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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CENTRO DE COMUNICAO E LETRAS COMUNICAO SOCIAL HAB.: JORNALISMO

Andanas: uma discusso sobre os mtodos de apurao para a elaborao de narrativas sob o espectro do jornalismo literrio

LIVRO-REPORTAGEM

FILHOS DO BRASIL

ROBERTO CAMARGO FURUYA VINICIUS ALVARENGA DA SILVA

SO PAULO 2010

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CENTRO DE COMUNICAO E LETRAS COMUNICAO SOCIAL HAB.: JORNALISMO

Andanas: uma discusso sobre os mtodos de apurao para a elaborao de narrativas sob o espectro do jornalismo literrio

LIVRO-REPORTAGEM

FILHOS DO BRASIL

ROBERTO CAMARGO FURUYA VINICIUS ALVARENGA DA SILVA

Relatrio do Trabalho de Graduao Interdisciplinar apresentado ao Centro de Comunicao e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para obteno de graduao no curso de Comunicao Social Habilitao: Jornalismo.

Orientador: Prof Ms. Carlos Eduardo Sandano Santos Professor de T.G.I. II: Prof Ms. Mrcia Detoni

SO PAULO 2010

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, a nossos pais, pois sem eles no teramos sequer a oportunidade de concluir esse projeto. Ao professor Carlos Sandano, por esclarecer os caminhos a serem seguidos. Aos profissionais parceiros, que contriburam com talento na concepo do livro. Daniela, pelas leituras e crticas frequentes. Roberta, pela pacincia e companheirismo. Aos colegas de trabalho, pelos espaos abertos e compreenso ante a nossa falta de tempo. E a Deus, pela sade e fora.

Filhos do Brasil to nosso quanto de vocs.

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RESUMO

O jornalismo peridico peca na ausncia de maior aprofundamento das pautas e na superficialidade das suas tcnicas de apurao, ofertando aos leitores, ouvintes e telespectadores, produtos informativos com baixo grau de contextualizao pela quase inexistncia de pontos de ligao entre o fato da hora e os outros eventos anteriores, necessrios sua real compreenso. O livroreportagem surge como uma alternativa a essa efemeridade da imprensa diria, j que permite ao profissional da informao explorar seu potencial limite na busca por um relato holstico sobre determinado tema. Ancorado pela ideia da observao participante, conceito explorado com vigor por Cremilda Medina e Edvaldo Pereira Lima no trato das tcnicas de apurao, a obra Filhos do Brasil faz da biografia do presidente Lula um roteiro para narrar histrias semelhantes s vividas por Luiz Incio Lula da Silva, de seu nascimento atuao no movimento sindical, nos mesmos locais, mas em pocas distintas. Para tanto, empresta elementos tpicos do novo jornalismo para tornar o texto algo enriquecido pelas impresses dos autores, bem como pelo proveito de elementos literrios na composio do relato final.

Palavras-chave: presidente Lula.

livro-reportagem,

observao

participante,

novo

jornalismo,

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ABSTRACT

The periodical journalism failure in the absence of further clarification of the guidelines and the shallowness of its techniques of investigation, offering readers, listeners and viewers, information products with a low degree of contextualization for almost no points of connection between the fact of the hour and the other previous events, necessary for its real comprehension. The journalism book appears as an alternative to the temporary feature of the daily press, as it allows the information professional to explore its potential limit in the quest for a holistic story about a certain topic. Anchored by the idea of participant observation, a concept explored vigorously by Cremilda Medina and Edvaldo Pereira Lima in dealing with counting techniques, the book Filhos do Brasil turns the biography of President Lula a script to tell similar stories to those experienced by Luiz Inacio Lula da Silva , of his birth until the performance at the union movement, in the same locations but at different times. Then, lends typical elements of the new journalism to make the text something valued by the views of the authors, as well as the advantage of literary elements in the composition of the final report.

Keywords: journalism book, participant observation, new journalism, President Lula.

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SUMRIO

INTRODUO ................................................................................................ p.6 1. REFERENCIAL TERICO ......................................................................... p.9 1.1 UMA EXTENSO DA PRXIS JORNALSTICA: o livro-reportagem ..... p.9 1.2 FATO E LITERATURA: possibilidades para a narrao jornalstica .... p.13 1.3 APURAO APROXIMADA: observao participante ......................... p.16 1.4 ELDORADO BRASILEIRO: migraes e jornadas................................ p.22 2. APRESENTAO DA PEA .................................................................. p.29 2.1 CONCEPO ....................................................................................... p.29 2.2 EXECUO .......................................................................................... p.32 2.3 FINALIZAO ................................................................................... p. 44 3. CONSIDERAES FINAIS ..................................................................... p.46 4. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................ p.48

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INTRODUO

O presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva, encerra seu segundo mandato no cargo mais importante do Executivo brasileiro a 31 de dezembro de 2010. A trajetria poltica do operrio que chegou ao Palcio do Planalto, no entanto, teve incio muito antes, em cima dos palanques e no cho frio das metalrgicas do ABC paulista. Fenmeno de popularidade na conduo do pas, o cara foi parar nas telas do cinema, talvez por ironia do destino, exatamente no primeiro dia do ano que marcaria sua sada do posto de cidado nmero 1. Naquele primeiro de janeiro, entrou em cartaz em centenas de salas de cinema do pas o filme Lula, o filho do Brasil, do diretor Fbio Barreto, uma obra que narra, de maneira romanceada, a trajetria de um migrante pernambucano que conseguira suplantar as dificuldades e vencer na vida; um sonho de tantos outros iguais, que saem pelo mundo em busca de um futuro melhor, longe da fome e das mazelas do descaso. Luiz Incio da Silva, o Lula, e sua me, Dona Lindu, recriados no drama de Barreto, so representaes dos milhares de migrantes nordestinos que deixaram sua regio de origem em busca de melhores condies de vida, fugindo da violncia familiar; do abandono das autoridades; da fome e da falta de esperana que convivem de forma contgua aqueles viventes e sobreviventes da seca, sem gua e sem comida. O percurso at a cidade grande narrado como uma epopeia de conhecimento e luta, no qual os contatos humanos intensificam-se, criando uma relao de quase irmandade com os outros tantos que seguem na caamba de um pau-de-arara rumo a uma realidade em que no seja preciso depender da boa vontade de governos indiferentes aos interesses dos excludos, ou de favores interessados dos proprietrios e patres, sem nenhuma garantia de melhora em seu futuro. Esse Lula retratado por Barreto o smbolo de um caso raro de crescimento pessoal de um homem que nasceu com o destino traado pela dificuldade, no obstante, conseguiu alcanar suas metas, alando-se ao posto mais alto da poltica nacional. Elevados s raias do misticismo, os dados utilizados na construo da

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imagem em torno do presidente da Repblica desconsideram que a histria de Lula suficientemente bela, e que no preciso flore-la com matizes quase olimpianas. Porm, quantas outras vidas to doloridas ou vitoriosas existem e sequer so recontadas pelos diretores em suas pelculas, mas, sobretudo, pelos jornalistas, caadores vorazes de bons relatos? Sendo assim, quantos brasileiros annimos tm contos to interessantes e elucidativos sobre a realidade poltico-econmica por que passa o pas, no desconsiderando os institutos de pesquisa, mas revelando quando e onde os nmeros transformam-se em seres humanos? No mago das respostas aos questionamentos impera a necessidade, no jornalismo, da produo de uma grande reportagem capaz de explicitar e compreender os relatos dessas pessoas. So esses viventes que do vida aos nmeros e estatsticas, personagens preferidas da imprensa peridica, sobretudo dos informativos dirios, quaisquer que sejam as mdias onde estejam comportados. No entanto, esses mesmos brasileiros tm desconsideradas as suas subjetividades, seus sentimentos, suas percepes e opinies, raramente tratadas como objeto de interesse dos escrevedores de texto. Tolhido por mecanismos quase industriais em seu trabalho, o profissional da informao tornou-se um caador de aspas. A rua, seu territrio preferido, fora solertemente esquecido, perdendo espao para os bancos das redaes, atulhadas de computadores e telefones, os novos grandes apuradores desse fazer notcia interessado em apenas informar primeiro, e no melhor, de maneira aprofundada; um reportar holstico, que abarque todas as vertentes de um acontecimento, por mais efmero e insignificante ele possa parecer. A pesquisa busca entender como o livro-reportagem, tipo de

veculo de comunicao impressa no-peridico que apresenta reportagens em grau de amplitude superior ao tratamento costumeiro nos meios de comunicao jornalstica peridicos (LIMA, 2004, P.26),

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pode elevar o potencial do jornalista a limites jamais vistos, fazendo com que esse homem da informao alcance as motivaes e implicaes mais profundas de determinado fato, atingindo assim um relato carregado de sentido, ultrapassando os limites do tempo presente, por meio de um bem acabado texto, beirando a boa literatura de fico. Esse trabalho justifica-se na tentativa de preencher, como afirma Edvaldo Pereira Lima, o vazio que a imprensa deixa, muitas vezes, por no querer ou no poder mergulhar em profundidade em temas para os quais existe pblico interessado (2004, p.41). Dessa maneira, lastreada nas teorias elaboradas para a estruturao e produo da grande reportagem, por meio do livro-reportagem, alm de conceitos ligados ideia de new journalism, a realizao desse projeto uma busca pelo aprofundamento da prxis jornalstica e um distanciamento do modus operandi da imprensa peridica. Resultado final desse arcabouo terico voltado para a melhoria da atividade do jornalista, que contou com notvel contribuio das pesquisas de Cremilda Medina no campo da anlise dos modos de atuao dos reprteres, Filhos do Brasil, obra com 14 captulos distribudos em 196 pginas, busca narrar outras histrias, localizadas no mesmo contexto espacial presente na biografia do presidente Lula, levando-se em conta os locais e instituies que marcaram a trajetria de Luiz Incio Lula da Silva antes da fundao do Partido dos Trabalhadores. A obra uma clara tentativa de aferir que noo de realidade pode ser construda a partir das nossas vivncias junto s pessoas com experincias semelhantes s do presidente, tomadas em outra poca, mas no mesmo espao, o Brasil de Lula.

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1. REFERENCIAL TERICO

1.1 UMA EXTENSO DA PRXIS JORNALSTICA: o livro-reportagem

O jornalismo peridico composto pelos dados, pela informao oficial, pela nota fria, vestida com a noo de objetividade jornalstica, e despida do humanismo e da subjetividade intrnsecos ao pensamento e s relaes humanas. A sociedade formada por pessoas; os consumidores, os clientes, os objetos do jornalismo dirio. No entanto, essa reportagem impessoal no capaz de explicitar e interpretar o elemento formador da pesquisa, da anlise tcnica, da estatstica, do levantamento divulgado por meio de nmeros; as personagens preferidas do jornalismo dirio. A imprensa comercial peridica pauta seus reprteres pela agenda oficial dos institutos de pesquisa, das agncias do Governo, dos balanos das empresas, no fato dirio desumanizado. No h nesse processo um interesse pelo aprofundamento dos temas, uma vez que, quanto mais rpido uma informao publicada, maior a competio entre as empresas jornalsticas e seus escrevedores de texto para a publicao de novas informaes, carentes de uma apurao mais elaborada, em que outros elementos alm do lead sejam verdadeiramente considerados como parte importante do trabalho noticioso. Dessa forma, como possvel entender o contexto no qual os fatos e acontecimentos surgem e tornam-se notcia, se o processo de elaborao do relato jornalstico cada vez mais superficial e efmero, afastado das mincias que permeiam os dados presentes na velha frmula do qu, como, onde, quando e por qu? Os problemas financeiros so um grande empecilho para a prtica de um jornalismo mais elaborado, com pesquisa e apuraes aprofundadas, o que transforma a prtica da grande reportagem um desafio para poucos.

De fato, os veculos impressos, hoje, no Brasil, encontram-se em crise de identidade e de receita. Dispem de pouqussimo poder de

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fogo para bancar extensa e qualificada equipe de reprteres, voltada prioritariamente para a apurao de boas matrias, salvo excees raras e honrosas. Com edies reduzidas e equipes limitadas, fica difcil abrigar tantos assuntos, ainda mais com qualidade (BELO, 2006, p.14).

Nesse universo de efemeridade e distanciamento informativo do jornalismo comercial, surge o livro-reportagem, com o claro propsito de

informar e orientar em profundidade sobre ocorrncias sociais, episdios factuais, acontecimentos duradouros, situaes, ideias e figuras humanas, de modo que oferea ao leitor um quadro da contemporaneidade capaz de situ-lo diante de suas mltiplas realidades, de lhe mostrar o sentido, o significado do mundo contemporneo (LIMA, 2004, p.39).

Milhares de acontecimentos ocorrem ao mesmo tempo, muitos deles capazes de interferir de forma avassaladora no prprio processo de produo dessa pea jornalstica. Quantos desses eventos considerados comuns e desinteressantes pelos grandes meios passam despercebidos aos nossos olhos e ouvidos? Um simples atropelamento, retirado de seu contexto, torna-se apenas mais um pequeno acidente para a imprensa peridica. No entanto, como fatos corriqueiros nas grandes metrpoles, relegados a ocorrncias de menor importncia, podem indicar as mazelas e doenas da sociedade urbana nas quais esto inseridos? Como ressalta Lima, falta aos veculos informativos peridicos uma fuga do reducionismo mope da atualidade e do aspecto vesgamente mecanicista dos acontecimentos, para encontrar um contexto completo de explicaes da complexa realidade [...] (1998, p.15). Essa limitao temtica e de construo do jornalismo dirio, elementos dos quais buscamos fugir durante a apurao e redao do texto de Filhos do Brasil, est ligada, entre outras caractersticas, relao de extrema proximidade com o tempo presente, a to propalada e idolatrada atualidade, perodo de tempo em que todos os fatos noticiveis ocorrem, segundo os critrios da imprensa convencional

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peridica. Exemplo claro dessa rapidez por que os assuntos entram e saem das esferas de interesse do jornalismo peridico so as coberturas de casos de teor policialesco, tais como a morte da menina Isabella Nardoni, em maro de 2008, atirada do oitavo andar de um prdio em So Paulo, no qual o pai e a madrasta da criana foram acusados pelo crime. poca, toda a imprensa voltou-se para o tema, muito por conta da comoo gerada pelo ocorrido, mas principalmente pela possibilidade de ganhar audincia e informar frente dos concorrentes, em uma procura incessante pela informao de momento, muitas vezes desconexa e sem lgica no contexto do fato em questo. O foco da ao de reprteres e veculos informativos era somar apenas algum novo elemento informao original. Com raras excees, buscou-se uma compreenso do universo familiar e psicolgico em que o assassinato foi cometido; uma tentativa de trazer luz motivaes mais intrnsecas ao todo social no qual esse crime est inserido, e que foras externas atuam sobre ele. Desvirtua esse processo informativo a ausncia de conexo entre o fato da hora e eventos anteriores da mesma natureza. Uma preocupante constatao a de que,

para a imprensa tradicional, esse mergulho no passado trabalho para a histria, no para o jornalismo. Por se recusar muitas vezes a esse resgate do tempo histrico, a reportagem fica mutilada no esforo de trazer explicaes para o presente (LIMA, 1998, p.13).

Esse mergulho de que fala Edvaldo Pereira Lima pode valer-se de recursos ligados a pesquisa jornalstica, as tcnicas mais elaboradas de entrevista, assim como de elementos ligados sociologia e antropologia, formando um conjunto de elementos capazes de revelar e contextualizar as possveis razes para a ocorrncia de determinado fato, aplicados at o limite permitido durante as idas aos locais prestabelecidos e no contato com nossas fontes. Na dcada de 1960, ao escrever A sangue frio, no qual relata o assassinato de quatro integrantes da famlia Clutter, em uma pequena cidade do interior do estado do Kansas, nos Estados Unidos, o jornalista e escritor Truman Capote entra no universo psicolgico dos dois assassinos, entrevistando parentes e amigos dos

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criminosos; pesquisando documentos oficiais; visitando o ambiente onde as mortes foram cometidas, em mais de cinco anos de minuciosa apurao, alcanando as motivaes de um crime to violento, capaz de abalar uma sociedade. O relato de Capote ultrapassa o mero elemento factual, buscando um jornalismo holstico em sua produo, alm de uma abordagem contextualizada e dinmica do real (LIMA, 1998, p.16). Eventos dirios e momentneos so parte integrante fundamental na composio do escopo informativo da imprensa tradicional. Todos querem saber quem venceu o jogo; o que foi dito na sesso do Congresso; qual foi a deciso tomada pela justia; quem o protagonista do novo filme. Porm, h, nesses acontecimentos, dados e matizes capazes de revelar traos do todo social em que esto inseridos os fatos cotidianos, e que os modifica de maneira incessante e, algumas vezes, de forma avassaladora. No obstante, o jornalismo peridico peca na traduo desses fatos como parte integrante de um contexto mais amplo, afastado da simples noo de atualidade; uma falha na construo de um relato informativo calcado em um tipo de tempo mais abrangente, no qual os acontecimentos no perdem a validade no dia ou no minuto seguinte ao que foram publicados, mas que mantm sua fora pela ideia de contemporaneidade,

um conceito muito mais elstico do tempo presente, que transcende o meramente atual para focalizar com grande pertinncia as implicaes, hoje, de eventos que no se deram apenas ontem, mas sim h anos, dcadas [...]. Isso porque a contemporaneidade abrange, muito mais do que meros fatos, tendncias que se formam ao longo do tempo nas mais diversas esferas da vida social, muitas vezes combinando-se e se relacionando nesse desenrolar (LIMA, 1998, p.20).

O livro-reportagem toma para si a misso particular e honrosa de preencher o vazio informativo do jornalismo dirio e/ou peridico, revitalizando-o e dando cor a temas muitas vezes relegados pela grande imprensa, ou tratados de maneira absolutamente superficial. Na busca de um jornalismo capaz de abarcar todas as veredas por que se embrenham determinados eventos, o profissional da notcia, que

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opta pela grande reportagem, tem sua disposio recursos e propostas de estilo raramente vistas e permitidas na imprensa convencional. Alguns desses elementos que integram esse fazer jornalstico mais elaborado, tais como novas possibilidades de construo do texto e tcnicas de captao de informaes inseridas em uma produo jornalstica que busca inspirao na arte para alcanar a mnima compreenso da verdade, foram empregadas por ns na elaborao de Filhos do Brasil, dando forma ideia de contemporaneidade nas histrias sobre os lugares percorridos e pessoas encontradas. O estilo jornalstico conhecido como new journalism; seu corolrio ilimitado de modos de atuao para o reprter, permeou todas as fases de produo da reportagem, produto final desse projeto. Mais elementos desse bem acabado meio de informar so vistos a seguir, evidenciado alguns dos conceitos entronizados na prtica pela dupla.

1.2 FATO E LITERATURA: possibilidades para a narrao jornalstica

O leitor mais atento, ao abrir os jornais pela manh, pode constatar como cada vez mais padronizada a linguagem empregada na elaborao de seus textos e manchetes. O jornalista, tolhido pelas regras e preceitos dos manuais de redao; preso a frmulas e modismos negativos, tem obstculos para a elaborao de um relato mais lastreado e verdadeiramente capaz de informar e contextualizar o leitor ou ouvinte ou telespectador. Pelo contrrio, esse profissional do texto, controlado pelo efeito arrasador da eterna falta de tempo nas redaes dos grandes veculos de comunicao, cada vez mais preocupados com os patrocinadores e financiadores, perde a oportunidade de oferecer um servio de qualidade ao seu cliente, o consumidor de informao. Isso compromete a qualidade do jornalismo produzido nessas organizaes, provocando um aumento exponencial da oferta de relatos compostos apenas pelos dados bsicos de determinado fato, desvirtuado do elemento bsico do jornalismo, a apurao. Segundo Ricardo Noblat, a pressa enraizada no trabalho de reprteres e pauteiros

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a culpada, nas redaes, pelo aniquilamento de muitas verdades, pela quantidade vergonhosa de pequenos e grandes erros que borram as pginas dos jornais e pela superficialidade de textos que desestimulam a reflexo. Apurar bem exige tempo. Escrever bem exige tempo (2007, p.38).

Essa tendncia reduo do processo informativo do jornalismo peridico afasta o leitor/consumidor das possveis implicaes que determinados eventos podem ter em sua rotina. Ao abandonar a lgica de mltiplas causas, variantes e consequncias presentes na notcia, o reprter retira o relato noticioso de um contexto mais amplo, criando um organismo informativo isolado, sem relao com eventos anteriores ao fato em questo, o que reflete de maneira decisiva na qualidade de seu texto, uma vez que, pela falta de espao e com prazo curto, o profissional da notcia se v obrigado a empregar as regras bsicas do lead e da pirmide invertida, enquadrado no paradigma da objetividade jornalstica, uma espcie de

camisa-de-fora para o desempenho profissional dos jornalistas. Na medida em que sua feio determinante passa a ser a economia de palavras, imagens e sons, o trabalho do jornalista burocratiza-se rapidamente (MELO apud LIMA, 2004, p.100, grifo do autor).

Retornamos, assim, ao ponto de partida para a produo de qualquer material de cunho informativo, ligado a qualquer tipo de comunicador social, nesse caso, com maior nfase ao jornalista, diga-se reprter, que deve agir frente ao fato primeiro como a porta de entrada para um universo amplo de outros eventos, inseridos em contextos sociais e culturais amplos, uma vez que

ao lidar com a pauta e constru-la at o ponto de a executar na reportagem, sua cosmoviso ser fundamental. Se agir frente pauta com critrios reducionistas (verdade absoluta, causa e efeito, sujeito e objeto, universo slido, massa indestrutvel, substncia e acidente etc), encaminhar todo o trabalho para provar o que

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antecipadamente j est provado na sua mente (vale dizer, muitas vezes, na concepo das chefias hierrquicas ou empresariais). Se agir de modo complexo, no ter teses (em geral, uma tese) apriorsticas, mas abrir a lente de sua cosmoviso para as mltiplas possibilidades que informa a pauta (MEDINA, 1996, p.220, grifos da autora).

O texto menos trabalhado no consiste em si um tipo de irregularidade jornalstica, no obstante, o uso de um formato ausente de maior apelo estilstico no s provoca um desestmulo leitura, mas compromete o entendimento, e a ligao do fato narrado ao mundo de outras informaes e matizes histrico-sociais no qual est inserido. Essa prtica informativa vida de maior rigor textual o inverso da proposta de elaborao da grande reportagem, na qual a criao do texto liberta-se dos limites impostos pelos manuais de estilo, e leva o jornalista a mltiplas possibilidades. Para Lima, nesse formato que

o jornalismo lapida o brilho do seu potencial-limite, por vezes transcendendo-o, antecipando experincias de ponta que avanam para o territrio do at ento desconhecido, incorporando-o, como conquista inovadora, ao universo em expanso onde gravita a elstica transmutao recicladora do jornalismo (2004, p.143).

Ao longo de todo processo de produo de Filhos do Brasil, notamos quo grande a variedade e riqueza de informaes presentes em eventos corriqueiros. Das conversas durante a viagem entre Garanhuns e So Paulo, ao caminhar atento pelas vielas da Vila Carioca, constatou-se a infinidade de possibilidades para o bom jornalista, aberto a apreender bem mais do que os elementos do lead, de engendrar um relato de grande rigor informativo, enriquecido por um trato mais artstico do texto. Essa liberdade temtica e de produo, comprovada pelo trabalho do grupo ao longo de toda captao de informaes e tessitura do material final, faz com que as grandes reportagens, por meio do livro-reportagem, cheguem, muitas vezes, s

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raias da boa literatura. Essa opo pelo uso da palavra trabalhada permite ao jornalista/autor empregar sua marca no texto, revelando as subjetividades presentes ao longo da apurao, no contato com as fontes e na descrio dos ambientes. A narrao das percepes e dados levantados pelo jornalista por meio do texto, permeado este por elementos literrios, permite maior absoro da mensagem, de maneira clara e elucidativa do evento exposto, isso porque

reportagem e literatura pertencem ao gnero das narrativas e podem se imbricar num mesmo texto. Numa reportagem, esse entrecruzamento pode favorecer a melhor captao dos fatos, mostrando-os de forma mais integral. Quebra-se nesses momentos o mito da objetividade que pauta o texto jornalstico tradicional (ABDALA JUNIOR apud DANTAS, 1998).

No obstante, a grande diferenciao entre o jornalismo convencional e o praticado por meio da produo de um livro reportagem no est apenas na qualidade textual apresentado ao final do trabalho de elaborao. Tcnicas mais elaboradas de apurao e captao de informaes so fundamentais, pois permitem ao jornalista revelar traos imperceptveis dos fatos e personagens narrados, suas caractersticas psicolgicas mais profundas; dados fundamentais para uma prtica mais elaborada do fazer notcia. Algumas delas, discutidas em seu mago a seguir, foram constantemente utilizadas por ns ao longo desse trabalho.

1.3 APURAO APROXIMADA: observao participante, pesquisa jornalstica e tcnicas de entrevista

A elaborao do livro-reportagem e a liberdade de atuao e posicionamento diante de fontes, lugares, eventos e fatos, permitem ao autor/jornalista utilizar diferentes tcnicas de captao de informaes. O trabalho de apurao faz uso de mtodos aprofundados e elaborados de investigao, com recursos retirados inclusive da antropologia, permitindo uma maior insero no contexto em que esto localizados fatos e personagens.

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As Cincias Sociais e seus mtodos de pesquisa emprestam importantes elementos ao fazer jornalstico, sobretudo para a produo do livro-reportagem, tais como o recurso da observao participante, tcnica que

pressupe a integrao do investigador ao grupo investigado, ou seja, o pesquisador deixa de ser um observador externo dos acontecimentos e passa a fazer parte ativa deles. Esse tipo de coleta de dados muitas vezes leva o pesquisador a adotar temporariamente um estilo de vida que prprio do grupo que est sendo pesquisado (BONI; QUARESMA, 2005, p.71).

O mtodo permite uma relao de extrema proximidade entre jornalista e fonte ou evento a ser apurado, propiciando um relato minimamente viciado pela interferncia do autor, na medida em que se busca respeitar ao mximo a cultura e a linguagem dos personagens sobre os quais se quer trabalhar (LIMA, 1998, p.38). Esse conceito refora a necessidade de uma apurao mais acurada, ligada ideia de contato direto entre reprter com fato, personagem e todos os sujeitos, humanos ou no, dessa narrativa. Evidenciado sobremaneira na descrio do processo de apurao da pea e mediante a leitura atenta do livro, o mtodo ganha fora uma vez que o

alargamento de perspectiva da pauta deve corresponder abrangncia da observao participante do mediador social (nesse caso, o jornalista). A observao do reprter no pode ser o resultado de espontanesmo, inspirao divina ou ingenuidade ideolgica (MEDINA, 1996, p.220, online, grifo nosso).

Ainda de acordo com Medina,

o que se torna imperativo deixar abrir os poros e se deixar embeber de um tnus participativo, ao contrrio dos que pregam os arautos da fria objetividade. Com isso, no quero dizer que um emocional e desgovernado reprter saia a fazer na reportagem poltica, ou pratique a prostituio para desenvolver uma matria sobre a vida

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das prostitutas. [...] Observao participante , pois, uma abertura para a compreenso destes comportamentos (1996, p.221).

Juntamente aplicao do conceito de observao participante, essa fuga do conservadorismo e reducionismo do jornalismo peridico, empregada no processo de elaborao do livro-reportagem, tal qual visto em Filhos do Brasil, deve se fundamentar em diversos nveis de trabalho e diferentes tcnicas; meios mais verticais na captao da informao, relacionadas ao fazer jornalstico. O ponto de partida para a produo dessa grande reportagem, assim como de qualquer outro processo de interao social com objetivo primeiro de comunicar, uma aprofundada pesquisa bibliogrfica,

uma vez que a reportagem de profundidade exige um bom trabalho de documentao, isto , de estabelecimento de relaes entre fatos isolados e situaes globais, de interpretao dos significados da contemporaneidade para o leitor (LIMA, 2004, p.88).

No h uma boa reportagem sem fundamentao terica; desligada de pesquisa bibliogrfica e documental. O acmulo de conhecimentos e informaes, por meio de cuidadosa e criteriosa pesquisa anterior ao ato de apurao, imprescindvel para a realizao de um trabalho jornalstico realmente eficiente. Por conseguinte, a atuao bem fundamentada do reprter beira, na busca por um real sentido da notcia calcado na contemporaneidade, o trabalho do pesquisador, que no pode desprezar o conhecimento elaborado pela intelectualidade humana apenas pelo empirismo, caracterstico do bom exerccio do jornalismo. Apesar dessa constatao, Maria Margarida de Andrade aponta para essa defasagem no trabalho de pesquisa prvia, e expe a importncia dessa etapa na produo jornalstica, uma vez que

apesar de todo o avano tecnolgico, observado na rea de comunicaes, principalmente audiovisuais, nos ltimos tempos,

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ainda , fundamentalmente, atravs da leitura que se realiza o processo de transmisso, aquisio da cultura ( 2003. p. 17).

Pesquisa e observao participante so elementos do currculo elementar do bom reprter, e foram muito utilizados no contexto do new journalism, modelo de produo noticiosa que teve seu pice em meados da dcada de 1960, nos Estados Unidos, e definido por Gay Talese, um dos maiores expoentes dessa corrente, como um fazer noticioso

to verdico como a mais exata das reportagens, buscando, embora, uma verdade mais ampla que a possvel atravs de meras compilaes de fatos comprovveis, do uso de citaes diretas e da adeso ao estilo rgido mais antigo. O Novo Jornalismo permite, na verdade, exige, uma abordagem mais imaginativa da reportagem e consente que o escritor se intrometa na narrativa se o desejar, conforme acontece com frequncia, ou que assuma o papel de observador imparcial[...] ( 1973 apud DANTAS, 1998, p.157).

Mais conhecido pela nomenclatura em ingls, o new journalism agrega em seus quadros autores e tericos como Tom Wolfe, Gay Talese, Truman Capote, Norman Mailer, John Hersey, Joseph Mitchell, entre outros. Esse tipo mais bem acabado do que hoje se denomina jornalismo literrio, tem entre seus mais destacados representantes no Brasil as figuras de Joel Silveira, Marcos Faerman, Ricardo Kotscho, Audlio Dantas, Fernando Morais, personalidades mpares desse fazer notcia mais elaborado, que oferece ao caador de boas histrias e estrias uma gama de possibilidades de melhoria no trato da informao, por conter noes que vo alm da observao participante, conceito tratado anteriormente, mas tambm um tipo de linguagem mais elaborada, permitindo a exposio de fatos de maneira aproximada ao bom romance de fico realista. Em grande monta, mais notadamente nos autores norte-americanos, esse modelo moderno de jornalismo buscou clara inspirao na literatura desenvolvida no final do sculo XIX, e por quase todo sculo XX, com especial destaque para a obra de Balzac, representante maior do realismo francs. Essa maneira romanceada e

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quase ficcional de apresentar a notcia ao pblico revela-se no grande trunfo de tal prxis jornalstica, raramente encontrada na grande mdia peridica. A guinada esttica promovida por esse novo jeito de informar eleva o jornalismo a outra categoria, libertando-o das amarras do corolrio de tcnicas das redaes e seus guias de como escrever. Tal movimento pode ser percebido, e apreciado, no seguinte excerto da reportagem A milsima segunda noite da Avenida Paulista, de Joel Silveira:

A mais bela festa do Brasil no foi, contudo, apenas espetculo. Mais do que isso, foi uma sucesso de espetculos e acontecimentos mundanos. Nenhum paulista poder esquecer aquela semana, um desfilar ininterrupto de recepes, jantares, ceias, bailes e festas. O Jequiti e o Roof foram tomados de assalto, o Esplanada viveu seus dias mais intensos e brilhantes, nunca havia lugar para ns (falo dos mortais comuns) no Papote ou no Spadoni. Era, a bem dizer, o congresso da gr-fineza nacional, antes to dispersa nos seus movimentos e que, agora, atrada pela fora magntica do conde Matarazzo, se confundia num bloco interestadual, poderoso e aurifulgente. Os prprios cronistas sociais se acharam numa trapalhada louca para identificar os granfas, me informou um rapaz paulista, e eu mesmo tive ocasio de ver, numa das fases preparatrias do casrio, o lapsinho nervoso sobre o caderno de notas, no meio da complicada floresta de elegncia (2003, p.31, grifos do autor).

Para finalizar os elementos bsicos da apurao, imprescindvel tratar da tcnica mais conhecida de captao de informaes no ato da produo jornalstica, a entrevista. Levando em considerao a definio de entrevista como um processo de interao social entre duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a obteno de informaes por parte do outro, o entrevistado (HAGUETTE apud BONI; QUARESMA, 2005, p. 72), a discusso que permeou todo esse trabalho residiu no seguinte ponto: como conseguir extrair informaes relevantes ou histrias interessantes por meio dessas inmeras entrevistas? Segundo Medina, em casos como esse, nos quais a reportagem flerta com os aspectos psicolgicos dos personagens a serem narrados, a entrevista jornalstica torna-se muito mais um dilogo, mais precisamente uma conversa aberta, revelando nossa inteno de trabalhar esse dispositivo jornalstico em prol da comunicao humana, uma vez que

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a entrevista pode ser apenas uma eficaz tcnica para obter respostas pr-pautadas por um questionrio. Mas certamente no ser um brao da comunicao humana, se encarada como simples tcnica. Esta fria nas relaes entrevistado-entrevistador no atinge os limites possveis da inter-relao, ou, em outras palavras, do dilogo (MEDINA, 2008. p. 5, grifo do autor).

Medina denomina essa tcnica jornalstica de dilogo possvel; a aproximao com a fonte, esse lao criado pela pessoalidade importante no processo da busca pelo aprofundamento da pauta. O sair s ruas, parte fundamental na produo de Filhos do Brasil, d importante subsdio ao iderio de Medina. Os contatos entre reprter e fonte, afastados dos recursos industriais da produo da notcia, atuam como fator aproximador; uma ferramenta para que a entrevista/conversa/dilogo no se torne um processo tomado pela tenso, mas uma espcie de relato pessoal aproximado, possibilitado pelo contato entre reprter e entrevistado/personagem. Constatao bsica,

a entrevista como instrumento de relao pode se esgotar na objetividade de perguntas feitas e respostas empossadas, ou pode ingressar na aventura da subjetividade, um processo de interao social criadora. Este, o horizonte em que venho me exercitando, por ser um processo cuja riqueza justifica todas as mazelas do cotidiano profissional. [...] Numa frtil osmose, ambos se modificam, o eu sabe um pouco mais do outro, o eu se ilumina nas diferentes faces do outro (MEDINA, 1996, p.223, grifos da autora).

Por conseguinte a essa humanizao da abordagem, abandonada a mecanizao do processo, e calcados em um espectro horizontal pela busca de saberes prvios, povo e personagem certamente se enlaaro e ento, ao descobrirmos isto nas pginas literrias, ns, jornalistas, ficamos mais preparados para a viagem. (MEDINA, 1996, p. 224) Utilizando recursos das tcnicas expostas at aqui, atuamos ao longo de seis meses de produo direta do livro-reportagem buscando compreender e revelar com

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maior riqueza de detalhes as histrias, as sensaes e sentimentos de nossos entrevistados; muitos mais amigos e companheiros, pois

[...] no h como retratar a realidade seno com cor, vivacidade, presena. Isto , com mergulho e envolvimento total nos prprios acontecimentos e situaes; os jornalistas tentando viver, na pele, as circunstncias e o clima inerente ao ambiente de seus personagens (WOLFE apud LIMA, 2004, p. 122).

O resultado da soma de todos esses elementos pr-textuais s etapas de seleo do material formam o contedo do livro-reportagem Filhos do Brasil, uma produo de cunho notoriamente autoral; no pense aqui em um relato simplesmente floreado, mas desvirtuado de sentido para o embelezamento do texto. Ao final do trabalho, permeado pelas emoes da apurao e dos contatos humanos, procuramos desvelar quem so, o que sentem e que ocorrncias e matizes da nossa sociedade ganham forma nas experincias das personagens.

1.4 ELDORADO BRASILEIRO: elementos para um roteiro do livro-reportagem

A elaborao de Filhos do Brasil seguiu um roteiro geogrfico delimitado, como explicitado previamente na introduo deste relatrio, a partir da histria de vida do presidente Luiz Incio Lula da Silva, desde seu nascimento at sua participao nos movimentos sindicais do ABC paulista, nesse caso, com maior destaque para a segunda metade dos anos 1970, antes mesmo da fundao do Partido dos Trabalhadores. Como mencionado anteriormente, a pea jornalstica teve como mote inicial, espcie de estalo de conscincia, o lanamento do filme Lula, o filho do Brasil, no primeiro dia de 2010, no qual retratado o percurso de Lula como migrante nordestino, oriundo do serto de Pernambuco, entre outras passagens importantes na vida desse homem. Com o claro objetivo de narrar histrias semelhantes s vividas pelo protagonista via livro-reportagem; uma tentativa de elaborar um

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panorama da sociedade brasileira atual a partir dos relatos descobertos ao longo do ambiente geogrfico presente em parte da trajetria do presidente Lula, faz-se necessrio demonstrar alguns elementos de ligao entre os eventos vividos pelo presidente e seus entremeios, e as rotinas e vivncias das pessoas encontradas ao longo da apurao, uma vez que a histria de Lula semelhante, em muitos momentos e pontos, vida de milhes de brasileiros que deixaram seus Estados de origem rumo ao Sudeste do pas, fugindo das adversidades por que passavam em suas regies. Antes, porm, carece apresentar uma parte da prpria biografia do presidente do Brasil, disponibilizada pelo Governo Federal, que de forma fria, mostra como se deu essa etapa da vida do dono do maior cargo poltico do pas.

Luiz Incio Lula da Silva nasceu em 27 de outubro de 1945, na cidade de Garanhuns, interior de Pernambuco. Casado com Marisa Letcia, desde 1974, tem cinco filhos. Lula, por sua vez, o stimo dos oito filhos de Aristides Incio da Silva e Eurdice Ferreira de Mello. Em dezembro de 1952, a famlia de Lula migrou para o litoral paulista, viajando 13 dias num caminho "pau de arara". Foi morar em Vicente de Carvalho, bairro pobre do Guaruj. Foi alfabetizado no Grupo Escolar Marclio Dias. Em 1956, a famlia mudou-se para So Paulo, passando a morar num nico cmodo, nos fundos de um bar, no bairro de Ipiranga. Aos 12 anos de idade, Lula conseguiu seu primeiro emprego numa tinturaria. Tambm foi engraxate e office-boy. Com 14 anos, comeou a trabalhar nos Armazns Gerais Columbia, onde teve a Carteira de Trabalho assinada pela primeira vez. Lula transferiu-se depois para a Fbrica de Parafusos Marte e obteve uma vaga no curso de torneiro mecnico do Senai - Servio Nacional de Aprendizagem Indstrial. O curso durou 3 anos e Lula tornou-se metalrgico. A crise aps o golpe militar de 1964 levou Lula a mudar de emprego, passando por vrias fbricas, at ingressar nas Indstrias Villares, uma das principais metalrgicas do pas, localizada em So Bernardo do Campo, no ABC paulista. Trabalhando na Villares, Lula comeou a ter contato com o movimento sindical, por intermdio de seu irmo Jos Ferreira da Silva, mais conhecido por Frei Chico. Em 1969, o Sindicato dos Metalrgicos de So Bernardo do Campo e Diadema fez eleio para escolher uma nova diretoria e Lula foi eleito suplente. Na eleio seguinte, em 1972, tornou-se primeiro-secretrio. Em 1975, foi eleito presidente do sindicato com 92 por cento dos votos, passando a representar 100 mil trabalhadores.

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Lula deu ento uma nova direo ao movimento sindical brasileiro. Em 78, Lula foi reeleito presidente do sindicato e, aps 10 anos sem greves operrias, ocorreram no pas as primeiras paralisaes. Em maro de 79, 170 mil metalrgicos pararam o ABC paulista. A represso policial ao movimento grevista e a quase inexistncia de polticos que representassem os interesses dos trabalhadores no Congresso Nacional fez com que Lula pensasse pela primeira vez em criar um Partido dos [...] (BRASIL, 2006, online).

No excerto breve e formal, o primeiro grande entrevero ao pequeno Lula foi a viagem entre Pernambuco e So Paulo; trajetria igual a de milhares de outros conterrneos do presidente, que deixaram o Nordeste e seguiram para as regies metropolitanas do Sudeste do pas, onde formariam e formam contingente expressivo das sociedades urbanas, mais notadamente na capital paulista e entornos. A biografia oficial esquiva-se, porm, de episdios no to grandiosos para a histria do pas, mas que deixaram cicatrizes, muitas delas literais, na vida do presidente. Exemplos fortes e necessrios ao bom entendimento das razes para as mudanas de rumo decididas ao longo dos anos so a violncia e o abandono da figura paterna durante a infncia e adolescncia; as dificuldades enfrentadas no acesso bsico ao direito elementar educao e melhores condies de moradia. A trajetria do presidente Lula repleta de fatos dessa natureza, sendo que um deles pode ser visto e vivenciado, devido qualidade do texto, nas palavras de Audlio Dantas, ao descrever uma passagem da convivncia do menino Lula com o pai, Aristides Ferreira da Silva:

Certa vez, alm do costumeiro jornal embaixo do brao, Aristides chegou em casa com um pacote diferente, que foi logo desembrulhado. Era uma caixa cheia de picols. Tinha picol de todas as cores, a meninada ficou encantada. Nesse dia, os meio-irmos mais velhos de Lula, o Beto e o Rubens, estavam na casa de D.Lindu. Foi para eles que Aristides primeiro deu sorvete. Um picol vermelho, outro amarelo. Lula seguia com os olhos os movimentos do pai. Nunca tinha visto sorvete na vida, aguardava, ansioso e salivando, que chegasse a sua hora. Os outros irmos, um a um, foram recebendo os seus

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picols. At que, finalmente, o pai lhe estendeu um picol verde. Mas recuou, recolhendo o sorvete: - No vou te dar sorvete, no. Voc no sabe chupar. A mo do menino ficou parada no ar. E o choro, sufocado na garganta (DANTAS, 2009, p.77).

Esses pequenos recortes de realidade revelam a crueza das relaes familiares e como eventos considerados passageiros so capazes de moldar personalidades, deixando marcas profundas no imaginrio dos que passam por tais situaes. Quando trazidos tona, esses episdios so capazes de esclarecer as motivaes por trs das grandes aventuras e projetos da vida de cada indivduo. Isso posto, o fenmeno da migrao nordestina revela a clara busca por uma soluo contra a precariedade das condies de vida em sua regio de origem, marcadas pela ausncia do poder pblico; por formas de controle poltico arcaicas e abusivas para com os alijados dos benefcios auferidos pelo dinheiro, escasso para a maioria; pelas condies precrias de sade, habitao e educao, responsveis pela marginalizao e esquecimento de milhes de brasileiros. Apesar da migrao interna de grande vulto ser um marco contemporneo na nossa sociedade, a propaganda em torno do eldorado brasileiro mais antiga. Ao retornarmos na histria do Brasil, deparamos com casos de imigrantes europeus que vieram ao pas com aspiraes de encontrar um novo mundo, repleto de oportunidades e, principalmente, terras fartas. A mesma ideia se aplica ao migrante nordestino, que aspirava um lugar no qual a fome no era uma constante; na qual as autoridades trabalham em prol de seus representados, e no de interesse escusos; na qual o bem-estar no seja apenas uma ideia vaga e sem o menor fundamento em um futuro prximo. O boom da migrao nordestina no Brasil ocorreu h poucas dcadas, como explica a professora Rosana Baeninger, da UNICAMP, j que,

embora os movimentos migratrios rural-urbano fossem a principal fora redistributiva da populao, principalmente nos anos 50 e 60, o panorama dos movimentos migratrios no Brasil foi se ampliando a partir de ento, [...] com a migrao rural urbana em direo s grandes cidades do Sudeste, particularmente para a Regio Metropolitana de So Paulo (2002, p. 2, online).

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Hoje, no entanto, a figura do migrante parte integrante no contexto das cidades. Apesar disso, houve uma espcie de acomodao quando se aborda a fragilidade socioeconmica com a qual esse cidado convive. A situao das grandes metrpoles, desenvolvidas sob a lupa do crescimento desordenado, muitas vezes bastante desanimadora ao migrante. Esses cidados encontram obstculos para sobreviver s mazelas da sociedade urbana do centro-sul do pas, em um convvio muito prximo com o desemprego, a marginalizao urbana e social, preconceitos internos, relegados prpria sorte, dado que pode ser constatado na biografia do presidente Lula, assim como nas de milhes de annimos espalhados pelas metrpoles; pelos caminhos incompletos entre nordeste e sudeste, quando no retornaram, marcados pela desesperana. Ligado temtica da migrao, estudo recente do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea) traz um detalhamento aprofundado do movimento migratrio brasileiro. Lastreado nas pesquisas feitas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), o trabalho do Ipea revela ainda que,muitos migrantes voltam. Outros mantm comunicaes por palavras com parentes, amigos e familiares. H ainda os que estendem essas comunicaes ou as reduzem ao envio de recursos econmicos, silncio motivado pelo sofrimento das saudades, pela vergonha, pelo orgulho duro das atividades e das situaes de vida experimentadas, pela expectativa de reencontro. Em todo caso, o migrante nem sempre um sem lugar, inclassificvel. Ele ocupa posies no mundo do trabalho; objeto de especulaes como nordestino, nortista, paraba, feito para trabalhar na construo civil como pedreiro ou ajudante de pedreiro; ou simplesmente suscita, como nos designativos citados, reaes de rejeio e preconceito (IPEA, 2010, p.3, online, grifos dos autores).

O contexto desafiador ao migrante, muitas vezes, transforma seus sonhos de eldorado em uma realidade de marginalizao, mas tambm enseja um caminho de vitria e conquista. Na regio litornea do estado de So Paulo, a estrutura social imposta a essas pessoas no diferente. Quem conhece as ricas cidades da baixada santista, cujo melhor exemplo no contexto deste trabalho o Guaruj, pode falar com propriedade sobre a clara distino entre as reas atulhadas por pessoas

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de maior poder aquisitivo e aquelas onde vivem os marginalizados das benesses propiciadas pelos nqueis inesgotveis. As favelas, localizadas na periferia do municpio, e a regio porturia so as regies mais pobres da cidade. O distrito de Vicente de Carvalho, antigo Itapema, onde Lula viveu quando criana, simboliza essa distino. A elaborao do livro-reportagem remete ainda s cidades de So Paulo e So Bernardo do Campo, onde o presidente desempenhou papel revolucionrio a frente do movimento sindical. Em So Paulo, vide biografia, Lula morou num pequeno distrito industrial do Ipiranga e formou-se no curso de torneiro mecnico do Senai; duas fases e locais absolutamente interessantes para a procura de novas histrias, conforme descrito a seguir neste relatrio. J o perodo no qual Luiz Incio Lula da Silva integrou o Sindicato , reconhecidamente, tido como uma reviravolta no papel do sindicalismo no Brasil e uma afronta aos mandos do regime militar vigente na poca.

Na dcada de 70, mais precisamente partir de 1978, a classe operria e o Sindicato dos Metalrgicos de So Bernardo do Campo e Diadema deram provas de que um movimento unificado, consciente e, mais do que isso, com a classe operria realmente envolvida em todas as etapas de manifestao, poderia ser capaz de abalar as estruturas da ditadura militar e denunciar seus pilares constitutivos. (SCOLESO, 2008. p. 2, online)

O vagalho operrio insurgente contra os ditames do regime ditatorial, principalmente na regio do ABC nas dcadas de 1970 e 1980, ficou para trs. Atualmente, as lutas promovidas pelo Sindicato dos Metalrgicos no mais so tratadas como caso de polcia. Novas frentes de discusso e de reivindicao surgem e exigem renovados meios de deliberao, permeados sempre pelo dilogo aberto e franco entre patres e empregados. Esse momento de calmaria do movimento sindical, abordado em Filhos do Brasil, merece estudos sociolgicos aprofundados e de elevado rigor metodolgico. No funo deste trabalho faz-lo, mas reascender a discusso sobre o tema e suas implicaes nas vidas das pessoas, direta ou indiretamente envolvidas. Os locais e processos mencionados compem os ambientes narrativos da pea. Cada processo e fundamento descrito estiveram presentes em todas as

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etapas de produo do livro, tornando-o algo lastreado no que concerne teoria do jornalismo e da comunicao; uma obra capaz de informar e emocionar ao mesmo tempo, alm de enriquecer o espectro de conhecimentos do leitor sobre o Brasil, alguns de seus lugares e personagens. vital assinalar, por fim, que cada ideia e anlise trazida neste referencial foram comparadas ao processo de apurao, escrita e edio do livro, a fim de dar uma slida base emprica aos conceitos aqui expostos.

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2. APRESENTAO DA PEA

2.1 CONCEPO

O ponto de partida para a produo do livro-reportagem Filhos do Brasil foi a escolha de seu tema, antes mesmo do formato. O atual presidente do Brasil, Luiz Incio Lula da Silva, uma figura fundamental na trajetria do pas de sua infncia humilde e sofrida em Pernambuco ao passado como metalrgico; da formao de sua personalidade ao fenmeno de popularidade no exerccio do cargo mais alto da poltica brasileira. A preferncia pela histria do presidente, apesar de tentadora por sua dramaticidade, no nos seduziu a ponto de optarmos pela elaborao de uma nova biografia. Ficou estabelecido a partir das orientaes que os relatos j existentes sobre a vida e trajetria da figura do presidente Lula serviriam como motivao inicial e roteiro para buscarmos outras pessoas, em outra poca, mas que vivem onde Lula vivera h algumas dcadas. A partir disso, narraramos as experincias e contos dessas personagens e os nossos pontos de vista ante tais histrias e vivncias; uma tentativa de traar um perfil mais aprofundado possvel dos lugares e relatar os cotidianos dessas pessoas, buscando compreender, pelo menos em parte, como o Brasil e quem so os brasileiros de hoje. Um fator determinante e inspirador na definio do tema a ser abordado no trabalho foi o lanamento da obra cinematogrfica, a qual no nos cabe julgar sua qualidade tcnica, de Fbio Barreto, intitulada Lula O filho do Brasil, baseado no livro homnimo de Denise Paran. O ttulo de nosso livro faz clara aluso ao filme e ao livro, mas com uma abordagem completamente distinta, uma vez que contamos histrias de outros filhos do Brasil, to filhos dessa terra quanto Lula, no entanto, que seguiram e seguem caminhos que podem ou no levar Presidncia da Repblica. Isto decidido, a dvida ficou por conta do formato. Em principio, a ideia era criar, como pea jornalstica, um vdeo-documentrio. Esse tipo de mdia consegue mexer com o emocional dos telespectadores, o que nos apontaria para um caminho de tons dramticos e forte apelo imagtico. Entretanto, um vdeo de 21 minutos

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apenas no conseguiria abarcar todo o material possvel a ser descoberto em relao ao tema proposto. No desconsiderando o potencial informativo desse formato, no obstante ele seria insuficiente para as histrias que pretendamos contar, diferente do livro-reportagem, meio definido aps as deliberaes, no qual tivemos a oportunidade de expor muitas de nossas impresses e vivncias, aliandoas aos registros fotogrficos colhidos durante o processo de apurao, capazes de explicitar a riqueza cultural e geogrfica dos locais visitados. Para a melhor compreenso dos fundamentos de uma prxis jornalstica mais aprofundada, mote norteador de todo processo de elaborao do livro-reportagem, buscamos apoio terico nas pesquisas de Edvaldo Pereira Lima, fonte fundamental para a anlise e produo dessa mdia no escopo dos estudos de comunicao no pas. A linha tnue entre o jornalismo e a literatura era um campo interessante a ser explorado; no se desconsidera a noo do fato como ponto de partida para a elaborao do relato noticioso, no entanto, cai por terra a ideia da pirmide invertida, do obtuso jornal dirio, da notcia como produto de um processo quase industrial. Em seu lugar, tcnicas literrias como a construo cena a cena, o discurso direto e a acurada descrio dos acontecimentos e personagens do ao jornalismo um aspecto mais humano e aproximado ao leitor. Outra importante contribuio terica para a concepo da pea e, sobretudo, do trabalho de apurao e pesquisa, foi a obra de Cremilda Medina, na qual so apresentados novos caminhos para uma melhoria do comportamento de reprteres, alm de apresentar modos de escrever capazes de aproximar leitor, jornalista e personagem, conceito esse definido como narrativa da contemporaneidade. Em sua obra, Medina faz uso desses mecanismos humanizados de apurao, alcanando um bem acabado relato, carregado de sentido e emoo; uma nova maneira de se fazer notcia, descolada da prxis jornalstica habitual, tolhida pelos fatores limitadores da imprensa peridica. As chamadas narrativas da contemporaneidade foram descritas pela autora como relatos impregnados de polissemia e polifonia; personagens capazes de revelar mltiplos sentidos da realidade por meio das mincias presentes em suas vidas e no mago de seu universo psicolgico. Tal tcnica foi aplicada, segundo o planejamento prvio da apurao, na busca de informaes sobre os assuntos mais

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importantes abordados durante a fase de captao de dados e realizao das entrevistas. Estabelecidos o tema e as maneiras de abordagem dos futuros personagens e fontes, definimos os lugares a serem percorridos e sentidos. Levando-se em conta os critrios ligados ao conceito de observao participante expostos no referencial terico, seria impossvel realizar uma reportagem de tamanho flego apenas com o uso do telefone e e-mails, itens comuns aos dirios e s grandes redaes, mas inviabilizadores de uma apreenso e compreenso aprofundadas das pautas estabelecidas. Imperava a necessidade de ir at os lugares mais destacados e marcantes na histria do presidente Lula. A constatao bsica provocou uma mudana de rumo na escolha do material que compe o escopo informativo do trabalho. Com a profuso de localidades existentes em todos os relatos referentes trajetria de Luiz Incio Lula da Silva, sobretudo aps o processo de redemocratizao do pas, era impossvel, em decorrncia do tempo exguo, percorrer todos. Dessa forma, delimitamos o espao de abordagem s cidades e instituies presentes na vida de Lula at o final da dcada de 1970, antes inclusive da fundao do Partido dos Trabalhadores. So eles Garanhuns e Caets, em Pernambuco, onde Lula nasceu; Vicente de Carvalho, distrito do municpio paulista do Guaruj, local onde o presidente viveu quando criana; a unidade Roberto Simonsen do Senai (Sistema Nacional de Aprendizagem Industrial), no qual concluiu o curso de torneiro mecnico, e o bairro da Vila Carioca, em que vivia com a me e os irmos, ambos em So Paulo; e o Sindicato dos Metalrgicos do ABC, em So Bernardo do Campo, onde deu incio vida pblica. Somaram-se a essas etapas os relatos colhidos ao longo da viagem entre o agreste pernambucano, onde est localizada Garanhuns, e So Paulo, realizada de nibus, meio mais adequado para simularmos a viagem realizada por Lula, ainda menino, em 1952. O ambiente da reportagem foi ser percorrido, na medida do possvel, em consonncia com a cronologia dos acontecimentos presente na biografia de Luiz Incio Lula da Silva, formando assim trs macro ambientes ou fases: Nordeste, viagem, So Paulo. Nesses espaos fsicos foram encontradas as personagens que do forma e vida a Filhos do Brasil. No entanto, excetuando os contatos prvios com

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o pessoal da administrao pblica de Garanhuns; uma primeira sondagem sobre a possibilidade de entrevistarmos os principais secretrios, realizada ainda em So Paulo, todas as outras fontes foram descobertas ao longo das estadas nos referidos locais. Essa declarada necessidade da nossa presena fsica nos lugares estabelecidos pode ser explicada, como visto anteriormente no referencial terico, como uma busca, nas mais variadas frentes, pelo modus operandi do Novo Jornalismo, tipo mais bem acabado de reportar surgido na dcada de 1960 nos Estados Unidos. Tom Wolfe, ao analisar a conduta dos homens do texto que se embrenhavam nessa maneira aprofundada de fazer notcia, traz um fundamental subsdio ao pretendido por ns na elaborao desse trabalho. Segundo Wolfe,

parecia absolutamente importante estar ali quando ocorressem cenas dramticas, para captar o dilogo, os gestos, as expresses faciais, os detalhes do ambiente. A ideia era dar a descrio objetiva completa, mais alguma coisa que os leitores sempre tiveram de procurar em romances e contos: especificamente, a vida objetiva ou emocional dos personagens (WOLFE, 2005, p.37, grifo do autor).

2.2 EXECUO

A fase de apurao propriamente dita teve incio na segunda semana de junho de 2010, com a ida da dupla para Garanhuns, cidade no agreste meridional de Pernambuco. Nossa estada na regio durou quase cinco dias, tempo considerado razovel para um significativo processo de apreenso das informaes relacionadas ao cotidiano dos moradores do lugar no perodo. Isso posto, j desde a chegada ao aeroporto de Macei, em Alagoas, terminal mais prximo ao destino final da primeira etapa de captao, foi entronizado em nosso modo de atuao o que definimos como elemento mais importante a ser seguido durante todo o tempo de realizao das entrevistas e das idas aos lugares pr-estabelecidos no projeto inicial do livro: a observao participante.

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Segundo Boni e Quaresma, a tcnica citada anteriormente exige dos reprteres uma espcie de entrega, de adoo dos costumes das populaes e sociedades locais (2005, online); uma tentativa de absorver o mximo de informao possvel sobre personagens e locais percorridos para se transmitir ao leitor um relato minimamente viciado pela interferncia dos autores (LIMA, 1998). Como bem traduz Medina, o que se torna imperativo deixar abrir os poros e se deixar embeber de um tnus participativo, ao contrrio dos que pregam os arautos da fria objetividade (1996, p.221). Sabedores de como se posicionar diante do que viria pela frente, cada evento, por mais desinteressante que pudesse parecer, foi abordado como algo capaz de revelar um aspecto fundamental das pessoas, grupos e entidades existentes nos locais visitados. Para isso, as anotaes descritivas de lugares, aes, vises, conversas e sensaes tornaram-se ferramenta bsica, assim como o incessante trabalho de captao de imagens, no apenas para ilustrao da futura obra, mas tambm como um registro fundamental para a redao da pea. Tomados por esse esprito de imerso na cultura local, cada interlocutor tornava-se imediatamente uma fonte, vide o captulo inicial de Filhos do Brasil, Primeira jornada, quando narramos a passagem referente ao taxista que nos levou do aeroporto da capital alagoana at a rodoviria local. O homem traa um breve perfil da cidade, revelando aspectos importantes do dia-a-dia de seu ofcio e como o problema do aumento do consumo do crack pelos jovens maceioenses o afligia em sua jornada nas ruas e avenidas. A mesma conversa serviu para que o sujeito nos contasse sua verso para a ocorrncia das enchentes em Alagoas e Pernambuco semanas antes, quando dezenas de pessoas morreram e cidades inteiras foram arrasadas pela fora das guas. Os dias que antecederam nossa chegada ao Nordeste foram marcados por uma grande cobertura da mdia nacional da catstrofe das cheias nos dois Estados vizinhos. Algumas das cidades mais afetadas, como Unio dos Palmares e Branquinha, em Alagoas, ficavam na rota at Garanhuns, cujo percurso foi feito de nibus. As impresses dessa segunda viagem (a primeira ocorreu entre Campinas (SP) e Macei) resultaram no escopo informativo do primeiro captulo, abarcando histrias e estrias de alguns passageiros; dados referentes s cidades nas quais

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ocorreram paradas, tais como o Produto Interno Bruto (PIB); nmero de escolas e unidades de sade; frota e populao; e relatos acerca do prprio deslocamento, realizado num precrio veculo da Autoviao Progresso. Tnica iniciada logo no comeo do trabalho de redao do texto final de Filhos do Brasil, o enriquecimento da narrativa com nmeros oficiais relacionados a questes econmicas e sociais do pas mostrou-se importante via de complemento das informaes obtidas durante as entrevistas e na prpria interao com as cidades e seus moradores. Isso porque os relatos humanizados e fortemente ligados aos sentimentos dos autores precisavam ser calcados em levantamentos capazes de dar credibilidade s informaes e, sobretudo, revelar como as histrias contadas significavam os nmeros oficiais, tendo em vista que o objetivo primeiro do trabalho era compreender o Brasil a partir das experincias dos personagens encontrados em alguns dos locais em que viveu o presidente Lula at o final da dcada de 1970. Sendo assim, os subsdios ao todo informativo foram retirados de pesquisas e estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE); Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea); Confederao Nacional do Transporte (CNT); secretarias de governo dos Estados e do governo federal; Ministrio Pblico Federal; e entidades da sociedade civil, de ilibada reputao. A sequncia da produo da reportagem representou a principal etapa da fase de apurao; a bem da verdade, uma real descoberta e ampliao dos horizontes dos integrantes da dupla. Passamos quatro dias e meio em Garanhuns, uma vez que no ltimo dia se iniciou a viagem de volta a So Paulo. Com a declarada pretenso de percorrer todos os cantos possveis e apreender o mximo dos costumes e razes locais, praticamente cada pessoa com quem mantnhamos um contato mais perene convertia-se quase que imediatamente em fonte de informao e bons causos. Em decorrncia dos limites impostos pelo tempo, obstculo comum imprensa peridica, e pelas intercorrncias normais da produo da reportagem, alguns lugares e instituies no puderam ser visitados, assim como muitas das pessoas com quem conversamos no se tornaram, efetivamente, personagens ao final da elaborao dos textos. No desconsiderando que nosso foco estava na rua, era preciso compreender como pensavam e agiam alguns dos representantes do poder pblico

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garanhuense. Apesar dos contatos mantidos ainda em So Paulo indicarem que no seria tarefa das mais difceis entrar nos gabinetes, no nos foi autorizada uma entrevista com o prefeito da cidade, Luiz Carlos de Oliveira. Pretendamos tratar de temas ligados economia e poltica com o chefe do executivo municipal. No entanto, ainda imbudos na busca de um panorama mais completo de reas vitais no cotidiano local, conseguimos, por intermdio da Secretaria de Comunicao da prefeitura de Garanhuns, com relativa facilidade, entrevistas com os secretrios de Direitos Humanos, Alfredo de Gois Neto; Educao, Maria Edilene Vilaa; e, sobretudo, com os representantes das pastas do Turismo, Milena Notaro de Albuquerque, e Desenvolvimento Econmico, Ornilo Lundgren. Os dois ltimos se mostrariam personagens fundamentais na composio do segundo captulo do livro, Garanhuns, no qual tratamos de vrios aspectos da cidade, suas caractersticas, problemas, virtudes, desafios e projetos, alm de relatarmos nossas vivncias e percepes conforme interagamos com os moradores. Em muitos momentos, como nas andanas nos moto-txis, um dos principais meios de transporte do lugar, agamos como qualquer outro pernambucano ali, voltando do trabalho ou seguindo para algum compromisso. Ou quando percorramos as inmeras lojas da regio central da cidade, apesar de atentarmos para as situaes que mais chamassem a ateno aos olhos de fora, procurvamos no parecer turistas. Era preciso, de acordo com a proposta elaborada, penetrar at o limite permitido nas vidas daquelas pessoas, embora isso nem sempre fosse plausvel devido ao receio de alguns em se abrir a dois estranhos, ou at mesmo diante do olho da cmera. Na entrevista; muito mais uma conversa franca com o secretrio Ornilo Lundgren, abordamos temas como desemprego, gerao de renda, peculiaridades da economia local, alm de percepes para o futuro da cidade de mais de 130 mil habitantes. Responsvel por um programa de apoio ao empreendedorismo, Ornilo promoveu uma ida nossa s comunidades mais pobres de Garanhuns, locais tidos como perigosos aos estrangeiros de ocasio, onde tivemos a oportunidade de conhecer personalidades fantsticas e intrigantes, como Jos Monteiro, ou simplesmente seu Monteiro, homem famoso pelo gnio forte e pelas histrias de violncia com os moradores do bairro aonde vivia, como nos relatou um amigo de

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Ornilo, Roberval Nunes, funcionrio da secretaria de Desenvolvimento Econmico e lder comunitrio, cujas histrias auxiliaram na tessitura do livro. Pudemos vivenciar ainda a rotina de mulheres como Dona Marlene e Dona Socorro, responsveis por pequenas fabriquetas, que nos revelaram a dureza da rotina nas comunidades mais carentes, mas enfrentadas com extrema alegria e vigor ante a possibilidade da fuga dos preconceitos e barreiras invisveis impostas pelo machismo. O resultado dessas interaes e contatos prximos pode ser visto em O dono da Vrzea, terceiro captulo do livro-reportagem, cujo ttulo faz clara aluso figura de Jos Monteiro. No mesmo captulo trazemos as anlises realizadas por Maria Edilene Vilaa e Alfredo de Gois Neto, respectivamente os responsveis pelas pastas da Educao e Direitos Humanos, com relao situao das duas reas na cidade. Nossa principal abordagem junto aos dois secretrios tratava da situao de um grupo de crianas em clara situao de vulnerabilidade a fatores como uso de drogas e trabalho infantil, encontradas num dos principais pontos tursticos da cidade, o Cristo do Magano. O turismo uma das atividades econmicas mais importantes de Garanhuns. A cidade exibe alcunhas como Sua pernambucana ou Cidade das Flores, motivadas pelo clima surpreendentemente frio durante boa parte do ano e pela paisagem sempre verde e colorida. Os dias de nossa estada no municpio antecediam o mais importante evento cultural da regio, o Festival de Inverno, um dos mais prestigiados acontecimentos de Pernambuco. Esses e outros aspectos foram tratados na entrevista com Milena Notaro, chefe de Diviso, Fomento e Lazer da Secretaria de Turismo. A servidora apresentou nmeros referentes atividade, alm de expor o porqu da arraigada fama europeia aos costumes locais. Durante sua fala, Milena revelou tambm a existncia de dois personagens tpicos: Bacalhau, torcedor smbolo do Santa Cruz, importante clube de futebol do Recife, e Joo Capo, pedreiro pobre que construiu um castelo fruto de um sonho de criana. Os dois homens e suas respectivas casas eram representaes mpares na sociedade garanhuense. As conversas que tivemos com eles, talvez as mais animadas e enriquecedoras na busca pela compreenso do pas em que vivemos, mote inicial de Filhos do Brasil, resultaram no quinto captulo da obra, cujo ttulo remete diretamente a um deles, Bacalhau, e no eplogo do livro, Sua

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Majestade, o pedreiro, no qual a narrativa permeada por estrofes de um cordel em homenagem ao protagonista, Joo Capo, de autoria de um artista local, Gonzaga de Garanhuns. Sua majestade, o pedreiro a melhor exemplificao da aplicao de alguns conceitos do new journalism na produo de Filhos do Brasil. Os excertos do poema entremeados ao texto remetem aos artifcios visuais aplicados pelo americano Tom Wolfe em suas reportagens. Ao analisar as tcnicas de um dos nomes mais destacados dessa maneira estilizada do fazer notcia, Santos define o uso de pontuao variada como a tentativa de passar a ideia de algum no s falando, mas tambm pensando. Graficamente tambm uma maneira de incorporar um rudo visual e mexer com a mente do leitor (apud WOLFE, 2005, p.241). Em todo texto, elementos tpicos do new journalism, ou novo jornalismo, na nomenclatura em portugus, so aplicadas na construo da narrativa, tais como o uso de dilogos e descries completas de cenas, permitindo ao leitor uma visualizao total da situao narrada, e mais alguma coisa que os leitores tiveram de procurar em romances e contos, como a vida subjetiva ou emocional dos personagens (SANTOS apud WOLFE, 2005, p.241). Como j evidenciado no referencial terico, a guinada esttica permitida pelo novo jornalismo, no Brasil conhecido ainda como jornalismo literrio, liberta o profissional da informao dos ferrolhos impostos pelos manuais de redao, itens cerceadores da criatividade de reprteres na rotina da imprensa peridica. A existncia do Cine Eldorado, nico cinema da cidade e um dos poucos em todo interior do Estado, mereceu especial ateno durante a apurao e redao da pea. A audincia do lugar, formada por pessoas elegantes, destoava por completo do que se v nas grandes metrpoles, onde o ir ao cinema tornara-se algo corriqueiro e voltado quase que exclusivamente para os frequentadores de grandes centros comerciais. A conversa com os funcionrios e o olhar atento s falas e gestos dos clientes comporiam O cinema, quarto captulo de Filhos do Brasil. Segundo a biografia do presidente da Repblica, transcrita em parte no referencial terico deste relatrio, Lula nasceu no territrio do municpio pernambucano de Caets, em outubro de 1945. poca, o lugar era um distrito de Garanhuns, o que explica nossa escolha formal pelo municpio do agreste como

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ponto de partida na produo do trabalho. No entanto, mostrava-se imprescindvel, mesmo que brevemente, conhecer Caets, municpio a 20 quilmetros de Garanhuns. Alm de belssimos registros fotogrficos captados nessa pequena viagem, conhecemos pessoas muito representativas das gritantes diferenas entre as regies do pas, como Dona Maria Ferreira, prima distante do conterrneo mais ilustre, e que revelaria detalhes da vida no serto e as barreiras impostas pelo analfabetismo. Alm dela, trs outros caeteenses ilustrariam com surpreendente realismo os contrastes entre sul e norte. Os relatos carregados de emoo de Maria Ccera, Pedro Jos da Silva e Fernando Jos dos Santos davam mostras claras do lento passar do tempo por aquelas terras, alm de indicarem quo duros eram os cotidianos de boa parte dos moradores da regio. Nossas impresses sobre Caets e as histrias citadas integram o sexto captulo, Filhos do serto. Encerraria a fase de apurao direta em Pernambuco o acompanhamento da noite de estreia do 20 Festival de Inverno de Garanhuns, principal festa da cidade. O evento permeava absolutamente todas as conversas e tomava as atenes dos moradores durante os quatro dias e meio que estivemos no lugar. Tal fato pode ser facilmente comprovado com a leitura dos primeiros captulos do livro-reportagem, em que referncias celebrao esto em quase todas as passagens narrativas e dilogos. Em Festival de cores, stimo captulo da obra, traamos um perfil do incio dos festejos sob a tica dos principais personagens apresentados at ento. Complementa o texto nossas sensaes ante os movimentos e vises da festa. Era preciso, como nunca antes, elevar ao mximo o iderio da observao participante e deixar-se tomar pelo esprito das milhares de pessoas ali presentes, horas antes de iniciar a segunda fase da apurao: a viagem de nibus entre o agreste e So Paulo. No dia 11 de julho de 2010, demos incio segunda etapa da apurao para a produo de Filhos do Brasil. O deslocamento de nibus entre Garanhuns (PE) e So Paulo (SP) legitima-se como etapa fundamental da fase de captao de informaes ao tentar recriar, no desconsiderando as profundas diferenas de poca, as condies da viagem realizada pelo presidente Lula quando menino, junto da me, em 1952, vide biografia no referencial terico. Nosso intento ao percorrer

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esse trajeto foi descobrir que razes levavam os passageiros; nossos companheiros por mais de 45 horas, a cortar o pas dormindo em condies desconfortveis, em turnos longussimos nas sinuosas e, algumas vezes, esburacadas rodovias do pas. Das centenas de conversas, dores nas pernas e milhares quilmetros de estrada, cruzando sete Estados, surgiu Fabiana, captulo nico que representa essa etapa de transio da reportagem de seu primeiro macroambiente, o Nordeste, para o perodo de investigao e ida s ruas em alguns locais e entidades paulistas. O ttulo remete personagem principal, Fabiana, que voltava para casa aps uma temporada no stio dos pais, no municpio de Capoeiras, prximo a Garanhuns. Me de duas meninas, Isabela e Sofia, a mulher estava acompanhada da irm e do sobrinho. Permeado aos relatos sobre a viagem em si, um perfil, estilo jornalstico explorado muitas vezes ao longo da pea, descreve a vida de andanas daquela pernambucana, que fora obrigada a trabalhar ainda menina para ajudar os pais, e que conseguira ir ao Mxico em decorrncia do ofcio de bab. Essa radical mudana de plano de atuao, vivenciada ao mximo pela dupla por conta da viagem, est intrinsecamente relacionada aos relatos e informaes referentes ao processo migratrio do pas. Os dados alusivos a esse importante fenmeno social brasileiro, simbolizado em Filhos do Brasil pela jornada entre norte e sul, ilustram e do fora ao relato sobre Jos Alalton, alagoano de 17 anos, que seguia pela primeira vez para So Paulo no mesmo veculo da viao So Geraldo que nos trouxe de volta metrpole. Nota-se ainda, mediante leitura da pea, que o uso do ponto de vista exterior ao do reprter, tpico artifcio do jornalismo literrio, torna mais interessante e elucidativa a explanao dos sentimentos que moviam o adolescente Alalton para um lugar to longe da alagoana So Miguel dos Campos. As exposies das condies das estradas percorridas durante o trajeto foram objetivamente atreladas s descries dos estados fsico e emocional dos ocupantes do veculo, uma vez que as intercorrncias do terreno ocasionavam mudanas de humor nos mesmos. A escolha pela viagem por via terrestre nos deu a oportunidade ainda de atestar a qualidade de uma importante parcela do sistema virio do pas, precrio em algumas partes, mas de excepcional qualidade em muitos pontos. Sustentando e trazendo cor a todos esses elementos mencionados anteriormente, em Fabiana apresentamos deliciosos dilogos e situaes cmicas vivenciadas por

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todos os amigos de ocasio; suas estrias so recontadas por meio de uma linguagem mais fluda, s vezes lenta, outras vezes rpida, permitindo ao leitor experimentar o mesmo ritmo das rodas e o soar constante do barulho do motor do nibus, alm de induzirem os cheiros e vises de quem est preso em seu interior. Encerra a fase de apurao, vale ressaltar, sempre calcada na ideia da presena dos reprteres nos locais estipulados pelo planejamento da pea como meio mais adequado para uma profunda compreenso dos mesmos e de seus viventes, as buscas por bons contos impregnados de emoo em quatro locais no Estado de So Paulo. So eles o distrito de Vicente de Carvalho, no municpio litorneo do Guaruj; a escola Roberto Simonsen do Senai Sistema Nacional de Aprendizagem Industrial; o bairro Vila Carioca, na zona sul da capital paulista; e o Sindicato dos Metalrgicos do ABC, sediado em So Bernardo do Campo. Os pontos enumerados integram o macroambiente So Paulo, ltima parte de nossa fase de apurao. Estivemos duas vezes em Vicente de Carvalho, distrito de cerca de 130 mil habitantes no Guaruj, litoral sul de So Paulo. Dentre as principais paragens e personagens destacados na exposio do lugar, primeiro preciso discorrer sobre as inmeras referncias fsicas mencionadas no texto que forma o captulo, intitulado Rede de pescadores, necessrias para situar o leitor que tipo de ambiente ele vai encontrar pela frente na narrativa. Sendo assim, as menes movimentao no sistema de barcas entre a localidade e o porto de Santos, do outro lado do canal que separa os dois mundos ali; ao frenesi de compras na principal avenida do distrito; ao centro de diverses para aposentados fincado na regio central inserem o leitor de Filhos do Brasil no mago de impresses e experincias dos moradores, sob o ponto de vista dos reprteres e das prprias pessoas narradas. O ttulo do captulo remete diretamente a dois personagens fundamentais: os pescadores Rogrio Vilas Nunes, de 41 anos, e Edmundo Ramos, 62. Ao conversarmos com eles, transpareceu como as diferenas socioeconmicas coexistem lado a lado na sociedade brasileira. Os dois vivem e guardam os apetrechos para o ofcio no mar na mesma vila, no bairro pobre do Jardim Santense. Das palafitas onde habitavam era possvel visualizar os enormes navios de carga no

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porto de Santos, encarregados de transportar parte das riquezas do pas. No entanto, o resultado daquilo mal influenciava suas vidas, que seguiam ao sabor das guas e dos ventos. Procuramos destacar as vozes e, sobretudo, os sentimentos desses dois homens, que mal viam o resultado daquelas operaes vultosas ao longe surtir efeito prtico em seu cotidiano. Esse contraste evidencia, de maneira indireta, a quase separao entre Vicente de Carvalho e a regio central do Guaruj, muito mais rica e desenvolvida que o distrito, percorrido em grande parte durante quase trs dias inteiros; seriam mais no fossem as obrigaes do trabalho. Na capital paulista, destacamos dois lugares de fundamental importncia na histria do presidente Lula. O primeiro a integrar o processo de apurao na maior cidade do pas foi a escola Roberto Simonsen do Senai, no bairro do Brs. Com apoio da assessoria de imprensa da instituio, conseguimos entrar em contato com a direo da unidade, possibilitando nosso acesso Tamires Barreto da Silva, de 16 anos, aluna do curso de marcenaria; em alguns casos, por lidarmos com crianas e jovens, foi preciso seguir alguns ditames e regras para no ultrapassar limites aceitveis ou sobrepor preceitos ticos do ofcio de bem informar. Em longa entrevista, Tamires mostrou como a rotina de uma jovem s vsperas do primeiro vestibular, seus medos, a convivncia com a me e a aceitao da morte precoce do pai. Em Tempos de escola, trazemos o relato de uma pessoa cheia de afazeres antes da maioridade legal, mas ainda repleta de dvidas quanto ao prprio futuro. Sob o olhar de Tamires, discorremos sobre o trato entre alunos e professores dentro da escola. Para isso, buscamos ainda a palavra do diretor da unidade Roberto Simonsen, professor Joo Roberto Campaner, que detalhou quem so e o que pensam e mdia dos alunos na mesma faixa etria de Tamires, alm de fazer uma anlise das motivaes dos estudantes na busca pelo ensino tcnico no s em So Paulo, como em todo pas. O captulo que trata do Senai e suas peculiaridades traz tambm um breve apanhado histrico sobre a entidade no Brasil, e como ela se mantm financeiramente, detalhando as origens dos recursos, os cursos oferecidos e o nmero de escolas e alunos; dados obtidos por meio das entrevistas com Tamires e Campaner, alm do prprio portal da instituio na internet, ferramenta indispensvel para consultas e complementaes ao longo da redao do livro.

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Importante ressaltar que o texto segue a mesma linha de todo volume, com o proveito qualitativo de descries e de uma linguagem leve; uma tentativa de prender a ateno do leitor. Esse texto diferenciado; uma fuga incessante dos manuais e amarras das redaes dos jornais dirios, foi alcanado tambm aps as andanas e experincias na Vila Carioca, pequeno bairro bem no meio do Ipiranga, na zona sul da capital paulista. Antes mesmo de sairmos procura de pessoas capazes de elucidar como era a vida no local mais de 50 anos aps a chegada por ali do menino Lula, levado pela me, era preciso percorrer as ruas de pedra, sentir o clima da regio, aspirar o cheiro de ferro fundido das pequenas metalrgicas. Tomados pelo esprito pacato e quase acolhedor do lugar, conseguimos adentrar uma das casas e conhecer a mulher que d nome ao captulo. Dona Zara trata no s das grandes mudanas na rotina das famlias, como a inaugurao de uma moderna estao do Metro; um impressionante recorte de cimento e ao em meio aos galpes e moradas nos entornos da Avenida Presidente Wilson. Zara Carleti vive no bairro h mais de cinco dcadas. Ao abrir as portas de sua casa a dois estranhos, foi como se um vagalho de emoes penetrasse pelas almas dos reprteres. Em algumas horas de conversa consentida aps inmeras ligaes ao longo de uma semana, j em outubro de 2010, indagamos sobre tudo: famlia, segurana, problemas, medos. Mas ao tratar de seu marido falecido, a senhora foi s lgrimas, demonstrando com arrasadora fora como o corao pode muito melhor informar e deixar ver o que realmente se passa na mente das pessoas, seus sentimentos, suas dores. Por fim, o trabalho direto de captao de informaes e relatos para a elaborao de Filhos do Brasil volta-se finalmente para o Sindicato dos Metalrgicos do ABC, rgo que representa mais de 100 mil trabalhadores da regio, distribudos em grandes montadoras nas cidades prximas. Para este captulo, especificamente, decidimos dar voz entidade, to representativa nos tempos de luta contra os desmandos dos patres e no processo de redemocratizao do pas. Para isso, fizemos uma longa entrevista com o secretrio-geral da instituio, Wagner Santana, de 48 anos; no atual cargo desde 2008, o homem iniciou a militncia em 1987.

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Pees, ttulo do captulo, uma aluso ao termo utilizado pelo prprio sindicalista para se referir aos companheiros de cho de fbrica. Aps um breve excerto composto por um histrico de atos e realizaes, recentes ou do perodo do prprio Lula na presidncia do Sindicato, uma longa entrevista, realizada na sede do Sindicato, e sem cortes, traz uma anlise da atuao do movimento hoje, suas mudanas em relao ao perodo das grandes mobilizaes dos tempos da ditadura militar, as crticas ao modo de atuao do organismo, entre outros assuntos. No tomamos partido de nenhuma causa na elaborao de Pees. Apenas procuramos trazer tona a palavra da entidade que projetou o presidente Lula para a vida poltica, na tentativa de compreender o que esse movimento atualmente, sinalizando as perspectivas para os prximos anos. importante assinalar ao final da descrio do processo de apurao e captao de registros fotogrficos para a composio de Filhos do Brasil, bem como do detalhamento dos preceitos seguidos durante a redao do texto final, que as deliberaes junto ao nosso orientador, professor Carlos Eduardo Sandano Santos, foram fundamentais para a escolha do tema e das abordagens a serem realizadas na produo da pea. Sandano alertou, sobretudo, para um melhor proveito de referncias ao presidente Lula ao longo do texto, visto que a histria do presidente foi a base para a composio da pea. Dessa forma, os apontamentos da figura de Lula podem ser encontrados, mediante leitura rpida, em todos captulos do livro. Faz-se necessrio ainda ressaltar que nem tudo que se passou com a dupla foi descrito neste relatrio, uma vez que foi preciso priorizar as partes mais relevantes, nas quais notam-se a presena marcante do embasamento terico compilado ao longo de todo ano para a devida produo da reportagem. No h nisso uma tentativa de desqualificar o que ocorreu alm do relatado at aqui; as outras partes formam, juntamente com as mais simblicas da reportagem, um organismo cerrado, enriquecido pelas experincias dos alunos, das personagens e por tudo que envolveu a feitura da pea. Ao final do processo de redao, viu-se que a parte referente aos acontecimentos e passagens ligados ao Nordeste tinham um maior nmero de captulos e histrias ante os outros dois macroambientes de ao. Essa caracterstica deve-se, em muito, pelo fato de termos passado mais tempo

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embrenhados naquela regio, se comparado ao perodo dedicado a So Paulo e viagem. Outro fator capaz de explicitar as causas dessa diferena esto no, que para ns, efetivou-se como um verdadeiro processo de descoberta, no s do pas, mas de pessoas absolutamente interessantes; figuras humanas com potencial para fazer brilhar o trabalho do jornalista, elevando o texto s raias da boa literatura, como nas obras de nomes como Fernando Morais, Audlio Dantas e Caco Barcellos, representantes tupiniquins do new journalism, conjunto de trejeitos do fazer notcia que a todo o momento buscamos entronizar em nosso modus operandi, a fim de elaborar uma obra de qualidade. O resultado de todas as etapas enumeradas o texto bruto de Filhos do Brasil.

2.3 FINALIZAO

Aps o processo de redao, o texto passou por uma minuciosa reviso. As preocupaes com as novas normas do Portugus, muitas ainda desconhecidas ou confusas para ns, fez com que requisitssemos a avaliao e correo de um profissional especializado, j que a matria-prima bsica do jornalismo impresso o vernculo, exigindo dos seus arautos, os reprteres, todo o rigor possvel em seu tratamento. Verificada a existncia de pequenos erros, logo os mesmos foram corrigidos, sem prejuzos ao estilo e coeso do texto. O fim da apurao deixou ainda algumas dvidas, posteriormente sanadas por contato telefnico, e-mail ou nova visita a alguns dos locais. Contatamos a Secretaria de Turismo de Garanhuns para confirmar determinadas informaes e solicitar a cesso de uma foto do Relgio das Flores, conhecido ponto turstico da cidade. O mesmo expediente foi aplicado na obteno de uma foto do secretriogeral do Sindicato dos Metalrgicos do ABC, Wagner Santana, impasse solucionado pela assessoria de imprensa da instituio. Por ltimo, voltamos at a Vila Carioca para nova conversa com moradores, e tambm para a obteno de imagens da personagem principal, Dona Zara. A diagramao da pea ficou a cargo de um profissional da rea, que desenvolveu todo projeto grfico da obra, mediante nossas indicaes e

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preferncias. Era consenso entre a dupla o envio de textos e imagens para um especialista, to grande revelava-se o temor de que o tempo escasso e a pouca prtica em planejar tecnicamente uma pea no formato livro-reportagem prejudicasse o produto final e inviabilizasse os prazos estipulados junto grfica. Portanto, acreditamos que terceirizar o projeto grfico a um terceiro no reduziu a qualidade do trabalho jornalstico para concepo da obra. Ao final, a atuao do diagramador deixou o livro limpo, de leitura fcil em decorrncia do bom uso de espao em branco e melhor proveito das imagens. O produto final, o livro-reportagem Filhos do Brasil, possui 14 captulos (contabilizando preldio e eplogo) distribudos em 196 pginas, divididos em trs grandes partes: O comeo Impresses acerca do agreste meridional; O meio Sobre a longa viagem de volta; O fim Fragmentos de So Paulo. O papel utilizado na produo o sulfite 90g para o miolo e couch para a capa laminada com brilho. A grfica Imagem Digital, com sede na Rua da Consolao, 1689, So Paulo, foi contratada para impresso das cpias exigidas pela coordenao do Centro de Comunicao e Letras no ato da entrega do TGI.

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3. CONSIDERAES FINAIS

Percorrer uma parte do Brasil para descobrir e narrar histrias semelhantes s vividas pelo presidente Lula nos mostrou quo falho tem sido a atuao da grande imprensa na cobertura de temas mais clidos s vidas dos brasileiros. Fincados nas redaes, os profissionais da informao no conseguem captar com cor e vivacidade os matizes que compem o todo social brasileiro. Pelo contrrio, limitam-se a repassar ao consumidor de notcias, informes que beiram os relatrios de rendimento das empresas e do setor pblico, divulgados ao final de cada ms. No h qualquer indcio de subjetividade no modus operandi da imprensa peridica, imbricada na disputa entre concorrentes para saber quem informa mais rpido, objetivando apenas o lucro gerado por misso to inglria. As percepes ao longo da apurao e redao de Filhos do Brasil mostraram como possvel arriscar viagens aos rinces do subconsciente humano para se descobrir os verdadeiros fatores por trs dos acontecimentos tidos como corriqueiros, mas reveladores das reais condies de vida de