deveria garantir o bom discurso. Ela era considerada o tribunal diante do qual se poderia decidir sobre o discurso verdadeiro ou falso. E isso já não representa pouco para compreender porque não é possível considerar o desenvolvimento da Lógica no Renascimento sem levar em conta a redescoberta da Retórica. E parece não haver nada de anormal para a história das idéias filosóficas da Renascença, se Cícero e Ovídio aparecem acompanhados por Platão e Aristóteles.

Aqui é preciso ressaltar ainda que , não bastassem os esforços para manter atualizada a Lógica aristotélica, também o crescente interesse pelo estudo da obra de Platão, fomentado pelos humanistas, trouxe ao 22 Ver especialmente JARDINE, L. Humanistic logic. In: Op. cit., p. 173-198.

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mundo renascentista uma nova perspectiva para entender a Matemáti-ca. Isto por sua vez, ao final do século XVI, iria se tornar um elemento imprescindível para a fundação da ciência moderna.23 Ao lado da revalorização da Retórica, a busca de uma metodologia para a investigação científica constitui o âmbito para o qual os estudiosos da Lógica do Renascimento voltavam os seus olhares atentos.

Contudo, é possível ir além disso e investigar em que medida para os renascentistas a Lógica deixava de ser somente um instrumento capaz de garantir o bom discurso para se tornar a arte da invenção e da descoberta. É nesta perspectiva que ganham força os estudos da Lógica combinatória.

Lógica, Combinatória e a Ars magna de Raimundo Lúlio

Quem já não brincou de combinar letras ou números ou figuras? Combinar letras, por exemplo, costuma ocorrer a quase todos quando da descoberta do significado dos caracteres de um alfabeto. Nesses casos, geralmente toma-se um caracter e se o combina com outros es-perando produzir com isso um conjunto de caracteres, que muitas vezes formam uma palavra. Também pode-se tomar um determinado conjunto de caracteres, formado por uma combinação, e fazer um no-vo arranjo dos caracteres que o compõe. Das novas combinações, po-dem surgir novos conjuntos de caracteres. Se tomamos a palavra A-MOR, que é um conjunto de caracteres, e quisermos fazer com os mes-mos caracteres novas combinações, poderemos obter ROMA, MORA, RAMO, OMAR, ARMO, MRAO, ORAM, RAOM, MROA... e assim por diante. Dadas as primeiras letras ou caracteres e seguindo determinadas re-gras, poderemos descobrir e até mesmo inventar novos conjuntos de caracteres ou novas palavras. É também evidente que , após fazermos todas as combinações possíveis – 24 neste caso –, poderemos decidir quais delas fazem sentido e quais devem ser descartadas do nosso mundo lingüístico, porque não fazem sentido algum. Como já se pode observar, algumas combinações produzem palavras que são de uso corrente, outras podem representar siglas, mas outras podem não ter absolutamente nenhum sentido para nós. A combinação pode nos fas-cinar tanto pelos resultados que com ela conseguimos quanto com o seu próprio processo. E foi exatamente isso que encantou as inteligên-cias mais brilhantes do Renascimento.

O que aconteceria se resolvêssemos combinar entre si, de todos os modos, todas as letras do nosso alfabeto? Ou simplesmente se combi-

23 Para uma análise dessa questão, ver neste volume: NEUSER, Wolfgang. O silogismo e a

matemática durante o Renascimento. p. 242-255.

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/ O alfabeto do pensamento: notas sobre a história da Lógica no Renascimento 214

nássemos entre si somente os números de 0 a 9? E se, não bastando isso, associássemos entre si diferentes figuras, em especial as figuras geométricas? Ou, ainda, o que aconteceria se combinássemos não le-tras ou números ou figuras, mas se combinássemos palavras ou ter-mos?

Na filosofia, desde Aristóteles, aprendemos que as proposições que construímos são o resultado de uma combinação de termos. Sa-bemos também que sem essa combinação não é possível predicar a verdade ou a falsidade e que , portanto, verdade ou falsidade não podem ser ditas de termos, mas de juízos ou proposições. Mas perma-neçamos na origem: a combinação entre signos, sejam eles letras, nú-meros, figuras, palavras, termos, ... O que vem a ser mesmo uma combinação? Como ela se torna possível? O que podemos combinar?

Uma importante tradição de pesquisa filosófica renascentista no âmbito da Lógica está vinculada ao que hoje chamamos ‘lógica da des-coberta’, que para os renascentistas era o problema da invenção (in-ventio). A validade dos enunciados estava associada ao processo pelo qual se tornaria possível a sua descoberta. É no interior desta tradição de pesquisa filosófica que se insere a Lógica combinatória. Numa ava-liação superficial desta importante tradição de pesquisa filosófica, po-demos encontrar posições distintas. Uma considera a Lógica combina-tória como a proto-idéia da Lógica simbólica atual e outra, muito mais difundida, a associa a uma estranha e bizarra produção da história do espírito humano. Contudo, mesmo se considerados algo bizarro e estranho por autores ‘modernos’ como Francis Bacon, Descartes e Hegel, os estudos da Lógica combinatória não deixam de figurar entre as mais significativas contribuições para os estudos da Lógica no Re-nascimento.24

Na esteira de uma interpretação positiva da combinatória coloca-se um problema importante para os estudos filosóficos do Renasci-mento, o da investigação de uma língua perfeita, a mathesis universalis, provavelmente o mais importante tema inscrito na elaboração do mo-derno conceito de método científico. De resto, uma avaliação conclu-siva da importância desta tradição de pesquisa para o surgimento da moderna visão de mundo e, em especial, da relação entre linguagem e realidade, ainda está a espera de novos estudos capazes de sobrepas-sar a avaliação negativa predominante no espírito da modernidade.

Baseada na tradição da ars magna de Raimundo Lúlio,25 a Lógica combinatória foi estudada por quase todas as mais brilhantes inteli- 24 Conforme ROSSI, Paolo. Clavis universalis. Arti della memoria e logica combinatoria da Lullo

a Leibniz. Bologna:Il Mulino, 1993. 340 p. 25 Raimundo Lulio (Ramón Llull ou Raimundus Lullus), filósofo catalão, nasceu

provavelmente no ano de 1232, em Palma de Mallorca, e morreu em Túnis no ano de 1311. Sua passagem como mestre em Paris serviu para que se manifestasse contra o averroísmo latino de Siger de Brabante e escrevesse sobre a impossibilidade de

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gências do Renascimento e foi difundida por Nicolau de Cusa, Basílio Bessarion, Agrippa de Nettesheim, Pico della Mirandola, Carolus Bo-vil-lus e Giordano Bruno , entre muitos outros. Também F. Bacon, Descartes e Leibniz estudaram a Lógica combinatória. E mesmo Gali-leu, ao fazer a famosa referência de que o universo está escrito em linguagem matemática, cujos caracteres são figuras geométricas, que se apresentam combinadamente ao olhar atento do investigador, pa-rece se inscrever dentre os herdeiros da tradição da combinatória.26 Tendo em vista a importância dos estudos realizados por esses auto-res, a tradição da Lógica combinatória é entendida hoje como tendo sido a precursora do moderno conceito de método e como tendo pre-parado as bases para o desenvolvimento de pesquisas recentes na área das linguagens formalizadas, das ciências cognitivas, da lingüística comparada e na classificação das ciências naturais.

De onde surgiu o projeto da ars magna de Raimundo Lúlio, não podemos ter muita certeza. Mas ele parece guardar muita semelhança com o trabalho de fundação da Lógica realizado por Aristóteles. Se consideramos especialmente o tratado de Aristóteles sobre as Catego-rias, poderemos perceber que também para o Estagirita o problema da combinação era relevante. Numa passagem das Categorias, Aristóteles escreve: “Estas coisas que elencamos, tomadas uma a uma, em si e por si, não constituem uma afirmação, a qual é gerada pela sua recíproca conexão; e, de fato, toda afirmação, como parece, é verdadeira ou falsa, mas das coisas ditas sem nenhuma conexão, nenhuma é verda-

ísmo latino de Siger de Brabante e escrevesse sobre a impossibilidade de separação en-tre fé e razão. Preocupado com a conversão dos infiéis , Lulio desenvolveu estudos vi-sando a elaborar uma língua filosófica perfeita, uma mathesis universalis, como procura-riam fazer mais tarde Descartes e Leibniz. Para tanto, escrevendo em língua vulgar, apresentou seu sistema como sendo uma ars magna em diversos dos seus livros (Art a-breujada d’atrobar veritat ou Ars compendiosa inveniendi veritatem seu Ars magna et maior, Ars inveniendi particularia in universalibus, Liber propositionum secundum artem demonstrati-onum , etc.). Além disso, escreveu diversas obras consideradas enciclopédicas, tais co-mo Libre de contemplació en Déu ou Liber contemplationis, Arbre de sciencia ou Arbor scientia e obras místicas como Liber de amic e amat (do qual há uma tradução portuguesa, Livro do amigo e do amado, Lisboa , Cotovia , 1990), Libre de Evast e Blanquerna, Libre de Meravel-les ou Félix de les meravelles del món (do qual também existe uma tradução parcial entre nós: Livro das bestas. São Paulo: Loyola/Giordano, 1990.), entre outras. Entretanto, o li-vro mais importante sobre Lógica foi escrito por Lúlio em 1303 e chama-se Logica nova. Uma tradução alemã recente (1985) contém uma boa introdução ao pensamento de Lúlio e uma análise da importância da Logica nova para o pensamento filosófico mo-derno. (Ver Lullus Raimundus, Die neue Logik – Logica nova. Hamburg: Felix Meiner, 1985.) Sobre Raimundo Lúlio ver, em especial: CARRERAS Y ARTAU, J. De Ramón L-lull a los modernos ensayos de formación de una lengua universal, CSIC, Delegación de Barce-lona, Barcelona; YATES, Frances A. (1982) Lull & Bruno – Colllected Essays, v. 1, Lon-don, Routledge & Kegan Paul; ROSSI, Paolo (1983) Clavis Universalis – Arti della memo-ria e logica combinatoria da Lullo a Leibniz, 2. ed., Bologna , Il Mulino; e ECO, Humberto (1993) La ricerca della lingua perfetta nella cultura europea, Roma, Laterza.

26 GALILEI, Galileo. O ensaiador. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 119.

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deira ou falsa [...].”27 A conclusão de Aristóteles é de que a verdade ou a falsidade nunca aparece se tomamos os termos isoladamente. Para que possamos saber e dizer do verdadeiro e do falso temos, an-tes, de fazer uma ligação, uma conexão, uma combinação de termos. Somente do resultado dessa combinação podemos predicar verdade ou falsidade.

Pode parecer evidente que a filosofia ocidental tenha aceito essas formulações de Aristóteles como a base da Lógica, mas poucos filóso-fos se ativeram a uma investigação radical do problema da combina-ção como Lúlio. Contudo, embora se apresente como uma ‘Lógica’, a ars magna de Lúlio não pode se reduzir à Lógica, pois ela trata das condições sobre as quais a Lógica se torna possível. Neste sentido, para Lúlio, existe uma relação intrínseca entre Metafísica, Lógica e a ars magna. Entretanto, a ars distingue-se tanto da Metafísica quanto da Lógica. Enquanto a Metafísica, no entender de Lúlio, trata dos entes exteriores à alma, desde o ponto de vista do seu ser, a Lógica consi-dera os entes segundo o ser que eles têm na alma. Já a ars trata dos entes desde a perspectiva da unidade e de acordo com um modo que lhe é próprio.28

Lúlio considera a ars suprema entre todas as ciências, pois ela trata das primeiras intenções, através das quais torna-se possível descobrir os princípios comuns a todas as ciências.29 Por isso, a arte luliana não pode ser interpretada somente como um esboço de Lógica formal. Ela não se limita ao tratamento da estrutura da linguagem. Ela quer tratar da estrutura do próprio mundo.30 Neste sentido, ela deixa de ser uma espécie exótica de Lógica ou uma simples técnica mnemônica. Na ver-dade, Raimundo Lúlio pretendia fazer da ars magna o que fizeram os renascentistas e primeiros modernos ao investigar a possibilidade de um método científico universal.

Não é por acaso que o projeto de Lúlio passa a ter uma influência marcante nos estudos filosóficos no limiar da modernidade. Nas pala-vras de Giordano Bruno , que no final do século XVI levaria adiante o projeto luliano, a ars magna não poderia ser reduzida a uma arte da memória. Sua importância seria muito maior. Para Bruno, “questa arte che è preferibile a tutte le altri... non porta a una semplice arte della memória, ma avvia e introduce anche alla scoperta di molte facoltà”.31 27 ARISTÓTELES, Categorias, 4, 2 a 4-10. 28 LULLUS, Ramon. Ars demonstrativa. In: Opera omnia, Mainz, 1721-1742, III, p. 1. Um

comentário sobre a distinção luliana também pode ser encontrado na citada obra de Paolo Rossi.

29 ROSSI, Paolo. Op. cit., p. 68. 30 ROSSI, Paolo. Op. cit., p.90. 31 JORDANI BRUNI NOLANI. Opera latine conscripta, publicis sumptibus edita, recense-

bat F. Fiorentino [F. Tocco, H. Vitelli, V. Imbriani, C. M. Tallarigo], Neapoli-Florentiae, I, ii, p. 45.

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Por isso, há quem prefira hoje afirmar, como Umberto Eco , que a combinatória luliana não seria um instrumento lógico mas um instru-mento dialético, um método para distinguir e rememorar todos os bons métodos de argumentação em favor de uma tese preconcebida.32

Na tradição da ars magna de Lúlio a própria concepção de método e a função da Lógica não se coadunam com o pensamento tradicional da filosofia da Idade Média. Ela forma uma nova tradição de pesquisa na qual são produzidos novos conceitos. Dentro dessa nova tradição, a Lógica não trata somente dos problemas relativos à validade do discurso. Ela pretende também mostrar como o discurso se torna pos-sível. Por outro lado, ela também pretende mostrar que além da sua vinculação com a Metafísica, a Lógica não pode ser dissociada da Cosmologia e da Ética. Mas, como se torna possível e qual a validade de tal empreendimento? Como Lúlio pretende desenvolver seu proje-to de uma ciência geral e universal?

Lúlio serve-se da combinatória, uma técnica que consiste em orga-nizar letras e figuras.33 Sua ars é constituída a partir de nove letras (B, C, D, E, F, G, H, I, K) e quatro figuras básicas, que podemos também chamar de esquemas ou artifícios através dos quais podem ser com-preendidas as relações entre os elementos que compõem o sistema. Como base do sistema, Lúlio estabelece uma tabela generalis, ao estilo de uma tábua de categorias, como havia sido proposta por Aristóteles e que, mais tarde, também seria redesenhada por Kant. Em sua tabela geral, Lúlio apresenta uma lista de seis conjuntos de nove entidades cada um, representando ordenadamente os conteúdos corresponden-tes a cada letra, como mostra a figura abaixo.

32 ECO, Humberto. La ricerca della lingua perfetta nella cultura europea. Roma: Laterza, 1993,

p. 63. 33 As diferentes maneiras como podem ser ordenados os elementos de um conjunto são chama-

das permutações. Já as diferentes formas como de um conjunto de n elementos podem ser es-colhidos p desses elementos são chamadas combinações de n elementos p a p. As diferentes formas de como extrair, segundo uma certa ordem, p elementos de um conjunto de n elemen-tos são chamados arranjos de n elementos p a p e são dados por n!:(n-p)!

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Tabela generalis ou o Alfabeto da Arte de Raimundo Lúlio. Nesta tabela encontramos, além da coluna das letras que indicam

o conteúdo de cada entidade, as linhas que contém os seis conjuntos nos quais estão organizadas as entidades. Na primeira linha (A) apa-recem nove princípios absolutos, também chamados Dignidades Divi-nas (Bonitas, Magnitudo, Aeternitas, Potestas, Sapientia, Voluntas, Virtus, Veritas e Gloria); na segunda (T), nove princípios relativos (Differentia, Concordia, Contrarietas, Principium, Medium, Finis, Majoritas, Aequalitas, e Minoritas); na terceira (Q), nove questões (Utrum, Quid, De quo, Quare, Quantum, Quale, Quando, Ubi e Quomodo ou Cum quo ); na quarta (S), nove sujeitos (Deus, Angelus, Coelum, Homo, Imaginatio, Sensitiva, Vege-tativa, Elementativa e Instrumentativa); na quinta (V), nove virtudes (Ius-titia, Prudentia, Fortitudo, Temperantia, Fides, Spes, Charitas, Patientia, e Pietas); e, na sexta linha (V), nove vícios (Avaritia, Gula, Luxuria, Super-bia, Acidia, Invidia, Ira, Mendacium e, por fim, Inconstantia).

Construída essa tabela e estabelecida a regra básica segundo a qual somente os princípios absolutos são sujeitos de predicação en-quanto os outros cinco conjuntos somente podem ser predicados, Lú-lio procurará então mostrar como pode funcionar o seu sistema, tra-çando todas as possíveis combinações entre os princípios absolutos (as Dignidades Divinas) e os demais conjuntos. Para tanto, ele estabelece o modo de organização dos elementos do sistema servindo-se basica-mente de quatro figuras (esquemas), três das quais em forma circular, também conhecidas como rodas lulianas, e uma em forma de diagra-ma. Para Lúlio, a combinação de todos os elementos da tabela apre-sentaria uma verdadeira descrição do mundo, o que demonstraria que a Lógica e a Ontologia não poderiam ser compreendidas separada-mente.

As figuras mais importantes para a ars magna de Raimundo Lúlio são as rodas, figuras nas quais círculos concêntricos são sobrepostos de tal modo que possam gerar combinações.

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Primeira figura Segunda figura Na primeira roda ou primeira figura luliana, que combina entre si

os princípios absolutos, são possíveis 36 pares, que podem ser dupli-cados (se considerarmos que cada letra pode ser entendida uma vez como sujeito e outra vez como predicado). Dessas combinações, con-siderando-se as linhas do interior da figura, podem ser obtidas sen-tenças como: “ a beleza é grande”, “a beleza é boa”, “a grandeza é be-la”, “a grandeza é boa”, “a bondade é grande” e assim por diante.

Na segunda roda ou segunda figura, Lúlio quer apresentar as re-lações vários tipos de elementos ou entidades. Como mostra Eco , “es-ta figura não contempla nenhuma combinatória, consiste simplesmente num artíficio visual-mnemônico que permite recordar as relações fixas entre vários tipos de relação e vários tipos de entidade”.34 Conside-rando as relações estabelecidas pelo triângulo lógico desenhado no interior desta figura, podemos perceber que a concordância e a con-trariedade podem ser ambas consideradas quando nos referimos a: a) duas entidades sensíveis, como pedra e planta; b) uma entidade sensí-vel e uma intelectual, como alma e corpo; e c) duas entidades intelec-tuais como alma e anjo.35 Isso torna evidente que no pensamento de Lúlio, Cosmologia, Metafísica e Lógica coincidem.

Na figura em forma de diagrama, apresentada abaixo, também chamada terceira figura, Lúlio apresenta as possíveis combinações binárias entre as letras que constituem sua tabela generalis. Para o suces-so desta combinatória, Lúlio também estabelece um conjunto de re-gras mediante as quais são definidos os termos de cada combinação. Diferentes variantes desta figura repetem-se com muita freqüência na obra de Lúlio e na Filosofia renascentista.

Terceira figura Quarta figura 34 ECO, Humberto. Op. cit., p. 60. 35 ECO, Humberto. Op. cit., p. 60.

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Se considerarmos agora a quarta figura, poderemos perceber que , pela simplicidade de sua estrutura e seu funcionamento, ela se apre-senta como um protótipo útil para a combinatória, protótipo que seria constantemente revisitado na tradição lulista, em especial durante o Renascimento. Basicamente a figura é composta por três círculos con-cêntricos de dimensão decrescente aplicados um sobre o outro, cada um deles contendo os nove elementos indicados pelas letras B, C, D, E, F, G, H, I e K. Considerando que os dois círculos concêntricos internos são móveis, poder-se-á obter 84 combinações diferentes, do tipo BCD, CDE, EFG... Entretanto, porque Lúlio introduz a letra T, como um artifí-cio que serve tanto para estruturar as combinações – mudando a refe-rência entre os conjuntos que compõem a tabula generalis – como para facilitar sua memorização, o número de combinações possíveis passa para 126. Deste modo, quando consideramos os outros conjuntos: as questões, os sujeitos, as virtudes e os vícios, podemos formar sempre novas combinações, que poderiam mostrar a totalidade do mundo.

Portanto, o sentido de se montar estratagemas como esses parece ficar evidente. Mas o que isso tem a ver com Lógica? Para Lúlio as combinações permitiriam a construção de silogismos regulares e, com isso, poder-se-ia estabelecer bons critérios capazes de garantir toda e qualquer a argumentação. Além disso, o uso da combinatória serviria para descobrir ou inventar novas proposições. Neste sentido, o esfor-ço teórico de Raimundo Lúlio, mesmo pretendendo ir muito mais a-lém da justificação racional fornecida pela argumentação baseada na silogística, criando um artifício capaz de inventar novas proposições, ainda permanece inscrito na tradição da Lógica do silogismo.

Considerando o que havia sido definido por Aristóteles, um silo-gismo é um argumento no qual, estabelecidas certas coisas, resulta necessariamente delas, por ser o que são, outra coisa distinta daquelas que foram estabelecidas.36 Dentro da tradição da Lógica do silogismo , Raimundo Lúlio propôs que além de servir de base para a demonstra-ção da validade dos argumentos, a combinatória deveria ser conside-rada uma ars inveniendi, uma arte da invenção e da descoberta. Entre-tanto, como dissemos, para Lúlio a Lógica não pode ser compreendida como algo separado da Metafísica e da Cosmologia e, neste sentido, ele procura reunir diferentes tradições de pensamento filosófico , que vão da Lógica aristotélica à cabala judaica, passando pela tradição agostiniana e pelos neoplatônicos.

Mas será que os resultados das combinações poderiam ser consi-derados sempre válidos e, portanto, poderiam servir para a constru-ção de silogismos perfeitos? Seria o resultado da Lógica combinatória suficiente para garantir uma boa argumentação? Parece que o limite de 36 ARISTÓTELES, An. pr. , I, 24 b, 18-23.

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sua arte pode ser encontrado exatamente no fato de que ela poderia gerar combinações que o juízo não deveria aceitar. Ou, em se tratando da Lógica silogística, ela poderia construir silogismos cuja conclusão poderia ser absurda. Contudo, dirá Lúlio, se o resultado de uma com-binação soa como absurdo aos olhos da razão, então será aquele que faz uso da arte combinatória quem deverá saber decidir sobre quais as descrições que podem ser aceitas e quais as que devem ser rejeitadas. Mas, poderíamos perguntar agora, em que base e como podemos sa-ber quais as combinações que devem ser aceitas como válidas e quais as que não o devem? Nesse caso, a resposta de Lúlio será clara: so-mente podemos considerar válidas as combinações que encontrem uma real correspondência com o cosmos. Portanto, uma das conclu-sões a que se chega agora é a de que , para o nosso autor, o critério para afirmar a verdade ou a falsidade de uma proposição não pode estar restrito à Lógica. Poderíamos dizer que , se fosse assim, Lúlio teria chegado a um beco sem saída, porque essa situação mostraria os limites de sua arte. Contudo, considerada a teoria da similitude, na qual está embasada a sua arte, a Lógica combinatória ganha sentido na medida em que reconstrói o mundo dos enunciados à imagem e seme-lhança do mundo das primeiras intenções, o mundo da coisas. Como vemos, há no projeto da ars magna de Lúlio uma clara apresentação e defesa da teoria correspondencial da verdade.

Para que se possa fazer uma avaliação mais precisa da Lógica luli-ana torna-se necessário, portanto, em primeiro lugar, considerar a definição apresentada por Lúlio e, em segundo lugar, reconstruir a história efetiva da tradição na qual sua proposta se inscreve. Conside-rando o primeiro aspecto vale salientar que a Lógica luliana não trata dos nossos conceitos das coisas (intenções segundas) mas da nossa imediata percepção das coisas (intenções primeiras).37 Na filosofia dos escolástica dos séculos XIII e XIV, considerava-se que as primeiras intenções eram os termos que faziam referência aos objetos reais, en-quanto as segundas intenções eram os termos que se referiam aos ob-jetos lógicos. A distinção entre as intenções primeiras e segundas apa-rece com muita freqüência na filosofia de Tomás de Aquino e em toda a filosofia escolástica. Dentre os diversos sentidos que o termo intentio adquiriu na escolástica, destaca-se a concepção tomista, segundo a qual intenção significa a ação e o efeito de tender para algo e a distin-ção entre prima intentio e secunda intentio designa o modo de ser do ato

37 O conceito de intenção, que aqui é usado num sentido lógico e epistemológico, foi

muito estudado na filosofia escolástica da Idade Média e voltou a ser estudado na fi-losofia contemporânea especialmente na tradição fenomenológica, por Brentano e Hus-serl, e na tradição da filosofia da análise da linguagem , por G. E. M. Anscombe e Char-les Taylor.

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cognoscitivo.38 Já Lúlio define intentio como “forma, cum qua logicus sive mathematicus abstrahit similitudines a similato, eo quod extra subiectum eas considerat, et habitum logicalem habere possit”.39 Neste sentido, no Prologus à sua Logica nova, Raimundo Lúlio afirma: “Ve-rumtamen quia logici consideratio circa intentiones versatur secundas, quas perfecte cognoscere nequit, primis intentionibus ignoratis.”40 Ou seja, os lógicos que não conhecem as primeiras intenções não podem conhecer as segundas. Por isso, a Lógica combinatória, sendo a Lógica das primeiras intenções, deve refletir o movimento da própria reali-dade. Isso faz com que o pensamento de Lúlio seja identificado com o realismo. Daí o seu conceito de verdade depender, por um lado, do modo como se estrutura a realidade e, por outro, do modo como se estruturam logicamente os nossos enunciados, as nossas proposições. Nesta perspectiva filosófica, as proposições sobre as coisas somente seriam verdadeiras quando descrevessem as próprias coisas. Por isso, como já afirmamos, Lúlio dá por pressuposto que haja uma estreita vinculação entre Lógica e Ontologia.

No que diz respeito ao segundo aspecto, a reconstrução da histó-ria da recepção da obra filosófica de Lúlio, da qual se têm ocupado recentemente muitos autores, parece não ser uma tarefa que já esteja concluí-da.41 Contudo, no que diz respeito à História da Lógica, pode-se afirmar que a partir da idéia de uma Lógica das primeiras intenções foram desenvolvidos muitos estudos filosóficos, cuja proliferação mais acentuada pode ser encontrada no Renascimento. Boa parte desses estudos procuraram aperfeiçoar a tabela generalis, a tábua dos princí-pios lulianos, ao ponto de Leibniz, na segunda metade do século XVII, ainda perguntar por que Lúlio havia apresentado um número tão re-duzido de princípios. Além disso, a avaliação da obra de Lúlio nesta perspectiva poderia mostrar como o trabalho de Lúlio foi decisivo para a constituição da moderna Lógica formal. Quando Bochenski afirma que a pré-História da Lógica matemática se estende de Leibniz a Boole, não deixa de tributar a Lúlio a primazia dos estudos sobre o cálculo lógico, que mais tarde viria a se tornar o método da Lógica moderna.42

38 TOMÁS DE AQUINO. Summa theologica , I, q. LIII. 39 LULLUS, Raimundus. Die neue Logik – Logica nova. Hamburg, Felix Meiner, 1985, p.

172. 40 LULLUS, Raimundus. (1985) Op. cit., p. 2. 41 Dentre os autores que através de seus estudos procuraram esclarecer melhor a importância e a

influência do pensamento luliano na filosofia renascentista podemos citar, entre outros: CARRERAS Y ARTAU, J. Historia de la filosofia espanhola (1939); PLATZECK, Ehrard W. Raimund Lull. Sein Leben, seine Werke, die Grundlagen seines Denkes (1962); e YATES, Frances A. The Art of Memory (1966) e Lull & Bruno. Collected Essays (1982).

42 BOCHENSKI, Innocenty M. Historia de la Lógica formal. Madrid: Gredos, 1966, p. 287.

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Assim, como podemos observar, foi nas melhores inteligências do Renascimento que os estudos lulianos produziram o maior impacto, constituindo uma importante tradição de pesquisa filosófica que não pode ser ignorada ou mal avaliada. Na impossibilidade de reconstruir na totalidade a história dessa tradição, que vai de Lúlio a Leibniz, passando por Jungius, finalmente gostaria de considerar brevemente o efeito que a obra de Lúlio teve sobre o pensamento de Giordano Bru-no, especialmente para mostrar a presença e o desenvolvimento da tradição da combinatória no pensamento filosófico renascentista.

Lógica, Combinatória e Arte da Memória em Giordano Bruno

Giordano Bruno não é um nome que freqüente os livros de Histó-ria da Lógica. Isso certamente se deve ao fato de não ser considerado um filósofo que tenha se ocupado de Lógica. Mas uma leitura de sua obra pode revelar que talvez valesse a pena reconsiderar isso.

Numa primeira aproximação à obra bruniana, podemos apontar para duas atitudes de Bruno diante da Lógica. Por um lado, podemos perceber que seus textos não escondem uma crítica mordaz ao uso comum da Lógica tradicional. Nos livros onde o sarcasmo e a ironia dominam a cena, como é o caso de sua obra teatral, Il Candelaio, Bruno manifesta seu desprezo pelo pedantismo no qual foram transformadas a Lógica e a Retórica clássicas. Também em seu polêmico escrito Spac-cio de la bestia trionfante, Bruno dirige sua crítica contra o uso abusivo e absurdo da Lógica feito pelos gramáticos, contra a concepção vulgar da Lógica que embasa a falsa persuasão dos retóricos e contra os so-fismas e falsas demonstrações dos dialéticos.43 Por outro lado, Bruno se atém, em quase todos os seus textos, a uma tarefa de esclarecer o que é e para que serve a Lógica. Em De gli eroici furori, ele afirma que a Lógica é o método que está sempre pronto para a caça da verdade.44 Para Bruno, cabe à Lógica distinguir, descobrir e julgar.45 Deste modo, a posição de Bruno em relação à Lógica não deve ser desprezada e está a demandar novas investigações.46

43 BRUNO, Giordano. Spaccio de la bestia trionfante. In: Dialoghi italiani. 3. ed., Firenze:

Sansoni, 1985, p.702. 44 BRUNO, Giordano. De gli heroici furori. In: Dialoghi italiani. 3. ed., Firenze: Sansoni,

1985, p. 1121. 45 BRUNO, Giordano. De gli heroici furori. In: Op. cit., 1985, p. 1121. 46 Os estudos mais recentes centrados sobre o questão do pensamento matemático indi-

cam a existência de um vasto e fecundo campo a ser explorado dentro da obra brunia-na. Ver especialmente BÖNKER-VALLON, Angelika. Die mathematische Konzeption der Metaphysik nach ‘De triplici minimo et mensura’ In: HEIPCKE, K. NEUSER, W. WICKE, E. Die Frankfurter Schriften Giordano Brunos und ihre Voraussetzung. Weihnheim: VCH, Acta Humaniora , 1991, p. 75-94.

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No que diz respeito ao conjunto da filosofia de Bruno , Lúlio cer-tamente constitui uma das fontes mais importantes fontes.47 Contudo, especialmente no que diz respeito à Lógica, não podemos deixar de fazer referência ao fato de que encontra-se em Bruno a presença nítida da filosofia de Aristóteles, em especial aquela referente à doutrina silogística tratada na filosofia medieval e do pensamento de Platão, mediatizado pela tradição neoplatônica, de Plotino a Nicolau de Cusa. Assim, ao tratar da concepção bruniana de Lógica, temos de ter pre-sente pelo menos três grandes fontes a partir das quais se estrutura o pensamento de Bruno. Em primeiro lugar, o seu conceito de Lógica depende da tradição aristotélica. Em segundo lugar, ele está vincula-do ao pensamento neoplatônico. E, em terceiro lugar, a concepção de Lógica em Bruno liga-se ao pensamento de Raimundo Lúlio, a partir do qual Bruno pode elaborar sua crítica à Lógica aristotélica.

Como mostrou Blum,48 uma investigação da filosofia de Giordano Bruno não pode deixar de ressaltar a influência do pensamento aristo-télico, especialmente quando se considera a Lógica. Em De progressu et lampade venatoria logicorum, Bruno se ocupou explicitamente da Lógica de Aristóteles.49 Este livro, está dividido em duas partes, De progressu logicae venationis e De lampade venatoria logicorum. Na primeira parte, Bruno faz uma curta exposição sobre a doutrina do silogismo , mos-trando como os silogismos devem ser construídos; e, na segunda, a-presenta um resumo dos Tópicos de Aristóteles.50 Como sabemos, o método silogístico tem como característica básica fornecer regras para que se possa fazer uma determinada combinação. Neste sentido, Bru-no vincula a Lógica combinatória à doutrina do silogismo. Ao tratar da doutrina do silogismo , Bruno procura esclarecer, através do uso imagens e de figuras geométricas, a sua compreensão dos conceitos aristotélicos. Mas sua perspectiva é bem outra que a de Aristóteles. Enquanto a Lógica aristotélica está assentada sobre o princípio de identidade e do terceiro excluído, onde se afirma a exclusão dos con-

47 O pensamento de Giordano Bruno conhece muitas fontes. Em seus escritos encontra-

mos referências à Heráclito, Parmênides , Demócrito, os atomistas gregos e os estóicos. Da literatura clássica romana , Lucrécio, Ausonio e Ovídio são uma presença constante. Os neoplatônicos e David de Dinant ; Alberto Magno e Tomás de Aquino; Mestre Ec-khardt e a tradição da mística e da filosofia judaica (Avicena , Averróes, Ibn Gabirol). Mas não há dúvida de que a maior influência é a de filósofos renascentistas como Mar-silio Ficino, Pico de la Mirandola , Nicolau Copérnico, Paracelso, Francesco Patrizzi, Bernardino Telésio, Raimundo Lúlio e Nicolau de Cusa.

48 BLUM, Paul R. Aristoteles bei Giordano Bruno. Studien zur philosophischen Rezeption. Mün-chen: Wilhelm Fink Verlag, 1980. 168 p.

49 IORDANUS BRUNUS NOLANUS. De progressu et Lampade venatoria Logicorum (1587). In: Opera latine conscripta. v. 2, iii, p. 1-84.

50 BLUM, Paul R. Aristoteles bei Giordano Bruno. Studien zur philosophischen Rezeption. Mün-chen: Wilhelm Fink Verlag, 1980, p. 19.

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trários,51 em Bruno afirma-se a coincidência dos contrários, idéia que podemos considerar como herança da tradição platônica e neo-platônica vinculada à questão da dialética.

A Lógica dos contrários que aparece em Bruno tem uma longa his-tória. Encontra-se nos textos de Platão, é retomada por Plotino , Pro-clo, Dionísio Aeropagita e outros padres da igreja, para depois reapa-recer no âmbito da tradição hermética e mística e encontrar sua articu-lação e sistematização na obra de Nicolau de Cusa.52 Como mostra Monti, o método da Lógica dos contrários parece servir a Bruno para salvar a multiplicidade de um lado e sua visão monista do real de ou-tro [...] Na verdade, parece mesmo que, em Bruno, a Lógica dos con-trários seria o último fruto de um esforço de racionalização do real que encontra seu ponto de apoio na superação do sensível. 53 Neste sentido, a concepção analítica da Lógica aristotélica e a concepção dia-lética da Lógica platônica convergem para uma síntese no pensamento bruniano, síntese que, desde o início, vai tomando forma na obra filo-sófica de Bruno.

Contudo, na base da concepção bruniana de Lógica está, como já afirmamos, o projeto de Raimundo Lúlio. Foi a partir da interpretação da ars magna luliana que surgiram as primeiras obras de Giordano Bruno.54 E é dentro da perspectiva instaurada pela tradição luliana e pela mnemotécnica, que surge em Bruno a tematização da Lógica aris-totélica. Especificamente no comentário aos Tópicos de Aristóteles, apresentado no livro De lampade venatoria, Bruno pergunta por uma ciência fundamental da Lógica55. Aqui se trata de uma ampliação da concepção da Lógica, que consistiria na construção de uma Lógica fantástica, considerada por Paolo Rossi um dos motivos centrais do pensamento de Giordano Bruno 56. A influência da obra de Lúlio sobre o pensamento de Bruno , especialmente quando se considera os pri-meiros escritos brunia-nos, é portanto inquestionável. Círculos, rodas, diagramas e figuras geométricas aparecem constantemente, de modo especial nos textos latinos, onde Bruno tece seus comentários à obra de Lúlio.

A ars magna de Lúlio é considerada por Bruno como uma perfectam inquisitionis disciplina.57 Deste modo, baseando-se nos escritos de Lúlio,

51 ARISTÓTELES, Física. I, 6. 52 MONTI, Carlo. Introduzione. In: Opere latine di Giordano Bruno. A cura do Carlo Monti.

Torino: UTET, 1980, p. 49. 53 MONTI, Carlo. Op. cit., p. 50. 54 Ver TOCCO, Felice. Le opere latine di Giordano Bruno. esposte e confrontate con le italiane.

Firenze: Le Monnier. 1889. 420 p. 55 IORDANUS BRUNUS NOLANUS. De progressu et Lampade venatoria Logicorum (1587).

In: Opera latine conscripta. v. 2, iii, p. 1-84. 56 Ver Paolo ROSSI. Op. cit., 1993, p.140. 57 IORDANUS BRUNUS NOLANUS. Opera Latine conscripta. v. 2, ii, p. 9.

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/ O alfabeto do pensamento: notas sobre a história da Lógica no Renascimento 226

Bruno pensava poder dar acabamento ao projeto de uma ciência fun-damental da Lógica, projeto no qual a silogística pudesse ser ontologi-camente fundamentada e onde a Lógica pudesse ser compreendida como a condição de possibilidade de todo o conhecimento. Na verda-de, Bruno pretendia colaborar com o estabelecimento de um método que pudesse ter validade universal. A Lógica transformar-se-ia assim numa verdadeira metódica, uma ars inviendi capaz de levar à desco-berta da verdade.

Bruno interpreta como fecunda a Lógica combinatória de Raimun-do Lúlio e dela faz uma comparação com a silogística de seu tempo. Em Lúlio, a Lógica era compreendida como uma ciência distinta e mais importante que a Metafísica, mesmo que dessa não pudesse se separar completamente. Enquanto a Metafísica deveria ocupar-se com o estudo do ser das coisas, a Lógica deveria estudar os termos do saber. Do estudo de todas as combinações dos termos, a Lógica deve-ria chegar a descobrir e formular os princípios de toda a ciência. Em Bruno, a Lógica vem associada à arte da memória. Para Bruno a arte da memória é um instrumento, um método de produção e de difusão da ciência e do conhecimento. Contra uma concepção prolixa e com-plexa de ciência herdada da escolástica, Bruno pretende criar uma ars que possa ser compreendida e usada universalmente. Essa universali-dade, acreditava Bruno , somente seria conseguida utilizando-se meios que fossem simples e fáceis de compreeender. Por isso, ele via esbo-çado na filosofia de Lúlio um método capaz de reunir essas condições, um método de explicação capaz de descrever a própria estrutura do mundo. Através desse método, o intelecto humano poderia elevar-se para compreender a permanência constante na eterna mudança, a uni-dade na multiplicidade.58

Bruno desenvolve o projeto luliano vinculado-o à arte da memó-ria, através da apresentação de figuras semelhantes àquelas da ars de Lúlio. Nos livros De compendiosa architectura et commento artis Lullii, Ars reminiscendi,Triginta sigilli et triginta sigillorum explicatio, Sigillus Sigillo-rum, De Lampade combinatoria et De specierum Scrutinio e Animadversiones in Lampadem Lullianam, o projeto luliano de Bruno ganha especificida-de.59 Nesses livros, Bruno apresenta, discute e reelabora a proposta de Lúlio tendo em vista a arte da memória. Servindo-se da combinatória luliana, Bruno pretende fundar uma arte inventiva universal, um ins-trumento capaz de descobrir novas relações Lógicas e novas possibili-dades lingüísticas. A este projeto, Bruno dava o nome de Lógica fantás- 58 Sobre a questão da unidade e da multiplicidade na obra de Bruno, ver HUBER, Karl

Einheit und Vielheit in Denken und Sprache Giordano Brunos. Winterthur: Hans Schllen-berg, 1965, 119 p.

59 IORDANUS BRUNUS NOLANUS. Opera latine conscripta. (1890) v. 2, ii, Florentiae: Le Monnier.

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tica.60 Bruno mantém a idéia básica, o mecanismo da combinatória proposto por Lúlio, mas altera significativamente sua estrutura quan-do amplia o número de sujeitos e predicados lulianos, através da ex-plicitação dos conceitos e intenções, rejeita a distinção luliana entre princípios absolutos e relativos e amplia os modos de combinação, pela inserção de novos círculos à quarta figura luliana. Com isso, o número de combinações possíveis aumenta consideravelmente.

Em De Umbris idearum, Ars memoriae e Cantus Circaeus cada roda bruniana passa a ser constituída não mais por nove caracteres como no caso das rodas lulianas, mas por 30 caracteres – dos quais 23 são as letras do alfabeto latino e os outros sete são caracteres hebraicos e egíp-cios – representando trinta intenções e trinta conceitos, como mostram as figuras abaixo.61

Figura 6 Figura 7

Partindo da ampliação do número de intenções e conceitos, Bruno mostra que o número de combinações possíveis seria muito maior daquele proposto por Lúlio. Como sabemos, a arte de Lúlio trata dos elementos primeiros do pensamento e das combinações possíveis en-tre esses elementos. Os elementos primeiros de todo o pensamento nada mais são que o sujeito e o predicado, que constituem os juízos, forma fundamental do pensar. Por isso, acreditava Bruno , o conheci-

60 IORDANUS BRUNUS NOLANUS. Opera latine conscripta. v. 2, 1, p. 221, 221, 224. Ver

comentário de Paolo Rossi Clavis universalis. Arti della memoria e logica combinatoria da Lullo a Leibniz. 2. ed., Bologna: Il Mulino, 1983.

61 Para uma interpretação do De Umbris idearum ver especialmente a Introduzione à edição crítica elaborada por Rita Sturlese. In: Giordano Bruno. De Umbris idearum. Firenze: Leo S. Olschki, 1991, p. VII-LXXVII. Ver também os já citados trabalhos de Frances Yates e Paolo Rossi.

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mento do modo pelo qual se pode combinar entre si os elementos primeiros do pensamento, os sujeitos e os predicados, daria à mente humana a capacidade de responder à todas às perguntas que ela pró-pria pudesse formular. Na elaboração de suas rodas, Bruno tem dian-te de si as figuras lulianas e identifica na primeira figura todos os pre-dicados absolutos (do tipo Bonitas, Potestas, Sapientia...), na segunda figura os predicados relativos (do tipo Differentia, Concordantia, Medi-um...), na terceira figura as combinações binárias (do tipo BC, BD, BE...) e na quarta figura as combinações ternárias (do tipo BCD, BED, BEF,...), mas o resultado ao qual é levado, tendo em vista o objetivo de sua arte e as modificações por ele introduzidas, é muito diferente daquele conseguido por Raimundo Lúlio.

Na filosofia de Giordano Bruno a possibilidade de combinar entre si os conceitos, as intenções, constitui uma possibilidade efetiva de descrever a estrutura do mundo. Por isso, Bruno não se limita a pen-sar a combinação entre os trinta conceitos e intenções apresentados no De Umbris. Bruno chega mesmo a falar da possibilidade de realizar infinitas combinações, ampliando o número de rodas concêntricas. Se no movimento de uma segunda roda, podemos obter combinações do tipo AB, a introdução de uma terceira roda possibilitaria a obtenção de uma combinação do tipo ABC. A introdução de uma quarta e um quin-ta roda somente viria a aumentar a possibilidade das combinações. Mesmo que não se possa obter um número infinito como resultado, quantas seqüências poderíamos obter com a combinação de 150 ele-mentos de cinco em cinco, considerando que a inversão de ordem entre os elementos não estivesse proibida?

Para Bruno, a importância da combinatória reside no fato de se poder construir artificialmente imagens para facilitar a sua memoriza-ção. Neste sentido, a combinatória revestir-se-ia de um fim eminen-temente prático. Ela deveria permitir a criação e facilitar a memoriza-ção de uma grande quantidade de palavras mediante um número fixo e reduzido de imagens. Do ponto da produtividade na criação das palavras, a combinatória poderia ser entendida como um método arti-ficial capaz de dar origem não somente a novos termos mas também a novas línguas. Por isso, ela vem freqüentemente citada como o melhor método na construção de uma língua universal.

Entretanto, para o propósito deste texto, basta dizer que a combinatória revela-se um momento privilegiado da história do pensamento filosófico renascentista. Especialmente em Bruno , vinculada à arte da memória, a combinatória passa a ser considerada um instrumento sempre pronto para a caça da verdade, uma perfectam inquisitionis disciplina. A pretensão bruniana de criar um método científico universal através do cálculo combinatório inscreve-se na filosofia renascentista como um dos temas mais importantes, cuja repercussão pode ser rastreada através da reconstrução do moderno

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treada através da reconstrução do moderno conceito de método geo-métrico. Bruno está muito consciente da mudança paradigmática de método em curso na Renascença, porque para ele a mathematica é res-ponsável pelas figurationes, imagens mentais que fazemos; e as figuras geométricas mostram a estrutura Lógica do mundo.

Neste sentido, Bruno mostra como a Lógica pode não somente servir para garantir o bom discurso e servir de medium para validar as proposições, mas também para assegurar a possibilidade da boa des-coberta. Ao invés de estar vinculada somente à demonstratio, ela estaria associada à inventio. Daí não ser possível excluir das análises do de-senvolvimento da Lógica renascentista as contribuições de Bruno. Muito menos poder se ignorar a relevância das investigações Lógicas realizadas no Renascimento, mesmo se os caminhos pelos quais elas foram construídas não se mostram tão lineares quanto gostaria uma possível concepção historiográfica da Lógica como aquela que apre-sentamos ao iniciar nosso trabalho.

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/ A matemática e a sociedade 230

OCLIDE JOSÉ DOTTO Universidade de Caxias do Sul

A Matemática e a sociedade

1 – Importância da Matemática para a sociedade

Matemática é arte antiga e, desde o princípio, tem sido o empenho humano mais altamente esotérico e mais intensamente prático. Já pelo ano 1800 a.C., os babilônios investigavam as propriedades abstratas dos números. Em Atenas, a Geometria conferia o mais alto status inte-lectual e constituía o saber por excelência. Entre aqueles povos, ao lado da compreensão e investigação teóricas, a Matemática florescia como uma ferramenta indispensável do dia-a-dia para a agricultura, a navegação e a engenharia do trabalho público. Os problemas práticos e a busca teórica estimulavam-se entre si; teria sido impossível desen-redar esses dois cordões.

Hoje continua a ser exatamente assim. No século XX, a Matemática abriu sua esfera de ação, diversificou-se e aprofundou sua complexi-dade e abstração. Contam-se em torno de 3.500 áreas para publicação, produzem-se nada menos que 400.000 teoremas por ano , e esse núme-ro duplica a cada 10 anos. Foi tão profunda a explosão da pesquisa que uma área inteira da Matemática pode parecer ininteligível ao lei-go, e freqüentemente até ao próprio matemático que trabalha em ou-tra área. A despeito desse rumo para a especialização – de fato por causa dele – a Matemática tornou-se mais concreta e vital que nunca.

Nos últimos 30 anos, a Matemática e as técnicas matemáticas tor-naram-se um componente integrante, difundido, penetrante e essenci-al da ciência, tecnologia e negócios – diz-se até que o grau científico de um conhecimento é o grau de matematização que possui. Na nossa sociedade de orientação tecnológica, o analfabetismo dos números substi-tuiu o das letras como nossa principal lacuna educacional. Po-der-se-ia comparar a contribuição da Matemática para a sociedade com a necessidade do ar e alimento para a vida. Não é exagero afir-mar que vivemos a idade da Matemática, que nossa cultura tem sido matematizada. Todo aquele que se sente deficiente em Matemática,

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sente-se um defi-ciente cultural. Nada se reflete ao nosso redor de maneira mais impressionante que o onipresente computador, cujo in-vento foi possibilitado pela Matemática. Hoje a infra-estrutura atuali-zada de toda empresa e universidade respira computador. Conside-remos alguns exemplos de como o computador nos influencia.

Vôos. Aviões comerciais podem agora aterrizar sem o piloto tocar nos instrumentos. Dados relativos à velocidade e posição são transmitidos automaticamente para um aparelho, chamado filtro de Kalman-Bujcy, que pilota o avião, achando, de modo contínuo , o melhor ajustamento pelos mínimos quadrados, que aproxima as leis de Newton da Física. Semelhantemente filtros de estado guiam foguetes e sondas espaciais, e rastreiam satélites. Esses satélites e foguetes, por sua vez, transmitem fotografias que são submetidas a uma análise espectral por computador, a fim de tornar nítidas as imagens.

Medicina. Amostragem de dados em grande escala permite aos pesquisadores em Medicina correlacionar doenças com comportamen-tos de vida e nutrição; portanto, a análise de dados faz um estudo geral de uma possível epidemia. Os computadores estão revolucio-nando a diag-nose, provendo análise automática de sangue e urina, assim como a tomografia dos órgãos internos. Há dois anos os mate-máticos D. Issac-son e M. Cheney e o engenheiro biomédico Jonathan Newell, no Rensselaer Polytechnic Institute, produziram uma nova tecno-logia, com base na Matemática, que produz em tempo real imagens contínuas do coração, dos pulmões e de outros órgãos, tudo sem cor-tar o paciente, sem abri-lo, sem bombardeá-lo com radiações. A curto prazo, os computadores poderão prever perigo de doença com 10 ou 20 anos de antecedência, aplicando testes simples e não invasivos no paciente. Não é sem razão que o Instituto Courant da cidade de New York, centro de excelência de Matemática Aplicada, dá grande atenção à Matemática na Medicina.

Produção industrial. O método simples da programação linear alte-rou o planejamento da produção industrial, manufatura, controle de estoque e distribuição, conseguindo facilmente calcular a alocação de recursos mais eficiente: é a otimização. A capacidade de manipular e armazenar grande quantidade de dados revolucionou arquivos, fatu-ramentos, contabilidade, etc.

Que é que essas aplicações do computador, totalmente diferentes, como filtros de Kalman-Bujcy, nitidização de imagens via análise es-pectral, estatística médica, tomografia computadorizada e análise de programação linear têm em comum? – Todos são primariamente base-adas na álgebra linear, área da Matemática estruturada no século XIX, com nenhuma dessas aplicações em mente. Na verdade Cayley, que pode ser considerado o criador da álgebra linear, declarou que esta não serviria para nada prático. A motivação para desenvolver essa

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/ A matemática e a sociedade 232

álgebra vinha de tentar compreender a geometria do Rn. Parte da im-plementação dessas idéias ocorreu neste século por pessoas de grande talento matemático. Como área de pesquisa, a álgebra linear parou em torno de 1930 por um período de 30 ou 40 anos, despertando com o uso do computador. Cada uma das aplicações referidas envolve tama-nha quantidade de dados que mesmo o mais rápido computador não poderia obter respostas a simples força bruta. Requerem o desenvol-vimento e uso de técnicas matemáticas sofisticadas.

Poderíamos escrever vários volumes para documentar o valor uti-litário da pesquisa matemática para nossa sociedade e para mostrar como idéias específicas matemáticas influenciaram nosso mundo. Em vez disso, escolhemos alguns casos modernos para ilustrar a profun-didade de muitos subprodutos da Matemática. Enfatizamos dois fatos que ocorrem e sempre se renovam na história da Matemática.

O primeiro fato consiste em que resultados excelentes em Matemá-tica, embora abstratos, conduzem a aplicações na sociedade ou natu-reza. Problemas difíceis na sociedade ou natureza estimulam a criação de nova Matemática:

? Abstração ??

Sociedade-Natureza Matemática ? Aplicação ?

Pode-se entrar nesse ciclo sempre ativo por qualquer um dos la-dos. O lapso de tempo entre a abstração e a aplicação varia enorme-mente. Por vezes a aplicação ocorre imediatamente. Outras vezes leva séculos para uma teoria abstrata causar uma revolução pela sua aplica-ção.

O segundo fato informa que é impossível predizer exatamente on-de uma área da Matemática será útil. Mesmo os pesquisadores que originam as idéias matemáticas são muitas vezes surpresos pelas suas aplicações. O tempo costuma armar ardis àquele que afirma: nunca haverá qualquer uso prático para isto. O grande matemático inglês Hardy, por exemplo, em sua autobiografia, Uma justificativa de um matemático, escreveu que fazia matemática pela sua beleza, não pelo seu valor prá-tico, e que particularmente não via absolutamente nenhuma aplicação para a teoria dos números e a relatividade. Apenas 40 anos mais tar-de, a abstrata teoria dos números teve implicação na segurança nacio-nal: a propriedade dos números primos forma a base para um novo esquema de códigos secretos. Quanto à relatividade, a invenção da fissão e da fusão mostraram que Hardy estava errado.

Pode parecer surpreendente que , por mais abstrata que seja uma área da Matemática – Geometria, Teoria dos Números, Lógica, etc.,

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tenha grande importância prática. No entanto, o cientista da computa-ção, D. E. Knuth, declara: Cada pouco de matemática que conheço ajudou em alguma aplicação duma forma ou de outra. A propósito da Geometria, hoje sabemos como é importante a geometria computacional para a computação gráfica.

O físico Eugene Wigner maravilhava-se da tamanha eficácia da Matemática nas ciências da natureza. Certamente isso tem algo a ver com a atitude do matemático de eliminar tudo, menos o aspeto essen-cial de um problema, para achar o ponto de vista comum, do qual dois problemas aparentemente diferentes resulta estarem relacionados de perto. Mas uma razão objetiva de tal eficácia é que a Matemática é a ciência da ordem. Seu objetivo é achar, descrever e compreender a ordem subjacente em situações aparentemente complexas. A principal ferramenta da Matemática são os conceitos que nos permitem descre-ver essa ordem. Precisamente porque os matemáticos inquiriram du-rante séculos os mais eficientes conceitos para descrever obscuros ca-sos de ordem, seus instrumentos são aplicáveis ao mundo exterior, pois o mundo real é um verdadeiro exemplo de situação complexa, na qual há muita ordem. Ainda: as idéias matemáticas não nascem adul-tas na mente dos pesquisadores; a história mostra que a Matemática se inspira muitas vezes em quadros da natureza. Lições extraídas de um encontro com a natureza continuam a servir-nos também quando ex-ploramos outros fenômenos da natureza.

Sejam quais forem as razões para a importância da Matemática na sociedade, compreender como a Matemática se desenvolve e se aplica tem implicações cruciais. Poderíamos ilustrar amplamente esse ponto com as áreas da computação, da física matemática, das comunicações, da Matemática no campo militar. Mas, para manter-nos dentro do espaço disponível, exemplificaremos com apenas dois subtópicos bas-tante ilustrativos: análise de Fourier, e lógica e computador.

Análise de Fourier

A evolução dessa área, que tem 185 anos de vida, mostra-nos cla-ramente como a Matemática, que é inventada para resolver um pro-blema bem-específico, se torna muito mais importante que o próprio problema. No início do século XIX, Jean Baptiste Joseph Fourier, ape-nas de volta do Egito, onde Napoleão o nomeara governador, decidiu entender o problema da condução do calor. Dada a temperatura inici-al em todos os pontos de uma região, perguntou como o calor se di-funde ao curso do tempo. Foi a curiosidade a respeito de fenômenos, como a temperatura atmosférica e o clima, que levou Fourier a fazer tal pergunta abstrata. Equacionou o problema numa equação, dita

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equação da difusão. Fourier divisou uma simples mas brilhante técnica matemática. Ocorre que essa equação teria uma solução fácil, se a dis-tribuição inicial do calor fosse oscilatória, isto é, essencialmente uma onda senoidal. Para valer-se disso, Fourier propôs decompor toda distribuição inicial de calor numa soma, possivelmente infinita (série), de ondas senoidais e, então, resolver cada um desses problemas mais simples. A solução do problema geral poderia então ser obtida adicio-nando as soluções para cada componente oscilatório (harmônica sim-ples).

Matemáticos franceses altamente conceituados, como Lagrange, rejeitaram pura e simplesmente a idéia, duvidando de que essas har-mônicas simples pudessem expressar adequadamente todas as funções possíveis, criticando severamente a falta de rigor de Fourier. Tais ata-ques obstinaram Fourier por duas décadas, durante as quais levou sua pesquisa adiante com notável perspicácia. Hoje temos um enorme dé-bito para com sua extraordinária tenacidade, sua teimosia e sua habi-lidade em proceder, a despeito de insuperáveis dúvidas na mente dos líderes da ciência instituída. Fourier teve sérias dificuldades em publi-car seu trabalho, mesmo depois de ter recebido em 1811 o Grande Prêmio em Matemática da Academie des Sciences, por seus ensaios sobre o problema da condução do calor, porque a academia expressava gra-ves reservas relativas à generalidade e ao rigor no método de Fourier. Fourier perseverou e, finalmente, seu trabalho teve geral aceitação com a publicação de sua agora clássica teoria analítica do calor, em 1822.

Acontece ser o método da análise harmônica, ou análise de Fouri-er, incomparavelmente mais importante que a solução do problema do calor, virtualmente em todas as áreas, onde a Matemática tem seu papel. Na Matemática formou uma ampla área sozinha. Além disso, as teorias de equações diferenciais, de grupos, de probabilidades, de estatística, de geometria, dos números, só para citar algumas, todas usam a técnica de Fourier para decompor funções em suas freqüências fundamentais. Na Física, na Engenharia e na Ciência da Computação, o efeito tem sido não menos profundo.

De fato, Fourier forneceu um dos mais poderosos instrumentos para a Física Matemática. Uma vez descritas por Maxwell, as ondas eletromagnéticas, com sua famosa equação, em 1873, a análise de Fou-rier torna-se um método-chave para estudar essas ondas e seus com-ponentes harmônicos – raios X, luz visível, microondas de rádio, etc. Muitos mecanismos elétricos e eletrônicos estão baseados na análise de Fourier, inclusos alguns bem recentes, como espectrômetros de ressonância magnética nuclear e espectrômetros cristalográficos de raio X. No presente século, a análise de Fourier forneceu a compreen-

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são básica da teoria quântica e, portanto, de toda a Química e Física modernas.

A idéia de decompor dados nos componentes periódicos tem sido também central na engenharia. Conduziu à transformada de Laplace , ensinada a todo estudante de engenharia, como um método standard de estudar equações diferenciais lineares. A análise de Fourier levou também à análise de séries temporais, que são usadas na exploração de petróleo via interpretação de ondas sísmicas enviadas através das rochas suspeitas de encerrarem petróleo.

O advento do computador recentemente tornou possível realizar a análise de Fourier numericamente como parte da rotina da análise de dados. A capacidade de decompor som em seus componentes harmô-nicos permitiu aos computadores gerar e identificar a voz humana. Executando operações similares na fotografia, por exemplo na foto-grafia por satélite de regiões da Terra, o computador consegue elimi-nar o ruído e, portanto, limpar a imagem.

Mesmo coisa corriqueira, como a multiplicação de dois números, é efetuada muito mais ligeiro com a transformada de Fourier que com o secular método ensinado nas escolas. A idéia é considerar os dígitos de um número como uma função que pode ser expandida numa série de Fourier. Com o uso dessa idéia para números de 1000 dígitos, o método de Fourier no computador torna 50 vezes mais rápida a mul-tiplicação que o algoritmo popular.

Certas tarefas na navegação, executadas via transformada de Fou-rier, somente são possíveis através do engenhoso método, chamado de transformada rápida de Fourier (TRF), que os matemáticos desco-briram para calcular a transformada de Fourier de uma seqüência de números. Sem isso o computador nunca poderia analisar muitos pro-blemas no tempo real, isto é, produzir respostas à medida que os dados são introduzidos e, portanto, evitando engarrafamento. Observamos aqui que a determinação exata do tempo necessário para executar a TRF é um problema difícil, que se articula com teoremas profundos sobre a teoria dos números a respeito da distribuição de números primos.

Na década passada, na França, foi descoberta e desenvolvida uma importante derivação da análise de Fourier, a teoria das wavelets (on-dazinhas), que tem abundantes aplicações: realce de imagens, análise numérica (largamente usada na teoria da computação científica), com-putadorização de impressões digitais (O FBI não perdeu tempo e ar-mazenou 250 milhões de impressões digitais no computador), etc.

Pelo menos tão importante quanto numerosas aplicações à ciência e engenharia tem sido a aplicação da transformada de Fourier à pró-pria Matemática. Como outros cientistas, os matemáticos estão cons-tantemente pesquisando novos instrumentos para resolver seus pro-

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blemas teóricos. Freqüentemente acontece que , técnicas descobertas para resolver um problema abstrato, mais tarde se aplicam a uma grande variedade de outros. Para nos convencermos disso, basta o-lhar as fichas do catálogo de uma biblioteca de Matemática relativa à palavra Fourier. Na biblioteca de Harvard, por exemplo, são 212 fi-chas. As 10 primeiras são: a. F. na teoria de probabilidades, a. F. em n variáveis complexas, a. F. das séries temporais, a. F. de medidas não limitadas em grupos abelianos não compactos, a. F. sobre grupos e análise de onda parcial, a. F. de corpos locais, a. F. de espaços de ma-trizes, coeficientes de F. de formas automórficas, a integral de F. e suas aplicações, operadores integrais de F. e equações diferenciais parciais.

Embora Fourier compreendesse que seu método era importante, tanto que perseverou por décadas, enfrentando intensas críticas, nun-ca teria previsto exatamente quão frutífera seria sua invenção. Embora nem todo desenvolvimento na Matemática tenha tido a influência es-petacular da análise de Fourier, o quadro geral é sempre mais ou me-nos o mesmo: o impacto das boas idéias matemáticas se expande para longe e para direções imprevistas.

Lógica e computador

Os fundamentos da Matemática descansam nos fundamentos da Lógica. Durante séculos, os matemáticos acreditavam que o raciocínio dedutivo nunca poderia levar a resultados contraditórios. Tal sabedo-ria convencional foi posta em dúvida em 1903 pelo famoso paradoxo de Bertrand Russell e Alfred Whitehead: seja C o conjunto de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos; o conjunto C é ele-mento de si mesmo? Uma forma popular desse paradoxo é: Mário é barbeiro da cidade A, que barbeia um barbeiro de A se e só se este não se barbeia a si mesmo; Mário barbeia-se a si mesmo? Em 1915, David Hilbert coordenou um programa destinado a restaurar os fun-damentos da Matemática, pois o mal-estar no mundo da Matemática era grande, pelo fato desses fundamentos estarem abalados. Em 1927, John von Neumann, jovem matemático que trabalhava com Hilbert publicou um famoso artigo, conjecturando que a Lógica Matemática seria em breve mostrada livre de contradições. Pois bem, apenas três anos depois, Kurt Gödel provou que mesmo um sistema tão simples como o da aritmética contém proposições não-decidíveis, isto é, afir-mações, cuja verdade ou falsidade não podem ser demonstradas. Seu método também prova que a demonstração da consistência lógica da Matemática é impossível.

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Acontece que as respostas a essas questões mais ou menos esotéri-cas tiveram enormes ramificações práticas. Em 1936, Alan Turing e Emil Post descobriram independentemente que o problema da consis-tência lógica da Matemática é equivalente à pergunta: que tipo de se-qüência de 1 e 0 pode ser reconhecida por uma máquina abstrata mediante um conjunto finito de informações? Encararam um tal autômato como uma simples caixa preta com uma única fita longa para escrever e ler um único símbolo. Turing e Post provaram um teorema surpreendente a respeito de autômatos: em princípio, existe um autômato universal capaz de identificar qualquer seqüência, identificável por qualquer outro autômato. Em outras palavras, essa máquina universal poderia, com uma seqüência finita de instruções, imitar outra máquina com propósito específico. Foi o nascimento do computador universal. As idéias lógicas foram levadas adiante por Church, Kleene e outros. Mas foi o grande matemático John von Neumann que viu a maneira de implementar o autômato universal como um computador eletrônico com instruções armazenadas, isto é, um programa que a própria má-quina poderia alterar no curso do cálculo. Neumann e seus colegas, então, assumiram a tarefa de dominar a técnica monumental necessá-ria para tornar o teórico uma realidade. Uma década depois, apare-lhos como o ENIAC de von Neumann, construído no Instituto para Estudos Avançados de Princeton, estavam operando. Nos primeiros anos deste século, ninguém teria adivinhado aonde conduziria o deba-te esotérico dos fundamentos da Matemática e quais seriam as conse-qüentes transformações da Sociedade em todos os setores de sua ati-vidade.

2 – Interação Matemática-sociedade

A Matemática é inerente à capacidade racional do homem, como parte de sua natureza. Embora de forma fragmentada, ficou claro a-cima como a sociedade se beneficia da Matemática e como, em virtude do desenvolvimento da Matemática, a sociedade se transforma. Mais que nunca, a Matemática está provocando um enorme impacto na ci-ência e na sociedade. Idéias matemáticas abstratas, algumas com mais de um século de existência, ajudaram a tornar possível, por exemplo, a revolução eletrônica que transformou a maneira de nos comunicar e pensar. Nem o rádio nem a televisão nem o telefone nem o satélite nem a máquina calculadora nem o computador nem a maravilha da internet te-riam sido possíveis, se não fossem os inúmeros resultados matemáticos. Recentes avanços da Matemática ajudaram a reforçar nosso poder em prever o tempo , em medir os efeitos dos eventos am-bientais, em estudar a origem do universo, em projetar resultados de

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eleições, etc. Os métodos matemáticos tornaram-se indispensáveis para o funcionamento adequado de nossa sociedade tecnológica. A utilidade da Matemática para a sociedade é maior agora que nunca na história.

No sentido oposto, a sociedade influencia a Matemática de uma forma decisiva. Certamente a Matemática caminha puxada pelo gênio individual, mas este é estimulado pela sociedade e suas aspirações. Há uma longa discussão histórica (na qual só uma minoria se polariza) em torno da questão: é ao gênio do indivíduo que se deve a descoberta matemática, ou é à sociedade e suas necessidades? – É um fato que a maior parte da Matemática Elementar originou-se das necessidades sociais do comércio, da Engenharia, da Agrimensura, etc. Não há ne-nhuma dúvida de que as necessidades práticas sociais tiveram sempre um grande papel no desencadeamento e desenvolvimento da Matemá-tica. Também não há dúvida alguma, como já mostramos, sobre que a Matemática teve e tem grande efeito na evolução da sociedade, por exemplo, na revolução industrial, que não teria acontecido sem as a-plicações técnicas da Matemática à Engenharia. Ninguém duvida, tam-pouco, que as condições sociais podem sufocar (recorde-se a Revo-lução Cultural Chinesa) ou estimular o progresso científico.

No entanto, não se deve perder de vista o fato de que , na Mate-mática Pura se tem uma bela estrutura de deduções logicamente per-feitas que constitui um todo duradouro, pertencente à herança huma-na, que é e deve ser bem independente da existência temporária de quaisquer condições políticas e sociais particulares, localidade geográ-fica particular e tempo particular. A Geometria de Euclides é muito mais importante para nós que as idéias políticas dos dias de Euclides. O valor duradouro da Matemática transcende o fluxo diário do mun-do em mutação contínua. A clara estabilidade da Matemática pode muito bem ser uma das razões da atratividade e do respeito a ela a-tribuídos, num mundo em que a segurança é algo tão impalpável.

Numa determinada sociedade, a Matemática é um bom indicador de sua cultura. Não temos dúvida de que muita matemática estava no ar e não foi criada do nada por algum gênio. Isso é comprovado pela freqüência com que resultados iguais ou semelhantes são obtidos si-multaneamente por diferentes matemáticos, trabalhando independen-temente um do outro. Entretanto, concluir daí que a pessoa que real-mente inventa é desimportante é um erro, aliás muito comum, mas injusto. Pode ser verdade que , se o matemático von Neumann não tivesse existido, a invenção do computador teria sido feita por algum outro, talvez mais tarde. Uma conjectura desse tipo tem seus defenso-res e seus oponentes. Até certo ponto, a Matemática pode ser inde-pendente do indivíduo. Mas dizer que a sociedade ou suas necessida-des produziram certo escopo é ignorar inteiramente que só um ou

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poucos indivíduos, de fato, contribuíram para esse escopo. Dizer que a sociedade ou a raça humana é a autora da invenção é mais ou menos o mesmo que dizer que o Brasil conquistou a Copa do Mundo em 1994, quando, em verdade, 11 ou 22 jogadores brasileiros fizeram a façanha. Até pode-se dizer que a sociedade nem sempre mereceu tal glória indireta, porque algumas vezes parece fazer o máximo que po-de para censurar, desencorajar e obstaculizar suas melhores cabeças. Provavelmente isso se deva a reais problemas de comunicação do ma-temático com o público em geral, assunto a que retornaremos daqui a pouco.

A experiência e várias décadas de interação com a sociedade em crescimento científico ajudaram a amadurecer a relação entre a Mate-mática e seus clientes dentro da ciência. Devido a que numericamente os matemáticos cresceram extraordinariamente, o lapso de tempo re-querido para as idéias matemáticas passarem de um centro teórico para a esfera das aplicações deve continuar a declinar. Desde a revo-lução científica, o intervalo típico entre a idéia e a utilização baixou de séculos para décadas e recentemente para anos.

Apesar desses sinais externos de boa saúde, há hoje um mal-estar profissional em muitos setores da comunidade matemática. A Mate-mática progride ao longo de uma das margens de uma fenda na pai-sagem intelectual da sociedade: de um lado está a maioria não-científica, quase recusando-se a reconhecer que a Matemática existe e, do outro, está uma pequena e jovem minoria que alcança resultados importantes, que mesmo seus mestres não conseguem sempre enten-der. Este cisma sugere um sério perigo: que o abismo entre a Matemá-tica e a sociedade pode agora ser tão grande que o apoio público para os objetivos e valores da Matemática tenda a ser inadequado para sustentar o tipo de programa de pesquisa que nossa tecnologia preci-sa. A sociedade, que demanda uma tecnologia que não compreende, pode afrouxar sua capacidade de sustentar essa tecnologia. Defron-tando-se com um ambiente passivamente hostil, muitos matemáticos se retraem para o lugar seguro de sua pesquisa, desinteressando-se pelo que ocorre do lado de fora, e permanecendo freqüentemente em isolamento auto-imposto. Mas outros – e eu me incluo aqui – crêem que algo deve ser feito para melhorar a comunicação entre a socieda-de em geral e a comunidade matemática, pois a Matemática é nossa cultura invisível. Toda vez que nós, matemáticos, somos solicitados a falar para não-especialistas, defrontamo-nos com um doloroso dilema. Trabalhamos num reino de tesouros altamente especiais – estamos convencidos disso e dos valores de nossas descobertas – mas não é possível dar aos outros uma visão de nosso campo de trabalho e da natureza da pesquisa matemática. O reino da Matemática apresenta-se ao leigo como uma montanha inacessível. Suas encostas são íngremes e

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rochosas. A espinhosa vegetação das fórmulas e dos símbolos – abso-lutamente necessários – obstruem o avanço. Mesmo aqueles que já subiram a montanha pouco podem fazer para limpar o caminho ou torná-lo mais fácil para seus sucessores.

Essa é a razão porque o leigo em Matemática – incluo como leigo aquele cujos conhecimentos matemáticos não vão além do segundo grau – tem apenas idéias muito nebulosas, oblíquas ou fantasiosas sobre a natureza da Matemática e seu significado para a cultura hu-mana. A maioria do público olha a Matemática com um misto de ad-miração e terror. Não negam à Matemática seu respeito, mas não desejam entrar em contato mais próximo com ela. Prezam-na como a forma mais segura de conhecimento, mas prazerosamente e sem inveja deixam que outros trabalhem com ela. Existe um reconhecimento ne-gligente de sua importância para o desenvolvimento da ciência, mas geralmente é aceito que alguém, mesmo sem conhecer Matemática, pode ser considerado instruído. Os matemáticos são considerados estranhos por uma parcela da sociedade, preocupados com assuntos inócuos e que quase não mudam o mundo.

Mencionei, antes, que nos vemos diante de um dilema doloroso quando somos convidados a falar para uma audiência não-especiali-zada. Sob um aspeto há uma óbvia diferença entre a Matemática e outras áreas do conhecimento humano. Os médicos, os físicos, os químicos, os biólogos, os advogados, os literatos, os filósofos, etc. podem conversar sobre sua especialidade com o leigo e se fazer entender. Este os ouve com interesse e procura acompanhar seu interlocutor. Não é assim na Matemática. De fato, cada vez mais, parece ser verdade que é necessário, junto com o esforço, um certo sexto sentido para entender a Matemática. É penoso porque não só somos acusados nós, mas também pela natureza do que devemos discutir. Nós, matemáticos, somos acusados, porque não somos capazes de apresentar a Matemática nas escolas e universidades numa forma que ajude. Também não somos capazes de dar-lhe o papel na vida pública que merece pela sua importância, como uma das mais nobres ocupações da mente humana, pela sua forma típica, e pela importância de sua substância. Mas a queixa contra a Matemática é maior porque, devido à sua natureza, não podemos aproximar-nos dela sem conquistá-la. A Matemática não pode ser popularizada de uma maneira como é possível para as outras ciências, às quais todo leigo com certo grau de instrução pode ser introduzido de alguma forma. Nós, matemáticos, temos que silenciar, quando nas con-ferências, nos atos oficiais e na imprensa, as outras ciências proclamam grandes audiências, que problemas resolveram e que problemas ainda estão esperando por solução. Estamos cheios de cousas maravilhosas que vemos, mas que podemos compartilhar somente com os que vêm a nós e viajam conosco. Aos outros, só podemos falar de maneira bem

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mos falar de maneira bem geral, de fato somente em parábolas, sobre Matemática, e porque é importante.

Nesse aspecto da comunicação da Matemática, devemos confessar que há falha também por parte dos pesquisadores. Boa parte deles aceita como axiomático que um Ph. D. bem-preparado em sua especia-lidade, competente como pesquisador, inteligente e devotado a seu assunto, certamente será um excelente professor. Preparação, treino e qualificação especial para o ensino são desnecessários. E eles se fir-mam nessa crença. A despeito das repetidas observações de que o ensino na graduação é uma profissão a aprender, para a qual deveria haver um programa definido, a fim de desenvolver as habilidades que os docentes devem possuir , e selecionar aqueles que, de fato, adquiri-rem essas habilidades.

O ensino deve ser recompensado de diversas maneiras, tanto quanto a pesquisa. Os mestres influenciam milhares de estudantes durante sua vida e são mais vitais para a sociedade que os pesquisa-dores, exceto, é claro, quando se trata de um Newton, de um von Neumann, ou de uns poucos mais. São eles o principal canal pelo qual flui a Matemática para o conhecimento da sociedade que, então, a-prenderá a usá-la e a admirar o matemático. Somente a interdepen-dência da pesquisa, cultura e ensino pode efetivamente fazer progre-dir a Matemática, melhorar o ensino e promover os usos multidimen-sionais e de alto valor da Matemática na nossa sociedade. Em conse-qüência, muito maior fração da população aprenderá mais matemática para que a sociedade funcione e para que o indivíduo funcione na so-ciedade.

Reformas são reclamadas não só para melhorar a educação mate-mática: a sobrevivência da Matemática nos currículos e a própria pes-quisa estão em jogo. Observa-se hoje um declínio acentuado da Mate-mática Pura e um crescimento rápido da Matemática Aplicada. Ocorre que a concentração nos estudos puros, esotéricos, significa menos a-poio da sociedade. Não há dúvida de que os matemáticos realmente geniais devem ser apoiados como matemáticos abstratos. Ouçamos o que diz J. H. Blackwell, matemático canadense atual:

“No treinamento de matemáticos do futuro, ao nível de graduação e de pós-graduação, deve ser colocada incomparavelmente mais ênfase em descrever os usos da Matemática do que foi colocado até aqui – e não me refiro meramente aos campos tradicionais da física e engenharia – os es-tudantes devem ser estimulados a fazer disciplinas nas aplicações nas quais sentem interesse, e, para ser brutalmente franco, os estudantes de-vem ser informados de que nossa Sociedade moderna pode aceitar o pen-sador matemático puro somente se for verdadeiramente superior. Excetu-ado o professor de ensino secundário ou superior, o matemático abstrato

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medíocre situa-se próximo a zero, ao passo que o matemático útil medío-cre pode também ser um membro extremamente útil da Sociedade.

A Matemática é nossa cultura invisível. É uma odisséia no universo criado pelo homem. Representa um dos supremos empreendimentos e uma das supremas conquistas da mente humana, um triunfo da mente sobre a matéria.”

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WOLFGANG NEUSER Universidade de Kaiserslautern

O silogismo e a Matemática na ciência natural durante o Renascimento1

Galileu Galilei é considerado um dos fundadores da ciência matemática moderna. O sucesso desta abordagem matemática deve-se à exploração dos métodos da geometria e da aritmética como forma de explicar os fenômenos da natureza. Em particular, Galileu substituiu o método silogístico da física escolástica pelo cálculo matemático. Assim, após Galileu, em vez de basear-se na pura lógica silogística, o raciocínio científico2 baseou-se na dedução matemática formal. A rejeição galileana da lógica aristotélica como uma base de argumentação aceita para descrever a natureza da matemática pode ser encontrada já nos predecessores neoplatônicos do século XVI, que forneciam, muito antes de Galileu, uma interpretação da matemática da sua relação com a natureza e com o método científico numa tradição epistemológica neoplatônica. O êxito de Galileu reside na sua interpretação da matemática como representação da essência da natureza, no caráter do cálculo matemático e na declaração que a soma das leis matemáticas constitui a natureza em sua totalidade.

Neste texto procura-se mostrar a existência de uma mudança na interpretação da concepção de matemática durante o século XVI, que pode caracterizar-se como uma mudança mais contra um ponto de vista aristotélico do que contra um ponto de vista platônico. Contudo, esta mudança não significa uma tendência homogênea. Na tradição neoplatônica, a matemática tem um sentido essencialmente diferente do sentido atual da matemática como um método de cálculo. O princi-pal propósito dos diferentes tipos de matemática neoplatônica não era simplesmente calcular, mas, ao contrário, demonstrar a estrutura lógi- 1 Eu gostaria de agradecer ao Fritz Thyssen-Stiftung, Colônia , Alemanha , pelo apoio ao

meu trabalho sobre Bruno. Este texto é uma parte de um amplo projeto sobre a evolu-ção de noções concernentes às teorias matemáticas sob a concepção de Begriffsgeschichte (História dos conceitos).

2 Crombie, A. (1977). Cassirrer, E. (1987).

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ca ou a logicidade da descrição da natureza. A mathesis neoplatônica refere-se ao número e à figura como a essência básica do mundo bus-cando compreender a imensa diversidade da natureza.

1 – A Física aristotélica e a Matemática na Idade Média

A ciência matemática, como a entendemos hoje, seria impossível dentro da estrutura da filosofia aristotélica.3 Em sua Física,4 Aristóte-les assinala que as razões matemáticas poderiam ser tratadas como independentes, o que não aconteceria com as razões da natureza. Se-gundo Aristóteles, a definição das razões da natureza inclui um mo-mento de processualidade natural. Os objetos da matemática, tais como curvas, linhas, etc., são um tipo fundamentalmente diferente do que as coisas na natureza. Os objetos da natureza têm um aspecto formal, como os objetos matemáticos, mas, além disso, eles possuem também um aspecto material. Desde este ponto de vista aristotélico , essas dife-rentes esferas entre a produção formal e material dos objetos emer-gem também nas disciplinas matemáticas, tais como a ótica, a harmo-nia (música) ou a astronomia, as quais têm que se abster do aspecto material dos objetos e, por causa disso, não poder ser caracterizadas propriamente como disciplinas científicas. Em sua Metafísica, Aristóte-les diz que o homem não deve tentar encontrar a evidência matemáti-ca em todas as extensões da ciência. Só uma ciência sem material, tal como a matemática, pode ser evidente. Neste sentido, a física não é evidente. Há algum material em toda natureza.5 Neste contexto, natu-reza tem dois significados: por um lado, natureza é a forma, que pode ser tratada como um objeto da matemática; mas, por outro lado, natu-reza é matéria física.6 Entretanto, a matemática sempre trata a forma pura como seu objeto.7 A argumentação científica é ilustrada por um exemplo de Aristóteles: o princípio de não-contradição.8 Disciplinas como a astronomia tomam as fórmulas da matemática mas não as compreendem como um substrato específico.9 Esta compreensão tem que ser – e somente apenas pode ser – fornecida pela física no sentido 3 Para a argumentação a seguir é importante lembrar que a matemática e física não devem

ser confundidas com as disciplinas científicas ou currículos em nossas universidades. Na tradição escolástica física trata dos princípios fundamentais de todas as coisas, su-as propriedades e os produtos delas derivados, dentre eles os estados de movimento e repouso ou a corporeidade. A Matemática escolástica inclui a geometria , a aritmética e a astronomia.

4 Cf. Crombie, A. (1977), p. 372. 5 Metaphysics II (a), p. 57. 6 Physics II, 2, p. 36. 7 Physics II, 2, p. 35. Metaphysics XI (J), 1061 bf, p. 275 s. 8 Metaphysics 1062a. 9 2. Analytics I. 13, p. 30.

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aristotélico. Em certo sentido, o substrato é ignorado na astronomia, ótica ou harmonia (música), somente enquanto são consideradas as relações matemáticas. A física, porém, considera os princípios que não podem ser separados do substrato para derivar a noção e o propósito concernente à matéria.10 A astronomia e a ótica misturam os métodos do raciocínio matemático e a declaração pura do que é, mas o quid (como puro aspecto material) e o propter quid (como puro aspecto for-mal) são instâncias distintas. O quid é uma questão da percepção, o propter quid uma questão de matemática.

Um traço comum de todas as ciências, incluindo a matemática, é a argumentação inferencial. A inferência lógica, que mais tarde foi ela-borada no esquema silogístico escolástico , fornece a base fundamental da argumentação científica. O esquema da inferência que ataca o prop-ter quid é o esquema científico essencial.11 Aristóteles afirma que nós adquirimos conhecimento por meio da prova; e as provas são sempre as inferências científicas, como ele as apresentou em seus Segundos Analíticos.12 Os Segundos Analíticos, uma descrição da argumentação científica, tiveram enorme influência durante os séculos XII e XIII. As novas traduções dos Analíticos por Santiago de Veneza (1125-1150), Gerard de Cremona (1187) e Moerbecke (1269) tiveram um impacto enorme. Este período marca o começo de uma nova era no pensamen-to científico e uma nova abordagem na lógica, chamada lógica nova. Era a base da emergência da física escolástica que Galileu estudaria durante seus estudos universitários – embora mais tarde ele partisse para a sua própria abordagem científica.13 Em particular, Galileu estu-dou a Física de Albertus Parvus, também conhecido como Alberto da Saxonia (ca. 1316-1380). A edição de 1516 de seu comentário teve uma influência enorme até o começo do século XVIII. Ela seguia o Comentá-rio sobre Física de Ockham (ca. 1285-1349), escrito entre 1321 e 1324.14 Alberto explica no prefácio de seu próprio comentário sobre a Física de Aristóteles (escrito não antes de 135515 e impresso em Veneza em 151616) como funcionam a ciência em geral e a matemática e a física em particular. Alberto derivou a forma última de conhecimento dos con-ceitos fundamentais e evidentes ou dos princípios da ciência e derivou as inferências silogísticas das proposições ou premissas evidentes. “De acordo com esta última perspectiva, a ciência é entendida “pro notitia evidenti alicuius necessari causati ex notitia evidenti premissarum ne-

10 Physics II. 2. 11 2. Analytics I. 14, p. 31. 12 2. Analytics I. 2, p. 3. 13 Sarnowsky, J. (1989), p. 8, 84, 97. 14 Ockham, W. (1982), p. 458. 15 Sarnowsky, J. (1989), p. 53. 16 Sarnowsky, J. (1989), p. 461.

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cessarum applicatarum per discursum syllogisticum.”17 Os objetos da scientia naturalis são as coisas que estão ao nosso redor, tanto as que se movem como as que não se movem, tanto as corpóreas como as não corpóreas.

Mesmo a forma última de conhecimento pode ser realizada na físi-ca. Aqui se encontra primeiramente a questão do quid, mas a análise pode ser estendida também à questão do propter quid. Ela não é distin-ta na física, se comparada à declaração de Aristóteles sobre a astro-nomia, a ótica e a harmonia (música). Segundo Alberto da Saxonia, os conceitos e as revelações da física são caracterizados por quatro aspec-tos: “Notitia et cognitio, quam habemus in scientia naturali, est cogni-tio quid est [...] Post notitiam primam in scientia naturali possumus notitiam propter quid [...] Notitia incomplexa ipsius causati potest haberi absque notitia causae ipsius causati [...]. Ad notitiam comple-xam propriam et specialem ipsius causati opportet causam illius vel causas cognoscere [...].”18 Para Alberto, este prolongamento do quid ao propter quid não significa uma falta de evidência. Isto constitui uma diferença significativa daquela defendida pelo ponto de vista aristoté-lico. Além disso, Alberto não precisa restringir os primeiros princípios à física, embora devamos contar com eles.19 Todas as coisas, incluindo os fenômenos complexos, podem ser objetos da física. Para sua fun-damentação, a física conta com a inferência filosófica, enquanto a ma-temática pode ser baseada somente no raciocínio matemático. Segun-do Alberto, a evidência da inferência é mais forte no raciocínio mate-mático do que na argumentação da física, por causa da forma especial da causalidade na matemática e na natureza.20 Os eventos naturais seguem a necessitas ex suppositione, uma necessidade fraca.21 Cada ciên-cia intermediária que aplica a matemática e pode ser colocada entre a física e a matemática somente realizará a evidência da física.22 Alberto dá uma resposta essencialmente positiva à seguinte questão: “utrum differentiam, quam assignat Aristoteles inter scientiam naturalem et mathematicam, sit bene assignata, scilicet, quod scientia naturalis dif-finit per motum, mathematica autem non”.23 Ele diz que é possível obter compreensões diferentes de um objeto de acordo com a premis-sa que se adota. Para Alberto, um traço característico dos conceitos matemáticos é que suas definições são determinadas por afirmações sobre o número e a quantidade. A física e a matemática são, então,

17 Sarnowsky, J. (1989), p. 84. 18 Sarnowsky, J. (1989), p. 87. Cf. Albertus (1518), Tratactus Primus, Cap. V, p. 3r. 19 Sarnowsky, J. (1989), p. 87. 20 Sarnowsky, J. (1989), p. 98. 21 Sarnowsky, J. (1989), p. 82. Albertus (1516), 2, 14-18. 22 Sarnowsky, J. (1989), p. 98. 23 Sarnowsky, J. (1989), p. 97.

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diferentes, “quia naturalis considerarat terminos connotantes motum et operationes naturales vel aliqua in ordine ad illa; mathematica vero considerat terminos non connotantes motum. 24 Universale autem est [...] in primo demonstrant , ut duos rectos habere neque figure cuilibet inest universali, et tamen est demonstrare de figura quibus duos ha-beat, sed non cuiuslibet figure est, neque utitur quolibet figura de-monstrans.25 Convertunt autem magis que sunt in mathematicis, quo-niam nullum accidens accipiunt, sed in hoc differunt ab his que sunt in dialecticis atque diffinitiones.”26

No tocante ao papel da inferência silogística na matemática e na fí-sica, Alberto refere-se a Ockham, que citando os Segundos Analíticos de Aristóteles responde à questão de como os termos do silogismo po-dem ser interpretados. Os termos dos silogismos representam (suppo-nere) as intenções do objeto considerado. Eles são suposições para as intenções e para o objeto considerado e representam algo diferente das coisas: as ciências das coisas reais não lidam com as coisas mas com as intenções que representam as coisas. Quando falamos do fogo atribuímos significado ao que é comum para todos os fogos. Este é o sujeito da frase e, ao mesmo tempo, uma intenção.27 Isto significa que todas as ciências lidam com uma noção, embora em diferentes níveis de universalidade. A diferença entre as ciências empíricas e a lógica é que elas enfatizam as intenções das coisas e as intenções focalizam diferentes níveis de universalidade. Esta visão assume um elemento subjetivo do conhecimento e da compreensão. A característica comum entre a matemática e a física é a consideração dos princípios funda-mentais – na matemática, o número e a figura, as formas das coisas, enquanto os princípios da física são o movimento ou a corporeidade. As duas ciências estão baseadas em silogismos, embora com os seus termos representem coisas muito diferentes: os números e as sensa-ções das coisas, respectivamente. E ambas consideram as intenções, que estão na mente quando uma concepção da coisa é compreendida. Além disso, ambas consideram o propter quid, mas somente a física pergunta pelos dois, o quid e o propter quid. A extensão dos objetos, para os quais os termos das diferentes disciplinas são suposições, de-termina a evidência do conhecimento: as relações entre os números são estreitamente governadas pela necessidade. As coisas têm relações com uma necessidade mais rígida. Isto porque a matemática e a física são diferentes, embora ambas referiram-se à mesma lógica do silogis-mo. A diferença decorre do fato de que os termos inferenciais repre-sentam diferentes intenções dos objetos. 24 Sarnowsky, J. (1989), p. 97. 25 Albertus. (1497), p. 18r. 26 Albertus. (1497), p. 20v. 27 Ockham, W. (1982), p. 471.

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2 – Neoplatonismo nos séculos XVI e XVII

A divisão estrita entre a física e a matemática na filosofia da natu-reza aristotélica e escolástica não é aceita na ciência matemática da idade moderna. Os limites dos objetos, os números e as coisas natu-rais, os princípios subjacentes às ciências da matemática e da física e os diferentes tipos de evidência – tudo isto foi reconsiderado após Gali-leu devido a sua asserção de que a verdadeira natureza das coisas é representada por números.28

A abordagem de Galileu pode ser retraçada desde uma perspecti-va platônica ou neoplatônica da matemática como uma estrutura lógica que nunca implica uma reflexão sobre os cálculos. Os principais repre-sentantes desta tradição foram Petrus Ramus (1515-1572), Francesco Patrizi (1529-1597) e Giordano Bruno (1548-1600). Johannes Kepler (1571-1630) apresenta uma visão neoplatônica que se assemelha à in-terpretação de Galileu Galilei (1564-1642). Para o que se pretende nes-te texto, é suficiente dizer que podemos encontrar em todos esses autores uma argumentação comum na perspectiva matemática de Pla-tão.

De acordo com Platão, a mathematica ocupa uma posição interme-diária entre as idéias e as sensações.29 Mathematica não são nem as i-déias nem as sensações, mas algo que faz a mediação entre elas. O modelo básico da concepção de Platão é a parábola da linha,30 que pode ser encontrado em diferentes versões entre os autores dos sécu-los XVI e XVII. O neoplatonismo refere-se a este conceito platônico de conhecimento. Segundo Platão, há quatro passos de compreensão que vão desde a percepção e a sensação até o mundo das idéias. Neste texto basta considerar a transição das sensações (o nível mais baixo de doxa) à razão discursiva (o nível da dianoia, que vem acompanhado pelo nível mais alto de compreensão verdadeira, a episteme).31 O neo-platonismo coloca a matemática ao nível da dianoia ou ratio, considera-do como a fonte de compreensão por meio da transcendência das pu-ras sensações adquiridas pelo nível intelectual. A função da matemáti-ca como um domínio de ratio é a mediação entre sensibilia e mens. Nes-ta perspectiva, a função da matemática é a de constituir uma concep-ção da natureza como uma parte de um mundo acessível à percepção via sensações; um mundo que é uma manifestação das idéias. Esta

28 Durante o século XVIII a filosofia do Iluminismo e em particular D’Alembert discutiu

as conexões entre as concepções aristotélicas e a abordagem científica de Galileu no contexto da ciência axiomática. Conforme Neuser, W. (1995); com respeito à ciência do século XX, conforme Heisenberg, W. (1973), 259, 277ss.

29 República 596a, Teeteto 196a, Fédon 104d, 101c, Nagel F. (1984), p. 39 ss. 30 República 509c ss. 31 República 511a.

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função da matemática inclui a constituição do criado na sua relação com o espírito criador, que mantém a completa criação, e também na sua relação com as formas que produzem e descrevem a matéria. A matemática como ratio discursiva e analítica que determina a diversi-dade do mundo natural pode entender a natureza e, por isso, a ciência da natureza é em última instância matemática. Aqui, ratio quase forne-ce uma definição da essência da base perceptiva de qualquer ciência ou discussão científica.

Embora os autores neoplatônicos tenham se referido ao conceito básico de Platão, eles deram interpretações diferentes à matemática no que diz respeito ao seu papel específico na ciência.

O humanista francês Petrus Ramus,32 na sua publicação de juven-tude Dialecticae institutiones, de 1543, discute a evidência da arte dialé-tica como base fundamental de qualquer ciência (ars). A arte dialética da inquirição discursiva analisa qualquer questão científica com respei-to a duas partes: a primeira e a segunda premissa. Este procedimento de especificar as duas declarações é chamado inventio por Ramus. O procedimento seguinte é o iudicium, que inclui três passos: no primei-ro passo o problema tem que ser formulado num esquema regular; os dois passos seguintes combinam e arranjam ou esclarecem a diversi-dade dos argumentos interdependentes. Estes passos de integração condensam a diversidade do conhecimento na essencial compreensão universal da ratio. Para completar a investigação dialética, as pressu-posições de inventio e iudicium são explicadas num julgamento dialéti-co chamado exercitatio. O resultado é uma tabela dos pensamentos fundamentais que resume os conceitos últimos subjacentes à diversi-dade das coisas33.

Ramus desenvolveu seu esquema dialético na tradição dos Tópicos de Cícero.34 Então, ele considerou a transição platônica da percepção à compreensão, que é a transição de um objeto difuso de investigação para um método de pensamento precisamente especificado, como uma questão da lógica pura. E, conseqüentemente, é nesta transição que a matemática como uma função da lógica pura se inscreve. “Prima, dis-putatur differentia Mathematici a Physico: secunda, quod sit Physici, materiam, formam, finemque; considerare.”35 “Haec enim differentia Geometrae et Physici tam inepta est, quam esset Logici et Physici de caussis et oppositis.”36 “Ergo Mathesis in numeris et lineamentis latam habet differentiam ab Harmonica, Optica, Astrologia. Physica: subjec-

32 Ver Gerl, H. B. (1989), p. 142; Schüling, H. (1969), p. 105; Cassirer, E. (1974), p. 130 ss;

Risse, W. (1964), XV; e Otto, S. (1984), p. 177. 33 Ramus, P. (1543), p. 52; Ramus, P. (1583), p. 53. 34 Cf. Schmidt-Biggemann, W. (1983), p. 71-154. 35 Ramus, P. (1583), Lib. III, cap. II, 52. 36 Idem , Lib. III, cap. II, 52.

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tis enim rebus (quae singulae interpretantur) plurimum differunt.”37 “Quare falsa est ista Aristotelis Physica, quae negat mathemata in loco esse: tanquam locus sit tantum corporum: neque locus, physica res est, ut dixi, sed logica: ideoque et entis, et non entis.”38 “Sed Aristotelis veram philosophiam huic falsae opposuimus; docimusque, locum esse non solum magnitudinis cuiuslibet, sed etiam puncti, sed etiam Dei: ubi neque magnitudo, neque pars ulla est.”39 O papel da matemática fornece uma estrutura aritmética (para uma formulação precisa da questão) e uma conexão geométrica (na base da descrição quantitativa através de números e figuras). Isso significa que a matemática é uma parte da investigação da natureza e mostra as conexões no processo do juízo. A mathematica é interpretada como elemento do iudicium.

Segundo Ramus, a matemática é um instrumento importante da análise lógica no processo do juízo. E, apesar de seu caráter quantita-tivo, esta parte matemática é muito diferente da matemática calculati-va. A quantidade é considerada desde uma perspectiva lógica.

Entre os autores neoplatônicos do século XVI, o filósofo italiano Francesco Patrizi forneceu uma discussão da metafísica universal em sua obra principal publicada em 1591 sob o título Nova de universis phi-losophia. Patrizi procurou descrever a metafísica com base em quatro princípios fundamentais: lux, primum, anima e spatio.40 A intenção de Patrizi era a de fornecer uma visão unificada do mundo como totali-dade. A luz e o espaço, até um certo ponto, são o médium que inter-media a universalidade do universo, se a geometria for considerada como um método universal. Aqui, Patrizi sugeriu três passos: no pri-meiro é dada a definição da essência do sujeito da inquirição; no se-gundo está incluída a demonstração destes aspectos essenciais, repre-sentados indutivamente; e no terceiro passo, ocorre uma dedução dos efeitos a partir das causas. Patrizi, assim como Ramus, aplica a mate-mática como um meio da lógica, mas para ele a mathematica representa somente os aspectos essenciais das coisas chamados proprietates. A ma-thematica é o lugar da definição da essência das coisas percebidas. Na transição das extensões intelectuais ao mundo físico e corporal, estes aspectos universais são essências determinadas conceitualmente pela lógica e pelas propriedades funcionais da “mathematica. Geometriae vero propria esse, positiones, contactus, figuras, magnitudineque line-ares, superficiales, corporales. Arithmeticae vero propria, unitatem, reliquos numeros, par, impar, rationes item multiplicium, super parti-cularium, super partientium, et reliquorum. Arithmetica vero, a Geo-metria, mutuo habet figuras quasdam numerorum, qui lineares, plani, 37 Ibidem , Lib. III, cap. II, 53. 38 Ibidem , Lib. III, cap. I, 102. 39 Ibidem , Lib. III, cap. I, 102. 40 Cfe. Gerl, H. B. (1989), p. 142; Védrine, H. (1976), p. 240.

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solidi, cubi, et alii tales apellantur. Arithmetica vero, mutuo dat Geo-metriae symmetrias quasdam bipedales, tripedales et similies, et prae-terea seminomina quorundam triangulorum, quadrangulorum, et ei-usdemodi alia. Oriuntur autem ab his duabus, scientiae aliae, et illae quidem, nec pauce, nec ignobiler, cum rebus aliis naturae iam coniunc-tae.”41

O terceiro neoplatônico neste contexto foi Giordano Bruno.42 Ele forneceu uma outra metafísica na sua obra tardia de 1591, a chamada Triologia de Frankfurt, De minimo, De monade e De innumerabilibus. A intenção de Bruno é derivar a razão das coisas finitas da unidade do infinito.43 Segundo Bruno, a compreensão tem origem nas imagens das rationes ou proportiones, que são derivadas de uma mínima medida. Esta medida é a triplicidade da monada, do ponto e do átomo. A es-trutura lógica de todo o mundo pode ser derivada do ponto como a figura última. As figuras são imagens mentais da percepção e da com-preensão intelectual. Assim, na filosofia de Bruno as figurationes, como passagens da percepção à compreensão intelectual, são a mathematica. Elas representam a figuração do mundo.44 Esta figuração reflete o logos do mundo. Por causa disso podemos compreender o mundo e, por isso, as figuras geométricas representam a estrutura lógica do mundo. O De monade de Bruno fornece uma lógica da reflexão que especifica as diferentes modalidades45. Por isso, em Bruno a mathematica é a visuali-zação da transição da sensação à compreensão.46 As regras geométri-cas substituem as regras lógicas e predominam sobre os silogismos.47

Estes três neoplatônicos dão ênfase ao problema de organizar o conhecimento de acordo com o método científico. O principal ponto metodológico é a demonstratio do conhecimento. O segundo grupo de neo-platônicos dá ênfase à aquisição da compreensão. Johannes Kepler segue de perto o ponto de vista platônico da matemática, mas ele já aplica um cálculo geométrico, que introduz estruturas da lógica e do cálculo na ciência. Ele subordina a astronomia, a ótica e a física conjun-tamente à harmonia (música) sob um princípio geométrico unificado. Deste modo, ele se afasta da tradição aristotélica medieval. 48 Kepler 41 Patrizi (1591), Pancosmias, Liber secundus. 42 Obviamente Patrizi no livro segundo de Pancosmias conhecia a distinção de Bruno entre

punctus e punctum . Cf. Heipcke, K., Neuser, W., Wicke, E. (1991). 43 Fellmann, F. (1991); Cassirer, E. (1987), p. 102; e Otto, S. (1991). 44 Bruno, G. (1879-1891), II, 3, p. 96-97; I, p. 251, 254; II, 2, p. 164 ss.; I, 2, p. 443; I, 4, p.

32; cf. Otto, S. 1991, p. 37-50. 45 Cfe. Heipcke, K., Neuser, W. E Wicke, E. (1991). 46 Bruno considera a matemática sob três aspectos diferentes: um que eu apontei aqui,

um tratamento crítico da matemática de Aristóteles (Bruno, G. (1879-1891), I, 3, p. 3-118) e uma interpretação mágica da matemática (Bruno, G. (1879-1891), III, p. 493-506).

47 Fellmann, F. (1991). Cassirer, E. (1974). 48 Cf. Kraft, F. in: Kepler, J. (1971), p. 5 ss.

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segue uma abordagem indutiva. A física precede a astronomia para fornecer-lhe hipóteses, que tem de ser confirmadas pela observação. As hipóteses originam-se dos conceitos abstratos da geometria. As inferências geométricas destas hipóteses podem então mostrar as co-nexões entre as causas e os efeitos que podem ser submetidas à provas empíricas. Kepler afirma49 que a geometria forneceu a Deus as imagens para desenhar ordenadamente o mundo de modo tão agradável e tão similar a Ele quanto possível.50 Para Kepler, as razões harmônicas são as leis geométricas realizadas na natureza. Neste sentido, Kepler par-tilha a epistemologia platônica com uma referência explícita a Proclo.51 Há uma capacidade discursiva intelectual no espírito para reconhecer as proporções harmônicas. A mathematica de Kepler contem novamen-te elementos da ratio discursiva, mas agora interpretada como símbolos mentais.52 Estas figuras matemáticas referem-se a uma geometria a priori, a qual foi usada também por Deus. Aqui mathematica são os ele-mentos constitutivos das proporções, que se encontram a priori na re-lação harmônica. A interação de símbolos53 chamada geometria é a tentativa de pensar sobre a beleza da verdadeira geometria realizada na natureza. Esta interação de símbolos é uma hipótese intelectual e tem que ser provada por investigações empíricas. A hipótese é uma aplicação da física e é examinada através de medições.

Galileu Galilei introduziu uma visão integrada da matemática e da física que culminou numa ciência de cálculo matemático nos tempos modernos.54 Galileu apresentou sua abordagem lógica em quatro pas-sos.55 No primeiro, o fenômeno a ser descrito é reduzido aos elemen-tos essenciais, via intuição, encontrando relações matemáticas simples. Estes elementos essenciais são inerentes ao efeito matemático. No segundo passo, uma proposição hipotética se faz necessária para deri-var deduções. O terceiro passo é uma resolução: o teste paradigmático do material empírico. Isso leva a um quarto passo: o teste das hipóte-ses pela comparação de suas implicações e observações. O procedi-mento de Galileu está relacionado ao modo como as hipóteses podem ser derivadas.56 Segundo Galileu, a mathematica são os realia.57 Não há uma natureza aristotélica no sentido de um princípio subjacente à mu-dança da corporeidade integrando forma e matéria.58 A natureza é

49 Cf. Cassirer, E. (1974), p. 347. 50 Cf. Kepler, J. (1939), p. 98. 51 Cf. Kepler, J. (1939), p. 202-224. 52 Cf. Kepler, J. (1939), p. 215, 216, 225. 53 Crombie, A. (1977), p. 368 ss. 54 Crombie, A. (1977), p. 368 ss. 55 Idem , p. 375 ss. 56 Galilei, G. (1982), Segunda Jornada. 57 Galilei, G. (1982), Primeira Jornada. 58 Crombie, A. (1977), p. 373. Galilei, G. (1957), Questão 6.

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simplesmente a coleção das leis matemáticas. Assim, a mathematica é a essência real das coisas, os elementos da natureza.

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3 – Resultados

Os diferentes conceitos aqui descritos exibem uma mudança no sig-nificado da noção de mathematica. A influência da metodologia aristotélica, isto é, a proximidade com a escolástica, reflete o significa-do e o papel da matemática nas diferentes filosofias da natureza. A mudança das representações para as produções da compreensão trans-formou a matemática lógica em matemática calculativa. As modifica-ções destas concepções operacionais centrais fornecem os fundamen-tos da ciência matemática moderna. O desenvolvimento posterior da filosofia e da ciência pode ser descrito como uma oscilação permanente entre uma dominante metodologia aristotélica ou platônica,59 embora não tenha havido um aristotelismo ou um platonismo puros. Sempre encontramos mudanças no significado de noções importantes, cujos aspectos reúnem ambas as tradições. O platonismo é associado à ten-dência das visões holísticas de mundo. O aristotelismo enfatiza o tra-tamento analítico dos elementos constitutivos da totalidade. Em parti-cular, a interpretação da matemática de Galileu parece preencher este desafio de fornecer um instrumento metodológico para calcular – num sentido lógico e numérico – a totalidade da natureza, uma natureza que é a soma de suas leis.

No nível operacional desta matematização da natureza, o enten-dimento da teoria matemática de Galileu parece ser uma explicação conseqüente de todas as suas implicações e pré-requisitos. Esta teoria tornou-se o fundamento da ciência matemática, abrindo a discussão para a proposta de uma teoria mais axiomática, que demonstraria o conhecimento na tradição aristotélica durante o Iluminismo francês. Durante o Renascimento a matemática foi interpretada de uma manei-ra nova, como a base lógica de uma descrição da natureza, adquirindo assim o status de um método ideal (Patrizi).60 Esta argumentação lógi-ca inspirou o conceito galileano de cálculo matemático na ciência. Em-bora a concepção aristotélica de natureza não fosse capaz de discutir a natureza desde um ponto de vista matemático nem pudesse fornecer uma forma de dedução durante a Idade Média – e assim permaneceu restrita à inferência lógica –, a filosofia platônica da natureza introdu-ziu uma abordagem matemática na investigação da natureza. A mu-dança de uma concepção mais aristotélica da natureza no tempo de Albertus Parvus, que seguiu uma argumentação lógica durante os sé-culos XIII e XIV, para uma abordagem mais platônica no século XVI e o começo do século XVII, resultou numa nova interpretação da mate-

59 Cfe. Margolin, J.-C. (1979). 60 No século XIII houve uma tentativa dos aristotélicos de Oxford e Pádua de unir sua

concepção com aspectos da filosofia platônica. Cf. Crombie, A. (1977), p. 244, 253.

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mática e produziu os fundamentos da ciência matemática moderna61. As mudanças nas interpretações ocorrem nas concepções das figuras matemáticas (geometria e aritmética), e essas mudanças resultam fi-nalmente na asserção galileana das figuras ideais que podem ser atri-buídas às coisas concretas na natureza.

No século XVIII houve o retorno a uma interpretação axiomática da matemática, que em certo sentido fora preparado por Newton e mais tarde explicado pelo Iluminismo francês, seguindo Galileu e os ramistas (D’Alembert).62

Durante todas estas mudanças, a mudança do significado concei-tual também ocorreu com o status ontológico da concepção de mate-mática. Na noção de mathematica nós traçamos esta mudança ontológi-ca do significado de Ramus (iudicium), Patrizi (proprietates) e Bruno (figuratio) a Kepler (as idéias de Deus) e Galileu (o substrato da natu-reza). Por isso, podemos dizer que a história da ciência revela uma mudança constante no significado e no status dos conceitos.63 A ciência parece tentar eliminar os conceitos insuficientes para criar novos con-ceitos insuficientes.

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61 Interpretações da matemática desde um ponto de vista mágico, que influenciaram as

interpretações da matemática em geral nessa época, podem ser encontradas em Proclo, Cusa e Jâmblico (tr. por Ficino), Cabala , Pico della Mirandola , Halevi. Cfe. Debus, A. C. (1987), cap. IV.

62 Tipos muito diferentes de matematização da natureza durante os séculos XVI e XVII podem ser encontrados em Telésio, Campanella , Agrippa, Fludd e nos comentadores dos Elementos de Euclides.

63 Cf. Neuser, W. (1995).

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Tradução de Luiz Carlos Bombassaro

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FILOSOFIA E EXISTÊNCIA

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Filosofia, Lógica e Existência / 259

CLÁUDIO ALMIR DALBOSCO

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

É um falso debate a anterioridade do ato sobre a potência?

Na Metafísica, Aristóteles delineia os traços fundamentais de sua ontologia. Nela, a preocupação com a questão do ser orienta sua refle-xão. O ser, concebe ele, pode ser dito de diferentes maneiras e, dentre elas, está as distinções entre matéria e forma, substância e acidente, ato e potência. O livro Dzeta é dedicado ao estudo da substância, o livro Épsylon ao estudo do acidente e o livro Theta aos conceitos de ato e potência.

Meu propósito, neste trabalho , consiste em refletir sobre os con-ceitos de ato e potência. Contrariamente à interpretação de Auben-que1, pretendo demonstrar, recorrendo à própria argumentação aris-totélica, que a anterioridade do ato sobre a potência não é um falso debate. Neste sentido, em primeiro lugar, apresentarei resumidamen-te a posição de Aubenque. Em seguida, tratarei dos conceitos de ato e de potência conforme são tematizados por Aristóteles no livro Theta. Por último, deter-me-ei nos três argumentos que Aristóteles desen-volve para provar a anterioridade do ato em relação à potência. Eles são: a forma, o tempo e a substancialidade.

1 – O falso debate

Em seu livro El problema del ser en Aristóteles, Aubenque propõe-se a fazer uma leitura não-sistematizante da filosofia aristotélica. A per-gunta fundamental que, segundo ele, movimentou a reflexão aristoté-lica, na Metafísica, foi a questão de saber o que é saber. Aristóteles, ao buscar a teorização e nem tanto a solução deste problema, evidenciou o lado profundamente aporético da pergunta sobre o ser. Deste mo-

1 AUBENQUE, Pierre. El problema del ser en Aristóteles. Madrid: Taurus, 1987.

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do, a pergunta “que é o ser?” segue sendo eternamente aporética, e o estagirita tinha consciência disso.

Aubenque acredita que, ao adotar como princípio uma leitura não sistematizante, a imagem que se revela é a de um Aristóteles aporéti-co. Ela revela, no caso da Metafísica, que sua estrutura não é dedutiva e sim dialética, a qual permite conceber “porque o discurso humano sobre o ser apresenta-se não ao modo de um saber completo, senão de uma investigação e, por conseqüência, de conclusão impossível.”2 Des-te modo, “convém substituir as aporias da interpretação sistematizan-te por uma interpretação filosófica da aporia, e o fracasso da sistema-tização por uma elucidação metódica do fracasso.”3 Com base neste princípio interpretativo, Aubenque pretende diferenciar sua leitura de interpretações clássicas com as de Tomás de Aquino, Brentano , Jeager e Ross, entre outros. Será também com base neste princípio interpreta-tivo que ele conceberá como falso o debate sobre a anterioridade do ato em relação à potência.

O contexto argumentativo, no qual Aubenque assume a posição de que o debate é falso, é orientado pela tese de que os próprios concei-tos de ato e de potência são pensados por Aristóteles para tematizar apo-rias. Há um segundo elemento no argumento dele: as noções en-tre ato e potência, as distinções entre eles, surgem impostas pelo mo-vimento. A prova disso está no fato de que “só o imóvel é ato puro, quer dizer, ato sem potência, e que tudo o mais, quer dizer, todo o móvel, se caracteriza pelo que a escolástica chamará a composição de ato e potência.”4 De outra parte, a potência só tem sentido no interior do ser em movimento, pois, em Deus ela não tem sentido. Em relação ao ato, na medida mesmo em que Aristóteles distingue-o do movi-mento, revela o seu enraizamento nele. O ato “designa, sem dúvida, o modo de ser do imóvel, porém um imóvel que tem chegado a ser o que é. A imobilidade do ato é a imobilidade de um resultado que , portanto, pressupõe um movimento anterior.”5

Neste sentido, o ato não é uma noção que se baste a si mesma. Ela precisa da potência, é correlata dela e só pode ser pensada a partir dela: “o ato não sobrevive, não se revela em sua consumação mais que por meio da potência, o poder de um agente.”6 Ao perguntar-se sobre a prioridade do ato ou da potência, Aristóteles responde inequivoca-mente: a potência é primeira num sentido e segunda em outro. A po-tência é primeira na ordem da geração e, é o ato e só ele é que faz 2 AUBENQUE, op. cit., p. 20. 3 Ibidem , p. 20. 4 Ibidem , p. 420. 5 Ibidem , p. 422. 6 Ibidem, p. 422.

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passar a potência ao ato. Portanto, segundo Aubenque, é correto di-zer, por sua vez, que a potência pré-existe ao ato como condição de sua atualidade, e que ao ato pré-existe a potência como revelador de sua potencialidade.

Para Aubenque, o debate sobre a anterioridade do ato ou da potência é um falso debate, e o é porque “o ato e a potência são co-origi-nários; não são senão êxtases do movimento; só é real o enfrentamento de potência e ato no seio do movimento [...].7 A filosofia aristotélica se defronta com duas aporias (dificuldades) originárias da filosofia que o antecedeu: a) como o ser pode provir do não-ser? b) como o mesmo pode fazer-se outro? Segundo Aubenque, é a partir do enfrentamento destas aporias que a reflexão aristotélica estabelece a distinção entre ato e potência. Aristóteles está consciente, segundo ele, que com esta distinção ele não iria solucionar, senão teorizar essas dificuldades do discurso humano. Sem essas aporias clássicas acerca do movimento, a distinção entre ato e potência jamais teria surgido. No seio do movimento, ato e potência são co-originários e não faz sentido, portanto, falar de anterioridade de um sobre o outro.

2 – Ato e potência em suas definições

Todo o livro Theta da Metafísica está dedicado à reflexão sobre o ato e a potência. Nesse livro, Aristóteles, além de definir estes concei-tos, prova a anterioridade do ato em relação à potência.

A primeira definição que está relacionada aos conceitos de ato e de potência8 é a que os concebe como modo de dizer o ser. Assim, como o ser pode ser dito através da matéria e da forma, da substância e do acidente, também pode ser dito por meio do ato e da potência. Do mesmo modo que a forma é anterior à matéria, a substância ao acidente, o ato é anterior e mais importante do que a potência. Isto é, na esfera do ser, ele é prioritário em relação à potência. Se matéria e forma, substância e acidente, ato e potência são formas de dizer o ser – pois, em vários sentidos se pode dizer que uma coisa é –, no livro Dzeta, Aristóteles demonstra que a substância é a maneira mais eleva-da, mais profunda e mais essencial de se dizer o ser. Diz ele: “Embora o ‘ser’ tenha todos esses sentidos, é evidente que o que primeiramen-te ‘é’ é a essência, a substância da coisa [...]. Logo, o que é primaria-mente, isto é, não em sentido determinado, mas sem determinações, deve ser a substância.”9 No livro Theta é reafirmado novamente o va- 7 Ibidem , p. 423. 8 Conforme Aubenque, op. cit. p. 420-21. 9 Aristóteles , Metafísica, Z, 1028 a 15 e 30. Todas as citações que corresponderem à Meta-

física serão feitas de acordo com o modo oficial de se citar a Metafísica, como o feito an-

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lor da substância. A substância é o ser primeiro ao qual referem-se todas as outras categorias do ser. Esta afirmação constitui-se num indicativo metodológico importante para se saber o que são ato e po-tência: seu conceito pode ser esclarecido a partir de sua relação com a substância, pois, de certo modo, eles são o que são a partir da relação que mantêm com a substância.

No livro Delta, Aristóteles dá algumas definições de potência: a) potência significa a origem, em geral, da mudança ou do movimento num outro ser ou no próprio enquanto outro; b) a capacidade de ser movido por outro ser ou por si mesmo enquanto outro; c) capacidade de realizar uma coisa bem de acordo com a intenção; d) os estados através dos quais as coisas são absolutamente impassíveis ou imutá-veis, ou não podem ser facilmente mudadas para pior, são chamadas de potência.10 Logo em seguida, Aristóteles fala do oposto da potência e usa o conceito de privação11 para indicá-los. Deste modo, a impotên-cia é o oposto da potência, isto é, a privação da potência. De outro modo, se ser potente é ser capaz, a incapacidade é a privação da capa-cidade e, por conseguinte, privação da potência. Ser capaz é poder iniciar um movimento; de outro lado, a privação do movimento, neste sentido, é o repouso. Ao concluir as definições do conceito de potên-cia, neste livro (Delta), Aristóteles diz que “a definição adequada da espécie primária de potência é ‘origem’ de mudança em outro ou em si mesmo enquanto outro.”12

As definições que aparecem no livro Theta sobre a potência, não al-teram substancialmente em nada as definições do livro Delta. No entanto, o teor da discussão, nesse livro, é diferente. Nele, Aristóteles não está apenas interessado em definir conceitos. A preocupação mai-or é em confrontar ato e potência e demonstrar a prioridade do pri-meiro em relação ao segundo. O conceito primário de potência, “ori-gem de mudança em outro ou em si mesmo enquanto outro”, é rea-firmado várias vezes neste livro. Nele, também, retoma-se novamente a reflexão sobre a impotência e a privação: “E as palavras ‘impotência’ e ‘impotente’ indicam a privação contrária à potência desta espécie, de modo que toda potência pertence ao mesmo sujeito e se refere ao mesmo processo que a correspondente impotência.”13 No livro Theta, além disso, ocorre a diferenciação entre potência ativa e potência pas-

teriormente e acompanhadas, respectivamente, com o número da página da tradução brasileira utilizada: ARISTÓTELES, Metafísica. Porto Alegre: Globo, 1967, p. 124 (Tra-dução de Leonel Vallandro).

10 Aristóteles , Metafísica, 12, 1019 a 15-30. cf. trad. bras. p. 125. 11 No livro Theta, a privação aparece definida do seguinte modo: a) privação é aquilo que

não possui determinada qualidade, e b) o que não possui, embora pudesse natural-mente possuí-la.

12 Aristóteles , Metafísica, 12, 1020 a 5. Cf. trad. bras. p. 127. 13 Idem , 1, 1046 a 30. Cf. trad. bras. p. 191.

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siva. Potência passiva é a potência de sofrer a ação, isto é, quando o ser é passivamente modificado. Potência ativa é o estado de refratari-edade à mudança para pior e à destruição. Aristóteles também estabe-lece a distinção entre potência racional e irracional, dizendo que o principal elemento que as diferen-cia é o fato de que a potência racional é capaz de produzir efeitos con-trários, enquanto a irracional não é capaz de fazê-lo.

Ato e potência são conceitos que se opõem. As definições que de-les dá Aristóteles no livro Theta, seguem a linha de oposição. Na po-lêmica que estabelece com os megáricos,14 a fim de negar a tese megá-rica de que “um ser só pode agir quando está agindo, e quando não está, não pode”, Aristóteles recorre ao argumento de que uma coisa pode existir em potência e não em ato e vice-versa. Com isto, ele quer demonstrar que os megáricos eliminam tanto o movimento como o devir, e o fazem por confundirem ato e potência.

Enquanto a potência é o que “tem a propriedade de mover outra coisa ou de ser movido por ela, seja incondicionalmente, seja de algum modo particular, o ato, pois, é um modo de existir oposto ao que chamamos ‘potência’.”15 Esta demarcação de oposição entre ato e po-tência é seguida de exemplos que têm como propósito definir o ato: ato é o que constrói em relação ao que tem capacidade de construir; é o desperto relativamente ao que dorme; o que vê com respeito ao que tem olhos fechados sem ser privado da visão; como o objeto feito de madeira relativamente à madeira e a obra acabada relativamente à incompleta. Dizendo que não devemos buscar a definição de tudo e que às vezes temos que nos contentar com analogias, ele diz que a partir destes exemplos é possível inferir o que se entende por ato.

No capítulo 3 do livro Theta,16 Aristóteles diz, primeiro, que o ato, no sentido restrito é identificado com o movimento. Logo em seguida, afirma que “das coisas não existentes algumas existem em potência; mas não têm existência real, por não existirem em ato”. Da identifica-ção entre ato e movimento é importante assinalar que em outro lu-gar,17 Aristóteles ressalta que “só será ato o movimento em que estiver presente o fim”. Não se trata, pois, de uma simples identificação entre ato e movimento, uma vez que a noção de fim é central ao conceito de ato e que ela está presente no movimento. Isto é, a mesma identidade que há entre ato e fim não existe entre fim e movimento. A identidade

14 Idem , 3, 1046 b 30-35; 1047 a 5-25, p. 193. 15 Idem , 6, 1048 a 30. Cf. trad. bras. p. 196. 16 Idem , 3, 1047 a 35 e; 1047 b 5. Cf. trad. bras. p. 194. 17 Idem , 6, 1048 b 20. Cf. trad. bras. p. 197.

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entre ato e fim se torna evidente quando o estagirita diz: “a obra é o fim, e o ato é a obra”.18

Por fim, seguindo o raciocínio aristotélico de oposição entre ato e potência, pode-se confrontar estes conceitos, definindo-os da seguinte maneira: a) enquanto a potência possui a capacidade de ser, mas que não necessariamente será, o ato é; b) a potência não possui existência real, o ato sim; c) o ato é o fim, a potência não: o ato é o fim, porque existe em obra, a potência não existe em obra; d) por fim, o que é pe-recível compõe a potência, o que é imperecível diz respeito ao ato.

3 – O argumento da prioridade do ato em relação à potência

Como vimos, a estratégia argumentativa de Aubenque consiste, baseando-se numa leitura não-sistematizante de Aristóteles, em con-ceber o ato e a potência como conceitos oriundos das aporias do mo-vimento. Ato e potência são dependentes do movimento e enquanto tais, não faz sentido falar da anterioridade de um sobre o outro. A interpretação que Aubenque faz sobre este problema apresenta, se-gundo penso, dois limites básicos. O primeiro limite consiste no fato de Aubenque colocar o problema de modo a deixar entender que ha-veria a possibilidade, na argumentação aristotélica, da potência ser anterior ao ato. Isto fica claro quando ele diz que não faz sentido falar da anterioridade do ato ou da potência. O termo ou da potência relati-viza aquilo que para Aristóteles é seguro, isto é, em nenhum momento de sua argumentação, em seu aspecto fundamental, Aristóteles conce-be a possibilidade da potência ser anterior ao ato. Aubenque faz acre-ditar ser indiferente que a questão seja posta nos termos da anteriori-dade de um ou de outro. O segundo limite da argumentação de Au-benque, o mais grave, consiste no fato dele ignorar, não mencionando, os próprios argumentos desenvolvidos por Aristóteles, para provar a anterioridade do ato em relação à potência. A atitude mais sensata teria sido Aubenque expor os argumentos aristotélicos e destruí-los um a um. Porém, autoprotegendo-se numa postura metodológica, considerada por ele como não-sistematizante, destituiu de sentido a prioridade do ato em relação à potência e considerou como falso de-bate aquilo que Aristóteles nem sequer concebia como debate.

Como primeiro passo, no sentido de provar a validade da priori-dade concedida por Aristóteles ao ato em relação à potência, é impor- 18 Idem , 8, 1050 a 20. Cf. trad. bras. p. 201. Se entendo bem , a diferença de identidade

que há entre ato e fim e movimento e fim, concede uma certa autonomia do ato em re-lação ao movimento. Se há , então, esta autonomia , ela põe em contradição, ou pelo menos relativiza a tese de Aubenque de que só se define o ato em função do movimen-to. Cf. Aubenque, op. cit., p. 422.

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tante resgatar o próprio conceito de anterior. Este conceito encontra-se definido, de modo claro, em duas obras de Aristóteles: nas Catego-rias que é uma parte dos escritos lógicos que receberam a denomina-ção de Organon19 e no livro Delta da Metafísica. Nas Categorias, capítulo 12, Aristóteles diz que há quatro modos de dizer anterior: primeiro, em relação ao tempo, dizemos que uma coisa é mais velha do que a outra; em segundo lugar, é anterior o que não admite reciprocidade, e quando a ordem de ser entre duas coisas é fixa, por exemplo, o núme-ro um é anterior ao número dois, pois se há dois, segue-se que há um, enquanto, supondo que há um, não se segue necessariamente que haja dois. Em terceiro lugar, anterior diz-se por referência a uma certa ordem, como nas artes e no discurso. Por último , Aristóteles estabele-ce um quarto modo de anterioridade nas Categorias: o melhor e o mais estimável parece ser anterior por natureza.20

No livro Delta da Metafísica, livro considerado como uma espécie de dicionário filosófico , onde se encontram expostos vários conceitos, Aristóteles define não só o termo anterior, mas também o posterior. Os termos anterior e posterior aplicam-se a algumas coisas por estarem mais próximas ou mais distantes de um começo. São anteriores as coi-sas que estão mais próximas, e são posteriores as que estão mais dis-tantes. Algumas coisas são anteriores em relação ao tempo , outras em relação ao movimento, outras à potência e, outras em relação à dispo-sição. Todos estes elementos: começo , tempo, movimento, potência e disposição demarcam a anterioridade das coisas. Dentre eles, o mais significativo é o movimento, pois, nele, quando as coisas são anterio-res, elas se encontram mais próximas do primeiro motor. Diz Aristóte-les: “Outras coisas são anteriores no movimento, pois anterior é o que se encontra mais próximo do primeiro motor (p. ex. , o menino é ante- 19 O Organon foi organizado da seguinte maneira: 1º Categorias, que contém a teoria dos

termos; 2º Da interpretação, ou teoria das proposições ; 3º Primeiros analíticos, ou teoria do silogismo em geral; 4° Segundos analíticos, ou teoria da demonstração, isto é, do silo-gismo, cujas premissas são necessárias; 5° Tópicos, ou teoria do raciocínio dialético e provável, cujas premissas não são mais do que opiniões geralmente aceitas; 6º Retórica, teoria do raciocínio oratório ou entimema, cujas premissas são escolhidas de maneira a persuadir o auditório. Cf. BRÉHIER, Émile. História da filosofia, v. 1, São Paulo: Mestre Jou, 1977, p. 142. A inclusão que Bréhier faz da Retórica, como um dos livros do Orga-non, não é consensual. A maioria dos intérpretes concebe as Refutações sofísticas e não a Retórica como sexto livro do Organon.

20 ARISTÓTELES, Organon: v. I, Categorias e v. II Periérmeneias, Lisboa: Guimarães Edito-ra, 1985, p. 103-105. Logo abaixo, ainda no capítulo 12, Aristóteles estabelece um ou-tro modo de se dizer anterior: “a proposição verdadeira não é de modo nenhum a cau-sa da existência da coisa; pelo contrário, é a coisa que parece ser, de algum modo, a causa da verdade da proposição, pois é da existência da coisa, ou da sua inexistência , que dependem a verdade ou a falsidade da proposição” (Ibidem , p. 105). Esta defini-ção, além de constituir o quinto modo de se dizer que uma coisa é anterior, revela, em profundidade, a concepção de verdade de Aristóteles. Uma concepção ontológica, ob-jetualista, que diz residir a verdade da proposição na coisa (objeto) e não na própria proposição.

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rior ao homem); e o primeiro motor é também um começo absoluto.”21 Aristóteles, ainda no livro Delta, segue expondo outros modos de an-terioridade: anterioridade no conhecimento, anterioridade nos atribu-tos e anterioridade no que diz respeito à natureza da substância. Sobre esta última, diz ele, as coisas são anteriores quando “podem existir sem as outras coisas, en-quanto as outras não podem existir sem elas”.22 Conclui ele, afirmando que de certo modo tudo que se diz anterior e posterior está relacionado ao modo da substância.

É possível, agora, após a exposição do conceito de anterior, apre-sentar os argumentos desenvolvidos por Aristóteles no sentido de demarcar a anterioridade do ato sobre a potência. O estagirita prova a prioridade do ato, recorrendo à forma, ao tempo e à substancialidade.

a) Em relação à forma: a prioridade do ato na forma é evidente, segundo pensa Aristóteles, porque a potência, no sentido primário, só é potência na medida em que tem a possibilidade de tornar-se ativa. Um dos exemplos dados por ele diz capaz de construir o que pode cons-truir. A anterioridade, na forma, do ato em relação à potência, implica o fato de que ele deve ser conhecido primeiro, antes, do que a potên-cia.23

b) Em relação ao tempo: o ser atual, que é idêntico em espécie, a-inda que não em número, ao que existe em potência, precede este úl-timo. O argumento básico desenvolvido por Aristóteles para provar a ante-rioridade do ato em relação à potência, no que diz respeito ao tempo é o seguinte: “Pois do que existe em potência nasce o que existe em ato pela ação de um ser existente em ato, por exemplo o homem do homem, o músico pelo músico: há sempre um primeiro motor, que já sempre existe em ato.”24

c) Em relação à substancialidade: aqui as razões aludidas por Aris-tóteles são duas:

1) Primeira: porque os seres posteriores no devir são anteriores na forma e na substancialidade (o homem é anterior ao menino), e por-que tudo o que vem a ser move-se em direção a um princípio, a um fim. O ato é o fim, e a potência existe em vista deste fim. Nesta pri-meira razão, para demonstrar a anterioridade do ato em relação à potência, Aristóteles dá o exemplo da matéria: a matéria existe em um estado potencial simplesmente pela razão de que pode alcançar a sua forma; e quando existe em ato é que já a alcançou, pois a matéria em 21 Idem , 11, 1018 b, 20. Cf. trad. bras. p. 123-24. 22 Idem , 11, 1019 a 5. Cf. trad. bras. p. 124. 23 Idem , 8, 1049 b 15. Cf. trad. bras. p. 200. 24 Idem , 8, 1049 b 15. Cf. trad. bras. p. 200.

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potência não alcançou, ainda, a sua forma. Por outro lado, a matéria só é forma em ato, não em potência. O estado potencial da matéria denota já a sua finalidade: a matéria encontra-se em estado potencial, porque pode alcançar a sua forma. A forma é o fim da matéria. Em tom conclusivo, Aristóteles argumenta: “Vê-se claramente, pois, que a substância e a forma são atos. E, pelo mesmo argumento, torna-se óbvia a prioridade substancial do ato à potência. Como dissemos, um ato sempre precede outro na ordem cronológica, até chegar ao ato do motor primeiro e eterno.”25

2) A segunda razão diz respeito ao fato de os seres eternos serem anteriores em substância aos seres perecíveis. O argumento consiste aqui em dizer que nenhum ser eterno existe potencialmente. O que é perecível existe em potência, mas não existe em ato e, ao contrário, o que é absolutamente imperecível existe em ato e não em potência. “Tampouco o que necessariamente é, existe em potência; são esses os princípios primeiros, e, se não existissem, nada mais existiria.”26

25 Idem , 8, 1050 b 5. Cf. trad. bras. p. 201. 26 Idem , 8, 1050 b 5. Cf. trad. bras. p. 202.

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/ Sobre o Faktum da razão 268

DARLEI DALL’AGNOL

Universidade Federal de Santa Catarina

Sobre o Faktum da razão1

O problema da existência ou não de uma razão pura capaz de de-terminar a vontade, isto é, capaz de ser prática é um problema de Fi-losofia da Ação e, como tal, central para a Ética, pois qualquer discus-são sobre a boa ou má ação ou sobre o que deve ser feito tem que pressupor que a ação seja possível. Negar a existência da razão pura prática parece implicar a negação da própria possibilidade de respon-sabilização de um agente por seus atos e, portanto, da razão de ser de disciplinas filosóficas como a Ética, a Filosofia da Política, a Filosofia do Direito, etc. Parece negar, ao menos, que seja possível agir sob regras capazes de serem válidas universalmente.

Na História da Filosofia, encontram-se posições antagônicas sobre esta questão. Hume , por exemplo, sustentou que a razão é unicamente a capacidade de distinguir o verdadeiro e o falso e, como tal, não po-de determinar a vontade. Nas palavras do próprio Hume: “A razão é a descoberta da verdade ou falsidade [...] a razão é completamente inativa.”2 Para o autor de Um tratado da natureza humana, a razão é es-crava das paixões, isto é, os fins de uma ação são dados pela vontade e o máximo que a razão pode fazer é dizer se o meio “x” é mais ou menos adequado que o meio “y” para atingir o fim desejado. “A razão é, e somente pode ser, escrava das paixões e não pode nunca preten-der outra tarefa senão servi-la e obedecê-la.”3 Kant, ao contrário, pro-

1 Quero aproveitar a oportunidade para tornar público meu agradecimento a este gran-

de mestre, filósofo e amigo Antônio Carlos Kroeff Soares pelo que tem representado pessoal e profissionalmente. Gostaria de citar, aqui, algumas – não todas – das lições filosóficas que aprendi com ele, enquanto fui aluno e colega na Universidade de Caxias do Sul que jamais esqueci e que tenho tentado praticar: a) ocupar-me de problemas fi-losóficos e não de filósofos ou filosofias; b) ser rigoroso na análise dos problemas; c) procurar provar as soluções encontradas; d) ter humildade socrática nos resultados; e) discutir sempre; f) viver a Filosofia. Espero ter aprendido e poder continuar a praticar aperfeiçoando cada vez mais estes ensinamentos. Ao Antônio Carlos, que já possui uma vida feliz no sentido aristotélico, votos de que ela seja longa.

2 HUME, D. A treatise of human nature. Oxford: At the Clarendon Press, 1978. p. 458. 3 Idem , p. 415.

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curou mostrar, exatamente contra Hume, que a razão pura pode de-terminar a vontade a partir da representação de leis universais. Foi exatamente para provar que há uma razão pura capaz de determinar a vontade à ação que ele escreveu a Crítica da razão prática: “Ela deve simplesmente provar que existe uma razão pura prática [...].”4 Segun-do Kant, prova-se que a razão pura é prática, isto é, que ela determina a vontade, através do Faktum da razão.5 Provar a possibilidade da razão pura de determinar a vontade é equivalente a mostrar a reali-dade da liberdade.

Compreender esta prova e, mais do que isso, discutir se ela é uma boa prova – obviamente, sob a pressuposição dela ser bem entendida – é talvez um dos problemas mais difíceis da Filosofia Prática kantia-na. Não faltaram críticas ao modo como Kant pretende ter provado a realidade da liberdade. Todavia, a maior parte delas não atinge o ponto central da argumentação kantiana, pela simples razão de que ela não foi interpretada adequadamente.

Neste pequeno ensaio, vou tentar clarificar o significado da ex-pressão Faktum da razão (Faktum der Vernunft) e o tópos que ele ocupa na Filosofia Prática kantiana, procurando mostrar que a compreensão do Faktum da razão depende fundamentalmente de uma reconstrução dos passos que Kant dá para provar a realidade (Realität) da liberda-de. O problema do Faktum está, portanto, conectado com um proble-ma de prova. Assim, um correto entendimento depende de: a) o que significa a expressão Faktum da razão; b) o que é uma prova filosófica; c) quais os passos que Kant dá para provar a realidade da liberdade; d) a natureza desta prova.

O artigo será divido em três partes. Na primeira, vou percorrer os textos kantianos onde aparece a expressão Faktum da razão, tentando compreender qual é o seu significado. Na segunda parte, reconstruirei os passos da prova da possibilidade da razão determinar a vontade ou, o que dá no mesmo, da realidade da liberdade. Finalmente, na terceira parte, vou discutir a natureza da prova apresentada por Kant , procurando saber se ela é uma boa prova.

A expressão Faktum der Vernunft tem sido interpretada comumente como referindo-se à lei moral ou à consciência desta que representaria um motivo para a razão pura ser prática, isto é, determinar a vontade à ação. Deste modo, o problema do Faktum poderia ser, a grosso mo-do, assim enunciado: se devo fazer algo, então naturalmente posso fazê-lo. Se devo manter minhas promessas, então posso fazê-lo mesmo que para isso seja necessário dominar minhas inclinações ou outras

4 KANT, I. Kritik der praktischen Vernunft. In.: Werke in zölfe Bänden. Frankfurt am Main:

Suhrkamp, 1968. A3. 5 Idem , A9.

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/ Sobre o Faktum da razão 270

influências quaisquer que me impelem a não mantê-las. Todavia, esta tese parece pouco plausível. Por exemplo, um médico deveria sempre salvar vidas, mas nem sempre, apesar de desejá-lo, pode fazê-lo. Ou-tro caso: vejo uma pessoa afogando-se em alto mar, devo salvá-la, mas não sei nadar e, por conseguinte, não posso fazê-lo. Além disso, como explicar a possibilidade do mal? Se é a lei moral que é um Faktum que leva a razão pura a determinar a vontade, então ou o mal não é possí-vel, pois liberdade e moralidade seriam co-extensivas, ou o mal é o resultado de uma ação heterônoma o que levaria a uma desresponsa-bilização do agente que , neste caso, estaria apenas envolvido num fluxo de eventos naturais determinados causalmente.

Será que a expressão Faktum da razão refere-se exclusivamente à lei moral que exigiria assim que a razão pura determinasse a vontade? Como explicar então o mal? Não será possível provar que a razão pura é prática independentemente da consciência da lei moral? Como Kant prova que a razão pura é prática? O que significa Faktum da razão? Estas são as principais questões que procuraremos responder neste ensaio.

1 – Os significados de “Faktum da razão”

Kant emprega, em lugares diferentes de suas obras, a expressão Faktum da razão, mas é na Crítica da razão prática que ela aparece com maior freqüência.6 Aparentemente, não existe um significado unívoco para esta expressão. Disto não se segue , entretanto, como pretendo mostrar, que ele seja equívoco. Kant usa, na segunda Crítica, a expres-são Faktum em onze contextos diferentes. Eu vou citar todos para po-der, posteriormente, fazer algumas observações sobre o uso da ex-pressão cujo significado pretendo elucidar.

a) “A razão prática, por si mesma e sem colisão com a especulativa , con-fere realidade a um objeto supra-sensível da categoria da causalidade, a saber, à liberdade (embora seja enquanto conceito prático e apenas para uso prático), por conseguinte, aquilo que podia ser simplesmente ser pen-sado é agora confirmado por um Faktum.”7

b) “Pode-se chamar a esta consciência desta lei fundamental um Faktum da razão, porque não pode ser deduzida com sutileza de dados anterio-

6 Por exemplo, Crítica da faculdade de julgar (§ 91); Metafísica dos costumes – Doutrina do

Direito – (§ 6). 7 “[...] praktische Vernunft jetzt für sich selbst, und ohne mit der spekulativen Verabre-

dung getroffen zu habben, einem übersinnlichen Gegenstande der Kategorie der Kausalität, nänlich der Freiheit, Realität verschafft (obgleich, als praktischen Begriffe, auch nur zum praktischen Gebrauche) , also dasjenige, was dort bloss gedacht werden konnte, duch ein Faktum bestätigt.” (KpV, A9)

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Filosofia, Lógica e Existência / 271

res da razão, por exemplo, da consciência da liberdade (porque esta não nos é dada anteriormente), mas porque ela se impõe por si mesma como proposição sintética a priori que não está fundada em nenhuma intuição, nem pura, nem empírica [...].”8

c) “Entretanto, deve-se observar, a fim de se considerar, sem falsa inter-pretação esta lei como dada, que não é um fato empírico, mas o Faktum ú-nico da razão pura , que assim se proclama como originariamente legis-ladora (assim eu quero, assim eu ordeno).”9

d) “Esta analítica prova que a razão pura pode ser prática, isto é, deter-minar a vontade por si mesma , independentemente de todo elemento empírico – e mostra isso mediante um Faktum em que a razão pura se e-videncia efetivamente em nós como prática, determinando por este meio vontade à ação.”10

e) “Revela ao mesmo tempo que este Faktum está indissoluvelmente liga-do à consciência da liberdade da vontade, que até mesmo se confunde com ela [...].”11

f) “O Faktum anteriormente citado é inegável. Basta apenas analisar o juí-zo que os homens proferem acerca da conformidade das suas ações à lei: descobrir-se-á sempre, seja o que for que a inclinação possa opor, que a sua razão todavia, incorruptível e compelida por si mesma, confronta em qualquer altura a máxima da vontade numa ação com a vontade pura , is-to é, consigo mesma , ao considerar-se como prática a priori.”12

g) “Ao contrário, a lei moral, embora não forneça nenhuma vista , propor-ciona contudo um Faktum absolutamente inexplicável a partir de todos os

8 “Man kann das gewusstsein dieses Gundgesetzes ein Faktum der Vernunft nennen, weil

man es nicht aus vorhergehenden Datis der Vernunft, z.B. dem Bewusstsein der Freiheit (denn dieses ist uns nicht vorher gegeben) , herausvernünfteln kann, sondern weil es sich für sich selbst uns aufdringt als synthetischer Satz a priori, der auf keiner, weder reinen noch empirischen Anschauung gegründet ist, [...].” (KpV A 56)

9 “Doch muss man, um dieses Gesetz ohne Missdeutung als gegeben anzusehen, wohl bemerken: dass es kein empirisches, sondern das einzige Faktum der reinen Vernunft sei, die sich dudurch als ursprünglich gesetzgebend (sic volo, sic iubeo) ankündigt.” (KpV A56)

10 “Diese Analytik tut dar, dass reine Vernunft praktisch sein, d.i. für sich, unabhängig von allem Empirischen, den Willen bestimmen könne – und dieses zwar durch ein Fak-tum , worin sich reine Vernunft bei uns in der Tat praktisch beweiset , nämlich die Auto-nomie in dem Grundsatze der Sittlichkeit , wodurch den Willen zur Tat bestimmt.” (KpV A72)

11 “Sie zeigt zugleich, dass dieses Faktum mit dem Bewusstsein der Freiheit des Willens unzertrennlich verbundem , ja mit ihm einerlei sei, [...].” (KpV, A 72)

12 “Das voher genannte Faktum ist unleugbar. Man darf nur das Urteil zergliedern, wel-ches die Menschen über die Gesetzmässigkeit ihrer Handlungen fällen: so wird man je-derzeit finden, dass, was auch die Neigung dazwischen sprechen mag, ihre Vernunft dennoch, unbestechlich und durch sich selbst gezwungen, die Maxime des Willens bei einer Handlung jederzeit an den reinen Willen halte, d. i. an sich selbst, indem sie sich als a priori praktisch betrachtet.” (KpV A57)

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/ Sobre o Faktum da razão 272

dados do mundo sensível e do âmbito global do nosso uso teorético da razão, que anuncia um puro mundo inteligível, que o determina até positi-vamente e que dele nos permite conhecer alguma coisa, a saber, uma lei.”13

h) “A lei moral também nos é dada, de certo modo, como um Faktum da razão pura de que somos conscientes a priori e que é apoditicamente cer-to, supondo mesmo que não se pudesse encontrar na experiência exem-plo algum em que ela fosse exatamente observada.”14

i) “A realidade objetiva de uma vontade pura ou, o que dá no mesmo, de uma razão pura prática é, numa lei moral, dada por assim dizer a priori por um Faktum, pois assim se pode chamar uma determinação da vonta-de, que é inevitável, embora não se baseie em princípios empíricos.” 15

j) “Que a razão pura , sem mistura de qualquer princípio empírico de de-terminação, seja também prática por si mesma apenas, eis o que era pre-ciso poder demonstrar-se a partir do uso prático mais comum da razão, ao confirmar-se que o princípio prático supremo é um princípio que toda a razão humana natural reconhece como inteiramente a priori, indepen-dente de todos os dados sensíveis, e como lei suprema da sua vontade. Deveria primeiro provar-se e justificar-se a pureza da sua origem, mesmo no juízo desta razão comum, ainda antes de a ciência lhe lançar mão, para dele fazer uso, de certo modo como um Faktum que ocorre antes de todo o sofismar sobre a sua possibilidade e todas as conseqüências que daí po-diam tirar-se.”16

13 “Dagegen gibt das moralische Gesetz, wenn gleich keine Aussicht , dennoch ein schlech-

terdings aus allen Datis der Sinnenwelt und dem ganzen Umfange unseres theoretis-chen Vernunftgebrauchts unerklärliches Faktum an die Hand , das auf eine reine Vers-tandeswelt Anzeige gibt, ja diese so gar positiv bestimmt und uns etwas von ihr, nämlich ein Gesetz, erkennen lässt.” (KpV A74)

14 “Auch ist das moralische Gesetz gleichsam als ein Faktum der reinen Vernunft, dessen wir uns a priori bewusst sind und welches apodiktisch gewiss ist, gegeben, gesetzt, dass man auch in der Erfahrung kein Beispiel, da es genau befolgt wäre auftreiben konnte.” (KpV A81)

15 “Die objektive Realität eines reinen Willens , oder, welches einerlei ist, einer reinen prak-tischen Vernunft ist im moralischen Gesetz a priori gleichsam duch ein Faktum gegeben; denn so kann man eine Willensbestimmung nennen, die unvermeidlich ist, ob sie gleich nicht auf empirischen Prinzipien beruht.” (KpV A97)

16 “Aber dass reine Vernunft, onhe Beimischung irgend eines empirischen Bestimmungs-grundes , für sich allein auch praktisch sei, das musste man aus dem gemeinsten praktischen Vernunftgebrauche dartun können, indem man den obersten praktischen Grundsatz, als einen solchen, den jede natürliche Menschenvernunft, als völlig a priori, von keinen sinnlichen Datis abhängend , für das oberste Gesetz seines Willens erkennt , beglaudigte. Man musste ihn zuerst, der Reinigkeit seines Ursprungs nach, selbst im Urteile dieser gemeinen Versunft bewähren und rechtfertigen, ehe ihn noch die Wissens-chaft in die Hände nehmen konnte, um Gebrauch von ihm zu machen, gleichsam als ein Faktum , das vor allem Vernünfteln über seine Möglichkeit und allen Folgerungen, die daraus zu ziehen sein möchten, vorhergeht.” (KpV A163)

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Filosofia, Lógica e Existência / 273

k) “Tratava-se unicamente de transformar este poder num ser, isto é, de conseguir provar num caso real, por assim dizer mediante um Faktum que certas ações pressupõem uma tal causalidade (a intelectual, sensi-velmente incondicionada), quer elas sejam reais ou apenas ordenadas, is-to é, objetiva e praticamente necessárias.”17

Como pode ser notado, Kant parece referir-se a coisas diferentes quando usa a expressão Faktum da razão. Todavia, três observações preliminares devem ser feitas, antes de passarmos a uma análise cui-dadosa daquilo a que se está referindo. A primeira é a seguinte: Kant sempre emprega a palavra latina germanizada Faktum e nunca a pala-vra tipicamente alemã que designa fato, a saber, Tatsache. A razão dis-to é a seguinte: não se trata obviamente de um fato empírico. Isto po-de ser claramente observado na citação da letra c. Deste modo, o Fak-tum da razão não é um fenômeno que cumpre as condições que a Críti-ca da razão pura mostrou serem necessárias para ele ser considerado um fato. É fundamental lembrar, portanto, que um fenômeno é real se ele preenche as condições materiais da experiência, isto é, da sensação que produz representações singulares dos objetos externos (intuições) que deverão ser subsumidas por representações universais (categori-as) possibilitando, assim, o conhecimento de fenômenos determináveis espaço-temporalmente. Somente neste domínio pode-se falar de reali-dade empírica. As idéias não são representações de objetos que po-dem ser dados na experiência e, portanto, sua realidade é problemáti-ca. Entre estas idéias está, por exemplo, exatamente a da liberdade. O Faktum da razão, seja lá o que ele significar, não pretende mostrar a realidade empírica de uma idéia.18 O Faktum da razão não é um fato empírico, fenomênico.

A segunda observação também diz respeito ao uso do termo Fak-tum. O uso que dele se encontra em escritores latinos dá a ele o senti-do de feito, obra, como em expressões do tipo: facta illustra et gloriosa.19 A partir do significado usual da expressão latina, não é de todo des-propositado traduzir a expressão Faktum der Vernunft por algo como: o resultado da ação da razão. A razão torna-se assim agente, isto é, ca-

17 “Nun kam es bloss darauf an, dass dieses Können in ein Sein verwandelt würde, d. i.

dass man in einem wirklichen Falle, gleichsam durch ein Faktum , beweisen könne: dass gewisse Handlungen eine solche Kausalität (die intellecktuelle, sinnlich unbedingte) vo-raussetzen, sie mögen nun wirklich, oder auch nur geboten, d. i. objektiv praktisch not-wendig sein.” (KpV A187)

18 Outro cuidado que Kant possui é o de utilizar a palavra , emprestada do Latim, Realität para caracterizar a realidade, por exemplo, da liberdade, e não a palavra Wir-klichkeit. Esta última caracteriza os fenômenos reais e, neste sentido, as condições mate-riais da experiência são preenchidas. A liberdade é uma idéia da razão pura e sua rea-lidade objetiva não pode ser provada pela experiência. Todavia , isto não significa – como se pretende mostrar – que ela deva ser considerada vazia , irreal.

19 “Ações belas e gloriosas”.

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/ Sobre o Faktum da razão 274

paz de ser causa do agir. Este seria o sentido utilizado por Kant na citação da letra d onde o Faktum é simplesmente o seguinte: a razão autodeterminando-se a agir. Esta é uma conotação possível da expres-são Faktum da razão que será importante manter presente.

A terceira observação diz respeito ao problema “numérico” deste Faktum. Apesar de Kant falar num dos contextos (veja o citado anteri-or-mente sob a letra c em Faktum único da razão, ele também emprega expressões como a lei moral também (auch) pode ser considerada um Faktum (conferir texto da letra g o que indica que ele não pensa necessaria-mente em UM Faktum. Importante observar que Kant diz que a lei mo-ral também pode ser considerada um Faktum logo depois de afirmar que a razão pura é prática já em virtude do seu conceito.20 Além disso a expressão das einzige Faktum pode perfeitamente significar o seguin-te: este Faktum, como qualquer outro, é único. Deste modo, pode-se falar em mais de um Faktum da razão. Portanto, nossa análise não deve ser guiada pelo preconceito da univocidade da expressão. Talvez seja interessante observar também que Kant fala de Datis der Vernunft (da-dos da razão) e que esta expressão pode caracterizar os produtos da razão, a saber, as idéias, assim como intuições e categorias caracteri-zam, respectivamente, produtos da sensibilidade e do entendimento. Um Faktum é um dado da razão.

A questão primordial, entretanto, é esta: a que é que Kant refere-se quando usa a expressão Faktum da razão? Beck,21 citando apenas quatro passagens (as citadas nas letras b, c, d, h), sustenta que existem três sig-nificados importantes da expressão Faktum da razão: 1) na citação da letra b, o Faktum refere-se à consciência da lei moral; 2) nas letras c e h à própria lei moral; 3) na citação da letra d à autonomia. Segundo Beck, como Kant identifica liberdade enquanto autonomia com a própria lei moral, existem dois significados básicos: a consciên-cia da lei moral e a própria lei moral. Beck considera esta dualidade um problema e procura mostrar que se trata de um solo (um único) Faktum.

Para resolver esta dualidade no significado de Faktum da razão – dualidade que poderia muito bem não trazer nenhum problema, pois existem muitas palavras ou expressões que são plurívocas na lingua-gem e nem por isso deixam de significar algo suficientemente deter-minado – Beck faz uma distinção entre fato da razão pura e fato para a razão pura. Eu cito:

20 KANT, I. Kritik der praktichen Vernunft. Werkausgabe in zwölf Bänden (VII). Frankurt

am Main: Suhrkamp, 1968. A 81. 21 BECK, L.W. A commentary on Kant’s Critique of Practical Reason. Chicago: The University

of Chicago Press, 1984. p. 167.

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Filosofia, Lógica e Existência / 275

“ ‘Fato da razão pura’ pode significar um fato conhecido pela razão pura como seu objeto, modo directo . Ou ele pode significar o fato que há razão pura, conhecido pela razão reflexivamente. Isto pode ser diferenciado como ‘fato para a razão pura’ e ‘fato da razão pura’.”22

Esta distinção é interessante e realmente é de valiosa ajuda na ten-tativa de buscar a unicidade no uso da expressão Faktum da razão nos diferentes contextos, se é que tal unicidade deve ser buscada. A con-clusão que Beck chega é a de que a lei moral é o fato da razão:

“Somente uma lei que é dada pela própria razão para a razão mesma po-deria ser conhecida a priori pela razão pura e ser um fato para a razão pura. A lei moral não expressa nada mais que a autonomia da razão; ela é um fato para a razão pura, isto é, o fato que a razão pura pode ser práti-ca. É por isso que a lei moral é o único fato da razão e para a razão pu-ra.”23

A solução é realmente engenhosa, mas ela não dá conta de todos os usos que Kant faz, como pode ser notado a partir de uma cuidado-sa observação dos trechos citados anteriormente. Todavia, a principal razão para não aceitar a solução de Beck é a seguinte: com a distinção entre fato da razão e fato para a razão não se explica por que Kant considera o Faktum da razão uma prova de que a razão pura é prática. Somente contextualizando o Faktum como momento de uma prova é que se compreende qual é a sua função na Filosofia Prática kantiana. Este é, segundo penso, o ponto central sob o qual deve girar a discus-são.

Outro importante intérprete, Allison, citando oito passagens da Crítica da Razão Prática (as citadas nas letras a, b, c, d, h, i, j, k), sustenta, com o auxílio da análise de Beck, que há seis significados básicos da expressão Faktum da razão, a saber: 1) consciência da lei moral; 2) consciência da liberdade da vontade; 3) a lei; 4) autonomia no princí-pio da moralidade; 5) uma inevitável determinação da vontade pela mera concepção da lei; e 6) um caso real de uma ação pressupondo uma causalidade incondicionada.24 Allison afirma que, para complicar, Kant identifica também o Faktum com (7) a liberdade, com (8) a lei prática da liberdade e (9) com o imperativo categórico. Allison, toda-via, aceita a classificação de Beck dos significados em duas grandes classes e procura também dar um significado central para a expressão que está sendo discutida. A conclusão que Allison chega, depois de analisar estes diferentes significados é a seguinte:

22 Idem , p. 168. 23 Idem , ibidem, p.169. 24 ALLISON, H.E. Kant’s theory of freedom. New York: Cambridge University Press, 1991.

p. 232.

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/ Sobre o Faktum da razão 276

“Embora os textos estão longe de não serem ambíguos a este respeito, a parte principal da evidência sugere que o fato é melhor entendido como a consciência de estar sob a lei moral e o reconhecimento desta lei ‘pela ra-zão humana natural como a lei suprema de sua vontade’.”25

Allison, como pode ser visto, unifica os diferentes usos a partir da consciência da lei moral como sendo o significado básico do Faktum. Todavia, creio há pontos discutíveis nesta posição. O que significa consciência? Se significa algum tipo de intuição que daria acesso à lei moral, então Allison está errado, pois Kant nega expressamente que a lei moral possa ser objeto de uma intuição como pode ser notado na citação da letra b. Além disso, como salientou Beck,26 a consciência de algo não é condição suficiente para mostrar sua validade objetiva. Por exemplo, se eu acredito que há um Deus e que o dever é determinado pela vontade de Deus , e se na realidade Deus não existe, então per-manece um fato que eu sinto o chamado do dever, mas não é um fato que o dever obriga de modo objetivamente válido.

Assim, a pergunta: o que significa a expressão Faktum da razão? permanece sem uma resposta satisfatória. Para uma compreensão ade-quada, creio que o primeiro passo é não ter a preocupação de unifica-ção dos usos destes termos sob um único significado. Creio que não há um bom motivo para tal. Por isso, tomando os significados já cita-dos por Beck e complementados por Allison, mas sem a tentativa de reduzir a um único Faktum, pode-se admitir a pluralidade de signifi-cados da referida expressão.

Para comprovar esta interpretação, gostaria de tentar esclarecer através de uma exemplificação dois usos distintos que Kant faz da expressão Faktum da razão, referindo-se ora ao Faktum da lei moral, ora ao Faktum de que a razão é prática por si mesma. Deixo de lado, por enquanto, qualquer relação entre eles. Posteriormente, vou anali-sar a implicação mútua que existe entre ambos. Que a moralidade seja um dado da razão, um Faktum, pode ser claramente percebido tanto na Fundamentação da Metafísica dos Costumes quanto na Crítica da Razão Prática, pois Kant jamais tenta provar que há moralidade. A transição do senso moral comum para o conhecimento filosófico e deste para uma Metafísica dos Costumes tem sempre o pressuposto de que a mo-ralidade está dada assim como outros juízos sintéticos a priori são da-dos pela Matemática e pela Física e é necessário tão somente explicar como eles são possíveis. Do mesmo modo, o imperativo categórico opera no senso moral comum – embora não necessariamente de forma explícita – e é necessário mostrar como ele é possível. Todavia, Kant

25 Idem. p. 233. 26 BECK, L.W. A commentary on Kant’s Critique of Practical Reason. Chicago: The University

of Chicago Press, 1984. p. 169-70.

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nunca se põe a provar que há moralidade na Fundamentação. Do mes-mo modo, na Crítica da razão prática não se tenta provar que existe mo-ralidade. Aqui está a comprovação da boa educação filosófica de Kant:

“Portanto, a realidade objetiva da lei moral não pode ser demonstrada por nenhuma dedução, nem por todo o esforço da razão teórica, especu-lativa ou empiricamente sustentada; e, por conseqüência, mesmo se se quisesse renunciar à certeza apodítica, também não pode ser confirmada pela experiência e assim ser demonstrada a posteriori. Apesar disto, man-tém-se firme por si mesma.” (KpV A 82)

É exatamente pela impossibilidade de uma demonstração e, mes-mo assim, pela sua inegabilidade que Kant utiliza o termo Faktum para caracterizar a realidade objetiva da lei moral. Assim, enquanto a Fun-damentação argumenta partindo de um pressuposto condicional, a sa-ber, se existir moralidade, então sua fórmula será a que o imperativo categórico expressa, a segunda Crítica simplesmente postula a morali-dade como algo inegável. A moralidade é um Faktum tanto quanto é um fato o céu estrelado.

Mas Kant também fala no Faktum que a razão pura é prática e isto não é equivalente ao Faktum que há lei moral. Isto pode ser notado na Crítica da razão prática (A56) quando seu autor considera a razão como prática por si mesma. Quero apresentar alguns argumentos que sus-tentam esta maneira de interpretar o Faktum de que a razão pura é prática por si mesma até independentemente do Faktum de que há moralidade, mesmo que este último possa ser um motivo privilegiado para postular a existência da razão pura prática. Em primeiro lugar, quero partir de uma crítica muito conhecida à ética kantiana, a saber, que se Kant simplesmente identifica liberdade com moralidade (esta identificação é conhecida como a tese da reciprocidade, pois, segundo a Fundamentação dada, a liberdade segue-se por simples análise do seu conceito a moralidade) então ou o mal moral não seria possível ou seria o resultado das inclinações, o que levaria a uma desresponsabili-zação do agente. Assim, quando Kant fala do mal radical na Religião dentro dos simples limites da razão, ele estaria contradizendo-se com sua obra crítica. Ora, dado que a negação da própria liberdade deve ser possível (o que seria o mal radical) e mesmo o mal moral deve ser possível, a condição para tal é que haja liberdade inclusive para agir não-moralmente e isto significa que a razão pura pode ser prática in-dependentemente da lei moral. Creio que este é um motivo forte para procurarmos ver a prova kantiana da realidade da liberdade não sim-plesmente a partir do Faktum de que há lei moral. Em segundo lugar, Kant parece admitir que mesmo em imperativos técnicos a razão deve poder determinar a vontade à ação, pois até a Geometria possui pos-tulados como proposições práticas que partem do pressuposto de que

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/ Sobre o Faktum da razão 278

se pode fazer alguma coisa, se por acaso fosse exigido o dever de fazê-la (Cf. KpV A55). Finalmente, creio que se deve relativizar certos apelos de Kant a evidências cotidianas que confirmariam a suposta ordem dos conceitos, quer dizer, primeiro postular o dever para depois exi-gir o poder fazer.27 Assim, creio que Kant realmente identifica a mora-lidade com um conceito de liberdade, a saber, a liberdade positiva ou a autonomia, mas não considera a moralidade e a liberdade simples-mente como co-extensivas, embora nem sempre seja cuidadoso com sua terminologia.

Se isto está correto, então quero insistir que o ponto central, na correta compreensão do que Kant pretende quando utiliza a expressão Faktum da razão, depende fundamentalmente de um bom entendimento do que está sendo provado ou simplesmente deixando de ser demons-trado e assumido como válido. E é exatamente este segundo ponto que me parece importante para compreender os usos da expressão Faktum da razão. Portanto, dado que o objetivo central da Crítica da razão prática é provar, como já foi visto, que existe uma razão pura prá-tica (KpV A3) e que a compreensão do Faktum depende do contexto de prova que ele está sendo usado, quero reconstituir aqui os princi-pais passos que Kant dá para mostrar a realidade da liberdade, ou seja, que a razão pura efetivamente determina a vontade.

2 – A prova kantiana da realidade da liberdade

Vou deixar de lado, aqui, porque fugiria aos limites deste ensaio, uma análise de cada um dos possíveis referentes da expressão Faktum da razão. É o uso vinculado com a prova de que a razão pura é prática que vou procurar compreender deste ponto em diante. Vou sustentar, aqui, que existem três momentos principais nesta prova da realidade da liberdade: a) o primeiro é o da Crítica da razão pura quando Kant mostra a não-contrariedade entre a liberdade e a causalidade, enquan-to lei universal da natureza; b) o segundo é o da Fundamentação da metafísica dos costumes através da caracterização positiva da liberdade; c) finalmente, o terceiro é encontrado na Crítica da razão prática quando Kant mostra que é um Faktum que a razão determina a vontade sendo, deste modo, prática por si mesma.

27 Após citar exemplos de que primeiro reconhecemos o dever para depois considerarmo-

nos capazes de o cumprir, Kant escreve: “Julga pois que pode alguma coisa porque es-tá consciente de que o deve e reconhece em si a liberdade a qual, sem a lei moral, lhe permaneceria desconhecida.” (KpV A54) Poderíamos apelar para situações onde existe a consciência de que algo deve ser feito, embora não seja possível. Por exemplo, vejo que alguém está no fundo do mar afogando-se, mas não posso salvá-lo, porque sim-plesmente não sei nadar.

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Quero, antes, encontrar alguns elementos da conexão interna – ar-gumentativa – entre as três obras onde se dá a prova da realidade da liberdade ou, o que dá no mesmo, a prova de que a razão pura é prá-tica. No prefácio da segunda Crítica – publicada em 1788 – Kant escla-rece que ela pressupõe a Fundamentação – publicada três anos antes – porque esta, de forma provisória, apresenta o princípio supremo do dever e justifica uma fórmula determinada.28 Todavia, não se prova na Fundamentação nem que há moralidade nem tampouco que a liberdade é real. O que a Crítica da razão prática avança em relação a Fundamenta-ção é, portanto, no seguinte: o juízo problemático sobre a mera pres-suposição da liberdade, para explicar como é possível a autonomia, enquanto princípio supremo da moralidade deve tornar-se apodítico. Mas a própria Fundamentação supõe um passo argumentativo anterior. Kant escreve no final da terceira parte desta obra, que a liberdade e a causalidade devem poder ser ambas admissíveis.29 Assim, a liberdade somente poderá ser considerada uma pressuposição necessária para a possibilidade da autonomia se ela for de alguma forma compatível com a lei da causalidade. Esta observação nos mostra uma importante conexão entre a Fundamentação e a primeira Crítica publicada em 1781: a Filosofia Prática depende da Especulativa enquanto esta deve mos-trar a não-contrariedade entre liberdade e causação universal.

Antes de reconstituir estes passos da prova da realidade da liber-dade, quero lembrar as regras fundamentais de uma prova transcen-dental que, segundo Kant, devem disciplinar a razão pura. A primeira regra é esta:

“Não tentar provas transcendentais sem antes ter refletido, e se justifica-do quanto a isto, acerca da origem dos princípios sobre os quais se pensa eri-gi-las e com que direito se pode deles esperar sermos bem-sucedidos em nossas inferências.” (KrV B814)

Esta regra enuncia um primeiro elemento disto que é a especifici-dade de uma prova filosófica e que deve disciplinar a razão pura. Ele aparece também quando Kant formula a terceira regra das provas transcendentais30 (a segunda é trivial: há apenas uma prova), afirman-do que elas têm que ser ostensivas, isto é, combinar ao mesmo tempo a convicção da verdade com o conhecimento de suas fontes. Visto que as ciências são compostas por proposições sintéticas a priori, compete à 28 KANT, I. Kritik der praktichen Vernunft. Werkausgabe in zwölf Bänden (VII). Frankurt

am Main: Suhrkamp, 1968. A15. 29 “Isto deve-se também pressupor: que entre liberdade e necessidade natural dessas

mesmas ações humanas não se encontra nenhuma verdadeira contradição, pois não se pode renunciar nem ao conceito de natureza nem ao conceito de liberdade.” Grundle-gung , BA 115.

30 KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. Werkausgabe in zwölf Bänden (IV). Frankurt am Main: Suhrkamp, 1968. B817.

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/ Sobre o Faktum da razão 280

Filosofia esclarecer como o conhecimento a priori é possível. Este é o problema da filosofia transcendental que também deve ser resolvido aprioristicamente. Ciência e Filosofia pertencem, portanto, a âmbitos distintos. O que temos, então, é a especificidade de uma prova trans-cendental, a saber, ela deve apresentar uma justificação da origem daquilo que se pretende provar juntamente com a tentativa de mos-trar a verdade. Na próxima parte do trabalho , voltarei a este ponto com uma discussão mais pormenorizada da natureza desta prova.

Vejamos, então, como Kant mostra a possibilidade de se pensar na liberdade sem entrar em contradição com uma afirmação da validade universal da lei da causalidade. Na realidade, elas podem ser contra-postas como o faz a terceira antinomia. O terceiro conflito das idéias transcendentais é assim apresentado por Kant:

“Tese

A causalidade segundo leis da natureza não é a única a partir da qual os fenômenos do mundo pos-sam ser derivados em conjunto. Para explicá-los é necessário admitir ainda uma causalidade mediante a liberdade. [...]

Antítese

Não há liberdade alguma , mas tudo no mundo acontece mera-mente segundo leis da nature-za.”31

Kant apresenta uma prova da validade de cada uma destas propo-sições, mostrando que ambas são verdadeiras. As provas são feitas por redução ao absurdo. A prova da tese, por exemplo, é a grosso modo esta: suponha que não exista liberdade; ora, dado que cada e-vento atual pressupõe outro que lhe é anterior e que lhe serve de cau-sa e assim sucessivamente, a série não poderia ir ao infinito, pois nada existiria no presente; ora, há eventos acontecendo agora; portanto, deve-se admitir a verdade da tese, isto é, um início espontâneo ou uma causalidade por liberdade do mundo. A antítese também é pro-vada como pode ser visto em B 473-5. O que temos então é um par de proposições: uma sendo a negação da outra e ambas com o mesmo valor de verdade, o que constitui uma clara transgressão do princípio do terceiro excluído. Para dissolver este conflito, Kant mostra que efetivamente ambas são verdadeiras, mas que cada uma delas refere-se a perspectivas diferentes do objeto. Assim, a causalidade é uma categoria a priori que aplica-se ao objeto enquanto fenômeno. A causa-lidade por liberdade, que também é a prio-ri enquanto espontaneida-de, é atributo do objeto tomado em si mesmo. Deste modo, a distin-

31 Idem , B 471-2.

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Filosofia, Lógica e Existência / 281

ção fenômeno/coisa-em-si permite dissolver a antinomia entre liber-dade e causalidade e admitir ambas simultaneamente.

Se ambas são verdadeiras, e a condição para tal é que elas se refi-ram a perspectivas distintas do mesmo objeto – seu aparente antago-nismo advém de uma confusão entre fenômenos e coisas em si –, en-tão o que a tese pressupõe é obviamente verdadeiro, isto é, a liberda-de deve ser admitida. Qual é o conceito de liberdade que temos aqui? A liberdade no sentido transcendental ou também chamada liberdade cosmológica. Trata-se simplesmente da espontaneidade, isto é, do começo de uma cadeia causal sem que se tenha necessariamente de pressupor uma causa natural prévia. Se esta liberdade puder ser atri-buída a um ser racional – ou a um ser racional e sensível como nós humanos –, então a ação livre seria possível, isto é, um ato seria es-pontâneo. Assim, segundo o próprio exemplo de Kant , se me levanto agora desta cadeira sem a influência de causas naturais, esta decisão pode desencadear uma nova série de eventos naturais no mundo co-mo suas conseqüências, mas sua causa não é ela própria necessaria-mente determinada por um fenômeno natural, porque a liberdade seria um atributo do agente tomado em si mesmo e não enquanto fe-nômeno. O ato é, em outros termos, livre. Portanto, a prova da espon-taneidade do mundo permite também que se pense o início de diver-sas séries dentro do curso do mundo de modo espontâneo, isto é, uma faculdade de agir a partir da liberdade. Uma importante obser-vação precisa ser feita aqui: a liberdade enquanto espontaneidade é, aqui, possível sem que ela seja postulada pela necessidade do dever moral. Tomando o exemplo de Kant: é um ato a-moral levantar-me agora da cadeira. No entanto, é um ato livre.

Antes de passar ao segundo momento, quero fazer uma advertên-cia: a distinção entre fenômeno e coisa-em-si é, aqui, uma distinção puramente lógica que no domínio da razão pura especulativa clara-mente não implica nenhuma conseqüência ontológica do tipo platôni-co, a saber, a crença na existência de dois mundos. É claro que Kant nem sempre utiliza cuidadosamente seu vocabulário, mas no prefácio da segunda edição da Crítica da razão pura, não permanece nenhuma dúvida sobre a natureza da distinção fenômeno/coisa-em-si. Kant escreve: “Se a crítica não errou ensinando a tomar o objeto numa du-pla significação, a saber, como fenômeno e como coisa-em-si [...]” (KrV BXXVII). Trata-se sempre do mesmo objeto tomado numa dupla signi-ficação e não de dois objetos. Deste modo, o fenômeno é o objeto to-mado em sua relação cognitiva conosco, a saber, enquanto ele é intuí-do, isto é, sendo exterior e afetando a sensibilidade que o representa e enquanto dele se faz um conceito subsumindo diversas representa-ções particulares em catego- rias, isto é, representações dos elementos comuns às intuições. A coi-

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/ Sobre o Faktum da razão 282

sa-em-si é o objeto tomado independentemente desta relação, sendo apenas o ato de negação do objeto enquanto fenômeno – ele é apenas pensado – desconhecendo-se qualquer atributo que ele possa ter. Por-tanto, a distinção não é ontológica, mas sim puramente lógica, isto é, trata-se do mesmo objeto tomado numa dupla significação.

O que Kant faz ao dissolver a antinomia entre causalidade e liber-dade mostrando que elas se referem a perspectivas diferentes do obje-to é, simplesmente, mostrar a possibilidade de se pensar a liberdade sem com isso negar a universalidade e a necessidade das leis da natu-reza. A liberdade é compatível com a causalidade. Mostrar a não-contrariedade entre liberdade e natureza é o primeiro passo da prova kantiana de que a razão pura pode determinar a vontade à ação.

O segundo passo será dado por Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes quando se mostra que liberdade é a condição da autono-mia. Primeiro, o que é autonomia? A terceira formulação do imperati-vo categórico expressa nestes termos a autonomia como princípio su-premo da moralidade:

“[...] não praticar uma ação senão em acordo com uma máxima que se saiba poder ser uma lei universal, quer dizer só de tal maneira que a von-tade pela sua máxima se possa considerar a si mesma ao mesmo tempo como legisladora universal.” (Grundlegung, BA 76)

Em outros termos, o que Kant sustenta é que somente a auto-imposição daquelas leis que uma vontade de um ser racional produz é a expressão do princípio supremo da moralidade. É oportuno lembrar, aqui, a formulação rousseauniana: a liberdade não é outra coisa senão a obediência à lei que nós próprios nos prescrevemos. A autonomia é, portanto, a liberdade num sentido positivo. Agora, se nos perguntar-mos: como é possível autonomia? A resposta será a seguinte: sob a neces-sária pressuposição da liberdade no sentido transcendental. Por isso, Kant escreve que sob o conceito de liberdade transcendental funda-se o conceito de liberdade prática.

Quero insistir que a autonomia não é condição para a liberdade, mas, pelo contrário, esta é condição daquela. É isto que Kant tem em mente quando escreve:

“Digo, pois: Todo o ser que não pode agir senão sob a idéia da liberdade é por isso mesmo, em sentido prático, verdadeiramente livre, quer dizer, para ele valem todas as leis que estão inseparavelmente ligadas à liber-dade, exatamente como se a sua vontade fosse definida como livre em si mesma e de modo válido na filosofia teórica.” (Grundlegung, BA 100)

Assim, é condição necessária e suficiente para um ser racional voli-tivo que ele se pense como livre para ser efetivamente livre. Basta agir sob a pressuposição que se é livre para realmente sê-lo. Claro que a

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liberdade continua atribuída ao em si do agente, isto é, ela é uma pro-priedade de seu caráter inteligível e não do seu caráter empírico en-quanto fenômeno entre fenômenos. E é oportuno lembrar que não se tratam de dois “eus” do agente, a saber, o seu eu empírico e o seu eu inteligível, mas de um único eu visto a partir de dois pontos de vista.

Este segundo passo dado na Fundamentação, todavia, está constitu-ído sob uma série de condicionais, como já foi dito anteriormente. Kant jamais pretende demonstrar, no contexto da Fundamentação, que existe a moralidade, que existem deveres expressos sob imperativos categóricos, que a razão pode determinar a vontade. A Fundamentação argumenta deste modo: se a moralidade for aceita, então seu princípio supremo será tal e tal. Se existir o dever, então tal será sua fórmula. Se a razão determina a vontade, então tal e tal. O que temos é um con-junto de argumentos condicionais construídos a partir de premissas hipotéticas. A compreensão deste ponto é fundamental para uma ade-quada interpretação do Faktum da razão enquanto momento decisivo da prova que Kant está pretendendo apresentar.

O terceiro passo é dado na Crítica da razão prática onde simplesmente seu autor postula que a razão pura é prática por si mesma e que isto é um Faktum. Temos aqui a justa medida para compreender melhor o uso da expressão Faktum. Kant não tem alternativa, dado (1) que a liberdade foi atribuída à coisa-em-si na primeira Crítica e (2) que os seres racio-nais que agem sob a idéia da liberdade são eo ipso livres, a não ser declarar que a razão pura é prática por si mesma e que isto é um Faktum. Afirmar que a razão pura é prática por si, isto é, que ela é capaz de auto-determinar-se e ser assim causa eficiente da ação, não tem um grau de evidência ou de certeza menor do que a inevitabili-dade de um fato empírico.

Está concluída, deste modo, a prova da realidade da liberdade. A prova pode então, mesmo correndo todos os riscos de uma apressada simplificação, ser resumida desta maneira: a liberdade da vontade é possível, pois não é contrária à causalidade. Ora, seres que agem sob a pressuposição de serem livres são por isso mesmo livres. Portanto, a liberdade é um Faktum.

Este modo de apresentar a prova possui uma grande vantagem, a saber, ela escapa à objeção de que existe um círculo vicioso na prova da realidade da liberdade, se ela for feita a partir do Faktum da lei moral. Este círculo foi assim formulado pelo próprio Kant: considera-mo-nos como livres na ordem das causas eficientes para nos pensar-mos submetidos a leis morais na ordem dos fins, e depois pensamo-nos como submetidos a estas leis, porque nos atribuímos a liberdade da vontade. Assim, a aparência de um círculo vicioso que comprome-teria a argumentação é desfeita quando a liberdade é corretamente

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/ Sobre o Faktum da razão 284

compreendida como a razão de ser da lei moral, pois sem liberdade, isto é, somente com leis naturais, não faria sentido falar em dever.

3 – A natureza da prova

Pelo que foi dito anteriormente, deve ter sido evidenciado que a discussão sobre o Faktum da razão depende fundamentalmente de uma compreensão de que ele é um momento de uma prova. Por isso, foi necessário reconstruir os passos que Kant dá para mostrar a reali-dade da liberdade. O que pretendo fazer nesta última parte do traba-lho é discutir melhor a natureza da prova kantiana e avaliar se é uma boa prova.

Primeiramente, gostaria de tentar compreender o que é uma prova filosófica. Ela não é, segundo o próprio Kant , uma demonstração no sentido estrito do termo. O que significa demonstração no sentido estrito? Na Crítica da razão pura, uma demonstração é uma prova apo-dítica que é, em algum sentido, intuitiva. Neste sentido, somente a Matemática e não a Filosofia contém demonstrações, pois ela constrói conceitos apresentando as intuições que lhes correspondem. 32 As pro-vas filosóficas não são demonstrações no sentido estrito do termo. Nas palavras do próprio Kant:

“Em conseqüência disto, eu gostaria de chamar (...) de provas acromáticas (discursivas), pois só podem ser efetuadas através de puras palavras (o objeto em pensamento), do que denominá-las demonstrações, as quais pro-gridem na intuição do objeto, tal qual a expressão já o indica.” (KrV B762-3)

Percebe-se nesta citação que Kant tem uma preocupação em dife-renciar o tipo de prova que pode ser feito na Filosofia e aquele que pode ser feito numa ciência tal como a Matemática. Independentemen-te do nome que a prova receba, o importante é compreender que uma prova da Filosofia e, particularmente, no domínio da razão pura práti-ca, não pode ser intuitiva, o que equivaleria a exigir uma representa-ção particular que poderia ser dada numa experiência possível. É exa-tamente este o limite extremo da Filosofia Prática: ela não pode apre-sentar uma intuição correspondente aos seus conceitos. A razão ultra-passaria todos os seus limites, se ela exigisse uma intuição para tornar acessíveis conceitos que são do domínio do inteligível. 33 O que se in-

32 “Só uma prova apodítica, na medida em que é intuitiva, pode ser denominada de-

monstração. [...] Portanto, só a Matemática contém demonstrações, pois deriva o seu conhecimento não de conceitos, mas sim da construção desses conceitos, isto é, da intuição, a qual pode ser dada a priori e correspondente aos conceitos.” (KrV B762)

33 KANT, I. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Werkausgabe in zwölf Bänden (VII).

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siste na terceira parte da Fundamentação é, enfim, que não é possível uma demonstração da realidade da liberdade. É isto que Kant salienta quando escreve no final da terceira secção:

“Mas a razão ultrapassaria logo todos os seus limites se se arrojasse a explicar como é que a razão pura pode ser prática, o que seria a mesma coisa que explicar como é que é possível a liberdade.” (Grundlegung, BA121)

O limite exato da razão pura está na impossibilidade dela própria explicar como é possível que seja prática. Tentar explicar isto equivale-ria a exigir uma intuição da razão pura, uma intuição intelectual que não nos é possível, dada a nossa condição finita. Isto significa que a atribuição de liberdade a coisa-em-si e, no caso do seres racionais que somos ao nosso ser inteligível, paga o preço da necessária inexplicabi-lidade da própria liberdade. Podemos apenas compreender que não é possível explicar, isto é, demonstrar a realidade da liberdade.

Se a prova da realidade da liberdade, enquanto prova filosófica, não é uma demonstração, então que tipo de prova é? Podemos compa-rá-la com a dedução transcendental das categorias? Ou melhor: pode-se compreender a prova da realidade da liberdade como uma dedu-ção transcendental? É isto que fazem tanto Beck quanto Paton. Este último explica o que entende por dedução transcendental desta ma-neira:

“[...] ela procura justificar uma proposição sintética a priori traçando sua origem na natureza da mente como tal e na atividade da própria razão. Tal justificação é o que Kant chama uma ‘dedução transcendental’ [...]”34

Este modo de ver a dedução transcendental parece-me demasiado simplificado. Para a entender melhor, é importante lembrar que uma argumentação transcendental constitui-se de dois movimentos distin-tos. Num primeiro momento, procura-se mostrar que um determinado conceito é a priori. Posteriormente, uma dedução transcendental pro-cura mostrar a realidade objetiva deste conceito. Temos uma argu-mentação transcendental, por exemplo, quando explicamos a possibi-lidade de juízos sintéticos na Matemática, mostrando que temos uma intuição pura do espaço e do tempo (dedução metafísica) e que esta intuição é constitutiva da Geometria e da Aritmética, respectivamente (dedução transcendental). Do mesmo modo, quando tomamos a tabe-la dos juízos e inferimos a priori as categorias, temos uma dedução metafísica. Quando mostramos que elas são constitutivas da experiên-cia aplicando-se a objetos e possuindo, deste modo, realidade objeti-

Frankurt am Main: Suhrkamp, 1968. A119.

34 PATON, H.J. The Categorical Imperative. A study in Kant’s Moral Philosophy. London: Hutchinson of London, 1970. p. 200.

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/ Sobre o Faktum da razão 286

va, temos uma dedução transcendental. É necessário alertar que um argumento transcendental não possui uma forma lógica distinta das outras provas: ele segue os mesmos princípios lógicos. O que o torna específico, isto é, uma prova filosófica e não científica é a natureza dos problemas da Filosofia.

Se isto for correto, então explicar a origem de um conceito não é necessariamente fazer uma dedução transcendental. Trata-se antes, se o conceito é mostrado como tendo sua origem na razão pura e sendo por conseguinte a priori, de uma dedução metafísica. Por isso, o modo como Paton entende uma dedução transcendental não é exato. Toda-via, Paton esclarece, depois de definir uma dedução transcendental, que em alguns casos o propósito de uma dedução transcendental é somente o de justificar a possibilidade de conceitos a priori, enquanto que em outros é necessário primeiramente estabelecê-los e isto é abso-lutamente verdadeiro. Por exemplo, juízos sintéticos a priori, no domí-nio da ciência natural, são um Faktum enquanto que no âmbito dos costumes é necessário primeiro formulá-los.

Assim, uma dedução transcendental não é uma prova demonstra-tiva, mas é uma justificação. Ela parte, segundo a Crítica da razão pura, de uma questão de direito e não de fato. Que a liberdade não é um fato empírico, mas um conceito a priori, creio que não deve a estas al-turas ser objeto de dúvida e como ela possui realidade objetiva foi mostrado na segunda parte deste trabalho. Por isso, a prova de que a razão pura é prática pode ser vista como uma dedução transcendental.

Por conseguinte, deduzir, aqui, não significa inferir algo de outro supostamente aceito como válido. Este é o principal erro que a maior parte dos intérpretes de Kant cometem: pensam que , quando se trata de deduzir a liberdade, está-se querendo inferi-la de outro conceito, por exemplo, da moralidade. Não. O que se está querendo fazer é justificá-la, isto é, apresentar as razões pelas quais ela tem realidade objetiva. Creio que esta é a fonte de muitos mal-entendidos que pode-riam ser evitados. Por exemplo, Allison sustenta que a dedução da terceira parte da Fundamentação simplesmente falha, porque Kant quer deduzir a liberdade a partir de premissas não-morais e que a segunda Crítica irá corrigir isto fazendo uma grande inversão, a saber, dedu-zindo a liberdade da moralidade. Todavia, os argumentos do fracasso da primeira dedução parecem-me realmente fracos e tampouco consi-go ver a inversão.35 O importante é prestar atenção a uma diferença metodológica entre as duas obras. Basta lembrar que o método da Fundamentação é analítico, isto é, parte do dado e regride até suas condições. Já a Crítica da razão prática utiliza o método sintético , isto é,

35 ALLISON, H.E. Kant’s theory of freedom. New York: Cambridge University Press, 1991.

p. 227s.

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parte-se das condições para constituir-se o dado. Assim, existe uma diferença no aspecto metodológico e não uma falha de uma das dedu-ções.

Vou tentar esclarecer de outro modo. A questão central da tercei-ra parte da Fundamentação é esta: como é possível o imperativo categó-rico enquanto proposição sintética a priori? A resposta é esta: sob a necessária condição da liberdade. Parte-se da moralidade e regride-se a uma de suas condições. Na segunda Crítica, parte-se da liberdade como condição – que é lembremos um Faktum – e chega-se à morali-dade. Além disso, a seqüência entre a Fundamentação e a segunda Crí-tica é claramente estabelecida no final da segunda parte da Fundamen-tação (BA 96), a saber, Kant não pode admitir um uso sintético da ra-zão pura prática sem fazer preceder de uma crítica desta faculdade.

Se isto é verdadeiro, quer dizer que Kant, no âmbito da Fundamen-tação, recusa-se a admitir um uso sintético da razão pura sem antes fazer uma crítica; então, o modo como reconstituímos a prova da rea-lidade da liberdade tem que estar correto. O que fizemos foi exata-mente ver a seqüência argumentativa entre as obras. Além disso, não temos duas deduções transcendentais, mas dadas as diferenças meto-dológicas, uma dedução transcendental da liberdade. E esta foi outra pressuposição importante da nossa reconstituição da realidade da liberdade: ela é um Faktum distinto, embora não necessariamente in-dependente do Faktum da moralidade.

Resta uma última questão: é uma boa prova? Sim e não. Sim, por-que ao final se produz o convencimento da realidade da liberdade. Não, porque ela é uma prova incapaz de produzir uma evidência da-quilo que é o objeto da prova, isto é, ao final não é possível fazer uma representação intuitiva da liberdade. Mas esta aparente insuficiência pode ser recompensada indiretamente. Quer dizer, dado que não é possível demonstrar, pode-se proceder, além da prova que foi apre-sentada, por refutação, isto é, se ela nos convence da realidade objeti-va da liberdade e mesmo assim a liberdade for negada, pode-se repe-lir esta denegação. Isto é possível, porque o cético não pode negar a liberdade dado que dela não se pode ter nenhuma representação intu-itiva. Talvez seja isto que Kant tenha em mente quando, no término da terceira parte da Fundamentação, escreveu:

“Ora, onde cessa a determinação segundo leis naturais, cessa também toda a explicação e nada mais resta senão a defesa, isto é, a repulsão das objeções daqueles que pretendem ter visto mais fundo na essência das coisas e por isso atrevidamente declaram a liberdade impossível.” (Grun-dlegung , BA 121)

Chegamos assim ao ponto que pode ser obtido com uma argumen-tação transcendental. Ela não se apresenta como demonstração, mas a

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/ Sobre o Faktum da razão 288

prova que ela é capaz de produzir é suficiente para impedir a negação da liberdade.

Referências bibliográficas

ALLISON, H. E. Kant’s theory of freedom. New York: Cambridge University Press, 1991.

BECK, L.W. A commentary on Kant’s Critique of practical reason . Chicago: The Univer-sity of Chicago Press, 1984.

DELBOS, V. La philosophie pratique de Kant. Paris: Presses Universitaires de France , 1969.

HUME, D. A treatise of human nature. Oxford: At the Clarendon Press, 1978. KANT, I. Werkausgabe in zwölf Bänden. Frankurt am Main: Suhrkamp, 1968. PATON, H. J. The categorical imperative. A study in Kant’s moral philosophy. London:

Hutchinson of London, 1970.

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/ Razão, sujeito, autonomia. Temas ainda atuais? 288

DÉCIO OSMAR BOMBASSARO

Universidade de Caxias do Sul

Razão, sujeito, autonomia temas ainda atuais?

Podem velhos temas filosóficos tornar-se novos temas? É ainda pos-sível tratar da Razão como entidade absoluta, pretensiosa, dogmática? A resposta é óbvia: não! A longa experiência da humanidade mostra que a crença na Razão Absoluta acaba por conduzir, com inquietante freqüência, à irracionalidade total; os crentes da Razão Absoluta ten-dem ao dogmatismo.1

Agostinho (354-430), bispo de Hipona, assim se manifesta: “A Ra-zão é aquele movimento da mente que pode distinguir e correlacionar tudo aquilo que se aprende.2 E, mais adiante, profere: Ela é a força criadora do mundo humano; ela inventou a linguagem, a escrita, o cálculo, as artes, as ciências e é aquilo que há de imortal no homem.”3

Todavia, na atualidade, diferem os pontos de vista acerca da Ra-zão, daquele emitido pelo Doutor da Graça. Feyerabend , por exemplo, assinala que “a teoria copernicana e outras concepções ‘racionais’ só existem hoje porque, em seu passado, a razão, em algumas ocasiões, foi posta em segundo plano”.4 E acrescenta: “Sem freqüente renúncia à razão, não há progresso. Idéias que hoje constituem a base da ciência só existem porque houve coisas como o preconceito, a vaidade, a pai-xão; porque essas coisas se opõem à razão; e porque foi permitido que tivessem trânsito.”5

Mas, não é a Razão a faculdade própria do homem, que o distingue dos animais? Não é guia da conduta humana no mundo? Entretanto, a razão não pode dar garantias absolutas. Não temos, nem podemos ter, nenhuma segurança de que fazer o que a razão nos exige é, na

1 BARROS, Roque Spencer Maciel de. Razão e racionalidade. São Paulo: T.A. Queiroz ,

1993. 2 Cf. De ordine, II, 11. 3 Ibid., II, 19, 50. 4 Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves , 1985. 5 Ibid.

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Filosofia, Lógica e Existência / 289

realidade, o melhor, ou seja, que os seus conselhos não se tornarão contraproducentes.6

No tocante ao tema do Sujeito, certamente o enfoque da questão não teria possibilidades de progredir se o significado do termo ficasse circunscrito apenas a um eu, ou consciência, ou capacidade de iniciativa em geral. Para Kant, o Sujeito é eu penso, a consciência ou autoconsciências que determina e condiciona a atividade cognitiva. Em todos os juízos eu sou sempre o Sujeito determinante daquela relação que constitui o juízo.7

Em decorrência dos abusos das noções de Sujeito, perpetrados principalmente pelas correntes idealistas, assim como as posições de-fendidas pelo neocriticismo, insistindo no aspecto lógico objetivo do conhecimento, o Sujeito foi colocado à margem ou até mesmo desapa-receu das análises. Wittgenstein é muito claro: “O sujeito não existe porque o sujeito não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo.”8

Foucault expressa que o Iluminismo é um projeto de repressão, a-través do estabelecimento de redes moleculares de disciplinas, com-preendendo a indução social da docilidade, para a produção de sujei-tos e de súditos, ou seja, a subjetivação no duplo sentido. O pensador francês prossegue, indicando que antes do século XVIII o homem não existia, tampouco o poder da vida, a fecundidade do trabalho ou a espessura histórica da linguagem. A posição do homem é a de sujeito, o simples sujeito que conhece.9

A tendência atual apresenta-se como uma tentativa de redução da autoconsciência à interação lingüística. Fala-se, indistintamente, no abandono do paradigma da consciência e do sujeito. A pretensão de acesso à realidade já não está regrada por idéias, categorias e repre-sentações ligadas à subjetividade, mas pela linguagem da comunicação intersubjetiva. Todavia, o livre consentimento e o princípio da auto-nomia não foram superados pelo giro da teoria da comunicação, por-que aqueles que se comunicam são sujeitos.10

E, finalmente, enquadrando o terceiro tema, o da autonomia, não constitui ele o ponto arquimédico da filosofia do sujeito, isto é, o da autonomia da subjetividade, causa de toda a pretensão de validez e de máxima competência nas decisões? Jesús Conill insiste que a filoso-fia da comunicação surge de uma exigência da subjetividade; a comu-nicação é só um meio, enquanto a subjetividade é a pedra de toque da verdade.11

6 RESCHER, Nicholas. La racionalidad. Madrid: Tecnos, 1993. 7 CRP, Dialética transcendentelal. II, cap. I. 8 Cf. Tractatus logico-philosophicus, 1987, 5.632. 9 Les mots et les choses. Paris: Gallimard , 1966. 10 CONILL, Jesús. El crepúsculo de la metafísica . Barcelona: Anthropos, 1988. 11 Ibid.

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/ Razão, sujeito, autonomia. Temas ainda atuais? 290

A autonomia, na compreensão de Kant, é a independência da von-tade em relação a todo desejo ou objeto de desejo e a sua capacidade de determinar-se em conformidade com uma lei própria, que é a da razão. A independência da vontade em relação a qualquer objeto de-sejado é a liberdade no sentido negativo, ao passo que a sua legislação própria (como razão prática) é a liberdade no sentido positivo. A lei moral nada mais exprime do que a autonomia da razão pura prática, isto é, da liberdade.12

Por ter sido estreitamente associada à idéia de subjetividade, a i-déia de autonomia foi problematizada, embora em Kant apareça uma concepção de subjetividade radicalmente renovada com relação ao carte-sianismo ou ao empirismo. Assim, o conceito, como esquema, não é mais essencialmente uma representação, mas sim uma atividade; e é exatamente por isso, fundamentalmente, que haverá sempre na filosofia crítica um certo primado da razão prática sobre a razão teóri-ca.13

O que deve ser o homem, como Dasein, não mais será pensado em termos de autonomia, mas de Gelassenheit, isto é, de serenidade, que consiste em deixar que as coisas sejam. Trata-se da desconstrução da metafísica da subjetividade, instaurada por Heidegger. Avançando além do conceito kantiano de autonomia, Castoriadis explicita o termo co-mo o estado em que alguém – sujeito individual ou coletividade – é autor de sua própria lei.

Ora, isto implica que ele instaura uma relação nova com a sua lei, significando, entre outras coisas, que ele pode modificá-la, sabendo que o faz. Para evitar equívocos, Castoriadis prefere o termo autocons-tituição à palavra autonomia, como abertura ontológica, possibilidade de ultrapassar o enclausuramento informacional, cognitivo e organiza-cional que caracteriza os seres autoconstituintes, porém, heterônomos.14

1 – Racionalidade em vez de razão

Referindo-se à razão, Ortega y Gasset afirma ser ela a única possi-bilidade que tem o homem de caminhar sobre o escorregadio solo de sua existência, o que o homem se viu obrigado a inventar com a finali-dade de neutralizar a sua tendência de duvidar não somente das coi-sas e dos demais homens, mas também e, sobretudo, de si mesmo.

12 Crítica da razão prática . I § 8. 13 FERRY, Luc, RENAUT, Alain. Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâ-

neo. São Paulo: Ensaio, 1988. 14 Cf. As encruzilhadas do labirinto/2 (Os domínios do homem). São Paulo: Paz e Terra , 1987.

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Portanto, a razão emerge da vida, ao mesmo tempo que esta não pode subsistir sem aquela.15

Mas, em lugar de considerar a razão como uma breve ilha flutuando sobre o mar da vitalidade primária, os filósofos a confundiram com o pró-prio mar.16 O que se deve fazer é averiguar o verdadeiro papel que desempenha a vida no conjunto da realidade. Para tal fim, a vida deve ser libertada de sua anterior submissão à razão pura. Em outras pala-vras, deve-se reconhecer que a razão é somente uma forma e função da vida.17

Se o racionalismo confundiu o uso da razão com o seu abuso, não seria mais vantajoso substituir o termo razão por racionalidade? A pro-posta é de José Ferrater Mora, sintetizando-a em três vantagens: a) o termo razão causa, freqüentemente, confusões; b) corre-se o risco de hipostasiar-se o conceito de razão e de tratá-la como se fosse uma espécie de entidade ou de realidade; c) pode-se falar se há ou não e quais são os critérios da razão.18

O exercício do viver – escreve José Barata-Moura – é um exercício exigente, já que envolve uma tríplice dimensão: a crítica (de inquieta-ção e vigilância); a ética (de autonomia e responsabilidade) e a prática (de empenho e criatividade). É através desse viver que se realiza a racionalidade, aqui entendida como indeclinável tarefa da humanida-de que não pode ser abandonada. Racionalidade como a qualidade humana que se constitui no e pelo exercício da razão. Razão compreen-dida como estruturação de capacidades humanas.19

Neste final de século manifesta-se um autêntico desejo de raciona-lidade, de claridade, que nos libere definitivamente de todo irraciona-lismo, de toda manipulação e de todo engano. Porque há uma atitude de ocultamento ou de mascaramento de problemas ou de realidades que deveriam ser objeto da reflexão filosófica. O homem que não tem polimento da filosofia – salienta Bertrand Russell – é um prisioneiro dos prejuízos que derivam do senso comum, das crenças habituais do seu tempo e das crenças que se desenvolveram no seu espírito, sem a cooperação nem o consentimento de sua razão.20

De acordo com o filósofo inglês, para o homem prático que só reco-nhece as necessidades materiais, os objetos habituais não suscitam problema algum, e as possibilidades não-familiares são, desdenhosa-mente, rechaçadas. Sob a influência da ciência ou dos negócios práti-cos, há uma tendência de ver a Filosofia como uma ocupação inocente,

15 Cf. Artículos. 1930, v. IV, 108. 16 GASSET, José Ortega y. El tema de nuestro tiempo. 1923, III, 176. 17 Ibid., 177. 18 Diccionario de filosofía. Barcelona: Ariel, 1994. 19 BARATA-MOURA , José. A realização da razão. Lisboa: Editorial Caminho, 1990. 20 Cf. Los problemas de la filosofía. Barcelona: Labor, 1973.

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/ Razão, sujeito, autonomia. Temas ainda atuais? 292

mas frívola e inútil. É uma falsa concepção dos fins da vida, de um lado; de outro, é o efeito de uma falsa concepção da espécie de bens que a Filosofia se esforça por alcançar.21

Epicuro insistia: “É preciso filosofar, não para fazer de conta, mas filosofar realmente; com efeito, não precisamos parecer que ainda es-tamos com boa saúde, mas de estarmos na verdade com boa saúde.”22 Para Feuerbach, o lugar da própria atividade filosófica tem que ser repensado e colocado com a Filosofia: não se trata de uma coisa de escola, mas da humanidade.23 De sua parte, Hegel enfatiza que a pri-meira condição do estudo filosófico é a coragem pela verdade, a cren-ça no poder do espírito.

A ansiedade denota o homem moderno. Será por que ele vive num mundo da técnica e da despersonalização? A forma suprema de dominação na terra é, hoje, constituída pela civilização da técnica, cujo agir é cada vez mais orientado pela racionalidade científica. Neste rumo, a ciência torna-se o princípio e o ponto de referência de todas as formas de cultura e, portanto, também, da cultura filosófica.24 A civilização da técnica estende-se a todo o planeta e leva à decadência as formas tradicionais da civilização e da cultura ocidental.25

Nos primeiros anos deste século, Albert Schweitzer, nas selvas da África, escrevia que o fator decisivo da decadência da cultura foi a falência da filosofia. O grande humanista afirmava que no século XVIII e nos primórdios do século XIX, a Filosofia desempenhou o papel de orientadora da opinião pública. Era orientação básica, naquele tempo, filosofar sobre o homem, sobre a sociedade, sobre o povo, sobre a humanidade e a cultura. Mas, sublinha Schweitzer, o que ocorreu em seguida? Iniciou-se o dogmatismo do saber, isto é, verdadeiras eram somente as ciências naturais.26

O que pode o homem fazer, diante de tal situação? Apelar para a razão? Mas, não se erigiu um desencanto pela razão, uma vez que ela não consegue fundar princípios firmes, claros e distintos? No Ociden-te, o monopólio da razão como guia da conduta humana no mundo foi mortalmente ferido. Mesmo que Hegel afirme que a razão não guia, mas chega post factum para justificar... O que ocorreu, no século VI antes de Cristo, nas colônias gregas da Ásia Menor? Jean-Pierre Ver-nant explica: Através da filosofia dos jônios, reconhece-se a Razão intemporal encarnada no tempo. É o milagre grego.27

21 Ibid. 22 Cf. Gromológio Vaticano, 54; Epistolae, p. 66. 23 Cf. Gesammelte werke. Berlin: Werner Schuffenhauer, Akademie-Verlag, 1967. 24 SEVERINO, Emanuele. A filosofia contemporânea. Lisboa: Edições 70, 1987. 25 Ibid. 26 Cf. Verfall und Wiederaufbau der Kultur. München: Ed. München, 1923. 27 Cf. Mythe et pensée chez les Grecs. Paris: La Decouverte, 1988.

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Porém, não foi a razão estilhaçada, fragmentada, cindida em ca-cos? Não se converteu ela em múltiplas racionalidades, de que a arte, a ciên-cia moderna e o Direito Positivo se caracterizam como três des-tacados exemplos? Para Habermas, significam três dimensões da ra-zão, isto é, põem à vista a sua divisão, a sua perda de unidade.28 A partir de então, a racionalidade comporta diversas matrizes, supondo essa diferenciação estratégias argumentativas distintas. Cultura e ciên-cia não mais necessitam de nenhuma fundamentação e de nenhuma classificação hierárquica.

Então, como se situa o papel da Filosofia? Rorty propõe que a Fi-losofia deve abandonar a tarefa de ser a “guardiã da racionalidade”, ou seja, o abandono da pretensão de razão com que o pensamento filosófico veio, ele próprio, ao mundo.29 Habermas, de sua parte, tam-bém tem uma proposta: que a Filosofia seja a guardadora de lugar para teorias empíricas com fortes pretensões universalistas, a inclusão da Filosofia na cooperação científica, por toda a parte em que os filó-sofos atuem, trazendo subsídios para a teoria da racionalidade, sem pretensões fundamentalistas ou mesmo um abraço absolutista.30

Hans Albert já apontava as tendências de reduzir a reflexão filosó-fica à análise de problemas de sentido, não cabendo a ela explicar os contextos reais, mas apenas compreender, isto é, revelar o sentido do agir humano ou apenas os seus componentes lingüísticos. A dogmati-zação – frisa Albert – é uma possibilidade da praxis humana e social. Os modos de pensar, na época áurea da racionalidade científica, tor-nam-se a versão utópica da aspiração à certeza.31 Emanuele Severino destaca que o senso comum surpreende-se quando a Filosofia pergun-ta pela verdade, porque para ele a verdade é a coisa mais fácil de se saber: é precisamente o conteúdo de suas certezas. Assim, o senso comum considera inútil ocupar-se de filosofia.32

Roque Maciel de Barros expõe o que considera o melhor deste sé-culo: o reencontro da dúvida, da incerteza, da crítica, ligadas à procu-ra incessante da verdade. Ele defende um ponto de vista: razão e ra-cionalidade se contrapõem no plano metafísico, epistemológico, lógi-co, ético e estético. Como? A razão, entidade absoluta, pretende de-duzir a experiência de cânones invariáveis, para além do tempo e do espaço; a ra-cionalidade, função espiritual, é obra por excelência da inteligência crítica, sabedora que a atividade da cultura e da ciência não se pode nunca encerrar numa fórmula, devendo estar sujeita,

28 Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt am Main: Suhrkamp-Verlag,

1983. 29 Cf. Philosophy and the mirror of nature. Princeton: University Press, 1979. 30 Op. cit. 31 ALBERT , Hans. Traktat über Kritische Vernunft. Tübigen: JCB Mohr, 1969. 32 Cf. A filosofia contemporânea.

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permanentemente, a reparos, revisões e refutações. A sedução é pela ilusão do definitivo, mas o que permanece é, antes de tudo, o caráter aberto e o senso do incompleto.33

Carlos Cirne-Lima traça o percurso do esfacelamento da razão, da fragmentação da razão e, como resultado, a decadência do pensamen-to sistemático em filosofia. A unidade da razão começou a ser posta em xeque por Kierkegaard e Nietzsche, passando pela destruição da metafísica ocidental proposta por Heidegger e desembocando nos plúrimos jogos de linguagem do segundo Wittgenstein. 34 Diante das afirmações de que o sistema morreu, de que a unidade da razão ficou em cacos, de que agora só se fazem subsistemas, nos quais as razões particulares são estimuladas em suas lógicas internas, todas elas tam-bém particulares, Cirne-Lima se propõe a atacar de frente o problema da contradição.35

Tentando resolvê-lo, o filósofo procurará restabelecer a unidade da razão, pois entende que é preciso reconstruir o grande mosaico do sentido do mundo, de sua História e das vidas humanas, sob pena de tudo ficar para sempre sob o signo do absurdo. Ele está convencido de que a razão una e universal que perpassa os múltiplos subsistemas, isso não existe. Isso é contraditório, explode e se desmancha em cacos. Portanto, é preciso, antes de mais nada, tentar decifrar o problema da contradição, pois tudo começou com ela; a razão, pensada como una, era contraditória, o sistema, projetado como expressão da razão una, desmanchou-se em suas contradições.36

Na visão de Ernildo Stein, a Filosofia mostra que não há alternati-va para a razão, não existem alternativas para a racionalidade. Esta, terá de se expressar por atos de fala como, por exemplo, o discurso sobre a ciência e os discursos que pretendem propor normas. No pri-meiro caso, os atos de fala são inerentes a uma racionalidade instru-mental; no segundo caso, os atos de fala pertencem a uma racionali-dade prático-comunicativa. Os primeiros são discursos descritivos, pois descrevem o mundo, as coisas e nós mesmos; os segundos são prescritivos, funcionando no mundo prático-comunicativo, no espaço das ciências humanas e da comunicação.37

Estes últimos atos de fala, empregando os discursos prescritivos, são enunciados que propõem normas de comportamento, normas éti-cas, algo que não se comprova facilmente dentro das tendências cientí-ficas atuais. De acordo com o ponto de vista de Stein, os movimentos alternativos da sociedade, como protestos, opções de marginalização, 33 Cf. Razão e racionalidade. 34 CIRNE-LIMA , Carlos. Sobre a contradição. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993. 35 Ibid. 36 Ibid. 37 STEIN, Ernildo. Paradoxos da racionalidade. Caxias do Sul/Porto Alegre: Pyr, 1987.

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através de tentativas de fuga das malhas da organização racional da sociedade, não significam um desejo de saltar para fora da racionali-dade. As pessoas querem proteger-se contra tipo de razão, instrumen-tal ou funcionalista, que organiza a sociedade tecnocraticamente.

Tendo como pano de fundo o mundo da vida, há um terceiro nível dos atos de fala – expõe Stein – os expressivos, que são aqueles vincu-lados à subjetividade, vinculados à expressão estética e à nossa per-cepção da realidade. É particularmente esse terceiro grupo de atos de fala que compõe o mundo da vida. O mundo vivido é espaço ou do-mínio no qual temos como que um fundo inesgotável do qual vive-mos, do qual tiramos elementos para a nossa vida prática.38

2 – Sujeito como questão e projeto

Um dos elementos fundamentais do projeto moderno é a emanci-pação do sujeito. Habermas, no entanto, proclama que a Filosofia deve mudar de paradigma, superando o “logocentrismo”, tanto ontológico como gnosiológico, centrando o enfoque na linguagem e na comunica-ção.39 Aqui surge a questão: não é incompatível com a defesa da mo-dernidade, o abandono da filosofia do sujeito? O ponto a destacar é que há uma onipresente herança alemã a se insurgir contra o sujeito, contra a idéia que faz do homem, em sua essência, o fundamento ou o sujeito da realidade, quer seja histórica, psíquica ou cultural.40

Assim, o processos contra o sujeito vêm de há longo tempo , com Nietzsche, Marx, Freud, Heidegger. Na França, Foucault proclama a morte do homem como sujeito, tornando célebre o tema: Onde se fala, o homem não mais existe.41 Há um risco de parcialização – explica Foucault – caso se insista na tentativa de manter uma perspectiva antropocên-trica, isto é, do homem enquanto subjetividade, enquanto criação de sentido, de autodesenvolvimento, autogênese, autoposição, já que tende a polarizar tudo no sujeito individual. 42

A restituição da universalidade é pretendida por Henrich a partir de uma teoria da autoconsciência, nela se descobrindo uma dupla ver-tente de subjetividade: como pessoa no mundo e como sujeito diante do mundo. Esta é a subjetividade consciente, que transcende, preci-samente pela autonomia de sua vida consciente. Assim, o sujeito se

38 Ibid. 39 HABERMAS, Jürgen. Rückkehr zur Metaphysik: Eine Tendez in der deutschen Philosophie?

Merkur, n. 439/440, 1985. 40 FERRY, Luc, RENAUT, Alain. Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâ-

neo. 41 Cf. L’homme est-il mort? Paris: Arts, 1966. 42 Cf. Les mots et les choses.

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baseará na sua subjetividade construtora do mundo, como horizonte da auto-interpretação, levando-se em conta a auto-relação e a auto-compreensão do sujeito cognoscente e agente.43

Se o homem é colocado na posição de fundamento e de termo de avaliação para toda a realidade, Foucault assinala que a interpretação será sempre uma interpretação pelo Quem?, não se interpretando o que há no significado, pois, se interpreta: Quem colocou a interpreta-ção? Não se trata, assim, de discernir o conteúdo de um discurso, uma vez que não existe significado, mas sim de determinar quem o profe-riu.44 Neste ponto, não seria preciso reconhecer o papel da dialética, que pensa o homem enquanto contexto de relações?

O homem é uma realidade que se constrói a si mesmo pela cons-trução de um mundo objetivo, através de suas obras e das obras de outros homens. Nesta afirmação, Jesús Conill procura explicitar que a dialética mostra que a subjetividade não é pura identidade consigo mesma, não é posse direta e imediata de si, já que é feixe de relações. O sujeito só é enquanto “encarnado” no mundo. Para o pensador es-panhol, a negação da subjetividade constitui uma temerosa destruição da idéia de humanidade como intersubjetividade. A subjetividade se autogera – diz ele –, gerando um mundo objetivo com outras subjeti-vidades.45

Analisando a posição de Henrich, que não vê contraposição irre-conciliável entre autoconsciência e forma lingüística, Jesús Conill mani-festa que o acesso à realidade já não está regrado por idéias, categori-as e representações ligadas à subjetividade, mas pela linguagem da comunicação intersubjetiva. Neste passo, para a Filosofia contemporâ-nea, o acesso à realidade se faz contando com mediações reflexivas e operantes na linguagem, o que supõe uma continuidade entre a revi-ravolta lingüística e a filosofia transcendental da consciência e do su-jeito.46

Mas, não foi Kant quem também contribuiu para a desconstrução da subjetividade, marcando os limites da psicologia racional? Não foi ele quem efetivou a crítica sistemática das ilusões do sujeito, conduzi-da na análise dos paralogismos da razão pura?47 É evidente que , com o anúncio da morte de Deus, sobreviria a proclamação da morte do ho-mem, sendo colocada em questão a idéia de sujeito enquanto consciên-cia. Conforme expressam Luc Ferry e Alain Renaut , o projeto de de-

43 HENRICH, D. Was ist Metaphysik, was Moderne? – Konzepte Essays zur Philosophie in der

Zeit. Frankfurt , 1987. 44 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. Actes du Colloque de Rayaumont ,

Éditions Minuit, 1967. 45 Cf. El crepúsculo de la metafísica. 46 Ibid. 47 CRP, Dialética transcendental, II, cap. I.

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senvolver uma crítica radical da subjetividade, assimilada ora ao ego-ísmo monádico burguês, ora à concepção de homem desenvolvida pela metafísica moderna, parte não apenas de correntes de inspiração marxista, como também dos arautos da desconstrução humanista: Ni-etzsche, Marx, Freud, Heidegger.48

É a vitória do Dasein sobre a consciência de si, sobre o Bewusstsein. O homem não existe; em verdade, ele não está nem vivo nem morto. Foi levada ao extremo essa herança alemã que a filosofia francesa da década dos anos 60 veio denunciar toda a forma de pensamento que fez do homem, em sua essência, o fundamento ou o sujeito da realida-de. Em maio de 1968, pretende-se a dissolução do Eu como vontade autônoma, ou seja, a destruição da idéia clássica de sujeito. Disso ad-virão trágicas conseqüências. O sujeito morre no advento do indiví-duo.49

Ferry e Renaut apontarão para a reificação das consciências: a co-municação (a discussão filosófica, por exemplo) deve aparecer não mais como um livre debate entre sujeitos responsáveis, mas simples-mente como uma sublimação de relações de forças. O Eu que perde o domínio de si mesmo tenderá a não mais perceber o outro como um outro sujeito, como uma outra consciência voluntária, com a qual a relação intersubjetiva tomaria a forma de um reconhecimento recípro-co das liberdades.50

Heidegger proporá o abandono do humanismo entendido como metafísica da subjetividade, ou seja, o questionamento do humanismo e da subjetividade caracterizados pelo advento moderno do homem como sujeito, que confere a cada ente a sua verdadeira consistência e lhe designa o seu verdadeiro lugar num mundo que o sujeito organiza segundo os seus fins.51 No lado francês, Althusser anunciará a elimina-ção da categoria de sujeito (transcendental ou outro), a volatilização da noção de sujeito, que não mais se deve designar sujeito algum co-mo fonte da história.52

As modas passam – observa Cornelius Castoriadis –, acompa-nham-se e se parecem. O dourado acaba, o ouro permanece. Outrora – continua ele – festejava-se a morte do homem e o des-ser do sujeito. Se dermos crédito a gazetas mais recentes, as informações eram leve-mente exageradas. Verdadeira assombração, o sujeito estaria nova-mente entre nós.53 Para Castoriadis, o sujeito não voltou porque nunca 48 Op. cit. 49 Ibid. 50 Ibid. 51 Cf. Über den humnismus. Frankfurt: Klostermann, 1949. 52 ALTHUSSER, Louis. Lenine et la Philosophie. Conférence proferé dans la Societé Françai-

se de Philosophie, 1968. 53 CARTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto/3 (O mundo fragmentado). São

Paulo: Paz e Terra , 1992.

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partiu. Sempre esteve presente – certamente não como substância, mas como questão e projeto.

É uma questão própria do sujeito: Quem se submete à análise? Quem conta um sonho? Quem faz um lapso, uma passagem ao ato, um episódio delirante? E quem está atrás (ou na frente) dele, numa poltro-na?54 Castoriadis assinala que, para a Psicanálise, a questão do sujeito é a da psique – da psique como tal e da psique socializada, isto é, tendo sofrido e continuado a sofrer um processo de socialização. Assim compreen-dida, a questão do sujeito é a do ser humano nas suas inú-meras singularidades e universalidades.55

Não se concebe língua humana na qual, qualquer que seja a forma gramatical da resposta, a pergunta não possa ser formulada: Quem fez isso? Quem disse isso? Uma língua humana sempre é uma língua de uma sociedade. E uma sociedade é inconcebível se não criar a possibi-lidade de imputação a alguém dos dizeres e dos atos. Desta forma, a pergunta “Quem?” refere-se a esse mundo da subjetividade de que chamamos o indivíduo social.56 O “processo sem sujeito” é levado a cabo pela linha Lévi-Strauss/Althusser/Foucault, enquanto La-can/Barthes/ Derrida compõem a linha que defende a concepção de o sujeito estar preso, perdido, alienado na linguagem. Ele se anula assim que uma palavra é pronunciada.

Entretanto, Castoriadis aponta para a possibilidade do sujeito hu-mano: a reflexividade que , por sua vez, é a possibilidade de que a própria atividade do “sujeito” torne-se “objeto”, a explicitação de si como um objeto não-objetivo, ou como objeto simplesmente por posi-ção e não por natureza. A auto-referência é o traço decisivo, implicado pela autofinalidade. Na medida em que alguém pode ser para si mes-mo um objeto por posição e não por natureza é que outrem torna-se possível.57

Mas, para Castoriadis, a reflexão também implica a possibilidade da cisão e da oposição interna, portanto, igualmente a possibilidade do questionamento de si mesmo. A subjetividade humana é entendida co-mo uma virtualidade e não uma fatalidade de todo ser humano. Na medida em que se faz subjetividade, o ser humano pode questionar-se e considerar-se como origem, certamente parcial, de sua história pas-sada, como também querer uma história que está por vir e querer ser o seu co-autor.58

Sem tal subjetividade – sem o projeto, mas já em via de realização de tal subjetividade – não somente toda intenção de verdade e de 54 Ibid. 55 Ibid. 56 Ibid. 57 Ibid. 58 Ibid.

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saber desmorona, mas toda ética desaparece , uma vez que toda res-ponsabilidade desaparece.59 Castoriadis indica que a subjetividade humana pode autodilatar-se, pode interagir com outras subjetividades e ainda pode questionar as condições ou as leis de sua clausura. O que significa a autodilatação? Que o mundo humano, o mundo acessível à subjetividade humana não é dado de uma vez para sempre, ele é, ao mesmo tempo, extensível e modificável (para fora e para dentro).

59 Ibid.

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3 – O domínio do pensar e dos atos

Enquanto as correntes marxistas negaram e denunciaram, como pura e simples mistificação, a pretensão do sujeito metafísico ao domí-nio dos seus pensamentos e atos, isto é, a pretensão à autonomia, na perspectiva de Heidegger a autonomia constitutiva da subjetividade aparece como uma ilusão, como o produto de um esquecimento e, ao mesmo tempo, como um obstáculo a descartar.60 O Dasein deve voltar à sua ipseidade autêntica: ser não um sujeito, mas um lugar, o aí onde o Ser, de si mesmo, faz época.61

Todavia, reduzido a um lugar (onde se exprimem relações de for-ça, lugar onde o Ser se manifesta, retirando-se), não desaparece o ho-mem como dimensão de autonomia? Não mais pensando em termos de autonomia, o homem – agora Dasein – será entendido como sereni-dade (Gelassenheit), consistindo em deixar as coisas serem. Chegar à sere-nidade é, de fato, desligar-se do pensamento representativo de estru-tura transcendental e renunciar ao querer referido ao horizonte.62

Não se traduz tal perspectiva pelo ideal de uma natureza à qual a vontade é submetida? Em outros termos, não é o abandono do ideal moderno de uma natureza submissa a uma vontade? Não é o despre-zo do sujeito moderno enquanto vontade e consciência, isto é, enquan-to esforço e representação? Para Lipovetsky, o que põe obstáculos à autonomia é o indivíduo contemporâneo, “espaço flutuante, sem fixa-ção nem referência, disponibilidade pura, adaptação à aceleração das combinações, à fluidez de nossos sistemas.”63

Esse novo Eu, o do fim da vontade – salienta Lipovetsky –, corres-ponde a indivíduos cada vez mais aleatórios. A autonomia do sujeito é uma ilusão, repete Lacan, alegando que tal convicção está fundada no caráter radicalmente anti-humanista da psicanálise, depois da descober-ta de Freud – segundo a qual “o centro verdadeiro do ser humano não mais está no mesmo lugar que lhe era reservado por toda uma tradi-ção humanista”.64 O sujeito não sabe o que diz – expressa Lacan – por-que ele não sabe o que é. Assim, cai por terra a pretensão que tem o homem de ser o autor do sentido e do valor que atribui aos seus a-tos.65

A idéia de autonomia já se encontra em Aristóteles, ou seja, os in-divíduos fazem suas próprias leis, instituem as sociedades, sendo os

60 Cf. Über den humanismus. 61 FERRY, Luc, RENAUT, Alain. Op. cit. 62 Ibid. 63 LIPOVETSKY, G. L’Ere de vide, essays sur l’individualisme contemporain. Paris: Gallimard ,

1983. 64 LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Éditions du Seuil, 1966. 65 Cf. Le séminaire, II. Paris: Éditions du Seuil, 1978.

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tributários desse trabalho instituinte.66 Na acepção kantiana, o indiví-duo autônomo não vive sem regras, mas apenas obedece às regras que escolheu, depois de examiná-las.67 Conforme Castoriadis, a questão implica a liberdade humana, isto é, que a sociedade democrática ga-ranta e amplie, na medida do possível, a liberdade dos indivíduos, dos grupos ou das associações voluntárias, assumindo uma atitude positiva e ativa.68

Isto significa que a lei não deve simplesmente proteger a liberdade dos indivíduos nas suas esferas privadas. A lei deve ajudar ativamen-te os indivíduos a se tornarem livres, isto é, autônomos. Se os indiví-duos não são livres, a coletividade tampouco pode sê-lo. Para Castori-adis, isto abrange duas questões: 1ª) que a educação não se limite ape-nas às crianças, mas àquilo que os gregos chamavam Paidéia, a forma-ção do indivíduo que tem lugar todo o tempo; 2ª) que os indivíduos devam ser efetivamente iguais, isto é, que existam as mesmas possibi-lidades efetivas de participar de todo o poder que existe na socieda-de.69

Ora, é participando na formação da lei que se adquire a certeza de que se trata de nossa lei. Então, relativamente à Paidéia, é preciso que ela deva tornar-se uma preocupação essencial de todos – destaca Cas-toria-dis. Com relação à igualdade, é necessário compreender que só com o exercício do poder teremos a garantia de nos tornarmos verda-deiramente livres.70 Uma sociedade livre, baseada na autonomia, cons-titui um projeto em que o valor chamado liberdade pode organizar as relações humanas, quer do ponto de vista cotidiano, prático e até ba-nal.

Portanto, é importante reconhecer a ação livre como aquela me-diante a qual nós nos tornamos instituintes da sociedade e responsá-veis pelos nossos atos. Porque – ainda de conformidade com Castori-adis – apenas desta maneira o indivíduo constitui-se como um ser li-vre. Se os homens e as mulheres acordarem e decidirem tomar os seus destinos em suas mãos, eis concretamente o projeto de autonomia.71 O pensador pergunta: “Qual é a atitude de uma sociedade democrática, autônoma, relativamente com liberdade dos indivíduos?” Ele próprio esclarece: “Tal atitude não pode ser, como hoje, somente passiva, ne-gativa ou defensiva. Ela deve ser positiva e ativa.”72

66 Política . IV, 1, 1288 b. 21. 67 Crítica de la razón práctica . Madrid: Espasa Calpe, 1981. 68 Cf. L’Institution imaginaire de la societé. Paris: Éditions du Seuil, 1975. 69 Ibid. 70 Ibid. 71 CASTORIADIS, Cornelius. A criação histórica e a instituição da sociedade. Porto Alegre:

Artes & Ofícios, 1992. 72 Ibid.

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É M. Müller quem afirma que essa autonomia, essa emancipação, não pode estar desligada de todos os condicionamentos da natureza ou da sociedade e da história. Ele expressa que se trata da emancipa-ção da efetivação e da verdade da vida humana, na busca de uma con-figuração própria e irrepetível de si mesma. Tal configuração e irrepe-tibilidade deve aqui ser entendida como configuração da arte, confi-guração do poder, configuração do saber, configuração do culto, con-figuração da vida em comum.73

O ideal iluminista era a autonomia, a Mündigkeit exposta por Kant, quando profere: Sapere aude! Equivale a ousa saber, atreva-te a ser livre e respeita e projeta a liberdade de todos os demais.74 Na obra kantia-na, a autonomia da vontade é a característica da vontade pura, en-quanto ela apenas determina-se em virtude de sua própria essência, isto é, unicamente pela forma universal da lei moral, com a exclusão de todo motivo sensível. Então, a autonomia tem um sentido ético, segundo o qual uma lei moral é autônoma quando tem em si mesma o seu fundamento e a razão própria de sua legalidade.75

Manfredo Araújo de Oliveira cita que , para Kant, a verdadeira grandeza do homem não consiste, como pensa a modernidade, em sua imposição sobre o mundo, mas, antes, em sua capacidade de autode-terminar-se a partir de sua liberdade. Não simplesmente o técnico , mas a liberdade e, com isto, o ético é a fonte da grandeza do ho-mem.76 A filosofia prática de Kant diz respeito ao processo de univer-salização do homem, com a determinação de leis que valham universal e necessaria-mente.

Castoriadis insiste que só a sociedade autônoma é uma sociedade verdadeiramente democrática, onde o povo faz, ele mesmo, as suas instituições e leis e onde todos os indivíduos são livres e iguais. Os indivíduos autônomos são indivíduos responsáveis que podem refletir , deliberar e decidir. Assim, o objeto na política não é a felicidade, mas a liberdade; e é nesta liberdade que cada um poderá ser feliz. A política é atividade coletiva, reflexiva e lúcida.77

73 MÜLLER, M. Sinn-Deutungen der Geschichte. Drei philosophische Betrachtungen zur Situa-

tion. Zurich, 1976. 74 KANT, Immanuel. Qué es la Ilustración? México: Fondo de Cultura Económica, 1941. 75 Cf. Crítica de la razón práctica. 76 OLIVEIRA , Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Edições Loyola , 1993. 77 Op. cit.

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EVALDO A. KUIAVA

Universidade de Caxias do Sul

Subjetividade transcendental e alteridade

1 – Colocação do problema

A tarefa da filosofia transcendental consiste em explicitar os funda-mentos do pensamento e da ação. A capacidade de objetivação e de universalização do conhecimento teórico , bem como a determinação do princípio de validação das normas do agir humano encontram-se na própria estrutura da subjetividade do eu. Desse modo, Kant, ao conceber o ser humano a partir da subjetividade, opera uma subleva-ção aos moldes de Copérnico 1 em dois pontos fundamentais.

A primeira mudança kantiana verifica-se no âmbito do conheci-mento. Nela é assegurado ao sujeito transcendental2 à consciência hu-mana, um caráter criativo enquanto elemento primordial do conheci-mento do mundo fatual. Assim, a realidade não é mais concebida na sua totalidade. O ente não é mais considerado como tomando um es-paço no conjunto das partes que formam o todo, mas como objeto para a consciência que lhe faculta sentido, fazendo dele seu escudo na esfera das incidências cognitivas. Por outro lado, esta excrescência da subjetividade, que começa em nível da razão teórica, alcança seu es-plendor na razão prática, em que a própria razão ordena a si mesma a lei moral enquanto vontade, determinando a fonte suprema da vida ética. A lei moral é própria da autodeterminação da autonomia da vontade humana.

1 Kant , ciente das suas idéias inovadoras, no prólogo à segunda edição da Crítica da

razão pura (B XVI), compara-as com as de Copérnico. O caráter revolucionário funda-se, sobretudo, em uma nova posição do sujeito diante da objetividade, tanto no âmbito teórico (ciência), quanto em nível prático (moral).

2 Transcendental designa o princípio em virtude do qual a experiência é necessariamente submetida às representações a priori do eu. Isto é, os objetos são necessariamente sub-missos aos sujeitos. Há algo de legislador na faculdade de conhecer. De igual modo há também na faculdade de desejar. É o eu transcendental que comanda o conhecimento e a ação.

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Filosofia, Lógica e Existência / 303

Desse modo o processo de humanização acontece na medida em que o eu autônomo escolhe a ação conforme a sua vontade. A ética é o lugar da própria emancipação e, neste sentido, de produção do ser humano como ser que se edifica a si mesmo na medida em que se au-todetermina. O humano acontece ali onde se efetiva a ação autônoma. A abolição de toda espécie de heteronomia é o caminho indispensável para a conquista do humano. O homem chega ao seu termo enquanto se autoconstitui, construindo seus alicerces livre e conscientemente. E, enquanto tal, é merecedor de respeito sem restrições, precisamente como fundador da lei moral a que se subordina incondicionalmente.

Para Lévinas, neste modo de pensar, o transcendente é sempre reduzido ao imanente, cuja alteridade acaba sendo convertida ao mesmo sistema do eu. Ou seja, todo este processo de humanização do homem, que está no campo da autodeterminação da vontade, e não na esfera da fenomenalidade, enquanto plano da autonomia, não é capaz de sustentar a humanidade em paz. O projeto iluminista, ao funda-mentar a moral a partir da autonomia do homem e não mais nas tradi-ções ou na religião, parece também ter fracassado. A razão humana, tal como se inscreve, não abarca a realidade e não mais responde às crises da civilização atual. A subjetividade humana é muito mais rica do que outrora foi interpretada e elaborada pela racionalidade ego-nômica. É preciso, portanto, um projeto filosófico alternativo para o quadro referencial vigente. É necessária uma ética que garanta o res-peito à alteridade. Urge a busca de um novo horizonte a partir do qual os desafios e as interrogações possam receber uma resposta à altura do humano.

Este estudo pretende aduzir para a necessidade de uma reconstru-ção da racionalidade prática, mas com outros fundamentos, embora o ambiente filosófico atual se esforce na tentativa de reunir os fragmen-tos de uma razão que se esfacelou. Aqui, não se trata, simplesmente, em alvitrar uma restauração de conceitos já aluídos. Lévinas propõe a primazia da Ética diante da Ontologia. Para tanto inspira-se na pró-pria tradição filosófica,3 no passado que se perdeu, mas que precisa de novos ingredientes para ser reconstruído.

2 – A “revolução copernicana”

3 Dentro da tradição filosófica ocidental, Lévinas faz referências a Platão (idéia do bem);

a Descartes (idéia do Infinito); a Husserl (idéia de intencionalidade) ; a Heidegger (o significado de “Jemeinigkeit”) e a Kant (quanto ao imperativo categórico). Ao dialogar com estes filósofos, não nega que a última palavra seja a da filosofia ocidental; entre-tanto, o sentido do humano talvez não se encontre nesta tradição. Daí os novos elemen-tos, a saber, bíblicos, por ele indroduzidos.

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/ Subjetividade transcendental e alteridade 304

A “revolução copernicana” demonstra que as intelecções da Meta-física clássica só têm sentido dentro dos limites da experiência huma-na.4 O conhecimento científico se funda em uma subjetividade univer-sal e necessária. Subjetividade esta que não tem um sentido psicológi-co-individual, senão lógico-transcendental. Com isso, Kant pretende fundamentar as estruturas a priori do conhecimento desde as condi-ções do sujeito.

O mundo das coisas existentes e dos acontecimentos está absorvi-do na trama do eu. A problemática do conhecimento, bem como da ação, tem que ser resolvida no contexto de um subjetivismo transcen-dental. Se o caráter espacial e temporal dos fenômenos é determinado pela estrutura subjetiva da sensibilidade humana, então, o fundamen-to da unidade da natureza universal e necessária deve buscar-se não nas coisas mesmas, mas nos poderes da mente. Sua unidade é dada pelas condições ou formas subjetivas do pensamento humano. A justi-ficação da objetividade científica não se obtém por um recurso à reali-dade em si, senão pela atividade do sujeito transcendental. Em suma, as formas subjetivas são condições e o fundamento de todo conhecimen-to, visto que, kantianamente falando, sem elas nenhum objeto pode ser dado ao sujeito cognoscente.

Quando Kant afirma, na Crítica da Razão Pura, que os “[...] objetos têm que se regular pelo nosso conhecimento,”5 e não o contrário, na verdade persegue algo mais que uma refutação da Metafísica tradicio-nal. “No se limita a superar el racionalismo, el empirismo y el escepticismo; funda sobre todo una nueva posición del sujeito respecto a la objetividade.”6 Sujeito este que é a fonte de onde surge toda a legalidade formal e universal da natureza. Assumindo esta posição como definitiva, atra-vés do subjetivismo transcendental, Kant pretende, então, superar o objetivismo transcendente, bem como o subjetivismo empírico.7 Esta constatação revela que o Filósofo, ao menos na determinação da obje-tividade do conhecimento, supõe um sujeito geral, ignorando qual-quer instância transcendente e até mesmo a individualidade do eu empírico, psicológico. Assim o sujeito empírico não pode proporcionar um fundamento para a ciência, pois do contrário, se cairia no relati-vismo. A objetividade realiza-se, e nisso consiste a mudança de para-digma e o caráter “revolucionário”, na medida em que “as condições da possibilidade da experiência em geral são ao mesmo tempo condições

4 Cf. CIFUENTES, Alejandro Llano. Fenomeno y trascendencia en Kant. Pamplona: Edicio-

nes Universidad de Navarra , 1973. p. 43. 5 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Valério Rohden e Udo B. Moosburger.

São Paulo: Nova Cultural, 1988. (B XVI). As demais referências a esta obra serão indi-cadas no próprio texto pela letra B com a respectiva numeração.

6 Cf. HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Barcelona: Herder, 1986. p. 53. O grifo é nosso. 7 Cf. CIFUENTES, Alejandro Llano. Op. cit., p. 116.

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Filosofia, Lógica e Existência / 305

da possibilidade dos objetos da experiência” (B 197). Se este é o núcleo cen-tral da filosofia kantiana, então o conceito central é o de sujeito trans-cendental (subjekt überthaupt).

3 – O sujeito transcendental

O sujeito transcendental corresponde ao segundo8 momento da es-trutura da subjetividade do eu kantiano. A subjetividade transcendental equivale ao eu penso (Ich denke). O eu penso é chamado por Kant como unidade transcendental (B 132), isto é, a consciência ou a autoconsciência que determina e condiciona toda a atividade cognitiva. O eu, embora fundamentalmente esteja inserido em uma realidade que o define e o constitui, é um sujeito espiritual capaz de se autodefinir. Tal é o para-doxo do eu, usando a expressão de Lacroix, “ao mesmo tempo é dado e doador, constrói-se e recebe-se”.9 Mas, o significado básico do hu-manismo racionalista kantiano está esteado, ao invés da transcendên-cia do ser, na autonomia do sujeito. Embora, no nível transcendental, o sujeito ainda esteja voltado aos dados fornecidos pela sensibilidade em busca da elaboração da matéria dada, elevando-a à unidade do pensamento. Por outro lado, é capaz de elaborar conceitos puros in-dependentes das intuições sensíveis, mas se estes não estiverem vol-tados aos fenômenos serão puras ilusões: “na ausência de intuição, todo o nosso conhecimento carece de objetos, e então permanece inte-riormente vazio” (B 87). Caso o transcendental não estivesse voltado ao imanente, ao empírico, se estivesse separado da experiência seria, en-tão, transcendente.

O sujeito transcendental é racional, finito e, por ser inteligível, é membro do reino dos fins,10 necessitando de leis a priori para determi-

8 Kant , em sua filosofia crítica, trata da subjetividade em três níveis: o plano da consci-

ência empírica ou o sujeito sensível; em segundo lugar, o sujeito transcendental e, por fim, o sujeito inteligível ou numênico. Na primeira acepção situa-se o sujeito da sensibi-lidade, o eu psicológico, objeto do sentido interno, o qual recebe passivamente as afec-ções externas e as conforma espaço-temporalmente. No segundo significado, o sujeito transcendental é o fundamento e a condição subjetiva do conhecimento intelectual, sen-do a base de toda possível objetivação teórica. E, por último, o sujeito inteligível, encon-tra-se fora do entrelaçamento dos fenômenos. Seus objetos não são mais dados na ex-periência, isto é, a sua capacidade objetivante não está mais limitada aos dados empí-ricos e se estende às coisas em-si, outrora inacessíveis.

9 LACROIX, Jean. Kant e o kantismo. Porto (Portugal): Rés , s.d. p. 54. 10 Por reino dos fins , Kant entende a ligação sistemática, por leis comuns , de vários seres

dotados de razão. Ele também se refere ao reino da natureza sob o ponto de vista teleológico, mas estritamente, a noção de reino não se aplica a toda a união, mas apenas àquela dos seres racionais. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, p. 75 (BA 74). As demais referências a esta obra serão feitas no próprio corpo do texto, indicando a letra BA com a respectiva numeração.

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nar seu conhecimento e a sua conduta. Com esta modalidade apriorís-tica, ele impõe a sua legislação, quer à natureza, quer às próprias a-ções.11 É transcendental a subjetividade dos princípios que regem o co-nhecimento. São as condições subjetivas que fazem possível a verdade científica dos fenômenos e a verdade universal da lei moral. Isto é, existem leis a priori da natureza que podem derivar da unidade da consciência e, leis a priori da razão que podem provir da perspectiva da liberdade. No primeiro caso são acerca do verdadeiro e do falso, desempenham o papel de descrever, predizer e explicar a realidade. No segundo caso, são leis práticas que dizem respeito à ação.

Em suma, a busca da objetividade na ciência e a universalidade da lei moral em Kant se fundamentam em um recurso da subjetividade. A existência dos objetos fora do eu e a fundamentação da realidade fe-nomênica, no âmbito teórico e, a realidade numênica, na esfera práti-ca, dependem da atividade construtora do próprio sujeito. Neste sen-tido, o sujeito transcendental, universal, não negligencia a singularidade da alteridade? Ora, quando se fala em conhecimento e ética na filosofia transcendental, o discurso é enunciado por um sujeito universal e re-pousa na racionalidade formal e abstrata, no qual a relação ocorre entre o sujeito e o objeto, em nível epistemológico, e entre o sujeito e a sua criação – lei moral – em nível ético. Isto é, a estrutura transcenden-tal, racional, é o princípio supremo para o pensamento (teoria, conhe-cimento) e para a ação (prática, moral). Levando em consideração esta tese kantiana, é possível afirmar que o sujeito transcendental é um prin-cípio lógico, formal que não tem alteridade. Ou, então, a reduz à sua mera forma lógica, sintética e conceitual, formando assim um único sistema, no qual tudo fica absorvido na trama do eu, não permitindo uma relação intersubjetiva à altura do humano. Assim, a vontade hu-mana obedece à normatividade da razão, cumprindo a sua função moral.

É interessante notar, parafraseando Kant , que tanto o mundo fe-nomênico quanto o inteligível apresentam uma característica comum, a saber: não são transcendentes no sentido de que não se encontram fora de horizonte do eu. 12 Ambas as realidades estão presentes diante do sujeito que as vê e religa de forma imediata com a consciência de sua existência (A 289). Tal é a idéia e a atitude metódica básica que faz coin-cidir a crítica teórica e a prática, na qual limita o conhecimento ao epistemologicamente imanente pela fundamentação do objeto em uma instância da própria subjetividade humana.13 Visto que os fenômenos 11 Cf. LACROIX, Jean. Op. cit., p. 98-99. 12 KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1989

(A 288). As demais referências a esta obra serão indicadas pela letra A com a respecti-va numeração.

13 Cf. CIFUENTES, A. Llano. Op. cit., p. 326.

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são, sob o ponto de vista epistemológico , de todo imanentes, porém, sob o ponto de vista ontológico , material, são transcendentes. Entre-tanto, a conformidade é obra do sujeito, de quem depende por ser uma mera representação. O fenômeno das coisas é produto da estru-tura da subjetividade do sujeito, a saber, das condições a priori da sen-sibilidade. E, por mais que o entendimento, em nível transcendental, possa acrescentar, somente é possível chegar a conhecer os fenômenos e jamais as coisas em si mesmas (BA 106).

A ação do entendimento consiste na realização de uma síntese uni-ficante e objetivante dos fenômenos em torno de um eu transcendental. Porém, cabe ressaltar, trata-se de um uso não-intuitivo, senão lógico-discursivo ou dialético. É um fazer construtivo, mas não transcenden-te. É um fazer em nível transcendental, imanente, que se justifica na medida em que se ocupa da reflexão e da relação eficaz, objetiva, de um sujeito com o seu objeto. O que interessa, aqui, é o fato de que a subjetividade transcendental fornece o fundamento para a transcendên-cia intersubjetiva. Mas a intersubjetividade somente se expressa naqui-lo que é comum a todos, ou seja, em relação às estruturas a priori que possibilitam a objetivação. Quando Kant assinala que o entendimento prescreve leis à natureza, não se refere ao entendimento do sujeito cognoscente individual, senão ao entendimento do sujeito em geral. A forma como o espírito (Gemüt) humano organiza a experiência não é transcendente, senão transcendental. Kant quer significar com este adje-tivo algo que, longe de ser derivado da experiência, tem o poder de torná-la possível. Assim, todos os processos de objetivação devem ser os mesmos para todo ser humano. Vale dizer, a objetividade em Kant está ligada à intersubjetividade, mas não responde às exigências de uma relação humana interpessoal, não assegura a paz e a justiça entre os homens. Isto porque a relação humana interpessoal não se enqua-dra nessa estrutura transcendental de subjetividade. A relação interpes-soal terá que se manter em uma outra estrutura para que se produza não a objetivação, mas o humano, traduzido, aqui, em justiça e respei-to, pelo outro ser.

4 – O primado da razão prática

A subjetividade do eu, na esfera inteligível, não tem nenhuma co-nexão com os fenômenos. O sujeito, enquanto númeno, foge a toda e qualquer determinação de tempo , “pois o tempo é tão-somente a condição dos fenômenos, mas não das coisas em si mesmas” (B 567). A tese kantiana revela que a razão pode pensar o incondicionado, mas não pode conhecê-lo. Assim, os elementos constituintes da estrutura transcendental são as idéias, isto é, conceitos puros que são os funda-

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mentos do exercício da atividade racional (B 383). As três idéias trans-cendentais são: a alma, o mundo e Deus. Essas idéias não são objetos de experiência, entretanto, dizem respeito a algo ao qual toda experi-ência é subordinada (B 367). A razão pura, ao buscar a unidade su-prema, na tentativa de conhecer um mundo além dos fenômenos, não consegue demonstrar, nem positiva nem negativamente se a alma é ou não imortal, se a vontade é ou não livre e se Deus existe ou não existe. Isto é, a razão pura não pode pronunciar-se nem a favor nem contra a imortalidade, a liberdade e Deus. Tal é o limite da pretensão do co-nhecimento humano: todo o conhecimento que transcende a experiên-cia é impossível.

A razão, com todos os princípios a priori, não indica nada mais do que simples objetos de experiência possível; fora disso, nada mais po-de ser conhecido. A princípio parece que essas teses abrem a perspec-tiva de encontrar espaço para pensar a alteridade sem abarcá-la na tota-lidade do eu, tomada como em-si, incondicionada, transcendente, ou seja, como fundamento primeiro e último da racionalidade e do senti-do do humano. Porém, logo, na estrutura da subjetividade kantiana, evidencia-se uma contrariedade, pois o caráter numénico, o em-si, é acessível e objetivável no caminho da ética.

Para Kant só há conhecimento de experiência, a qual é sempre i-manente. Entretanto, imanente não é só o que pertence , como algo constitutivo, ao sujeito cognoscente ou atuante, senão também tudo o que se encontra inscrito na dinâmica das relações do homem no mun-do, tanto ao nível do conhecimento objetivo, como na práxis da ética. O que é transcendente, inacessível, para a razão teórica, torna-se ima-nente para a razão prática. Assim a lei moral se impõe ao sujeito en-quanto é-lhe imanente, enquanto que reside em seu eu numênico, e se mostra como um “fato da razão”. A transcendência se faz, mais uma vez, imanência e tudo se passa na subjetividade do eu.

Desse modo, a razão humana, para Kant, aplica-se a dois objeti-vos: o teórico e o prático. A razão pura e a razão prática são duas fun-ções da mesma faculdade que procede sempre por princípios a priori e é, portanto, em ambos os casos, razão pura, ou seja, independente de toda e qualquer experiência sensível. Enquanto na Crítica da Razão Pura a preocupação é limitar a razão cognoscitiva à esfera da experiência, na Crítica da Razão Prática a preocupação é totalmente oposta. Em outras palavras, veja-se que pura é a razão considerada como não contendo nada de empírico e, por isso, capaz de operar sozinha a priori. Com efeito, no caso do seu uso teórico , na busca do conhecimento, Kant critica as suas pretensões, isto é, de querer prescindir da experiência e alcançar por si só o objeto de conhecimento. Aliás, o que passa a ser legítimo no seu uso prático, voltada para a ação moral, na determina-

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ção da vontade. A lei moral não pode ser fundamentada na razão em-piricamente condicionada sob pena de cair na descrença. Entretanto, para Kant existe uma razão pura prática que por si só, sem misturar-se a motivos dependentes dos impulsos e da sensibilidade, ou seja, da experiência, pode mover e determinar a vontade, eliminando todo problema ulte-rior acerca da sua legitimidade e das suas pretensões. Enquanto a razão pura gera os princípios do conhecimento puro e lhe concede leis a priori, a razão prática, operando da mesma forma, é cri-adora dos princípios da ação moral. Esses princípios são expressos, em síntese, no imperativo categórico , facultando ao sujeito não apenas uma orientação à busca do saber, mas também à sua conduta. Desse modo, a razão, no seu uso prático, preenche o lugar vago deixado na Crítica da razão pura quanto à descrição do mundo, lugar este que o agente moral deve ocupar.14 Tal é a passagem programática da primei-ra para a segunda crítica. Não é mais necessário criticar a razão pura prática, mas a faculdade prática em geral condicionada empiricamente.

A tese kantiana procura demonstrar que a razão pura prática é ca-paz de determinar a vontade humana, a ação moral. Assim, “a razão é prática, quando possui em si própria um fundamento suficiente para a determinação da vontade com vista à realização dos seus objetivos”.15 Em outras palavras, é prática a razão que opera por princípios a priori na determinação da vontade. Pergunta-se, então, qual é o objetivo ou, mais precisamente, interesse16 da razão? “A razão, como faculdade de princípios, determina o interesse de todas as forças do ânimo , mas ela própria determina o seu” (A 216). Kant atribui a cada faculdade do espírito (Gemüt) um interesse. Assim, há um interesse da razão no seu uso especulativo e, também, no seu uso prático: “o interesse do seu uso puro especulativo consiste no conhecimento do objeto (Objekt) até aos mais elevados princípios a priori, o do uso prático na determinação da vontade, em relação ao fim último e completo” (A 216). Enquanto o interesse da razão pura é a sistematização dos fenômenos que consti- 14 O lugar vago diz respeito à antinomia da liberdade, a qual não é possível demonstrar

pela razão pura. Porém , pela razão prática, o sujeito é compelido a aceitar que é livre, embora pelo entendimento a negue. Foi assim que Kant sentiu que deve existir uma so-lução para esta antinomia , visto que, na esfera prática, o emprego da razão é legítimo. Assim este lugar vago é preenchido pela pura razão prática com uma lei na causalida-de definida num mundo inteligível, a saber a lei moral.

15 Cf. ROHDEN, Valério. Interesse da razão e liberdade. São Paulo: Ática. 1981. p. 31. 16 Para Kant , Interesse é “um princípio que contém a condição sob a qual unicamente se

fomenta o seu exercício” (A 216). Para uma compreensão mais detalhada sobre a ques-tão do conceito de interesse, na filosofia kantiana , ver: ROHDEN, Valério. Op. cit., p. 49-91. Nessa obra o autor discorda da crítica de Habermas a Kant no sentido de que todo o interesse da razão estaria fundamentado em um interesse de conhecimento via reflexão. Na sua análise, fundamentada nos próprios textos de Kant , defende a tese de que o interesse especulativo é secundário e até derivado do interesse prático. Neste sen-tido, Cifuentes ressalta que, para Kant , o interesse da razão consiste, sobretudo, em garantir sua própria autonomia e, com ela a da ciência e a da moral. Op. cit., p. 312.

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tuem a natureza sensível, o interesse da razão prática é o em-si, o nu-mênico.

Os dois tipos de interesse não existem no mesmo plano , diferem em natureza. Isso acontece de tal modo que a razão pura não efetua progresso especulativo quando entra no domínio prático. Por exem-plo, as idéias transcendentais não obtêm um alcance maior, sob o ponto de vista cognoscitivo, no âmbito prático. Mas, se, por um lado, os in-teresses diferem, por outro lado, não pode haver conflito entre eles. Isso porque os fins últimos devem possuir uma unidade para poderem promover o interesse da humanidade. Todo interesse implica um con-ceito de fim. E o fins últimos a serem realizados se encontram no âm-bito prático, a saber, no exercício da liberdade. Disso decorre que o interesse especulativo da razão está subordinado ao interesse prático. Daí o primado17 da razão prática.

Este primado da razão prática, em relação à especulativa, ocorre na medida em que ela supre suas dificuldades e exigências, as quais ficavam restritas às idéias condicionadas à experiência e, com isso, não podendo ser demonstradas. Há uma necessidade, na transição entre as diversas medidas do conhecimento que se possa ter das coisas, de outorgar um destino a tudo aquilo que não tenha um uso teórico. Sendo assim, sob o ponto de vista moral, todas as investigações teóri-cas e todos os interesses da razão se justificam. Ou seja, no uso práti-co, as idéias têm um alcance maior, sobretudo porque recebem uma conota-ção moral. Somente a lei moral constitui o objetivo final, concebendo o ser racional como um fim em si no uso da sua liberdade. Não é em relação à necessidade, mas em relação à liberdade, que devem ser julgados os atos.

Em suma, o primado da razão prática significa, para Kant, a supe-rioridade de interesses frente aos quais os demais estão subordina-dos. A razão prática é anterior e superior à especulativa. A prioridade no homem não é a teoria, mas um fazer, uma práxis, a qual implica uma liberdade não-condicionada pelas leis da natureza, objeto de es-tudo da razão pura, e uma vontade pela qual o homem por si só, sem nenhuma interferência empírica, possa determinar sua ação.

5 – A lei moral como um “fato da razão”

17 “Por primado entre duas ou mais coisas ligadas pela razão entendo eu a prioridade de

uma delas ser o primeiro princípio determinante da conexão com todas as outras. No sentido mais restrito, prático, primado significa a superioridade do interesse de uma enquanto o interesse das outras está subordinado” (A 215).

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Filosofia, Lógica e Existência / 311

A lei moral, “age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação uni-versal” (A 54); para Kant, é uma proposição sintética a priori, isto é, possui a singularidade de não estar fundada sobre intuições sensíveis. Do mesmo modo, ela não pode ser edificada em intuições inteligíveis, visto que tais intuições são vedadas ao ser humano. A capacidade cognitiva humana não vai além da experiência. Neste sentido, a lei moral é um dado único e exclusivo da razão. A consciência da lei é um “fato da razão”18 (ein Faktum der Vernunft, A 56). Trata-se de um fato certo à priori, não dependente do empírico. “É [...] o fato único da ra-zão pura, que assim se proclama como originalmente legisladora (sic volo, sic iubeo)” (A 56). A natureza legisladora da razão submete imedi-atamente a vontade, como independente de qualquer condição empí-rica, a obedecer à lei moral.

Além de ser desprovida de qualquer elemento empírico , a lei mo-ral não diz respeito ao conhecimento teórico dos objetos. Ela é dada como um “fato da razão” pura de modo que os sujeitos têm consciên-cia a prio-ri como apodicticamente certa, isto é, determinada (movida) a priori objetivamente (A 81). Ela “mantém-se firme por si mesma” (A 82). Não necessita de nenhuma justificação teórica ou sustentação em-pírica. Quer dizer, a razão pura em si mesma é prática porque deter-mina a vontade sem que entrem em jogo outros fatores. O “fato da razão” é o ponto de partida da moralidade em que a consciência da responsabilidade e do dever supõem que o homem seja livre.

A lei moral é a condição sob a qual o homem pode primeiramente tornar-se consciente da liberdade. Enquanto a liberdade é a ratio essen-di da lei moral, a lei moral constitui a ratio cognoscendi da liberdade, isto é, se a lei moral não fosse pensada pela razão humana não haveria possibilidade de admitir a liberdade, e se não houvesse liberdade não haveria a lei moral (A 6 em nota). O “fato da razão” somente pode ser explicado admitindo-se a liberdade. A consciência da lei moral não deriva de nada anterior, nem mesmo da consciência da liberdade. Ao contrário, adquire-se a consciência da liberdade pelo fato de que antes se tem a consciência do dever. A consciência da lei moral ordena o querer segundo a forma da lei. Por isso, trata-se de um juízo sintético a priori. Juízo que traz novidade, não de ordem fenomênica, mas algo como condição necessária e universal do agir moral. Em suma, dar-se o dever implica a liberdade.

A consciência da lei moral se impõe como uma proposição sintética a priori, cujo fundamento racional é independente de intuições puras

18 Esta expressão contém várias caracterizações , mas em geral pode ser entedida de dois

modos: como consciência da lei ou, então, como a própria lei, dependendo da interpretação da partícula “da”. Cf. ROHDEN, Valério. Op. cit., p. 39-40 em nota.

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ou empíricas. Ou seja, primeiro vem a lei moral (o dever) como “fato da razão” e, depois deste fato, infere-se a liberdade como seu funda-mento e sua condição. Isto é, a razão prática determina a vontade por si mesma mediante um fato da razão ligado à consciência da liberdade da vontade. É da lei moral que se torna imediatamente consciente, a qual se oferece aos sujeitos e os conduz diretamente ao conceito de liberdade. “A liberdade e a lei prática incondicionada referem-se, pois, uma à outra” (A 52, 53). Ou seja, justificam-se mutuamente, sen-do que a lei moral surge como “fato da razão”, e a liberdade, fundada em seu uso teórico e aceita como postulado na razão prática, converge na autonomia. Esta é capaz de determinar sua própria lei, tornando-se a base de todo sistema filosófico kantiano.

6 – Para uma reconstrução da racionalidade prática

A filosofia de Lévinas se depara com a filosofia transcendental kan-tiana e procura retomar os grandes ideais da ética, porém, partindo de um novo paradigma de pensamento. Ao defender o primado da ética diante da ontologia, Lévinas não propõe um novo tratado, ape-nas busca um novo fundamento,19 introduzindo novos elementos, co-mo por exemplo, a Lei Mosaica, o “não matarás”, a qual substituirá o imperativo categórico kantiano. A pergunta pelo fundamento da so-cialidade passa por uma nova subjetividade marcada por uma raciona-lidade que se produz na relação ética a partir da relação concreta do face a face com o outro ser. Isto é, na relação entre um Eu e um Outro, mas que não fica somente nisso, pois existe o Terceiro, na figura dos Outros e, por isso, pode se estender nas instituições sociais onde a responsabilidade pelo outro se traduz em justiça.20

Lévinas não procura, a partir de Kant , reconstruir a idéia de como a Razão (Pura) pode se tornar ética (Prática) ou como é possível o Im-

19 Lévinas afirma que sua tarefa não consiste em construir uma ética, mas procura ape-

nas encontrar-lhe o sentido. Porém observa que pode-se construir uma ética em função daquilo que ele faz, mas não é propriamente este o seu tema. Ver: Éthique et infini. Dia-logues avec Philippe Nemo. Paris: Fayard , 1982. p. 94-95. Nas demais citações esta obra será indicada pela sigla EI. É oportuno dizer, Kant da mesma forma, não busca propor uma nova ética ou estabelecer normas para o agir humano, mas a partir da “metafísica dos costumes” encontrar seu fundamento. Kant procura uma justificação das proposi-ções morais , ou seja, quer fundamentar um princípio moral no sentido de uma regra suprema de discernimento e julgamento para o agir ético dos homens. Assim a ética deve refletir sobre as máximas, sobre a motivação e não diretamente sobre as ações humanas.

20 Para Lévinas, a relação interpessoal que se institui com outrem , também deve ser estabelecida com os outros homens ; logo, há necessidade de moderar este privilégio de outrem; daí a justiça. Esta exercida pelas intituições , que são inevitáveis , deve ser sempre controlada pela relação interpessoal inicial. Ver: EI. p. 95.

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Filosofia, Lógica e Existência / 313

perativo Categórico reformulando-o e levando-o até as últimas conse-qüências.21 A pergunta levinasiana é pela idéia de uma inteligibilidade do inteligível, pela racionalidade primeira e original. 22 Dito de outro modo, por uma razão diante dela própria que se produz na relação humana,23 sendo capaz de respeitar a alteridade como totalmente ou-trem.

A idéia de reconstrução da filosofia prática parte da alteridade, com novos paradigmas, sem esquecer as vozes da tradição filosófica, des-centralizando o sujeito autônomo e hegemônico na determinação do agir moral, operando assim uma nova “revolução copernicana” na his-tória da filosofia prática.

Em Lévinas, a fundamentação última não está no sujeito, mas a-contece a partir do rosto concreto do outro, possibilitando assim uma relação com a verdadeira alteridade sem o conhecimento de uma lei moral a priori. É diante do rosto do outro que nasce a razão e toda significa-ção, exterior a todo contato místico ou irracional, pelo qual o mesmo se absorve no outro. A partir do rosto é que se introduz a moralidade no ser e se instaura a lei moral. O rosto do outro chama à responsabili-dade ética. Este chamado antecede a própria constituição do eu na consciência definindo-o a partir da alteridade. Isto é, a justiça e a res-ponsabilidade passam a ser obsessão essencial ante à iminência do outro homem. Assim Lévinas, ao contrário de Kant , contesta a idéia de que a humanidade do homem reside na sua posição do eu. Não se trata de eliminar a identidade, mas em afirmar que a fonte da huma-nidade talvez esteja no outro.24

A filosofia levinasiana parte da alteridade em uma relação na qual, a partir dela, se estabelece a consciência do agir moral, se constitui a subjetividade ética. Em outras palavras, o pensamento de Lévinas surge a partir da relação de alteridade, em uma relação discursiva, mas assimétrica. Em seu movimento encontra a construção da subjetivida- 21 O projeto de Habermas e Apel, com a filiação kantiana , transcendental, parece ter tido

esta perspectiva. Habermas por substituir a filosofia do sujeito por uma “Teoria da ação comunicativa” e Apel por substituir a consciência pela comunidade, como ele-mento da interpretação de signos. Ambos estão interessados na reconstrução progra-mática do imperativo kantiano de universalidade lógica, mas, pouco ou nada lhes inte-ressa o imperativo da alteridade, isto é, de tratar o outro como um fim em si mesmo e não como um meio. Preocupam-se mais com o aspecto formal. Cf. BELLO, Gabriel. Lévinas y la reconstrucción contemporánea de la racionalidade prática. In: Ética y subje-tividade, p. 171.

22 Para Lévinas, isto não significa uma menor apreciação da razão e da aspiração da razão à universalidade. O que o filósofo procura é deduzir, da necessidade de um so-cial racional, exigências do intersubjetivo (EI p.85).

23 Cf. FERON, Etienne. Intérêt et désintéressement de la raison: Lévinas et Kant . In: Lévi-nas en contrastes. Bruxelles: Lé point Philosophique, 1994. p. 84.

24 Cf. LÉVINAS, Emmanuel. Transcendance et hauteur. Bulletin de la Société Francaise de Philosophie, 1962. p. 56.

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/ Subjetividade transcendental e alteridade 314

de moral como algo posterior, contrariando Kant , o qual parte da sub-jetividade auto-reflexiva, isto é, em uma relação do eu consigo mesmo como se fora outro e só posteriormente encontra a relação com a alte-ridade.

A categoria rosto choca-se com a noção kantiana de Razão Prática, em que o imperativo categórico é em princípio um juízo sintético a prio-ri, instaurando a lei racional, inteligível. A lei rege o sentido e, ao mesmo tempo, comanda e introduz a moralidade no ser. Kant pergun-ta-se como a razão pode se produzir como ética, ou seja, de que forma o imperativo categórico é possível. Lévinas questiona-se como a ética, enquanto relação concreta com o rosto do outro, pode se produzir co-mo razão.

Para Lévinas, o rosto é o fato originário da racionalidade. Por ou-tro lado, é fundamento e guia ético à medida que é “discurso”. Ao mesmo tempo, põe em questão a autonomia do eu e o chama à res-ponsabilidade pelo outro. “O rosto25 abre o discurso original cuja pri-meira palavra é obrigação que nenhuma “interioridade” permite evi-tar. Discurso que o racionalismo exige com os seus votos, “força” que convence mesmo “as pessoas que não querem ouvir” e fundamenta assim a verdadeira universalidade da razão”.26

A primeira expressão do rosto, no face a face, coloca em questão a liberdade do eu. A conscientização desta situação, em que o exercício da liberdade do eu é colocado em questão, e quando na associação ocorre o acolhimento do outro, Lévinas chama de consciência moral (TI p. 86). O eu livre não tem a última palavra, não está sozinho. A essência da consciência moral emerge deste fato, de onde surge a i-déia de que ela sai de si mesma e faz experiência sem nenhum a priori, sem nenhum conceito prévio que oriente a ação. Em princípio ela é passividade onde o outro se revela como mestre, como quem está acima e além do domínio do eu, cuja relação mantém ambos absolu-tamente separados.

Para Lévinas, a relação entre outrem e eu não desemboca num número ou conceito a priori. Outrem é infinitamente transcendente e estranho. O seu rosto, a sua presença rompe com o mundo comum a dois, mantendo-os separados. O outro é sempre mais do que se possa dizer sobre ele. Trata-se aqui da idéia do infinito que ultrapassa a capacidade do eu autônomo determinar a sua ação ou englobar a alte-ridade dentro do seu sistema. Idéia esta que Lévinas toma de Descartes e a enquadra dentro da sua filosofia. Na relação o outro como absolu-tamente outro, sendo infinito, não limita a liberdade do eu. Apenas a 25 O grifo é nosso. 26 LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1988. p. 179-180. Trata-

se aqui de uma referência levinasiana à República de Platão, 327 b. Nas demais cita-ções esta obra será indicada com a sigla TI com a respectiva numeração da página.

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chama à responsabilidade e a justifica na medida em que o eu respon-de à expressão e à revelação do seu interlocutor que possui um “rosto” e que não é apenas um conceito ideal e abstrato formulado pela razão.

A expressão do rosto não se produz como a manifestação de uma forma inteligível na qual se busca o conhecimento, a objetivação, a adequação. Ela precede todas essas buscas. “O acontecimento próprio da expressão consiste em dar testemunho de si, garantindo esse tes-temunho. A atestação de si só é possível como rosto, isto é, como pala-vra. Ele produz o começo da inteligibilidade, a própria inicialidade, o principado, a soberania real, que comanda incondicionalmente. O princípio só é possível como ordem (TI p. 180). Assim a linguagem só é possível quando a palavra renuncia sua função de ato e volta à sua essência de expressão” (TI p. 180). A alteridade, ao manifestar-se co-mo rosto, a sua presença, já é palavra e discurso que, ao invés de ferir a liberdade de outrem, coloca-a em questão e chama-a à responsabili-dade, implantando-a. “O outro não é para a razão um escândalo que a põe em movimento dialético, mas o primeiro ensino racional, a condi-ção de todo o ensino” (TI p. 182). É a partir do rosto que o sentido se instaura. Todo e qualquer recurso à palavra se coloca como já no inte-rior do frente a frente originário, da primeira significação, cujo infini-to se apresenta em outrem e não na atividade sensorial ou no pensa-mento transcendental. O rosto de outrem impõe respeito à consciência que o acolhe, pois na sua condição de infinito e mestre exige uma pos-tura ética.

O rosto traz a primeira significação e no frente a frente fundamenta uma linguagem, a qual não serve à razão, mas é a própria razão (TI p. 186). Assim, para Lévinas, o rosto, enquanto lugar onde se manifesta a significação original, é a razão prática, a qual comanda e ordena o agir moral.

É nesta perspectiva que, para Lévinas, o paradigma kantiano não é suficiente para manter uma relação que respeite a alteridade. Ou seja, o conceito de razão prática como reino da moral, em Kant, não é o bas-tante para fundamentar uma moral e, conseqüentemente, dar equilí-brio à humanidade. Por isso há necessidade de uma nova racionalida-de prática que repense a ordem do humano e sua dignidade. É preciso revisar as bases sobre as quais se sustenta e se ergue toda a filosofia ocidental, bem como todas as relações humanas vigentes. No lugar do eu imperialista é mister colocar um eu ético, não mais centrado em si mesmo e identificando-se a partir da sua interioridade e do seu mun-do. Um eu marcado por uma nova subjetividade que suporte a pre-sença do outro e onde a responsabilidade não seja conseqüência de um livre arbítrio. Subjetividade esta invocada do além da sua esfera pela alteridade do outro homem, a qual não é desvelada pelo saber, mas que se revela e ensina.

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/ Subjetividade transcendental e alteridade 316

Cumpre destacar que tudo isso requer, para o devido entendimen-to, uma original compreensão da subjetividade, do psiquismo e da razão. Uma subjetividade constituída pela responsabilidade na interi-oridade do eu, isto é, anterior à própria liberdade de poder optar, do querer ou de não responder aos apelos da presença da alteridade. Uma ra-cionalidade que se produz a partir de uma relação com a alteridade, e que o respeito ao outro seja o fundamento da própria existência. Uma sociabilidade imanente à subjetividade do eu.

Para Kant o outro é sempre ocasião da moral prática determinada por uma subjetividade autônoma, a qual o Filósofo de Königsberg explicita em suas obras na tentativa de encontrar o espaço para a fundamentação última. O imperativo categórico é uma proposição sintética a priori, cuja razão prática, sem interferências empíricas, impõe obriga-toriedade. Quer dizer, a filosofia kantiana parte da subjetividade, relação do eu consigo mesmo como se fosse um outro eu, para depois buscar uma relação com o outro (alter). Entretanto, nesse modelo de subjetividade, em que o eu transcendental, ou o sujeito moral, numêni-co, inteligível, determina seu agir , o outro como totalmente outro de-saparece, ficando restrito à esfera do mesmo. Observa-se então que o eu transcendental ou o eu inteligível, agindo como aquele que legisla universalmente, esmorece. Isto porque não obtém um equilíbrio har-monioso entre o eu e o outro. Em nível teórico , o eu reduz o outro a um fenômeno, a um conceito ou a uma idéia e, em nível prático, em-bora na determinação da lei moral adote a perspectiva do outro, a sua fundamentação se dá na própria subjetividade do eu. Embora mani-festa, aparentemente, uma certa veemência às relações intersubjetivas, resta-lhe o formalismo vazio marcado pela egolatria.

Referências bibliográficas

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Filosofia, Lógica e Existência / 317

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Filosofia, Lógica e Existência / 317

IDALGO J. SANGALLI Universidade de Caxias do Sul

A questão da lex naturalis em Tomás de Aquino

1 – Considerações introdutórias

Na Suma teológica, construída de acordo com o esquema do neo-platonismo (saída e volta a Deus), Tomás de Aquino expõe a sua ética, mais especificamente, na segunda parte da obra em que trata do agir humano para conduzir a Deus.1 Esta parte da moralidade do agir hu-mano deve levar em conta, pois a ele pertence, a relação dependente como criaturas do primeiro princípio do ser e o fim último de todas as coisas, ou seja, Deus, como origem, criador e a finalidade para a qual todas as coisas tendem. 2 Como parte integrante desse processo onto-lógico de criação cabe, ao ser humano, aperfeiçoar-se por seu esforço voluntário livre, enquanto ser homem, sempre em conformidade com a sua natureza que é racional, segundo esta essência e finalidade pré-estabelecida por Deus. É a partir de uma descrição teleológica do agir humano que Tomás de Aquino introduz o conceito de lei neste mesmo agir.

A abordagem seguirá os passos argumentativos expostos por To-más de Aquino em torno da noção de lei natural, tratada na primeira parte da segunda parte da Suma teológica. Inicialmente, se fará a análi-se das raízes históricas na elaboração da concepção de lei e a definição de lei apresentada por Tomás de Aquino. Em seguida, serão tratadas algumas questões centrais desta investigação, como: O que é a lei na-tural? Que tipo de relação existe entre ela e as demais formas de lei, especialmente com a lei eterna? Qual a sua função? Que tipo de relação

1 Cf. Summa theologica . I, q. 2, prólogo. 2 Aristóteles inicia a Ética a Nicômaco dizendo: “Toda arte e toda indagação, assim como

toda ação e todo propósito, visam a algum bem ; por isto foi dito acertadamente que o bem é aquilo a que todas as coisas visam.” Esta afirmação é assumida por Tomás de Aquino.

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/ A questão da lex naturalis em Tomás de Aquino 318

existe entre a razão prática e as inclinações naturais? Qual é o primeiro princípio da razão prática? Essas e outras questões vão guiar a tentati-va de compreensão do pensamento tomista, principalmente relaciona-do com a sua concepção de felicidade.

2 – A definição de lei

Dentro da diversidade, graus de perfeição e potencialidade de to-das as coisas criadas, o homem, constituído de razão e de vontade livre, tende para o seu fim próprio. É capaz de ações livres e delibera-das na consecução de sua felicidade que, em última análise, encontra-se no conhecer racional e no amor a Deus, como o Bem supremo e fim último, possível de ser alcançado na ordem natural e sobrenatural por participação, através do auxílio da graça e da luz divina. Este é o pla-no da lex aeterna no qual Deus criou o mundo, dirige todas as coisas e conduz este mundo para o seu fim.

Como o homem possui a razão para dirigir a sua vontade, isto é, o livre arbítrio, Tomás de Aquino apresenta as virtudes3 que visam re-gular a vida interior, com a introdução das leis para regulamentar os atos exteriores. É interessante observar que ao falar no agir ético , o Doutor Angélico aborda a importante questão da lex, que não se en-contra em Aristóteles.4

A dupla raiz do conceito da lei de Tomás de Aquino é proveniente da fonte bíblica e da filosofia estóica.5 O povo hebreu, escolhido por Deus para selar a aliança, recebe, através de Moisés, a tábula das leis para serem cumpridas.6 O cumprimento, a obrigatoriedade do decálo-go, por temor das penas, é o caminho para a vida eterna, a salvação dos homens. As leis são recebidas não como ônus , como restrição de certos atos praticados, mas como promessa, como alternativa de vida 3 Com relação às virtudes intelectuais e morais esboçadas por Tomás de Aquino, diz A.

Macintyre, que é uma lista das virtudes modificada e ampliada com relação à de Aris-tóteles. Afirma, ainda, que “o conceito de telos e o das virtudes é interpretado a partir de um marco legal que tem origem estóica e hebraica” (Historia de la etica , p.119).

4 Diz ainda A. Macintyre com relação à virtude natural e à sobrenatural frente às leis: “A diferença fundamental entre Aristóteles e Tomás de Aquino reside na relação que cada um considera existente entre os elementos descritivos e narrativos de suas análises. A-ristóteles descreve as virtudes da pólis, e as considera normativas para a natureza hu-mana como tal; Santo Tomás descreve as normas da natureza humana como tal, e es-pera encontrá-las exemplificadas na vida humana em sociedades particulares. Santo Tomás não pode ocupar-se da tarefa descritiva com a confiança de Aristóteles por causa de sua crença no pecado original; a norma é a natureza humana tal como deve-ria ser, e não a natureza humana tal como é.” (op. cit., p. 119).

5 Cf. Ludger Honnefelder apresentou no ciclo de conferência sobre Ética e política medieval com o programa Da ética como doutrina à ética como ciência prática , no curso de mestrado em Filosofia , no segundo semestre de 1995, na PUC-RS.

6 Cf. Êxodo, 3,19-20.

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para alcançar a perfeita felicidade. As referências feitas no Novo Tes-tamento, na proclamação da nova lei, reforçam a aliança indissolúvel entre os cristãos e Deus. É a lei do Evangelho que se faz por amor. Por meio de Cristo, Deus fez o homem cristão conhecer a lei divina. A outra vertente é dada pela filosofia estóica, que deixa de orientar-se pela pólis e busca o seu princípio orientador no todo ordenado, isto é, no kosmos.

O que está a fundamentar esta ordem no todo, para os estóicos, é o logos spermatikós (razão seminal), é a idéia de uma razão universal que determina o kosmos. Há uma estrutura, uma lei eterna por trás desta razão universal que foi concebida por quem fez o mundo. Deus está na natureza como seu artífice que age continuamente. A natureza é criação de Deus. É o próprio Deus. O mundo é um grande organismo vivo, onde a sua “alma é Deus, razão, sabedoria, justiça. Portanto, o mundo é perfeitamente dirigido, governado, ordenado e harmonio-samente conduzido à unidade programada.”7 Isso quer dizer que o mundo, longe de ser um simples acidente, um acaso desordenado é, na verdade, subordinado a um ordenamento prévio, ou seja, por um fim (telos). Nessa perspectiva, o homem como parte desta natureza (physis), para ter uma atitude ética, deve estar ciente do seu lugar, da sua função, do seu papel a desempenhar neste grande organismo que é o kosmos e saber qual é o seu telos.8

O princípio basilar da filosofia estóica, afirmado por Zenão de Cí-cio, diz que “o sumo bem consiste em viver conforme a natureza, ela mesma nos conduz à virtude.”9 Há uma lei eterna voltada para esta ordem teleológica pela qual o mundo, enquanto todo ordenado ao qual o homem pertence, busca a sua plena realização. Cícero (De Nat. Deor. I,14,31) marca a essência da lei natural ao dizer: “pois bem, Ze-não, crês [...] ó Balbo, que a lei natural é divina e que tem força para ordenar o bem e proibir o contrário”.10

Essas idéias dos filósofos pagãos da Stoa são assumidas pelos cris-tão, especialmente os santos padres. Foi o que aconteceu com o concei-to de lei eterna, assumido por Santo Agostinho11 que, incorporada à 7 Cf. Vitorino F. Sanson. Ética e trabalho, p. 90. 8 Idem , p. 88. A postura do sábio é sempre consultar a natureza e viver em conformida-

de a ela. Diz Sêneca (Ep, 121,2.3.): “Só saberás o que deves fazer e o que deves evitar, quando aprenderes o que deves à tua natureza” (Idem , p. 89).

9 Idem , p. 84. Epiteto, nas Dissertações I, 6, nos diz , “Deus introduziu o homem como espectador das suas obras, e não somente espectador, mas o seu intérprete. Por isso, é vergonhoso para o homem começar e terminar aí onde também começam e terminam os irracionais , mas é melhor começar aí, porém terminar onde termina em nós também a natureza. Termina na contemplação, entendimento e acordo harmônico com a natu-reza.” (Idem , p. 93).

10 Ibidem , p. 89. 11 Santo Agostinho recebe a idéia de lei dos estóicos, através de Cícero e desenvolve esta

concepção, na qual divide as ordens legais em lex aeterna, lex naturalis e lex humana sob

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idéia da criação, passou a ser o plano da salvação cristã. É nada mais do que a própria idéia de Deus como criador do mundo, que dirige e conduz através da lei eterna o mundo para o seu fim e, conseqüente-mente, o caráter obrigatório do retorno do homem ao seu Criador.

Considerando esta base de fundo histórico é possível compreen-der o que Tomás de Aquino entende por lei. Sua definição é dada dentro do âmbito dos princípios exteriores dos atos humanos, que se são movidos para o bem, o são através da lei e da graça divina. A definição de lei, diz Tomás de Aquino, “quae nihil est aliud quam quaedam rationis ordinatio ad bonum commune, ab eo qui curam communitatis habet promulgata”.12 Para compreendê-la, é preciso ana-lisar separadamente os seus quatro elementos componentes, que fo-ram recolhidos pelo Doutor Angélico , a partir da observação da reali-dade circundante de seu tempo , isto é, regida por normas e leis, ou seja, por indução.

Ao perguntar sobre “utrum lex sit aliquid rationis”, Tomás de A-quino vai concluir “quod lex sit aliquid pertinens ad rationem”.13 O termo lex, no sentido figurado dado por Cícero, remete à regra, à me-dida, ao preceito, à obrigação com relação ao agir humano. A lei como ordinatio rationis, pois a razão é “a regra e a medida dos atos”, é ela como primum principium do agir ordenado para o fim. É, em última análise, uma determinação racional do agir, como princípio regulador dos atos humanos para o bem comum, visando o seu fim último.14 A própria vontade deve estar regulada pela razão, para constituir-se como lei. A lei, para Tomás de Aquino, é sempre uma determinação e exigência da razão, como primeiro princípio normativo dos atos hu-manos. O homem como ser racional participa da lei eterna e tem a lei natural no seu interior.

O segundo elemento aparece no artigo II, “utrum lex ordinetur semper ad bonum commune, sicut ad finem”. A razão é o princípio dos atos humanos que a lei visa. A razão, assim como a lei que está a ela subordinada, é determinada por um primeiro princípio. Conse-qüentemente, a lei pertence, assim como a razão prática, a este primei-ro princípio que é o fim último do homem. “Est autem ultimus finis humanae vitae felicitas vel beatitudo.”15 A lei não se restringe ao âmbi-to individual mas sim, repetindo Aristóteles, diz respeito a um todo de indivíduos comuns, isto é, o homem pertence e convive com outros numa comunidade que busca a sua perfeição. “Necesse est quod lex

o princípio de dar a cada um o que é seu. Cf. Joaquim C. Salgado. A idéia de justiça em Kant, p. 57.

12 Cf. S. Th. I, II, q. 90, a. 4. 13 Idem , q. 90, a. 1. 14 Cf. G. Fraile. Historia de la filosofia, p. 468. 15 Cf. S. Th, I, II, q. 90, a. 2.

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proprie respiciat ordinem ad felicitatem communem.”16 Isto leva To-más de Aquino a destacar que a lei, por sua natureza, refere-se à or-dem do bem comum, da coletividade, e não do particular. É evidente a importância que Tomás de Aquino dá aos conceitos de ratio e bonum commune na definição de lex. Portanto, a lei é uma determinação da razão prática que dirige o agir dos indivíduos para o bem comum da coletividade. Esta exigência altruísta da lei é posta pela própria razão. O princípio do querer da vontade é sempre alguma coisa que é dese-jada naturalmente, isto é, o bem comum.

Na seqüência, Tomás de Aquino discute a quem cabe legislar, “u-trum cuiuslibet ratio sit factiva legis”. Deixa claro que como a lei visa ao bem comum está tanto no sujeito que regula, legisla, como no sujei-to que, por participação, é regulado. “Et, hoc modo, unusquisque sibi est lex, inquantum participat ordinem alicuius regulantis.”17 Assim, tanto o povo como o seu governante podem legislar, tendo em vista o bem comum. Porém, uma pessoa privada que não possui a força coati-va (virtutem coactivam) para aplicar a lei, como a tem o homem público, não pode levar à virtude, ou seja, ao bem comum em uma comunidade perfeita, semelhante ao ideal da pólis, para Aristóteles.18 Portanto, só a autoridade competente pode emiti-la. “Et ideo solius eius est leges facere.”19 Em nível da existência terrena, na qual as circunstâncias e contingências dos problemas e situações criadas pelo homem na con-vivência social exigem que os homens façam as suas leis, complemen-tem a lei natural pela legislação jurídica, chamada de lex humana. E esta, para ser justa, deve estar conforme com a lei natural.

Como último elemento da definição de lex, Tomás de Aquino ana-lisa o conhecimento e a promulgação da lei como pertencente à pró-pria essência da lei. “Utrum promulgatio sit de ratione legis.” A lei, que é de sua essência, deve ser aplicada àqueles que por ela devem ser regulados e medidos. Para que tenha força de lei, isto é, a obrigatori-edade de ser cumprida como lei, deve ser conhecida em sua essência, isto é, no seu sentido interior. Mas isto não é suficiente, pois ela deve, também, ser promulgada. Como determinação da razão, ela pode ser compreendida e promulgada. No caso da lei da natureza, esta é pro-mulgada e naturalmente conhecida pelos homens, porque Deus, o le-gislador supremo, a inseriu na mente humana.20 16 Idem. 17 Ibidem , q. 90, a. 3. 18 Embora certa semelhança, pois parece que Tomás de Aquino interpreta Aristóteles

definindo a comunidade como o fim político da pólis não como civitas, mas como socie-tas. Esta seria a interpretação de Habermas. Cf. Cesar Augusto Ramos. In: Anais do V Encontro Na- cional de Filosofia, p. 365.

19 Cf. S. Th, I, II, q. 90, a. 3. 20 Idem , q. 90, a. 4. Diz José L. Aranguren: “La ley se llama y es natural en cuanto que se

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3 – A lei natural

Ao tratar De legum diversitate21, Tomás de Aquino mostra as dife-rentes formas de lei percebidas pelo homem na diversidade de comu-nidades. Fala da lex aeterna, lex naturalis, lex humana e lex divina. Para o nosso intento, a análise se restringirá à lex naturalis, embora a relação com a lex aeterna deva ser constante.

Como todas as coisas criadas por Deus são reguladas e medidas pela lei eterna, estas coisas participam desta lei eterna e se movimen-tam para a realização de suas potencialidades e finalidades. Assim, tudo o que existe: as plantas, os animais, o homem, etc. são levados à perfeição por sua própria natureza. Porém, há uma diferença substan-cial entre o homem e os demais seres animados ou inanimados: o de ser um animal racional.

Aristóteles deixou claro, e Tomás de Aquino o segue, que todas as coisas tendem para o seu próprio fim natural. Tudo se movimenta para o seu lugar natural, dizia o filósofo. Por natureza, as plantas e os animais atingem o seu fim, procuram realizar a sua perfeição. Com a idéia de Deus, agora criador e como primeira causa, Tomás de Aquino mostra que a Divina Providência não dirige o mundo de modo imedi-ato. Deus cria causas segundas e as coloca nas próprias coisas, a natu-reza que Deus lhes deu, que lhes possibilitam atingir o seu fim. Por-tanto, por natureza o mundo atinge a sua perfeição, a sua finalidade, o que é um bem.

O homem, entre todas as criaturas, como já foi dito, é dotado de uma natureza mais excelente, de uma natureza racional pela qual parti-cipatur ratio aeterna e dela brota a inclinação natural para realizar a sua finalidade. O homem é orientado para o seu fim último , e dirigido para a sua perfeição por sua natureza. Assim, afirma Tomás de Aqui-no, “et talis participatio legis aeternae, en rationali creatura, lex natu-ralis dicitur”.22 O homem participa do plano da vida eterna, porque ele participa da luz eterna através de sua razão. Assim, “[...] quasi lumen rationis naturalis, quo discernimus quid sit bonum et quid malum, quod pertinet ad naturalem legem, nihil aliud sit quam impressio lu-minis divini in nobis.”23 A lei está no homem como sujeito que regula e também, participativamente, como sujeito que é regulado. Assim, cada ser racional é para si mesmo a sua própria lei, pois participa do plano da lei eterna. Mesmo sendo causa primeira, Deus não atinge direta-

funda sobre la inclinación natural a la felicidad. Dicho em la terminología de Zubiri: el hombre está ob-ligado al deber porque está ligado a la felicidad. La ligación es natural; la ob-ligación, en cierto modo, también.” (Etica , p. 182).

21 Cf. S. Th, I, II, q. 91. 22 Idem. q. 91, a. 2. 23 Ibidem.

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mente, imediatamente. É pelas causas segundas, como a natureza que Deus deu ao homem, que se manifesta a sua vontade.

O conceito de participação é fundamental na caracterização da lex naturalis, embora isso não seja suficiente para o ser humano reconhecer a lei eterna. A lei eterna não é uma norma, uma lei imediata para o homem, como a defendia Santo Agostinho: “Iustos sub aeterna lege agere existimo.”24 O homem conhece, assim como participa da lei eter-na unicamente por orientar os seus atos pela própria razão.25 Ninguém pode conhecer a lei eterna, a não ser os bem-aventurados. “Sed omnis creatura rationalis ipsam cognoscit secundum aliquam eius irradiatio-nem, vel maiorem, vel minorem”26 no momento em que busca na razão prática a normatividade de sua ação.

Conforme já foi exposto acima, se a “lex naturalis nihil aliud est quam participatio legis aeternae in rationali creatura”,27 então todos os homens, como seres racionais, independentemente de serem cristãos ou pagãos, possuem esta lei natural. Isso é reforçado pela Escritura, na Carta aos Romanos 2,14, onde também os pagãos têm consciência do bem e do mal por possuírem a lei natural escrita em seus corações.28

A conseqüência natural do reconhecimento de que também o pa-gão pode agir corretamente, a partir da lei natural gravada em seu coração, ou seja, pode distinguir o bem e o mal através de sua razão prática, é a demonstração de que é possível uma ética independente da revelação divina. Esta ética não precisa estar fundamentada na compreensão e na determinação de Deus. Uma vez colocada em forma de lei natural na nossa razão, torna-se suficiente, autônoma, ao dirigir os nossos atos. A idéia, a compreensão de um Deus criador e provi-dente, ou seja, de uma lei eterna, é sempre um objeto de fé. A passa-gem citada do apóstolo Paulo29 revela-se contrária à idéia de salvação universal pregada pelos cristãos, que defendiam o privilégio e a opor-tunidade de uma vida bem sucedida, por conhecerem a revelação di-vina e possuírem a lei escrita e, é claro, por estarem com Deus. Só a-ceitando e vivenciando, pela fé, a palavra revelada por Deus e sua lei, o homem podia ser cristão e, portanto, capaz de agir corretamente, isto é, distinguir o bem do mal.

24 Idem , q. 93, a. 6. 25 É importante frisar a observação feita, na Conferência antes citada pelo prof. Ludger

Honnefelder de que as antigas interpretações de Santo Tomás não consideravam esta perspectiva. Tal correção interpretativa foi mérito do prof. W. Kluxen, no livro Die phi-losophische Ethik des Thomas von Aquin. Mainz: M. Grünewald, 1964.

26 Cf. S. Th, I, II, q. 93, a. 2. 27 Idem. q. 91, a. 2. 28 Ibidem. “Cum gentes, quae legem non habent, naturaliter ea quae legis sunt, faciunt, dicit

Glossa: Etsi non habent legem scriptam, habent tamen legem naturalem , qua quilibet intelligit et sibi conscius est quid sit bonum et quid malum .”

29 Cf. Carta aos Romanos 2, 14.

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/ A questão da lex naturalis em Tomás de Aquino 324

Embora possua a crença no pecado original, Tomás de Aquino mostra-se otimista na capacidade e confiança nas decisões racionais do ser humano. O homem, pelo uso exclusivo da razão, enquanto inteli-gência e vontade, pode conhecer, sem a revelação, o que é bom e que ele, como natureza dirigida ao telos, é por si mesmo o próprio princí-pio de suas ações. O homem – e neste conceito já está implícito o de ser racional – é por isso capaz de agir com sabedoria, prudência, deli-beração, disposição prévia e responsabilidade em vista do seu fim particular e da coletividade, na medida em que é orientado e dirigido pela razão prática, iluminada pela lei natural que participa da luz eter-na. É na atividade da razão prática, como uma espécie de frônesis aris-totélica, que se apresenta o momento decisivo do agir moral. Em últi-ma análise, cabe ao próprio homem e só a ele, como se fosse um de-ver, uma obrigação, a decisão – e aqui o contingente pode manifestar-se como fracasso, como queda para o mal – de agir eticamente, de efetivar as suas potencialidades em vista de uma vida bem-sucedida, isto é, realizar o seu fim último.

Isso tudo é reforçado por Tomás de Aquino ao tratar dos precei-tos da lei natural a partir da analogia entre a razão prática e a razão especulativa, partindo da proposição “utrum lex naturalis contineat plura praecepta, vel unum tantum”.30 Analogicamente à estrutura da razão especulativa, chega à organização dos preceitos da razão práti-ca, respeitando as suas devidas diferenças. A forma de proceder da razão prática e da especulativa, dos princípios para as conclusões, em forma de silogismo, é semelhante (similis). Assim, como a proposição está para as conclusões na estrutura da razão especulativa, também, na razão prática, as proposições universais da natureza, enquanto lei na-tural, estão para os atos, as obras humanas. “Praecepta legis naturae hoc modo se habent ad rationem practicam, sicut principia prima de-monstrationum se habent ad rationem speculativam: utraque enim sunt quaedam principia per se nota.”31

Ambos os modos da razão têm os seus primeiros princípios. A ra-zão prática os possui por meio das disposições naturais. A razão espe-culativa parte de princípios que são evidentes e indemonstráveis para chegar às conclusões pelo trabalho da própria razão, ou seja, “sed per industriam rationis inventa”.32 Isso quer dizer que o conhecimento dos primeiros princípios da razão não existem em nós naturalmente. É preciso descobri-los, despertá-los, e isso, geralmente, é feito a partir do uso, da aplicação de algo que já o possuímos e que, por força do hábito, são percebidos, esclarecidos e tornam-se, assim, “propositiones

30 Cf. S. Th, I, II, q. 94, a. 2. 31 Idem. 32 Idem , q. 91, a. 3.

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per se notae communiter omnibus”. Podem ser evidentes “per se nota secundum se” e, também, “per se nota quoad nos”.33

Tomás de Aquino acompanha o raciocínio de Aristóteles e exem-plifica esta questão da evidência dos primeiros princípios a partir do princípio fundamental da razão especulativa, isto é, o princípio da não-contradição. Existem princípios que são evidentes por si mesmos, isto é, proposições conhecidas por si, verdades que são evidentes por si mesmas. Existem outras proposições que, ao serem formuladas, contradizem o princípio de não-contradição. E neste caso, teríamos uma contradição performativa.34 Não é possível dizer que a mesma coisa é e não é ao mesmo tempo. Assim como não é possível fazer, simulta-neamente, duas coisas que são excludentes. Por trás disso está esta estrutura do ser e do não-ser. Isso não se restringe à razão especulati-va. No âmbito da razão prática isso também ocorre de modo seme-lhante, isto é, ocorre na ação como uma sentença orientadora do nosso agir, que afirma que uma determinada ação deve ser feita ou evitada. E aqui aparece, também, um primeiro princípio, agora prático, ou seja, o bonum.

A apreensão humana em torno dos primeiros princípios segue uma ordem. Parte dos primeiros princípios, por hábito natural especulati-vo, da ratio speculativa para a ratio practica, que começa dos primeiros princípios práticos, que são as leis formais das nossas ações. A razão prática é também operativa, da mesma maneira que a razão especula-tiva é tida como razão científica. Ambas, as razões, diferem. A razão especulativa se limita a apreender as coisas, enquanto que a razão prá-tica, além de apreender, também é causativa.

Para a razão especulativa o “ens est primum quod cadit in appre-hensione simplicite”. Por sua vez, na razão prática o “bonum est pri-mum quod cadit in apprehensione practicae rationis, quae ordinatur ad opus”.35 Isso na medida em que o homem tende para o seu fim, tende, por inclinação natural, para a realização de ações direcionadas a um fim que é um bem. Diz ainda Tomás de Aquino, “primum princi-pium, in ratione practica, est quod fundatur supra ractionem boni; quae est: ‘bonum est quod omnia appetunt’. Hoc est ergo primum prae-ceptum legis, quod ‘bonum est faciendum et prosequendum, et malum vitandum’.”36 Este primeiro princípio prático, que é o fundamento de

33 Idem , q. 94, a. 2. 34 Este termo técnico é próprio da linguagem moderna e não se encontra em Aristóteles

nem em Tomás de Aquino, embora o princípio seja o mesmo. Diz Tomás de Aquino: “Et ideo primum principium indemonstrabile est, quod non est simul affirmare et negare, quod fundatur supra rationem entis et non entis.” (Idem).

35 Ibidem. 36 Ibidem.

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todos os demais princípios da lei natural, é, em última análise, a estru-tura formal das leis das nossas ações.

O que deve ser reforçado é que as duas formas de estrutura da razão são idênticas. Porém, cada qual à sua maneira e possuem, ao seu modo, os seus próprios primeiros princípios de forma independente. A razão especulativa tem o esse como primeiro princípio, e a razão prática tem o bonum. E esta última não recebe o primeiro princípio da razão especulativa. Do contrário, teríamos que admitir que o bonum é deduzido do esse, o que significaria que a ética de Tomás de Aquino é deduzida da Metafísica.37 Como essas estruturas têm os seus próprios princípios, isso possibilita uma Ética autônoma com relação à Metafísi-ca.38 Neste sentido, é preciso compreender que o axioma o agir segue o ser significa que todos os seres vivos agem em conformidade com o seu plano de construção, isto é, segundo o plano de construção especí-fico de cada gênero concebido pelo Deus criador. Portanto, a autono-mia da Ética, com relação aos princípios metafísicos é evidente, na medida em que o agir segue o ser não se refere ao agir ético.

O primeiro princípio da lei “bonum est faciendum et prosequen-dum, et malum vitandum” é uma formulação formal que não fornece o conteúdo para agir, para dele deduzir algo prático. Seu ponto forte está na distinção formal do que é bem e do que é mal, na medida em que são noções contrárias, em que uma deve ser seguida, enquanto a outra deve ser evitada. O caráter imperativo do faciendum reforça esta obrigatoriedade de procurar deduzir aquilo que deve ser feito, de procurar sempre o bem, ou seja, “bonum est quod omnia appetunt”.39 Então, nós podemos conhecer este primeiro princípio da razão prática e, até mesmo, reconhecer a obrigatoriedade de estar sob este princí-pio, embora ele não forneça qualquer dedução material para o agir , a não ser se for considerado este princípio formal como o próprio con-teúdo do agir , segundo determinações subjetivas daquilo que é bom ou mau.

Não basta conhecer o primeiro princípio da razão prática para o agir ético. É preciso um caminho que leve diretamente para a ordem prática. É preciso estabelecer uma ponte entre o formal, do primeiro princípio, com os conteúdos práticos. Como o bem é o que todos desejam e o que todos desejam naturalmente é o seu fim, então o bem exerce a função de fim e o mal, a função contrária, isto é, afasta, no caso do ho-

37 Esta interpretação também é fornecida por Josef Pieper, em uma de suas recentes obras

intitulada A realidade e o bem , conforme apresentou o Prof. Ludger Honnefelder, na con-ferência mencionada.

38 Esta idéia de uma ética autonôma, baseada em princípios e inclinações naturais , colo-ca, de certa maneira , a ética tomista como uma ponte entre Aristóteles e Kant , no to-cante à questão da fundamentação da Ética.

39 Cf. S. Th, I, II, q. 94, a. 2.

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mem, e o conduz para a realização de algo diferente de sua finalidade humana. “Quia vero bonum habet rationem finis, malum autem ratio-nem contrarii: inde est quod omnia illa ad quae homo habet naturalem inclinationem, ratio naturaliter apprehendit ut bona, et per consequens ut opere prosequenda; et contraria eorum, ut mala et vitanda.”40 Então aquilo que a razão prática apreende por inclinação natural é um bem. E este bem é o que é bom para o homem, o que o leva e possibilita a sua plena realização. É aquilo que por inclinação natural a razão natural-mente apreende como bem. O bonum é aquilo que, por natureza, o homem é inclinado a querer por ser um bem para ele. Aquilo que é considerado naturalmente pela razão, como bom para o homem e não para os ou-tros seres, embora por natureza existem inclinações comuns com os animais, ou, ainda, no sentido de um relativismo individual.

As inclinações naturais, para Tomás de Aquino, seguem a ordem dos princípios da lei da natureza. O que elas apresentam para a razão prática é um conjunto de regras, certas normas que estabelecem limi-tes, proibições, embora não apresentem conteúdo que possa determi-nar diretamente o que deve ser feito e o que deve ser evitado. Cabe, então, à razão prática determiná-las de um modo mais específico, con-forme as exigências do agir ético.

A primeira inclinação natural que está voltada para o bem não só do homem, mas de todas as substâncias (omnibus substantiis), é a con-servatio sui esse. Por natureza, o homem deseja e busca a conservação do seu ser. A segunda inclinação natural é a procreatio, que é comum também a todos os animais, na medida em que é garantia de preser-vação da espécie. Como terceira inclinação aparece conjugada a busca do conhecimento da verdade de Deus e dos homens com a sua con-servação, ou seja, a cognitio veritatis somada à conservatio.41 Mas essas inclinações naturais devem ser reguladas pela razão (secundum quod regulantur ratione)42. Então, a razão prática atua como uma força orde-nadora e reguladora com relação às inclinações naturais, para possibi-litar o juízo ético e o agir concreto. “Dicendum quod ratio, etsi in se una sit, tamen est ordinativa omnium quae ad homines spectant. Et, secundum hoc, sub lege rationis continentur omnia ea quae ratione ragulari possunt.”43 Isso pode ser melhor percebido naquelas situações de ação que são exemplos de agir ético e, no entanto, conflitam com alguma das inclinações naturais. Um exemplo disso é alguém mergu-lhar num turbulento rio para salvar uma criança e, fazendo isso, esta-

40 Ibidem. 41 Idem. 42 Idem. 43 Idem.

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ria agindo contrariamente à primeira inclinação da conservação do seu ser.

Conhecendo o primeiro princípio do agir e tendo as inclinações naturais, a razão prática vai poder chegar às proposições do agir mo-ral. E essa reflexão prática vai ser realizada em Tomás de Aquino , a exemplo de Aristóteles, trilhando a via do raciocínio dedutivo, ou seja, por um silogismo prático. A premissa maior é preenchida pelo primeiro princípio do agir, que é uma proposição universal. A premis-sa menor tem como conteúdo os princípios gerais apoiados nas incli-nações naturais. Em outras palavras, uma disposição ou o estabeleci-mento de princípios do agir são justos e moralmente válidos, se tive-rem a virtude da lei natural, se não discordarem do primeiro princípio da razão. “Rationis autem prima regula est lex naturae [...] Unde om-nis lex humanitus posita intantum habet de ratione legis, inquantum a lege naturae derivatur.”44

Para poder concluir o raciocínio, ou seja, para poder chegar a uma conclusão concreta e, mais especificamente, determinada, Tomás de Aquino aponta dois caminhos. O primeiro é per modum conclusionis, ou seja, pelo modo de conclusão como uma dedução da razão teorética; e o segundo caminho é per modum determinationis, isto é, por modo de determinação de alguns princípios gerais para algo mais concreto que, em última análise, são as leis inventadas pelos homens. “Sed sciendum est quod a lege naturali dupliciter potest aliquid derivari: uno modo, sicut conclusiones ex principiis; alio modo, sicut determinationes qua-edam aliquorum communium.”45 Em algumas linhas mais adiante, To-más de Aquino vai exemplificar esta a distinção dizendo, “Derivantur ergo quae-dam a principiis communibus legis naturae per modum con-clusionum: sicut hoc quod est non esse occidendum, ut conclusio qua-edam derivari potest ab eo quod est nulli esse faciendum malum. Quaedam per modum determinationis: sicut lex naturae habet quod ille qui peccat puniatur; sed quod tali poena puniatur, hoc est quae-dam determinatio legis naturae.”46

4 – Considerações finais

Com a lex humana, Tomás de Aquino sustenta que o homem define melhor e dá mais precisão na aplicação dos princípios da lei natural, frente à diversidade dos casos particulares dos indivíduos e das soci-edades. Se essas leis feitas pelos homens não estiverem concordes com

44 Idem , q. 95, a. 2. O destaque em itálico é nosso. 45 Ibidem. 46 Idem.

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a lei natural, então elas não são uma lei, mas apenas perversão da lei. Neste sentido, Tomás de Aquino aponta para a lei humana como mo-ralmente falível. Vai depender do homem agir moralmente ou não e, assim, praticar atos justos e seguir o caminho da realização de seu fim, enquanto está ordenado para o bem comum. E isto vai levá-lo à felici-dade perfeita. A base da moralidade é fornecida pela lei divina ex-pressa nos primeiros princípios da lei natural.

É possível perceber que essa concepção de lex naturalis fornece a Tomás de Aquino um instrumento vigoroso na estruturação de seu sistema ético. Este conjunto de princípios está como base de fundo da ética das virtudes e, também, por outro lado, das determinações con-tingentes que se formam concretamente na história, isto é, como éthos histórico. E neste sentido, a ética das virtudes tomista é uma ética que está fundamentada em princípios. Portanto, é possível tratar de ques-tões e discussões éticas contemporâneas a partir da interpretação da complexa e importante noção da lex naturalis tomista.

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/ O problema do outro ou a percepção do próximo em Ortega y Gasset 330

LINO CASAGRANDE

Universidade de Caxias do Sul

O problema do outro ou a percepção do próximo em Ortega y Gasset

1 – O estado de natureza adâmico

A alegoria da expulsão de Adão e Eva do paraíso terrestre, por causa do pecado original, serve-nos como hipótese de trabalho para enfocar tanto o problema da individualização, como a questão relativa à percepção do próximo. Não se trata, portanto, de negar a existência de um plano divino que culmina com a criação do universo, nem de desmerecer o relato bíblico da epopéia humana. Atemo-nos tão so-mente ao aspecto fenomênico, a partir do qual muitas são as interpre-tações possíveis. As teorias da evolução das espécies não tomam como paradigma o relato da criação e, não obstante, não negam em bloco o essencial do texto sagrado. O que colocam em questão, isto sim, é o problema da origem e da evolução do homem e das espécies e não da existência de um princípio vital surgido do nada. Esta reflexão é bem mais modesta e não afeta em nada o caráter de mistério que encerra tanto a existência da vida, como a do universo e a do próprio homem.

No estado originário, Adão encontrava-se numa relação indistinta com o resto da natureza. Vivia num estado de confusão, isto é, numa totalidade indiferenciada. O eu adâmico compreendia todas as coisas em seu derredor. O outro era ele mesmo , isto é, tudo era Adão sem distância com as coisas que o cercavam. Esta solidariedade originária configurava a ausência do ipso do si mesmo que caracteriza uma relação dual entre um eu e um tu, ou a consciência da alteridade (alter ego).

O pecado ou expulsão do paraíso, neste caso, significa uma ruptu-ra e o conseqüente surgimento da individualidade. O sentimento de estranheza que disso decorre, faz com que Adão se sinta como um outro no meio de tantas coisas outras que não conhece. Esta certeza sensível, dirá Hegel, dá início à série de alienações e à tentativa de-sesperada para voltar ao estado originário, estado do qual fora expul-

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so. O sentimento de perda desencadeará a seqüência de saltos dialéti-cos no sentido de alcançar a totalidade perdida. A partir daí, em lin-guagem hegeliana, Adão passará a viver num estado de consciência infeliz. Mas o processo de individualização, ou o crescente despren-dimento dos laços originais com a natureza, parece ter atingido o seu ápice na história moderna, nos séculos da Reforma e na atualidade. Isso, contudo, não significa que o ciclo de alienações tenha acabado. Pelo contrário, melhor seria dizer que a totalização hegeliana trazida para o âmbito do indivíduo , está longe de concluir o processo.1 O senti-mento de solidão, de ansiedade e melancolia acusa a presença da fini-tude radical da criatura humana.

Esta falta ou incompletude tem como corolário a necessidade de um correlato intencional, visto que a consciência, pelo seu caráter fini-to, jamais será consciência de si mesma.2 Por outro lado, a exigência do outro, de companhia são sentimentos que denunciam a existência, na criatura humana, de um a priori que caracteriza a condição de pos-sibilidade para o social ou para a sociabilidade. Adão já é, potencial-mente, um ser social, sem o que jamais teria sentido falta de uma companheira. Paralelamente à pergunta pelas condições de possibili-dade da percepção do próximo, seria interessante perguntar também pelas condições de possibilidade de sua aceitação. O relato bíblico nos revela, outrossim, que, desde cedo, o outro é visto com certa estra-nheza, e a relação nem sempre foi pacífica. O primeiro momento em que este fenômeno acontece foi o encontro infeliz entre Caim e Abel, cujo modelo só é contrastável com o exemplo do bom samaritano. A rigor, entre Caim e Abel não houve uma relação intersubjetiva, mas um cho-que entre dois corpos movidos por forças imponderáveis.

O relato bíblico nos conta, ainda, que, após terem comido o fruto proibido, Adão e Eva perceberam que estavam nus e sentiram vergo-nha um do outro. A nudez se constitui tal quando somos vistos ou quando supomos que alguém nos está olhando. O olhar nos despe da ingenuidade originária e acusa a presença de um ente que perturba a nossa tranqüilidade. Do outro, contudo, Adão pouco ou quase nada podia saber. Não deixa de ser, ainda, um isso sem contornos, sem ip-seidade. A consciência do tu supõe a consciência do eu e do outro; mas o outro, dirá Ortega, é uma perspectiva, um ponto de vista e nunca sabemos o que esperar dele, tanto quanto de nós mesmos.3 É que

“cada um está sempre em perigo de não ser ele mesmo, único e intransfe-rível que é. A maior parte dos homens atraiçoa continuamente esse ele

1 Cf. HEGEL, Fenomenologia del espiritu. 1971, p. 63 2 Cf. HUSSERL , Edmund. Ideas relativas a una fenomenología pura y una filosofia fenomeno-

lógica . 3 ed., 1986, p. 198. 3 ORTEGA y GASSET, José. O homem e a gente. 1973, p. 185.

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mesmo que está esperando ser, e, para dizer toda a verdade, nossa indi-vidualidade pessoal é uma personagem que não se realiza nunca de to-do, uma utopia incitante, uma lenda secreta que cada qual guarda no mais íntimo do peito.”4

Ao contrário, do cavalo posso esperar uma reação bem-determinada, assim também como do gato, isto é, uma patada ou uma unhada respectivamente. Da criatura humana nunca sei de suas inten-ções, de seu intus, de suas premeditações. Em última instância, não temos acesso à sua interioridade, dando lugar, em face disso, ao sur-gimento da desconfiança; mormente quando duas pessoas vivem por algum tempo afastadas uma da outra. No reencontro, uma não sabe mais da outra tanto quanto antes e será necessário um certo tempo para refazer a familiaridade. Parece ser esta a razão pela qual o estra-nho deve ser apresentado por uma pessoa conhecida, que afiança a aproximação. O gesto do cumprimento, estendendo a mão direita, indica que, quem se aproxima, vem desarmado e em paz.

Percebe-se, a partir disso, que a pergunta pela condição de possibilidade da percepção do outro não esgota a problemática da relação interpessoal. Ademais, fica intata a questão da estrutura do encontro que, na maior parte das vezes, é conflitiva, ou potencialmente conflitiva. Em se tratando de pessoas influentes, como generais, presidentes da república, artistas famosos, etc., nunca se apresentam ao público a não ser escoltados por um forte contingente de segurança, o que mostra a dúvida permanente e o estado de alerta em que se encontra a criatura humana nas mais diversas situações. É por isso que a máxima cristã Amai-vos uns aos outros jamais conseguiu dispensar as armas e muito menos os exércitos. O homem é o único ser que se autopredica e faz panegíricos de si mesmo. A tendência narcísica e egoística o tem levado, hipocritamente, a esconder sua própria intimidade. O amor à humanidade não tem passado de uma manifestação utópica e serviu de fachada como forma de coesão de grupos, clãs ou classes econômicas. Não foi por outro motivo que Hobbes propôs a instauração do Leviatã. No Do cidadão diz:

“No estado de natureza, todos os homens têm o desejo e vontade de ferir, mas que não procede da mesma causa e, por isso, não deve ser condena-do com um igual vigor. Pois um, conformando-se àquela igualdade natu-ral que vige entre nós, permite aos outros tanto quanto ele próprio requer para si [...]. Outro, supondo-se superior aos demais, quererá ter licença para fazer tudo o que bem entenda, e exigirá mais respeito e honra do que pensa serem devidos aos outros [...]. No segundo homem, a vontade de ferir vem da vã glória e da falsa avaliação que ele efetua de sua própria

4 Id., Ibid., p. 64.

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força; no outro, provém da necessidade de se defender, bem como à sua liberdade e bens, da violência daquele.”5

É bem verdade que , se com Hobbes, admitirmos que o homem é mau por natureza, até este escrito será de pouca valia. Além do que , as pretensões pedagógicas de estruturar um caráter social nas pessoas será inútil. Quando muito, poder-se-á tentar a domesticação, aplican-do técnicas especiais de estímulo e resposta do tipo pavloviano ou skin-neriano. Contudo, a história nos tem revelado que a maior parte das relações entre indivíduos e estados tem sido conflitiva, para não dizer catastróficas. De outra parte, nos sistemas econômicos, até agora en-saiados, não se fez outra coisa que não estimular a competição, ou seja, o egoísmo. Até mesmo Kant não escondeu a sua preocupação relativamente à so-ciedade burguesa. O burguês é, na sua ótica, um indivíduo egoísta e é em função disso que , na sua ética, leva em conta o homo fenomenon e o homo noumenon. O homo fenomenon é um homem burguês cuja única preocupação é a felicidade. Neste sentido, Kant aceita plenamente a antropologia de Hobbes: o homem é um lobo para o homem. O burguês entende por felicidade: poder, riqueza e honra6.

“Desta maneira”, diz Kant, “o que o homem entende por felicidade, e o que é efetivamente seu fim natural último (não o fim da liberdade), não seria por ele nunca alcançado; pois a natureza não é tal que, tratando-se de posses e de prazeres , se detenha saciada num ponto determinado.”7

Ora, diante de uma mentalidade acima caracterizada, bem se pode avaliar a natureza do encontro, se comparado ao exemplo do bom sa-maritano. Com certa boa vontade nos leva a afirmar que serão necessá-rios alguns séculos de humanização para que a questão ética do outro se torne problema enquanto outro. O ensimesmamento em que o pri-meiro homem se encontrava não lhe permitia sossego para refugiar-se em sua intimidade como fez Descartes, para dali organizar o mundo. Eva, quando muito, não passava de um pedaço do mundo, mas não uma subjetividade. Para poder dar-se conta do outro enquanto outro, supõe que possa suspender a sua ocupação direta com as coisas e me-ter-se dentro de si, atender a sua própria intimidade. Em outras pala-vras, ele tem que poder ensimesmar-se.

O homem vive em duas instâncias reversíveis: ensinamento e altera-ção. O estado de alteração nos diz Ortega, “é aquele estar constantemente alerta, [...] em perpétua inquietação, olhando, escutando todos os sinais que lhes chegam de redor [...]”.8 Adão, provavelmente, não era ainda, com a verdadeira acepção da palavra, 5 HOBBES, Thomas. Do cidadão. 1992, cap. 1, p. 33. 6 HELLER, Ágnes. Crítica de la ilustación, 1984, p. 40. 7 KANT, Apud Ágnes Heller, Crítica de la ilustración. 1984, p. 40. 8 ORTEGRA y GASSET, José. O homem e a gente. 2. ed., 1973, p. 56.

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era ainda, com a verdadeira acepção da palavra, um homem. É que o poder de subtrair-se ao mundo e o de ensimesmar-se não são virtudes dadas de antemão. Nada que seja substantivo foi presenteado ao ho-mem, diz Ortega.9 Aquele estado de estupor adâmico deverá ser su-perado e conquistar uma postura de admiração negativa crítica na qual o mundo é posto e mantido à distância. O voltar-se para dentro de si, porém, exige esforço e deliberação. É muito mais fácil manter-se no estado natural, isto é, manter uma postura na qual como que as coisas se resolvem por si mesmas. É ao que o homem moderno está submetido pela técnica ou engenharia da manipulação.

Quando é que se poderia imaginar que um dia se pudesse fazer um cão salivar? “Os jovens de hoje”, diz Rollo May, “renunciaram, em grande parte, à ambição de destacar-se, de chegar ao alto [...]. Dese-jam ser aceitos por seus iguais, mesmo ao custo de desaparecerem, ficarem absorvidos pelo grupo.”10

É mais cômodo viver identificado com a massa ou no anonimato, no mundo de se, onde não há a necessidade de responder pelos seus atos. O das Man heideggeriano caracteriza muito bem o modo de ser impessoal na vivência inautêntica. Neste estado, é a gente que diz, acha, faz, etc. No modo próprio de ser, no meter-se dentro de si, a vida é dramática, e o sentimento de incompletude que a acompanha induz, facilmente, o indivíduo a aceitar sem resistência a gaiola de ouro ar-quitetada pela grande máquina da massificação.

Do acima exposto se infere que , o fato de o pai da humanidade ter-se sentido só e reclamado uma companhia, revela nele a presença das condições de possibilidade da convivência, isto é, já nascera socializa-do. A pedra não tem condições de possibilidade para perceber outra pedra; os animais inferiores, conquanto vivam em bandos, mantêm uma relação de indiferença entre eles. As lobas amamentam tanto os filhotes de sua espécie como as crianças. Somente nos antropóides superiores é que se percebem laivos de solidariedade. A diferenciação e a conseqüente percepção da alteridade supõem um processo evoluti-vo de cortes progressivos do cordão umbilical, tanto com a natureza bem como com os genitores.

A relação simbiótica é um fato constatável mesmo numa fase alta-mente desenvolvida da espécie humana. Para atingir a fase madura, o indivíduo necessita de vários cortes do cordão umbilical. Não se nasce homem, é preciso conquistar o ser homem. Laboro me ipso, disse Santo Agostinho. O homem é uma construção do homem; mas ele pode per-der-se e voltar à barbárie. Em sua obra póstuma El hombre y la gente, Ortega diz que: “[...] diversamente de todas as demais entidades do

9 Id., Ibid., p. 63-66. 10 MAY, Rollo. O homem à procura de si mesmo. 13. ed., 1987, p. 19.

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universo, o homem não está, não pode nunca estar seguro de que é, com efeito, homem, como o tigre e o peixe , de ser peixe.”11

Da mesma forma, com relação ao pensamento, a rescogitans de Descartes não é uma qualidade constitutiva e inalienável do ser hu-mano. O pensamento vem se fazendo, pouco a pouco, graças a um esforço milenar sem ter conseguido a sua plena realização. De fato, se a plenitude do pensamento tivesse sido atingida, o homem já não mais pensaria. Ora, por uma questão de lógica, isso significa que o pensa-mento humano pode evoluir, bem como degenerar. A vida humana é essencialmente incerteza, e a faculdade de pensar não dispõe de um automatismo que possa dispensar um esforço contínuo para preservá-lo e desenvolvê-lo.

Não é por força de uma entidade mística, por saltos dialéticos que a história se faz. A Idéia Absoluta não faz história, mas o faz a ação efe-tiva dos homens. Da mesma forma, de nada adianta invocar este ou aquele aspecto do fazer humano como determinante do acontecer. São os indivíduos concretos, nas suas ações concretas, que determinam as mudanças. Kierkegaard afirma que “um princípio adequado da mu-dança não pode ser uma premissa lógica, mas uma causa real, e que a causa última do devir é uma causa livre”.12 De fato, o que é necessário não pode sofrer mudanças, pois o modo de ser das existências tempo-rais é contingente.

Daí que no lugar da Idéia Ortega coloca a Vida, porque viver é sa-ber a que ater-se, e, neste sentido, o homem é, antes de mais nada, ação. “Não vivemos para pensar, mas pensamos para conseguir subsis-tir ou sobreviver.”13 O pensamento não é um dom; ao contrário, ele é uma penosa fabricação e uma conquista sempre instável e fugidia. Na Idéia, para Hegel, estavam todas as possibilidades que compreendem a natureza, estas possibilidades estão no homem. “Os acontecimentos da história, conforme Kierkegaard, não sucedem segundo um processo dialético necessário, mas sim sob o império das vontades livres.”14

2 – O sentimento de totalidade no pensamento antigo

O homem grego mantinha uma relação tão solidária com as coisas que, em momento algum, lhe ocorreu levantar a mínima suspeita da veracidade de sua convicção. Ao contrário do idealismo moderno , o realismo antigo põe a realidade do mundo como independente do pensamento. O ser, num sentido estrito, é o ser independente, o ser 11 ORTEGA y GASSET, José. O homem e a gente. 2. ed., 1973, p. 63. 12 URBANOZ, Theofilo, O.P. Historia de la filosofia. 1975, p. 439. 13 ORTEGA y GASSET, José. El hombre y la gente. 1983, v. 7, p. 421. 14 URBANOZ, Theofilo, O.P. Historia de la filosofia, 1975, p. 440.

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por suas próprias forças. Um exemplo típico pode ser encontrado em Parmênides: o ser é e é necessário que seja; o não ser não é. Daí, que pensar e ser são o mesmo; visto que o pensamento não pode pensar o nada, só poderá ser pensamento de algo, neste caso, pensamento do ser. Com relação à verdade, de nada valeria a suspeita de quem em lugar do ser se manifestasse uma aparência. Seguramente a resposta seria: a verdade é ser, a aparência é doxa. A vida do ser é a verdade (razão), a via da opinião é a experiência. A mobilidade heraclitiana desemboca no não-conhecimento, pois aquilo que é não pode deixar de sê-lo: o ser é, e o não-ser não é.

É dentro desse espírito que o realismo das idéias platônico se ori-gina. Dado que, não obstante a necessidade de não-contradição quan-to à questão do ser e o não ser, Platão busca uma saída, apelando para um terceiro termo, qual seja, um mundo no qual a realidade é sempre idêntica a si mesma e serve de modelo para as coisas que nos cercam. A ordem que impera no mundo sublunar é um decalque imperfeito de um mundo perfeito. Mesmo assim e embora as coisas deste mundo não possuem seu ser em si mesmas, não são nada. Não são ser em sentido pleno, mas são e se impõem a nós. De qualquer forma, o ho-mem antigo conserva, no essencial, a tessitura do homem primitivo. Como diz Ortega, “vive desde as coisas e só existe para o Cosmos dos corpos”.15 Casualmente poderá conseguir vislumbres da intimidade, contudo, são sinais instáveis e, com efeito, fortuitos. Há, porém, uma diferença entre ele e o homem primitivo propriamente dito. É que ele não se contenta em atender vitalmente ao mundo exterior, mas filoso-fa sobre ele, elabora conceitos que transcrevem em pura teoria essa realidade que encontra diante de si.

As idéias que o homem grego se forma são moldadas por coisas corpóreas exteriores. A palavra idéia mesma significa figura visível, as-pecto. Dado que , além dos corpos, há na natureza movimentos e mu-danças dos corpos, o home grego precisa pensar de onde procede este movimento, se é imanente aos próprios corpos, ou se provém de fora deles. Embora perceba que o impulso e o movimento não são matéria, considera-os como matéria sutilizada em espectros. Desta forma, o animal é constituído de matéria e movido por algo oculto dentro dele, chamado alma. Esta alma, contudo, nada tem de intimidade: é interior somente no sentido de que está oculta, submersa no corpo e, portanto, invisível. É bem verdade que , para Aristóteles, a alma humana tem potências que a alma animal não possui; e que, além da alma vegetati-va, o homem é dotado de uma alma racional. Não obstante, não há indícios de que essa alma constitua o princípio da intimidade, mas

15 ORTEGA y GASSET, José. Qué es filosofia? 1983, Lección VIII, v. 7, O.C., p. 380.

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princípio cósmico da vitalidade corporal e princípio do movimento e mudança. Segundo Ortega,

“a lo que más se parece la nocion griega del alma es al poder oculto, pero en sí mismo externo, que ingenuamente suponemos dentre del imán para explicar las atraciones que su cuerpo visible ejecuta.”16

É diante disso que Ortega considera uma inocência histórica falar em espiritualismo em Aristóteles, pois, introduzindo no espírito aristo-télico nosso conceito moderno de consciência, torna-o ininteligível. É que o grego não descobriu a alma partindo da visão íntima de si mesmo, mas encontra-se fora como uma entidade quase corporal. 17 Em outras palavras, ele ainda não se desentendeu das coisas do mundo para dar atenção à interioridade. A alma grega é como uma chapa fotográfica orientada para fora, no sentido de que as imagens exterio-res nela se imprimam. Ao contrário do homem moderno , o homem antigo vivia ainda junto ao irmão animal e, como ele, fora de sim mesmo. O homem moderno despertou da inconsciência cósmica, to-mando posse de si mesmo: descobriu-se.

É nos diálogos platônicos onde aparece bem caracterizada a visão orgânica da totalidade. O mundo é um grande animal vivo, ou um grande útero, cujas partes estão ligadas por uma ordem que se reflete, sobretudo, na polis. A organização da sociedade não está na depen-dência de uma convenção ou premida pela ameaça da maldade dos indivíduos; o estado de natureza não é sinônimo de selvageria no sentido hobbesiano. Há uma ordem objetiva da qual a sociedade é o reflexo. Nesse caso, “o homem é livre, enquanto efetivador em sua vida histórica, de sua própria essência, ela mesma imutável, que esta-belece o lugar que ele ocupa no cosmos, a ordem imutável do real.”18

Ora, se a essência universal e imutável subsume todos os indiví-duos a uma mesma ordem, então a autonomia, entendida pelo pensa-mento moderno , fica totalmente prejudicada. A pseudoliberdade que esta compreensão encobre se torna evidente, quando se ordena que cada qual pode tomar qualquer caminho, desde que conduza ao mes-mo ponto. Por outro lado, o diálogo que se instaura entre os indiví-duos sofre uma torção, visto que não se fala ao outro enquanto outro, mas a uma alma, e esta é uma alma universal. Esta questão fica paten-tizada quando Sócrates e Alcebíades conversam entre si sobre o co-nhecimento de si mesmos. Sem demora aparece a questão do que seja o conhecer-se a si mesmo. O homem é o corpo ou a alma, ou o conjun-to corpo e alma? Evidentemente não é o corpo , porque recebe ordens

16 Id., Ibid., p. 380-381. 17 Id., Ibid., Lección VII, v. 5, p. 382. 18 OLIVEIRA , Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. 193, p. 31 e ss.

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e não as dá; não é, também, o conjunto de alma e corpo, visto que uma de suas partes, não participando do mandato, é absolutamente impos-sível que seja tal conjunto quem exercita a ação de mandar. Logo, o homem é a alma, e a alma é o homem.

Segundo isto, a alma fala e, como a alma faz parte da alma univer-sal, não fala a um tu propriamente dito. No Sofista de Platão (263-e), está consignado o seguinte: “Pensamento e discurso são, pois, a mes-ma coisa, salvo que é ao diálogo interior e silencioso da alma consigo mesma, que chamamos pensamento.”19 Não há, a rigor uma diferença taxativa entre o eu e o tu, pois o pensar não está ainda visto desde dentro, mas como um fato cósmico semelhante ao movimento dos corpos. O pensar grego não é um pensar que se sabe; vai reto ao obje-to e se materializa no verbo. Tanto isto é verdade que Platão nunca usa a palavra eu; em seu lugar usa o nós. Não sabe da intimidade que é a solução e, para o homem grego, esta palavra (solidão) não constava em seu léxico. Este estado de espírito não chegou a angustiar o hele-no.

3 – A descoberta da subjetividade

Não cabe aqui analisar as vicissitudes históricas que levaram o homem a subjetivar a razão, mas sim traçar a diferença, quase dramá-tica, que caracteriza o modo de pensar da modernidade. Baste-nos salientar que a solidariedade cósmica, em que se encontrava o mundo grego, foi rompida, irremediavelmente, no século XVII, por um ho-mem chamado Renê Descartes. Trata-se de um marco histórico irre-versível, determinando, com isso, um redimensionamento radical no modo de as pessoas se relacionarem. A desconfiança básica que se instaura, a partir daí, culmina no surgimento de uma necessidade premente de dar conta do outro, do “alter ego”. A confiança se trans-muta em suspeita e dúvida. No âmbito do conhecimento, propriamen-te dito, há que se encontrar um ponto de partida indubitável, não mais fazendo apelo a uma razão universal, mas a um princípio eviden-te que, de cuja negação, põe em risco a própria racionalidade.

Pois bem, Ortega parte da idéia de vida como realidade radical; não entendida, porém, em sentido geral, mas a vida de cada qual e intransferível. Não se trata, portanto, do conjunto de fenômenos or-gânicos que a biologia chama de vida. O sentido que Ortega lhe dá é biográfico e diz respeito ao existir humano. Nessa direção, cada um de nós sabe o que é a vida pela própria experiência. Essa “experiência de vida, ou saber vital, é um saber prático e não uma reflexão teórica 19 Platão. Sofista. 1955, 263-e, p. 254.

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em que se trata de definir a vida e descobrir sua estrutura ou sua es-sencial anatomia.”20

A única realidade inquestionável com a qual cada um conta, mais do que com as outras coisas do mundo, é o simples fato de estar vi-vendo. Todas as demais coisas são problemáticas, questionáveis. Não é a razão, ou o cogito a realidade radical, pois a vida não está supedi-tada à razão, mas sim esta àquela. Este ponto de partida, isto é, a vi-da, minha vida e a de cada qual, Ortega a denomina de Raciovitalismo e, mais tarde, Razão histórica.

O caráter pragmático da vida consiste no fato de que não se trata de um dado pronto e acabado, mas um fazer, um quefazer, ocupação. O ser homem implica decidir o que irá ser no próximo instante. Pode-rá ganhar-se ou perder-se, dependendo da escolha que fizer. É que o que nos é dado quando a vida nos é dada não é mais que um quefa-zer. Este quefazer não pode ser qualquer, mas o que se deverá fazer, seguindo nossa verdadeira vocação. Para Ortega, portanto, o homem é um perpétuo fazer-se homem. Não se trata de uma vida puramente animal que conta com um repertório pré-fixado; ao contrário, a vida é drama e, sobretudo, solidão.

Na obra póstuma que leva o título El hombre y la gente, Ortega criti-ca o idealismo de Descartes, para o qual não há mais realidade que as idéias do meu eu. As coisas, o mundo, meu corpo mesmo seriam só idéias das coisas, imaginação de um mundo, fantasia de meu corpo. Ortega não concorda com a postura idealista cartesiana e afirma:

“No, la vida no es existir solo mi mente, mis ideas: es todo lo contrario. Desde Descartes el hombre occidental se había quedado sin mundo. Pero viver significa tener que ser fuera de mí, en le absoluto fuera que es la cir-cunstancia o mundo: es tener quiera o no, que enfrentarme y chocar cons-tante, incesantemente con cuanto integra ese mundo: minerales , plantas, animales , los otros hombres.”21

O termo circunstancia que aparece, na citação acima, é um termo-chave para a compreensão do pensamento de Ortega y Gasset, pois designa tudo o que há no contexto em que se vive. Nele se encontram todas aquelas coisas que oferecem resistência, que são favoráveis ou não, que oferecem facilidades ou dificuldades. É nela que se encontra a linguagem através da qual se pode expressar o pensamento e comu-nicá-lo aos outros. Encontram-se sinais que denunciam a presença de alguém que não é um mineral nem pedra e muito menos um ser inerte. Não se trata, portanto, de uma fantasmagoria que a mente segrega.

20 ORTEGA y GASSET, José. Qué es filosofía? 1983, Lección XI , v. 7, O.C., p. 421. 21 ORTEGA y GASSET. El hombre y la gente, 1983, v. 7, O.C., p. 107.

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O que encontramos ao nascer não é o nosso pensar, não é uma rea-lidade posta por nós; um eu existindo dentro de si mesmo sem janelas para o mundo. O que o eu encontra é um tu que o constitui como um eu; quer dizer, não é o eu que constitui o tu. Numa palavra, o primei-ro ente que encontramos é a nossa genitora. No existir , a vida não é só nossa mente, nossas idéias; não se vem ao mundo sem mundo. É bem verdade que não aparecemos na vida fundidos numa totalidade indiferenciada, pois

“conforme vamos tomando posesión de la vida y haciéndonos cargo de ella, averiguamos que, cuando a ella vinimos , los demás se habíam ido y que tenemos que vivir nuestro radical vivir [...] solos , y que sólo en nues-tra soledad somos nuestra verdade.”22

A solidão, contudo, não significa que não haja mais nada além do ser do homem; pelo contrário: “hay nada menos que el universo con todo su contenido [...] e si no existiese más que um único ser, no po-dria decirse congruentemente que está solo.”23 O sentido de solidão, no contexto orteguiano , refere-se ao fato de que a intimidade, o intus, é a condição pela qual se instaura a exigência de companhia e é por isso que “quisiéramos hallar aquel cuya vida se fundiese íntegramente, se interpenetrase con la nuestra”.24 As tentativas que fazemos para mini-mizar este sentimento se traduzem, num primeiro momento, na busca da amizade; mas o intento supremo entre eles é o que chamamos de amor.

Em Sobre la expresión fenómeno cósmico, onde se percebe de forma acentuada a influência de Max Scheler, Ortega nos diz que o homem não é só um corpo. Atrás dele se esconde uma alma, um espírito, uma consciência, etc. Quando se fala de corpo , deve-se levar em conta a diferença específica que há entre o mineral e a carne. Nossa atitude diferente entre a carne e o mineral consiste em que , ao ver a carne, prevemos algo mais do que é visto de imediato; a carne se nos apre-senta, desde logo, como exteriorização de algo essencialmente inter-no. Em outras palavras, o homem exterior está habitado por um ho-mem interior. Fundamentalmente, é diante deste fato que nossa atitu-de diante do outro, como carne, se diferencia da postura que adota-mos diante de um animal. É que, de imediato, prevemos mais do que vemos. A carne se apresenta como a exteriorização de algo essencial-mente interno.25

Se é verdade que o corpo humano é expressivo e se constitui como uma espécie de semáforo, então, conhecemos primeiramente os gestos 22 Id., Ibid., p. 108. 23 Id., Ibid., p. 104. 24 Id., Ibid., p. 105 e seg. 25 Id., Ibid. Sobre la expresión fenómeno cósmico . 1925, v. 2, p. 577.

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dos outros e não os nossos. O próximo se nos apresenta com a mesma simplicidade e de golpe como a árvore, a rocha e a nuvem. Embora, no âmbito deste trabalho , não nos seja possível aprofundar a questão como é devida, na obra El hombre y la gente, Ortega nos diz que , diante dos outros homens, sentimos uma leve inquietude como se fosse uma fina onda elétrica que nos perpassa a medula. Esta idéia fica corrobo-rada na expressão de Nietzsche e transcrita pelo autor e reza: “Senti-mo-nos tão tranqüilos e à vontade na pura natureza, porque esta não tem opinião sobre nós”.26 Antecipando o olhar sartriano Ortega nos diz que vemos que o outro nos olha.

“Los ojos, ventanas del alma nos nuestran más del otro que nada porque son miradas, actos que vienem de dentro como pocos. Vemos a qué es a lo que mira y como mira. No sólo viene de dentro, sino que notamos desde qué profundidad mira.”27

Conquanto possamos esperar uma resposta determinada do ani-mal, não se trata de uma correspondência. Do animal não temos ne-nhuma percepção de um intus, não percebemos, sequer, algo expressi-vo que denuncie uma interioridade. Ele nos responde, mas não cor-responde. O outro homem como tal, isto é, não só seu corpo e seus gestos, mas também seu eu e sua vida, nos são tão realidades como nossa própria vida. Neste sentido é que podemos falar de reciproci-dade. O próprio olhar, em muitos casos, dispensa a palavra. Porém, a reciprocidade de uma ação, a interação, só é possível porque, em cer-tos caracteres gerais, é como um eu: pensa, sente, quer, tem seus fins, tanto quanto um de nós. Tudo isso é passível de ser descoberto, por-que, em seus gestos e movimentos, notamos que nos responde, que nos corresponde.

Cabe salientar, contudo, que o outro é uma perspectiva, quer di-zer, é um ponto de vista sobre o mundo e, como tal, à sua interiorida-de mesma não tenho acesso. Ninguém pode ocupar o lugar do outro, tanto quanto o outro não tem possibilidade de ocupar o nosso lugar. Na realidade, nossa relação é de um aqui e de um ali, dois pontos ir-redutíveis que mantêm uma relação de distância e, ao mesmo tempo, a condição da reciprocidade. Este fato, porém, traz consigo uma pro-blemática insuspeitável que, em face do pouco espaço, não poderá ser desenvolvida.

De qualquer forma, ao outro não temos acesso através de um ra-cio-cínio analógico e, muito menos, pela objetivação. De um modo geral, as ciências chamadas objetivas captam uma deformidade que nada tem a ver com a essencialidade humana. O outro não se reduz a

26 Id., ibid., El hmbre y la gente. 1983, v. 7, p. 137 e ss. 27 Id., ibid., p. 139.

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uma teoria; é preciso, empaticamente, colocar-se do lado de lá, viven-ciar o que o outro sente, vê e sofre. Mas, se, diante do que foi exposto acima, o outro ocupa um aqui irredutível, podemos manter a ilusão de alcançar a sua intimidade? Pelos métodos usualmente usados é evi-dente que não. Se esperarmos conseguir esta façanha através dos con-tributos das ciências, o que podemos obter serão alguns dados quanti-ficados e puras abstrações.

Tornou-se senso comum que só é válido aquilo que pode ser pro-vado. Neste sentido, só as proposições científicas conseguem alcançar univocidade e, por isso, são significativas. Da realidade humana en-quanto tal não há, em sentido estrito, ciência. Por paradoxal que isto pareça, aquele que faz ciência e tem a pretensão de conhecer as coisas do mundo, não se conhece. Deixando de lado todas as questões que isso envolve, podemos afirmar que a ciência não tem nenhuma via de acesso privilegiada e, se existir alguma, esta será através da amizade profunda ou pelo amor. Em face disso, será necessário afastar os pre-conceitos que se interpõem e deformam a relação de amizade, para que o outro seja visto como um ser de gratuidade e não como um ente economicus, um objeto de trabalho ou um meio para qualquer fim ego-ísta.

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LUIS ALBERTO DE BONI

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Significado e limites do pensamento aristotélico na prova da existência

de Deus de Duns Scotus

No presente trabalho examino o modo como Aristóteles foi recebido na Escola Franciscana. Para tanto, tomo a prova da existência de Deus de Duns Scotus como caso a ser analisado. Na primeira parte, procuro situar o autor no contexto intelectual de sua ordem religiosa. Na se-gunda, mostro, à guisa de exemplo, a forma como Scotus, para provar a existência de Deus, assume a teoria aristotélica de que nosso conhe-cimento inicia-se a partir dos sentidos. Na terceira parte, aponto para o início de um longo debate, acontecido a partir do final do século XIII, a respeito dos limites do saber filosófico ao se tratar do conheci-mento de Deus.

1 – Duns Scotus e a guinada aristotélica na Escola Franciscana

Entre a morte de Boaventura e a de Duns Scotus , passaram-se so-mente 34 anos. Entretanto, neste tempo ocorreu uma guinada intelec-tual dentro da ordem religiosa a que ambos pertenciam, de propor-ções bem maiores do que permite supor a alcunha abrangedora de Escola Franciscana. Entre os dois pensadores interpõe-se toda uma vi-são de mundo, que se deixa resumir em um nome: Aristóteles. Foi ele o divisor de águas de uma época. O modo como foi recebido na Idade Média permitiu um amplo espectro de interpretações qualitativamente diferentes. Assim, foi possível aceitá-lo e, ao mesmo tempo, permane-cer rigorosamente preso ao clássico esquema sapiencial agostiniano , como também foi possível recebê-lo dentro de uma nova concepção de saber, que levava consigo também uma nova visão de mundo. Boa-ventura pertence ao primeiro momento, Scotus, ao segundo.

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Boaventura conheceu relativamente bem Aristóteles, e cita-o cerca de 930 vezes em sua obra. Trata-se, porém, de um Aristóteles visto com os olhos neoplatônicos da tradição cristã. Como bem o observam os padres editores de Quaracchi, as inúmeras citações do filósofo “servem mais para provar e ornamentar uma conclusão já encontrada alhures, do que para chegar a uma nova solução de problemas a partir da doutrina peripatética.”1 No mesmo sentido observa E. Gilson: “Desde seu primeiro encontro com o pensamento pagão de Aristóte-les, Boaventura creu havê-lo compreendido, julgado e superado.”2

Algo diferente acontece com Duns Scotus. Até mesmo a análise de aspectos externos de seus textos aponta para as mudanças que se in-troduziram. Assim, por exemplo, é ele um dos primeiros entre os franciscanos que, como teólogo, compõe comentários à obra de Aris-tóteles. O mesmo acontece se se compara o modo como ele e Boaven-tura citam a obra do pensador grego, ou como avaliam determinadas formas de platonismo, próximas da mística, das quais o Pseudo-Dionísio é o mais significativo representante. Boaventura e Scotus pertencem a dois mundos diferentes com diferentes projetos filosófi-co-teológicos. O que congrega pensadores tão distantes entre si numa mesma Escola Franciscana não é, pois, o parentesco de idéias, e menos ainda o fato de pertencerem à mesma ordem religiosa. De fato, eles não se encontram unidos de forma imediata. O elo primordial de liga-ção entre eles constitui-se na relação que cada um deles possui para com uma terceira pessoa, isto é, na consonância com o espírito de Francisco de Assis, o fundador da ordem. 3

Com razão, porém, poder-se-ia observar que o principal interlocu-tor do Doctor Subtilis não é propriamente Boaventura, mas Henrique de Gand , em cuja obra o agostinismo e o neoagostinismo haviam sido retomados e reformulados. Se , pois, para Scotus, Boaventura poderia talvez parecer superado, o mesmo não acontecia com Henrique de Gand: o diálogo com este constituía-se num debate com o que de mais importante e de válido ainda havia dentro da tradição franciscana. A esta objeção pode-se responder que o debate com Henrique de Gand acontecia à luz da filosofia de Aristóteles e de seus comentadores ára-bes. Scotus discute com o Gandavo a respeito do texto e do pensa-mento de Aristóteles. Seu mais importante companheiro de diálogo é sempre o pensador grego, lido com a consciência de quem percebeu muito bem que o trabalho teológico teria, naquele momento, que pas-sar necessaria-mente pela prova de fogo da filosofia peripatética. A Metafísica, a Física, a Ética, o De anima, os Analíticos Posteriores haviam 1 “Dissertatio de scriptis et vita S. Bonaventurae”. Bonaventura , Opera omnia, v. 10 (Ro-

ma, 1902), p. 30-31. 2 Gilson, E. (1929) Der heilige Bonaventura (Hellerau, 1929), p. 22. 3 Cfr. Merino, J. A. Historia de la filosofia franciscana (Madrid: 1993), p. XIV.

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não apenas modificado, de modo irreversível, o saber ocidental, havi-am também criado uma nova situação, na qual a Teologia, se os igno-rasse, passava a correr o perigo de transformar-se em um discurso vazio. Não havia mais perspectivas de sobrevivência para a complexa unidade entre a vivência da fé e o discurso filosófico , que se constituí-ra no modelo típico de trabalho de Agostinho , e que Boaventura ain-da procurara defender.4

2 – Pro statu isto – só conseguimos conhecer Deus a partir das criaturas

O recurso a Aristóteles, a fim de demonstrar a existência e a cog-noscibilidade de Deus , é comum a todos os pensadores da Idade Mé-dia. O que distingue Scotus de seus antecessores franciscanos é o fato de que, no desenvolvimento de sua argumentação, atém-se quase que exclusivamente ao pensador grego. Mesmo quando toma outros cami-nhos, que não os de Aristóteles – como, por exemplo, ao tratar da infinidade de Deus , ou ao provar que a ação divina é totalmente livre –, mesmo então, Duns Scotus é levado a discutir com Aristóteles o motivo de tal divergência.5

Como exemplo paradigmático da influência aristotélica sobre o pensamento scotista, pode-se tomar, entre outros, o conceito de or-dem essencial, a estrutura da argumentação sobre o tríplice primado da primeira natureza, ou a forma de conduzir a argumentação a res-peito da infinidade do primeiro princípio. No presente texto, atenho-me apenas à afirmação de que nosso conhecimento sobre Deus só se pode formular filosoficamente a partir das criaturas.

Quando Scotus, nos escritos da maturidade, coloca a pergunta a respeito da existência de um ente infinito, inicia seu trabalho com a afirmação de que, a respeito de Deus , nesta existência, não temos ne-nhum conhecimento evidente, baseado na evidência intrínseca dos termos. Nem podemos provar-lhe a existência através de um argu-mento propter quid, pois não conhecemos o conceito médio necessário para tanto, que é a essência divina como tal, ou a divindade enquanto divindade. Por este motivo, a afirmação “Deus existe” não é conhecida

4 Cfr. Honnefelder, L. Ens inquantum ens (Münster, 2. ed., 1979), p. 398-399. 5 No presente trabalho, a obra de Duns Scotus é citada segundo a edição Vaticana , na

medida em que se trata de textos já editados. Nos outros casos, usa-se a edição Vivès. Consti-tuem exceção: o tratado De primo principio é citado segundo a edição de W. Kluxen (Darmstadt, 1974); A Reportatio I A, segundo a edição preparada por A. Wolter und M. McCord: “Duns Scotus Parisian Proof for the Existence of God”, Franciscan Stu-dies, n. 42, 1982, p. 249-321.

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por nós propter quid, mas tão somente através de uma prova quia, na qual o conceito médio é tomado do efeito. 6

Scotus retorna ao problema na questão seguinte da Ordinatio, que trata do objeto adequado do conhecimento humano. Procede então a uma demorada análise das duas propostas de solução que se lhe apre-sentam – a de Henrique de Gand e a de Tomás de Aquino –, a fim de poder determinar até que ponto os ensinamentos de seus antecessores franciscanos, assumidos em parte por Henrique, podem ser aceitos, quando afirmam que Deus é o objeto primeiro do conhecimento hu-mano. Após distinguir as diversas maneiras sob as quais é possível falar de um primeiro objeto, acaba afirmando que sua crítica à teoria aristotélico-tomista não se confunde com a negação de tal teoria; ao dizer que nosso intelecto pode conhecer diretamente as substâncias intelectuais, e até o próprio Deus , se este assim o quiser, ele não diz que a qüididade das coisas sensíveis, pro statu isto, não é proporcional ao nosso intelecto e que , por isso, não o movimenta.7

O texto não poderia ser mais explícito. C. Berubée observa a res-peito:

“la distance qui sépare Scot d’Aristote et de saint Thomas en est très atté-nuée au plan philosophique pur et au plan de l’expérience. Tous trois admettent que, dans l’état présent, l’objet moteur de l’intellect, ce n’est pas tout être, soit sensible, soit immatériel, mais l’être sensible. Tous trois tiennent que cet être sensible inclut virtuellement le concept commun de l’être et que cela suffit pour arriver à la connaissance abstractive de Di-eu.”8

Ora, a concordância com Aristóteles e Tomás de Aquino na ques-tão a respeito do objeto capaz de movimentar o conhecimento humano significa, para Scotus, uma revisão pelo menos parcial de sua argu-

6 Rep. I A n.10, p. 254-255: “[...] de Deo secundum nullum conceptum nobis possibilem

de eo in via est per se notum de eo esse [nec notum] demonstratione propter quid, quia medium ad esse est nobis ignotum, scilicet essentia Dei ut haec vel deitas sub ratione deitatis ; et ideo nec propositio ‘Deus est’ non est per se nota nec nobis nota propter quid [...]. Ergo demonstratione quia tantum potest a nobis cognosci modo, ut medium sumitur ab effectu.” (Cfr. Ord . I d.2 p.1 q.1-2 n.25-33, Vat. 2: p. 137-145).

7 Ord . I d.2 p.1 q.3 n.186, Vat. 3: p. 112-113: “Obiectum primum potentiae assignatur illud quod adaequatum est potentiae ex ratione potentiae, non autem quod adaequa-tur potentiae in aliquo statu: quemadmodum primum obiectum visus non ponitur il-lud quod adaequatur visui exsistenti in medio illuminato a candela , praecise, sed quod natum est adaequari visui ex se, quantum est ex natura visus. Nunc autem , ut proba-tum est prius [...] nihil potest adaequari intellectui nostro ex natura potentiae in ratione primi obiecti nisi communissimum; tamen ei pro statu isto adaequatur in ratione moti-vi quiditas rei sensibilis , et ideo pro isto statu non naturaliter intelliget alia quae non continentur sub isto primo motivo.”

8 Berubée, C. (1983) De l’homme à Dieu selon Duns Scot, Henri de Gand et Olivi (Roma, 1983, p. 125).

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mentação a respeito da existência de Deus , tal como a formulara na Lectura.

Nesta defrontara-se com a objeção de que uma prova a posteriori, que parte de uma premissa contingente (no modelo: algum ente não é eterno) não segue as regras da argumentação científica, pois de premis-sas contingentes só se pode concluir no contingente. Embora observe que a objeção não se mantém, visto que se pode concluir no necessá-rio, mesmo a partir do contingente, contudo, prefere formular sua argumentação a partir da necessidade dos possíveis. Com isso, man-tém-se fiel à inspiração de Avicena, tal como fora recebida por Henri-que de Gand: “Embora [Deus] não deseje necessariamente nenhuma outra coisa além de si no ser da existência, contudo, a quer de modo necessário no ser da essência.”9

“Digo que embora os entes distintos de Deus sejam contingentes com re-lação ao ser atual, não o são, contudo, com relação ao ser potencial. Por isso, aqueles, que são chamados de contingentes com relação à existência atual, são necessários com relação à existência potencial. Pode-se, pois, dizer que, embora seja contingente que o homem exista , contudo, é neces-sário que a existência dele ‘seja possível’, pois não inclui contradição com o ser. Assim sendo, então, algo que é ‘possível ser’, distinto de Deus, é necessário. E assim como ao ente necessário, por seu hábito ou qüidi-dade, compete a necessidade, assim também, ao ente possível, por sua qüididade compete a possibilidade.”10

Este texto da Lectura é o ponto de partida para a argumentação de Scotus a respeito da existência de Deus. A proposição, formulada no modo da possibilidade, combinada com a análise dos disjuntivos transcendentais, é a novidade que introduz na formulação de sua pro-va. Embora este texto assemelhe-se aos textos paralelos de seus traba-lhos posteriores, percebe-se, contudo, que se trata de uma primeira elaboração, por isso mesmo menos precisa que as elaborações posteri-ores. Além disso, tal como está formulada, não fica muito distante de uma tentativa de apresentação de uma prova a priori a respeito da e-xistência de Deus – o que, aliás, Scotus, neste estágio de maturação de seu pensamento, ainda não excluía como impossível, tal como ainda não havia formulado o princípio, segundo o qual, pro statu isto o pri- 9 Lect. I d.8 p.2 q.un. n. 251, Vat. 17, p. 95: “[...] si dictum istius doctoris sic arguentis sit

verum – quod dicit de essentiis rerum – quod licet [Deus] non vult rem aliam necessa-rio in esse exsistentiae, tamen vult eam necessario in esse essentiae.”

10 Lect. I d.2 p.1 q.1-2 n.57, Vat. 16, p. 131: “[...] dico quod licet entia alia a Deo actualiter sint contingentia respectu esse actualis , non tamen respectu esse potentialis. Unde illa quae dicuntur contingentia respectu actualis exsitentiae, respectu potentialis sunt ne-cessaria , ut licet hominem esse sit contingens , tamen ipsum esse ‘possibilem esse’ est necessarium, quia non includit contradictionem ad esse; aliquid igitur ‘possibile esse’, aliud a Deo, est necessarium, et sicut enti necessario ex sua habitudine sive quiditate est necessitas, ita enti possibili ex sua quiditate est possibilitas.”

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meiro objeto motor de nosso conhecimento é a qüididade das coisas sensíveis. O texto de Scotus coloca-nos, portanto, não só ante duas formas de argumentação – uma que parte da realidade sensível e ou-tra, da necessidade do possível, mas também ante dois argumentos: um deles, a posteriori e o outro, mais importante, a priori. 11

Entre a redação da Lectura e a da Ordinatio, o pensamento de Duns Scotus experimenta uma ampla modificação no que se refere à prova a respeito da existência de Deus. Isto pode ser percebido já no início da resposta da Ordinatio a esta questão. Ele principia introduzindo um texto fundamental, no qual afirma que o conhecimento de Deus, que podemos adquirir nesta vida, não pode nunca ser um conhecimento propter quid, mas deve ser necessariamente um conhecimento quia, a partir das criaturas.12 Logo após, defronta-se com o procedimento tradicional que, a partir da causa eficiente, inicia afirmando que aliquod ens est effectibile e reafirma que, contra a objeção já conhecida, a seu modo de ver nada impede que se parta do contingente para concluir no necessário. Contudo, prossegue, mesmo sem negar a validade des-te passo, prefere a argumentação a partir da possibilidade, formulan-do-a nos termos: “alguma natureza é efetível, logo também alguma natureza é efetiva” e prosseguindo: “Prova-se o antecedente, porque algum sujeito é mutável, porque algum entre os entes é possível, dis-tinguindo-se o possível contra o necessário.”13

Além da afirmação categórica, de que nosso conhecimento a res-peito de Deus só pode ser obtido a partir das criaturas, chama a aten-ção neste texto a mudança introduzida na formulação referente ao argumento baseado na possibilidade. Scotus decide-se por ele, porque argumenta ex necessariis, mas não se refere mais ao necessariamente possível, que não possui contradição com o ser. Trata-se, agora, de um possível que se encontra ligado ao fático , mesmo se abstrai da existên-cia real deste, mas de modo algum se refere a uma certa existência, atribuível ao ser da essência (esse essentiae). O mundo da experiência não pertence à estrutura formal da prova da existência de Deus de Duns Scotus, mas nele encontram-se fundamentadas as premissas do 11 Berubée, C. (1972) “Pour une histoire des preuves de l’existence de Dieu chez Duns

Scot”, in: Deus et homo ad mentem I. Duns Scoti, ed. da Comissio Scotistica (Roma, 1972, p. 27-30).

12 Ord . I d.2 p.1 q.1-2 n.39, Vat. 2, p. 148: “Ad primam quaestionem sic procedo, quia de ente infinito sic non potest demonstrari esse demonstratione propter quid quantum ad nos [...]. Sed quantum ad nos bene propositio est demonstrabilis demonstratione quia ex creaturis.” (Cfr. Rep. I A n.10, p. 254-255).

13 Ibid . n.56, Vat. 2, p. 162: “Potest tamen sic argui, probando primam conclusionem sic: haec est vera ‘aliqua natura est effectibilis , ergo aliqua est effectiva’. Antecedens pro-batur, quia aliquod subiectum est mutabile, quia aliquod entium est possibile distin-guendo possibile contra necessarium, et sic procedendo ex necessariis. Et tunc probatio primae conclusionis est de esse quiditative sive de esse possibili, non autem de exsis-tentia actuali.” (Cfr. Rep. I A n.28, p. 266; De pr. pr. c.3 c.1, p. 32-34).

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argumento. O possível, que pode ser pensado a priori – assim argu-menta ele em outro contexto, ao tratar da criação –, dispõe tão somen-te de um esse deminutum, um esse cognitum, que se refere tanto ao ser da essência, como ao ser da existência, mas que, na medida em que se trata apenas de um esse cognitum, encontra-se apenas na inteligência daquele que o pensa. Na realidade, o ser da essência e o ser da exis-tência jamais podem ser separados,14 e na relação entre Deus e a cria-tura não se separam jamais, pois criar significa conferir o ser tanto à essência como à existência, mas não a alguma forma de esse deminu-tum.15

Quando, pois, Scotus afirma que “aliqua natura est effectibilis, er-go, aliqua est effectiva”, o que está fazendo é simplesmente transpor-tar a afirmação do âmbito do atual para o do possível. Também após a transposição, a prova da premissa maior continua presa à realidade, pois para dizer que uma natureza é efetível, ele apela para a evidência de que “aliquod subiectum est mutabile, quod aliquod entium est pos-sibile”. Este algo mutável não é um possível abstrato, que se opõe ao impossível, mas um subiectum, com o qual a nossa experiência de mun-do se confronta todos os dias. Desta forma, a prova da existência de Deus, através dos disjuntivos transcendentais, parte do membro menos nobre, membro este encontrável na experiência sensível. Tal experiência, portanto, é o princípio de toda a argumentação, pois seu fundamento é aquele contingens evidentissimum, que não pode ser de-monstrado através de algo mais evidente que ele.

Esta fidelidade ao mundo da experiência sensível encontra um modelo de aplicação no escrito mais maduro de Scotus a respeito de Deus, no De primo principio. Neste texto, ao afirmar que a necessidade do ser por si mesmo cabe tão somente a uma única natureza, tem-se a impressão de que Scotus não se dá por satisfeito com o argumento de que o oposto, dizendo que são possíveis diversas naturezas primeiras, encerra em si uma contradição. De fato, como W. Kluxen observa: “Muitos mundos podem ser imaginados sem contradição, cada um deles como sua ‘natureza primeira’ e suas dependências, contanto que não se coloque nenhuma espécie de relação entre eles.”16 A resposta de Scotus – o pensador da possibilidade –, é de que não se deve rationabi-liter colocar algo no mundo, a não ser que para tanto exista alguma necessidade, algo, “cuja entidade manifesta ostensivamente uma certa ordem para com outros entes”. Deste modo, a necessidade no mundo é provada a partir dos entes causados. Porém, a partir deles, que se 14 “[...] nunquam esse essentiae realiter separatur ab esse exsistentiae” (Cfr. Ord . I d.36

n.26-29, p. 48-49, 53. Vat. 6, p. 281-282, 290, 292; ibid. d.2 d.1 q.2 n.82, Vat. 7, p. 43). 15 Cfr. Ord . I d.36 n.27, Vat. 6, p. 281; Lect. I d.36 n.26, Vat. 17, p. 468-469. 16 Kluxen, W. “Welterfahrung und Gottesbeweis”, in: Deus et homo ad mentem I. Duns Scoti,

ed. pela Comissio Scotistica (Roma, 1972, p. 56-57).

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encontram ordenados em um único mundo, não é manifesta a necessi-dade de se colocarem duas naturezas primeiras. Pelo contrário, estas duas naturezas haveriam de pressupor a existência de mundos dife-rentes, cada um deles com sua respectiva ordem, o que, para Scotus, nada mais representa do que elucubrações da imaginação, algo que a gente pode fingere, inventar, mas para cujo fundamento não se encon-tram argumentos a favor, só em contrário.17

A existência de mundos diversos é excluída, portanto, não porque eles sejam logicamente impossíveis, mas porque a experiência de mun-do não necessita deles. O esse deminutum destes outros mundos perma-necerá sempre um esse deminutum, que nada tem a ver com os entes atuais percebidos pela sensibilidade, entes estes que movimentam nosso conhecimento.

3 – Limites do conhecimento aristotélico

Scotus inicia seu tratado sobre a existência de Deus com a pergun-ta sobre a possibilidade da existência de um ente infinito. Seu interes-se principal centra-se na tentativa de prova da infinidade de um ente primeiro.18 A infinidade do primeiro princípio é provada através da onipotência.19

Tão logo, porém, a infinidade divina fica provada, sente-se ele forçado a observar que existe uma diferença entre a onipotência, se-gundo a compreensão teológica – segundo a qual Deus, sem o auxílio de causas secundárias, pode produzir todas as coisas possíveis –, e a onipotência, segundo a compreensão filosófica – segundo a qual, na ordem do ser, uma potência infinita deve atuar através de causas se-

17 De pr. pr. c.3 c.6, 46: “Tamen quia rationabiliter procedendo nihil videtur ponendum in

universo nisi cuius apparet aliqua necessitas, cuius entitatem ostendit ordo aliquis ad alia manifeste entia , quia plura non sunt ponenda sine necessitate [...] necesse ostendi-tur in universo ex incausabili; et illud ex primo causante, et illud ex causatis. Nulla ne-cessitas apparet ex causatis ponendi plures naturas primas causantes.” Ibid. c.3 c.17, 52: “[...] si sit aliud primum et aliorum erit illorum aliud universum, quia entia illa et ista nec ordinabuntur inter se nec ad idem. Sine unitate ordinis non est unitas univer-si.[...] Et quia ad unum summum est unus ordo, sufficit mihi loqui de solo universo, non fingere aliud de quo nullam habeo rationem , immo potius obviantem.” Darüber sagt er oben, als er die wesentliche Ordnung analysiert: “Numquam pluralitas est po-nenda sine necessitate.” (ibid. c.2 c.15, 26)

18 Obseve-se, no que se refere à extensão, que somente a nona conclusão do capítulo IV do De primo principio, (é a conclusão que trata do tema) constitui um quarto de toda a obra (De pr. pr. c. 4 c.9, p. 86-116).

19 Ord . I d.1 p.1 q.1-2 n.117, Vat. 2, p. 192-193: “[...] si primum haberet omnem causali-tatem formaliter simul, licet non possent causabilia simul poni in esse, esset infinitum, quia simul quantum est ex se posset infinita producere.” (Cfr. De pr. pr. c.4 c.9 n.85, 112).

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cundárias. Esta última compreensão encontra-se dentro dos limites da razão; a primeira só se nos torna conhecida através da revelação.20

O texto de Scotus parece encerrar em si uma aporia. A prova antes apresentada exclui qualquer necessidade exterior neste ente, que é a causa primeira. Esta causa primeira, dotada de uma inteligência infini-ta e de uma vontade infinita, ordena-se para um fim, porque ela só é verdadeiramente a primeira, o primum effectivum, quando, de forma finalística, se ordena para um fim. E como verdadeiramente primeira causa só pode ter a si mesmo, e a nenhum outro, como fim. Os outros fins são queridos de forma contingente, pois em caso contrário ela deixaria de ser livre ante eles, e dever-se-ia admitir que ela, a causa primeira, seria movida por algo exterior a ela.

“Dizer, pois, que a causa primeira é dotada de uma inteligência infinita e livre, bem como de uma vontade infinita e livre, significa afirmar a pleni-tude de seu ser, uma intensidade ontológica que, per se, exclui toda e qualquer necessidade exterior.”21

Como se pode, pois, dizer que a causa primeira, que encerra em si a negação de qualquer limite, está voltada para causas segundas e necessita delas em sua atividade ad extra? Como é possível afirmar a existência de uma potência intensivamente infinita e negar-lhe a oni-potência secundum intellectum catholicorum?

A fim de defender sua afirmação, Scotus aponta para uma outra parte de sua obra, na qual recorre ao célebre argumento histórico , muito em voga em sua época. Segundo este argumento, nenhum filó-sofo, à luz natural da razão, chegou a uma noção de onipotência, tal como a compreendem os teólogos. E nisto haveria uma lógica interna, pois, a seu ver, o conceito teológico procede de uma verdade de fé.22 Além disso, apresenta ele três argumentos a fim de provar que , nos limites da razão, o conceito filosófico de onipotência é de todo corre-to. De fato, em primeiro lugar, observa ele, se a causa primeira, se-gundo a compreensão dos teólogos, fosse a causa plena e única, mes-mo então ela não seria mais perfeita do que o é no sentido em que a compreendem os filósofos. Em segundo lugar, as causas secundárias não são necessárias para a perfeição no causar, pois, em caso contrá-rio, o ente que se encontrasse como termo , no final do processo, seria

20 Ord . I d.2 p.1 q.1-2 n.119-120, Vat. 2, p. 194-197; ibid. d.42 n.9, Vat. 6, p. 343-344; De

pr. pr. c.4 c.9, p. 110-112; Lect. I d.2 p.1 q.3 n.123, Vat. 16, p. 152. 21 Ghisalberti, A. (1972) “Il Dio dei teologi e il dio dei filosofi secondo Duns Scoto”. In:

Deus et homo ad mentem Duns Scoti, edit. pela Comissio Scotistica (Roma, 1972, p. 154). 22 Ord . I d.42 n.6-7, Vat. 6, p. 342: “Nulli philosophorum utentes naturali ratione, etiam

quantumcumque perfecte considerarent Deum sub ratione efficientis , concesserunt eum esse omnipotentem secundum intellectum catholicorum. Confirmatur etiam quia articulus fidei est in Symbolo Apostolorum: ‘Credo in Deum, Patrem omnipotentem’, etc.” (Cfr. Lect. I d.44 q.un. n.4, Vat. 17, p. 523; De pr. prin. c.4 c.9, p. 112).

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mais perfeito que os entes a ele anteriores na ordem do causar. As causas secundárias são antes necessárias para a imperfeição do efeito, o que não aconteceria se este procedesse direta e exclusivamente só da causa primeira. Em terceiro lugar, na linha do pensamento aristotélico , Scotus observa que todas as perfeições estão contidas no primeiro eficiente de modo mais elevado do que se nele se encontrassem as próprias formalidades delas.23 O argumento parte, pois, da perfeição infinita da primeira causa, à qual as outras causas nada podem acres-centar. Tais causas segundas são necessárias, portanto, não para a per-feição da primeira causa, mas para possibilitar a imperfeição do efeito, visto que este, caso dependesse só da causa primeira, não poderia apresentar nenhuma imperfeição.24

Antes de partirmos para a análise dos argumentos do autor, con-vém observar que suas colocações são típicas do momento filosófico em que ele viveu. Quanto mais o corpus aristotélico ia determinando a filosofia ocidental, tanto mais se tornava necessário demarcar com precisão as fronteiras entre o saber filosófico e o teológico. Uma das perguntas que se punham então era aquela a respeito de quais os atri-butos divinos reconhecíveis pela razão, e quais pela fé. Se, em alguns casos, a resposta parecia evidente, em outros, como a respeito da oni-potência divina, surgiam dúvidas e debates. Para Tomás de Aquino , por exemplo, o ato de colocação no ser é, do ponto de vista filosófico , uma qualidade exclusiva da causa primeira, que pode, além do mais, produzir por si mesma tudo o que produz através de causas interme-diárias.25 Trinta anos depois, Scotus distingue entre um sentido filosó-fico e um sentido teológico de onipotência, mas aceita como filosofi-camente demonstráveis outros atributos divinos, como a unidade. Passaram-se outros vinte anos, e Ockham reduziu ainda mais o alcance da razão: o que nós sabemos filosoficamente a respeito de Deus é tu-do aquilo e tão somente aquilo que os filósofos pagãos escreveram a respeito; o mais (também a unidade) pertence ao reino da fé.

Quanto ao recurso ao argumento histórico , não se pode fazer a Duns Scotus a objeção de que algum filósofo poderia ter chegado à 23 Ibid . d.2 p.1 q.1-2 n.120, Vat. 2: 195-196 et par.: “[1] [...] quia si haberet simul unde

esset totalis causa, nihil perfectius esset quam nunc sit quando habet unde sit prima causa. [2] Tum quia illae secundae causae non requiruntur propter perfectionem in causando [...] Sed si requiruntur... hoc est propter imperfectionem effectus [...] [3] Tum quia perfectiones totae [...] eminentius sunt in primo quam si ipsae formalitates earum sibi inessent [...].”

24 Lect. I d.42 q.un. n.14, Vat. 17: p. 525-526: “[...] quia licet prima causa habeat causali-tatem cuiuscumque causae secundae, non tamen potest sine ea producere quodcum-que possibile, quia dicerent philosophi quod ponitur secunda causa non ut addat cau-salitatem supra causalitatem primae causae, sed concurrit ut imperfectio, quia propter perfectionem primae causae non potest [causalitas] esse nisi unius primo e non multo-rum imperfectorum primo.”

25 Cfr.. Scg. l. 2 cc. 15, 16, 22; ST I q.45 a.3 i.c; ibid. a.5 i.c.

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noção de onipotência no sentido teológico. Contudo, seja permito ob-servar a respeito, que Scotus, mais do que qualquer um de seus prede-cessores, permitiu-se discordar das opiniões de Aristóteles, Avicena e Averróis. Um caso típico encontra-se na própria questão a respeito dos atributos de Deus , quando demonstra que a causa primeira pro-duz de maneira livre e não necessária. Em uma objeção em contrário é citado Aristóteles, que concede o antecedente, isto é, que algo de con-tigente é produzido no mundo, mas nega o conseqüente, isto é, que tal efeito provém da vontade livre de Deus. Aristóteles atribui a con-tingência ao movimento, o qual, por si mesmo, causa sempre de forma necessária, mas, em suas partes, pode provocar deformações inespe-radas. Scotus responde-lhe:

“Digo a respeito que o Filósofo não pode negar o conseqüente, ao mesmo tempo em que salva o antecedente através do movimento, pois se todo es-te movimento depende necessariamente da sua própria causa, então ca-da parte dele, enquanto causa, causa de modo necessário, isto é, inevita-velmente, de tal modo que o oposto não pode então ser causado. E além disso, tudo o que é causado por qualquer parte do movimento é causado de modo necessário e inevitável.”26

Em favor do argumento histórico , Scotus utiliza também o fato de que a onipotência é contada entre os artigos de fé. Com relação, po-rém, ao fato de que se trata de um artigo de fé, convém observar que o próprio Scotus, nesta pergunta a respeito da existência de Deus , prova pela razão a unidade e a unicidade do primeiro eficiente. Con-tudo, pertence também aos artigos da fé, aliás ao primeiro artigo do Credo, a afirmação de que existe um só Deus, e desde Maimônides difundira-se sempre mais entre os filósofos a convicção de que a uni-dade divina ultrapassa os limites da razão, podendo ser mantida só através da fé. No final do século XIII esta posição foi assumida por diversos pensadores franciscanos; era, aliás, o ponto de vista de Gui-lherme de Ware, que, pelo que consta, deve ter sido professor de Sco-tus.27 Distanciando-se, portanto, de Maimônides, Scotus afirma que a

26 Ord . I d.2 p.1 q.1-2 n.86, Vat. 2, p. 178-179: “Nunc dico quod Philosophus non potest

consequens negare salvando antecedens per motum, quia si ille totus motus necessario est a causa sua, quaelibet pars eius necessario causatur quando causatur, id est inevi-tabiliter, ita quod oppositum non potest tunc causari; et ulterius, quod causatur per quamcumque partem motus, necessario causatur et inevitabiliter.”

27 Guilherme de Ware, Sent. I d.2 q.2 (cod. Florent. nat A IV 42, 10vb, apud Lect. I, Vat. 16, p. 147, nota.): “Dicendum quod Dei unitas non potest probari, sed sola fide tene-tur, ita quod sicut sola credulitas cadit super ‘Deum esse unum’, ita quod dicatur: ‘Credo in unum Deum, Patrem’, etc.” – Contudo observe-se neste passus que Scotus, conforme se pode ver na nota 22, ao citar o texto da profissão de fé, deixa de lado exa-tamente a palavra unum. Ora , basta um simples correr de vistas sobre o Enchiridion symbolorum (edit. por Denzinger, H. u. Schönmetzer, A. Freiburg i. Br.: 35a ed. 1973) , para se constatar que, sem exceção, desde Nicéia até Latrão IV, em todos os concílios

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unidade de Deus, mesmo quando se abstrai de sua pertinência ao do-mínio da fé, pode ser provada através da razão.28 Contudo, no mesmo tempo, por ocasião da afirmação que uma determinada verdade de fé (a unidade de Deus) pode ser provada pela razão, mantém-se ele na convicção de que a prova de tal verdade não pode ser conduzida a-través da onipotência, pois que esta outra verdade da fé (a onipotên-cia divina) não pode ser anteriormente provada pela razão,29 cabendo-lhe apenas o status de probabilidade.30 (Poucos anos depois, Ockham haverá de dizer, de forma semelhante, que a prova da existência de Deus não implica a prova de sua unidade.31 Uma outra mão haverá de acrescentar no manuscrito ockhamiano que este argumento de Scotus possui apenas o status da probabilidade.32)

Portanto, contra diversos pensadores de seu tempo , Scotus mostra que é possível provar filosoficamente a unidade de Deus. Mostra tam-bém que pensadores não-cristãos chegaram ao conceito de uma causa geral não causada e, com relação a Avicena, que este defendia a pro-dução dos entes na ordem da natureza a partir do nada.33 Da mesma forma demostra ele, contra Aristóteles, que também é possível provar que a causa primeira age de modo contingente. Por que , então, é ne-gado, quase que de antemão, que a primeira causa pode agir sem a mediação de causas intermediárias?

Não é por acaso que Scotus julga como demonstrável filosofica-mente a unidade de Deus , a criação através do nada e a contingência do ato de causar, mas nega a possibilidade de uma tal demonstração para a produção sem causas secundárias. No meu modo de ver, a dis-tinção entre a compreensão filosófica e a compreensão teológica de onipotência divina – sendo que esta última abarca a causalidade sem a mediação de causas secundárias – é introduzida por Duns Scotus a fim de poder manter-se na demonstração aristotélica de uma causa pri-meira. Surge, porém, uma questão fundamental: a de saber se é então

ecumênicos em que se formulou uma declaração de fé, esta se inicia afirmando a uni-dade de Deus. A fórmula Credo in Deum , Patrem... aparece diversas vezes , mas em li-turgias ou em confissões privadas, jamais , porém, em concílios ecumênicos.

28 Ord. I d.2 p.1 q.3 n.182. Vat. 2, p. 236-237. 29 Ord . I d.2 p.1 q.3 n.178, Vat. 2, p. 234: “De septima via [ad probandam unitatem Dei] ,

scilicet omnipotentia , videtur quod non sit per rationem naturalem demonstrabile, quia omnipotentia – ut alias patebit – non potest concludi ratione naturali ut catholicorum intelligunt omnipotentiam, nec concluditur ex ratione infinitae potentiae.”

30 Ord . I d.42 n.15, Vat. 6, p. 346: “Omnipotentia tamen, hoc modo sumpta, licet non sufficienter demonstraretur, probabiliter tamen potest probari sicut verum et necessa-rium.”

31 Quodl. I OTh. 9: 2: “Sciendum tamen quod potest demonstrari Deum esse, [...]. Sed ex hoc non sequitur quod potest demonstrari quod tantum est unum tale, sed hoc tantum fide tenetur.”

32 Ord . I d.2 q.10, OTh 2: 357: “Haec ratio videtur probabilis , quamvis non demonstret sufficienter.”

33 Vgl. Ord . II d.I q.2 n.59-68, Vat. 7, p. 34-38.

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possível manter a noção de ordem essencial, algo fundamental para a prova, quando ao mesmo tempo se afirma, com relação à causa pri-meira, que ela pode agir sem a mediação de causas secundárias.

Tentando examinar mais detidamente seus diversos textos a res-peito, constata-se que ele, de fato, por cinco vezes, com as costumeiras nuances, afirma que a conclusão que vai do efeito para a causa é uma conclusão válida, contando que se admita que, entre as causas, não exista um regresso ao infinito. Como , porém, as causas se relacionam entre si de formas diversas, julga ele ser necessário distinguir entre as causas ordenadas de forma essencial per se (essentialiter per se) e as ordenadas de modo acidental (accidentaliter). Trata-se de uma noção fundamental que, por isso, vem repetida diversas vezes. O texto diz:

“E as causas essencialmente ordenadas per se diferem das aciden-talmente ordenadas em três aspectos:

[a] A primeira diferença é que nas ordenadas per se, a segunda causa, enquanto produz, depende da primeira; já nas ordenadas acidentalmen-te não acontece isto, embora a causa segunda possa depender tanto no ser como em alguma outra coisa.

[b] A segunda diferença é de que nas causas essencialmente ordena-das a causalidade possui sempre uma outra determinação de gênero e uma outra ordem, pois a causa mais alta é também mais perfeita; já entre as causas acidentalmente ordenadas isto não acontece. Esta segunda dis-tinção procede da primeira, pois nenhuma causa depende essencialmen-te em seu causar de uma outra causa do mesmo gênero, pois no ato de causar é suficiente uma única causa do mesmo gênero.

[c] A terceira diferença procede do fato de que todas as causas essen-cialmente ordenadas são simultaneamente necessárias no ato de produ-zir, pois, em caso contrário, faltaria ao efeito uma causalidade per se; já a simultaneidade não é requerida nas causas acidentalmente ordena-das.”34

Entre os outros inúmeros textos que tratam das causae essentialiter ordinatae, um deve ser aqui realçado: aquele que trata da criação dos anjos. Na questão que examina a relação entre o criador e a criatura, Scotus pergunta se existe uma identidade entre a relação e seu funda-

34 De pr. pr. c.3 c.2, 36: “Et differunt essentialiter et per se ordinatae in tribus ab acciden-

taliter ordinatis. Prima differentia est quod in ‘per se’ secunda, inquantum causat, de-pendet a prima; in ‘per accidens’ non, licet in esse vel in aliquo alio dependat. Secunda est quod in per se ordinatis est causalitas alterius rationis et ordinis , quia superior est perfectior; in accidentaliter non. Et haec sequitur ex prima; nam nulla causa a causa ei-usdem rationis dependet essentialiter in causando, quia in causatione alicuius sufficit unum unius rationis. Tertia sequitur, quod omnes causae per se ordinatae simul neces-sario requiruntur ad causandum; alioquin aliqua per se causalitas deesset effectui; non requiruntur simul accidentaliter ordinatae.” (Cfr. in Met. l.2, q.6 n.14, Viv. 7: 197; Lect. I d.1 p.2 q.1-2 n.46-48, Vat. 16, p. 128; Ord . I d.2 p.1 q.1-2 n.48-51, Vat. 2, p. 154-155; Rep. I A n.17-20, p. 260-261).

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mento. Então, ao criticar a posição de Henrique de Gand , para quem uma tal relação se identifica com a criatura, e só se distingue no ato do intelecto que compara, Scotus observa que uma tal solução leva consi-go inúmeros problemas, entre os quais o de que haveria de negar a causalidade das causas segundas. Ora,

“o causar real não requer o ente de razão na causa, e as causas secundá-rias não podem causar, a não ser que sejam proporcionadas e próximas; portanto, se esta aproximação é tão somente o ente de razão, não poderão as causas segundas produzir algo de real sob tal aproximação.”35

Se tomarmos, pois, o que foi dito até agora a respeito das causas essencialmente ordenadas, podemos resumir nos seguintes pontos: [1] há uma ordem entre elas; [2] a causa superior é mais perfeita que a ante-rior; [3] é necessário que todas elas atuem simultaneamente, pois, em caso contrário, faltaria ao efeito uma causalidade específica. Além disso, [4] as causas devem existir realmente e [5] devem ser propor-cionadas e [6] estar próximas. Se a isto se acrescentar o que foi dito acima, com relação à compreensão filosófica da onipotência divina, pode-se ainda afirmar: [7] deste modo, todas as perfeições encontram-se na causa primeira de forma muito superior do que se nela se encon-trassem as próprias formalidades, e [8] as causas segundas são exigi-das devido à imperfeição do efeito.

Não existe grande dificuldade para compreensão daquilo a que se refere o ponto [2], onde se afirma que a causa superior é de uma natu-reza diferente e mais perfeita que a inferior. Algo semelhante acontece com [3], que trata da simultaneidade, e também com [4], [5], [6] e [8]. Problemática, porém, é a interpretação de [1], que afirma a dependên-cia das causas secundárias com relação à causa primeira. Poder-se-ia também perguntar, sem dúvida, o que se entende em [7], ao se afir-mar que todas as perfeições se encontram na causa primeira de modo muito superior.

O que, porém, num primeiro momento parece bem claro, acaba depois por provocar uma série de perguntas, mostrando que , neste ponto, a dificuldade de compreender o pensamento de Scotus vem de muito longe. De fato, pouco tempo após sua morte, começou-se a per-guntar o que são mesmo as causas essencialmente ordenadas, e como se devem entender as três diferenças que ele colocou entre elas e as causas acidentalmente ordenadas. A crítica feita por Ockham e seus

35 Ord . II d.1 q.4-5 n.226, Vat. 7: 112: “[...] quia causatio realis non requirit ens rationis in

causa, et non possunt causae secundae causare nisi proportionatae et approximatae: igitur si ista approximatio est tantum ens rationis , non poterunt causae secundae sub ista approximatione causare aliquid reale.” Cfr. Prezioso, F. (1974) “Critica di alcune teorie filosofiche di S. Bonaventura e di S. Tommaso nell’Ordinatio di Duns Scoto”, Sa-pienza, 27, 1974, p. 476.

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discípulos, bem como a defesa por parte dos escotistas, serviram para mostrar como era vasto o leque de interpretações. E para a solução do problema pouco resolvia a leitura do texto, pois Scotus, de sua parte, contentou-se com repeti-lo por cinco vezes, quase com as mesmas pa-lavras, sem apresentar maiores esclarecimentos ou fornecer exemplos a respeito. A fim de obter alguma luz sobre o tema, torna-se necessá-rio, portanto, voltar-se para outros textos do autor, nos quais são mencionadas as causas essencialmente ordenadas. Ao apelar-se para tal solução, surge, porém, um outro problema: qual dos modelos pro-postos é aplicável no caso presente?36 Talvez por isso mesmo o próprio Scotus, ao tratar da prova onipotência divina, não tenha aplicado ne-nhum dos exemplos alhures apresentados, por ser de opinião que se tratava de um hapax. Se interrogado, sua resposta fosse talvez a de que, por se tratar de um caso único , os exemplos tomados de outros textos acabavam ficando sem sentido.

Procuremos, pois, elencar agora os modelos de causas essencial-mente ordenadas, apresentados por Scotus em outros textos, a fim de verificarmos a aplicabilidade deles ao caso presente. Constatamos então:

1. Não se trata aqui da produção das causas secundárias no ser, mas apenas da relação que existe entre as causas. De fato, consideran-do-se [4] fica claro que o conjunto do texto sobre as causas é de pro-veniência aristotélica e pressupõe-nas, portanto, como existentes. O que interessa é, pois, saber como as muitas causas atuam em conjunto na produção de um efeito.

2. Devido a [3] e [8] deve-se excluir o esclarecimento que distingue entre o poder absoluto e o poder ordenado (potentia absoluta e potentia ordinata), tal como o fez Ockham ao analisar esta questão.37 De fato, o que Scotus acentua como distintivo da onipotência de Deus, secundum intellectum catholicorum, para distinguir da compreensão filosófica do conceito, é a capacidade de produzir independentemente de causas segundas.

3. Há também o modelo das causas que atuam simultaneamente, mas de modo independente, como, por exemplo, no caso da ação do intelecto e do objeto na produção do conhecimento.38 Mas tal modelo 36 Wood, R. (1990) “Ockham on Essentially-Ordered Causes. Logic Misapplied”. In: Die

Gegenwart Ockhams, ed. por Vosenkuhl, W. e Schönberger, R. (Weinheim, 1990, p. 35-39).

37 In II Sent qq. 3-4. OTh. 5: 72: “Deus enim est tale agens quod potest esse causa totalis effectus sine quocumque alio.”

38 Ord . I d.3 p.3 q.2 n.497-498, Vat. 3: 294-295: “Obiectum intelligibile – praesens in se vel in specie intelligibile – et pars intellectiva non concurrunt ut ‘causae ex aequo’ ad intel-lectionem [...]. Sunt ergo causae essentialiter ordinatae, et ultimo modo, videlicet quod una est simpliciter perfectior altera , ita tamen quod utraque in sua propria causalitate est perfecta, non dependens ab alia.” Cfr. a respeito Messner, R. (1942) Schauendes und

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não pode ser aplicado aqui, tanto porque cada uma das causas dele é independente da outra, sendo tão somente causa parcial do todo, co-mo também porque a causa superior não encerra em si, virtualmente, a ação da inferior. Do mesmo modo, são ainda menos válidos os e-xemplos de causas independentes que pertencem ao mesmo gênero, como, por exemplo, o caso do pai e da mãe na geração da prole, ou o de dois indivíduos que , juntos, arrastam um barco para a terra: entre eles não existe hierarquia de causas. Do mesmo modo, não se aplicam também ao caso os exemplos nos quais a ação da causa principal utili-za-se da causa inferior, como de causa puramente instrumental.39

4. Scotus vale-se também de um paradigma conhecido, provenien-te da tradição grega, a saber, a atuação conjunta do sol e do pai na geração do filho. Por trás deste modelo, é sabido, encontra-se a antiga com-preensão científica que conferia ao sol um influxo excepcional-mente grande na geração. Nos casos normais, dizia-se, o sol age em conjunto com o pai, mas em certos casos, como no da geração de cer-tos insetos, tais como as moscas, tanto podem estas ser geradas atra-vés da ação conjunta, como através da ação exclusiva do sol. Trata-se, pois, em primeiro lugar, de um paradigma já superado cientificamen-te, podendo-se mesmo perguntar o que sobrevive hoje de uma tal concepção. Além disso, parece que a Scotus era difícil determinar de maneira correta a relação entre o sol e o pai – ou talvez se possa dizer que houve uma mudança em seu pensamento a respeito, pois, em um tópico ele observa que, “utrumque [i. e. sol et pater] agit propria vir-tute”,40 enquanto em outro diz que “quandoque posterior habet virtu-tem suam a priore; exemplum: sol et pater in generatione hominis.”41

5. Há, enfim, o paradigma cosmológico tanto relativo à ação de Deus e da inteligência primeira sobre os céus , quanto o relativo à ação dos céus sobre os elementos. Diga-se inicialmente que, em ambos os casos, Scotus trabalha com um modelo que há muito perdeu sua con-sistência. No primeiro caso, segue-se aristotelicamente a idéia de que Deus cria imediatamente a primeira inteligência e também a move imediatamente, pois ele é o fim dela. Os céus também são movidos imediatamente por Deus, visto que ele é o fim também dos céus , mas a causa eficiente imediata deles é a primeira inteligência, cabendo a Deus a posição de causa mediata.42 Haveria, conseqüentemente, duas

begriffliches Erkennen nach Duns Scotus (Freiburg i. Br.: 1942, p. 5-47). 39 Ord . I d.3 p.1 q.2 n.496, Vat. 3, p. 293-294. Quodl. 15 n. 10, Viv. 26, p. 142-143. 40 Rep. par. II d.I q.3 n.6, Viv. 22:532 41 Quodl. XV n.10, Viv. 26:142 42 Rep. Par. II d.1 q.3 n.6, Viv. 22: 532-533: “Sed quod causa prima et secunda concurrant

ad effectum, potest intelligi tripliciter. Vel quod prima producat secundam, et tunc concurrunt, quia secunda est a prima.[...] Igitur oportet quod Philosophus intelligat quod Deus et motor coniunctus concurrant primo modo [...]. Quia primum movet in ratione efficientis , et in ratione finis – ita quod movet in ratione efficientis ipsum coe-

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causas eficientes totais, que, porém, operam de maneiras diferentes: uma de modo imediato e outra de modo mediato. Já no segundo caso – aquele da ação dos céus sobre os elementos –, trata-se de um influxo que nem coloca os elementos no ser nem os determina imediatamente em sua ação.43 Este modelo pareceria ser o que melhor corresponde à noção de causas essencialmente ordenadas, ao se tratar da demonstra-ção de um primeiro eficiente. Mas surge também nele uma dificulda-de: como se pode aplicar a ele o que foi dito em [7], ao afirmar que todas as perfeições encontram-se na causa primeira de uma forma muito superi-or?

Na dificuldade até agora exposta de conciliar, de um lado, a con-cepção aristotélica de uma ordem essencial de causas e, de outro, o ensinamento da teologia cristã a respeito da onipotência de Deus , Sco-tus expressa, a seu modo, a tensão em que se encontravam ele e sua época. Cabe aqui recordar que um dos problemas que mais chamou a atenção das autoridades, nas condenações de 1277, foi exatamente o da necessidade de salvar a onipotência divina ante todo e qualquer necessarismo. Tem-se a impressão que, neste caso, Scotus parece as-sumir, ao menos parcialmente, a argumentação dos professores da Faculdade de Artes, quando argumentavam que os caminhos da Filo-sofia e os da Teologia nem sempre correm paralelos. Sob o aspecto filosófico, Scotus não encontra outro esclarecimento satisfatório para a unidade e a ordem do mundo, como também para a dependência des-te ante Deus, além daquele proposto por Aristóteles. Ao mesmo tem-po, porém, constata que um tal esclarecimento desvia-se das afirma-ções da revelação. Aristóteles não tem noção da creatio ex nihilo das coisas que se encontram na ordem do tempo , tal como também jamais formulou uma doutrina a respeito da liberdade absoluta de Deus. Scotus, porém, é suficientemente honesto para não lhe impingir uma argumentação interpretativa, que o filósofo, a partir de seus próprios pressupostos, não poderia jamais desenvolver, e que nem mesmo ele, Scotus, conseguiu desenvolver filosoficamente. Com isso, porém, permanece fiel a seu tão caro princípio de que, com relação ao conhe-cimento de Deus, a doutrina teológica é insubstituível. Sem esta con-cepção proveniente da revelação, o homem não pode, porém, deter-minar com precisão as verdadeiras relações de dependência das coisas ante Deus, como também não consegue explicar a contingência radical dos entes.44

lum mediate, immediatius tamen effectus eius est prima substantia dependens , et illa movet coelum effective immediate.”

43 Oxon. II d.2 q.10 n.5, Viv. 12: 526-527: “[...] influentia etiam coeli quantum est de se, uniformis est in toto medio, quare ergo unam partem in toto medio moveret sursum et aliam deorsum nisi poneretur agens particulare determinans?”

44 Solaguren, C. “Contingencia y creación en la filosofía de Duns Scoto”. In: De doctrina

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/ Significado e limites do pensamento aristotélico na prova da existência de Deus... 360

Ioannis Duns Scoti, edit. pela Comissio Scotistica (Roma: 1968) Bd. II: 298.

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/ A des-presença da filosofia e o processo de coisificação do humano-ser 360

LUIZ CARLOS SANTUÁRIO

Universidade de Caxias do Sul

A des-presença da filosofia e o processo de coisificação do humano-ser

(ou a filosofia e a domesticação do espanto)

“A Filosofia, na sua origem, não é um sistema doutrinal ou moral e sim uma atividade, a atividade da resolução de problemas necessários, isto é, impostos pela estrutura da nossa razão. Aprender a filosofia significa, antes de mais nada, aprender a filosofar, a usar a razão para responder aos seus próprios apelos.”1

A filosofia, numa bela definição de Manfredo A.de Oliveira:

“[...] a filosofia não é um saber sobre algo desconhecido, como é o caso do saber das ciências, saber sobre isto ou aquilo em tal ou qual perspectiva , mas saber-fundamento por tematizar os fundamentos ou o fundamento que nos é sempre conhecido, com o qual já temos familiaridade, que nos é íntimo, porque fundamento de nossas vidas e de tudo o que encontramos em nossa experiência.”2

A filosofia, entendida como atividade, como cultivo de uma atitu-de, como ação privilegiada, posto que surge posteriormente à re-flexão é aquilo que eticamente constitui o ser humano, em sua especificidade primordial.

Podemos inicialmente pensar a forma de nossa relação cotidiana, natural, com o mundo e com as coisas que nos rodeiam, como sendo caracterizada pela tendência a considerar tudo como já dado, como já compreendido, como já tematizado.

A atitude do senso comum, da atitude natural, não reflexiva, a-crítica, leva o sujeito a relacionar-se com o mundo e com as coisas de maneira a incorporá-los, a suprimir-lhes o caráter de estranheza e cau-sa a desnecessidade de questionamento constante. 1 LOPARIC, Z. A finitude da razão: observações sobre o logocentrismo kantiano. In: 200

anos da crítica da faculdade do juízo em Kant. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1992, p. 52. 2 OLIVEIRA , Manfredo A. Sobre a fundamentação. Porto Alegre: Ed. PUCRS.

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Filosofia, Lógica e Existência / 361

O Realismo ingênuo, a atitude natural, o modo cotidiano e espon-tâneo de ser, de estar voltado naturalmente às coisas, enca-ra/compreende o mundo, a Realidade, a totalidade das coisas e dos objetos como algo já dado, já compreendido.

Não é necessário mais pensar sobre as coisas. Não nos espantamos, não nos admiramos mais com nada que nos é dado.

Se legitimarmos como coerente, como válida, como verdadeira, es-ta atitude irrefletida, esta atitude do senso comum, seremos levados a relacionarmo-nos não com o mundo e com as coisas, enquanto elemen-tos que necessitam ser compreendidos, mas estaremos nos relacionando com a fisicalidade do mundo, com a presentificação exagerada, ino-portuna e imanente das coisas.

Neste caso, nossa ação estará dirigida ao mundo, às coisas e aos outros semelhantes em sua fisicalidade, em seu caráter de dado, em sua materialidade que, enquanto mera e simplesmente dada, é destitu-ída de sentido.

O mundo empírico, da materialidade, da fisicalidade do mundo, das coisas e dos outros, somente é acessível, mediante o realismo ingê-nuo da atitude natural. O senso comum, a atitude natural é a atitude daquele que, ingenuamente, pensa que já compreende, que já sabe e que, portanto, nada precisa apreender.

A legitimação, a constatação ingênua desta espontaneidade do mundo, implica a des-necessidade de aplicação de um software que, como instrumento de decodificação, nos indicasse a forma de relacio-nar-se com o dado/fato.

O senso comum, a atitude natural, o Realismo ingênuo, esta ma-neira ingênua e perigosa de encarar o Real, tomando-o como já dado, despresentifica o mundo, as coisas e os outros em sua especificidade ética.

O ser-humano qua ser-humano, isto é, para ser caracterizado e compreendido enquanto tal, não mantém com o mundo, com as coisas e com os outros uma relação imediatamente material, imediatamente empírica. O sujeito humano não é uma continuidade do/no mundo material. Ou, dito de outra forma, o homem não existe da mesma forma que as coisas existem.

O ser-humano mantém uma relação conceitual com o mundo, com as coisas e com os outros. O ser humano se relaciona, primordialmente com o conceito e não com a coisa mesma.

A Verdade, para a Filosofia, não é passível de ser obtida por reve-lação empírica, ou por recurso à estatística. A atitude meramente con-templativa, passiva e adesiva, frente ao empiricamente disponível, colo-ca o patamar de confecção de qualquer saber e, por extensão, a iden-tidade do sujeito em nível tautológico. (Penso em sentenças do tipo: Esta é uma mesa, este é um professor, esta é uma Universidade, etc.

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/ A des-presença da filosofia e o processo de coisificação do humano-ser 362

onde sujeito e objeto estão numa relação de espelho , portanto numa não-relação.)

Podemos pensar, por exemplo, que se a Educação persistir na ma-nutenção da pedagogia do adereço (ou seja, mera colagem externa (exterior ao indivíduo) de conteúdos), esta caricatura de pedagogia desemboca-rá, inevitavelmente, numa dublagem insabida da fala mimética do sujeito.

Este modo imanente, não filosófico, de existir , de con-formação com o empírico, supõe a atribuição de uma pré-inteligência às coisas, quase como se elas já possuíssem um texto original a compreender.

Sabemos como foi possível o surgimento da filosofia na Grécia, por volta do século V a.C., porque o homem grego cortou o cordão umbilical que o prendia às explicações mitológicas e passou a pensar sobre o mundo, a realidade. A indagá-la com os seus próprios instru-mentos (a racionalidade), o porquê das coisas, dos eventos, dos acontecimentos. Ao fermento indispensável para que isto pudesse ocorrer a história da filosofia denominou thaumátzein. Espanto/admiração, como elemento possibilitador do surgimento do pensar filosófico.

“Se superamos o que nos é dado na experiência, é em virtude de princípios que são nossos , princípios necessariamente subjetivos. O dado não pode fundar a operação pela qual ultrapassamos o dado.”3

As noções de experiência e de re-presentação nos levam a pensar que é constitutivo do homem ser transcendente. O ser-humano não ek-siste à maneira das coisas. Ele sempre existe “fora-de-si”, ele é sempre dife-rente de si-mesmo. A ele cabe continuamente a tarefa de traduzir o Real. O ser-humano não é uma continuidade do mundo. Ele somente pode ter uma relação com as coisas (objetos do mundo) enquanto elas lhe são re-a-presentadas, pois ele não as toca diretamente, senão através do nome, da linguagem, do símbolo. A presença do símbolo, para o ser-humano, permite-lhe superar a imanência física e espontânea do mun-do. Por isso, somente ele pode pensar sobre as coisas. A experiência (o imanente) não fornece os elementos para pensá-la. Somente o ser-humano pode re-fletir sobre as coisas.

O conhecer o objeto, instituído pelo reducionismo perpetrado pelo conhecimento científico, como elemento possibilitador da instrumenta-lização objetificadora dos objetos do mundo empírico permite a con-fusão entre o dado e o sentido do dado. A ciência faz uma intervenção cirúrgica na Realidade.

A ciência opera utilizando instrumentos em relação à Natureza. En-tretanto, se considerarmos que nós, seres humanos, somos uma descon-tinuidade do real, na medida em que o ser-humano não existe à maneira

3 DELEUZE , Gilles. A filosofia crítica de Kant. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 20.

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Filosofia, Lógica e Existência / 363

das coisas, não existe do mesmo modo como as coisas existem, não havendo uma continuidade natural entre as coisas [conquanto apenas empíricas] e nós. Teremos de compreender que o ser-humano, ao uti-lizar o significante (símbolo), re-constrói a ordem das coisas, doa sen-tido às coisas, outorga sentido à natureza. Mundo, como nos ensinou Hei-degger, não é o somatório físico ou empírico de objetos, mas é o modo próprio de ser do homem.

Se não existe esta continuidade entre o homem e a natureza, por ser o homem um ser histórico , cultural, supranatural, ou sobre-natural, na medida em que o uso do símbolo o separa inelutavelmente da na-tureza, como poderíamos dizer que a ciência opera sobre a natureza? Não estaríamos obrigados a dizer que ela, como prática (penso aqui, por exemplo, na prática cirúrgica) opera sobre uma determinada com-preensão (que ela mesma produz) da natureza?

A aquisicão meramente somativa do conhecimento que permite a instrumentalizacão do real, opera uma somatizacão do mundo, no sentido de quem compreende a somatizacão física do falante humano, como forma resolutiva da incapacidade do significante significar algo na e com a linguagem.

A Filosofia, eu a entendo assim, nada tem a dizer em relação ao mundo empírico, diretamente. Não se poderia falar de Filosofia a par-tir do mundo (apenas) empírico. Da mera somação de fatos, enquanto verificados a posteriori não pode advir um Saber (que implica funda-mentação) sobre o universal, o necessário e o verdadeiro, que é a te-mática do Saber filosófico. A ciência é um procedimento que se dirige ao a posteriori. Neste sentido, não pode nos apontar um caminho último para uma fundamentação irretorquível e um Saber irrefutável.

O ponto de vista ôntico, de visada heideggeriana, é aquele que se relaciona ao fático e ao contingente.

“O primeiro momento dialético corresponde ao ponto de vista ôntico, ao momento/locus da afecção sensível. O segundo momento é o momento da justificação do evento, através da linguagem.”4

A Filosofia, poderíamos dizê-lo, caracteriza-se por ser um debate sobre as condições de possibilidade de qualquer debate. O campo de atuação do que é especificamente filosófico é o espaço (não disponível ao olhar, portanto des-visível) onde se opera uma reflexão sobre o (já) fáctico, já existente, como disponível à verificação do olhar (conjunto de eventos intramundanos), que de nenhum modo configuram o que seja mundo, já que “mundo” é um modo próprio de ser do homem (en-quanto fal-t-ante, segundo a Psicanálise, pois para ela a fa(l)ta inaugu-

4 APEL, Karl-Otto. La transformación de la filosofia. Madrid: Taurus, 1985. v. 1, p. 92.

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/ A des-presença da filosofia e o processo de coisificação do humano-ser 364

ra o homem = perda do objeto e aquisição da linguagem que , para ela, são operações simultâneas). A Filosofia, como Teoria do significado, por conseguinte, opera no intervalo que separa o olhar do significado ou sentido.

O-LHAR Filosofia SIGNIFICADO/SENTIDO

Neste sentido podemos sempre dizer que a Filosofia visa explicitar o implícito, a tematizar o óbvio e, desta forma, pretende romper com a equívoca naturalidade com que se institui a nossa relação ao mundo, que jamais é algo já dado, mas que necessita sempre ser compreendi-do. A Filosofia quer ver para compreender e quer compreender para ver.

A Filosofia apresenta-se, por conseguinte, como uma meta-linguagem. Não é uma linguagem gerada, advinda do fato, ou do exem-plo. Ou seja, não foi da mera e passiva observação do mundo que surge a Filosofia, mas surge como uma ação, atividade que visa des-cobrir o sentido, o significado das coisas, posto que elas, apenas dadas, nada signi-ficam.

Para a Filosofia, a Realidade não entra pelos olhos, mas deve ser inter-pretada, compreendida. (Pense-se aqui na eficácia da Tele-visão.) A Filosofia não é um saber que se adquire/se constrói por somação, por acrescentamento de observações retiradas da experiência ou por re-curso à estatística. O saber filosófico não é um saber advindo da expe-riência. O fato não se explica e não se compreende enquanto apenas visto. Há a necessidade da intervenção compreensiva humana em re-lação ao fato.

Podemos compreender a Filosofia, então, como uma operação de retificação do olhar. Como um olhar que pretende ultrapassar o mero ní-vel do dado, da experiência fática. É uma atitude que tenta des-vendar o fundamento, o sentido daquilo que nos é fornecido pela ex-periência. A Filosofia é um saber não-somativo, isto é, não é saber acu-mulado pelo recolhimento dos dados da experiência sensível. Ao con-trário, o seu saber procura aplicar-se ao desvendamento do sentido da-quilo que nos é fornecido pela experiência.

Embora, cotidianamente, estejamos, de um lado a outro, ao redor de experiências empíricas (com a realidade), não podemos retirar da ex-periência os elementos necessários para lê-la ou compreender-lhe o sentido. (Idêntica situação existe, por exemplo, para o campo da Psica-nálise, pois não posso retirar da mera observação empírica dos dados observados a chave para sua decifração/compreensão.)

Isto nos indica, por conseguinte, a impossibilidade de haver aces-so/contacto com a realidade diretamente, mas, sim, necessariamente, o contacto é feito através da mediação/relação/representacional.

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Filosofia, Lógica e Existência / 365

O pressuposto metafísico, não-explícito que orienta o modo-de-ser do homem contemporâneo, em sua atitude não-filosófica, é de que o homem é uma coisa entre as demais coisas; de que o seu modo de existência é idêntico a todas as outras coisas, a todos os demais objetos que o circundam. Este modo de VER o homem o coloca e o considera como uma continuidade natural do mundo, coloca-o junto ao lado das demais coisas. Esta compreensão equivocada do efetivo estatuto ontológico do humano-ser permite engendrar aquilo que denomino mitos metafí-sicos, tais como:

a) metafísica do nominalismo: Na América Latina, por exemplo, en-gendramos o laço social através do pressuposto metafísico que basta prescrever um artigo numa Constituição para aplacarmos o problema na Realidade.

b) metafísica da representação: basta apenas “votar” no candidato x, y ou z, que todos os nossos problemas, e os problemas da sociedade estarão resolvidos para sempre. Daí que votamos com sentimento fute-bolístico.

c) metafísica da presença: basta estar fisicamente sentado no prédio físico (Bloco E, F, H, etc.), para supor que já se entrou na Universidade. Universidade, penso eu, não é um prédio; é um ente ideal, uma insti-tuição.

A conseqüência imediata disto é que abordagens, que deveriam referir-se ao software (nossa forma/maneira de Compreender), passam a referir-se apenas ao hardware (acontecimentos/atos físicos). Pense-se, por exemplo, nos “manuais” de Ética profissional.

Se, entretanto, considerarmos que a relação que o homem estabele-ce entre ele e o mundo não é uma relação de continuidade, de contigüi-dade, mas o seu como, o seu modo-de-ser é sempre um modo de ser medi-atizado pela presença da ausência (presença do símbolo/do significante) deveremos considerar que o caráter, o momento propriamente humano do homem é o seu momento re-flexivo, isto é, quando ele volta sobre si mesmo e sobre o seu modo próprio de ser e extrai, deste lugar, o saber, o conhecimento, o sentido e o significado. Isto é, propriamente, o que caracteriza a atitude filosófica, do des-vendamento do que nos constitui, da explicitação do implícito.

Isto nos leva necessariamente a pensar a questão da gramática. To-do saber institui-se a partir de uma certa gramática, que lhe é específi-ca. (Pense-se, por exemplo, em Medicina, na palavra bisturi, onde à palavra corresponde o objeto físico.) Esta gramática deve ser não ape-nas compreendida por todo aquele que se aproxima deste campo do saber, como toda crítica e reconstrução categorial deve ser feita em função do modo de operação e funcionamento daquela gramática. A decifração do sentido da forma de apresentação da linguagem filosófi-ca somente pode ser compreendida em função da compreensão da

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/ A des-presença da filosofia e o processo de coisificação do humano-ser 366

gramática, a partir da qual ela, linguagem filosófica, foi instituída, que não é a da linguagem civil da atitude ingênua. A filosofia é uma opera-ção de digitalização (re-construção digital) do sentido. Ou, utilizando-me metaforicamente das categorias do universo computacional: O mundo analógico do realismo ingênuo é re-construído digitalmente pela ativi-dade filosófica.

A sociedade da informação e do conhecimento que se descortina ante nós, que está substituindo a passos largos a sociedade da mão-de-obra, instituída pela revolução industrial necessita, cada vez mais agudamente, da produção de mediações que possibilitem compreen-der a ordenação desde sempre simbólica do mundo em que vivemos.

Neste sentido é prudente o alerta do Prof. Ernildo Stein que , em sua obra, Órfãos de utopia, a melancolia da esquerda, nos adverte:

“Será que, exatamente o racionalismo que procuramos introduzir em to-dos os níveis de nossa vida e nossa reflexão não foi trazido com pressa demais, por que absorvido de maneira muito superficial?”5

5 STEIN, Ernildo J. Orfàos de utopia – a melancolia da esquerda. Porto Alegre: Ed. UFRGS,

1993, p. 13.

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Filosofia, Lógica e Existência / 367

REINHOLDO ALOYSIO ULLMANN

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Plotino e os gnósticos

O conceito gnôsis encontramo-lo na teoria do conhecimento de Pla-tão, junto com a alétheia. A gnose e a verdade são determinadas pela idéia do Bem. Na Academia, gnôsis tem também o sentido de epistéme e constitui o pressuposto para o agir moral correto.

Durante séculos, exerceu influxo essa visão platônica. Porém, com o correr do tempo , ela sofreu profundas mudanças,1 revestindo-se de sentido religioso-soteriológico. Correntes de pensamento houve, que se diziam intérpretes de Platão,2 no entanto, fizeram uma amálgama de idéias míticas e cristãs, que resultou em doutrinas salvíficas escu-sas, abrangidas pelo termo genérico de gnosticismo. Sua difusão, nos primórdios do cristianismo , gerou confusões e heresias, sendo, por isso, rechaçado pela Igreja. Também um pagão – Plotino (205-270) – desmascarou os gnósticos. Ele é um dos representantes máximos do neoplatonismo.3

Neste trabalho , delinearemos os aspectos principais das Enéadas4 em que Plotino se mostra um vigoroso antignóstico , máxime na Enéada II, 9. Estamos, aqui, na presença de um dos tratados de significação

1 “Dank der grossen Reichweite der platonischen Philosophie hat sein Verständnis der

Gnosis jahrhundertelang gewirkt. Während dieser Zeit hat es jedoch manche inhaltlichen Veränderungen erfahren” (Historisches Wörterbuch der Philosophie (Basel/Stuttgart , 1974, Band 3, Sp. 715).

2 “Plotin considère le Gnosticisme comme une lecture perverse de Platon, qui fait des innovations injustifiées , falsifiant ainsi la sagesse antique. Le Gnosticisme est une atti-tude de revendication orgueilleuse, de refus de comprendre, d’ignorance délibérée. C’est pourquoi Plotin cherche, non pas tant à argumenter contre les Gnostiques (ce qu’il considérait comme une perte de temps), qu’à neutraliser leur influence en appro-fondissant la compréhension philosophique de ses élèves” (O’MEARA , Dominic. Plotin. Une introduction aux Ennéades. Paris: Éditions Du Cerf , 1992, p. 51).

3 Neoplatonismo é um conjunto doutrinal com expressão de forte sentimento religioso e tons de marcada mística.

4 Por que o nome Enéadas? Eis a resposta: “D’abord (Porphyre) a divisé certains traités de Plotin afin de faire monter leur nombre à 54. Le but de cette opération était d’atteindre un nombre qui soit le produit du chiffre parfait 6 (6 est à la fois 1+2+3 et 1X2X3) et du chiffre 9, symbole de la totalité en tant que dernier des nombres premiers (de 1 à 10)” (O’MEARA , op. cit., p.11).

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/ Plotino e os gnósticos 368

profunda, o qual ultrapassa, em interesse, o tempo histórico em que nasceu. Constitui, também, um dos protestos mais apaixonados5 con-tra o individualismo religioso imperante no mundo greco-romano da época. Plotino, desconsiderando o aspecto da revelação e a necessida-de de um salvador,6 combateu os gnósticos no campo da moral. No que tange à doutrina gnóstica em si, os ataques provieram dos Santos Padres.7

1 – O que é gnosticismo?

Plotino não nos dá uma definição de gnosticismo.8 A fim de en-tendê-lo, é mister tecer um pano de fundo histórico , para, depois, destacar-lhe as linhas mestras e relevar alguns nomes mais significati-vos. O assunto é complexo, com variadas nuanças; exauri-lo demanda-ria volumes e mais volumes.9

Pela história, sabemos que, depois dos triunfos de Alexandre Magno (356-323 a. C.), infiltraram-se no mundo greco-romano idéias orientais, especialmente o dualismo e o misticismo, além de mitos, que se fundiram com as noções de Platão, dos órficos, dos pitagóricos (sô-ma-sêma), dos persas (princípio do bem e do mal)10 e até dos hindus.11 Essas idéias foram fermentando e, no início de nossa era, acrescidas 5 “Plotin bekämpft die Gnosis mit einer Leidenschaftlichkeit , die ohne Paralelle ist” (H.-C.

PUECH. Plotin et les Gnostiques , in Les sources de Plotin. Genève: Vandoeuvres , 1957, p. 185).

6 O gnosticismo, como heresia , afirmava ser o homem capaz de auto-salvação, bastan-do, para tanto, o conhecimento de Deus. “Interesábales conocerse; pero sobre todo, lle-gar a la ‘gnosis’ de Dios en que estribaba la salud” (ORBE, S. J., Antonio. Introducción a la teologia de los siglos II y III. Salamanca: Sigueme, 1988, p. 22).

7 Entre eles, cumpre citar S. Irineu e S. Hipólito. Também do seio do paganismo surgi-ram investidas contra o gnosticismo. “What is more curious is that the Neo-Platonist Plotinus (c. 205-270) and his disciple Porphyry wrote equally earnest polemic against them (Gnostics)” (The Encyclopedia Americana. New York: Americana Corporation, 1962, v. 12, p. 73, col. 1).

8 [...] Plotin ne vise pas à exposer le système qu’il combat; il s’adresse à des auditeurs qui le connaissent bien, et il lui suffit de s’en tenir aux ‘points capitaux’; c’est-à-dire aux doctrines qui heurtent le plus violemment son optimisme et son sentiment de la ra-tionalité de l’univers” (PLOTIN, Ennéades II. Texte établi et traduit par Émile Bréhier. 2. ed. Paris: So-ciété D’Édition Les Belles Lettres , 1956. Notice, p. 104).

9 Basta citar, p. ex., a obra de Antonio ORBE, S. J., intitulada Cristologia gnóstica , em dois volumes , BAC, 1976, os quais somam 1249 páginas; do mesmo autor temos a obra an-tes citada, com 1053 páginas. (S. m. j., ORBE apresenta os seus textos sem didática). Além disso, na Theologische Realenzyklopädie, Band XIII, 1986 (Studienausgabe) , encon-tra-se um estudo minudencioso sobre o gnosticismo, da p. 519-550, com abundante indicação de bibliografia.

10 Cf. LLORCA, GARCÍA-VILLOSLADA, MONTALBÁN. Historia de la Iglesia Católica . 5. ed. Madrid: BAC, 1976, v. 1, p. 216-217.

11 A respeito da influência das filosofias orientais sobre o gnosticismo e sobre Plotino, cf. BRÉHIER, Émile. La filosofia de Plotino. Buenos Aires: Sudamericana , 1953, cap. VII – El Orientalismo de Plotino, p. 139-167; cf. etiam Vita Plotini, 3.

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Filosofia, Lógica e Existência / 369

de elementos cristãos.12 Tudo isso colaborou na formação do gnosti-cismo,13 isto é, no esforço de transformar o cristianismo numa simples filosofia religiosa, numa mistagogia de iniciações, o que não se coadu-nava com a simplicidade e a verdade do Evangelho.

O que, afinal, é gnosticismo?14 O termo deriva de gnostikós (aquele que tem gnôsis = conhecimento) e é usado para designar um movimen-to religioso da antiguidade tardia, fundamentalmente soteriológico ,15 com o qual a Igreja cristã entrou em contato.16 A hipótese de uma gno-se pré-cristã não tem confirmação.17

Dada a heterogeneidade de idéias que contém,18 é difícil, senão impossível, dar uma definição real dessa heresia.19 Devemos recorrer, então, à descrição das características essenciais,20 comuns aos múltiplos sistemas gnósticos.21

12 “Nell’etá di Plotino il paganesimo si sta avviando a grandi passi verso una triste

decadenza: la religione tradizionale ha già perduto la sua identità e apre le porte alle divinità straniere creando un sincretismo sempre più aggrovigliato che indica quanto siano disorientati gli animi nella ricerca di un fine superiore. [...]. Il clima religioso diventa demonopatico e gravemente irrazionale” (PLOTINO – Enneadi. Traduzione con testo greco a fronte, introduzione, note e bibliografia di Giusepe FAGGIN. 3. ed. Milano: Rusconi, 1992, p. XX, Introduzione).

13 “Simão Mago foi, sem dúvida, um precursor dos gnósticos. A virtude maravilhosa que ele se atribuía e, sobretudo, o que supunham nele os seus adoradores , o constituem um verdadeiro eon superior, o demiurgo dos gnósticos, uma emanação de Deus” (LLOR-CA, op. cit ., p. 219); cf. etiam At 8, 9-10.

14 É preciso distinguir entre gnose e gnosticismo. Aquela significa a doutrina soteriológica , comum aos diversos sistemas gnósticos. Gnosticismo é o termo reservado aos sistemas gnósticos em si, compendiados em textos, v. g., evangelhos apócrifos, cartas, etc.

15 “Gnosticism may be said to be the doctrine of salvation through knowledge of a parti-cular kind” (The Encyclopedia Americana, v. 12, p. 735, col. 1).

16 O embate das idéias gnósticas com o cristianismo mostrou as profundas divergências entre este e aquelas. Apesar da roupagem cristã, com que os gnósticos revestiam sua doutrina , as distorções do conteúdo mostravam claramente a sua extravagância , v. g., no tocante à criação do mundo, à redenção, ao destino do homem , etc. Enquanto o cris-tianismo se apresentava , doutrinariamente, como um bloco monolítico, os sistemas gnósticos não podiam ocultar sua fragmentação doutrinária.

17 Cf. Theologische Realenzyklopädie, Band XIII, p. 526, 29-31. 18 Evangelhos (apócrifos), Atos, Apocalipses , Tratados herméticos, Diálogos, Paráfrases ,

etc. nos dão conta da miscelânea de ensinamentos dos gnósticos (cf. The Encyclopedia Americana, v. 12, p. 736, col. 2).

19 “Gnosticism is not primarily or exclusively a Christian heresy bat rather a religion in its own right...” (Encyclopaedia Britannica . Chicago: William Benton, Publisher, 1969, v. 10, p. 505, col.2).

20 “Will man bei dieser Begriffsbestimmung nicht willkürlich verfahren, so kann man nur von Merkmalen der ‘Gnosis’ selbst ausgehen” (Karl RAHNER, in Lexikon für Theologie und Kirche. Zweite völling neu bearbeitete Auflage. Freburg: Verlag Herder, 1960. 4. Band , Sp. 1020).

21 Entre eles, contam-se os que designam nomes de grupos, como os ofitas, os peratas, os sethianos, os arcônticos, ou os que se denominam de acordo com os nomes dos fundadores: valentinianos, carpocratianos, marcosianos, severianos, ebionitas, etc. Todos eles se assinalam por particularidades que o presente trabalho não permite desenvolver.

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1. É um sistema de pensamento que visa responder às cruciais ques-tões da origem do mundo, da origem do mal,22 do motivo por que os homens aqui se sentem como estrangeiros, do que acontece a-pós a morte, das injustiças neste mundo e do caminho da salvação.

2. É, também, uma revelação,23 mediante a qual alguns homens pos-suem um conhecimento dado sobrenaturalmente,24 em particular, a poucos privilegiados (os pneumatikoí). Tal revelação, em parte, tra-ta de assuntos como cosmologia25 e escatologia.

3. A gnose é, igualmente, uma experiência, a saber: a de estar seguro de sua salvação.26 Pela gnose, o homem despertava para o conhe-cimento do seu ser, de sua origem e de seu destino. Em lugar dos argumentos da razão, o gnosticismo colocou uma visão inspirado-ra imediata.27

Algumas agremiações gnósticas procediam a encantamentos e ma-gias e faziam reuniões esotéricas,28 proibindo os membros de revela-rem os segredos.29

Dito isso, cumpre notar que também, no cristianismo, se fala em gnose. Em que sentido? Como conhecimento de Deus pela razão, sen-do a Filosofia propedêutica da Teologia. Essa gnose verdadeira, já defendida nos tempos apostólicos, estimulava o crescimento e a inten-sificação da fé nos dogmas (fides quaerens intellectum). Sob esse ângulo, São Paulo relaciona a gnose imediatamente a Deus como um dom es-pecial (1Cor 12, 8), o qual conduz ao ápice do conhecimento, equiva-

22 O gnosticismo vê este mundo como algo ruim, dominado por forças hostis (cf. Enéada

III, 2, 1, 5-10). 23 “Eine der Haupttatsachen ist der allmähliche Übergang der hellenistischen paganen

Theologie vom Vertrauen auf das Argument zu dem auf die unmittelbare inspiratoris-che Schau” (Lexikon für Theologie und Kirche, 4. Band , Sp. 1022).

24 “So Gnostic revelation is to be distinguished both from philosophical enlightenment , because it cannot be acquired by the forces of reason, and from Christian revelation be-cause it is not rooted in history and transmitted by Scripture. It is rather the intuition of the mystery of the self” (Encyclopaedia Britannica , v. 10, p. 506, col. 1).

25 “Die Gnosis wertet den Körper des Menschen wie alles Materielle unerbittlich als schle-cht. Damit hängt vorwiegend das zusammen, was man das gnostische Lebensgefühl nennen kann; es ist ein wirkliches Geworfenheitsgefühl” (Lexikon für Theologie und Kirche, 4. Band , Sp. 1023).

26 Garantia de vida feliz para a alma, após a morte, era também obtida pelos iniciados, puros, que participavam dos ritos eleusinos, na Grécia antiga. Eram os únicos que po-diam contar com a salvação na outra vida (cf. ROHDE, Erwin. Psique. México: Fondo de Cultura Económica, 1983, p. 128-135, especialmente p. 133ss.).

27 Cf. nota 23, supra. 28 “Einzelne Schulen der Gnostiker übten strenge Arkandisziplin. Jedes Mitglied musste

sich verpflichten, das ihm anvertraute unaussprechliche (epirrémata tôn mysterion) treu zu bewahren und über die Lehre im einzelnen zu schweigen” (Historisches Wörterbuch der Philosophie, Band 3, Sp. 716).

29 Aqui, reside uma das dificuldades de se conhecer o gnosticismo em toda a sua exten-são e profundidade.

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lendo a uma iluminação (2Cor 4, 6). A tal estágio a gnose orgulhosa dos homens não logra chegar (1Cor 8,1). Com o mesmo significado, os Santos Padres entendiam a gnose. A Didaqué caracteriza tudo que Je-sus ensinou como gnôsis kaì zoé (conhecimento e vida).30

A essas duas gnoses correspondem duas visões de mundo e de homem: de um lado, a dos falsos gnósticos, com seu mundo dramáti-co,31 pessimista32 e, ao mesmo passo, convictos de sua auto-suficiência, no que respeita à salvação da alma,33 de outro lado, a visão cristã, rea-lista, porém otimista e, embora reconhecendo o mal e o pecado no mundo,34 alimenta a certeza da salvação operada por Cristo.

Qual a posição de Plotino? Tal qual os cristãos, ele olhava o mun-do como belo,35 mas não aceitava alguns dogmas básicos da fé cristã, conforme veremos. Entretanto, acoimar simplesmente Plotino de gnóstico constitui exagero hermenêutico.36

2 – A que tipo de gnósticos Plotino se refere?

Podemos, agora, perguntar a que tipo de gnósticos Plotino se refe-re nas suas diatribes, uma vez que não os nomeia diretamente. Ele se dirige a ouvintes que têm conhecimento dessas seitas. Até o presente 30 Didaqué 9.3. Subjaz a essa gnose verdadeira a famosa expressão fides quaerens intellec-

tum , i. é, a busca de um conhecimento mais profundo da totalidade das verdades reve-ladas e sua relação com a existência do homem.

31 A dramaticidade está vinculada com o mundo produzido pelo demiurgo por ignorân-cia e erro. “[...] une importante doctrine gnostique soutenait que le créateur (démiurge) du monde avait agi dans l’ignorance et l’erreur, produisant ainsi un monde qui n’est pas fondé sur la connaissance vraie [...] (O’MEARA , op. cit., p. 51-52).

32 Na Enéada II, 9, PLOTINO arrola os seguidos verbos, para mostrar como os gnósticos viam o mundo como algo desprezível: ou timãn (= não respeitar) ; mémphestai (= quei-xar-se de); aithiástai (= acusar, culpar) ; pségein (= censurar, repreender); mataphronein (= menosprezar) ; asebein (= desrespeitar) ; misein (= odiar) ; loidoreisthai (= injuriar, insul-tar).

33 Em grande parte, a auto-salvação do homem está ligada à idéia do docetismo. 34 PLOTINO vê o mal como algo positivo: “[...] nombre de maux servent à une fin que est

bonne; les méchants seront finalement punis ; bien que les méchants soient responsables de leurs actes , ces actes sont intégrés dans un plan cosmique plus large et qui est bon; la bonté et la beauté de ce plan requièrent la diversité, les différences de perfection, comme une bone pièce de théâtre doit mettre en scène des malfaiteurs aussi bien que des héros” (O’MEARA , op. cit., p. 116). Será que esses argumentos são convincentes?

35 “Il mondo, certo, [...] non é senza limite e negatività, ma non è nemmeno il prodotto da intendere solo negativamente di una ‘caduta’ in senso gnostico; [...] grazie al suo esse-immagine riferita alla sua origine è il migliore di tutti i mondi” (BEIERWALTES, Wer-ner. Pensare l’Uno. Milano: Vita e Pensiero, 1991, p. 87); cf. etiam Enéada II, 9, 4, 26, 8 e III, 2, 12, 4.

36 “Num glaube ich nicht , dass Plotin in seinem Wesen gnostisch gewesen sei – keines-wegs! Aber ich habe den Eindruck, dass es in der ersten Epoche seiner Schriftstellerei ei-ne Reihe von Anspielungen gibt, die nicht sehr tief greifen, aber noch nicht anders bezei-chnet werden können als gnostisch” (H. C. PUECH, in Les sources de Plotin, p. 185).

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momento, dispomos especialmente de duas fontes, para identificar os gnósticos combatidos por Plotino: a Vita Plotini, de Porfírio, § 16, e o nono tratado de Enéada II. Outro acervo valioso é o da biblioteca de Nag-Hammadi, descoberta em 1945. Com a publicação e o aprofun-damento dos estudos dessa biblioteca, é de esperar-se apareçam as-pectos ainda desconhecidos do gnosticismo.

Plotino, é certo, refere-se tanto aos sethianos37 como aos valentini-anos.38 Os primeiros são aparentados aos ofitas39 ou aos barbelognósti-cos.40 Ainda no século IV de nossa era, havia representantes dos sethi-anos no Egito. Plotino , com certeza, os conhecia, pois estudara com Amônio Saccas em Alexandria.41 O valentinianismo contava com se-guidores em Roma no século III.42

Não pensemos, no entanto, ter existido um gnosticismo puro. Não, as diversas escolas gnósticas se conheciam e intercambiavam suas idéias. Com efeito, a literatura esotérica circulava entre os diferentes tipos de gnósticos, resultando um ecletismo acentuado. Isso não deixa dúvida de que, também em Roma, vigoravam diversas espécies de gnosticismo. Prova disso fornece a biblioteca gnóstica43 de Nag-Hammadi, possivelmente formada por sethianos; porém, a par das obras destes, ali também se encontravam escritos valentinianos.

Isso posto, vamos à Vita Plotini. Diz Porfírio: “Havia no seu tempo [de Plotino] numerosos cristãos e outros [kaì álloi] sectários [hairetikoí]

37 Cf. PUECH, loc. cit ., p. 161-162; etiam The Encyclopedia Americana, v. 12, p. 735-736. O

nome desses gnósticos deriva de Seth, um dos filhos de Eva. 38 Valentino ensinou em Roma, na metade do século II p. C. Inteligente, elaborou um

sistema gnóstico repleto de falácias, o que fez com que fosse expulso da Igreja. Os va-lentinianos foram os que, em princípios do século III, mais combateram e prejudicaram o cristianismo (cf. LLORCA, op. cit ., p. 220-221).

39 “Chama-se-lhes ofitas por atribuírem à serpente – óphis – um papel importante no desenvolvimento da criação” (LLORCA, op. cit ., p. 222). Mais explícita é esta explica-ção: “Os ofitas adoravam a serpente (óphis), porque se tinha rebelado contra o Deus dos judeus e trazido ao mundo o conhecimento do bem e do mal (gnósis)” (FRAI-LE/URDANOZ. Historia de la filosofia. Madrid: BAC, 1986, v. 2 (1°) , p. 106). Os princi-pais grupos ofitas foram: os naasenos, os sethitas, os peratas e os cainitas.

40 Segundo o mito gnóstico, Barbelo é um princípio feminino, divino. Originou-se assim: Deus, contemplando a sua imagem , refletida no oceano de luz, produziu o seu princí-pio feminino. Nos barbelitas, Barbelo fazia as vezes do lógos.

41 “Da Porfirio sappiamo che Ammonio nacque e fu educato in una famiglia cristiana e che, allorché si diede alla pratica della filosofia , tornò a abbracciare la religione pagana” (REALE, Giovanni. Storia della filosofia antica . 9. ed. Milano: Vita e Pensiero, 1992, v. 4, p. 462). Amônio por certo conhecia a doutrina da criação (id. ibid. P. 468), a qual Plo-tino expôs sob a forma de emanação.

42 “Le valentinisme a eu , au moins jusqu ’au début du IIIe. siècle, des représentants à Rome” (PUECH, loc. cit., p. 179). BEIERWALTES diz: “[...] la gnosi valentiniana è la prima destinataria della critica di Plotino” (op. cit., p. 92, nota 62).

43 Nada menos que 48 tratados gnósticos, da mais variada espécie, foram encontrados em Nag-Hammadi (cf. The Encyclopedia Americana, v. 12, p. 736, col. 2).

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da filosofia antiga [...].44 Quem eram esses outros sectários? Eram estra-nhos ao cristianismo ou eram cristãos? Parece não haver dúvida de que álloi deve ser relacionado com cristãos e que Porfírio estabelece uma diferença entre os genuínos seguidores de Cristo e um outro grupo que mesclava a filosofia antiga (gnosticismo) com elementos cris-tãos.45 Se-riam, pois, gnósticos cristãos, como os valentinianos, além de outros, por exemplo, ofitas, etc. Haíresis pode significar, aqui, uma heresia, no sentido canônico-eclesiástico46 ou, então, um grupo à parte de pessoas. É o que logramos deduzir das palavras de Plotino: “Em geral, eles [os gnósticos] tiraram algumas idéias de Platão, mas todas as novidades que acrescentaram para criar uma filosofia original [idían philosophían] são uma descoberta fora da verdade.”47 No mesmo trata-do, Plotino fala de que os gnósticos “visam à formação de uma dou-trina especial (eis sýstazin tés idías hairéseos)”.48 Plotino repreende os gnósticos por desfigurarem a filosofia de Platão. Hairetikoí parece ter um sentido técnico e um sentido um tanto pejorativo.

3 – Ataques diretos aos gnósticos

Plotino não só identificou esse grupo de pessoas à parte, mas ver-berou-lhes algumas atitudes. E, no tratamento dispensado aos gnósti-cos, mostra-se severo.49

1. Uma das facetas contra as quais nosso autor assesta as baterias é a conduta ética dos gnósticos. Plotino, habitualmente sereno em suas exposições, como que to-

mado de santa ira, fala de modo áspero: “Quando esses [gnósticos] afirmam que desprezam a beleza terrena, fariam melhor se desprezas-

44 Na Vita Plotini, 16, é empregado o termo hairetikoí, que deriva de haíresis. Essa palavra ,

oriunda de hairein (= tomar, tirar, escolher), a Igreja aplica-o aos hereges como tal. No entanto, haíresis também tem o sentido de seguidores de escola filosófica, de escola lite-rária, de seita religiosa, de partido político, facção (cf. BAILLY, A. Dictionnaire grec-français. Paris: Librairie Hachette, 1950, p. 47-48). LIDDLE-SCOTT registra os mesmos significados. A comunidade cristã primitiva também foi chamada haíresis por São Pau-lo (1Cor 11, 19; Tt 3, 10).

45 Os gnósticos se apresentavam como cristãos, mas para os escritores eclesiásticos não passavam de hereges stricto sensu, devido às distorções doutrinárias.

46 Heresia (de haíresis) é, em síntese, uma doutrina que se afasta dos dogmas católicos. 47 Enéada II, 9, 6, 10-12. 48 Enéada II, 9, 6, 6. 49 Por que tal severidade? “Sie (die Gnosis) war eine Gefahr, nicht nur weil sie bei seinen

Schülern Anklang fand ; sie muss auch sein eigenes Wesen angerührt haben” (PUECH, loc. cit., p. 185). Ademais , PLOTINO percebia o perigo de a filosofia helênica e a sua serem confundidas com o gnosticismo.

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sem a dos meninos e das mulheres, para não sucumbirem à inconti-nência” (libidinagem; akolousía, diz o grego).50

Aqui, é preciso observar que , se os gnósticos, sem exceção, tives-sem sido libertinos, Plotino nem os teria admitido51 em suas lições, dada a vida ilibada, virtuosa e correta que ele levava.52

Torna-se necessário lembrar que, por andarem na senda dos pita-góricos e de Platão, os gnósticos diziam ser o homem composto de dois elementos: o corpo (matéria má) e a alma, boa, aprisionada no corpo. Teoricamente, deveria haver um esforço moral de todos os gnósticos para dominarem a matéria má, com seus aliciamentos para o mal. Porém, não era assim. Duas condutas morais diametralmente opostas devem ser distinguidas entre eles: o ascetismo exagerado e a licenciosidade53. Os ascetas desprezavam as coisas mundanas, materi-ais e carnais. Porém, a imoralidade de alguns pneumatikol era notória54 pelo uso e abuso do corpo.55 Dependendo da seita, seus seguidores ou eram ascetas56 ou desbragados moralmente. Os da seita de Basílides passavam do ascetismo à libertinagem e vice-versa.57 Estamos diante de um antinomismo ético.

2. Da mesma gravidade que a libertinagem é a hipocrisia dos gnósti-cos, contra a qual Plotino se insurge, com estas palavras: “Não bas-ta dizer: ‘olhai para Deus’, se não se ensina como se deve olhá-lo. O que impede, de fato, poderia alguém dizer, de olhar a Deus, sem abster-se de nenhum prazer e sem reprimir a cólera, de re-cordar continuamente o nome de Deus , permanecendo sob o do-

50 Enéada II, 9, 17, 27-30. 51 “Plotin n’aurait jamais toléré dans son école des gens qui auraient érigé le libertinage en

principe” (PUECH, loc. cit., p. 187). 52 PLOTINO sempre primou pela honestidade (cf. Vita Plotini, 9, 10-15). Era gentil com

todos que com ele privavam (ibid., 9, 19); jamais teve um inimigo entre os políticos (i-bid., 9, 21-22). E, na hora da morte, diz a Eustóquio, seu médico: “Eu me esforço para reconduzir o divino, que existe em mim, ao divino que há no universo” (ibid., 2, 26-27).

O maior elogio tributado a PLOTINO encontramo-lo no oráculo de Apolo sobre o velho sábio grego. Interrogado por AMÉLIO, um dos discípulos e amigo de PLOTINO, Apolo assim falou: “[...] tu (Plotino) tiveste no coração a força de fugir à tempestade atordo-adora das paixões do corpo e chegaste nadando à margem tranqüila , longe da multi-dão dos maus, e asseguraste à tua alma pura um caminho reto, sobre o qual brilha a luz de Deus, onde as leis são puras, afastadas dos delitos e da injustiça” (ibid., 22, 26-31). É a glorificação de um pagão!

53 Cf. PUECH, loc. cit., p. 186-187. 54 Destacam-se, por sua imoralidade, os valentinianos e os carpocratas (cf. LLORCA...,

op. cit., p. 221). 55 Cf. PUECH, loc. cit., p. 186. 56 Ascetismo exagerado era pregado pelos encratitas, cujo fundador foi TACIANO, que

declarou guerra ao matrimônio por julgar que o pecado original da humanidade se de-veu ao sexo (cf. ORBE, Cristologia gnóstica , v. I, p. 161, nota 40). A abstenção do ma-trimônio visava a impedir a geração de filhos, a fim de não propagar mais ainda o pe-cado da carne.

57 Cf. PUECH, loc. cit., p. 187.

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mínio de todas as paixões, sem nada fazer para delas se libertar? Somente a virtude progressiva, acompanhada da prudência, nos manifestam Deus. Sem a verdadeira virtude, Deus não é senão um nome vazio.”58 O texto dispensa comentários.

3. Outro epíteto pouco honroso dado por Plotino aos gnósticos é o de charlatães. O autor das Enéadas59 dedica uma longa reflexão ao charlatanismo, da qual respigamos este pensamento central: “Esses [gnósticos] se gloriam de poder expulsar as doenças com fórmu-las60 e como tais se apresentam, crendo ser, dessarte, mais influen-tes junto ao vulgo que fica sempre extasiado diante dos poderes mágicos”,61 “porém, não poderão jamais persuadir as gentes sensa-tas de que as doenças não têm as suas causas nas fadigas, no ex-cesso ou na deficiência, nas putrefações, isto é, em transformações que têm sua origem ou dentro ou fora de nós”.62 “Os gnósticos consideram as doenças como seres demoníacos.”63 Poderia Plotino ter falado mais claramente? Só a plebe ignara se deixa iludir pelos gnósticos charlatães,64 e as doenças não são algo demoníaco. Por isso, ele usa uma linguagem parenética: “Quando, pois, pretendem livrar-se [e os outros] das doenças, teriam razão, se o quisessem fazer mediante a temperança e com uma dieta ordenada, como di-zem os filósofos.”65 É tão sedutora a palavra do velho sábio grego,66 que não nos pode-

mos furtar a apresentar mais uma parte do tratado em pauta, no qual ele contrapõe a sua doutrina à dos gnósticos: “[...] a filosofia que nós pregamos recomenda, a par dos outros bens, a simplicidade dos cos-tumes e a pureza de pensamento, a austeridade e não a arrogância; e isso nos inspira confiança, acompanhada da razão e de segurança, de prudência e extrema circunspeção. A doutrina dos adversários opõe-se por inteiro à nossa. E não mais me convém falar a respeito deles.”67 58 Enéada II, 9, 15, 34-40. 59 Cf. Enéada II, 9, 14,1 36. 60 “Hier ist auf die besondere Bedeutung des ‘Irrationalismus’ gerade für die gebildeten

Schichten des Reiches im 1. und 2. Jh. n. Chr. zu verweisen. Dieser betrifft das Aufthe-ben von Astrologie, wunderhaften Geschichten, Magie und gleichzeitiger Skepsis gegen vernünftiges Erkennen, dem ein Offenbarungsglanbe entspricht” (Theologische Realenzyklopädie, Band 13, p. 526).

61 “[...] les gnostiques pratiquaient donc deux formes de magie, la conjuration des pou-coirs célestes [...] et l’exorcisme des démons” (BRÉHIER, loc. cit., p. 130-131, note 2).

62 Enéada II, 9, 14, 20. 63 Enéada II, 9, 14, 15. 64 PLOTINO criticou a astrologia: Enéada II, 3, 1 e II, 1, 5 e 6. Também refutou a falácia

dos horóscopos (cf. Vita Plotini, 15). 65 Enéada II, 9, 11, 11-14. 66 No mundo islâmico medieval, o nome de Plotino, embora se lhe conhecessem as obras,

ficou encoberto pelo anonimato. Os árabes a ele se referiam, denominando-o o velho homem ou sábio grego (cf. O’MEARA , op. cit., p. 152-153).

67 Enéada II, 9, 14, 39-45.

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Na Enéada II, 15, 8-9; 10-20, Plotino assevera que a moral dos gnósticos é inferior à de Epicuro, “o qual aconselha procurar a satisfação no prazer”,68 ao passo que “essa [= doutrina dos gnósticos] é bem mais temerária, porque ridiculariza a virtude da temperança; [...] destroem a temperança e a justiça inata nos corações;[...] e só pensam no interesse próprio.”

Para chegar a esse conjunto de acusações graves, com certeza Plo-tino levou longo tempo, amadurecendo a idéia de romper com os gnósticos de uma vez por todas. Logo que chegou a Roma, em 244, e começou a ministrar suas lições, Plotino encontrou, entre seus ouvin-tes, sectários do gnosticismo , com os quais discutia os seus pontos de vista,69 sem chegar a convencê-los de seus desvios doutrinários. Essa crise, sem dúvida, demorada, eclodiu, por fim, com as diatribes assa-cadas aos gnósticos que, em peso, devem ter abandonado as lições do mestre.70

4 – Concordismo de Plotino com os gnósticos?

A quem lê a obra de Plotino pode parecer que entre ele e os gnós-ticos havia uma comunhão de idéias, um concordismo. Há que notar-se, entretanto, que tal coincidência não significa, em absoluto, filiação gnóstica. A coincidência e a semelhança de idéias resultam da essência do neoplatonismo professado por Plotino e inspirador de traços típi-cos do gnosticismo. Ambos beberam da mesma fonte, mas a exegese era diversa.71 Se há semelhanças e coincidências de pensamento,72 não se podem obliterar as grandes diferenças entre Plotino e os gnósticos. 68 Certamente, por apenas conhecer de oitiva o epicurismo, Plotino lhe qualifica a moral

como moral do prazer sensual. Essa interpretação, ainda hoje em voga , é de todo em todo infundada. Epicuro pregou uma moral severa , visando ao prazer do espírito. Predominou, na história , o aspecto frascário, devido ao desbragamento moral de al-guns dos seguidores do epicurismo. Veja-se, a esse respeito, meu livro Epicuro – o filóso-fo da alegria. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

69 Cf. O’MEARA , op. cit., p. 10 e 51. 70 “Les gnostiques ont dû déserter l’école”, consta sumariamente em PUECH, loc. cit., p.

183. “[...] le Gnosticisme luí [= à Plotin] est-il apparu comme une caricature de certains aspects de sa pensée” (id. ibid., p. 185).

71 “Plotin ist sich, als er die Schrift II 9 (33) abfasste, bewusst geworden, dass seine, die philosophische Folgerichtigkeit ihn zu Ergebnissen gerade im theologischen Bereich fü-hrte, die mit den Folgerungen der Gnostiker unvereinbar waren” (PUECH, loc. cit., p. 190).

72 Antes de Plotino tomar nítida posição antignóstica, encontram-se teorias, em vários tratados das Enéadas, que, por seu dualismo acentuado, parecem assemelhar-se às i-déias dos gnósticos: a concepção do corpo como mau, a morte como libertação, a con-denação das coisas materiais , um certo pessimismo, etc. Cumpre notar que, apesar das analogias entre Plotino e os gnósticos, o problema inicial do velho sábio grego é idên-tico ao deles e ao de sua época – salvar a alma e libertar-se do mundo. Na evolução do seu pensamento, Plotino atenua o dualismo e considera a matéria , i. é, o mundo belo,

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Faz-se mister observar que , à medida que foi amadurecendo, Plo-tino se afastou sempre mais de concepções que poderiam assemelhá-lo às dos seus adversários. Detalhemos alguns pontos:

1. Plotino dá aos seus ouvintes o nome de phíloi,73 o que sugere indi-car simpatia, não apenas no plano afetivo, mas até na doutrina. No entanto, o termo phíloi deve ser considerado como expressão de boa educação, por parte de Plotino , ainda que tratasse com adver-sários no campo das idéias. E eram adversários contumazes. “Per-sistem nela [= na sua doutrina gnóstica] não sei por quê.”74 “Nada pode convencê-los do contrário.”75 Por seu turno, os gnósticos chamavam de irmãos (adelphoí) os de suas comunidades.76 Por conseguinte, da palavra amigos, isoladamente tomada, não se

pode inferir simpatia doutrinária, pois, no mesmo tratado, confessa que não adianta querer refutar-lhes as idéias.

2. Dualismo corpo e alma. A concepção plotiniana do corpo como algo mau – sepultura da alma – é idêntica à dos gnósticos.77 Tam-bém Plotino, seguindo a esteira de Platão, adota o dualismo cor-po-alma.78 Porém, verifica-se uma gradativa atenuação do dualis-mo e um crescente otimismo quanto ao corpo.79 E o problema parece agudizar-se, pois a todos quantos lêem a Vita

Plotini causa espécie o silêncio de Plotino sobre sua origem, sua famí-lia. Já a primeira frase da Vita soa assim: “Plotino, o filósofo que era nosso contemporâneo, parecia envergonhar-se [aischrynoménon] de estar num corpo.”80 “Nem permitiu que lhe fizessem um retrato ou escultura.”81 No entanto, essa não era uma característica típica de Plo-tino, porquanto destaca a beleza do corpo humano , em virtude da

servindo de degrau para elevar-se à Beleza em si, ao Uno.

73 Enéada II, 9, 10, 3-4. 74 Enéada II, 9, 10, 5. 75 Enéada II, 9, 10, 9. 76 Enéada II, 9, 18, 17ss. “[...] les différences de sexe et de culture (grecque, barbare) n’ont

pas la même importance que chez Platon et Aristote. Le cosmopolitisme de l’Empire romain, la citoyenneté cosmique préconisée par les Stoïciens , sont devenus chez Plotin la communauté transcendante universelle des ‘âmes-soeurs’ “ (O’MEARA , op. cit., p. 158).

77 Cf. CHARRUE, Jean-Michel. Plotin-lecteur de Platon. 3. ed. Paris: Société D’Édition Les Belles Lettres, 1993, p. 187-188.

78 A imagem do corpo-sepultura e do corpo-prisão ocorre em vários tratados, p. ex.: Enéada IV, 8, 1, 29-31; Enéada IV, 8, 3, 1. 1-5.

79 Na Enéada V, 3, 6, 1s, Plotino diz que é preciso contemplar na imagem o arquétipo. Aqui, sem dúvida, ele se reporta à primeira parte do Parmênides de Platão, onde se lê que pe-la méthexis o sensível se vincula com o inteligível (mundo das Idéias). Por isso, este mundo é um reflexo, um espelho, uma imagem do Uno.

80 Cf. Vita Plotini, 1, 1-2. 81 Ibid., 1, 5-6.

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alma: “A alma também torna belos os corpos, porque ela é divina e uma parte do belo” (moira tou kalou).82

3. A matéria (o mundo material) os gnósticos viam-na como obra de um demiurgo mau.83 Plotino pensa diversamente. A fim de com-preender o mal no mundo (pobreza, condições políticas e econô-micas adversas) é preciso ver o conjunto, coordenado pela provi-dência, para torná-lo o melhor possível. 84 “Quem acusa o todo, o-lhando as partes, faz uma acusação absurda, porque é preciso e-xaminar as partes em relação ao todo [...] e examinar o todo, sem firmar-se em pequenos detalhes.”85

4. Áphele pánta86 representa um mote da filosofia plotiniana, signifi-cando elimina tudo!87 “Infeliz é somente aquele que não pode pos-suir o Belo [= o Uno]. Para possuí-lo, é necessário deixar de parte os reinos e o domínio de toda a terra, do mar e do céu, abando-nando-os e sendo sobranceiros a eles, se queremos voltar-nos a Ele e vê-lo.”88 Não se trata de desprezo das coisas materiais, à ma-neira gnóstica,89 mas de desvinculação de todas as coisas exterio-res e interiores que impedem a meditação das realidades espiritu-ais, a interiorização,90 a qual culmina no êxtase, na purificação,91 a-través do aperfeiçoamento ético , da prática da virtude.92 É uma lí-dima anagogia, uma ascensão, um retorno.93 O êxtase nada mais é do que a semelhança com o Uno (= Deus).94

82 Enéada I, 6, 8, 30-31; cf. etiam I, 6, 8, 5-10. 83 Enéada III, 2, 1, 5-10. 84 Cf. Enéada III, 2, 1, 15-20. 85 Enéada II, 2, 3, 10-13; cf. etiam O’MEARA , op. cit., p. 107. 86 Enéada V, 3, 17, 38. 87 “É questa, senza dubbio, la concezione più radicale che si riscontra nella storia del

pensiero antico” (REALE, op. cit., v. IV, p. 599). 88 Enéada I, 6, 7, 36-39. 89 Cf. Enéada II, 9, 5, 21; cf. etiam nota 32, supra. 90 Cf. Enéada VI, 8, 18, 1s; V, 1, 10, 10; VI, 9, 7, 17s. 91 A purificação exerce um papel importante na filosofia de Plotino, “porque nos torna

semelhantes a Deus” (Enéada I, 2, 5, 1-2; I, 2, 3, 10-12). “Il ne faut pas donc la croire [= la purification] séparée fondamentalement de la contemplation. Elle est la condition pré-alable de la contemplation qu’elle précède et qu’elle prépare. De sorte qu’elle forme a-vec elle une même reálité indissociable” (CHARRUE, op. cit., p. 190).

92 Por virtude Plotino entende as virtudes cívicas – sabedoria , coragem , temperança, justiça – como são definidas por Platão (República, IV, 428b-444a), e que implicam as-senhoreamento de si. “Cette maîtrise nous permet de nous détacher mentalement des préoccupations matérielles [...], a fin de découvrir notre moi en tant qu’âme, réalité di-vine indépendante du corps et antérieure à lui, qui fait le corps et lui transmet sa bonté et se beauté” (O’MEARA , op. cit., p. 139).

93 “[...]c’est un ‘retour’ d’un effet à sa cause, une ‘référence’ qui, certes , n’a rien de spati-al, mais où la dimension verticale (lá-haut) sert d’image” (AUBIN, Paul. Plotin et le C-hristianisme. Paris: Beauchesne Éditeur, 1992, p. 86).

94 Cf. Enéada I, 2, 1, 3.

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5. Ligada à renúncia (aphaíresis) de tudo, está a idéia de fuga do mun-do.95 O que é essa fuga? Tornar-se semelhante a Deus.96 Plotino aqui repete uma expressão platônica.97 A fuga plotiniana nada tem de desprezo da matéria, a qual não constitui um obstáculo intranspo-nível ao retorno da alma para o Pai, como diz Plotino: “Nossa pá-tria é aquela de onde vimos e lá está nosso Pai.”98 O que significa Pai? Aubin no-lo elucida: “Pai designa uma origem à qual deve conduzir a anagogia. A paternidade da qual aqui se trata nada mais é do que uma metáfora entre outras [...].”99 Em face de tudo isso, concluímos carecer de fundamento a afirmação de que Ploti-no era gnóstico. Pelo contrário, a visão gnóstica do mundo e do homem dos seus opositores deveu parecer-lhe uma caricatura do seu pensamento.100

5 – Plotino e o cristianismo

Visto Plotino ter dirigido violentos ataques ao gnosticismo , inde-pendentemente (?) dos Padres da Igreja, vejamos, em rápido escorço , a postura do autor das Enéadas em relação ao cristianismo.

1. Sabemos, indiretamente, que o velho sábio grego estava informado sobre a fé cristã, por causa de sua estada em Alexandria, de 233 a 242, período em que se dedicou à filosofia, tendo por mestre A-mônio Saccas. Ora, consta que Amônio nasceu e foi educado numa família cristã, mas, entregando-se à prática da filosofia, abraçou a religião pagã.101 É fácil inferir que a longa convivência com Amô-nio familiarizou Plotino com aspectos do Antigo Testamento, v. g., criação,102 e com a doutrina do Nazareno. Ademais, em Roma, com os ouvintes cristãos, por certo, não raro, terá travado discussões sobre dogmas da fé, assim como o fazia com os gnósticos a respei-to do que professavam.

95 Enéada I, 6, 8, 17. 96 Enéada I, 2, 1, 3. O desejo da alma pura de tornar-se semelhante a Deus é impulsiona-

do pelo amor. Por isso, ela se eleva do mundo sensível ao mundo inteligível, desbas-tando os defeitos próprios do ser humano, como o escultor desbasta o mármore ao es-culpir uma estátua.

97 Cf. República, 613 e Teeteto, 176. 98 Enéada I, 6, 8, 21-22. 99 Cf. AUBIN, op. cit., p. 95. 100 Cf. PUECH, loc. cit., p. 185. 101 Cf. Nota 41 supra. “Logo, em Alexandria, aos 28 anos [Plotino] freqüentou alguns

mestres que não lograram satisfazê-lo; ao fim e ao cabo, por conselho de um amigo, se acercou de Amônio Saccas, que desencadeou sua vocação e de quem foi discípulo por mais de dez anos” (REYES, Alfonso. La filosofia helenística . 3. reimpr. México: Fondo de Cultura Económica, 1987, p. 246).

102 Cf. REALE, op. cit., v. IV, p. 95.

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2. Apesar das noções que tinha sobre o cristianismo , suas divergên-cias com ele em pontos basilares são profundas. Sua atitude antig-nóstica corre parelha com seu posicionamento anticristão. Exempli-fiquemos:

a – Plotino admite a criação (= emanação!), porém, ela é eterna.103 Dessarte, ele contradiz a religião cristã. De passagem, vale recordar que emanação, no sentido plotiniano, não significa panteísmo, mas panenteísmo.104

b – Para os cristãos, a salvação depende da graça de Deus , da for-ça redentora de Cristo pela morte na cruz. Plotino dispensa a encarna-ção do Verbo.105 Segundo a fé cristã, o retorno do homem ao Deus criador é condicionado pela aceitação da mensagem de Jesus. Para Plotino, a graça de Deus é desnecessária, porque o homem pode auto-redimir-se.106 A salvação é tarefa exclusiva do homem. Ele é o artífice de sua salvação.107

c – A par disso, Plotino nega a ressurreição da carne, conforme o afirmam explicitamente as suas palavras: “O verdadeiro despertar consiste em levantar-se sem o corpo, e não com ele; pois a mudança de um corpo é passar de um sono a outro sono , como de um leito a ou-tro. Levantar-se verdadeiramente é separar-se por completo dos cor-pos [...].”108 Essa assertiva solapa totalmente o cristianismo para o qual, se Jesus não tivesse ressurgido dos mortos, a fé seria vã.

d – Outro dogma que, porém falsamente, se diz ter sido entrevisto por Plotino, é o da Santíssima Trindade, por causa das três hipóstases (Uno, Espírito, Alma do mundo), a julgar pelo título da Enéada V, 1, 10 (Peri tôn triôn archikôn hypostáseon). Cumpre notar que esse título, como os dos demais tratados, na grande maioria, não foi dado por Plotino , mas por Porfírio. Além disso, Plotino de fato não afirma nem nega a Trindade cristã, embora muitos autores, máxime antigos, tenham fa-lado em Trindade plotiniana.

103 “Le monde dérive éternellement de l’âme tout comme l’âme et l’intellect dérivent éter-

nel-lement de l’Un” (O’MEARA , op. cit., p. 103). 104 “L’emanatismo (plotiniano) sostenendo l’inferiorità dell’emanato, non intende negare la

trascendenza del Princípio, ma insiste maggiormente sull’immanenza dell’emanato. Dio non si identifica all’universo, ma è fonte dell’universo; Dio non è l’universo, e l’universo è in Dio: propiamente panenteismo, e non panteismo” (Enciclopedia Filosofia. Venezia/Roma: Instituto per la Collaborazione Culturale, 1957, v. 1, col. 1862).

105 “Lo (stesso) principio cardine del cristianesimo del Dio che si fa carne, restando vero Dio e divenendo, insieme, vero uomo non poteva essere da Plotino accolto, né nel suo significato rivoluzionario di evento storico, né nel suo significato metafisico e teologico” (REALE, op. cit., v. 4, p. 486).

106 “A salvação não requer nenhuma ajuda extrínseca, mas é o resultado do próprio esfor-ço individual. O Uno está presente em todas as coisas e, portanto, também no homem. Basta querer chegar a Ele, para consegui-lo” (FRAILE/URDANOZ, op. cit., p. 737).

107 Cf. REALE, op. cit., v. IV, p. 605; etiam p. 486. 108 Enéada, III, 6, 6, 71-75.

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Filosofia, Lógica e Existência / 381

Tendo escutado as lições de Amônio Saccas, é plausível que Ploti-no conhecesse o dogma da Trindade. Os primeiros Padres da Igreja (Eusébio de Cesaréia, Teodoreto de Ciro, Clemente de Alexandria, num concordismo complacente, fizeram de Plotino uma leitura cris-tã,109 no que erraram. Não nos detemos neste assunto, por ultrapassar o plano do presente trabalho. Limitamo-nos apenas a algumas obser-vações relativas à linguagem de Plotino e à dos Santos Padres. É certo que entre a teologia de Plotino e a dos Padres há pontes. Ambos tra-tam de temas comuns. Isso não deve causar estranheza, porque os escritores cristãos e pagãos cultos serviram-se da linguagem do seu tempo, que é expressão da cultura, na qual medrava o cristianismo e florescia o neoplatonismo. Demais isso, nas escolas, imbuíram-se do mesmo modelo da arte de pensar. É inegável e sabido que os cristãos aproveitaram não poucas idéias do paganismo. Por isso, os loci com-munes manifestam a cultura comum do neoplatonismo e do cristianis-mo.110 Quem imitou a quem? Quem emprestou idéias a quem?

Além de negar dogmas cristãos, Plotino também difundiu alguns erros.

a – Paradoxalmente, em sua escatologia, ele admite a reencarnação (palingenesia), no que segue Platão, em Leis e Fedro. Por que Plotino professa a reencarnação? Para punir as ações más. Ela é um postulado, para que se cumpra a justiça. Aqui, Plotino defende a pena de talião: “Houve um tempo em que se praticou o que agora se sofre.”111 Os cas-tigos, neste mundo, não acontecem por acaso. E no mesmo passo, há pouco citado, o autor prossegue: “Quem matou a sua mãe, renascerá mulher, a fim de ser morto pelo próprio filho; quem violentou uma mulher, renascerá para ser violentado.”112 Com evidência meridiana, apresenta-se a transmigração das almas para corpos humanos, a fim de pagar as culpas. Isso não gera um processus in infinitum?... E há também reencarnação em corpos de animais? Plotino responde reti-centemente: “Se, como se diz, nele há almas humanas que pecaram, a parte superior e separada das almas nunca se une com os animais; ela os assiste, sem neles estar presente.”113

Em defendendo a idéia de palingenesia, Plotino se coloca em pé de igualdade com alguns ramos gnósticos.114

109 “À travers ce concordisme apologétique l’habitude se prend d’envisager la philosophie

de Plotin – ou du moins ce que l’on connait de ses oeuvres –, dans une perspective tri-nitaire. Il y a toutefois deux Pères de l’Èglise qui, sur ce point , se montrent quelque peu réticents: Basile de Césarée et Augustin” (AUBIN, op. cit., p. 31).

110 Cf. AUBIN, op. cit., p.6. 111 Enéada, III, 2, 13, 13-14. 112 Enéada, III, 2, 11, 14-16. 113 Enéada, I, 1, 11, 9-11. 114 Contam-se, entre eles, os basilidianos, os quais também admitiam encarnações de

almas em corpos de brutos, “de acordo com a diferença de seu pecado” (Cf. ORBE,

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b – Para fugir a reencarnações sem fim, pois a alma é imortal,115

Plotino tem que admitir a apocatástase,116 a qual, entre os estóicos, inspirando-se em Heráclito (540-480 a.C.), tinha o significado de re-torno cíclico do cosmo ao fogo universal (ekpýrôsis).117 Em Orígenes (185-240), o termo assumiu um sentido escatológico, isto é, ao fim e ao cabo, também os condenados ao inferno serão salvos pela bondade de Deus. Embora Plotino não o afirme explicitamente, é nesse sentido que deve entender-se a posição dele.118

c – No plano moral, Plotino, seguindo o pensamento dos estóicos, defendeu o suicídio, mas um suicídio racional,119 em caso específico. Em princípio, a alma não deve ser separada violentamente do corpo.120 O suicídio pode ser praticado, quando se pressente a iminência da insânia, porque, então, “o suicídio deverá ser posto entre os aconteci-mentos necessários, que se aceitam devido às circunstâncias; o uso de venenos não é, por certo, vantajoso para a alma. O tempo dado a cada um foi fixado pelo destino; é danoso antecipá-lo [...]; enquanto se po-de progredir , não é preciso fazer sair do corpo a alma.”121

6 – A influência do gnosticismo

Ficaria truncado nosso estudo, se não aludíssemos, ainda que su-cintamente, à influência do gnosticismo. Destacaremos alguns pontos de influxo negativo e positivo e citaremos de passagem movimentos gnósticos contemporâneos. Se hoje vivesse, Plotino teria a quem com-bater.

6.1 – Influxo negativo

Cristologia gnóstica , v. 2, p. 583, nota 78).

115 A respeito da imortalidade da alma, conforme Plotino, veja-se a exposição de CHAR-RUE, op. cit., p. 195-204.

116 Cf. Denzinger/Schönmetzer, n. 403. 117 Cf. MONDOLFO, Rodolfo. Heráclito. Textos y problemas de su interpretación. 9. ed. Méxi-

co: Siglo Veintuno, 1989, p. 231-284. 118 “Qui nessuna perdizione eterna é concepibile: tutte le anime devono ritornare all’Uno e

reintegrarsi nell’Uno; l’apokatástasis [...] acquista qui quel valore etico-soteriologico, che al cristiano Origine ispirava la negazione delle pene eterne” (Enciclopédia Filosófica , v. 1, co. 1863).

119 Enéada, I, 9, (16). 120 Enéada, I, 9, (16), 1, 1. 121 Enéada, I, 9, (16), 11-19.

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Filosofia, Lógica e Existência / 383

a – O gnosticismo provocou confusão entre os cristãos, por apre-sentar, de mistura, sob roupagem cristã, a doutrina do Evangelho e mitos pagãos.122

b – Docetismo: alguns ramos gnósticos negavam a humanidade de Cristo. O termo deriva do verbo dokein e significa parecer. Isso quer dizer que Cristo tinha apenas um corpo aparente.123 Contra essa visão voltaram-se os Santos Padres.

c – Os gnósticos anularam a unidade do gênero humano, dividin-do-o em três classes: os espirituais, os psíquicos, os materiais.124 Valentino é quem mais ressalta a distinção fundamental entre as três classes de homens.125 Os primeiros, os espirituais ou gnósticos, já têm garantida a salvação por causa de uma revelação especial e não precisam preocupar-se com nenhuma norma de moral. Os segundos são os que não têm pneuma, ou seja, os cristãos comuns, sem capacidade de chegar à verdadeira gnose. Vivem da fé. Nos materiais ou hílicos estão abrangidos os pagãos, sem nenhuma esperança de salvação.

6.2 – Influxo positivo

Paralelamente à influência deletérea, o gnosticismo também surtiu efeitos benéficos no cristianismo primitivo, dos quais respigamos al-guns.

a – Estimulou, por parte dos teólogos católicos, o desenvolvimen-to dos dogmas,126 p. ex., Trindade, encarnação,127 humanidade e di-vindade de Cristo (contra o docetismo), ressurreição, necessidade da graça de Deus para a salvação, compatibilidade entre fé e conhecimen-to racional. Com isso, surgiu uma abundante literatura apologética (Eusébio, Irineu, Tertuliano, etc.).128

b – Em face dos evangelhos, dos atos, das epístolas, das revela-ções e dos textos apócrifos, disseminados pelos gnósticos, a Igreja

122 Cf. LLORCA, op. cit., v. 1, p. 217. 123 “Essa doutrina [...] se reduzia à idéia de que Cristo não tomou um corpo verdadeiro, já

que a matéria é algo intrinsecamente mau, senão um corpo aparente” (LLORCA, op. cit., v. 1, p. 219).

124 Cf. ORBE, Introducción a la teologia de los siglos II y III, p. 187. 125 Cf. LLORCA, op. cit., v. 1, p. 218. 126 “Vielfach wird aus dem Boden der Gnosis die spätere christliche Entwicklung voraus-

genommen” (Historisches Wörterbuch der Philosophie, Band 3, Sp. 717). 127 “O desprezo dos ‘espirituais’ (respectivamente gnósticos) pela carne envolve tristemen-

te em igual desprezo os mistérios da vida terrena de Cristo” (ORBE, Introducción a la te-ología..., p. 1053).

128 “Den wichtigsten Lehren des Gnostizismus entspricht auf der Seite der grosskirchlichen Theologen ein Zuwachs an dogmatischer Entfaltung” (Lexikon für Theologie und Kirche, 4. Band , Sp. 1029-1030).

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cristã empenhou-se por fixar os textos canônicos do Antigo Testamen-to e Novo Testamento.

c – O dualismo corpo-alma, considerando a matéria como algo ru-im (ein wirkliches Geworfenheitsgefühl)129 foi desterrado; pelos cristãos foi dado realce ao homem como criatura de Deus integralmente boa. Ver-dade é que o maniqueísmo, no século III, retomou os pensamentos pessimistas sobre o corpo humano, chegando a difundir a idéia de que o intercurso sexual, mesmo para a procriação do gênero humano, era pecaminoso. Em outras palavras, Mani pregava abertamente o fim da humanidade. Sua doutrina estendeu-se pela Ásia até à Mongólia, no século IX. No medievo, os cátaros130 fizeram reviver concepções mani-queístas.

d – O interesse por hinários cristãos foi desenvolvido como forma de emular com os gnósticos que apreciavam cantar salmos, hinos e cantos espirituais.131

e – À multiplicidade e divisão dos sistemas gnósticos, o cristianis-mo opôs a unidade da ortodoxia da Igreja, em todas as partes do mundo de então.132

f – Para prevenir de erros e confusões os fiéis cristãos, a Igreja ex-comungou os gnósticos e seus seguidores e começou a ministrar sólida instrução religiosa, tendo por base o Símbolo Apostólico.

g – Os Padres, v.g., Irineu, Clemente de Alexandria e Orígenes de-fenderam a estreita relação entre gnósis (conhecimento filosófico) e fé. Com o auxílio da filosofia, doutrinavam, era preciso fundamentar ra-cio-nalmente as verdades cridas. Clemente usa a feliz expressão pístis epistemonikê, sem, contudo, deixar de advertir que a gnose cristã há que orientar-se pela norma da Igreja.133

6.3 – Movimentos gnósticos contemporâneos

Ciclicamente ressurgem as idéias do passado e, com leves trans-formações, aliciam os espíritos, com seu prurido de novidade. Não constitui exceção o gnosticismo. Vejamos alguns casos.

129 Cf. Nota 25, supra. 130 “Katharer waren Mitglieder der grössten mittelalterlichen Sekte [...] Die spiritualistische

Lehre, die irdische Welt mit ihren Genüssen (Fleischspeisen, Ehe) sei von Satan, dem Gott des AT, geschaffen und beherrscht , verband sich mit der Forderung nach radikaler Askese” (Die Religion in Geschichte und Gegenwart . Drite völlig neu bearbeitete Auflage, Tübingen: J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1959, 3. Band , Sp. 1192).

131 “The Gnostics were a singing people, whose interest ‘in psalms and hymns and spiritu-al songs’ stimulated Christian to hymnody” (The Encyclopedia Americana, v. 12, p. 735, col. 2).

132 Cf. LLORCA, op. cit., v. 1, p. 232. 133 Cf. Historisches Wörterbuch der Philosophie, Band 3, Sp. 717.

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a – J. G. Fichte, em sua época, encontra gnosticismo em certa linha da teologia protestante, no sentido de ela não admitir pela fé as ver-dades da revelação, mas exigir que a Bíblia deve ser examinada pela razão. Esse princípio de os dogmas deverem subordinar-se à crítica conceptual Fichte tem-no como tipicamente gnóstico.134 Não há como negar-lhe a razão.

b – O moderno gnosticismo cristão de Böhme é representado pe-los místicos apocalípticos, Jane Leade e John Pordage.

c – Também a teosofia, a antroposofia de R. Steiner, os rosa-cruzes, a Christian Science e alguns grupos de seitas espíritas, sem falar de certas correntes psicanalíticas e da New Age têm parentesco direto com o gnosticismo. Em não poucos casos, o Absoluto é concebido pan-teística ou dualisticamente.

Conclusão

Já é tempo de recolher as velas. Buscamos, neste trabalho , mostrar a postura decididamente antignóstica de Plotino. Para compreendê-la, foi mister aclarar o conceito de gnose e gnosticismo , ver-lhe as raízes históricas e destacar alguns personagens mais relevantes, dentre a diversidade de sistemas em que se pulverizara, na época de Plotino. Assinalamos, também, que o gnosticismo pretendia rivalizar com o cristianismo, apresentando o caminho da salvação. A essa idéia opu-semos, brevemente, a posição dos Santos Padres os quais, por sua vez, defendiam uma lídima gnose cristã.

Necessário se nos afigurou emoldurar o breve estudo com aspec-tos conexos, sob pena de o texto ficar mutilado. Assim, procuramos desfazer a impressão de concordismo das idéias de Plotino com a dos gnósticos e mostrar os pontos que o velho sábio grego atacou nos adver-sários, valendo-nos da Enéadas. Ao mesmo tempo, não isentamos Plo-tino de diversos julgamentos errôneos expedidos contra o cristianis-mo. Por derradeiro, demos breves achegas sobre a influência negativa e positiva do gnosticismo nos primórdios da era cristã.

Visto as idéias jamais morrerem, mas ressurgirem, de tempos em tempos, numa verdadeira palingenesia, o gnosticismo repontou em eras não-remotas e, também em nossa época, ele se manifesta de di-versas maneiras, capaz de confundir as mentes incautas, se não surgi-rem outros Plotinos e outros Santos Padres, para desmascararem os erros a ele inerentes. Redobrada vigilância das Igrejas é, pois, necessá-ria, nestes anos que antecedem o terceiro milênio. Multiplicar-se-ão os

134 Ibid., col. 718.

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hairetikoí, anunciando soteriologias absurdas, calcadas em pseudo-revelações.

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SILVESTRE GIALDI

Universidade de Caxias do Sul

Fundamentos franciscanos de justiça, paz e ecologia

Justiça, paz e ecologia são temas modernos de congressos, de estu-dos, de escritos. São tratados nos enfoques sociológicos, filosóficos e em múltiplas outras formas. Porém, existe mais um discurso do que uma prática efetiva, porque a prática requer uma conversão real para as três dimensões fundamentais da vida: a justiça, a paz e a ecologia. Também estes enfoques diariamente entram em nosso consciente, em forma de notícia através dos meios de comunicação social, que mais causam indignação, espasmo e pouca surpresa e menos ainda propos-tas e soluções. Pois, na pessoa humana, o ser ganancioso é bem mais forte do que o ser generoso. E a justiça, a paz e a ecologia, necessaria-mente, comovem e atingem mais o ser generoso que necessita menos de conversão. Porquanto, o desafio maior é tornar o ser ganancioso e opulento, sedento, adepto e capaz de justiça, paz e ecologia.

O tema – justiça, paz e ecologia – no seu conjunto, é moderno , por-que surge com a modernidade. E a modernidade é desigual em sua manifestação e na sua realização nos países e nas culturas. Também a consciência e a responsabilidade pela justiça, paz e ecologia é desigual no seu enfoque, na sua manifestação, na sua compreensão e no seu aprofundamento. É desigual também no seu ponto de partida: por vezes, há muita ideologia, atestadora ou contestadora, por falta de aprofundamento teórico da questão, para iluminar uma operação prática; por vezes, parte-se unilateralmente do homem interesseiro, esquecendo-se que a justiça, a paz e a ecologia são libertadoras do homem global, inserido num mundo cósmico; por vezes, fica-se na fase romântica ou estética ou política da questão, como se os gover-nos, os poderosos, as instituições, os outros são os únicos responsá-veis; por vezes, fica-se mais na posição acusatória e apresentam-se poucos projetos realizáveis e idéias fundamentadas.

A seguir, apresenta-se uma tentativa de resposta à questão: Fun-damentos filosóficos franciscanos de justiça, paz e ecologia. Isto pres-

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supõe dois elementos: que haja uma filosofia franciscana e que aborde a questão da justiça, da paz e da ecologia filosoficamente. Por isso, o presente trabalho obedece esses pressupostos, embora o tema não se limite necessariamente a leitores amantes da Filosofia.

O trabalho se divide em duas partes. Primeira parte: fundamentos da Escola Filosófica Franciscana; segunda parte: contributos da Filoso-fia Franciscana à justiça, à paz e à ecologia.

1 – Fundamentos da Escola Franciscana

1.1 – Aspectos históricos

O século XIII, nascimento do franciscanismo, representa o período orgânico e áureo do equilíbrio e da unidade da civilização e da cultura medieval, depois de longos séculos de elaboração e de construção. Ao mesmo tempo, é uma abertura para novas lutas, novas conquistas e novos ideais para sonhar e construir uma nova civilização.

Na Itália, as cidades-estado crescem em sua autonomia de vida. Na Europa, existe o esplendor das nações. E a Igreja vive um século de ouro, com grandes papas e com o surgimento das ordens mendi-cantes (Franciscanos e Dominicanos). É um período de paz religiosa. A economia de mercado se fortalece através da moeda, do comércio com o Oriente e das corporações profissionais. Ao mesmo tempo , o senho-rio fundiário entra em crise. Nasce , assim, a burguesia. As cidades tornam-se novamente centro de vida, de progresso e de trabalho. As cruzadas, os missionários e os exploradores alargam os horizontes. Florescem as Artes, a Literatura, a Filosofia, a Teologia e as traduções das obras clássicas. “Na filosofia, de modo particular, sente-se a ne-cessidade e existe a aspiração de reduzir à unidade todo o conheci-mento humano, de ordenar as amplas conquistas culturais adquiridas através dos séculos de trabalho com critérios, ao mesmo tempo, uni-versais e sintéticos. Nascem, assim, as grandes summas, verdadeiros monumentos do pensamento humano.”1

Geralmente apontam-se quatro grandes causas desse extraordiná-rio florescimento da cultura ocidental: o nascimento das Universida-des, a influência da Filosofia árabe e judaica, a redescoberta da obra filosófica de Aristóteles e a fundação das Ordens Mendicantes.

1 PONZALLI, Ermano. Storia della filosofia occidentale, Vol. 1, Roma: Borla , 1987. V. 1, p.

304.

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1.1.1 – Nascimento das universidades

A sede pelo saber, o desenvolvimento das escolas ligadas às cate-drais, aos mosteiros e aos palácios reais; o papel central das cidades; as associações de mestres e discípulos criam novos espaços, buscam novos interesses, conquistam privilégios. Aos poucos, as universitas scholarium et magistrorum recebem os estatutos e o reconhecimento do papa ou do imperador, e tornam-se universidades: centro de intenso ensino e pesquisa. A primeira universidade reconhecida foi a de Bolo-nha, em 1111, aplicada ao Direito e independente da autoridade ecle-siástica. E o centro mais importante de Filosofia e Teologia floresce na Universidade de Paris, fundada em 1170. Este centro serviu de mode-lo para as Universidades de Oxford, fundada em 1200, e Cambridge, fundada em 1233.

1.1.2 – Filosofia árabe e judaica

Os filósofos árabes (Avicena e Averróis) e judeus (Maimônedes e Avicebrón) tiveram grande influência na transformação da cultura e do pensamento ocidental. Foi Avicena (980-1037) que introduziu, no Ocidente, o pensamento de Aristóteles de forma sistemática. E a sua tentativa de harmonizar as teses aristotélicas com as verdades islâmi-cas não causou perplexidade. Ao passo que Averróis (1126 -1198) cau-sou escândalo ao delimitar o saber e a fé, e manter uma confiança total e ilimitada na razão. E pela razão, afirma a eternidade do mundo e nega a imortalidade da alma, fundamentadas em Aristóteles.

Avicebrón (1021-1070) procura harmonizar os resultados da razão com os princípios fundamentais do judaísmo. Sustenta o hilemorfismo universal: todas as substâncias são compostas de matéria e forma, exceto Deus. Maimônides (1135-1204) escreve a obra Guia dos perplexos para ir ao encontro daqueles que “se encontram sufocados pela per-plexidade derivada dos aparentes contrastes entre razão e fé” ,2 e para demonstrar que a Filosofia e a Bíblia são conciliáveis.

1.1.3 – Redescoberta de Aristóteles

É inegável que o florescimento da filosofia cristã, a partir do sécu-lo XIII, deu-se pela redescoberta do pensamento e da filosofia de A-ristóteles (384-322 a.C.). À margem da proibição oficial de Aristóteles nas universidades por parte da Igreja, aos poucos suas obras vão sen-do traduzidas, interpretadas e estudadas. Inicialmente, pelos pensa-dores árabes e, depois, pelos latinos. A sua influência começa pela Medicina até chegar à Filosofia e à Teologia. As obras que tiveram 2 REALE, Giovani, ANTISERI , Dario, História da filosofia. São Paulo: Paulinas, 1990. v. 1,

p. 542.

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maior restrição e proibição foram os escritos sobre Metafísica e Física. Os decretos papais da proibição das obras e dos respectivos comentá-rios de Aristóteles se estendem até 1263, com Urbano IV, mas já sem efeito prático. E, por sua vez, nas universidades, a partir de 1230, os mestres estudavam, assimilavam, interpretavam e comentavam o pen-samento aristotélico. E, paradoxalmente, em 1366, a Santa Sé impôs às universidades o estudo de Aristóteles. Assim, na segunda metade do século XIII, os pensadores escolásticos fundamentam sua doutrina na fronteira estabelecida: neoplatonismo e aristotelismo.

1.1.4 – Fundação das ordens mendicantes

Os novos tempos, permeados pelo desenvolvimento político , eco-nômico e cultural, e o contato com outras filosofias, significam, neces-sariamente, um questionamento da ordem moral e da ordem religiosa. A fé passa a ser questionada pela razão, por ser mais um fato emocio-nal do que uma razão da vida. E a estrutura da Igreja – hierarquica-mente dividida na ordem do clero, dos monges e dos leigos – não favorecia uma autêntica comunhão.

O clero, com a missão específica da pregação, estava mais ligado ao poder imperial e às suas vantagens do que ao papa e à sua doutri-na; preferia os privilégios da religião do que a conversão evangélica. Os monges, por sua vez, afastados da vida do povo, viviam enclausu-rados em seus mosteiros e protegidos pelos seus latifúndios. Os leigos disputavam o novo espaço político, econômico, cultural e científico ou permaneciam na periferia dos acontecimentos e da partilha dos bens. Como reação, surgem muitos movimentos populares, alimentados pelo ideal evangélico da pobreza, da humildade, da fraternidade, da vida comunitária e do auto-sustento. Eram movimentos espontâneos, com suas contradições: a inspiração evangélica da pobreza também encontrava respaldo no maniqueísmo; a referência à vida dos primei-ros cristãos também implicava a rejeição da estrutura da Igreja; a bus-ca da imitação de Cristo também levava ao desprezo do corpo e do mundo.

Assim, Francisco de Assis (1182-1226) torna-se intérprete e profeta dos movimentos populares, sem suas condições: viver segundo o E-vangelho, rejeitar o acúmulo, sustentar-se com o próprio trabalho , pregar, pelo testemunho e pela palavra, a obediência à Igreja, uma visão alegre e fraterna da vida e a inserção no meio do povo. Por sua vez, Domingos de Gusmão (1170-1221) e o movimento dominicano atingem as instâncias superiores: a renovação do clero pela formação, pela espiritualidade, pelo estudo e pela pregação em comunhão com a Igreja.

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1.2 – Escolas franciscanas

“Além das várias formas de atividade em favor dos deserdados, logo se pensou também em um tipo de atividade de caráter propria-mente cultural para responder às instâncias provenientes dos novos conhecimentos filosóficos, que pareciam em contraste com o espírito cristão.”3 Isto é, além da pregação pelo exemplo, existe a necessidade de pregar a palavra fundamentada na doutrina, para conter o avanço dos movimentos heréticos e do ascetismo cátaro, bem como a necessi-dade de teorizar para recuperar a grandeza do homem e a beleza da natureza. Em outras palavras, a atividade puramente pastoral e a in-serção na vida real do povo eram insuficientes sem um suporte filosó-fico-teológico e sem uma profunda vida cultural.

Assim, na Ordem Franciscana foram surgindo os Estudos Particula-res, junto aos conventos; os Estudos Provinciais, em cada província e os Estudos Gerais, junto às universidades, para os frades mais dotados.

Em 1228, o ministro geral, João Parenti (1227-1232), constatando não haver estudos de Teologia na província da Alemanha, nomeia o ministro provincial, Frei Simão, lente de Teologia, dando a entender que as outras províncias já mantinham os estudos provinciais das ciên-cias sagradas.4

Os Dominicanos, por sua natureza e pelo seu carisma, avançavam nos estudos. E algumas vozes amigas encorajavam os Frades Menores a seguirem o mesmo caminho: Jacques de Vitry, Roberto de Grosse-teste (chanceler da Universidade de Oxford), Eudes de Châteauroux (chanceler da Universidade de Paris) e Guilherme d’Auvergne (bispo de Paris). Assim, a partir de 1231, os Frades Menores mantêm centros de estudos gerais: Bolonha, Paris e Oxford.

1.2.1 – Escola franciscana de Bolonha

Bolonha, cidade universitária por excelência, tinha mais de 10 mil estudantes. Em 1211, nas origens da Ordem, lá se apresenta Frei Ber-nardo de Quintavalle.5 Em 1213, os frades aceitam uma casa em Bolo-nha e ali permanecem até 1221.6 E Santo Antônio de Pádua, em 1223, é nomeado por São Francisco de Assis lente de Teologia na casa de Bo-lonha, e depois em Toulouse e Montpellier. É o primeiro professor das Ciências Sagradas entre os Frades Menores. É o primeiro passo para a organização dos estudos teológicos sólidos. Em 1236, o Papa Gregório

3 Id., ibid., p. 574 -575. 4 Cf. GRATIEN, P., Histoire de la fondation & de l’évolution de l’Orde des Frères Mineurs au

XIII siècle. Paris: S. François d’Assisie, p. 126. 5 Cf. Fior. 5 e 27. 6 Cf. 2 C 58; LM XIII, 10.

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IX, autoriza a ereção canônica da Escola Teológica de Bolonha para formar lentes. Porém, este centro teológico não esteve ligado à Uni-versidade de Bolonha.

1.2.2 – Escola franciscana de Paris

Em 1219, os Frades Menores se estabelecem em Paris. Nessa épo-ca, alguns estudantes e mestres de Bolonha, Paris e Oxford ingressa-ram na Ordem. E, aos poucos, o estudo se torna uma das atividades principais dos frades, embora a ciência devesse subordinar-se à oração e devoção. Em 1224, abriu-se a Escola de Estudos Gerais. Assim, os Frades mantêm contatos com a Universidade de Paris, fundada em 1170. Em 1225, quatro mestres ingleses da Universidade de Paris en-tram na Ordem. Os mais conhecidos são Frei Simão de Sandwyz e Frei Haymo de Faversham, que se tornou ministro geral (1240-1244).

Aos poucos, a Escola de Teologia torna-se regularmente constituí-da e incorpora-se à Universidade. O grande salto deu-se com a entra-da na Ordem, em 1231, do mestre-regente da cátedra de Teologia da Universidade de Paris, Alexandre de Hales. Este organiza a Escola Franciscana de Teologia, que se transforma no centro intelectual da Universidade. Por sua vez, o Convento Franciscano de Paris torna-se o centro intelectual mais importante da Ordem dos Frades Menores. E cada província podia enviar a Paris dois estudantes, com algumas exi-gências: elevadas qualidades psíquicas, intelectuais e morais, e que tivessem feito os Estudos Provinciais. Com a morte de Alexandre de Hales em 1245, sucederam-lhe na cátedra de Teologia, pela ordem: o seu discípulo, João de la Rochelle, João de Parma, Eudes Rigaud, Gui-lherme de Middletown e São Boaventura, de 1253 a 1257, quando foi eleito ministro geral da Ordem. Os primeiros quatro fizeram a primei-ra explicação científica da Regra.

1.2.3 – Escola franciscana de Oxford

Em 1167, o Rei Henrique II proíbe os ingleses de freqüentarem os estudos em Paris. Em conseqüência, os estudantes procuram Oxford, que se organiza como Centro de Estudos Gerais e, em 1200, como universidade, em moldes corporativos. Seu primeiro grande mestre foi Roberto de Grosseteste (1168-1253).

Enquanto em Paris destacava-se o Trívium (estudos de gramática, retórica e dialética), em Oxford os interesses eram para o Quadrívium (estudos de aritmética, geometria, música e astronomia). Aqui os Fra-des Menores entraram em 1224. Em seguida, discípulos e mestres se-guiram o espírito franciscano da ciência e da pobreza. O convento foi construído em 1229, pelo ministro provincial da Alemanha, Frei Agne-lo de Pisa, para tornar-se Faculdade de Teologia, dirigida por Roberto

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de Grosseteste até 1235, quando foi nomeado bispo. Os Frades Meno-res assumiram a direção em 1245, com Adam de Marsch, e Thomas de York, em 1253. A Escola de Estudos Gerais de Oxford tornou-se um célebre centro de solidez científica e de amplitude enciclopédica.7

1.3 – Pensamento franciscano

Em geral, o pensamento franciscano é dominado pelo espírito do neoplatonismo e por Santo Agostinho (354-430). Enquanto o pensa-mento tomista forma um sistema fechado e acabado, que admite pou-cas e pequenas variantes individuais, no pensamento franciscano apa-recem as variantes da originalidade e da liberdade de cada pensador. Porquanto, existem uma grande variedade e diferenciações entre os diversos mestres da Escola Franciscana. Ao mesmo tempo , existe uma inspiração comum que forma o conjunto das teses franciscanas:

a) o pensamento franciscano considera o homem na sua totalidade, na sua consistência e no seu dado concreto no mundo; homem criatura (irmão);

b) a respeito da criação do mundo, o pensamento franciscano a-firma que o mundo não foi criado eternamente, nem pela força da fé nem pelo argumento da razão;

c) defende o primado da vontade sobre o entendimento, o prima-do da intuição sobre a razão e o primado do amor sobre a racionali-dade, pois o fim do homem é dirigir-se a Deus de maneira mística e amorosa;

d) exalta a fé e torna a razão, até certo modo, sua serva: a razão como uma mediação para explicar e compreender o conteúdo da fé;

e) busca fundir a Filosofia e a Teologia numa única ciência: opõe-se a uma separação prática entre Filosofia e Teologia;

f) aceita o pensamento de Aristóteles e de Santo Agostinho no que se refere à matéria: não como pura potência, mas como um ato incom-pleto;

g) aplica a teoria do hilemorfismo (os seres corpóreos resultam de dois princípios distintos e complementares: matéria e forma. A maté-ria: o indeterminado e comum a todos. A forma: o determinante que torna o ser distinto) a toda a realidade. Isto é, todos os seres, exceto Deus, são compostos de matéria e forma;

h) o pensamento franciscano sustenta e afirma a pluralidade de formas em todos os seres contingentes, especialmente no homem;

7 Cf. GRATIEN, P., op. cit., p. 128-133.

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i) as faculdades da alma não são claramente distintas. Assim, o intelecto agente e o intelecto passivo são concebidos, não como duas faculdades distintas, mas como dois aspectos da mesma faculdade;

j) na visão franciscana, o conhecimento se explica pelos sentidos e, também, como iluminação divina. Admite a tese do conhecimento individual pelo intelecto e do conhecimento pela intuição. E prefere a intuição emotiva por considerar mais adequada para a compreensão do verdadeiro e como meio para conhecer o real. Especificamente, Francisco de Assis privilegiou a intuição afetiva sobre o racional. 8 Na verdade, o pensamento franciscano inverte a expressão popular: Só se ama aquilo que se conhece. Na visão franciscana: Só se conhece o que se ama.

1.3.1 – Primazia da vontade e da liberdade

Entre as características do pensamento franciscano , é destaque a primazia da vontade e da liberdade. Duns Scotus (1266-1308) afirma a primazia da vontade e da liberdade sobre o intelecto e o entendimen-to, e rejeita a tese tomista de que a vontade é uma tendência: enquan-to potência natural, a vontade tende para o bem e para a felicidade; enquanto vontade individual, tende aos bens particulares. Ao passo que Scotus afirma que onde não há liberdade não há igualmente von-tade, no sentido estrito. “A vontade caracteriza-se por ser livre. A essência da vontade é a liberdade e, precisamente por isso, a vontade é mais perfeita do que o entendimento e superior a ele. [...] O enten-dimento é certamente uma potência natural, a vontade não o é.”9

E, para Guilherme de Ockham (1290-1349), a vontade é livre. E a vontade livre é o fundamento de toda a valoração moral: o homem pode agir de forma louvável ou repreensível, respectivamente; merece louvores ou repreensões, porque é um sujeito livre.10

É claro, Scotus não admite o princípio da vontade diante da insufi-ciência do entendimento. Mas quer destacar bem a função específica da vontade e do entendimento, para não tornar a vontade um apêndi-ce do entendimento. Pois, enquanto o entendimento obedece à lei determinante da evidência, a vontade é intrinsecamente livre. Na verdade, o ato intelectivo não determina, necessariamente, o ato voli-tivo. Bem como a vontade não pode impedir que o intelecto se subme-ta à evidência. É importante salientar que , para Duns Scotus, a racio-nalidade não se encontra apenas no conhecimento, mas também na vontade. Assim, “a vontade é racionalidade, e racionalidade é liber-

8 Cf. PONZALLI, E., op. cit., p. 311 -312. 9 CORDON, Juan N., MARTINEZ, Tomas C. História da filosofia. Lisboa: Edições 70,

1989. v. 1, p. 145.

10 Cf. ABBAGNANO.

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dade, e liberdade é domínio dos próprios atos.”11 Conseqüentemente, o vértice da perfeição humana não é o intelecto, mas a vontade. E a bem-aventurança não se encontra tanto no conhecimento de Deus , mas sobretudo no amor de Deus.

1.3.2 – Ética franciscana

O propósito da ética franciscana, representada pelo pensamento de Duns Scotus, é harmonizar os direitos de Deus com os direitos humanos: defender não apenas a contingência da pessoa humana, mas também a sua dignidade. As principais questões éticas se resumem à norma moral e à lei moral.

a) Norma moral (lex aeterna)

É premissa da norma moral que cada ato moral deve alicerçar-se sobre uma norma que seja o seu fundamento: Deus, que criou a natu-reza com suas estruturas e suas leis. E em Deus encontramos inteli-gência e vontade, pois o bem e o mal fazem parte da vontade de Deus. Em síntese, “Deus não quer as coisas por serem boas, mas que elas são boas porque Deus as quer e as ama.”12

b) Lei moral (lex naturalis)

A norma moral (lex aeterna) se manifesta através da lei natural, em sentido absoluto e em sentido relativo. Em sentido absoluto, são os princípios práticos evidentes: a norma expressa nos três primeiros mandamentos é a única natural. Os demais mandamentos, embora do ponto de vista prático tenham a mesma obrigatoriedade, não têm a mesma força, porque Deus poderia mudá-los. Pois, “como só existe um único preceito de lei natural – a obediência a Deus – também só existe um único ato verdadeiramente bom para o seu sujeito – o amor a Deus. [...] O amor a Deus é a condição do amor ao próximo e a si mesmo, e fornece a regra e a medida de qualquer outro amor.”13

1.3.3 – Criação e criaturas

São Boaventura (1221-1274), a respeito da criação do mundo, afir-ma: “Todo o mundo foi levado a ser no tempo , a partir do nada, por um primeiro Princípio, único e supremo, cuja potência, embora sendo infinita, dispôs todas as coisas com um certo peso, número e medi-da.”14 Isto é, no tempo: para excluir a eternidade do mundo; do nada: 11 PONZALLI, E., op. cit., p. 366. 12 BOEHNER, P., GILSON, E. História da filosofia cristã. Petrópolis: Vozes 1988, p. 516. 13 ABBAGNANO, N. op. cit., v. 4, p. 145. 14 SÃO BOAVENTURA , Breviloquium , II, I, 1.

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para excluir o princípio materialista; por um princípio único: para ex-cluir a pluralidade de princípios, como afirmavam os maniqueus; único e soberano: para afirmar que Deus criou todas as criaturas; com certo peso, número e medida: para afirmar que a criatura é efeito da Trin-dade criadora.

A ordem perfeita e o fim das coisas criadas encontram a sua razão num princípio primeiro, Deus criador, que é o fim último de todas as criaturas e o perfeitíssimo para ser o complemento de toda a criação: no princípio primeiro e perfeitíssimo se encontram o princípio e o fim de tudo. E o princípio primeiro e perfeitíssimo é onipotente, sábio e benevolente. Porquanto, a criação divina do mundo dá-se por tríplice operação: a criação, que corresponde à onipotência; a distinção, que corresponde à sabedoria e a ornamentação, que corresponde à bon-dade.15

Na visão medieval, o cosmos é totalmente dependente da ação cria-dora de Deus. Enquanto na visão tomista, segundo a tese aristo-télica do motor imóvel, Deus move a natureza. Ao passo que, em São Boaventura, Deus completa a natureza, enquanto natureza. E defende esta afirmação através da tese das rationes seminales: “Deus já emitiu na matéria os germes daquilo que surgirá na natureza e que a ação das causas segundas limita-se a desenvolver aquilo que Deus semeou.”16

Conseqüentemente, é uma visão que supera a concepção aristotéli-ca de mundo: um mundo sem Deus ou um Deus como motor imóvel, impessoal, sem amor e ternura. Em São Boaventura, o “mundo apre-senta-se como um palco de sinais (pegada, vestígio, imagem e seme-lhança de Deus), aliás um templo sagrado, onde se anuncia o mistério de Deus.”17 E, pela sua doutrina do exemplarismo, em Deus encontram-se as idéias, os modelos, as similitudes das coisas, desde as mais sim-ples às mais elevadas, as coisas são livremente criadas e desejadas: “Deus é um artista que cria aquilo que concebeu.”18

1.3.4 – Homem e mundo

A antropologia franciscana está diretamente relacionada à visão de mundo: valorização positiva e terna da criação. O mundo, como expressão da trindade, criado em três graus ou em três modos: “O modo do vestígio, da imagem e da semelhança. O vestígio é o das criaturas irracionais, a imagem é a das criaturas intelectuais, e a seme-lhança é a das criaturas deformes. [...] é necessário que o homem, para alcançar o seu destino, proceda através desses degraus , partindo do

15 Cf. Id., ibid., II, II, 2. 16 REALE, G., ANTISERI , D. op. cit., p. 582. 17 Id., ibid., p. 581. 18 Id., ibid., p. 581.

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mundo corpóreo, que está fora de nós, entrando no espírito, que é imagem de Deus, e caminhando para a realidade eterna, que nos transcende. E a especulação torna-se assim um ‘itinerarium mentis in Deum’, isto é, uma viagem mística em direção a Deus.”19

O mesmo São Boaventura descreve, com toda a ternura francisca-na, a relação do homem com a natureza para chegar a Deus: “Quem não se ilumina com o esplendor de coisas tão grandes como as coisas criadas, é cego; quem não desperta com tantos clamores, é surdo; quem, com todas essas coisas, não se põe a louvar a Deus, é mudo; quem, a partir de indícios tão evidentes, não volta a mente para o primeiro Princípio, é tolo.”20 Desta forma, o franciscanismo não separa, mas distingue Deus do mundo, para que o mundo não seja, parado-xalmente, nem divinizado nem desmistificado, profanado e desumani-zado. Pois, existe uma relação íntima e profunda entre o caráter sa-grado do mundo e o caminho de perfeição do homem inserido no mundo. Bem como existe o compromisso do homem com o próprio mundo. E continua São Boaventura: “Abre os teus lábios e dedica o teu coração a exaltar e honrar Deus em todas as criaturas, para não ocorrer que o mundo todo se insurja contra ti. Com efeito, precisa-mente por isso, o mundo lutará contra os insensatos.”21

Em outras palavras, é missão e responsabilidade do homem guar-dar, cuidar e respeitar a natureza, para que haja uma convivência har-moniosa e pacífica. Caso contrário, a natureza se revoltará contra o próprio agressor, unicamente o homem. Na visão franciscana, o ho-mem deve considerar o mundo, não apenas como uma realidade pro-fana, mas sagrada, que requer relações fraternas e justas. E, conse-qüentemente, atitudes de respeito, de equilíbrio e de promoção.

1.3.5 – Antropologia franciscana

O pensamento franciscano defende a tese de que Deus criou o homem de duas naturezas distintas – corpo e alma – que formam uma única pessoa.22 Duns Scotus confirma esta premissa ao aceitar as duas formas do composto humano: a forma da corporeidade, que dá a for-ma ao corpo, e a forma intelectiva da alma. Estas duas formas, distin-tas entre si, determinam o homem. A unidade interna da pessoa hu-mana constitui um fundamento real, e a superioridade da forma supe-rior da alma à forma do corpo. Segundo São Boaventura, a alma “é uma forma dotada de ser, de vida, de inteligência e usando a liberda-

19 Id., ibid., p. 581. Cf. BOEHNER, P., GILSON, E. op. cit., p. 434. Cf. SÃO BOAVEN-

TURA , Breviloquim , II, XII, 1-5. 20 SÃO BOAVENTURA , Itinerarium , I, 15. 21 Id., ibid., I, 15. 22 Cf. Id., Breviloquium , II, X, 3.

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de. Como forma dotada de ser, não procede de si mesma, nem da natureza divina, mas pela criação foi levada por Deus do nada ao ser. Como forma dotada de vida, possui a vida não em função de uma natureza extrínseca, mas por si mesma, e não a vida mortal, mas a eterna. Como forma dotada de inteligência, entende não só a essência criada, mas também a ‘essência criadora’, a cuja imagem foi feita pela memória, a inteligência e a vontade. Como forma dotada de liberda-de, está sempre livre de coação [...]. Esta liberdade de coação nada mais é do que uma faculdade da vontade e da razão, que são as prin-cipais potências da alma.”23

Ato contínuo, vem a tese a respeito do corpo. “O corpo do primei-ro homem foi tirado do lodo da terra de tal forma que ficou sujeito à alma, sendo-lhe proporcional a seu modo. Proporcional quanto à i-gualdade de complexidade, quanto à beleza e variedade de organiza-ção e quanto à posição ereta; sujeito para obedecer sem rebelião, para propagar e ser propagável sem luxúria, para nutrir-se sem defecção, para ser imutável e de todo incorruptível, por não intervir na morte. Para tanto foi lhe dado o paraíso terrestre como habitação tranqüila. A mulher foi formada do lado do varão, como companheira e auxiliar para a sua propagação sem mancha. Foi lhe dada também a árvore da vida para a sua nutrição contínua e para sua perfeita imutabilidade no final da existência, pela imortalidade eterna.”24

Conforme São Boaventura, o homem “foi dotado de um duplo sentido: o interior e o exterior, o da mente e o da carne. Foi dotado de um duplo movimento: o imperativo da vontade e o executivo do corpo. Foi lhe concedido um duplo bem: um visível e outro invisível. Foi lhe imposto um duplo preceito: um natural e outro disciplinar. [...] foi lhe dado um auxílio quádruplo: o da ciência, o da consciência, o da sinderese e do da graça.”25

Em síntese, São Boaventura afirma a unidade substancial da maté-ria e da forma que compõem cada ser. Porquanto, cada ser é uno. No homem, a alma e o corpo são substâncias incompletas. Corpo e alma, em sua substância, são compostos de matéria e forma. Portanto, no homem se verifica uma pluralidade de formas (forma da alma e forma do corpo). Porém, coordenadas pela forma superior, a alma. E o fim do homem é a bem-aventurança junto de Deus, que consiste na satis-fação da vontade. Assim, em Deus, se conclui o ciclo iniciado com a criação.26

23 Id., ibid., II, IX, 1. 24 Id., ibid., II, X, 1. 25 Id., ibid., II, XI, 1. 26 Cf. PONZALLI, E. op. cit., p. 321-324. Cf. ABBAGNANO, N., v. 3, p. 226-228.

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2 – Contributos da filosofia franciscana à justiça, à paz e à ecologia

2.1 – Compreensão ética do homem

A compreensão ética do homem tem múltiplas variáveis, em con-formidade com as correntes filosóficas e as doutrinas religiosas. Na visão de Rousseau (1712-1778), a natureza humana é boa, e a socieda-de a corrompe. Na mesma direção segue o taoísmo , com Lao-Tsé (604-551 a.C.), a natureza humana é boa, e a educação a corrompe. E para Confúcio (551-479 a.C.), o homem superior compreende a retidão da vida; o homem inferior compreende o lucro. Contudo, para Hobbes (1588-1679), a pessoa humana nasce má e a sociedade a torna boa, pois o homem é um lobo para outro homem. Na mesma perspectiva pensa-vam os legistas chineses do século IV a.C., a natureza humana é má e somente pela força pode ser subjugada. Por sua vez, a posição de Sun-Tsé (século IV a.C.), se a natureza humana é má, precisa de educação. E a posição de Mêncio (371-289 a.C.), se a natureza humana é boa, deve ser aperfeiçoada pela educação. E, contudo, para Locke (1632-1704), a pessoa humana nasce tábula rasa: nem boa nem má. Por sua vez, Jesus Cristo começa com uma advertência: “Eu vos envio como ovelhas no meio de lobos; sede, pois, prudentes como as serpentes e simples como as pombas. Cuidado com os homens” (Mt 10, 16-17). E, por fim, Francisco de Assis não parte do juízo moral do homem. Não parte do coração do homem, mas compreende o homem a partir de sua condição de criatura, que lhe confere o estatuto de irmão de todas as criaturas. É o que veremos nos tópicos seguintes.

2.2 – Compreensão franciscana do homem

A arqueologia viva do franciscanismo a encontramos na experiên-cia viva de Francisco de Assis e da fraternidade primeva, que deter-mina e condiciona o conteúdo e a expressão do pensamento francisca-no. Nos poucos escritos de Francisco de Assis, especialmente nas Ad-moestações, podemos ler e interpretar a sua atitude fundamental, a sua compreensão da pessoa humana e, conseqüentemente, as relações e os elementos fundamentais de justiça, paz e ecologia.

O seu modelo antropológico é o Filho de Deus Encarnado numa obediência radical ao Pai, que se fez filho e menor, necessitado e indi-gente para amar e servir. Conseqüentemente, a atitude fundamental do homem é ser filho de Deus e menor de todos, para amar e servir: elemento iluminador da Ordem dos Frades Menores. Deus é o Se-

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nhor, o Absoluto, e o homem não pode ser proprietário absolutamen-te de nada. Apenas deve fazer uso das coisas, emprestadas pela bon-dade e providência de Deus.

Em seus escritos, Francisco centra a idéia antropológica na filiação divina e na minoridade humana. Assim se expressa: “Considera, ó homem, a que excelência te elevou o Senhor, criando-te e formando-te segundo o corpo , à imagem de seu dileto Filho e, segundo o espírito, à sua própria semelhança. Entretanto, as criaturas todas que estão debaixo do céu, a seu modo, servem e conhecem e obedecem o seu Criador melhor do que tu. [...] De que , então, podes gloriar-te? [...] Mas numa só coisa podemos gloriar-nos: de nossas fraquezas (2Cor 12, 5), e carregando dia a dia a santa cruz de Nosso Senhor Jesus Cris-to.”27

A excelência do homem pertence a Deus e se manifesta pela criação: criado mais elevado do que as outras criaturas. “Tu o coroaste de gló-ria e esplendor; deste-lhe o domínio sobre as obras de tuas mãos” (Sl 8, 6-7). Feito, pela corporeidade, à imagem de Jesus Cristo, e pelo es-pírito, feito semelhante a Deus. E, igualmente, redimido por Jesus. Ao mesmo tempo, pela criaturidade, o homem é irmão de todas as criatu-ras que, a seu modo, servem e conhecem e obedecem ao seu Criador. E mais, a expressão máxima da fraternidade cósmica franciscana a encontramos no Cântico das Criaturas e na própria vida e experiência diária de Francisco de Assis.

E a minoridade do homem, que se revela na miserabilidade e nas mazelas humanas, pertence ao próprio homem. O humanismo francis-cano, mais do que uma doutrina e um sistema de pensamento ou de uma estrutura e uma organização sociopolítica é uma compreensão da vida, um estilo de vida, um comportamento e um modo de tratar e de compreender o mundo, os seres e os outros. Na verdade, é um huma-nismo real que destaca as relações interpessoais do homem com todas as pessoas humanas, consideradas fundamentalmente como pessoas, criadas por Deus e redimidas por Jesus Cristo: é a fraternidade uni-versal. E destaca as relações fraternas do homem com todos os seres e entes, considerados fundamentalmente criaturas: é a fraternidade cósmica.

A compreensão franciscana do mundo e do homem ultrapassa as relações com os seres e entes no sentido estético , romântico e político. Ultrapassa igualmente o racionalismo e o discurso ideológico e onto-lógico. Acima de tudo, a visão franciscana da vida é uma experiência fraterna da vida e da existência pessoal e comunitária frente aos ho-mens, frente aos seres, frente às coisas, frente aos acontecimentos e frente a Deus. É um relacionamento face a face , imediato e concreto. É 27 SÃO FRANCISCO DE ASSIS. Admoestações, 5, 1-8.

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uma forma real e iluminada de viver e conviver. É um modo vital para realizar a justiça, a paz e a ecologia, como experiência e como perspec-tiva, como cultura e como utopia.

“A relação franciscana com o tu, com a comunidade, com Deus, com a história e com a natureza não se reduz a uma bela expressão e explicação fenomenológica [...], mas tem uma conotação mística de participação,”28 pois o pensamento franciscano brota de uma experiên-cia pessoal e comunitária com Deus e com o mundo. Com Deus, que se revela como Absoluto e Senhor, como Bem e Sumo Bem, na ordem da vida, da ação, da contemplação e da reflexão. E com o mundo, na or-dem da fraternidade cósmica e universal.

2.3 – O mundo – a grande casa paterna

Francisco de Assis não é um simples defensor e promotor da natu-reza para nela buscar vantagens, interesses e utilidades. O espírito franciscano ultrapassa a defesa da ecologia, porque interessa à saúde, e a sua destruição é uma ameaça ao futuro da humanidade. Esta visão está centrada no homem e a partir do homem, com seus interesses, seu romantismo estético e seus discursos ideológicos. Esta bandeira ecológica se expressa como ecologismo.

Por sua vez, o pensamento franciscano acolhe o universo, o mundo e a natureza, e a tudo dá sentido e valor. Especificamente acolhe o mundo como a grande casa paterna, onde o homem faz sua morada e realiza a sua experiência não-ontológica de Parmênides (VI-V a.C.): “O ser é e o não ser não é” (Frag. 2), mas a experiência fraterna, antropológica, ética e ecológica: todos são irmãos de todos e o não-ser também é e deve ser resgatado a partir da compreensão fraterna. Conseqüentemente, o mundo é o lugar privilegiado onde o homem realiza o seu encontro vital e cordial com todos os seres e entes, como perfeição de cada perfeição. E não na visão de Protágoras (490-410 a.C.), em que o “homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, e das que não são enquanto não são” (Frag. 1). Pensamento que iluminou a visão piramidal dos reinos (reino animal, vegetal e mineral), e que deságua na racionalidade do homem em autoproclamar-se rei da natureza.

Na visão franciscana, Deus é o criador universal, e o homem é o mediador igualmente universal, no sentido que recebeu a missão de cuidar, aperfeiçoar e administrar o mundo com justiça, em nome do Grande Outro, o Todo Bem e Sumo Bem. Porquanto, o homem é ad-ministrador, mordomo, servidor e guardião do mundo, pois, em no- 28 MERINO, José Antônio. Humanismo franciscano. Madrid: Cristianidad, 1982. p. 113.

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me do Outro Absoluto, do Senhor, Criador e Providência, deve ge-renciar o mundo com fidelidade, justiça e respeito. Na verdade, o mundo é a morada do homem e nela deve viver e conviver como em sua casa.

2.4 – O trabalho humano na visão franciscana

Certamente o trabalho humano e o mundo do trabalho se consti-tuem como fonte de justiça, paz e ecologia. Mas, paradoxalmente, também se revelam fonte de exploração, de opressão, de empobreci-mento, de divisão, e onde aparece a primazia da ganância, da opulên-cia e do domínio sobre a partilha, a eqüidade e o respeito. A socieda-de opulenta desvirtua o mundo do trabalho e privilegia os antagonis-mos e as rivalidades, onde o outro é meu concorrente e é preciso ven-cê-lo; onde a natureza é um obstáculo, é necessário dominá-la.

Embora, no pensamento franciscano, não encontramos uma teoria tematizada sobre o trabalho humano , mas encontramos uma atitude vivida, com características fraternas, sobre o modo de trabalhar e so-bre a partilha dos frutos do trabalho , eliminando a divisão do traba-lho, a divisão das pessoas que trabalham e a concentração dos frutos do trabalho. Aliás, para Francisco de Assis, o auto-sustento de cada dia e o trabalho manual eram critérios fundamentais para pertencer à Fraternidade. “Havia em certo lugar um frade que nunca ia esmolar, mas era assíduo à mesa. Vendo que era comilão, participava dos fru-tos, mas não do trabalho , disse-lhe uma vez: ‘segue teu caminho, ir-mão mosca, porque queres comer o suor de teus irmãos e ficas ocioso no trabalho de Deus’. [...] Quando esse homem carnal viu que sua glutoneria tinha sido descoberta, voltou para o mundo, que nunca tinha deixado.”29

A experiência franciscana busca superar o caráter cultural e mora-lizante do trabalho da visão greco-romana, com repercussão até nos-sos dias: tripalium, tarefa inumana do trabalho manual restrito aos escravos e aos bárbaros e o otium ou labor, toda ocupação como ex-pressão de humanidade e de liberdade. E Francisco de Assis funda-menta a fraternidade também no modo de trabalhar e servir. “E os irmãos que forem capazes de trabalhar, trabalhem; e exerçam a profis-são que aprenderam, enquanto não prejudicar o bem de sua alma e eles puderem exercê-la honestamente.”30

Mais precisamente, encontramos as orientações de Francisco de Assis para os seus frades na Regra: “Os irmãos, aos quais o Senhor

29 2C 45, 75; cf. LM 5, 6; Sp 24; LM 7, 3; 2C 49, 81. 30 2Rg 7, 4.

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deu a graça de trabalhar, trabalhem com fidelidade e devoção, de maneira que afugentem o ócio, inimigo da alma, e não percam o espí-rito de oração e piedade, ao qual devem servir todas as coisas tempo-rais. Quanto à paga do trabalho , recebam o que for necessário ao cor-po, para si e seus irmãos, exceto dinheiro de qualquer espécie; e isto façam com humildade, como convém a servos de Deus e seguidores da mais santa pobreza.”31 E em seu testamento, Francisco descreve: “E eu trabalhava com as minhas mãos e quero trabalhar. E quero firme-mente que todos os outros irmãos se ocupem num trabalho honesto. E os que não souberem trabalhar o aprendam, não por interesse de re-ceber o salário do trabalho mas por causa do bom exemplo e para a-fastar a ociosidade.”32

Assim, Francisco de Assis e seus companheiros se apresentam ao mundo como trabalhadores pobres e simples, que ganham o sustento de cada dia com o trabalho de suas mãos e partilham fraternalmente o fruto do trabalho , evitando a ganância e eliminando o acúmulo. E re-velam a dignidade da pessoa humana, que vale pelo que é e não pelo que produz. Bem como, traduz as relações interpessoais da vida na vida da fraternidade como um meio de colaboração e do auto-sustento, e um meio de inserção social no mundo do trabalho , especi-almente junto às categorias de trabalhadores mais pobres. No caso específico da expe-riência da vida franciscana, um meio de evangelizar pelo testemunho e pelo exemplo, participando da vida e do modo de trabalhar dos pobres e marginalizados, servindo-os e edificando a dignidade de sua vida, jogados à margem dos sonhos e excluídos do acesso aos bens por eles produzidos.

O trabalho da fraternidade franciscana significa uma vinculação clara e definida com o seu estatuto de pobre, com os trabalhadores e seu mundo. Significa dar testemunho de que “o homem não vive para trabalhar, mas não será homem se não trabalha.”33

É claro, para o pensamento franciscano, o sujeito pessoal jamais se transforma em objeto ocasional, e muito menos em objeto de interesse produtivo. Não se coisifica nem se objetiva nem se explora o outro pelo trabalho. Assim, na visão franciscana, o trabalho não é estranho nem ameaçador. Antes, é referência e relação, porque trata o traba-lhador não como uma mercadoria produtiva e interesseira, mas como pessoa humana. E com ele se insere no mundo do trabalho e para ele se revela face a face , e revela a face sofredora e redentora do Cristo.

E afirma Merino: “O trabalho no franciscanismo é graça, dom, pos-sibilidade e um meio direto para vincular-se com a natureza, para aju-

31 1Rg 5, 1-5. 32 Test 5, 19-22. 33 MERINO, J. A. op. cit., p. 266.

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ajudar o outro e para fomentar profundas relações interpessoais. Em oposição ao trabalho obsessivo, monótono, repetitivo e desumanizan-te, o trabalho para o franciscanismo deve ser pessoal, humanizante e alegre.”34 Em outras palavras, viver aqui e agora o que parece estar além do tempo humano e do lugar cultural.

Conclusão

A justiça, a paz e a ecologia não são apenas bandeiras movidas pe-la força das mais variadas ideologias. A justiça é o próprio homem. A paz é o próprio homem. E a ecologia é o próprio homem fraternal-mente inserido no mesmo corpo e na mesma alma do mundo e do cosmo.

Na visão franciscana, a luta pela justiça, pela paz e pela ecologia não é apenas um compromisso ad extra, voltado apenas para fora: mu-danças das estruturas e das instituições que não promovem a paz, que não defendem a justiça e que não priorizam a ecologia. Acima de tudo é um compromisso ad intra, a mudança do coração: as estruturas e as instituições serão justas, se o homem for justo. É a partir do seu cora-ção que o homem será portador da paz, construtor da justiça e promo-tor da ecologia. É uma questão de mentalidade, e não apenas de cul-tura, de política e de estrutura, pois o homem pode ser justo e honesto numa estrutura, numa sociedade e numa cultura opressoras. Bem co-mo, pode ser corrupto e opressor numa instituição libertadora. Em outras palavras, a defesa e a promoção da justiça, da paz e da ecologia não é apenas uma questão política, estrutural, econômica e institucio-nal. Acima de tudo é uma decisão pessoal, um compromisso comunitá-rio e uma mudança dos critérios que fundamentam a mentalidade e que justificam as atitudes pessoais frente aos desafios libertadores.

É uma opção pessoal por critérios que fundamentam a vida a par-tir da dignidade do homem, na dimensão da criaturidade e da frater-nidade. E é um compromisso comunitário e um engajamento político, pois o clamor pela justiça revela a desvalorização da vida humana e de sua dignidade, encontrada nas dramáticas situações de miséria, fome, subnutrição, abandono, racismo, etc. Ao mesmo tempo, é um desafio urgente a construção da justiça a partir dos critérios da valorização da pessoa humana na sua totalidade de pessoa. Por sua vez, o tema paz se concentra no perigo sempre eminente, como a espada de Dâmocles, da destruição nuclear da terra e no compromisso da limitação e elimi-nação das armas estratégicas. Porém, paz é mais do que ausência de guerras e de armas. Paz, necessariamente, implica justiça: modos fra- 34 Id., ibid., p. 274.

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ternos de convivência, prioridade da pessoa sobre o capital e o lucro, a prioridade do serviço civil sobre o serviço militar, bem como a não-aceitação do terrorismo como instrumento político , da violência como recurso de justiça. Enfim, a eliminação dos conflitos de grande inten-sidade (guer-ras amplas, conflitos generalizados) e dos conflitos de baixa intensidade (conflitos localizados, esquadrões de extermínio, violência urbana). Na verdade, paz significa, fundamentalmente, vida plena e boa.

E o tema ecologia atinge toda a forma de defesa da vida humana e do mundo. A defesa dos seres e dos entes. A defesa do mundo e do cosmo. A defesa da grande habitação fraterna para todos, onde não haja vencedores e vencidos, reinos superiores e reinos inferiores, do-minadores e dominados, racionais e irracionais, lógica da vida e lógica da morte. E, sim, criaturas diferentes, com atitude de reverência e de respeito ao Criador, bem como a ecologia busca apoio na ética para iluminar os avanços e as conquistas científicas, tecnológicas, genéticas, nucleares e espaciais. Enfim, além de apontar os crimes contra a eco-logia, faz-se necessário denunciar os criminosos. E, pedagogicamente, faz-se necessário formar, desde a infância, homens e mulheres de boa vontade, para reorganizarem e revitalizarem o mundo, a grande habi-tação de todos os seres e entes.

Assim, a defesa da justiça, da paz e da ecologia não é apenas uma bandeira que se pode ou não assumir, mas é um constitutivo do ca-risma franciscano que determina o modo de vida.

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SILVIO PAULO BOTOMÉ Universidade Federal de São Carlos

Parecer acadêmico: a lógica clandestina de uma avaliação

“A esperança não é um sentimento de que tudo vai dar certo. É, antes, uma expec-tativa de que a vida e o trabalho valem a pena.” (Vacláv Havel). Quem não arrisca o ódio do outro só ama a si próprio.

É covardia dar um tapa e esconder a mão. Essa metáfora para ilus-trar uma dimensão de muitas condutas também pode ser usada para um comportamento (profissional ou nada profissional!) muito freqüen-te nas universidades. É o “parecer”. Essa conhecida maneira de emitir uma avaliação sobre um trabalho, situação, problema, documento, etc. aparece com vários nomes que são, na maioria das vezes, apenas eu-femismos para diminuir o impacto e a clareza do que é feito sob esses nomes. Debater um trabalho , fazer uma seleção de um candidato em um concurso, participar de uma banca examinadora de exame de qua-lificação, de mestrado, de doutorado, dar uma opinião sobre um tra-balho de um colega, etc. são exemplos de avaliação e de emissão de “pareceres”. Pode ser que , em muitos momentos, situações ou ocasiões não seja usado o termo “parecer”, mas talvez seja necessário examiná-lo, para revelar a multiplicidade de maneiras de fazê-lo no cotidiano do trabalho e da vida em uma instituição. Desde o informal comentá-rio para um colega no corredor, sobre um trabalho , problema ou con-duta, até a opinião formalizada em um documento solicitado institu-cionalmente, há a emissão de “pareceres”.

Mesmo recebendo vários nomes (laudo, diagnóstico, juízo, etc. – Ferreira, 1986) o que é feito é algo definido em torno do conceito de avaliação. O âmbito de realização e de explicitação ou formalização dos pareceres pode variar. Eles podem ser, em graus variados, ofici-ais, administrativos, acadêmicos, burocráticos, extra-oficiais, pessoais, formais, informais, escritos, orais, etc. e podem misturar tais caracte-rísticas de diferentes maneiras. Mas sempre são uma avaliação de al-

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go. A tal ponto que fazer e usar “pareceres” chega a ser feito como uma rotina nas instituições. Às vezes como mera aparência (“fachada”) para atos ou opiniões nada profissionais ou, em outros casos, manifes-tações sé-rias e responsáveis. Na sua existência misturam-se muitos procedimentos. Vários deles pouco respeitáveis, mas que convivem – e, às vezes misturam-se – com avaliações bem-feitas, úteis e importan-tes: relaxamento, despachos e opiniões vazios, ou sem fundamento, esquiva ou fuga de responsabilidades, procedimentos de “empurrar com a barriga”, comentários sem fundamento, comentários que são apenas a expressão de fantasias ou sentimentos de quem fala (raiva, inveja, ciúmes...), etc. aparecem junto com exames críticos e criterio-sos, ou com alguns poucos dados, insuficientes para sustentar as con-clusões apresentadas como “parecer final”.

Há também, e felizmente, uma outra direção de exame a conside-rar. Faz parte das responsabilidades e competências de um profissio-nal de Ciência e de universidade tomar decisões, emitir juízos, fun-damentar posições, avaliar trabalhos, etc. Emitir um parecer é uma expressão institucional desse tipo de responsabilidade e atribuição ou competência. Isso pode justificar, se não um exame profundo, pelo menos uma reflexão sobre as características que compõem um “pare-cer” e as variáveis que as determinam. Esse é o objetivo deste texto.

“Parecer” não é opinião nem julgamento ou, pelo menos, não se restringe apenas a isso. É um auxílio, por meio de informações analíti-cas e precisas, em relação ao trabalho , ao procedimento ou à conduta de outra pessoa. Isso, no entanto, não parece ser claro na maioria dos pareceres emitidos em relação aos mais variados tipos de trabalho acadêmico ou técnico, quando não em relação a aspectos da conduta pessoal. Colegas, assessores de órgãos, superiores, técnicos, consulto-res ad hoc, etc. costumam, com uma freqüência desconfortável, con-fundir sua opinião pessoal ou seus julgamentos com o que comumente é denominado de “parecer”. Pode ser útil, no âmbito de uma institui-ção, especialmente da Universidade, examinar um pouco o que pode significar “dar um parecer” para um trabalho (ou atividade) comum, técnico ou acadêmico. Principalmente se for lembrado que , cada vez mais, esse é um instrumento utilizado para autorizar projetos, finan-ciá-los ou integrá-los nos planos de um sistema ou instituição.

O contexto básico de qualquer “parecer” é o mesmo de qualquer conduta humana. E esta tem sempre, mesmo que combinadas em dife-rentes graus , dimensões técnicas, físicas, sociais, éticas e políticas. Não são, como podem aparentar à primeira vista, apenas técnicas. Envol-vem sempre critérios políticos e pessoais, mesmo que inconscientes por parte de quem o emite. Informações mínimas a respeito de quem fez o trabalho ou das preferências filosóficas, ideológicas, teóricas ou políticas de quem é alvo do “parecer” acarretam tendências a menos-

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prezar certos tipos de informação e a supervalorizar outros, quando não a ignorar qualquer tipo de informação de um tipo ou de outro, conforme o grau de interesse ou de adesão que aquele que emite o parecer possa ter em relação ao trabalho , ou à própria pessoa, que é alvo do “parecer”. Isso é ainda mais sério e importante quando quem faz o trabalho precisa expor-se até na sua história profissional e pesso-al, com identificação absoluta, enquanto quem emite o “parecer” fica em um confortável anonimato. Ou com muita proteção para escapar de uma avaliação do próprio “parecer”. Só essas condições já indicam um alto grau de perigo para uma confiança e um papel tão absoluto para “pareceres” e “pareceristas”.

A concepção mais comum é de que um “parecer” de alguém é a o-pinião desse alguém sobre um assunto, trabalho, objeto, o desempe-nho de alguém ou de uma situação, como se a pessoa que emite o pa-recer, por si só, fosse a fundamentação necessária e suficiente para sustentar o que é afirmado e constitui o núcleo do “parecer”. Tal idéia à qual, em geral, as pessoas já se acostumaram, é insuficiente para en-tender o que significa e o que exige “dar um parecer” sobre algo. De certa forma, “parecer” pode ser considerado uma opinião, mas não qualquer opinião ou opinião apresentada de qualquer maneira. A opi-nião de uma pessoa pode ser apenas uma asserção, qualificando algo sem mostrar-se clara e sem ser fundamentada. Pode estar cheia de suposições ou preconceitos. Pode ser apenas a exibição de poder ou presunção. Pode, enfim, ser um exercício de vaidade e dominação, ou competição e inveja, sustentado por circunstâncias burocráticas de apoio, de conivência ou cumplicidade. Pode ser apoiado por circuns-tâncias justificadoras que servem de atenuantes para muito exercício de pura maldade, prepotência, vaidade presunçosa e comportamento irresponsável. Ou por competição por prestígio e poder, seja pessoal, seja pela área ou grupo a que pertencem os envolvidos. Ou por corpo-rativismo, na direção oposta e tão lesiva quanto à outra. E as exigên-cias, é bom frisar, não se referem apenas a uma retórica apropriada ou formal, com aparência de isenção e legalidade ou legitimidade. Trata-se de deixar claro quais fatos, concretos e palpáveis, sustentam o que conclui o “parecer”, na quantidade suficiente e de natureza apropriada não só à conclusão do parecer mas às conseqüências que se seguirão a ele, em diferentes amplitudes de efeitos.

De maneira similar, um “parecer” pode ser equiparado a um juízo. As restrições, porém, são semelhantes às que são feitas para a concep-ção de que um parecer é uma opinião. Um parecer também pode ser considerado um juízo, mas não qualquer juízo ou juízo formulado de qualquer maneira. O exame pode ser o mesmo já feito para o enten-dimento de que “dar um parecer é dar uma opinião”. Na concepção de que é “um juízo” há ainda outros aspectos a considerar em relação ao

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que pode significar um “parecer”. Nesta maneira de entender há o acréscimo da idéia de julgamento de forma mais nítida. Esta concep-ção torna mais provável a pessoa que “dá o parecer” colocar-se no papel, em maior ou menor grau, de um juiz. E, com isso, enfatizar o aspecto, que poderia ser acidental ou mínimo, de julgamento do traba-lho de outro, pura e simplesmente e sem um correspondente processo de avaliação ou sem as condições que um julgamento de qualquer porte e tipo exige para ser aceitável. O que pode ser grave são as decorrên-cias que uma tal concepção torna mais prováveis de acontecer. A idéia de julgamento como sendo o núcleo de um parecer aumenta a probabilidade de quem o emite ficar longe do compromisso de dar informações claras, completas, bem-fundamentadas e orientadoras para quem pede o parecer ou para quem faz o trabalho que é examinado. Dizer que “um parecer pode ser um juízo ou uma opinião desde que tenha certas características” exige esclarecimentos e complementa-ções que deixem suficientemente claros o significado e as decorrências dessa assertiva. Que características deve ter um “parecer”? O que le-var em conta ao formulá-lo? Quais as decorrências a considerar, a evi-tar ou a procurar obter com a sua elaboração? De que forma apresen-tá-lo? Qual o grau de sigilo que deve ter? É correto ou ético dar um parecer no anonimato ou protegido por ele? Que condições são impor-tantes para que um “parecer” seja aceitável? Ter essas perguntas pre-sentes e procurar respondê-las para cada situação podem ser boas medidas para orientar a emissão de “pareceres” acadêmicos, técnicos ou “sociais”.

Um parecer equivale a uma conclusão: exige a explicitação do con-junto de dados em que se baseia uma decisão, um juízo, uma opinião ou uma afirmação, mesmo que atenuada por eufemismos. Uma conclu-são inclui não apenas indicar as características do que acontece – do trabalho, do documento, do procedimento ou da atividade –, mas também das circunstâncias em que o trabalho ocorreu e que fazem com que o juízo emitido possa ter peso diferente do que teria se não houvesse a explicitação das condições que podem relativizá-lo. Um trabalho – seja projeto, relatório, objeto, procedimento – de pesquisa, por exemplo, pode ser desenvolvido por um pesquisador veterano sozinho, ou em grupo com pesquisadores de várias áreas, ou com alu-nos de iniciação científica, ou com mestrandos ou doutorandos. Pode ser feito no contexto de um curso ou como um trabalho isolado. Pode ser proposto em uma universidade localizada em um grande centro ou pode ser desenvolvido em uma instituição isolada em um local distan-te de recursos para o desenvolvimento de um bom trabalho científico. Em qualquer dessas situações, ou combinações delas, um trabalho merece considerações maiores do que apenas sobre as características que apresenta. Considerar as circunstâncias em que é feito pode rela-

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tivizar o que alguém pensa (julga, conclui, opina, “diagnostica”) sobre ele. Uma analogia pode auxiliar a entender melhor o que isso pode significar. Um médico, ao fazer um diagnóstico (ao chegar a uma con-clusão) a respeito de um problema de saúde, leva em conta as várias condições (idade, aspectos nutricionais, fisiológicos, biológicos, de cansaço, desgaste, etc.) da pessoa que é alvo do diagnóstico que faz. Ou, se não fizer isso, corre o risco de errar. Não por cometer enganos na identificação do problema de saúde, mas por não localizar a gravi-dade, o perigo ou a importância dele em função das circunstâncias em que acontece o problema (Pires Junior, 1987).

É possível também equiparar um parecer sobre um trabalho aca-dêmico a um outro conceito conhecido, embora insuficientemente, no meio acadêmico. Nessa possibilidade de comparação, um parecer e-qüivale a um “laudo técnico”, exigindo a explicitação dos fundamentos da conclusão de um exame (o que foi observado e examinado e que fundamenta essa conclusão). De maneira semelhante à equiparação com um diagnóstico, ao considerar um parecer equivalente a um laudo técnico, fica realçado um aspecto importante: trata-se de um exame técnico e de uma opinião da mesma ordem (em contraste com uma pessoal, política, afetiva, etc.). Isso é importante, porque é exigido um conhecimento especializado e não apenas uma experiência de senso comum ou percepção administrativa. Não parece útil desconsiderar as dimensões técnicas de um parecer para enfatizar, absolutizar ou ape-nas considerar as administrativas ou burocráticas. Mesmo que seja considerado – e, às vezes, isso é um perigo bastante grande – que quem emite o parecer não sabe as diferenças entre todas essas dimen-sões. Quando isso acontece, o parecer conterá muito mais considera-ções do tipo “prazos”, “disponibilidade”, “interesse da administração”, “recursos disponíveis”, “inclusão nos programas da agência”, “atendi-mento a critérios burocráticos”, etc.

Os critérios técnicos exigem que um parecer considere a qualidade técnica, a viabilidade de vários pontos de vista, a pertinência da pro-posta em relação a critérios diversos, a viabilidade e as possibilidades de eficiência na realização, a eficácia (no sentido de probabilidade de obtenção de resultados) e também a relevância vista de múltiplas perspectivas (social, institucional, para a área, etc.) e a pertinência (a adequação ao momento e às circunstâncias em que ocorre ou ocorreu o que é examinado). Sem esses aspectos, o parecer tenderá a deixar de ser técnico e ser parcialmente, predominantemente ou absolutamente outra informação qualquer.

Uma noção das características de um parecer não é suficiente para emitir esse tipo de opinião de maneira profissionalmente satisfatória. Um parecer, além das dimensões técnicas, tem aspectos políticos, éti-cos, estéticos, sociais e pessoais a serem considerados como seus com-

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ponentes. Todas essas dimensões precisam ser levadas em conta na emissão, na utilização ou no exame de um “parecer”. Tais dimensões aparecem em diferentes aspectos do “parecer”, tanto nas suas caracte-rísticas ou componentes como nos seus determinantes. É bom lembrar que um “parecer” (uma opinião técnica, clara, analítica e fundamenta-da) não é apenas um documento ou um produto verbal, mas é um processo que faz parte de um sistema de condições e é por ele influen-ciado (determinado em graus variados). Cada dimensão, característica ou componente do parecer é influenciado por diferentes condições e pode ser grandemente distorcido ou afastado de seus fins pela sim-ples desconsideração, inconsciência ou descuido com qualquer um desses aspectos e dessas influências. Tais influências e condições refe-rem-se ao emitente do parecer, ao alvo do parecer, ao solicitante, aos objetivos e interesses envolvidos, etc. Examiná-los, mesmo que pouco, pode ser um bom auxílio para fazer bem esse tipo de trabalho profis-sional, especial-mente se for no universo acadêmico.

Um dos aspectos importantes a examinar e deixar público – mes-mo que apenas ou principalmente para si próprio – é a razão de ser da emissão de um “parecer” sobre o trabalho de alguém, no cotidiano, no trabalho de uma empresa ou na Universidade. Qual é o objetivo? A finalidade? O que interessa obter com ele? Quem emite um parecer (o laudo, o diagnóstico , a opinião, o juízo...) pode ter objetivos variados e nem sempre congruentes com aqueles de quem solicitou o parecer ou de quem realizou ou realizará o que é alvo do parecer. Para saber ou identificar tais possibilidades é necessário decidir e explicitar qual é o objetivo que vai orientar o parecer. É aquele que o emitente assu-me? É o que lhe é proposto pelo solicitante? E qual o de quem reali-zou, realiza ou realizará o trabalho? Como resolver se forem diversos? Ou opostos? Holland (1973 e 1978) e Botomé (1979, 1981 e 1996) exa-minaram o que podem significar as discrepâncias de orientação, neces-sidades ou interesses entre um “cliente” e um “paciente”, estabelecen-do, por meio de uma analogia com a área de saúde, uma importante diferença: como fazer quando quem solicita um trabalho e paga por ele (“cliente”) tem interesses, orientação e necessidades diferentes daqueles que têm quem sofrerá a intervenção (“paciente”)? Há, com essa questão, a evidência de, pelo menos, três orientações em jogo: a de quem sofre a intervenção, aquela de quem solicita essa intervenção e a de quem realiza a intervenção. O que pode ser feito ao constatar essa tríplice expectativa? Não é aceitável querer apenas ignorar que , no caso de um parecer sobre um trabalho acadêmico , esse conflito é inevitável. E fugir dele não o resolve. Apenas o escamoteia. Princi-palmente no caso em que um “parecer” tem como decorrência verbas, poder, oportunidades, benefícios ou status para quem realiza o traba-lho. Mais principalmente ainda se, pelas circunstâncias, quem emite o

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“parecer” for, de alguma forma, um concorrente, adversário ou colega que pode ficar “em segundo plano” se o alvo do parecer for beneficia-do pelo “parecer”.

Uma opinião profissional fica muito prejudicada se for apresenta-da com o seu emitente, desconsiderando que a razão de ser de sua emissão é um aspecto importante a ter claro. E como há inúmeras pos-sibilidades de objetivos de um parecer profissional, delimitar qual objetivo vai servir de orientação. Para a opinião profissional é uma decisão. E só pode ser uma decisão do profissional que emite o pare-cer. Ele é quem escolhe o objetivo que vai orientá-lo. Os interesses e as solicitações de quem lhe pede o parecer (a instituição, o “chefe”, o “dono do dinheiro”, aquele que lhe paga, o governo , etc.)? Ou as ne-cessidades e interesses de quem realizou o trabalho em exame? Ou as conseqüências e os benefícios que o trabalho em apreciação vai gerar para a comunidade? Ou a própria definição do profissional, conside-rando vários aspectos envolvidos no trabalho , no parecer, nas condi-ções de um e outro, nos determinantes de ambos e nas decorrências que advirão para a comunidade (instituição, região, sociedade, etc.) onde o trabalho está inserido? O profissional é o único que pode ter todos esses elementos em mãos, já que ele é quem, queira ou não, faz esse parecer e está no centro dessas influências. A quem atenderá o parecer? É adequado, correto, justo ou conveniente esse atendimento? Adequado, correto, justo ou conveniente para quem? Em que grau? Com que critérios? Uma vez explicitado o conflito, só há uma saída: definir profissionalmente qual o objetivo do parecer, deixar claro o que interessa obter como resultado dele. Ou, então, a alternativa é ignorar tudo isso e emitir o “julgamento” como se nada importasse. Esta possibilidade, porém, não anula as influências, só as ignora, des-considera, esconde ou adia. Inclusive os possíveis – e muitas vezes inconfessáveis – sentimentos, temores e disposições de quem emite o “parecer”.

O conflito relativo a essa tríplice exigência tem vários aspectos su-tis a considerar. O emitente do parecer e o executor do trabalho em exame são facilmente identificáveis pela pessoa que emite o parecer. O mesmo não acontece com o solicitante. Um parecer pode ser solicitado por diferentes pessoas ou agências. Cada uma em uma solicitação, várias em uma mesma solicitação e em diferentes gradientes de pre-sença, influên-cia ou participação em qualquer caso. Quando um chefe ou superior solicita um parecer, há várias agências envolvidas nessa solicitação. O superior, enquanto pessoa com suas peculiaridades e características pessoais e profissionais (sério? responsável? honesto? oportunista? autoritário? acessível? “transparente”? solidário? egoísta? amigo? inimigo? correligionário político? etc.), é diferente daquele que constitui o cargo: suas funções, responsabilidades, o papel que repre-

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senta na instituição, as atribuições específicas, etc. Além disso, ele re-presenta uma instituição que pode ter objetivos e interesses nem sem-pre congruentes com aqueles que ele tem, como chefe ou como pessoa, ao fazer a solicitação de um parecer. E, mais ainda, essa instituição faz parte de um sistema de instituições – e este de uma sociedade – que pode ter necessidades e interesses ainda diversos, conflitantes, etc. A qual dos solicitantes deve atender o emitente do parecer? Também neste caso é possível fingir que o problema não existe e agir apesar de sua existência e importância. Mas isso não anulará as influências des-sas agências. Elas agem sobre o emitente apesar do grau de consciên-cia e da clareza que ele possa ter sobre essas influências e sobre os processos pelos quais elas atuam. Ignorá-las, negá-las ou racionalizar a respeito de suas ações ou importância só tem um resultado: o emitente fugir da responsabilidade (ameaça?) e da decisão (conflito? perigo?) envolvidas na escolha do que atender e de como e quanto fazê-lo. Ou evitar tudo isso. Cabe, também neste caso, insistir em uma pergunta: o que resolve esta maneira de agir? Ela parece apenas adiar o “enfren-tamento” com o problema, além de aumentá-lo para o próprio profis-sional que age dessa forma. Em outras palavras: adiar, evitar ou fugir do problema e da responsabilidade de examiná-lo e resolvê-lo só o torna maior e pior para todos, inclusive para quem o evita, o encobre ou foge dele.

Examinados os possíveis tipos e as possibilidades de influência dos solicitantes, é útil aprofundar também o exame sobre os possíveis interesses ou as necessidades envolvidos. Um parecer pode ser solici-tado com diferentes objetivos, e tais objetivos podem ser congruentes ou opostos, ou qualquer tipo de variação entre esses valores ou graus de semelhança. Uma mesma agência ou pessoa pode, inclusive, ter objetivos múltiplos, ambíguos, pouco claros. Outra, às vezes envolvida no mesmo trabalho, pode ter objetivos em diferentes condições. Em qualquer dessas condições, suas influências serão exercidas e caberá ao profissional que emite o parecer identificar tais influências, integrá-las e decidir o que fazer a partir delas. Um exemplo típico que pode ser examinado como ilustração é o caso de um órgão de uma institui-ção que solicita um parecer sobre um projeto de pesquisa para o qual há um pedido de financiamento. A qual objetivo e interesse – e em que grau de cada um – o emitente do parecer vai atender? Só há uma saída: decidir o que significa um parecer, de que pontos de vista ele deve ser emitido, que características deve conter, etc. Em outras pala-vras, o próprio profissional deve gerar as influências às quais deve ficar exposto. Ou não sairá do conflito, do temor, da incerteza, da insegurança e, sem dúvida, de conivências que nem saberá identificar, explicitar ou precisar quais são.

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Com o exame da existência de diferentes objetivos e interesses na emissão de um juízo ou opinião profissional, é possível também exa-minar o grau de conhecimento deles e de quem os tem. Cada pessoa ou agência que solicita um parecer tem características e objetivos em diferentes graus de explicitação que, juntos, influem fortemente no que é feito por uma pessoa ao apresentar um “parecer”. Tanto as ca-racterísticas quanto os objetivos de qualquer agência (ou pessoa) en-volvida podem ser conhecidos e públicos em quantidades variadas desses dois aspectos. O grau de publicidade e de conhecimento, tanto das características quanto dos objetivos de cada agente envolvido na emissão de um “parecer”, depende da ação de quem o emite e cujo comportamento (atuação) é influenciado por esses fatores – conheci-mento e grau de explicitação e clareza dessas características e objeti-vos. Só o emitente de um “parecer” pode apresentar essa ação. Até porque ele é o mais interessado nesse conhecimento e na clareza dessa explicitação. É seu modo de agir que sofre essa influência. Torná-la clara é a melhor maneira de decidir quanto atendê-la. Aliás, essa é também uma condição básica e indispensável para participar do jogo de influências que interfere com a própria conduta, neste caso a de avaliar o trabalho ou a conduta de outra pessoa.

Além das direções de influência sobre a emissão de um parecer já examinadas, há ainda uma que parece valer a pena considerar. O obje-to de “parecer” e o sujeito a quem pertence o trabalho têm característi-cas que influem fortemente sobre a natureza e as características do “parecer” que lhes dirá respeito. O objeto do parecer tem múltiplas dimensões que afetarão, cada uma de uma maneira e em algum grau, diferentes aspectos componentes do “parecer”. Que dimensões ou aspectos são esses? Mais uma vez, é tarefa do examinador descobrir as características essenciais e as acidentais entre dimensões estéticas, formais, estruturais, éticas, políticas, técnicas, administrativas, pesso-ais, etc. Às vezes, dependendo da natureza do trabalho e do cargo de quem o fez, o avaliador é constrangido – até sem o saber – a enfatizar algumas das dimensões do “parecer” , sendo mais exigente com algu-mas dimensões e mais tolerante com outras. Se isso acontecer, e pare-ce “natural” que aconteça dessa forma, pode ser útil ser capaz de per-ceber e avaliar se, quanto e por que tais elementos devem pesar na avaliação que o “parecer” deve expressar. Mais uma vez, as caracterís-ticas do trabalho, desde a sua natureza até os cuidados na sua apre-sentação, e daquele que o realiza também, são componentes de influ-ência a tornar públicos e examináveis. Só assim haverá maior clareza sobre as fontes de in-fluência e o poder que exercem em relação a um processo de avaliação de um trabalho , receba esse processo o nome que receber.

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Além dessas fontes de influência e concepções que interferem com a emissão de um parecer sobre um trabalho , há também aspectos con-ceituais sobre a própria noção de avaliação, núcleo do que constitui um parecer. Pode haver duas orientações básicas para entender o que caracteriza um parecer e, coerentemente, para agir em relação a isso. A principal delas é classificar, simplesmente, o produto examinado. Outra é analisar o que foi feito, considerando vários aspectos ou di-mensões, e indicar alternativas para superar as dificuldades e para aproveitar os aspectos significativos (Botomé e Rizzon, 1996). No pri-meiro caso há o que se pode chamar de uma rotulação sumária, mes-mo que com eufemismos ou com uma retórica justificadora. No se-gundo, parece haver algo mais próximo de uma informação orienta-dora para o trabalho prosseguir , explicitando o que foi considerado no exame feito e delineando o significado e as possibilidades de supe-ração ou de encaminhamento para o que foi apontado. Neste caso, há uma aproximação do que Carlos Matus (ver Huertas, 1996 e Matus, 1996) chama de processamento de problemas (um exame das variáveis que interferem com o que está acontecendo) em oposição ao tradicio-nal conceito de diagnóstico, que enfatiza a localização do problema em categorias que incluem seus determinantes (ver Bunge, 1961) e orien-tam a decisão (a intervenção) sobre o que fazer em relação ao que recebeu o nome por meio do processo de diagnosticar. Entre essas duas possibilidades parece haver vários graus em que um “parecer” pode ficar localizado. Cabe, também aqui, o examinador do trabalho avaliar e decidir que características deve ter o “parecer”, com uma percepção clara a respeito de quais são os determinantes de sua deci-são. Isso é particularmente importante pela própria ênfase (e confu-são!) que a idéia de avaliação contém em direção à concepção de me-dida e não de um “exame orientador”, não só em um ambiente ou contexto educacional (Botomé , 1993; Botomé e Rizzon, 1996) como também em um contexto de produção de conhecimento e de interven-ção profissional (Barlow e col. ,1986; Cortegoso e col. , 1996) ou de um sistema empresarial (ver Senge, 1995 e Nóbrega, 1996).

Como decidir qual a direção de interesse? As conseqüências possí-veis de uma e de outra orientação, no entendimento do que é um “pa-recer”, podem auxiliar na avaliação de qual delas vale mais a pena seguir? Explicitá-las pode ser uma ajuda importante no processo de decidir que características deve ter o “parecer” que avalia o trabalho de outra pessoa. Se isso não parece ser importante, basta colocar-se no lugar de quem recebe um parecer sobre seu trabalho e imaginar que tipo de “parecer” lhe seria mais útil e significativo do ponto de vista profissional e relevante do ponto de vista das conseqüências sociais do trabalho a que se refere o “parecer”. Com a suposição, é claro, de que não vale aceitar um “parecer” desonesto.

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Além de todas essas características e esses determinantes de um “parecer” técnico, ainda podem ser examinadas algumas propriedades de sua própria apresentação. É possível imaginar que um “parecer” pode ser detalhado em variados graus e essa pode ser uma das carac-terísticas de sua apresentação que, ao lado da linguagem correta e de uma organização cuidada e bem-estruturada, merece algum destaque. Principalmente porque pode ficar a impressão de que um “parecer” é um texto cheio de considerações, arrazoados, etc. E talvez seja exata-mente o contrário disso.

Fundamentar uma opinião em graus variados de detalhamento não deve ser entendido como uma concessão ao detalhismo desneces-sário, à fuga da responsabilidade de sustentar a opinião emitida com fundamentos, à cumplicidade ou à subserviência a procedimentos me-ramente burocráticos. Isso significa que um parecer pode conter ape-nas o que importa para apresentar a avaliação e seus fundamentos. E não todas as desculpas, justificativas e atenuantes possíveis para isen-tar seu emitente de culpas ou responsabilidades. Quando há formulá-rios específicos para preencher com os dados de avaliação, isso se tor-na ainda mais sério. Em geral, um formulário contém o que interessa a quem solicita o “parecer” e, embora haja excelentes exceções, isso exi-ge cuidados específicos ou especiais de quem emite o “parecer”. O que importa, nesse caso, é que o texto contenha as informações relevantes aos objetivos do parecer. E somente elas.

Um erro freqüente é, em graus variados, o “parecer” explicitar o processo que o emitente vivenciou ou realizou para fazer o exame e redigir o “parecer”. Isso significa uma distorção, uma vez que o “con-texto da descoberta” não é o que justificará o “parecer”. A fundamen-tação da opinião apresentada deve ser dada pelas evidências contidas no próprio trabalho ou no seu contexto. O processo (o procedimento principalmente) de elaboração do “parecer”, como qualquer outro tex-to dissertativo, pode, eventualmente, servir como complemento para conferir ou avaliar o próprio “parecer” (o cuidado com que foi feito, por exemplo). Não serve, porém, para fundamentar o que é concluído nele.

Talvez seja útil destacar o que pode ser importante ao texto que contém um “parecer”. Em palavras diretas, um “parecer” é uma opini-ão fundamentada sobre determinado assunto, emitida por especialis-ta. Esta expressão contém o que é importante para apresentar no texto que explicita o “parecer”: (1) a opinião sobre o que pode ser conside-rado sobre o trabalho , (2) os fundamentos que sustentam essa opinião, (3) de um ponto de vista fundamentalmente técnico , mas sem esquecer de considerar (4) as dimensões políticas e as decorrências sociais do que o trabalho significa e do que o “parecer” prescreve. Isso parece ser o bastante para redigir um texto que oriente as pessoas sobre o que

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fazer com o trabalho a partir do “parecer”: retomar e refazer, prosse-guir e implementar, tomar cuidados específicos, corrigir no que , aper-feiçoar no que, retirar o que , reavaliar o que, etc. Assim, haverá maior probabilidade de não confundir análise com prolixidade, exame com justificativas e considerações, etc.

Em qualquer concepção que seja preferida (avaliação, juízo, opi-nião, julgamento, etc.) é possível destacar propriedades essenciais e acidentais para um texto que registre um “parecer”. Exposição dos fundamentos de uma decisão, opinião ou juízo parece ser uma propri-edade essencial da noção do que seja um parecer. E ela não pode dei-xar de estar presente na comunicação aos interessados no “parecer”. Essa talvez seja a característica mais importante, por que é a que per-mite ava-liar o juízo emitido. Sem ela fica apenas o equivalente à con-clusão de um argumento sem haver acesso às premissas que o susten-tam. Dessa forma, o “parecer” pode ficar reduzido a apenas uma su-posição não-fundamentada e sua utilidade poderia reduzir-se a uma mera peça burocrática a servir de pretexto para decisões administrati-vas, opções ideológicas, medidas de controle ou competição políticas (por poder), ganho de status e até de dinheiro, espaço ou equipamen-tos. Ele não passaria de um equivalente a um “acho” e, para quem ad-ministra, é necessário mais do que isso ou do que uma coleção de “o-piniões” para tomar decisões bem-fundamentadas.

As dimensões éticas de um “parecer” são importantes para carac-terizá-lo coerentemente, não apenas com a concepção do que seja esse trabalho, mas até com o uso da palavra “parecer”. As conseqüências do que é escrito sob esse nome são sérias e não devem isentar quem emite tal documento da responsabilidade por elas. Goste-se ou não disso. Talvez seja mais para evitar tal responsabilidade que , muitas vezes, os “pareceres” são mantidos sob anonimato. Isso facilita não apenas proteger o emitente de pressões, mas também de ter que res-ponder pelas conseqüências de sua avaliação ou de ser questionado pelo que ela contém. Em qualquer caso, avaliar ou comentar o traba-lho de alguém não deve ser considerado como um palpite sem conse-qüências. É algo sério e precisa ser feito com o cuidado corresponden-te. Afinal, ser profissional exige envolver-se com a solução e com o avanço dos processos de forma a enfrentar e superar problemas e difi-culdades e não escamoteá-los, fugir deles ou adiar indefinidamente o seu exame e a sua resolução.

De maneira semelhante – e talvez inseparável – é possível exami-nar as dimensões estéticas de um parecer. Elas têm bastante importân-cia para garantir a função de um trabalho desse tipo. O cuidado na apresentação do exame feito pode ser crucial para o entendimento e aceitação do que ele contém. Esses cuidados também fazem parte da dimensão ética do comportamento profissional e não devem ser trata-

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dos como “perfumaria” ou algo acidental e sem importância. É como ir a uma festa sujo e mal vestido. Essa conduta mostra o desleixo e o descaso com o que é festejado. Cuidado estético revela a seriedade e o respeito pelo trabalho feito, pelo exame realizado e pelo pedido que o originou. Além de indicar uma disposição geral em relação ao que os outros fazem.

Em resumo, ao emitir um “parecer”, é preciso ter claro o que levar em conta para decidir os termos e a forma que deve conter a sua apre-sentação. Isso resume não apenas o que foi apresentado, como tam-bém destaca que “dar um parecer” é um trabalho profissional e, em geral, resulta em um retrato de quem o faz e das condições em que se encontra ao fazê-lo. O cuidado, a seriedade e a profundidade recaem, a médio prazo, sobre a própria pessoa que emite o “parecer”. Funda-mentalmente, quando a principal influência é o que ajudará a resolver e superar as dificuldades e não o que facilita fugir , evitar ou esconder o que pode acontecer. Principalmente porque o “parecer”, desde o disfarçado comentário de corredor, até o preenchimento dos formulá-rios das agên-cias de fomento, é um poderoso instrumento de poder, exercido no anonimato na quase totalidade das vezes em que é utili-zado. Isso não é pouco e nem pode ser considerado como “natural-mente benéfico” para a sociedade, para a Ciência, para a Universidade ou para outras instituições. Pode haver uma lógica perversa camuflada na “naturalidade” dos processos que recebem o eufemístico nome “pa-recer”, como se não tivessem interesses ou dimensões outras que não apenas as técnicas e publicamente confessáveis.

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VALENTIM ANGELO LAZZAROTTO

Universidade de Caxias do Sul

Descobrimentos e invenções (um estudo sobre os pressupostos epistemológicos

na produção científica de Albert Einstein)

“Gradualmente perdi a esperança de descobrir as leis verdadeiras, atra-vés de esforços construtivos , baseados em fatos conhecidos. Quanto mais me dedicava a esse objetivo, mais me convencia de que só a descoberta de um princípio formal universal poderia levar a resultados seguros e posi-tivos” (Einstein).

“As hipóteses de antes tornam-se cada vez mais abstratas, cada vez mais afastadas da experiência. Mas, em compensação, vão se aproximando muito de ideal científico por excelência: reunir, por dedução lógica, gra-ças a um mínimo de hipóteses ou de axiomas e um máximo de experiên-cias. Assim a epistemologia, indo do axioma para as experiências ou pa-ra as conseqüências verificáveis, se revela cada vez mais árdua e delica-da, cada vez mais um teórico se vê obrigado, na busca de teorias, a dei-xar-se dominar por pontos de vista formais rigorosamente matemáticos , porque a experiência do experimentador em física não pode mais condu-zir às regiões de altíssima abstração” (Einstein).

“Deve ter sido, por volta do ano 1950. Eu acompanhava Einstein no per-curso do Instituto de Estudos Avançados para sua casa, quando ele pa-rou de repente, voltou-se para mim e me perguntou se eu realmente acre-ditava que a lua só existia quando eu olhava para ela [...].”1

Esta pergunta, assim como surpreendeu Abraham Pais, teria sur-preendido cada um de nós. Qual seria a intenção da pergunta? Que pressupostos científicos estarão por trás de uma afirmação como esta? Defesa do empirismo? Uma declaração realista, operacionalista? O homem é a pergunta, as suas palavras, as suas respostas, os seus atos.

1 PAIS, Abraham. Sutil é o senhor... A ciência e a vida de Albert Einstein. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira , 1995, p. 3.

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“[...] pensar não é um prazer ou um biscate adicionado, somado à exis-tência diária. É a essência, o ser humano em pessoa , a ferramenta através da qual tristezas passageiras, formas primitivas de sentimento, partes pessoais da existência podem ser controlados. Pois através do pensa-mento que o homem se pode erguer sobre grandes e eternos enigmas. É uma libertação que pode render liberdade interior e segurança.”2

Se, erradamente, somos levados a pensar no cientista longe do seu íntimo frio, objetivo, reprimido, “[...] reduzido ao silêncio da subjeti-vidade [...], escutando apenas a voz dos fatos,”3 e por isso mesmo não lhe atribuímos ligações com aspectos mais subjetivos, é porque, ao pensar como cientistas positivistas, fomos assumindo inconsciente-mente estes clichês. Cientista é fruto do ambiente; influencia e é influ-enciado pelo seu tempo. Podemos enquadrar Einstein em uma concep-ção, em qual concepção científica? O cientista Bernard D’Espagnat in-siste em afirmar que Einstein era um realista4 em oposição à escola positivista; ou seria neopositivista, mais precisamente de tendência operacionalista?5 Harwey Brown o classifica de realista, porque encara a realidade quântica de forma radicalmente diferente da Física clássi-ca. Mais especificamente, a questão de como atribuir valores aos ob-serváveis dos sistemas quânticos é resolvida da maneira clássica. Ou seja, considera-se que “o próton, por exemplo, sempre possui valores precisos, objetivos, associa-dos simultaneamente a todos os observá-veis relevantes [...] a posição, velocidade, energia”.6

Entretanto, Einstein cientista nos parece estar mais próximo do ar-tista que dá asas à sua imaginação e do filósofo que busca a visão glo-bal dos fenômenos, sem se desligar dos fatos para onde dirige a expe-riência que deverá confirmar os resultados teóricos. Como é que fe-nômenos aparentemente simples, mas complexos, como o conhecimen-to, são entendidos pelo pensador Einstein? Existem normas para ex-plosão cria-tiva? Como se processa a descoberta das teorias? Einstein 2 HOLTON, Gerald. The phisic’s teacher. What precisally is thinking Einstein’s answer.

Março 1979, p. 158. 3 THUILLER, Pierre. De Arquimedes a Eisntein. A face oculta da invenção científica . São Pau-

lo: Zahar, 1994, p. 227. 4 Os realistas, afirma o cientista francês , pensam que a noção de uma realidade inde-

pende do homem , e que essa realidade deve ser conhecida através do processo da ciên-cia. Os positivistas, ao contrário, desconfiam desta noção de realidade, pois vêem em tudo o lado metafísico.

5 O dicionário filosófico de Rosental Iudin apresenta o positivismo em três vertentes. Do primeiro positivismo, Comte é o representante máximo; e Mill e Spencer vão dar atenção especial à Sociologia , à evolução histórica, à defesa do saber como poder. No segundo positivismo, o neopositivismo, cujo representante máximo está na figura de Mach – que terá uma grande influência sobre Einstein na sua primeira fase –, o conhecimento é ana-lisado sob o ponto de vista do psicologismo. O terceiro positivismo, ou positivismo lógico , ocupa-se dos problemas da linguagem , da lógica simbólica e da estrutura da investi-gação científica.

6 BROWN, Harwey. A estranha natureza da realidade quântica. Revista Ciência Hoje.

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Filosofia, Lógica e Existência / 421

poderia ser enquadrado como um homem que trouxe a arte, a religi-ão, a intuição, o determinismo até a Física? Os artistas, os psicólogos, os religiosos descrevem a realidade tal como ela é, ou, a partir da sua subjetividade, interpretam e reconstroem a realidade de acordo com as exigências de sua individualidade, do seu passado, da sua imagina-ção, da sua expectativa? Pensadores contemporâneos, como Arthur Koestler,7 afirmam que “o espaço de Einstein não está mais próximo da realidade do que o céu de Van Gogh. A glória da ciência não está baseada em uma verdade mais absoluta do que a verdade de Bach ou Tolstói, mas sim no próprio ato da criação.”

“Com seus descobrimentos o homem de ciência impõe ordem ao caos , as-sim como o compositor e o pintor, uma ordem que sempre se refere a as-pectos limitados da realidade e se baseia no marco das referências do ob-servador, marco que difere de um período a outro, assim como um nu de Rembrandt difere de um nu de Manet.”8

O objetivo fundamental deste trabalho não é uma análise da con-tribuição de Einstein à Física. É, antes, uma análise da contribuição filosófica que está presente na sua física, nas suas afirmações e na ciên-cia produzida nesta primeira parte do século XX. Sob suas idéias palpi-tam e agitam-se uma idéia filosófica do mundo e pressupostos episte-mológicos que orientaram sua atividade de cientista.

O roteiro para análise do pensador Albert Einstein será percorrido com auxílio, em primeiro lugar, de Gerald Holton, John Losee, Har-wey Brown, Leônidas Hegenberg, Pierre Thuiller, Karl Popper e Má-rio Schemberg. Em particular, no livro de Gerald Holton A imaginação cien-tífica encontra-se uma carta que talvez seja a melhor apresentação das idéias de Einstein sobre a maneira de como age o raciocínio hu-mano. Esta carta (será o documento preferencial) foi escrita a seu ami-go Maurice Salovine, em 7 de maio de 1952. Nela estão algumas de suas idéias mais importantes, aqui reproduzidas e ampliadas com a finalidade de analisar sua contribuição no campo da ciência. Nosso ponto de partida é o esquema e as explicações resumidas, idealizadas pelo próprio Einstein, onde em três planos é sugerida a interpretação da experiência, dos enunciados e dos axiomas. Agora o desenho do próprio cientista:9

7 Citado por LESHAN, L., MARGENEAU, H. El espacio de Eisntein y el cielo de Van Gogh.

Barcelona: Gedisa, 1991, p. 18. 8 Idem , p. 19. 9 Tradução livre do texto contido na parte inferior do desenho feito pelo próprio Einstein

em carta a Maurice Salovine: (1) As E (experiências) nos são dadas [representadas pela linha horizontal]. (2) A são axiomas a partir dos quais deduzimos as conseqüências. Psicologicamente,

A baseia-se em E, mas não existe nenhum código de E para A e assim apenas uma co-nexão intuitiva (psicológica) que está sempre sujeita à renovação (negação).

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Trecho original da carta escrita por Albert Einstein, acompanhado de algumas explicações, ao seu amigo Maurice Salovine

em 7 de maio de 1952, extraído do livro de Geral Holton, Ensayos científicos en la época de Einstein

(Madri: Alianza Editorial, 1992).

1 – Experiência, estranheza e nascimento das teorias

Nosso estudo inicia com “Notas Autobiográficas” – onde já é pos-sível perceber a evolução de suas idéias –, histórico pessoal que servi-rá de base para sua criatividade científica.

(3) A partir de A, pelo caminho lógico, são deduzidas as afirmações particulares S,

cujas deduções podem pretender ser corretas. (4) Os S têm referências (ou estão relacionados) com E (teste contra a experiência). Esse

procedimento, para ser exato, também pertence à esfera extralógica (intuitiva), porque as relações entre os conceitos que aparecem em S,e as experiências E não são de natu-reza lógica. Essas relações de S com E, porém, são (pragmaticamente) muito menos in-certas do que as relações de A com E.

(5) A quinta-essência é a conexão extremamente problemática entre o mundo das idéias e o da experiência.

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Filosofia, Lógica e Existência / 423

As experiências nos são dadas...

Em primeiro lugar, a constatação da recepção por parte dos senti-dos: “as experiências nos são dadas”. Essa é uma condição do ser na-tureza que todos nós somos. O calor, a terra, a luz, o som aproximam-se de nós, da mesma maneira que se aproximam do nosso intelecto, dos seres da natureza. O homem dá uma resposta à natureza. Animais e vegetais reagem naturalmente. Entretanto, o homem pode reagir mais ou menos racionalmente, interpretando, criando, questionando, domesticando a natureza a seu serviço, acomodando-se. (Diria que , ao receber a natureza, o homem filtra a informação.)

A estranheza

Em segundo lugar, a reação estranheza. A nossa ação diante da na-tureza pode produzir em nós a “sensação de admiração, de curiosida-de, de espanto”, um certo sentimento de estranheza diante dos fenô-menos10 que geram perguntas, pois “quem não pode mais se surpreen-der, se maravilhar, é como se estivesse morto”.11 Einstein dirá que sentiu esta sensação de espanto, esta estranheza, pela primeira vez, quando o pai mostrou-lhe uma bússola. Devia haver algo escondido nas profundezas das coisas, como neste pequeno aparelho, que não era compreendido e que poderia gerar novas idéias. Aos 12 anos, pela segunda vez, a estranheza12 está emergindo, desta vez diante do livro de Geometria Plana de Euclides. A sensação de espanto, agora, era em relação à maneira como os gregos resolviam seus problemas. Racio-nalmente, sem uso da experiência. Esta descoberta o impressionou muitíssimo, embora nessa oportunidade parecesse que deveria existir algo de errado nessa proposta. “Se, aparentemente, é possível chegar-se a um conhecimento dos objetos de experiência por meio do pensa-mento puro, deve haver algum erro [...]. Contudo, parece maravilhoso que o homem possa atingir tal grau de certeza.” O erro, dentro de uma concepção operacionalista, estaria no método experimental, que vê na realidade objetiva a única norma de verdade, assim como de-fendia Ayer. Mas, sem dúvida, entre os gregos os objetos “tocados e sentidos” eram tratados por um pensamento puro, inconsciente. As teorias eram tratadas e aceitas sem exigir prova. Esta certeza lúcida impressionou-o profundamente. A partir desse ponto de partida será erguida sua concepção epistemológica. 10 BERENSTEIN, Jeremy. As idéias de Einstein. São Paulo: Cultrix, 1975, p. 23. 11 HOLTON, Geremy. The phisic’s teacher. What precisally is thinking Einstein’s answer; the

phisic’s teacher. Março 1979. 12 BERENSTEIN, op. cit., p. 25.

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/ Descobrimentos e invenções 424

“Estou convencido de que podemos descobrir, por meio de constru-ções puramente matemáticas, os conceitos e as leis que os relacionam uns com os outros, que dão as chaves para a compreensão dos fenômenos na-turais. A experiência pode sugerir conceitos matemáticos apropriados , mas dela não podem, seguramente, ser deduzidos. A experiência é e, cer-tamente, permanece como único critério para julgar a utilidade física de uma construção matemática, mas o princípio criador reside na matemáti-ca. Portanto, em certo sentido, mantenho como verdadeira a proposição de que o pensamento puro pode apreender a realidade, tal como foi so-nho dos antigos.”13

Mais tarde afirmou: “Uma teoria deve ser testada pela experiência, mas não é possível construir uma teoria partindo da experiência.”14

Então, o que Einstein entendia por pensamento? Após tomarmos contato sensorial e darmo-nos conta dos fenôme-

nos através de um certo sentimento de estranheza e de espanto, o que poderíamos definir como sendo a idéia de Einstein sobre o pensar? Provavelmente o descobrimento da teoria da relatividade exerceu muita influência na formulação de suas idéias a respeito da gênese do conhecimento científico da Física.

O pensamento

“Quando na recepção de impressões dos sentidos emergem qua-dros da memória, isso ainda não é pensamento, não é pensar. E quan-do tais quadros formam séries, cada parte dando idéias para outros, isso também ainda não é pensar. Quando, entretanto, um quadro par-ticular volta em muitas séries, então precisamente tornando-se um elemento ordenador, no qual as séries se interligam, sem o qual as mesmas não teriam conexão, tal elemento torna-se um instrumento, um conceito.”15

A descoberta do conceito e de suas relações conflituosas seria a o-rigem do pensar. Daí passaríamos a proposições, porque por meio “de tais conceitos e relações mentais entre eles somos capazes de nos auto-orientar no labirinto das impressões dos sentidos”.16

Na cabeça de Einstein foi se formando a idéia de que “o papel que joga a experiência na construção das teorias físicas não leva a cabo, depois de tudo, através do átomo da experiência, nem através da sen-

13 Idem , op. cit., p. 107. 14 Idem , op. cit., p. 109. 15 Idem , op. cit. p. 143 16 HOLTON. op. cit.

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sação individual ou frase que a registre [...] a recopilação ou síntese criativa, a totalidade da experiência física.”17

A maturação

Há necessidade de evitarmos o que Einstein chama de “pecado o-riginal metafísico”, que seria a confusão entre as idéias e as impressões dos sentidos. O caráter extralógico dos enunciados defendidos por Einstein representa um atestado de que ele estava convicto da ilusão dos sentidos. Os sentidos não são confiáveis, porque podem nos con-duzir a enganos. Basta analisarmos certas afirmações em estado de tensão, certas ilusões óticas, ou mesmo nos questionarmos sobre a base do conhecimento unicamente sensorial sem um conhecimento teórico sobre Física Quântica, por exemplo.

Os relacionamentos entre enunciados e sensações não são de cará-ter lógico (percepção = verdade), mas intuitivo, como a relação entre experiência e teoria. Da experiência para os enunciados, ou para o axioma, Einstein defende a intuição, eliminando a possibilidade indu-tiva. São conceitos universais aplicados à realidade, mas não brotam da realidade. Os enunciados são abstrações, mas não abstrações indu-tivas.

“Os próprios conceitos em nossos pensamentos e expressões verbais são, quando considerados logicamente, a criação livre do pensamento que não pode indutivamente ser obtido da experiência dos sentidos.” 18

Resultados, porém, não são imediatos.

“Esta busca pode levar anos de apalpadelas no escuro, mas é neces-sário que qualquer pesquisador sério possua a habilidade de persistir num problema durante muito tempo, e não se abalar por repetidos fra-cassos [...]. Agora sei por que há tantas pessoas que adoram cortar lenha. Nessa atividade pode-se ver os resultados imediatamente.”19

Já na fase de afastamento de algumas características positivistas, Einstein afirmaria, em alusão aos enigmas da ciência, que “[...] a expe-riência dos sentidos e o conceito não têm relação de semelhança com sopa e bife, mas antes com o número do cheque com o casacão.”20

17 HOLTON. Ensaios sobre el pensamiento científico en la época de Einstein. Madrid: alianza

universidad, 1982, p. 180 18 HOLTON, op. cit , p. 161 19 Idem , p. 162 20 Idem , p. 161.

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Nascimento das teorias

Esboço original encontrado na carta escrita por Albert Einstein ao seu amigo Maurice Salovine em 7 de maio de 1952.

(HOLTON, Geral. Ensayos científicos en la época de Einstein. Madri: Alianza Editorial, 1992).

Até Newton, as hipóteses, leis e teorias deviam brotar logicamen-te dos sentidos. Durante muitos séculos, a mecânica de Newton expli-cou objetivamente o mundo. Einstein propõe caminhos mais ousados: uma explicação subjetiva – o uso da imaginação para (re)criar novas teorias. Parecia impossível destruir o mito newtoniano que descrevia a realidade objetivamente e com exatidão (matéria atrai matéria na ra-zão direta das massas e na razão inversa dos quadrados das distân-cias). A teoria da relatividade questiona essa idéia...

As teorias ou as hipóteses surgidas como tentativa de explicar o mundo e os conceitos descobertos surgem da discordância com a or-ganização existente. Estamos, neste instante, diante de um momento novo do fluxo criativo de Einstein: o nascimento das teorias que não brotam necessariamente da experiência, têm relação direta (assim pen-sava inicialmente Einstein) com a lógica e podem ser invenções livres do intelecto humano. Observe o desenho de Einstein, acima. Há um salto que não parte das experiências, mas de um campo vazio rumo às teorias. É isso mesmo. Teorias não nascem necessariamente da expe-riência. Analisemos agora a evolução epistemológica de Einstein. Pri-meira etapa, descobrimentos; segunda etapa, invenções.

2 – Descobrimentos

Da experiência às teorias há um salto canalizado pelo jogo mental lógico, possibilitando dedução de afirmações particulares: as idéias do jovem Einstein.

“Investigar a relação que existe entre conceitos e proposições é a ativida-de do pensamento lógico, o qual é executado com base nas regras lógicas

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firmemente depositadas. As regras de lógica, bem como os próprios con-ceitos, não são dados por um Deus, mas são criações do homem.”21

“[...] compreensibilidade [...] subentende a produção de algum tipo de or-dem entre as impressões dos sentidos; esta ordem é produzida pela cria-ção de conceitos gerais, pelas relações entre estes conceitos e por algum tipo de relação entre os conceitos e a experiência sensorial. É neste senti-do que o mundo das nossas experiências sensoriais é compreensível. O fato de que isso é compreensível é uma maravilha.”22

Diretamente ligado ao nascimento das teorias, analisemos agora as duas etapas do seu pensamento epistemológico: os descobrimentos (que caracterizam a fase em que seu conhecimento estava sustentado na lógica) e as invenções (em que o núcleo do seu pensamento está ligado às invenções livres do conhecimento humano). Na primeira fase de Einstein, há a crença de que os axiomas são orientados logicamente por idéias que inconscientemente estão adormecidas no pesquisador. É a fase do Einstein discípulo de Mach. Já na segunda fase há a liber-tação do inconsciente. Os axiomas são invenções livres, não dependem e não se prendem a fato algum. Há apenas uma ligação lógica, harmo-niosa, determinista entre a idéia e o fato, que é a parte indispensável na concepção do universo. O determinismo físico muitas vezes não é com-preendido, porque não o percebemos. Determinado por suas crenças, Einstein poderia ter conseguido uma sólida formação mate-mática, porém “trabalhou no laboratório de física durante a maior parte do tempo fascinado pelo contato direto com a experiência.”23 “[...] queria proceder de forma totalmente empírica, de acordo com a orientação científica que mantinha naquele momento [...]. Como cien-tista natural era um empirista puro.”24

Na opinião de Popper, Einstein “era positivista e continuaria a ser durante muito tempo”, porque sua teoria principal tem muitos aspec-tos nitidamente objetivos e ligados à busca da experimentação confir-madora das suas teorias.

“[...] sua debilidade estava na crença de que a ciência mais ou menos con-sistiria em uma mera ordenação de material empírico; quer dizer, não re-conhecia o elemento de construção livre que existe na formação dos conceitos. De certa forma acreditava que as teorias surgem de descobrimentos e não de invenções. Inclusive chegou a considerar as sensações não somen-te como material que tem de ser investigado senão como blocos constituí-

21 Idem , p. 160. 22 Idem , p. 163. 23 Citação extraída das notas autobiográficas de Einstein (HOLTON, Geral, op. cit., 1982,

p. 167). 24 RASER, Antonio, apud HOLTON, Geral, op. cit., 1982, p. 167.

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dos, do mundo real, portanto, segundo acreditava , poderia superar a di-ferença entre psicologia e física.”25

As mais importantes descobertas no campo das concepções cientí-ficas foram feitas unicamente por via lógica, como, por exemplo, a teoria dos “quanta”, de Max Planck, sem a qual não teríamos conse-guido entender a estrutura do átomo. Baseado nesta constatação, E-instein defende a lógica e o determinismo na natureza. Essa sua atitu-de irá até 1933, aproximadamente, quando afirma que os axiomas são invenções livres do intelecto humano.

“Deus não joga dados.” Nessa máxima, repetida tantas vezes, es-tava resumido seu pensamento determinista, estava a afirmação de sua fé rigorosa na causalidade dos fatos, sua indignação contra a esta-tística assim como vinham se manifestando Bohr, Eisenberg, Pauli e outros. A probabilidade, que daria margem para defesa do acaso, do indeterminismo na ciência, não podia ser a última palavra do saber. Para Einstein, a lógica continuava sendo um instrumento “indispensá-vel e efetivo de pesquisa [...]. É por meio de tais conceitos [lógicos] e relações mentais entre eles que somos capazes de nos auto-orientar no labirinto das impressões dos sentidos”.26

2.1 – Determinismo

Na casa de Oppenheim aconteceram três encontros com Einstein. Embora o próprio Popper relutasse em tirar o tempo de Einstein, ele o procurava para longos debates, e o principal tópico da conversa foi sempre o indeterminismo. Dizia Popper:

“Tentei persuadi-lo a abandonar o seu determinismo, que o levava a conceber o mundo como um universo compacto, parmenidiano, de qua-tro dimensões, onde a mudança não passava de uma ilusão humana, ou quase isso [...]. Procurei ainda apresentar do Einstein-Parmênides , tão vi-gorosamente quanto possível, minha convicção de que se deveria tomar clara posição contra qualquer concepção idealista do tempo [...]. Impor-tava tomar decisão a favor de um universo aberto – universo em que o fu-turo de maneira alguma estivesse contido no presente ou no passado, enquanto estes lhes impunham sérias restrições. Argumentei que não de-vemos ser governados por nossas teorias até o ponto de facilmente aban-donar o senso comum. Einstein não queria abandonar o realismo [...]. Re-correndo à maneira que tinha Einstein de expressar-se em termos teológi-

25 Carta de Einstein a Besso, 8 de outubro de 1948, apud HOLTON, Geral, op. cit., 1982,

p. 183. 26 THUILLER, Pierre. De Arquimedes a Eisntein. A face oculta da invenção científica. São Pau-

lo: Zahar, 1994, p. 231.

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cos, eu disse: se Deus tivesse querido colocar todas as coisas no mundo desde o começo, Ele teria criado um universo sem mudança, sem orga-nismos nem evolução, sem o homem e sem a experiência que o homem tem da mudança. Aparentemente, entretanto, Ele achou que um universo vivo com acontecimentos inesperados até para Ele próprio seria mais in-teressante que um universo morto.”27

Acredito que Popper tenha influenciado muito pouco, pois o pen-samento de Einstein tinha pontos definidos e fundamentados na sua religião cósmica.

3 – Invenções

Examinemos as idéias de Einstein na sua fase final: do experimen-tável às teorias – invenções livres do intelecto humano.

Nesta segunda fase do pensamento einsteiniano , continua presente a idéia de que os conceitos não derivam diretamente da experiência, e que igualmente não existe nenhum código que possibilite a passagem da experiência para os axiomas. Einstein, em seu estudo sobre indução na Física, afirma:

“Sabemos agora que a ciência não pode se desenvolver apenas a partir do empirismo da construção da ciência. Precisamos da invenção livre, que só a posteriori pode ser confrontada com a experiência para se conhe-cer sua utilidade. Este fato pode ter escapado às gerações anteriores, para as quais a criação teórica parecia desenvolver-se indutivamente a partir do empirismo, sem a criativa influência de uma livre criação de concei-tos. Quanto mais primitivo for o estado da ciência, mais rapidamente po-de o cientista viver na ilusão de que é um empirista puro. No século XIX , muitos ainda julgavam que a regra fundamental de Newton , ‘hypotheses non fingo’ – devia constituir a base de toda ciência natural saudável.28

27 POPPER, Karl. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultix , 1997, p. 137-138. 28 Apud PAIS, Abraham. Sutil é o Senhor... A ciência e a vida de Albert Einstein. Rio de Janei-

ro: Nova Fronteira , 1995, p. 14 (ao comentar e concordar com o pensamento de Einste-in).

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Psicologicamente somos levados a pensar que os axiomas e os teo-remas baseiam-se nas experiências (talvez pelo fato de que elas é que atingem os nossos sentidos). Mas, na realidade, “não existe nenhum caminho lógico que conduza a experiência até o axioma, e sim uma conexão intuitiva [psicológica] que está sempre sujeita à negação”. Embora nossos sentidos captem a realidade, esta captação da sensação que nos chega não nos autoriza a fazermos generalizações. Indutiva-mente o fazemos, mas nada nos garante a validade deste raciocínio, porque do visto não posso concluir sobre o não-visto. A intuição de-sempenharia junto à experiência, não uma ligação indutiva com o ge-ral, mas uma conexão em nível de imaginação, “aparentemente” sem preocupações lógicas e, às vezes, inconscientes.

“[...] este salto é logicamente descontínuo, mas não pode ser totalmente livre. Na verdade, o salto é canalizado e guiado por uma forma em gran-de parte inconsciente, por uma poderosa racionalidade convencional semântica e quantitativa.”29

Mesmo admitindo que a experiência apresentada aos sentidos evo-luiria para o nível dos conceitos, dos axiomas e das teorias, mas de forma intuída, Einstein defende a dificuldade da passagem dos singulares para leis universais. Considera compreensível um salto inconsciente para os axiomas, se entendermos que o conhecimento pode ser fruto de arrojadas hipóteses que muitas vezes pouca relação têm com a realidade percebida pelos sentidos.

“Temos deixado de reparar, provavelmente, no irracional, no inconsistente, no grotesco, no insano, que a natureza, artífice inesgotável, implanta no indivíduo, quem sabe para se divertir. Estas coisas, porém, são selecionadas apenas no cadinho da nossa própria mente.”30

Os cientistas, historiadores ou físicos, para elaborar suas teorias não registram passivamente seus dados sensoriais e sim “constroem uma moldura teórica”31 com auxílio de princípios e conceitos por eles mesmos escolhidos. Não diria que livremente escolhidos, como queria Einstein, mas livremente coagidos por circunstâncias sociais, culturais, por um trabalho humano socialmente condicionado, nascido de suas expe-riências. Neste caso a gênese das teorias científicas “não depende apenas da lógica”, mas também da psicologia, da sociologia, da antropologia cultural.

29 HOLTON, Gerald. Op. cit., 1979, p. 161. 30 Escrito de Albert Einstein (aos 50 anos) em uma introdução da sua biografia feita pelo

próprio genro (apud PAIS, Abraham. Op. cit., p. 4. 31 THUILLER, Pierre. Op. cit., 1994, p. 229.

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3.1 – Intuição

As experiências não são de natureza lógica. Assim como o deter-minismo, sua religião cósmica, a intuição ocupa igualmente lugar im-portante no pensamento de Einstein.

Seus pensamentos (axiomas, teorias) são formulados ousadamente. Exemplo disso acontece quando anuncia pela primeira vez seus dois postulados básicos da relatividade, “declarando” bruscamente que eram “intuições, que havia resolvido elevar à condição de postulados sem mesmo se dar ao trabalho de relacioná-los de forma plausível com o material experimental”.32

Na realidade, o seu subjetivismo tem raízes muito profundas e, muitas vezes, paradoxais, onde a intuição e a imaginação têm papel importante na criação de axiomas. Exemplos significativos nas teorias atuais no campo da Astronomia, na Física Nuclear, na Química, na Geologia têm comprovado o valor de sua ousadia. Schemberg,33 respondendo à pergunta “O que é um grande físico?”, dirá que não é o sujeito que sabe mais física que o outro, mas o que tem mais imagina-ção. É muito freqüente um cientista apresentar uma teoria que lhe parece importante e interessante e ter de esperar trinta, quarenta anos para vê-la reconhecida e aplicada. Vejam o caso do raio “laser”, por exemplo. Dezenas de anos atrás, creio que em 1917, Einstein, com base em cálculos puramente teóricos, falou sobre a emissão estimulada da luz. Pois bem: só cerca de 50 anos depois é que o raio “laser” se tornou uma realidade empírica.

A física teórica, continua Schemberg, é uma coisa muito estranha, porque às vezes a gente imagina e desenvolve um certo esquema ma-temático e não pode sequer interpretar muito bem o que aquilo repre-senta experimentalmente. Isso acontece com muita freqüência na his-tória da ciência. Maxwell, por exemplo, quando formulou a teoria prevendo a existência das ondas eletromagnéticas, não dispunha de nenhum elemento experimental que lhe permitisse comprová-la. Só mais ou menos 20 anos depois é que Hertz fez experiências e provou que existiam as ondas eletromagnéticas que , aliás, ficaram conhecidas, por isso mesmo, como ondas hertzianas. Mas, na verdade, o desco-bridor das ondas hertzianas foi Maxwell, pois foi quem previu que elas deveriam existir, com base em considerações teóricas. Freqüen-temente, o pensamento teórico está muitos anos à frente do pensa-mento experimental.

32 HOLTON, Gerald. Op. cit., 1979, p. 64. 33 SCHEMBERG, Mário. Albert Einstein: o homem . Estado de São Paulo, São Paulo, 11

mar. 1979, p. 62.

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Um relatório de Max Janner, “documento histórico da Academia de Ciências de Berlin sobre a atividade científica de Albert Einstein, 1913”, nos relata a perplexidade dos colegas cientistas diante da teoria do fóton elaborada em 1905 e que daria a Einstein o Prêmio Nobel, em 1921. A rejeição da teoria do fóton está incluída na petição pela qual se recomendava o ingresso de Einstein na Academia Prussiana de Ciências, e era assinada por Max Planck e Walter Nernst. Era uma petição repleta de elogios e pedia que fosse esquecido este “cochilo”. Este texto dizia que ele (Einstein) por vezes “deve ter ido longe de-mais em suas especulações, em suas intuições, como no caso da hipóte-se dos quanta de luz [...]. De fato, ninguém pode introduzir, mesmo na mais exata das ciências naturais, idéias que sejam realmente novas sem, eventualmente, aceitar um risco”.

Por meio de certos cálculos e raciocínios podemos chegar à conclu-são de que deve existir uma certa coisa que , no fundo, não sabemos direito o que é, embora tenhamos razão para crer que os cálculos es-tão bem-fundamentados e que, portanto, suas conseqüências devem estar igualmente bem fundamentadas.

Compreendeu Poincaré, por isso, que há um processo inconsciente de extrema importância, no qual, evidentemente, ninguém sabe o que se passa, pois do contrário seria consciente. Essa fase inconsciente é a decisiva, pois é nela que o problema é resolvido. Muitos psicólogos procuraram tomar esse esquema de quatro etapas como uma base ge-ral para todo o processo de criação, não apenas para o processo de criação matemática.

Poincaré foi realmente um homem genial, e um dos fundadores da teoria da relatividade. Suas contribuições para essa teoria não foram apreciadas em sua época, mas adquiriram muito valor agora, 40 anos depois, quando se descobre toda a importância do chamado “Grupo de Poincaré”.

Para completar, o mesmo Schemberg traria à tona o exemplo de que foi o primeiro a formular uma teoria sobre a criação matemática, basea-da em sua experiência pessoal. Conta que quando jovem come-çou a pensar num tipo de função, que viria a descobrir mais tarde e que o tornou famoso – as funções fucsianas –, mas não conseguiu ne-nhum resultado imediato. Durante vários anos, não pensou mais no assunto. Um dia, no momento em que ia subir num ônibus, passou pela sua cabeça a solução do problema. Percebeu que a criação científi-ca deveria estar em grande parte ligada a um processo inconsciente. Formulou então a sua teoria da criação científica que, segundo ele, se desenvolve em quatro etapas.

Na primeira, pensa-se numa determinada coisa; em seguida, es-quece-se daquilo durante algum tempo, às vezes anos; numa terceira etapa, “aparece” na cabeça a solução, ou seja, há uma fase de pensa-

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mento consciente, uma de elaboração inconsciente e uma terceira em que a solução aparece de repente. Só na fase final – quarta etapa do processo – é que há uma elaboração racional, depois que a solução já está descoberta. Esse último momento é aquele em que se deve tornar rigoroso o raciocínio; é aí que, freqüentemente, o matemático fracassa, quer dizer, ele vê o teorema, descobre tudo e não é capaz de demons-trá-lo. Muitas vezes é só numa próxima geração que a demonstração será feita. A respeito da intuição, Popper34 tem um posicionamento que diverge completamente de Einstein, de Schemberg e dos próprios exemplos que a história nos revela:

“Como já disse em muitas de minhas preleções , coisas como a intuição ou a sensação de que algo é evidente por si mesmo talvez possam ser ex-plicadas pela verdade ou legitimidade, mas não reciprocamente. Ne-nhum enunciado é verdadeiro e nenhuma inferência é legítima porque sentimos (não importa com que convicção) que assim seja [...] isto se deve em grande parte, ao fato de que existem em nós certas disposições inatas para o exame crítico das coisas. Contudo, as ilusões de ótica, para tomar um exemplo comparativamente simples, atestam que não podemos con-fiar demasiadamente na intuição, mesmo quando ela se aproxima de uma espécie de compulsão.”35

A experiência apresentada aos sentidos evoluiria para o nível de conceitos, axiomas e teorias intuídos. Einstein defende a dificuldade da passagem de singulares para universais, mas considera compreen-sível um salto inconsciente para os axiomas, se entendermos o conhe-cimento como fruto de arrojadas hipóteses que muitas vezes muito pouca relação têm com a realidade percebida pelos sentidos.

Conclusão

A produção do conhecimento é a estruturação de uma conexão ex-tremamente problemática entre o mundo das idéias e o da experiên-cia.

“[...] o essencial no ser de um homem está precisamente no que ele pensa e como ele pensa, não no que ele faz ou sofre [...]. O propósito de pensar é mais do que meramente resolver problemas e quebra-cabeças.”36

No final deste trabalho , cabe um resumo sobre a teoria da ciência que norteou a trajetória científica de um dos maiores pensadores do século XX. Inicialmente é preciso acreditar que as experiências chegam

34 POPPER, Karl. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix , 1977, p. 53. 35 POPPER, Karl. Autobiografia intelectual. São Paulo. Cultrix , 1977, p. 53. 36 SCHILPP, apud HOLTON, Gerald. Op. cit., 1979, p. 33.

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até nós, homens capazes de recebê-las e de transformá-las. Da repeti-ção sensorial emergirão figuras, idéias que também se repetirão; quando conseguir criar imagens conceituais está nascendo o pensa-mento. Mas o homem não deve parar aí. Há de seguir até sentir-se estranho diante destas imagens. Será esta sensação de estranheza que o levará a teorias explicativas, a intuir, a procurar além das experiên-cias. O universo tem lógica, é sustentado por uma harmonia subjacente de Deus; esta será a crença primeira que orientará a pesquisa. Depois é necessário pensar que a teoria há de ser inventada com a intuição.

De acordo com a concepção renascentista, uma teoria nasce da ob-servação, e atinge o estágio de leis através de um processo indutivo. Ao constatar certa regularidade, o pesquisador ousa saltar os dados particulares para concepções gerais. A lei, mediante repetições, é con-firmada, pretendendo desta maneira explicar o desconhecido através do conhecido. Se houvessem desacordos, as leis seriam ajustadas, a fim de poderem fugir à refutação e posteriormente adquirir uma pos-tura dogmática.

Einstein contribuiu de forma decisiva para modificar este panora-ma. Sua teoria de relatividade mostrou que é possível ignorar a lin-guagem dos sentidos como geradora de novos conhecimentos, através de um processo indutivo. Com ele, a Física abandonou seu caráter experimental e ganhou a importância da dedução de fenômenos, a partir de princípios.

“A peregrinação do filósofo Einstein vai desde a filosofia da ciência, em que o sensacionalismo e o empirismo ocupavam uma posição central, até outra posição fundamentada no realismo racional.”37

“Ele representou uma transição: aperfeiçoou o passado e alterou a corrente dos acontecimentos. Ao mesmo tempo, é um pioneiro: Planck, em primeiro lugar, depois ele e a seguir Bohr construíram uma nova físi-ca sem precursores – a teoria quântica.”38

A importância das idéias de Einstein sobre a investigação científica decorre da sua comprovada capacidade científica. Ele foi um dos que acreditaram na racionalidade, na imaginação científica, na ousadia do cientista procurando princípios gerais para testar a realidade. Einstein é o elo intermediário entre o neopositivismo operacionalista e uma atitude ousada, unificadora que caracteriza a segunda metade do sé-culo XX. No entanto, se de um lado a teoria da relatividade coloca Einstein à frente de seu tempo , o seu determinismo religioso e o uso de métodos operacionalistas, por outro, o coloca no determinismo

37 HOLTON, Gerald. El pensamiento cientifico en la epoca de Einstein. Madrid: Alianza

Universidad, 1982, p. 164. 38 PAIS, Abraham, op. cit., 1995, p. 16.

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experimental da Escola de Viena do passado. Temos, então, presentes no seu pensamento duas escolas teoricamente antagônicas, mas esse é um atestado de sua evolução teórica.

“A ciência, considerada como um conjunto pronto e acabado de co-nhecimentos , é a mais impessoal das produções humanas; mas, considerada como um projeto que se realiza progressivamente, ela é tão subjetiva e psicologicamente condicionada como qualquer empreendimento humano.”39

Einstein tem no cerne de suas afirmações uma postura científica que influenciou a mentalidade científica do século XX e que neste final de século dá origem ao indeterminismo que ele jamais admitiu. 40

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Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. 39 THUILLER, Pierre. De Arquimedes a Einstein. A face oculta da invenção científica. São Pau-

lo: Zahar, 1994, p. 227. 40 Sobre a passagem da ciência determinista para o indeterminismo confira o texto escrito

para o livro Teoria da ciência: diálogo com os cientistas, publicado pela EDUCS , 1996, intitu-lado Na entrada do terceiro milênio, em meio à uma cultura pós-moderna (e neoliberal), o para-digma determinista dá lugar ao indeterminismo: reflexões interligadas. Aí será possível cons-tatar o debate teórico entre Einstein e Bohr, mas principalmente a extrema dificuldade de Einstein em aceitar o indeterminismo.

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/ Descobrimentos e invenções 436

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URSULA ROSA DA SILVA

Universidade Federal de Pelotas

A filosofia da arte em Jean-Paul Sartre

Um dos questionamentos que vem à tona, com a chegada da arte moderna, trata do conjunto que compõe a obra (tela, tintas, cores, formas, conteúdo,...), como algo que deixa de representar o real. As-sim, os Impressionistas abandonam a representação através de con-tornos certos para registrar o instante que passa e a imprecisão dos limites entre os objetos por meio da luz e de “borrões”. O surgimento da fotografia desafia a arte e põe em pauta a imitação do real. O Im-pressionismo revela a noção de realidade do quadro enquanto objeto. Para Manet, as pinceladas e as camadas de tinta, mais que as coisas que representam, são a primeira realidade do artista. Manet insiste no fato de que uma tela pintada é, acima de tudo, uma superfície recober-ta de pigmentos, por isso, devemos olhar para ela e não através dela. Em Sartre, já são possíveis os dois olhares: vemos o real olhando a tela como objeto e, o irreal, através dela, pelo imaginário.

Muitos filósofos contribuíram para a mudança na concepção de ar-te e representação artística contemporaneamente. Entre estes, Hei-degger, Merleau-Ponty e Sartre. Heidegger analisa a obra como es-sência da relação entre o artista e a arte, passando a obra de mero objeto ou ferramenta para a possibilidade de verdadeira expressão do ser no mundo. Merleau-Ponty, através da noção de corporeidade, transforma a relação do artista com o mundo, com a obra e com o público. Na obra de Jean-Paul Sartre, o irreal aparece como caracterís-tica própria do tipo existencial da obra de arte.

Para chegarmos até a análise da obra de arte como irreal, passa-mos pela abordagem que Sartre faz da Imagem como real e irreal, em relação à atividade de percepção e ao pensamento,1 e do Belo relacio-nado com o comportamento imaginário.2 1 Cf. Sartre: A imaginação (In: Textos selecionados. São Paulo: Abril Cultural, 1984) e

L’imaginaire (Paris: Gallimard , 1986). 2 Conforme palestra que Sartre proferiu no Brasil em 1960 (ver: Conferência , In: Discurso,

n. 16, Revista do Departaamento de Filosofia da FFLCH da USP, São Paulo: Polis , 1987) e L’imaginaire.

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Imagem, percepção e pensamento

Em suas obras A imaginação e L’imaginaire, Sartre pretende fazer uma descrição da função “irrealizante” da consciência, enquanto ima-ginação, e de seu correlativo noemático , o imaginário, enquanto con-teú-do desta consciência. Para tanto, inspira-se em Husserl, pois, atra-vés da fenomenologia, pode criticar as concepções de imagem e de estado de consciência com que trabalham a Psicologia tradicional e a própria Filosofia a partir de Descartes.

Segundo Sartre, todos construíram a teoria da imagem a priori, por isso fizeram confusão entre a identidade de essência (que diferencia entre dois planos de existência para o objeto: real e imagem) e a iden-tidade de existência dos objetos (imagem e objeto num mesmo plano de existência). Descartes, Leibniz e Hume, que têm uma mesma con-cepção de imagem, discordando apenas quando tratam da relação imagem-pensamento, deixaram para a psicologia positiva seu legado imagético.

Sartre justifica, então, a importância da fenomenologia para uma nova abordagem da consciência e também, como conseqüência, da noção de imagem:

“A própria concepção de intencionalidade está destinada a renovar a noção de imagem. Sabe-se que, para Husserl, todo estado de consciência ou antes [...] toda consciência é consciência de alguma coisa. [...] Na medi-da em que elas são consciência de alguma coisa, dizemos que se relacio-nam ‘intencionalmente’ a essa coisa.

A intencionalidade, tal é a estrutura essencial de toda consciência. Segue-se naturalmente uma distinção radical entre a consciência e aquilo de que se tem consciência. O objeto da consciência, qualquer que seja (salvo no caso da consciência reflexiva) está por princípio fora da consciência: é transcendente [...]. Sem dúvida, há conteúdos de consciência, mas estes conteúdos não são o objeto da consciência: através deles a intencionali-dade visa ao objeto que, este sim, é o correlativo da consciência, mas não é da consciência.”3

Sartre vai analisar a estrutura intencional da imagem, fazendo uma fenomenologia da imagem. Para determinar as características próprias da imagem como imagem, é necessário recorrer a um segundo ato da consciência, o ato reflexivo, porque o primeiro, a descrição, só pode ser feita dos objetos da consciência, ou seja, os objetos que nos apare-cem em imagem podemos descrevê-los, mas não podemos descrever a imagem como tal. Assim, a imagem como imagem não é descritível, a não ser por um ato segundo que permita à consciência afastar-se do 3 Vide A imaginação (In: Textos selecionados. São Paulo: Abril Cultural, 1984) e L’imaginaire

(Paris: Gallimard , 1986, p. 99).

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objeto para dirigir-se à maneira na qual este objeto é dado. O ato de reflexão tem um conteúdo que Sartre chama de essência da imagem, a qual é a mesma para todos. Os passos que segue o método desta fe-nomenologia da imagem, então, trata de produzir imagem, refletir sobre estas imagens, descrevê-las, ou seja, tentar determinar e classifi-car suas características distintivas.

Segundo Sartre, perceber, conceber e imaginar são três tipos de consciência pelos quais um mesmo objeto pode nos ser dado. Na per-cepção, eu observo o objeto, por exemplo um cubo, e, sendo que me é dado um lado seu de cada vez, não posso, portanto, observá-lo de uma só vez em sua totalidade – todos os lados ao mesmo tempo.4 A característica da percepção é que o objeto só se manifesta numa série de perfis. Entretanto, quando eu penso em um objeto, penso através de um conceito, ou seja, ele me vem de uma só vez, inteiro, como uma totalidade e não em partes. Pode-se pensar as essências (o que perma-nece do objeto na consciência) num só ato da consciência. Pensamento e percepção são, portanto, completamente diferentes. A percepção é aprendizagem, pois é uma unidade sintética de uma multiplicidade de aparências que lentamente vai aprendendo sobre seu objeto. O pen-samento é saber, um saber consciente de si mesmo, que se coloca de uma só vez no centro do objeto.

E a imagem? É saber ou aprendizagem?, pergunta-se Sartre. A imagem aproxima-se da percepção. Tanto numa como na outra o objeto se dá em perfis. Só que, na imagem, nós não precisamos mais contornar o objeto para ver suas outras faces (como o cubo no ato de percepção): o objeto em imagem se mostra como ele é. Na percepção, o saber se forma lentamente; na imagem, ele é imediato. O objeto da percepção instiga constantemente a consciência, pois se manifesta sempre de uma forma nova; o objeto da imagem não é mais que a consciência que te-mos dele, ele se define por esta consciência.

A imagem tem, então, três características principais:

?? Primeiro, a imagem é uma consciência. Quanto a este aspecto, Sar-tre descarta a ilusão de imanência, que aparece bem na teoria de Hume, quando distingue entre impressões (percepções fortes) e idéias (imagens fracas das impressões no pensamento). Para Sar-tre, as idéias de Hume são o que ele chama de imagem. Uma idéia que tenho de casa não se refere a uma casa existente. Não é a casa do mundo exterior, a casa que percebi. Entretanto, para Hume, a idéia de casa e a casa em idéia são a mesma coisa: ter a idéia de

4 Interessante é que o movimento artístico cubista (início do século XX) questiona exa-

tamente esta impossibilidade de observação total do objeto. Para pode haver esta ob-servação total, os artistas desmembram os objetos na tela , representando todas as suas faces ao mesmo tempo.

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casa é ter uma casa na consciência. Deixando as teorias de lado, Sartre vol- ta-se para a reflexão, para livrar-se da ilusão de imanência. Na realidade, que perceba-se ou imagine-se um objeto, ele permanece sempre fora da consciência como objeto real. Simplesmente a cons-ciência relaciona-se com este objeto de duas maneiras diferentes. A imagem é um certo tipo de consciência, ou seja, uma organiza-ção sintética, cuja essência é relacionar-se diretamente com o obje-to existente. Para evitar confusões, Sartre denomina imagem ao que é somente relação (un rapport). Não se deve confundir a cons-ciência imaginante que dura, organiza-se, desagrega-se, com o ob-jeto desta consciência que, durante este tempo , pode permanecer imutável.

?? A segunda característica é que a imagem é um fenômeno de quase observação, isto é, quase uma percepção. Como foi dito anterior-mente, a percepção ocorre por partes, e a imagem de uma só vez. No mundo da percepção, nenhuma coisa pode aparecer sem que tenha uma infinidade de relações com outras coisas. É esta infini-dade de relações que constitui a essência de um objeto. Na ima-gem, porém, seus diferentes elementos não têm mais que dois ou três tipos de elos, de relações. Duas cores, por exemplo, que na realidade estabelecem uma relação de discordância, podem coexis-tir em imagem sem nenhuma relação. Os objetos só existem se pensarmos neles. Na imagem uma certa consciência se dá a um certo objeto. O objeto é, então, correlativo a um certo ato sintético , que compreende, entre suas estruturas, um certo saber e uma certa intenção. A intenção está no centro da consciência: é ela que visa ao objeto, que o constitui. O saber, que está indissoluvelmente ligado à intenção, torna precisa a forma do objeto, ou seja, ele junta sinte-ticamente suas determinações. O objeto em imagem é simultâneo à consciência que tenho dele e ele é determinado por esta consciên-cia.

?? A imagem, em sua terceira característica, como consciência, uma consciência imaginante, possui seu objeto como um Nada. Como Sartre afirma, baseado na fenomenologia de Husserl, toda consci-ên-cia é consciência de alguma coisa. A consciência imaginante(ou irrefletida) visa a objetos que são exteriores por natureza à consciência, ela sai dela mesma, ela se transcende. Se nós quisermos descrever esta consciência, é preciso produzirmos uma nova consciência dita refletida. Entretanto, é preciso tomar cuidado. Se a consciência imaginante de uma árvore, por exemplo, não fosse consciente a não ser do título do objeto da reflexão, resultaria que ela estaria, no estado irrefletido, inconsciente dela mesma, isto seria uma contradição. Ela deve, então, não tendo outro objeto

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contradição. Ela deve, então, não tendo outro objeto que a árvore em imagem e não sendo ela mesma objeto a não ser da reflexão, formar uma certa consciência dela mesma. Diremos que ela possui dela mesma uma consciência imanente e não-tética. A consciência não-tética não tem objeto. Ela não se dá nada, não é um conheci-mento: é uma luz difusa que a consciência emana para si mesma. Uma consciência perceptiva aparece a si mesma como passiva. Ao contrário, uma consciência imaginante se dá a si como espontanei-dade que produz e conserva o objeto em imagem. É uma espécie de contrapartida indefinível do fato de que o objeto se dá como um nada. A consciência aparece a si como criativa, sem pôr como objeto esta criatividade. Esta é a qualidade de ser vaga que possui a consciência imaginante.

Uma consciência imaginante que compreende saber e intenções, pode compreender também palavras e juízos. Com isto não se quer dizer que se pode julgar a partir da imagem; podem entrar julgamen-tos sob uma forma especial, a forma imaginante. Os elementos ideati-vos de uma consciência imaginante são os mesmos que os das consci-ências, às quais reserva-se comumente o nome de pensamentos. Entre-tanto, a imagem não tem o papel de ilustração nem o de suporte de pensamento. O pensamento é uma consciência que afirma as qualida-des de seu objeto, mas sem as realizar sobre ele. A imagem, ao contrá-rio, é uma consciência que visa a produzir seu objeto; ela é constituída por uma certa maneira de julgar e de sentir em que nós não tomamos consciência enquanto tal, mas nós apreendemos a partir do próprio objeto intencional, como tal, algo de suas qualidades. Pode-se dizer que a função da imagem é simbólica.

Segundo Sartre, a maioria dos psicólogos faz do pensamento uma atividade de seleção e de organização que vai buscar suas imagens no inconsciente, para dispô-las e combiná-las conforme as circunstâncias. Cada combinação seria um símbolo. Sartre não aceita a concepção se-gundo a qual a função simbólica se sobrepõe à imagem. Parece-lhe que a imagem é simbólica por essência e em sua estrutura mesma.

Além disto, a imagem é uma espécie de encarnação do pensamen-to irrefletido. A consciência imaginante representa um certo tipo de pensamento. Não existem conceitos e imagens. Para Sartre, há duas maneiras do conceito aparecer: como puro pensamento sobre o terre-no reflexivo e, sobre o terreno irrefletido, como imagem. Assim vista, a imagem é fundamental para a concepção da arte e do belo em Sartre.

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Obra de arte: entre o real e o irreal

Conforme Sartre, geralmente se faz confusão entre o real e o ima-ginário numa obra de arte. Isto ocorre, na sua concepção, por não se diferenciar entre os momentos de constituição da consciência para se perceber a obra, ou seja, entre a consciência realizante – responsável pela constituição do objeto como real, é o que apreende o objeto como real – e a consciência imaginante – responsável pelos atos intencionais que configuram os objetos como estéticos, como irreais .

Para ilustrar esta confusão, ele cita como exemplo5 o Retrato de Carlos VIII. O conteúdo ou a temática da pintura – Carlos VIII – é um objeto, mas não no mesmo sentido em que a tela, as camadas de tinta e o verniz o são. Carlos VIII não está escondido pelo quadro, mas também ele não pode se dar a uma consciência realizante, porque ele só aparecerá quando a consciência se constituir como imaginante. Carlos VIII figurado – portanto, não como objeto real – é correlativo ao ato inten-cional de uma consciência imaginante. Ele é irreal enquanto pre-so sobre a tela e é este Carlos VIII que é objeto de apreciação estética. Assim, num quadro, o objeto estético é um irreal. Diz Sartre que é freqüente se ouvir dizer que o artista tem primeiro uma idéia em ima-gem que ele, em seguida, realiza (torna real) sobre a tela. O erro está em crer que o pintor pode partir de uma imagem mental, que é, como tal, incomunicável, e que, ao terminar seu trabalho , ele libera ao públi-co um objeto que cada um pode contemplar. Esta é a passagem que se pensa haver: passar do imaginário ao real.

Entretanto, para Sartre, o que é real são os resultados das pincela-das, as tintas da tela, o verniz sobre as cores. Porém, tudo isto não faz parte do objeto de apreciação estética. O que é belo é algo que não se dá à percepção, ou seja, está fora do universo real. Pois o pintor não torna real a sua imagem mental: ele apenas constitui um análogo ma-terial, isto é, esta imagem só pode ser entendida pelo público na me-dida em que for considerada como análoga e não como real. A ima-gem provida de um análogo exterior permanece imagem, e não se pode falar em realização do imaginário, pode-se falar, isto sim, em sua objetivação.

O objetivo do pintor é constituir um conjunto de tons reais que permitam ao irreal se manifestar. Então, o quadro deve ser conhecido como uma coisa material, visitada de tempos em tempos por um irreal (atitude imaginante de um espectador) que é precisamente o objeto pintado. A cor isolada não tem nada de estético. A cor, em um qua-dro, nós a apreendemos como fazendo parte de um conjunto irreal e é dentro deste conjunto que ela é bela. É então no irreal que as relações 5 Vide na conclusão de L’imaginaire.

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de cores e de formas tomam seu verdadeiro sentido. As formas são coisas, porque, embora não possam ser mais associadas aos objetos exitentes (não são formas reais), elas têm matéria, densidade, profun-didade e relacionam-se entre si. E exatamente na medida em que são coisas as formas são irreais. Se quisermos que um quadro se apresente como um objeto real estaremos cometendo um erro. A arte abstracio-nista, por exemplo, não remete mais a um objeto real na natureza. Mas quando o contemplamos não estamos numa atitude realizante. O qua-dro ainda funciona como análogo, só que o que se manifesta é um conjunto irreal de coisas novas, objetos jamais vistos no mundo real, objetos tão irreais no quadro quanto fora dele, mas que estão expres-sos na tela. É o conjunto destes objetos irreais que Sartre qualifica co-mo belo.

Quanto ao prazer estético , ao gosto, este é real, mas não é apreen-dido por si mesmo: é apenas uma maneira de apreender o objeto irre-al, pois ele se refere ao objeto imaginário por meio da tela real. Eis o porquê do desinteresse pela visão estética. Esta pouca objetividade fez com que Kant desconsiderasse a existência ou não do objeto belo, desde que apreendido enquanto belo. É que o objeto estético , enquan-to irreal, é constituído e apreendido por uma consciência imaginante. Nem é preciso, como Platão, criar um outro mundo para o objeto esté-tico, um céu inteligível. O objeto estético não está fora do tempo ou do espaço, ele apenas não está, não existe, está fora do real. Por isso sente-se dificuldade em passar do mundo da arte, do teatro, da músi-ca, para o mundo das preocupações cotidianas. Na verdade, não ocor-re passagem nenhuma de um mundo a outro, há a passagem da atitu-de imaginante (metaforizante) à atitude realizante. Como diz Sartre, “a contemplação estética é um sonho provocado, e a passagem ao real é um autêntico despertar”.

O real, para Sartre, não é jamais belo. A beleza é um valor que só pode ser atribuído ao imaginário.

O belo e o imaginário

Em uma conferência que Sartre proferiu, quando esteve no Brasil em 19606, ele fala sobre questões estéticas, tentando definir o que é o belo. Inicialmente, apresenta como ponto de partida três concepções que, segundo ele, é o que em geral, mais se conhece como definição de belo.

6 Vide: Conferência. In: Discurso, n. 16, Revista do Departamento de Filosofia da FFLCH

da USP, São Paulo: Polis , 1987.

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Primeiro, que o belo, quanto ao conteúdo, varia historicamente. Is-to ocorre não só com as obras, mas com as próprias formas artísticas que agradam em cada época.

Em segundo lugar, todos sabemos o que nos agrada numa obra bela, isto é, aquilo que faz com que ela seja bela. Sartre explica este item sclarecendo a interligação que há entre as partes e o todo de uma obra, o que forma a sua totalidade. O todo ou a totalidade não é uma soma de elementos, pois há unidades que não se modificam. “Acres-centando-se umas às outras, cada unidade permanece uma unidade e só o conjunto é que constitui um número [...]. Quando temos uma verdadeira totalidade podemos sempre considerar uma das partes enquanto tal como representando a totalidade e ao mesmo tempo co-mo uma coisa particular.”7 No todo há uma interação das partes entre si. Por exemplo, numa obra as cores não têm sentido se analisadas em separado da própria totalidade da obra, pois, num outro quadro, po-dem não ter o mesmo significado e a mesma função. É a expressão do todo que se manifesta através de uma dominante de cor, ou seja, atra-vés de algo particular, o sentido do todo se expressa, mas só se for considerado como totalidade.

Esta relação simultânea com o todo e com todas as partes de cada parte, Sartre chama de estrutura. O belo, portanto, é uma totalidade que contém estas estruturas.

Em terceiro lugar, o belo possui “uma universalidade sem conceito e gratuita que exige ser compartilhada”,8 conforme a apreciação kanti-ana: o belo é uma finalidade sem fim. Significa que, diferentemente do objeto comum, o objeto artístico não pode ser definido, universalizado por um conceito. Mas há no belo um tipo de imperativo implícito: quando observamos um quadro belo, de certa forma, exige-se que todos percebam esta beleza, pois seu estado de obra de arte já o legi-tima como belo.

Nesse ponto existe o conflito entre o que percebemos como sendo belo e o que nos agrada ou não por nosso gosto, nossa empatia. Sartre critica o fato de Kant não ter ido além nesta idéia de exigência, ou seja, o fato de se exigir do outro um mesmo prazer estético. Para Sar-tre, Kant estudou apenas aquele que exige, mas não estudou aquele de quem se exige que compartilhe de uma mesma apreciação estética. O que ele pretende fazer é inverter a relação que Kant estabeleceu, a qual parte do juízo universal para o juízo particular, permitindo a exi-gência de uma concordância no juízo estético. Para Sartre, o que pos-sibilita exigir algo do outro é o fato de estarmos no mundo, por isso deve-se começar do particular, do ponto de vista humano sobre o

7 Idem , p. 8. 8 Idem , p. 9.

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belo, para chegarmos à possibilidade de um juízo universal. O particu-lar é que caracteriza a relação de comunicação entre os homens.

“Para expressar a verdade da arte é preciso reconhecer que ela tem uma importância humana real [...].”9

Uma obra de arte não é um fim, um fim relativo a algo, mas se a-presenta como fim em si, fim absoluto, na medida em que exige por meio de um outro que seja reconhecida como bela. Absoluto significa ser livre de todas as relações que possam torná-la contingente. O qua-dro, enquanto fim absoluto, exige nossa adesão, porque ele se apre-senta como uma totalidade em qualquer conjunto bem-estruturado (seja um ato do homem ou da natureza), ou seja, onde cada parte re-meta todas as outras partes ao todo. Mas não podemos considerar que o belo, sendo uma totalidade, exista fora da arte, segundo Sartre.

Quando a beleza natural se apresenta, o que vemos é real e só ca-ímos no imaginário quando atribuímos a criação deste conjunto, que parece belo, a um artista divino, sem nenhuma prova de sua existên-cia. Quando vemos um quadro, ocorre o contrário, na tela tudo é ima-ginário. A realidade do quadro é a tela com cores colocadas sobre ela, também seu preço é outra realidade. Porém, quanto à sua beleza, ao que ela representa, os objetos aí pintados são imaginários. Como diz Sartre:

“A verdadeira arte [...] consiste não em que os acasos reunidos de uma certa maneira nos obriguem a sonhar ou a imaginar que haja um autor, mas [...] consiste, ao contrário, para um certo autor, em inventar que o a-caso tenha sido favorável [...].”10

O artista inverte a relação do imaginário da natureza, pois, na na-tureza, o imaginário refere-se a quem o criou, na tela o imaginário é o acaso. “O quadro inventa o acaso, ou seja, a ordem das causas para submetê-la à ordem dos fins.”11 Na verdade, neste ponto, Sartre apro-xima-se de Kant quando diz que uma bela obra é aquela em que o acaso do quadro é tão perfeito quanto à realidade da natureza, embo-ra o imaginário diferencie-se em cada caso, a finalidade sem fim de-terminado é o essencial na arte.

O artista nos dá acasos a admirar, acasos que libertaram a ordem dos fins da natureza e formaram um novo conjunto na tela, acasos que o artista organizou, sendo o fim absoluto apenas a unidade total, a totalidade. Assim se constitui o belo.

O quadro nos dá acasos que o artista fez de propósito. E o que re-presenta o quadro? Para Sartre, ou não representa nada, o que para 9 Id., ibid., p. 10. 10 Idem , p. 13. 11 Idem , l.c.

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ele é arte abstrata, ou representa no seu conjunto o mundo; nos dois casos representa o que nos é dado. Entretanto, o homem para ver o belo precisa estar em harmonia, sem seus problemas cotidianos, sem problemas financeiros, sem nenhum mal-estar. Para fazer uma espécie de epoché e chegar ao imaginário é preciso não ter problemas de saúde nem fome, só assim o ser existencial pode ter a experiência do belo.

A arte é, enfim, um tipo de práxis imaginária: exige que o homem crie, exige que o homem a pense, exige que o espectador participe.

Para decifrar um objeto de arte – música, quadro, livro –, é preciso percebê-lo como se percebe o homem. Sartre afirma que percebemos diferentemente o homem e os seres inanimados. Os objetos nós os vemos a partir do passado; por exemplo, um objeto rolando refere-se a um impulso anterior que o lançou. Um homem, ao contrário, para compreendermos seus atos é preciso começar pelo futuro, do que ele possivelmente pretende fazer. Assim, também ocorre para compreen-dermos o belo, temos que partir do futuro, buscar o que ele possivel-mente signifique. Aqui retoma-se a idéia de que o objeto deve estabe-lecer relações com o que o cerca para poder ser considerado uma tota-lidade, um todo estruturado. Não se pode entender uma música ou-vindo em separado nota por nota, nem um quadro vendo cor separa-da de cor, é necessário perceber o todo numa seqüência que relacione o futuro e o passado dos significados. Como também não é o indiví-duo isolado que estabelece algo como sendo belo, mas uma coletivi-dade.

“A arte é fundamentalmente uma espécie de ato, de projeto que representa o homem inteiro na sua realização no mundo.”12 E este ato que é a arte, segundo Sartre, surge como exigência social, pedindo uma recuperação do mundo. A sociedade tenta recuperar o mundo das dores e das tragédias por que passa, tenta recuperar tudo o que não se pode evitar.

Para Sartre, o fato de dar à arte a tarefa de recuperar coisas que , na verdade, são irrecuperáveis, é uma forma de mistificá-la:

“Não se pode supor que dar ao real e a este acaso uma harmonia imagi-nária, retomar como elementos do nosso prazer universal os defeitos do nosso mundo, possa ser diferente de uma mistificação, pois afirmo que certos elementos não podem ser recuperados.”13

Este tipo de recuperação que se tenta através da arte não existe no nosso mundo, pode existir para Deus, mas não é concebível no plano da existência humana. Por isso, como o homem pode compreender a arte ou querer que a arte tenha um valor humano se ela é mistificada?

12 Idem , p. 20. 13 Idem , p. 21.

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Filosofia, Lógica e Existência / 447

A arte como coisa humana não recupera o sacrifício humano de estar no mundo, apenas como coisa divina (mística).

A partir de um sentido na história, Sartre acredita que a arte che-ga a recuperar, em certos momentos (Idade Média, por exemplo), quando dirigia-se mais a Deus do que ao próprio homem. Mas quando a arte começou a apresentar o homem ao próprio homem, então come-çou a contradição da práxis artística que representa o mundo real que não é belo – pois carrega lutas de classes, dores, tragédias humanas –, transformado em belo na obra de arte. E, para representar o mundo para o próprio homem, o artista, por exigência social, não apenas pinta para o povo, mas deve fazer parte deste povo.

Percebe-se onde vai chegar a teoria estética sartriana: à concepção de que as exigências da beleza levam a uma literatura da totalidade popular. Poderíamos fazer uma aproximação da estética materialista, baseada na concepção marxista de arte, para a qual conteúdo e forma da arte estão condicionados pelo conjunto de relações sociais que ori-ginaram e em cujos fundamentos se encontram as forças de produção e suas respectivas relações de uma determinada sociedade. Não são as idéias imanentes, o espírito ou um sentimento puramente biológico de criar que fazem nascer as obras de arte, mas as necessidades reais (na-turais e históricas) do homem social baseadas em sua atividade social real. Do ponto de vista materialista, a atividade artística, como as de-mais atividades culturais, se caracteriza, por um lado, como superes-trutura cultural e ideológica que expressa de maneira mais ou menos mediata os interesses do mundo e as concepções de determinadas classes e, por outro, como relação social, assume o caráter de produto histórico transitório. A estética do materialismo histórico se situa no âmbito dos problemas de conteúdo da obra de arte, evitando assim, por um lado, o formalismo e, por outro, o psicologismo, que abando-na a análise do belo pelo prazer subjetivo que procura. A dialética desta estética caracteriza a obra de arte como algo incompleto, dando-lhe novos sig-nificados e vivificando-a através do imaginário.

Embora Sartre afirme 14 que não há sentido em confundir a moral e a estética, pois os valores do Bem supõem que o ser esteja no mundo e visam às condutas no real, há um tom político-social na sua concepção de belo e de arte como atividade engajada. Percebemos a ligação com a estética materialista em suas palavras:

“[...] o artista não passa de um medium numa cerimônia coletiva onde o belo torna-se simplesmente a evocação imediata da práxis humana no ní-vel real e ao mesmo tempo da história, assim como da matéria onde esta práxis se exerce. Assim, a obra de arte torna-se ao mesmo tempo uma re-tomada imaginária em nome do povo e pelo artista do que acontece e do

14 Vide L’imaginaire, Conclusão, parte II.

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/ A filosofia da arte em Jean-Paul Sartre 448

que aconteceu, e a prefiguração profética de uma sociedade que ainda não existe, mas que se retoma a ponto de se dominar mesmo nas suas re-lações com o trabalho e a matéria.”15

Dentro do existencialismo sartriano , que afirma uma liberdade in-condicionada de escolha, fica um pouco determinista dizer que o artis-ta, em sua expressão, representa a vontade coletiva. Até pode-se com-preender que a arte, como totalidade, como um todo integrado, tem sua colaboração social, sendo o artista uma parte que interliga outras partes com o todo, podendo, por isso, ter forte representação social. Porém, o que percebemos é que a análise do belo, na obra de Sartre, acaba des-viando-se não apenas para o plano existencial, como seria lógico, mas, sobretudo, para uma atividade engajada política e social-mente.

O que aqui foi exposto trata apenas de lançar alguns tópicos para reflexão, pois Sartre contribuiu, como pensador e escritor, para que a arte contemporânea criasse novos espaços e formas de expressão soci-al, a partir da clássica evolução da arte em três momentos: fazer, co-nhecer e exprimir. Na obra de Sartre, a arte aparece com estas três características ao mesmo tempo.

Referências bibliográficas

SARTRE, Jean-Paul. L’imaginaire. Paris: Gallimard, 1986. . Verdade e existência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. . L’être et le néant. Paris: Gallimard, 1991. . A imaginação. In: Textos selecionados . São Paulo: Abril Cultural , 1984. . Conferência. In: Discurso, n. 16, Revista do Departamento de Filosofia da

FFLCH da USP, São Paulo: Polis, 1987.

15 Conforme Conferência , op. cit., p. 30.

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Filosofia, Lógica e Existência / 449

Curriculum vitae de Antonio Carlos Kroeff Soares

Antonio Carlos Kroeff Soares nasceu em 27 de outubro de 1937 em São Francisco de Paula, RS.

De 1959 a 1961 cursou o Bacharelado em Filosofia na Pontifícia U-niversidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre; em 1965, licenciou-se em Filosofia na Faculdade de Filosofia de Caxias do Sul. Em 1975 e 1976, especializou-se em Filosofia na Universidade de Caxi-as do Sul. Em 1988, tornou-se mestre em Filosofia pela Pontifícia Uni-versidade Católica do Rio Grande do Sul apresentando a dissertação Os fundamentos de uma lógica elementar pura. Atualmente está em fase de conclusão do Curso de Doutorado em Educação da Universidade Fe-deral de São Carlos, SP. Desde 1961, participou de inúmeros cursos de extensão e de outros eventos acadêmicos (seminários, simpósios, en-contros, jornadas, etc.) em diversas universidades do país e do exteri-or (dentre os quais, em 1970, o University Management Seminar na Uni-versity of Boston, Huston – USA –, Universidad Autónoma de Guadalajara – México – e Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Monterrey, Monterrey – México).

A experiência profissional do Prof. Antonio Carlos inclui ativida-des docentes em cursos de segundo grau, de graduação e pós-graduação, além de cargos e funções docentes, assessorais, e técnico-administra-tivas.

Em atividades técnico-administrativas, atuou na Universidade de Caxias do Sul (desde 1964), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1969), na 4a Delegacia de Educação – SEC/RS (1972) e na Prefei-tura Municipal de Caxias do Sul (1973-1974).

Na Universidade de Caxias do Sul, Antonio Carlos trabalhou co-mo assessor na elaboração do Plano de Reestruturação da Universi-dade (1967-1968), na elaboração do Estatuto da Universidade (1969-

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/ Curriculum Vitae 450

1970), na departamentalização e na elaboração dos currículos dos cur-sos (1968-1970), no planejamento e execução no Concurso Vestibular Unificado (1970-1971), na reformulação do Regimento Geral da Uni-versidade (1975), na reforma dos currículos e na implantação do pri-meiro ciclo (1976-1977) e na elaboração do Quadro de Carreira dos Docentes. Além disso, na UCS ele ocupou os seguintes cargos técnico-administrativos: Coordenador do Departamento de Filosofia na Fa-culdade de Filosofia (1964-1967), Chefe do Departamento de Filosofia (1970-1972), Membro do Conselho Administrativo (1965-1970) e do Conselho Departamental (1964-1967) da Faculdade de Filosofia de Caxias do Sul, Membro do Conselho Universitário (1968-1970), Asses-sor de Educação e Cultura da Reitoria (1968-1969), Assessor do Gabi-nete de Planejamento da Reitoria (1969-1971), Vice-Diretor da Facul-dade de Educação, Ciências e Letras (1968-1969) e Diretor da Facul-dade de Educação (1971), Membro do Conselho de Ensino , Pesquisa e Extensão (1974-1980), Assessor Técnico da Secretaria de Ensino da Reitoria (1975-1976), Subchefe do Departamento de Filosofia (1982-1984), Membro da Comissão Editorial da Editora – EDUCS (1981-1983), Membro do Conselho Universitário (1983-1985), Membro da Comissão Permanente de Avaliação e Acompanhamento do Plano de Carreira dos Docentes (1987), Membro da Comissão Técnica de Pes-quisa da Pró-Reitoria de Pesquisa e Extensão (1988), Membro da Co-missão de Assessoria à Biblioteca Central (1988) e Subchefe do Depar-tamento de Filosofia (1988).

Contudo, é com as atividades de pesquisa e ensino que Antonio Carlos mais tem se ocupado. Em 1965 e 1972, em Caxias do Sul, ele lecionou em cursos de segundo grau no Centro Regional de Pesquisas Educacionais – RS (INEP-MEC) e no Colégio Estadual Cristóvão de Mendoza, respectivamente. No ensino superior, as atividades docen-tes do Prof. Antonio Carlos iniciaram-se já em 1962, quando ele era estagiário na disciplina Introdução à Filosofia no Curso de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com um Seminário sobre Aristóteles (Metafísica, I,1-2 e IV), e como professor substituto no Cur-so de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul com um Curso sobre Estética: Filosofia da Arte entre os Gregos. Em 1963 começou a lecionar no Curso de Filosofia da Faculdade de Filso-fia de Caxias do Sul. Desde então sucederam-se cursos e seminários no âmbito de Introdução à Filosofia, História da Filosofia, Teoria do Conhecimento, Filosofia da Educação e Teoria da Ciência, nos quais a ênfase foi a leitura e a interpretação de textos clássicos do pensamento filosófico. Dentre os principais autores e textos estudados contam-se Anaximandro, Heráclito, Parmênides, os Sofistas, Platão (O sofista), Aristóteles (Metafísica), Agostinho (De magistro), Tomás de Aquino (De

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Filosofia, Lógica e Existência / 451

ente et essentia, Summa theologiae I, q.2 e 84-85), Descartes (Discurso do método), Kant (Crítica da razão pura), Husserl (Idéias I, Preleções para uma fenomenologia da consciência do tempo imanente, Meditações cartesianas, A crise da humanidade européia), Heidgger (Kant e o problema da metafísica, A sentença de Anaximandro, Carta sobre o humanismo, Que é isto – a filosofia?, A doutrina de Platão sobre a verdade, Sobre a essência da verdade), Max Sche-ler (Fenomenologia e metafísica da liberdade), Sartre (O ser e o nada, O existencialismo é um humanismo), Karl Popper (A lógica da pesquisa científica) e Imre Lakatos (O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica, A lógica do descobrimento matemático). Além disso, as aulas do Prof. Antonio Carlos sempre se concentraram em torno de temas fundamentais do pensamento filosófico , tais como: origem, fim, sujeito e essência do filosofar, as cinco vias de Tomás de Aquino, introdução lingüística à filosofia e à filosofia da linguagem; o conceito de physis na filosofia grega, problema do conhecimento em Aristóteles e Tomás de Aquino, o problema do conhecimento em Aristóteles e a sua fundamentação no conceito de physis, conhecimento e linguagem em Aristóteles, os preceitos cartesianos do método, a fenomenologia de Husserl, fragmentos de Heráclito, ontologia grega nos pré-socráticos, Platão e Aristóteles, a metodologia de Lakatos, iniciação à pesquisa filosófica e orientação de monografias em Filosofia e exames em História da Filosofia. Desde 1970, a principal área de investigação e do trabalho docente do Prof. Antonio Carlos foi a Lógica. Os estudos nessa área iniciaram-se pela Lógica Formal (conceito, e juízo, silogística) passando, mais tarde, a se concentrar no cálculo dos enunciados e no cálculo dos predicados. Nela concentram-se não somente boa parte de suas aulas e seminários, mas também a maioria dos escritos e traduções, dos quais Antonio Carlos deu a conhecer ao público, até o momento, somente uma ínfima parte e que são apresentados a seguir. PUBLICAÇÕES (Em ordem cronológica.)

SOARES, Antonio C. K. Aristóteles, Peri Hermeneias, c. 1, 16 a 3-8. C-hronos, Caxias do Sul, v. 1, p. 3-7, 1967.

. Aristóteles, Peri Hermeneias, c. 2, 16 a 9-18. Chronos, Caxias do Sul, v. 2, p. 5-11, 1968.

. Teoria das proposições em lógica quantificacional. Ponto de partida de uma hermenêutica quantificacional. Chronos, Caxias do Sul, v. 4, p. 23-26, 1971.

. O fragmento 40 de Heráclito. Chronos, Caxias do Sul, v. 7, p. 13-16, 1975.

. Hume e a origem do governo. Chronos, Caxias do Sul, v. 8, p. 13-17, 1976.

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/ Curriculum Vitae 452

. À procura da tradição greco-brasileira. Chronos, Caxias do Sul, v. 12, p. 5-22, dez. 1978.

. Silogística assertória simples e algumas de suas ampliações. Chronos, Caxias do Sul, v. 16, p. 6-45, mar. 1981.

. Finitude e ideologia. Chronos, Caxias do Sul, v. 17, p. 2-11, maio 1981.

. Aristóteles: a alma é, em algum modo, todos os entes. In: DE BONI, Luis Alberto (ed.). Antropologia. Perspectivas filosóficas. Caxias do Sul: UCS; Porto Alegre: EST , 1976. p. 7-19.

. Alguns aspectos básicos do sistema acadêmico flexível. In: PAVIANI, Jayme, POZENATO, José Clemente. Introdução à universidade. Caxias do Sul: UCS, 1977. p. 81-87.

. Os créditos na vida acadêmica do aluno. In: UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL. Currículos para ingressantes a partir de 1977. Caxias do Sul: UCS, 1978. p. 9-10.

. Trilema de Münchhausen. Filos, Caxias do Sul, v. 3, n. 1, p. 4, jun. 1985.

. Liberdade acadêmica. Filos, Caxias do Sul, v. 3, n. 2, p. 9-11, out. 1985.

. Por que menos com menos dá mais? Jornal da UCS, Caxias do Sul, v. 1, n. 1, p. 20, nov./dez. 1987.

. A diferença ontológica e o fragmento 108 de Heráclito. Con-jectura, Caxias do Sul, v. 1, n. 1, p. 113-171, dez. 1987.

. Lógica e existência. Chronos, Caxias do Sul, v. 28, n. 2, p. 141-150, jul./dez. 1995.

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

SOARES, Antonio C. K. Os fundamentos de uma lógica elementar pura. Dis-sertação (Mestrado em Filosofia). Porto Alegre, Pontifícia Universi-dade Católica do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciên-cias Humanas, Curso de Pós-Graduação em Filosofia, 1988, 118 p. datilografadas.

PRÉ-PUBLICAÇÕES

Pré-publicações datilografadas em (UCS-DFIL-PSQ) (Em ordem cronológica.)

SOARES, Antonio C. K. Sobre o ‘não estou falando’ como um enuncia-do contraditório. UCS-DFIL-PSQ, Caxias do Sul, v. 1, n. 2, p. 7-13, 31 ago. 1990.

. Lógica livre, substituibilidade e existência. UCS-DFIL-PSQ, Caxias do Sul, v. 1, n. 6, p. 62-79, 10 dez. 1990. (Comunicação apre-sentada no VIII Simpósio Latino-Americano de Lógica Matemática, João

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Filosofia, Lógica e Existência / 453

Pessoa - PB, 23-28 de julho de 1989, sob o título de “Fundamentação de uma lógica elementar livre nas idéias de substituibilidade e exis-tência.”)

Pré-publicações (datilografadas) (Em ordem cronológica da primeira data disponível.)

SOARES, Antonio C. K. Os fundamentos de uma lógica elementar pura: apresentação da dissertação. Porto Alegre: Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul, 1988 dez 14 qua 10. 10 p. dat.

. O significado dos enunciados desde um ponto de vista sintá-tico. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1990 fev 20 ter 12. 14 p. dat.

. O paradoxo do mentiroso e outras autologias de mesma es-trutura. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1990 fev 08 qui 18. 31 p. dat.

. A postulação da existência desde um ponto de vista sintáti-co. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1991 mai 22 qua 16. 23 p. dat.

. Sobre o ‘dizer’ e seus correlatos. Caxias do Sul: Universida-de de Caxias do Sul, 1992 jul 14 ter 09. 3 p. dat.

. O ‘falar’ como conceito unívoco em ‘não estou falando’. Ca-xias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1992 jul 15 qua 09, 2 p. dat.

. O ‘falar’ como conceito sistematicamente multívoco em ‘não estou falando’. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1992 jul 17 sex 16, 4 p. dat.

. A contingência do ‘não estou falando’. Caxias do Sul: Uni-versidade de Caxias do Sul, 1992 jul 19 dom 11. 2 p. dat.

. Sobre o ‘dizer’ como ‘mencionar’. Caxias do Sul: Universi-dade de Caxias do Sul, 1992 jul 21 ter 10. 3 p. dat.

. Conjuntos e enunciados difusos. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1992 dez 16 qua 10. 2 p. dat.

. Memorial profissional resumido. Caxias do Sul: Universida-de de Caxias do Sul, 1993 jan 19 ter 15. 6 p. dat.

Pré-Publicações (digitadas) (Em ordem cronológica da primeira data disponível.)

SOARES, Antonio C. K. Isomorfia representativa. Caxias do Sul: Uni-versidade de Caxias do Sul, 1993 mai 14 sex 21. 1 p. dig.

. Sobre o discurso demonstrativo. Caxias do Sul: Universida-de de Caxias do Sul, 1993 out 08 sex 23. 10 p. dig.

. Sobre alguns conceitos lógicos. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1993 out 23 sab 16. 6 p. dig.

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/ Curriculum Vitae 454

. Uma axiomatização da lógica dos enunciados como exemplo de teoria axiomatizada. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1993 out 23 sab 16. 8 p. dig.

. Dois exempos de discurso demonstrativo. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1993 out 31 dom 08. 3 p. dig.

. Para uma lógica do dizer e do ensinar. Delimitação provisó-ria de um problema de pesquisa. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, ... - 1993 nov 12 sex 22 00. 12 p. dig.

. Sobre o paradoxo do mentiroso. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1993 dez 15 qua 11 30. 15 p. dig.

. Notas sobre o dizer, o pensar e o ser. Caxias do Sul: Univer-sidade de Caxias do Sul, 1993 dez 29 qua 21 10 - 1994 jan 17 seg 10 25. 29 p. dig.

. Sobre o paradoxo do erro. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1994 jan 05 qua 10. 2 p. dig.

. Sobre o paradoxo do mentiroso. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1994 jan 06 qui 16. 2 p. dig.

. Sobre o ‘estou mentindo’. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1994 jan 09 dom 16.

. Sobre contradições performativas e paradoxos. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1994 jan 10 seg 00. 3 p. dig.

. Alguns teoremas de uma lógica minimal do dizer (1). Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1995 out 10 ter 09 30 - 1995 nov 16 qui 08 10. 21 p. dig.

. Alguns teoremas de uma lógica minimal do dizer (2). Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1995 out 19 qui 11 55 - 1995 nov 16 qui 08 11. 18 p. dig.

. Alguns teoremas de uma lógica minimal do dizer (3). Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1995 nov 15 qua 16 33 - 1995 nov 16 qui 11 25 21 p. dig.

. Lógica minimal do dizer heterológico. Caxias do Sul: Uni-versidade de Caxias do Sul, 1995 out 25 qua 15 50 - 1995 dez 29 sex 10 33. 5 p. dig.

. Lógica minimal do dizer autológico. Caxias do Sul: Univer-sidade de Caxias do Sul, 1995 out 26 qui 10 00 - 1996 jan 02 ter 20 10. 7 p. dig.

. Sobre algumas contradições referentes ao ‘dizer’. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1994 out 27 qui 00 45 - 1995 nov 17 sex 10 07. 14 p. dig.

. Sobre a lógica minimal do dizer autológico. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1995 nov 17 sex 11 50 - 1995 dez 13 qua 10 30. 9 p. dig.

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Filosofia, Lógica e Existência / 455

. Sobre a relação entre o dizer autológico e o dizer heterológi-co. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1995 nov 22 qua 23 11 - 1996 jan 05 sex 09 55. 4 p. dig.

. Sobre o Mentiroso no contexto de uma Lógica da Mentira. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1994 dez 27 ter 08 30 - 1995 ago 23 qua 15 15. 13 p. dig.

Manual digitado

SOARES, Antonio C. K. Lógica Elementar Livre. Lógica I. Cálculo dos Enunciados. Lógica II. Cálculo dos Predicados em Lógica Livre. Ca-xias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1994 ago 07 dom 08 14 - 1996 nov 01 sex 10 03. 81 p. dig.

Traduções manuscritas (não publicadas) (Em ordem cronológica da primeira data disponível.)

HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas. Uma introdução à fenomenologi-a. Tradução de Antonio C. K. Soares. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1970 mar 14 sab 11 00 - 1972 jan 26 qua 11 11. 272 p. manuscr. [HUSSERL, Edmund. Méditations cartésiennes. Introduction a la phénoménologie. Traduir de l’allemand par Mlle Gabrielle Peiffer et M. Emmanuel Levinas. Paris: J. Vrin, 1966. 136 p.]

LABÉRENNE, Paul. As matemáticas e o marxismo. Tradução de Antonio C. K. Soares. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, ... - 1989 fev 13 seg 21 51. 10 p. manuscr. [LABÉRENNE, Paul. Les mathématiques et le marxisme. In: LE LIONNAIS, F., et al. Les grands courants de la pensée mathématique. Cahiers du Sud. Réédition en fac similé du numero de 1948. Paris / Marseille: Rivage, 1986. 533 p. p. 378-387.]

WITTGENSTEIN, Ludwig. Algumas observações sobre forma lógica. Tradução de Antonio C. K. Soares. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1989 set 19 ter 17. 8 p. manuscr. [WITTGENSTEIN, Ludwig. Some Remarks on Logical Form. In: COPI, Irwing M., BEARD, Robert W. Essays on Wittgenstein’s Tractatus. London: Routledge & Kegan Paul, 1966. x, 414 p. p. 31-37.]

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/ Curriculum Vitae 456

Traduções digitadas (não publicadas) (Em ordem cronológica da primeira data disponível.)

LADRIÈRE, Jean. Os limites da formalização. Tradução de Antonio C. K. Soares. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul. 1990 ago 29 qua 17 - 1997 mar 06 qui 10 07 19 p. dig. [LADRIÈRE, Jean. Les limites de la formalisation. In: PIAGET, Jean (dir.) Logique et connais-sance scientifique. S. l.: Gallimard, 1967 (reimpr. 1986). xvi, 1345 p. p. 312-333, 1035-1036.

BARWISE, Jon, ETCHEMENDY, John. O mentiroso. Um ensaio sobre a verdade e a circularidade. Exercício de tradução (carente de revisões) de An-tonio C. K. Soares. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1994 jan 18 ter 09 00 - 1994 abr 02 sab 19 00. 177 p. dig. [BARWISE, Jon, ETCHEMENDY, John. The Liar. An Essay on Truth and Circularity. New York, Oxford: Oxford University Press, 1987 (alk. paper), 1989 (PBK). xii, 194 p. ISBN 0-19-505072-X (alk. paper). ISBN 0-19-505944-1 (PBK).]

RESCHER, Nicolas. A identidade dos indiscerníveis. Uma reinterpreta-ção. Tradução de Antonio C. K. Soares. Caxias do Sul: Universida-de de Caxias do Sul, 1990 jun 16 sex 23. 3 p. dig. [N. Rescher. The Identity of Indiscernibles: A Reinterpretation. The Journal of Philoso-phy, v. 52, p. 152-155, 1955.]

Traduções digitadas (iniciadas e temporariamente interrompidas) (Em ordem cronológica da primeira data disponível.)

HINTIKKA, Merrill B., HINTIKKA, Jaakko. Investigando Wittgenstein. E-xercício não concluído de tradução de Antonio C. K. Soares. (Foram traduzidos os onze capítulos da obra, mas não as partes introdutó-rias e os índices. A tradução carece de revisões.) Caxias do Sul: U-niversidade de Caxias do Sul, 1989 mai 28 dom - 1989 dez 27 qua. 360 p. manuscritas. [HINTIKKA, Merrill B., HINTIKKA, Jaakko. Inves-tigating Wittgenstein. Oxford: Basil Blackwell, 1986. xx, 326 p. ISBN 0-631-14179-0]

SEARLE, John, VADERVEKEN, Daniel. Fundamentos de lógica ilocucionária. Exercício não concluído de tradução dos 3 primeiros capítulos de Antonio C. K. Soares. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1995 fev 13 seg 10 15 - 1995 ago 04 sex 21 22. 65 p. dig. [SEARLE, John, VANDERVEKEN, Daniel. Foundations of Illocutionary Logic. Cam-bridge: Cambridge University Press, 1985. xi, 227 p. ISBN 0 521 263247.]