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  • OOss IIrrmmooss KKaarraammaazzoovv

    Fidor Dostoivski

    Abril Cultural, 1970

    Traduo: Natlia Nunes e Oscar Mendes.

  • O S I RM O S KAR AM Z O V I 1

    A Ana Grigrievna Dostoivskaia

    Em verdade, em verdade vos digo que, se o gro de trigo que cai na terra no morrer, fica infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto.

    So Joo, Cap. XII, Vers. 24 e 25.

    PREFCIO

    Ao comear a biografia de meu heri, Alieksii Fidorovitch, sinto-me um tanto perplexo. Com efeito, se bem que o chame meu heri, sei que ele no um grande homem; prevejo tambm perguntas deste gnero: "Em que notvel Alieksii Fidorovitch, para que tenha sido escolhido como seu heri? Que fez ele? Quem o conhece e por qu? Tenho eu, leitor, alguma razo para consagrar meu tempo a estudar-lhe a vida?"

    A derradeira pergunta a mais embaraosa, porque s lhe posso responder dizendo: "Talvez o senhor mesmo descubra isso no romance". Mas se o lerem, sem achar que meu heri notvel? Digo isto porque prevejo, infelizmente, a coisa. A meus olhos, ele notvel, mas duvido bastante de que consiga convencer o leitor. O fato que ele age seguramente, mas de uma maneira vaga e obscura. Alis, seria estranho, em nossa poca, exigir clareza das pessoas! Uma coisa, no entanto, est fora de dvida: um homem estranho, at mesmo um original. Mas a estranheza e a originalidade prejudicam, em lugar de conferir um direito ateno, sobretudo quando todo mundo se esfora por coordenar as individualidades e destacar um sentido geral do absurdo coletivo. O original, na maior parte dos casos, o indivduo que se pe de parte. No verdade?

    No caso de me contradizerem, a propsito deste ltimo ponto, di-

    1 Plural russo de Karamzov. Nome forjado, composto provavelmente do substantivo kara, castigo,

    punio, e do verbo mzat, sujar, pintar, no acertar. Seria, simbolicamente, aquele que com o seu comportamento desacertado provoca a prpria punio.

  • zendo: "No verdade", ou "no sempre verdade", retomo coragem a respeito do valor de meu heri. Porque no somente o original no "sempre" o indivduo que se pe de parte, mas acontece-lhe deter a quinta-essncia do patrimnio comum, enquanto seus contemporneos o repudiaram por algum tempo.

    Alis, em vez de engajar-me nessas explicaes destitudas de inte-resse e confusas, teria comeado bem simplesmente, sem prefcio se minha obra agradar, ho de l-la , mas a desgraa est em que, alm de uma biografia, tenho dois romances. O principal o segundo, a atividade de meu heri em nossa poca, no momento presente. O primeiro desenrola-se h treze anos, e, para dizer a verdade, apenas um momento da primeira juventude do heri. indispensvel, porque, sem ele, muitas coisas ficariam incompreensveis no segundo. Mas isso s faz aumentar o meu embarao: se eu, bigrafo, acho que um romance teria bastado para um heri to modesto e vago, como apresentar-me com dois e justificar tal pretenso?

    Desesperando de resolver essas questes, deixo-as em suspenso. Naturalmente, o leitor perspicaz j adivinhou que tal era meu fim desde o comeo e leva-me a mal que perca um tempo precioso em palavras inteis. Ao que responderei que o fiz por polidez, e em seguida por astcia, a fim de que se fique prevenido de antemo. Alm do mais, folgo que meu romance se divida por si mesmo em duas narrativas, "contudo conservando sua unidade integral"; depois de ter tomado conhecimento do primeiro, o leitor ver por si mesmo se vale a pena abordar o segundo. Sem dvida, cada qual livre; pode-se fechar o livro desde as primeiras pginas da primeira narrativa para no mais abri-lo. Mas h leitores delicados que querem ir at o fim, para no deixar de ser imparciais; tais so, por exemplo, todos os crticos russos. Sente-se a gente de corao mais leve para com eles. Malgrado sua conscincia metdica, forneo-lhes um argumento dos mais fundamentados para abandonar a narrativa no primeiro episdio do romance. Eis terminado o meu prefcio. Convenho que suprfluo, mas, j que est escrito, deixemo-lo.

    E agora, comecemos.

    O Autor.

  • PRIMEIRA PARTE

    LIVRO I

    HISTRIA DE UMA FAMLIA

    I

    FIDOR PVLOVITCH KARAMZOV

    Alieksii Fidorovitch Karamzov era o terceiro filho de um pro-prietrio de terras de nosso distrito, Fidor Pvlovitch, to conhecido em seu tempo (dele se lembram, alis, ainda) pelo seu fim trgico, ocorrido h treze anos e de que falarei mais adiante. No momento, limitar-me-ei a dizer desse "proprietrio" (chamavam-no assim, se bem que jamais tivesse morado em sua "propriedade") que era o tipo estranho, embora bastante freqente, da criatura vil e corrompida, ao mesmo tempo que absurda. Sabia arranjar perfeitamente seus negcios proveitosos, mas nada mais. Fidor Pvlovitch, por exemplo, comeou quase do nada: era um modesto proprietrio, gostando muito de jantar em casa dos outros, com fama de parasita. E no entanto, ao morrer, possua mais de 100 000 rublos em metal sonante. Isso no o impediu de ser, durante sua vida, um dos piores malucos de nosso distrito. Repito-o, no se trata de estupidez a maior parte desses malucos bastante inteligente e astuta , mas de extravagncia especfica e nacional.

    Foi casado duas vezes e teve trs filhos; o mais velho, Dimtri, da primeira mulher, e os dois outros, Iv e Alieksii, da segunda. Sua primeira mulher pertencia a uma famlia nobre, os Misovi, proprietrios bastante ricos do mesmo distrito. Como pde uma moa, tendo um dote, bonita e, alm do mais, viva e espirituosa, tal como se encontram muitas entre nossas contemporneas, casar-se com to nulo "doidelo" (era assim que o chamavam)? Creio intil explic-lo demasiado longamente. Conheci uma jovem, da penltima gerao "romntica", que, aps vrios anos de amor misterioso por um senhor, com o qual poderia casar-se bem tranqilamente, acabou imaginando obstculos intransponveis a esse casamento. Numa noite de tempestade precipitou-se, do alto de um penhasco, num rio impetuoso e profundo, e pereceu vtima de sua

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  • imaginao, unicamente para parecer-se com a Oflia de Shakespeare. Se aquele penhasco, de que ela gostava particularmente, tivesse sido menos pitoresco ou substitudo por uma margem chata e prosaica, no se teria ela, sem dvida, suicidado. O fato autntico e creio que entre as duas ou trs ltimas geraes russas houve numerosos casos anlogos. Semelhantemente, a deciso que Adelaide Misova tomou foi sem dvida o eco de influncias estrangeiras, a exasperao de uma alma cativa. Queria talvez afirmar sua independncia de mulher, protestar contra as convenes sociais, contra o despotismo de sua famlia. Sua imaginao complacente pintou-lhe por um curto momento Fidor Pvlovitch, malgrado sua reputao de papa-jantares, como uma das personagens mais ousadas e mais maliciosas daquela poca em via de melhoramento, quando era ele muito simplesmente, um pregador de ms peas. O picante da aventura foi um rapto que encantou Adelaide Ivnovna. A situao de Fidor Pvlovitch dispunha-o ento a semelhantes proezas; estava louco por abrir caminho a qualquer preo: introduzir-se em uma boa famlia e receber um dote era bastante atraente. Quanto ao amor, no se cuidava disso nem de um lado nem de outro, malgrado a beleza da moa. Esse episdio foi provavelmente nico na vida de Fidor Pvlovitch, grande amador do belo sexo, a vida inteira, sempre pronto a agarrar-se a qualquer saia, contanto que ela lhe agradasse. Ora, aquela mulher foi a nica que no exerceu sobre ele atrao nenhuma do ponto de vista sensual.

    Adelaide Ivnovna no tardou a verificar que s sentia desprezo pelo seu marido. Nessas condies, as conseqncias do matrimnio no se fizeram esperar. Se bem que a famlia se tivesse resignado bem depressa ao acontecido e remetido seu dote fugitiva, uma existncia desordenada e cenas contnuas comearam. Conta-se que a jovem senhora mostrou-se muito mais nobre e mais digna do que Fidor Pvlovitch, que lhe escamoteou desde o comeo, como se soube mais tarde, todo o seu capital, 25 000 rublos, de que ela no mais ouviu falar. Durante algum tempo fez ele tudo para que sua mulher lhe transmitisse, por um documento em boa e devida forma, uma pequena aldeia e uma casa de cidade bastante bonita, que faziam parte de seu dote. Teria certamente logrado isso, tanto era o desprezo e desgosto que lhe causava com suas extorses e exigncias descaradas, levando-a por lassido a dizer "sim". Por felicidade, a famlia dela interveio e refreou a rapacidade de seu marido. notrio que os esposos chegavam freqentemente troca de pancadas e pretende-se que no era Fidor Pvlovitch quem as dava, mas

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  • Adelaide Ivnovna, mulher arrebatada, atrevida, morena irascvel, dotada de estupendo vigor. Por fim abandonou a casa e fugiu com um seminarista que no tinha onde cair morto, deixando a cargo do marido um menino de trs anos, Mtia. Fidor Pvlovitch no tardou em transformar sua casa num harm e em organizar pndegas e bebedeiras. Entrementes, percorria toda a provncia, lamentando-se com todos da desero de Adelaide Ivnovna, com pormenores chocantes sobre sua vida conjugai. Dir-se-ia que achava prazer em representar diante de todo mundo o papel ridculo de marido enganado, em pintar seu infortnio, carregando as cores. "Acreditar-se-ia que voc subiu de grau, Fidor Pvlovitch, to contente voc se mostra, apesar de sua aflio", diziam-lhe os trocistas. Muitos ajuntavam que ele se sentia feliz em mostrar-se na sua nova atitude de bufo e que, de propsito, para fazer rir mais, fingia no notar sua situao cmica. Quem sabe, alis, fosse ingenuidade de sua parte? Por fim, conseguiu descobrir a pista da fugitiva. A desgraada achava-se em Petersburgo, para onde fora com seu seminarista e onde comeara a agir publicamente com a maior liberdade. Fidor Pvlovitch comeou a agitar-se e preparou-se para partir com que fim? ele mesmo no sabia ainda. Talvez tivesse verdadeiramente feito a viagem a Petersburgo, mas, tomada essa deciso, achou que tinha o direito, para se dar coragem, de embriagar-se desenfreadamente. Enquanto isso, soube a famlia de sua mulher da morte desta, em Petersburgo. Morrera de repente, num pardieiro, de febre tifide, dizem uns, de fome, segundo outros. Fidor Pvlovitch estava bbedo, quando lhe anunciaram a morte de sua mulher; conta-se que correu para a rua e se ps a gritar, na sua alegria, de braos levantados para o cu: "Agora, deixa morrer o teu servo". Outros pretendem que soluava como uma criana, a ponto de causar pena v-lo, malgrado a averso que inspirava. Pode dar-se que ambas as verses sejam verdadeiras, isto , que se regozijou com sua libertao, chorando a sua libertadora. Muitas vezes, as pessoas, mesmo ms, so mais ingnuas, mais simples do que o pensamos. Ns tambm, alis.

    II

    KARAMZOV LIVRA-SE DE SEU PRIMEIRO FILHO

    Pode-se bem imaginar que pai e que educador seria tal homem. Como era de prever, desinteressou-se totalmente do filho que tivera de

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  • Adelaide Ivnovna, no por animosidade ou rancor conjugai, mas simplesmente porque se esquecera dele por completo. Enquanto im-portunava todos com suas lgrimas e suas queixas e fazia de sua casa um antro de corrupo, foi o pequeno Mtia recolhido por Gregrio, um servidor fiel; se no tivesse este tomado conta dele, o menino no teria tido talvez nem mesmo quem lhe trocasse as fraldas. Alm disso, sua famlia por parte de me pareceu esquec-lo. Seu av morrera, sua av, estabelecida em Moscou, era muito doente e suas tias haviam-se casado, de modo que Mtia teve de passar quase um ano em casa de Gregrio e morar em sua isb. Alis, se seu pai se tivesse lembrado dele (de fato, no podia ignorar sua existncia), teria mandado o menino de volta para a isb, para no ser incomodado nas suas orgias. Mas, entrementes, chegou de Paris o primo da falecida Adelaide Ivnovna, Piotr Alieksndrovitch Misov, que devia, mais tarde, passar muitos anos no estrangeiro. Naquela poca, era ainda bastante moo e se distinguia de sua famlia pela sua cultura, sua estada na capital e no estrangeiro. Tendo sempre tido a mentalidade ocidental, tornou-se, para o fim de sua vida, um liberal moda dos anos 40 e 50. No curso de sua carreira, esteve em relaes com numerosos ultraliberais, na Rssia e no estrangeiro, conheceu pessoalmente Proudhon e Bakunin. Gostava de evocar os trs dias da Revoluo de Fevereiro de 1848, em Paris, dando a entender que chegara mesmo a tomar parte nas barricadas. Era uma das melhores recordaes de sua juventude. Possua uma fortuna independente, cerca de 1000 al-mas,2 para contar moda antiga. Sua soberba propriedade encontrava-se nas proximidades de nossa cidadezinha e se limitava com as terras de nosso famoso mosteiro. Logo de posse de sua herana, Piotr Alieksndrovitch iniciou contra os monges um processo interminvel, por causa de certos direitos de pesca ou de corte de madeira, no sei mais ao certo, mas achou de seu dever, na qualidade de cidado esclarecido, processar os "clericais". Tendo sabido das desgraas de Adelaide Ivnovna, de quem se lembrava, e posto ao corrente da existncia de Mtia, meteu-se no caso, malgrado sua indignao juvenil e seu desprezo por Fidor Pvlovitch. Foi ento que o viu pela primeira vez. Declarou-lhe abertamente sua inteno de encarregar-se da educao do menino. Muito tempo depois, contava, como trao caracterstico, que Fidor Pvlovitch, quando se tratou de Mtia, pareceu um momento no compreender

    2 Servos da gleba. Calculava-se a riqueza dos proprietrios rurais pelo nmero de "almas" que eles

    possuam.

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  • absolutamente de qual filho se tratava e at mesmo admirar-se de ter um menino em alguma parte, em sua casa. Mesmo exagerado, o relato de Piotr Alieksndrovitch estava prximo da verdade. Efetivamente, Fidor Pvlovitch gostou toda a sua vida de tomar atitudes, de representar um papel, por vezes sem necessidade nenhuma, e mesmo em detrimento seu, como naquele caso particular. , alis, um trao especial de muitas pessoas, mesmo inteligentes. Piotr Alieksndrovitch levou a coisa a srio e foi at nomeado tutor do menino (juntamente com Fidor Pvlovitch), uma vez que a me dele deixara uma casa e terras. Mtia foi morar em casa daquele primo que no tinha famlia. Com pressa de regressar a Paris, depois de haver regularizado seus negcios e assegurado o pagamento de suas rendas, confiou o menino a uma de suas tias que morava em Moscou. Mais tarde, tendo-se aclimatado na Frana, esqueceu-se do menino, sobretudo quando estourou a Revoluo de Fevereiro, que lhe impressionou a imaginao para o resto de seus dias. Tendo morrido a tia que morava em Moscou, Mtia foi recolhido por uma de suas filhas casadas. Mudou, ao que parece, pela quarta vez, de lar. No me alongo a este respeito no momento, tanto mais quanto ainda muito se falar desse primeiro rebento de Fidor Pvlovitch, e limito-me aos detalhes indispensveis, sem os quais impossvel comear o romance.

    Em primeiro lugar, esse Dimtri foi o nico dos trs filhos de Fidor Pvlovitch que cresceu com a idia de que tinha alguma fortuna e seria independente ao atingir a maioridade. Sua infncia e sua juventude foram agitadas: deixou o ginsio antes do termo, entrou em seguida para uma escola militar, partiu para o Cucaso, serviu no Exrcito, foi degradado por haver-se batido em duelo, voltou ao servio, entregou-se orgia, gastou dinheiro em quantidade. Recebeu dinheiro de seu pai somente quando atingiu a maioridade, mas fizera dvidas enquanto esperava. S veio a ver pela primeira vez Fidor Pvlovitch, depois de sua maioridade, quando chegou nossa provncia especialmente para informar-se a respeito de sua fortuna. Seu pai, ao que parece, no lhe agradou desde o comeo; ficou pouco tempo, em casa dele e apressou-se em partir, levando certa soma, depois de haver concludo um acordo a respeito das rendas de sua propriedade. Coisa curiosa: nada pde arrancar de seu pai a respeito de seu rendimento e do valor do domnio. Fidor Pvlovitch notou ento e importa not-lo que Mtia fazia de sua fortuna uma idia falsa e exasperada. Ficou com isto muito contente, tendo em vista seus interesses particulares. Concluiu de tudo que o rapaz era estouvado,

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  • arrebatado, de paixes vivas, um bomio ao qual bastava dar um osso a roer para acalm-lo at nova ordem. Fidor Pvlovitch explorou a situao, limitando-se a largar de tempos em tempos pequenas somas, at que um belo dia, quatro anos depois, Mtia, perdida a pacincia, reapareceu na localidade para exigir uma regularizao de contas definitiva. Para estupefao sua, aconteceu que no possua mais nada; era mesmo difcil verificar as contas: j havia recebido em espcie, de Fidor Pvlovitch, o valor total de seus bens; talvez mesmo viesse a ser seu devedor; de acordo com tal e tal arranjo, concludo em tal e tal data, no tinha o direito de reclamar mais, etc. O rapaz ficou consternado; suspeitou da falsidade, da fraude, ficou fora de si, quase perdeu a razo. Esta circunstncia provocou a catstrofe cuja narrativa forma o assunto de meu primeiro romance, ou antes seu quadro exterior. Mas, antes de iniciar o dito romance, preciso falar ainda dos dois outros filhos de Fidor Pvlovitch e explicar-lhes a provenincia.

    III

    NOVO CASAMENTO E NOVOS FILHOS

    Fidor Pvlovitch, depois de livrar-se do pequeno Mtia, contratou em breve um segundo casamento, que durou oito anos. Escolheu por esposa desta segunda vez tambm uma mulher bastante jovem, de uma outra provncia, aonde tinha ido, em companhia de um judeu, para tratar de um pequeno negcio. Embora bomio, bbedo e debochado, nunca deixava de ocupar-se com a boa colocao de seu capital e arranjava quase sempre bem os seus negcios, mas quase sempre desonestamente. Sofia Ivnovna, rf desde a infncia, filha de um obscuro dicono, vivera na opulenta casa de sua benfeitora, a viva, altamente colocada, do General Vrokhov, que a educava e a maltratava. Ignoro os detalhes, ouvi simplesmente dizer que a moa, doce, paciente e cndida, tentara enforcar-se, pendurando-se dum prego, na despensa, to farta estava dos caprichos e das eternas censuras daquela velha, no m no ntimo, mas a quem sua ociosidade tornava insuportvel. Fidor Pvlovitch pediu sua mo; tomaram informaes a seu respeito e despacharam-no. Como por ocasio de seu primeiro casamento, props ento rf rapt-la. Muito provavelmente, teria ela recusado tornar-se sua esposa, se tivesse tido melhores informaes a seu respeito. Mas isto se passava em outra

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  • provncia; que podia, alis, compreender uma moa de dezesseis anos, seno que valia mais lanar-se gua do que ficar em casa de sua benfeitora? Foi assim que a infeliz substituiu sua benfeitora por benfeitor. Desta vez, Fidor Pvlovitch no recebeu um vintm, porque a generala, furiosa, nada dera, a no ser sua maldio. De resto, no contava ele com o dinheiro. A beleza notvel da moa e sobretudo sua candura tinham-no encantado. Estava maravilhado, ele, o voluptuoso, at ento apaixonado apenas pelos encantos grosseiros. "Aqueles olhos inocentes traspassavam-me a alma", dizia mais tarde com um riso canalha. Alis, aquela criatura corrupta no podia experimentar seno atrao sensual. Fidor Pvlovitch no se incomodou com sua mulher. Como era ela por assim dizer "cul-pada" para com ele, que a havia quase "salvado da corda", aproveitando, alm disso, de sua doura e de sua resignao espantosas, pisou aos ps a decncia conjugai mais elementar. Sua casa tornou-se teatro de orgias nas quais tomavam parte mulheres de m vida. Um trao a notar que o criado Gregrio, criatura taciturna, discutidor estpido e teimoso, que detestava sua primeira patroa, tomou o partido da segunda, discutindo por causa dela com seu amo duma maneira quase intolervel da parte dum criado. Um dia, chegou a ponto de expulsar as mulheres que se entregavam a orgias em casa de Fidor Pvlovitch. Mais tarde, a infeliz jovem senhora, aterrorizada desde a infncia, foi presa duma doena nervosa, freqente entre as aldes, e que lhes vale o nome de "possessas". Por vezes, a doente, vtima de terrveis crises de histeria, perdia a razo. Deu, no entanto, a seu marido, dois filhos: o primeiro, Iv, aps um ano de casamento; o segundo, Alieksii, trs anos mais tarde. Quando ela morreu, estava o jovem Alieksii com quatro anos de idade e, por mais estranho que isto parea, nunca se esqueceu de sua me durante toda a sua vida, mas como atravs de um sonho. Morta sua me, tiveram os dois meninos a mesma sorte que o primeiro: seu pai esqueceu-se deles, abandonou-os totalmente, tendo sido eles recolhidos pelo mesmo Gregrio na sua isb. Foi l que os encontrou a velha generala, a benfeitora que havia educado a me deles. Vivia ainda e, durante aqueles oito anos, seu rancor no se desarmara. Perfeitamente ao corrente da existncia que levava sua Sofia, ao saber de sua doena e dos escndalos que ela suportava, declarou duas ou trs vezes aos parasitas que a cercavam: "Bem feito; Deus a castiga por causa de sua ingratido". Trs meses, exatamente, aps a morte de Sofia Ivnovna, apareceu a generala em nossa cidade e apresentou-se em casa de Fidor Pvlovitch. Sua visita no durou seno uma meia hora, mas aproveitou seu tempo. Era de noite.

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  • Fidor Pvlovitch, a quem no via desde oito anos, apresentou-se em estado de embriaguez. Conta-se que, desde que ela o viu, e sem explicaes, lhe deu duas bofetadas ressoantes, e puxou-lhe de alto a baixo o topete umas trs vezes. Sem acrescentar uma palavra, foi diretamente isb, onde se encontravam os meninos. No estavam lavados, nem vestidos com roupas limpas; vendo isto, a irascvel velha assestou tambm uma bofetada na cara de Gregrio e declarou-lhe que levava os meninos. Tais como estavam, enrolou-os numa manta de viagem, p-los na carruagem e tornou a partir. Gregrio guardou a bofetada como bom servidor e absteve-se de qualquer insolncia; ao reconduzir a velha senhora carruagem, disse, num tom grave, depois de ter-se inclinado profundamente, que "Deus a recompensaria pela sua boa ao". "No passas de um bobalho", gritou-lhe ela guisa de adeus. Tendo examinado o caso, Fidor Pvlovitch declarou-se satisfeito, e concedeu mais tarde seu consentimento formal educao dos meninos em casa da generala. Foi cidade vangloriar-se das bofetadas recebidas.

    Pouco tempo depois, a generala morreu; deixava, por testamento, 1 000 rublos a cada um dos dois petizes "para sua instruo"; esse dinheiro devia ser despendido integralmente em proveito deles, mas bastar at sua maioridade, sendo j tal soma muito para semelhantes crianas. Se outros quisessem dar mais, que dessem de seu bolso, etc.

    No li o testamento, mas trazia ele um trecho estranho, naquele gosto por demais original. O principal herdeiro da velha senhora era, por felicidade, um homem honesto, marechal da nobreza da provncia, Iefim Pietrvitch Polinov. Tendo compreendido, pelas cartas de Fidor Pvlovitch, que dele nada retiraria para a educao de seus filhos (contudo este ltimo nunca recusava categoricamente, mas arrastava as coisas indefinidamente, fazendo por vezes sentimentalismo), interessou-se pelos rfos e concebeu afeio especial pelo caula, que ficou muito tempo na sua famlia. Chamo a ateno do leitor para isso. Se os jovens deviam a algum sua educao e sua instruo, era justamente a Iefim Pietrvitch, carter nobre raramente encontrado. Conservou intato para as crianas seu pequeno capital, que, na ocasio de sua maioridade, atingia 2 000 rublos com os juros, educou-os s suas custas, gastando nisso, para cada um, bem mais de 1 000 rublos. No farei agora um relato detalhado da infncia e da juventude deles, limitando-o s principais circunstncias. O mais velho, Iv, tornou-se um adolescente sombrio e fechado, nada tmido, mas compreendera bem cedo que seu irmo e ele cresciam em casa

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  • de estranhos, de graa, que tinham como pai um indivduo que lhes causava vergonha, etc. Esse rapaz mostrou, desde sua mais tenra idade (pelo que se conta, pelo menos), brilhantes capacidades para o estudo. Com a idade de cerca de treze anos, deixou a famlia de Iefim Pietrvitch para seguir os cursos de um ginsio de Moscou, e tomar penso em casa de um famoso pedagogo, amigo de infncia de seu benfeitor. Mais tarde, Iv contava que Iefim Pietrvitch fora inspirado por seu "ardor pelo bem" e pela idia de que um adolescente genialmente dotado devia ser educado por um educador genial. De resto, nem seu protetor, nem o educador de gnio existiam mais, quando o rapaz entrou para a universidade. No tendo Iefim Pietrvitch tomado bem suas disposies e como o pagamento do legado da generala ia-se arrastando, em conseqncia de diversas formalidades e retardamentos inevitveis entre ns, o rapaz viu-se em apertos nos seus dois primeiros anos de universidade, obrigado a ganhar sua vida enquanto fazia seus estudos. preciso notar que ento no tentou de modo algum corresponder-se com seu pai talvez por altivez, por desdm para com ele, talvez tambm o frio clculo de sua razo lhe demonstrasse que nada tinha a esperar dele. Seja como for, o rapaz no se perturbou, encontrou trabalho, a princpio deu lies a 20 copeques, em seguida redigiu artigos de dez linhas a respeito de cenas da rua, assinados "Uma Testemunha Ocular", que levava a diversos jornais. Esses artigos, dizem, eram sempre curiosos e espirituosos, o que lhes assegurou bom xito. Dessa maneira o jovem reprter mostrou sua superioridade prtica e intelectual sobre os numerosos estudantes dos dois sexos, sempre necessitados, que, em Petersburgo e em. Moscou, assaltam ordinariamente, da manh noite, as redaes dos jornais e revistas, no imaginando nada de melhor seno reiterar seu eterno pedido de tradues do francs e cpias. Uma vez conhecido nas redaes, Iv Fidorovitch no perdeu o contato; nos seus derradeiros anos de universidade, ps-se com muito talento a escrever resenhas de obras especiais, fazendo-se assim conhecido nos crculos literrios. Mas somente para o fim que conseguiu, por acaso, despertar uma ateno particular num crculo de leitores muito mais extenso. O caso era bastante curioso. sua sada da universidade e quando se preparava para partir para o estrangeiro com seus 2000 rublos, publicou Iv Fidorovitch, num grande jornal, um artigo estranho, que atraiu a ateno at mesmo dos profanos. O assunto era-lhe aparentemente desconhecido, uma vez que seguira os cursos de Cincias Naturais e o artigo tratava a questo dos tribunais eclesisticos, suscitada, ento, por toda parte. Examinando algumas opinies emitidas a respeito

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  • dessa matria, expunha igualmente suas opinies pessoais. O que impressionava era o tom e o inesperado da concluso. Ora, muitos eclesisticos tinham o autor como seu partidrio. Por outra parte, os leigos, bem como os ateus, aplaudiam suas idias. Afinal de contas, algumas pessoas decidiram que o artigo inteiro no passava de uma desavergonhada mistificao. Se menciono esse episdio sobretudo porque o artigo em questo chegou at o nosso famoso mosteiro onde havia interesse pela questo dos tribunais eclesisticos e ali provocou grande perplexidade. Uma vez conhecido o nome do autor, o fato de ser originrio de nossa cidade e filho daquele mesmo Fidor Pvlovitch aumentou o interesse. Pela mesma poca, apareceu o autor em pessoa.

    Por que Iv Fidorovitch viera casa de seu pai, j o perguntava eu ento a mim mesmo, lembro-me, com certa inquietude. Aquela chegada to fatal, que engendrou tantas conseqncias, permaneceu por muito tempo inexplicada para mim. Na verdade, era estranho que um jovem to sbio, de aparncia to altiva e to reservada, aparecesse numa casa to escandalosa, em casa de tal pai. Este ignorara-o toda a sua vida, no se lembrava dele e, se bem que no tivesse dado, por coisa alguma do mundo, dinheiro, se lho houvessem pedido, temia sempre que seus filhos aparecessem para lho reclamar. E eis que o rapaz se instala na casa de tal pai, passa junto com ele um ms, depois dois, e se entendem maravilhosamente. No fui eu o nico a espantar-me com tal acordo. Piotr Alieksndrovitch Misov, de quem j se falou, passava uma temporada ento entre ns, na sua propriedade suburbana, vindo de Paris, onde fixara residncia. Estava surpreendido mais que todos, tendo travado conhecimento com o rapaz que o interessava bastante e com o qual rivalizava em erudio. "Ele altivo", dizia-nos. "Saber sempre arranjar-se; desde agora, tem com que partir para o estrangeiro. Que faz ele aqui? Todos sabem que no veio c procurar seu pai para pedir dinheiro, que aquele lho recusaria, alis. No gosta de beber, nem de requestar mulheres; no entanto, o velho no pode passar sem ele, de tal modo esto de acordo. " Era verdade; o jovem exercia visvel influncia sobre o velho, que por vezes o atendia, se bem que muito teimoso e caprichoso; comeou mesmo a comportar-se mais decentemente...

    Soube-se mais tarde que Iv chegara igualmente por causa da demanda e dos interesses de seu irmo mais velho, Dimtri, que ele viu pela primeira vez nessa ocasio, mas com o qual j se correspondia, a respeito de um negcio importante. Falar-se- disso pormenorizadamente

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  • a seu tempo. Mesmo quando fiquei ao corrente, pareceu-me Iv Fidorovitch enigmtico e sua chegada nossa cidade difcil de explicar.

    Acrescentarei que ele mantinha papel de rbitro e de reconciliador entre seu pai e seu irmo mais velho, ento totalmente desavindos, tendo este ltimo intentado mesmo uma ao na justia.

    Pela primeira vez, repito-o, essa famlia, da qual certos membros nunca se tinham visto, achou-se reunida. Somente o caula, Alieksi, morava entre ns havia j um ano. difcil falar dele neste prembulo, antes de p-lo em cena no romance. Devo, no entanto, estender-me a seu respeito para elucidar um ponto estranho, isto , que meu heri aparece, desde a primeira cena, sob o hbito de um novio. Havia um ano, com efeito, que morava em nosso mosteiro e se preparava para ali passar o resto de seus dias.

    IV

    O TERCEIRO FILHO: ALICHA

    Tinha vinte anos (seus irmos, Iv e Dimtri, estavam ento, res-pectivamente, com 24 e 28 anos). Devo prevenir que esse jovem Alicha no era absolutamente um fantico, nem mesmo, pelo que creio, um mstico. Na minha opinio, era simplesmente um filantropo na dianteira do seu tempo, e, se escolhera a vida monstica, era porque ento somente ela o atraa e representava para ele a ascenso ideal para o amor radioso de sua alma liberta das trevas e do dio daqui embaixo. Atraa-o essa via unicamente porque havia nela encontrado um ser excepcional a seus olhos, o nosso famoso striets3 Zsima, ao qual se ligara com todo o fervor novio de seu corao sedento. Convenho que era ele j bastante estranho, tendo isso comeado desde o bero. J contei que, tendo perdido sua me aos quatro anos, dela se lembrou toda a sua vida, de seu rosto, de suas carcias, "como se eu a visse viva". Semelhantes recordaes podem persistir (cada qual o sabe), mesmo numa idade mais tenra, mas no permanecem como pontos luminosos nas trevas, como o fragmento de um imenso quadro que tivesse desaparecido. Era o caso para ele: lembrava-se duma suave noite de vero, da janela aberta aos raios oblquos do sol poente; a um

    3 Monge idoso e pobre, respeitado pela sua bondade e sabedoria.

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  • canto do quarto, uma imagem santa com a lmpada acesa e, diante da imagem, sua me ajoelhada, soluando como numa crise de nervos, lanando gemidos e exclamaes. Ela o tomara em seus braos, apertando-o a ponto de sufoc-lo, e implorava por ele Santa Virgem, afrouxando seu amplexo para empurr-lo para a imagem como a p-lo sob sua proteo... mas a ama acorre e arranca-o, apavorada, dos braos de sua me. Tal era a cena! Alicha lembrava-se do rosto de sua me, exaltado, mas sublime, segundo suas recordaes. Mas no gostava de falar disso. Na sua infncia e na sua mocidade, era antes concentrado e at mesmo taciturno, no por timidez ou selvageria, pelo contrrio, mas por uma espcie de preocupao interior to profunda que o fazia esquecer-se dos que o cercavam. Mas gostava de seus semelhantes, toda a sua vida teve f neles, sem passar jamais por simplrio ou ingnuo. Algo nele revelava que no queria ser o juiz alheio, nem censurar as pessoas ou conden-las por preo algum. Parecia mesmo tudo admitir, sem reprovao, embora muitas vezes com profunda melancolia. Bem mais ainda, conseguira neste sentido ficar inacessvel ao espanto e ao medo, desde sua primeira mocidade. Chegado aos vinte anos casa de seu pai, num foco de baixo deboche, ele, casto e puro, retirava-se em silncio, quando a vida se lhe tornava intolervel, mas sem testemunhar a ningum reprovao alguma nem desprezo. Tendo seu pai sido outrora parasita e, por conseqncia, sutil e sensvel s ofensas, acolheu-o a princpio de m-vontade. "Ele se cala", dizia ele, "mas nem por isso deixa de pensar. " Entretanto, no tardou em beij-lo, em acarici-lo; eram, na verdade, lgrimas e um enternecimento de bbedo, mas via-se que o amava com um amor sincero, profundo, que at ento fora incapaz de sentir por quem quer que fosse... Sim, aquele adolescente era amado por todos, em toda parte aonde fosse, e isto desde sua infncia. Na famlia de seu benfeitor, Iefim Pietrvitch Polinov, tinham-se de tal modo ligado a ele que todos o consideravam como filho da casa. Ora, entrara em casa deles numa idade em que a criana ainda incapaz de clculo e de astcia, em que ignora as intrigas que atraem o favor e a arte de se fazer amar. Esse dom de despertar a simpatia era por conseqncia nele natural, espontneo, sem artifcio. O mesmo ocorria na escola e, no entanto, as crianas como Alicha atraem a desconfiana de seus camaradas, suas zombarias e, por vezes, o dio. Desde a infncia, gostava ele, por exemplo, de isolar-se para sonhar, para ler num canto; contudo, foi objeto de afeio geral durante sua permanncia na escola. No era brincalho, nem mesmo alegre; observando-se, via-se depressa que no era melancolia, mas, pelo

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  • contrrio, uma disposio igual e serena. Entre seus condiscpulos, jamais queria pr-se frente. Por esta razo, talvez, jamais temia algum e os rapazes notavam que, longe de orgulhar-se disso, parecia ignorar sua ousadia, sua intrepidez. No era rancoroso. Uma hora aps ter sido ofendido, respondia ao ofensor ou dirigia-lhe ele prprio a palavra, com um ar confiante, tranqilo, como se nada se tivesse passado entre eles. No parecia ento ter esquecido a ofensa, ou decidido perdo-la, mas no se considerava ofendido e isto fazia com que conquistasse o corao dos meninos. Um s trao de seu carter incitava freqentemente todos os seus camaradas a zombarem dele, no por maldade, mas por divertimento. Era dum pudor, duma castidade exaltada, feroz. No podia suportar certas palavras e certas conversas a respeito de mulheres. Essas "certas" palavras e conversas so infelizmente tradicionais nas escolas. Jovens de alma e corao puros, quase crianas ainda, gostam muitas vezes de entre-ter-se com cenas e imagens, a respeito das quais os prprios soldados nem sempre falam; alis, estes ltimos sabem menos a este respeito que os rapazes de nossa sociedade culta. No h ainda a, admito-o, corrupo moral, nem verdadeiro cinismo, mas a aparncia disso; e isso passa freqentemente aos olhos deles como algo de delicado, de fino, digno de ser imitado. Vendo Alicha Karamzov tapar rapidamente os ouvidos, quando se falava "daquilo", formavam por vezes crculos em redor dele, afastavam suas mos fora e gritavam-lhe obscenidades. Alieksii debatia-se, deitava-se no cho, ocultando o rosto; suportava a ofensa em silncio e sem se zangar. Por fim deixavam-no em repouso, cessavam de cham-lo de "mocinha", sentiam mesmo compaixo por ele. Na classe, era um dos melhores alunos, mas nunca obteve o primeiro lugar.

    Aps a morte de Iefim Pietrvitch, Alicha passou ainda dois anos no ginsio. A viva partiu em breve para uma longa viagem Itlia, com toda a sua famlia, que se compunha de mulheres. O rapaz foi morar em casa de parentes afastados do defunto, duas senhoras que ele jamais vira. Ignorava as condies; era alis nele um trao bastante caracterstico o jamais inquietar-se custa de quem vivia. A este respeito, era totalmente o contrrio de seu irmo mais velho, Iv, que conhecera a pobreza nos seus dois primeiros anos de universidade, vivendo de seu trabalho, e que havia sofrido, desde sua infncia, por ter de comer o po de um benfeitor. Mas no se podia julgar severamente essa particularidade do carter de Alieksii, porque bastava conhec-lo um pouco para que se ficasse convencido de que era um desses inocentes capazes de dar todo o seu

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  • capital a uma boa obra, ou mesmo a um cavalheiro de indstria, se lho pedisse. Em geral ignorava o valor do dinheiro, em sentido figurado, entenda-se. Quando lhe davam dinheiro no sabia o que fazer dele durante semanas ou gastava-o num piscar de olhos. Piotr Alieksndrovitch Misov, bastante meticuloso no que se refere a dinheiro e honestidade burguesa, tendo tido mais tarde ocasio de observar Alieksii, caracterizou-o desta maneira: "Eis talvez o nico homem no mundo que, se ficasse sem recursos numa grande cidade desconhecida, no morreria de fome, nem de frio, porque imediatamente o nutririam, viriam em seu auxlio, seno ele mesmo se livraria logo de apertos, sem trabalho, nem humilhao, e seria um prazer para os outros prestar-lhe servios".

    No ginsio, no terminou seus estudos: restava-lhe ainda um ano, quando declarou de repente quelas senhoras que partia para a casa de seu pai por causa de um negcio que lhe viera cabea. As senhoras lamentaram-no muito; no queriam deix-lo partir. A viagem custava muito pouco, e no deixaram elas que ele empenhasse o relgio que lhe tinha dado a famlia de seu benfeitor, antes de partir para o estrangeiro; foi abundantemente provido de dinheiro, bem como de roupa branca e vestes, mas ele devolveu-lhes a metade da soma declarando que fazia questo de viajar em terceira classe. Como seu pai lhe perguntasse por que viera antes de ter acabado seus estudos, no respondeu nada, mas mostrou-se mais pensativo que de costume. Em breve verificou-se que ele procurava o tumulo de sua me. Confessou mesmo no ter vindo seno para isso. Mas no era provavelmente a nica causa de sua chegada. Sem dvida, ignorava ento que no teria podido explicar ele mesmo com certeza o que havia de sbito surgido em seu ntimo para arrast-lo irresistivelmente a uma via nova, desconhecida. Fidor Pvlovitch no pde indicar-lhe o tumulo de sua me, porque ali jamais voltara e esquecera o lugar aps tantos anos...

    Falemos de Fidor Pvlovitch. Ficara muito tempo ausente de nossa cidade. Trs ou quatro anos aps a morte de sua segunda mulher, partiu para o sul da Rssia e chegou por fim a Odessa, onde passou vrios anos. Travou conhecimento, segundo suas prprias palavras, com "muitos judeus, judias e judotes de toda laia", e acabou por ser recebido "no s em casa dos judeus, mas tambm em casa dos israelitas". preciso crer que, durante esse perodo, aperfeioara a arte de juntar e de subtrair dinheiro. Reapareceu em nossa cidade trs anos somente antes da chegada de

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  • Alicha. Seus antigos conhecidos acharam-no bastante envelhecido, se bem que no fosse muito idoso. Mostrou-se mais descarado do que nunca: o antigo bufo experimentava agora a necessidade de rir custa dos outros. Gostava de freqentar os bordis duma maneira mais repugnante do que outrora e, graas a ele, novos cabars abriram-se em nosso distrito. Atribuam-lhe um capital de 100 000 rublos ou quase, e dentro em breve muitas pessoas tornaram-se seus devedores, em troca de slidas garantias. Nos ltimos tempos, ficara enrugado, comeava a perder o equilbrio temperamental e o controle de si mesmo; caiu numa espcie de idiotismo, comeando por uma coisa e acabando por outra, incapaz de concentrar-se e embriagando-se cada vez mais. Sem aquele mesmo criado, Gregrio, que havia tambm envelhecido muito e o vigiava por vezes como um guia. a existncia de Fidor Pvlovitch teria sido eriada de dificuldades. A chegada de Alicha influiu sobre ele do ponto de vista moral, e recordaes, que dormiam desde muito tempo, despertaram-se na alma daquele velho prematuro. "Sabes", repetia ele a seu filho, observando-o, "que te pareces com a endemoniada?" Era assim que chamava sua segunda mulher. Foi o criado Gregrio quem indicou a Alicha o tumulo da "endemoniada". Conduziu-o ao cemitrio, mostrou-lhe num canto afastado uma placa de ferro fundido, modesta mas decente, em que estavam gravados o nome, a condio, a idade da defunta, com a data de sua morte: embaixo figurava uma quadra, como se l freqentemente sobre o tumulo das pessoas da classe mdia. Coisa de espantar: aquela laje era obra de Gregrio. Fora ele que a colocara, s suas custas, sobre o tumulo da pobre - "endemoniada", depois de ter muitas vezes importunado seu patro com suas aluses; este partira afinal para Odessa, dando de ombros a respeito de tmulos e de todas as suas recordaes. Alicha no mostrou nenhuma emoo especial diante do tumulo de sua me; prestou ateno ao relato grave que lhe fez Gregrio a respeito da colocao da laje, permaneceu curvado e retirou-se sem ter pronunciado uma palavra. Depois, no voltou mais ao cemitrio, talvez por um ano inteiro. Mas esse episdio produziu em Fidor Pvlovitch um efeito bastante original. Pegou 1000 rublos e levou-os ao nosso mosteiro para o repouso da alma de sua mulher, no a segunda, a "endemoniada", mas a primeira, aquela que lhe batia. Na mesma noite, embriagou-se e falou mal dos monges na presena de Alicha. Ele prprio estava longe de ter sentimentos religiosos; talvez jamais tivesse posto uma vela de 5 copeques diante de uma imagem. Os sentimentos e o pensamento de semelhantes indivduos tm por vezes impulsos to bruscos quanto estranhos.

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  • J disse que ele havia ficado bastante enrugado. Sua fisionomia trazia ento os traos reveladores da existncia que levara. s pequenas bolsas que pendiam sob seus olhinhos sempre descarados, desconfiados, maliciosos, s rugas profundas que sulcavam sua cara gorda vinha juntar-se, sob seu queixo pontudo, um gordo pomo-de-ado, carnudo, que lhe dava o ar de um luxurioso repelente. Juntai a isto uma larga boca de carniceiro, de lbios intumescidos, em que apareciam os cacos enegrecidos de seus dentes apodrecidos. Espalhava saliva toda vez que falava. De resto, gostava de zombar de sua figura, se bem que ela lhe agradasse, sobretudo seu nariz, no muito grande, mas bastante reduzido e curvo. "Um verdadeiro nariz romano'*, dizia ele. "Com meu pomo-de-ado, dir-se-ia um perfeito patrcio da decadncia. '* Orgulhava-se disso.

    Algum tempo depois da descoberta do tumulo de sua me, decla-rou-lhe Alicha, inesperadamente, que queria entrar para o convento onde os monges estavam dispostos a admiti-lo como novio. Acrescentou que era seu mais caro desejo e que lhe implorava o consentimento paterno. O velho j sabia que o strets Zsima produzira sobre seu "manso rapaz" uma impresso particular.

    Esse strets seguramente entre eles o monge mais honesto declarou, depois de ter ouvido Alicha, num silncio pensativo, mas sem se espantar com o pedido dele. Hum! Eis aonde queres ir, meu manso rapaz! Estava meio bbedo. Abria-se no seu rosto um sorriso de brio, marcado de astcia e finura. Hum! Previa que irias chegar a isso, imagina tu! Era bem isto que tinhas em visita. Pois bem, seja! Tens 2 000 rublos, ser teu dote; quanto a mim, meu anjo, no te abandonarei nunca e pagarei por ti o que for preciso, se o pedirem. Seno, de que serve tomarmos compromisso, no verdade? Precisas de tanto dinheiro quanto de alpiste um canrio... Hum! Sabes? H um convento, com um lugarejo, nos arredores da cidade, habitado, como ningum o ignora, pelas "esposas dos monges", assim que as chamam. So umas trinta, creio... Visitei-o. interessante, no seu gnero. Interrompe a monotonia. Por desgraa, s se encontram ali russas, nem uma francesa. Poder-se-ia t-las, no faltam fundos para isso. Quando o souberem, viro. Aqui, no h mulheres, mas duzentos monges. Jejuam conscientemente. Convenho... Hum! Com que ento, queres fazer-te monge? Causas-me d> Alicha; na verdade, tinha-te criado afeio... Alis, eis uma boa ocasio: reza por ns, pecadores de conscincia sobrecarregada. Tenho muitas vezes perguntado a mim mesmo: quem rezar um dia por mim? Meu querido rapaz, sou

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  • totalmente ignorante a este respeito, talvez o saibas, no? Totalmente. Mas vs, malgrado minha estupidez, reflito por vezes; penso que os diabos me arrastaro com toda a certeza com seus ganchos, aps a minha morte. E digo a mim mesmo: donde vm esses ganchos? De que so? De ferro? Onde os forjam? Ser que eles possuem uma fbrica? Os religiosos, por exemplo, esto convencidos de que o inferno tem teto. Ora, tenho muita vontade de acreditar no inferno, mas sem teto, mais delicado, mais iluminado, como entre os luteranos. No fundo, no ser a mesma coisa, com ou sem teto? Eis a dificuldade! Ora, se no h teto, ento no h ganchos. Mas seria incrvel: quem me arrastaria ento, com ganchos? Porque, se no me arrastarem, onde estaria a justia neste mundo? Seria preciso inventar esses ganchos, especialmente para mim, para mim s. Se soubesses, Alicha, que descarado sou eu!...

    No h ganchos l declarou Alicha, em voz baixa, olhando seriamente para seu pai.

    Ah! s h sombras de ganchos. Sei, sei. Era assim que um francs descrevia o inferno. Vai vu Vombre d'un cocher qui, avec Vombre d*une brosse, frottait Vombre d'un carrosse 4 . Donde sabes tu, meu caro, que no h ganchos? Uma vez entre os monges, mudaras de tom. Mas, afinal, parte, vai destrinar a verdade e vem informar-me. Ser mais fcil ir para o outro mundo sabendo o que l se passa. Ser mais conveniente para ti estar entre os monges do que em minha casa, velho bbedo, com mulheres... se bem que estejas, como um anjo, acima de tudo isso. Talvez o mesmo acontea l e, se te deixo ir, que conto com isso. No s tolo. Teu ardor se extinguira e voltars curado. Quanto a mim, esperar-te-ei, porque sinto que s o nico neste mundo que no me censurou, meu querido rapaz, no posso deixar de senti-lo!...

    E ps-se a choramingar. Estava sentimental. Sim, era mau e sen-timental.

    V

    OS "STRTSI"

    4 "Vi a sombra de um cocheiro que, com a sombra de uma escova, esfregava a sombra de uma

    carruagem" Versos tirados de uma pardia do Livro VI da Eneida pelos irmos Perrault, em 1646.

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  • O leitor imaginar talvez que o meu heri fosse um indivduo doentio e exttico, um plido sonhador, macilento, atacado de tuberculose. Pelo contrrio, Alicha, que tinha ento dezenove anos, era um jovem bem feito, de faces vermelhas, de olhar lmpido, transbordante de sade. Era mesmo bastante belo, de talhe esbelto, cabelos castanhos, rosto regular, embora um pouco alongado, olhos dum cinzento-escuro, brilhantes, ras-gados, pensativo e parecendo bastante calmo. Dir-se- talvez que faces vermelhas no impedem de ser fantico ou mstico; ora, parece-me que Alicha era, mais que qualquer outra pessoa, realista. Oh! bem decerto, no convento cria perfeitamente nos milagres, mas, na minha opinio, os milagres jamais perturbaro o realista. No so eles que o levam a crer. Um verdadeiro realista, se incrdulo, encontra sempre em si a fora e faculdade de no crer mesmo no milagre e, se este ltimo se apresenta como um fato incontestvel, duvidar de seus sentidos em vez mesmo de admitir o fato. Se o admitir, ser como um fato natural, mas desconhecido dele at ento. No realista, a f no nasce do milagre, mas o milagre da f. Se o realista adquire a f, deve necessariamente, em virtude de seu realismo, admitir tambm o milagre. O apstolo Tome declarou que no acreditaria enquanto no visse; em seguida, diz: "Meu Senhor e meu Deus!" Fora o milagre que o obrigara a crer? Muito provavelmente no, mas ele acreditava unicamente porque desejava crer; talvez tivesse j a f inteira nas dobras ocultas de seu corao, mesmo quando declarava: "S acreditarei depois que tiver visto.

    Dir-se- talvez que licha era obtuso, pouco desenvolvido, que no terminara seus estudos. Este ltimo fato exato, mas seria bastante injusto dizer que fosse ele obtuso ou estpido. Repito o que j disse: escolhera aquela via unicamente porque somente ela o atraia ento e representava a ascenso ideal para a luz de sua alma desprendida das trevas. Alm disso, era aquele rapaz da poca mais recente, isto , leal, vido de verdade, procurando-a cora f, e, uma vez encontrada, querendo dela participar com toda a fora de sua alma, querendo realizaes imediatas e pronto a tudo sacrificar com este fim, at mesmo sua vida. Entretanto, esses rapazes no compreendem, desgraadamente, que sacrificar sua vida a coisa mais fcil em muitos casos, ao passo que consagrar, por exemplo, cinco ou seis anos de sua bela mocidade ao estudo e cincia no fosse seno para decuplicar suas foras, a fim de servir verdade e atingir o fim proposto um sacrifcio que os ultrapassa. Alicha s fizera escolher a via oposta a todas as outras, mas com a mesma sede de realizao

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  • imediata. Logo que se convenceu, aps srias reflexes, de que Deus e a imortalidade existem, disse a si mesmo, naturalmente: "Quero viver para a imortalidade, no admito compromissos'*. Igualmente, se tivesse concludo que no h nem Deus nem imortalidade, ter-se-ia tornado imediatamente ateu e socialista (porque o socialismo no apenas a questo operria ou do quarto Estado, mas sobretudo a questo do atesmo, de sua encarnao contempornea, a questo da torre de Babel, que se construiu sem Deus, no para atingir os cus da terra, mas para abaixar os cus at a terra). Parecia estranho e impossvel a Alicha viver como antes. Est dito: "Abandona tudo quanto tens e segue-me, se queres ser perfeito". Alicha dizia a si mesmo: "No posso dar um lugar de "tudo' 2 rublos e em lugar de 'segue-me' ir somente missa". Entre as re-cordaes de sua tenra infncia, lembrava-se talvez de nosso mosteiro, aonde sua me talvez o levara para assistir aos ofcios. Talvez tivesse ali sofrido a influncia dos raios oblquos do sol poente diante da imagem para a qual o voltava sua me, a endemoniada. Chegou entre ns pensativo, unicamente para ver se se tratava aqui de tudo ou somente de 2 rublos, e encontrou no convento aquele striets.

    Era o striets Zsima, como j o expliquei acima; seria preciso dizer algumas palavras a propsito dos strtsi nos nossos mosteiros e lamento no ter, neste domnio, toda a competncia necessria. Tentarei, no entanto, faz-lo a grandes traos. Os especialistas competentes asseguram que a instituio dos strtsi apareceu nos mosteiros russos em poca recente, h menos de um sculo, quando, em todo o Oriente ortodoxo, sobretudo no Sinai e no Monte Atos, existe ela desde bem mais de mil anos. Pretende-se que os strtsi existiam na Rssia em tempos bastante antigos, ou que deveriam ter existido, mas que, em conseqncia das calamidades que sobrevieram, o jugo trtaro, as perturbaes, a interrupo das antigas relaes com o Oriente, aps a queda de Constantinopla, essa instituio se perdeu entre ns e os strtsi desapareceram. Foi ressuscitada por um dos maiores ascetas, Pasi Vielitchkvski, e por seus discpulos, mas at o presente, aps um sculo, existe ela em muito poucos conventos e foi mesmo, ou pouco faltou, alvo de perseguies, como uma inovao desconhecida na Rssia. Florescia sobretudo no famoso Eremitrio de Kzilhskaia Optnaia, Ignoro quando e por quem foi ela implantada em nosso mosteiro, mas j se haviam sucedido ali trs strtsi, dos quais Zsima era o ltimo. Estava quase a sucumbir fraqueza e s doenas e no se sabia por quem substitu-lo.

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  • Para nosso mosteiro, era essa uma sria questo, porque, at o presente, nada o havia distinguido; no possua nem relquias santas nem cones miraculosos, ligando-se as tradies gloriosas nossa histria. Faltavam-lhe igualmente os altos fatos histricos e os servios prestados ptria. Tornara-se florescente e famoso em toda a Rssia, graas a seus strtsi, que os peregrinos vinham em multido ver e ouvir de todos os pontos da Rssia, a milhares de verstas. Que um striets? O striets aquele que absorve vossa alma e vossa vontade nas suas. Tendo escolhido um striets, vs abdicais de vossa vontade e lha entregais com toda a obedincia, com inteira resignao. O penitente submete-se voluntariamente a essa prova, a essa dura aprendizagem, na esperana de, aps um longo estgio, vencer-se a si mesmo, dominar-se a ponto de atingir, afinal, depois de ter obedecido toda a sua vida, a liberdade perfeita, isto , a liberdade para consigo mesmo, e evitar a sorte daqueles que viveram sem se encontrar a si mesmos. Esta inveno, isto , a instituio dos strtsi, no terica, mas tirada, no Oriente, de uma prtica milenar. As obrigaes para com o striets so bem diversas da "obedincia** habitual que sempre existiu igualmente nos mosteiros russos. L, a confisso de todos os militantes ao striets perptua, e o elo que liga o confessor ao confessado, indissolvel. Conta-se que, nos tempos antigos do cristianismo, um novio, depois de haver deixado de cumprir um dever prescrito pelo seu striets, abandonou o mosteiro para dirigir-se a outro pas, da Sria ao Egito. Ali, praticou atos sublimes e foi por fim julgado digno de sofrer o martrio pela f. J a Igreja ia enterr-lo, reverenciando-o como um santo, quando o dicono proferiu: "Que os catecmenos saiam!*', o caixo que continha o corpo do mrtir foi arrancado de seu lugar e projetado fora do templo trs vezes em seguida. Soube-se por fim que aquele santo mrtir havia infringido a obedincia e abandonado o seu striets e que, por conseqncia, no podia ser perdoado sem o consentimento deste ltimo, malgrado sua vida sublime. Mas quando o striets, chamado, o desligou da obedincia, pde-se enterr-lo sem dificuldade. Sem dvida, no passa isso de uma antiga lenda, mas eis um fato recente. Um religioso cuidava de sua salvao no Monte Atos, ao qual queria de toda a sua alma, como um santurio e um retiro tranqilo, quando seu striets lhe ordenou,, de repente, que partisse para ir primeiro a Jerusalm, visitar os Lugares Santos,, depois voltar ao norte, na Sibria. "L que teu lugar e no aqui.'* Consternado e desolado, o monge foi procurar o patriarca em Constantinopla e suplicou-lhe que o libertasse da obedincia, mas o chefe da Igreja respondeu-lhe que no somente ele, patriarca, no podia deslig-lo, mas no havia

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  • nenhum poder no mundo capaz de faz-lo, exceto o striets do qual ele dependia. V-se dessa forma que, em certos casos, os strtsi esto investidos duma autoridade sem limites e incompreensvel. Eis por que, em muitos de nossos mosteiros, essa instituio foi a princpio quase perseguida. No entanto o povo testemunhou imediatamente grande venerao pelos strtsi. Por isso o povinho e as pessoas mais distintas vinham em multido prosternar-se diante dos strtsi de nosso mosteiro e lhes confessavam suas dvidas, seus pecados, seus sofrimentos, im-plorando conselhos e direes. Vendo o que, os adversrios dos strtsi lhes censuravam, entre outras acusaes, envilecerem arbitrariamente o sacramento da confisso, se bem que as confidencias ininterruptas do novio ou dum leigo ao striets no tivessem de modo algum o carter dum sacramento. Seja como for, a instituio dos strtsi manteve-se e implanta-se pouco a pouco nos mosteiros russos. verdade que esse meio experimentado e j milenar de regenerao moral, que faz o homem passar da escravido liberdade, aperfeioando-o, pode tambm tornar-se uma arma de dois gumes: em lugar da humildade e do domnio de si mesmo, pode desenvolver um orgulho satnico e fazer um escravo em lugar de um homem livre.

    O striets Zsima tinha 65 anos; descendia duma famlia de proprie-trios; na sua mocidade servira no Exrcito como oficial, no Cucaso. Sem dvida, Alicha ficou impressionado por certa qualidade especial da alma dele. Vivia na mesma cela do striets, que muito o amava e o mantinha a seu lado. preciso notar que, vivendo no mosteiro, no estava Alicha preso por nenhum lao; podia ir aonde bem quisesse, dias inteiros, e, se usava batina, era voluntariamente, para no se distinguir de ningum no mosteiro. Talvez a imaginao juvenil de Alicha tivesse sido muito impressionada pela fora e pela glria que cercavam seu striets como uma aurola. A propsito do striets Zsima, muitos contavam que, fora de acolher, desde numerosos anos, todos aqueles que vinham expandir seu corao, vidos de seus conselhos* e de suas consolaes, havia, para o fim, adquirido grande perspiccia. Ao primeiro olhar lanado sobre um desconhecido, adivinhava o motivo de sua vinda, o que lhe era preciso e at mesmo o que lhe atormentava a conscincia. O- penitente ficava espantado, confuso e por vezes mesmo apavorado por sentir-se penetrado, antes de ter proferido uma palavra. Alicha notara que muitos daqueles que vinham pela primeira vez entreter-se em particular com o striets entravam em seu aposento com temor e

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  • inquietao; quase todos saam radiantes e o rosto mais sombrio ilu-minava-se de satisfao. O que o surpreendia tambm que o striets, longe de ser severo, parecia mesmo satisfeito. Os monges diziam dele que se ligava aos mais pecadores e os estimava na proporo de seus pecados. Mesmo para o fim de sua vida, contava o striets, entre os monges, inimigos e invejosos, mas seu numero diminua, se bem que figurassem nele personalidades importantes do convento. Tal era um dos mais antigos religiosos, por demais taciturno e jejuador extraordinrio. No entanto, a grande maioria era partidria do striets Zsima e muitos o amavam sinceramente, de todo o seu corao; alguns lhe eram mesmo ligados quase fanticamente. Estes diziam, mas em voz baixa, que era um santo, decerto, e, prevendo seu fim prximo, aguardavam imediatos milagres que espalhariam grande glria sobre o mosteiro. Alieksii cria cegamente na fora miraculosa do striets, da mesma maneira que acreditava no relato do caixo projetado fora da igreja. Entre as pessoas que levavam ao striets crianas ou parentes doentes, para que ele lhes impusesse as mos ou rezasse uma orao em sua inteno, via Alicha muitos voltarem em breve, por vezes no dia seguinte, para agradecer-lhe de joelhos o ter-lhes curado seus doentes. Havia cura ou somente melhoria natural do estado deles? Alicha nem sequer fazia a si mesmo a pergunta, porque acreditava absolutamente na fora espiritual de seu mestre e a glria dele era como o seu prprio triunfo. Batia-lhe o corao e ficava radiante, sobretudo quando o striets saa a ter com a multido dos peregrinos que o esperavam nas portas do eremitrio, pessoas do povo vindas de todos os pontos da Rssia pura v-lo e receber sua bno. Prosternavam-se diante dele, choravam, beijavam seus ps e o lugar onde ele se achava, lanando gritos; as mulheres estendiam para ele seus filhos; traziam possessos. O striets falava-lhes, fazia uma curta orao, dava-lhes sua bno, depois mandava-os embora. Nos derradeiros tempos, a doena havia-o de tal modo enfraquecido que mal podia ele deixar sua cela e os peregrinos aguar- davam sua sada para o mosteiro, por vezes dias inteiros. Alicha no perguntava a si mesmo absolutamente por que eles o amavam tanto, por que se prosternavam diante dele com lgrimas de enternecimento, vendo seu rosto. Oh! Compreendia perfeitamente que para a alma resignada do simples povo russo, vergado sob o trabalho e o pesar, mas sobretudo sob a injustia e o pecado contnuos o seu e o do mundo no h maior necessidade e consolo do que encontrar um santurio ou um santo, cair de joelhos, ador-lo: "Se o pecado, a mentira, a tentao so nossa partilha, h no entanto em alguma parte do mundo um

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  • ser santo e sublime; possui a verdade, conhece-a; portanto, ela descer um dia at ns e reinar sobre a terra inteira, como foi pro* metido". Alicha sabia que assim que o povo sente e at mesmo raciocina; compreendia isto, mas que o striets fosse precisamente esse santo, esse depositrio da verdade divina aos olhos do povo, estava disso persuadido tanto quanto aqueles mujiques e aquelas mulheres doentes que lhe estendiam seus filhos. A convico de que o striets, aps sua morte, atrairia uma glria extraordinria para o mosteiro reinava na sua alma mais forte talvez do que entre os monges. Desde algum tempo, seu corao aquecia-se sempre mais labareda dum profundo entusiasmo interior. No o perturbava absolutamente nada ver no striets um indivduo isolado: "D no mesmo, h no seu corao o mistrio da renovao para todos, esse poder que instaurar por fim a verdade na terra e todos sero santos, amar-se-ao uns aos outros; no haver mais nem ricos nem pobres, nem elevados nem humilhados; todos sero como os filhos de Deus e ser isto o advento do reino do Cristo". Eis com que sonhava o corao de Alicha.

    Parece que impressionou fortemente a Alicha a chegada de seus dois irmos, que ele no conhecia absolutamente at ento. Ligara-se mais a Dimtri, se bem que este tivesse chegado mais tarde. Quanto a Iv, interessava-se muito por ele, mas os dois jovens permaneciam estranhos um ao outro e, no entanto, dois meses se haviam passado durante os quais viam-se bastante freqentemente. Alicha era taciturno; alm disso, parecia esperar no se sabia o que, ter vergonha de alguma coisa; muito embora tivesse notado no comeo os olhares curiosos que lhe lanava seu irmo, cessou Iv em breve de prestar-lhe ateno. Alicha sentiu por isso alguma confuso. Atribuiu a indiferena de seu irmo desigualdade de sua idade e de sua instruo. Mas tinha uma grande idia. O pouco interesse que lhe testemunhava Iv podia provir de uma causa que ele ignorava. Parecia este absorvido por algo de importante, como se visasse um alvo muito difcil, o que teria explicado sua distrao a respeito dele. Alieksii perguntou igualmente a si mesmo seno havia naquilo o desprezo de um ateu sbio por um pobre novio. No podia sentir-se ofendido com tal desprezo, se que ele existia, mas aguardava com um vago alarma, que ele prprio no explicava a si mesmo, no momento em que seu irmo queria aproximar-se dele. Seu irmo Dimtri falava de Iv com o mais profundo respeito, num tom circunspecto. Contou a Alicha os detalhes do importante negcio que havia aproximado estreitamente os dois mais velhos. O entusiasmo com que Dimtri falava de Iv

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  • impressionava tanto mais Alicha quanto, comparado a seu irmo, Dimtri era quase um ignorante; o contraste da personalidade deles e de seus caracteres era to vivo que se teria dificilmente imaginado dois seres to diferentes.

    Foi ento que teve lugar a entrevista, ou antes, a reunio, na cela do stariets, de todos os membros daquela famlia mal harmonizada, reunio que exerceu influncia extraordinria sobre Alicha. O pretexto que a motivou era na realidade mentiroso. O desacordo entre Dimtri e seu pai, a respeito da herana de sua me e das contas da propriedade, atingia ento seu auge. As relaes tinham-se envenenado a ponto de tornar-se insuportveis. Foi Fidor Pvlovitch quem sugeriu, por brincadeira, que se reunissem todos na cela do stariets Zsima; sem recorrer sua interveno, poderiam eles entender-se mais decentemente, sendo capazes a dignidade e a pessoa do stariets de impor a reconciliao. Dimtri, que jamais estivera em casa dele e jamais o vira, pensou que quisessem amedront-lo daquela maneira; mas, como ele prprio se censurava secretamente de muitas exploses bastante bruscas em sua querela com seu pai, aceitou o desafio. preciso notar que no residia, como Iv, em casa de seu pai, mas na outra extremidade da cidade. Piotr Alieksndrovitch Misov, que morava ento em nossa cidade, agarrou-se a essa idia. Liberal dos anos 40 e 50, livre-pensador e ateu, tomou neste caso uma parte extraordinria, por tdio, talvez, ou para se divertir. Tomou-o subitamente a fantasia de ver o mosteiro e o "santo". Como seu antigo processo contra o mosteiro durasse ainda o litgio tinha por objeto a delimitao de suas terras e certos direitos de pesca e de corte , apressou-se em aproveitar essa ocasio, sob o pretexto de entender-se com o padre abade, a fim de dar por terminado aquele negcio amigavelmente. Um visitante animado de to boas intenes podia ser recebido no mosteiro com mais atenes que um simples curioso. Estas consideraes fizeram com que se insistisse junto ao stariets, o qual, desde algum tempo, no deixava mais sua cela e recusava mesmo, por causa de sua doena, receber os simples visitantes. Deu seu consentimento e foi marcado o dia. "Quem me encarregou de decidir entre eles?*', declarou ele somente a Alicha, com um sorriso.

    Ao saber dessa reunio, ficou Alicha muito perturbado. Se algum dos adversrios em luta podia tomar aquela entrevista a srio, era seguramente seu irmo Dimtri, e somente ele; os outros iriam com intenes frvolas e talvez ofensivas para o stariets. Alicha o compreendia

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  • bem. Seu irmo Iv e Misov para ali se dirigiam levados pela curiosidade e seu pai para fazer o papel de palhao, se bem que guardando silncio. Conhecia-o a fundo. Repito-o, aquele rapaz no era to ingnuo como todos o acreditavam. Aguardava com ansiedade o dia marcado. Sem dvida levava muito em questo ver cessar por fim o desacordo na sua famlia. Mas preocupava-se sobretudo com o stariets; tremia por ele, pela sua glria, temendo as ofensas, particularmente as finas zombarias de Misov e as reticncias do erudito Iv. Queria mesmo tentar prevenir o stariets, falar-lhe a respeito daqueles visitantes eventuais, mas refletiu e calou-se. Na vspera do dia marcado, mandou dizer a Dimtri que o amava muito e esperava dele o cumprimento de sua promessa. Dimtri, que procurou em vo lembrar-se de ter prometido alguma coisa, respondeu-lhe por carta que faria tudo para evitar uma baixeza. Embora cheio de respeito pelo stariets e por Iv, via naquilo uma armadilha ou uma comdia indigna. "Entretanto, preferirei engolir minha lngua a faltar ao respeito ao santo homem que veneras", dizia Dimtri, terminando sua carta. Alicha nem por isso ficou reconfortado.

    LIVRO II

    UMA REUNIO INTEMPESTIVA

    I

    A CHEGADA AO MOSTEIRO

    Estava um dia magnfico, quente e claro. Era no fim de agosto. A entrevista com o striets fora marcada para imediatamente depois da ltima missa, s llh30. Os nossos visitantes chegaram quase no fim da cerimnia, em duas carruagens. A primeira, uma elegante calea puxada por dois cavalos de preo, estava ocupada por Piotr Alieksn-drovitch Misov e um parente afastado, Piotr Fomitch Kolgnov, de vinte anos de idade. Este rapaz preparava-se para entrar na universidade. Misov, de quem era ele hspede, propunha-lhe lev-lo ao estrangeiro, a Zurique ou a Iena, para ali acabar seus estudos, mas ele no havia ainda tomado deciso. Pensativo e distrado, tinha um aspecto agradvel, uma constituio robusta, a estatura bastante elevada. De olhar estranhamente fixo, o que prprio das pessoas distradas, olhava-nos por vezes muito

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  • tempo sem ver-nos; taciturno e algo embaraado, acontecia-lhe somente na intimidade mostrar-se de repente bastante loquaz, veemente, jovial, rindo s Deus sabe de qu. Mas sua imaginao no passava de um fogo de palha, assim que se acendia logo se apagava. Andava sempre bem vestido e at mesmo com apuro. Possuidor de certa fortuna, tinha ainda mais em perspectiva. Entretinha com Alicha relaes amigveis.

    Fidor Pvlovitch e seu filho tinham tomado lugar em uma calea de aluguel bastante estragada, mas espaosa, atrelada a dois velhos cavalos malhados de preto e branco, que seguiam a uma distncia respeitvel. Dimtri tinha sido prevenido na vspera da hora da entrevista, mas estava atrasado. Os visitantes deixaram suas carruagens perto da cerca, na hospedaria, e transpuseram a p as portas do mosteiro. Exceto Fidor Pvlovitch, os trs outros jamais tinham visto o mosteiro e Misov havia trinta anos que no entrava numa igreja. Olhava com certa curiosidade, assumindo um ar desenvolto. Mas o interior do mosteiro, de parte a igreja e as dependncias, alis bastante banais, nada oferecia a seu esprito observador. Os derradeiros fiis que saam da igreja benziam-se de gorros nas mos. Entre o povinho viam-se tambm pessoas de uma posio mais elevada: duas ou trs damas, um velho general, todos hospedados na pousada. Mendigos cercaram nossos visitantes, mas ningum lhes deu esmola. Somente Pietrucha Kolgnov tirou JO copeques de seu porta-moedas e, acanhado Deus sabe por que, introduziu-os rapidamente na mo de uma mulher* murmurando: "Reparta-os". Nenhum de seus companheiros lhe fez qualquer observao, o que teve como resultado aumentar-lhe a confuso.

    Coisa estranha: deveriam deveras esper-los e at mesmo testemu-nhar-lhes algumas atenes; um deles acabava de fazer um donativo de 1 000 rublos, o outro era um proprietrio bastante rico, que mantinha os monges mais ou menos sob sua dependncia, no que dizia respeito pesca, de acordo com o rumo que tomasse o processo. No entanto, nenhuma personalidade oficial se encontrava l para receb-los. Misov contemplava com ar distrado as lpides tumulares em redor da igreja e quis fazer a observao de que os ocupantes daqueles tmulos deviam ter pago bastante caro o direito de ser enterrados em um lugar to "santo**, mas manteve-se em silncio: sua ironia de liberal dava lugar irritao.

    A quem, diabo, devemos dirigir-nos nesta casa onde todos man-dam?... Seria preciso sab-lo, porque o tempo passa murmurou ele,

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  • como consigo mesmo.

    De repente, aproximou-se deles uma personagem calva, de idade madura, numa ampla veste de vero e de olhos ternos. De chapu na mo, apresentou-se, ceceando, como o proprietrio de terras Maksmov, do governo de Tula. Deu-se conta imediatamente do embarao daqueles senhores.

    O striets Zsima mora no eremitrio, parte, a quatrocentos passos do mosteiro; preciso atravessar o bosquezinho...

    Sei bem respondeu Fidor Pvlovitch. No nos lembramos bem da estrada, pois faz muito tempo que no venho por aqui.

    Passem por aquela porta, depois sigam diretamente pelo bosque-zinho. Permitam-me que os acompanhe... eu mesmo... por aqui. por aqui...

    Saram da cerca e meteram-se no bosque. O proprietrio Maksmov, de uns sessenta anos de idade, caminhava, ou antes, corria ao lado deles, examinando-os a todos com uma curiosidade incmoda. Esbugalhava os olhos.

    Fique o senhor sabendo que ns vamos casa desse striets para tratar de um negcio pessoal observou friamente Misov. Obtivemos, por assim dizer, "uma audincia" dessa personagem; de modo que, malgrado nossa gratido, no lhe propomos que entre conosco.

    J estive ali... Un chevalier parfait declarou, dando um piparote no ar, o proprietrio.

    Quem ce chevalier? perguntou Misov.

    O striets, o famoso striets... a glria e a honra do mosteiro, Zsima. Aquele striets, vejam...

    Sua tagarelice foi interrompida por um monge, com capuz, de pe-quena estatura, plido e desfeito, que alcanou o grupo. Fidor Pvlovitch e Misov pararam. O monge saudou-os com grande polidez e lhes disse:

    Senhores, o padre abade convida-os a todos a jantar, depois da visita ao eremitrio. 1 hora em ponto. O senhor tambm disse ele a Maksmov.

    No haverei de faltar exclamou Fidor Pvlovitch, encantado pelo convite. O senhor sabe que todos prometemos portar-nos decentemente... E o senhor vir, Piotr Alieksndrovitch?

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  • Como no? Por que estou aqui, seno para observar os costumes deles? Uma s coisa me embaraa, Fidor Pvlovitch, encontrar-me agora com o senhor.

    Sim, Dimtri Fidorovitch ainda no chegou.

    Seria perfeito se ele faltasse; acredita o senhor que seja isso uni prazer para mim, essa estria dos senhores e o senhor ainda de quebra? Estaremos l para o almoo; agradea ao padre abade disse ele ao monge.

    Perdo, tenho de conduzi-los casa do striets respondeu este.

    Neste caso vou diretamente casa do padre abade, sim, vou durante este tempo casa do padre abade gorjeou Maksmov.

    O padre abade est muito ocupado neste momento, mas ser como o senhor quiser... disse o monge, perplexo.

    Que sujeito cacete esse velho! observou Misov, quando Maksmov voltou ao mosteiro.

    Parece-se com Von Sohn declarou, de repente, Fidor Pvlovitch.

    tudo quanto o senhor sabe... Em que se parece ele com Von Sohn? O senhor mesmo j o viu?

    Vi-lhe a fotografia. Se bem que as feies no sejam idnticas, h qualquer coisa de indefinvel. totalmente o ssia de Von Sohn. Reconheo-o apenas pela fisionomia.

    Ah! Talvez seja o senhor entendido nisso. Todavia, Fidor Pvlovitch, o senhor acaba de lembrar que prometemos portar-nos decentemente; no se esquea disto. Digo-lhe que se contenha. Se o senhor comea a fazer-se de palhao, no tenho eu a inteno de ser metido no mesmo cesto que o senhor. Veja esse homem disse ele dirigindo-se ao monge , tenho medo de ir com ele casa de pessoas distintas.

    Um plido sorriso, no desprovido de astcia, apareceu nos lbios exangues do monge, que, no entanto, nada respondeu, deixando ver claramente que se calava pela conscincia de sua prpria dignidade. Misov franziu ainda mais o cenho.

    "Oh! Que o diabo leve a todas essas criaturas de exterior plasmado pelos sculos, mas cujo ntimo no seno charlatanismo e absurdo!",

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  • dizia ele entre si.

    Eis o eremitrio, chegamos gritou Fidor Pvlovitch, que se ps a fazer grandes sinais-da-cruz diante dos santos pintados por cima e de lado do portal.

    Cada qual vive como lhe agrada declarou ele. E o provrbio russo diz com razo: "A monge duma outra ordem no imponhas tua regra". H aqui 25 bons padres que tratam de sua salvao, contemplam-se uns aos outros e comem couves. E nem uma mulher transps esse portal, eis o que espantoso. No entanto, ouvi dizer que o striets recebia senhoras disse ele ao monge.

    As mulheres do povo esperam-no l embaixo, perto da galeria, veja, esto sentadas no cho. Para as senhoras da sociedade prepararam dois quartos na prpria galeria, mas fora da cerca, veja aquelas janelas; o striets ali chega por um corredor interno, quando sua sade lho permite. H uma Senhora Khokhlakova, proprietria em Khrkov, que quer consult-lo a respeito de sua filha, atacada de fraqueza. Teve de prometer vir v-las, se bem que nestes ltimos tempos esteja muito fraco e no se mostre em pblico.

    H, pois, no eremitrio uma porta entreaberta do lado das senhoras. No estou fazendo mau juzo, meu padre! No Monte Atos, o senhor deve saber, no somente so proibidas as visitas femininas, mas no se tolera nenhuma mulher, nem fmea, galinhas, peruas, bezerras...

    Fidor Pvlovitch, vou-me embora e deixo-o sozinho. Vo man-d-lo embora a braos, sou eu que lho predigo.

    Em que que eu o incomodo, Piotr Alieksndrovitch? Olhe! exclamou ele, de repente, uma vez transposta a cerca. Veja em que vale de rosas eles moram!

    Efetivamente, se bem que no houvesse ento rosas, via-se uma profuso de flores outonais, magnficas e raras. Mos experimentadas deviam cuidar delas. Havia canteiros em redor das igrejas e entre os tmulos. Flores cercavam ainda a casinha de madeira, um rs-do-cho, precedido duma galeria, onde se encontrava a cela do striets.

    Era assim tambm no tempo do striets precedente, Varsonfi? Dizem que ele no gostava da elegncia, arrebatva-se e recebia mesmo as senhoras s bengaladas observou Fidor Pvlovitch, subindo o patamar.

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  • O striets Varsonfi parecia por vezes, com efeito, um pobre de esprito, mas exagera-se muito a este respeito. Nunca bateu em ningum com o bculo respondeu o monge. Agora, senhores, um minuto, vou anunci-los.

    Fidor Pvlovitch, pela derradeira vez lho digo, comporte-se bem, do contrrio, ai do senhor! murmurou ainda uma vez Misov.

    Gostaria bem de saber o que o comove dessa maneira obser-vou Fidor Pvlovitch, zombeteiro. So seus pecados que o ame-drontam? Porque dizem que, com um simples olhar, adivinha ele com quem est tratando. Mas como pode fazer tal caso da opinio deles o senhor, um parisiense, um progressista? Palavra, o senhor me espanta!

    Misov no teve oportunidade de responder a este sarcasmo: convi-davam-nos a entrar. Sentiu ligeira irritao. "Pois bem! Sei de antemo que, nervoso como estou, irei discutir, acalorar-me... rebaixar-me, a mim e a minhas idias", disse a si mesmo.

    II

    UM VELHO PALHAO

    Entraram quase ao mesmo tempo que o striets, que, desde a che-gada deles, havia sado de seu quarto de dormir. Na cela, tinham sido precedidos por dois religiosos do eremitrio: um era o padre bibliotecrio, o outro o Padre Pasi, doente, malgrado sua idade pouco avanada, mas erudito, segundo se dizia. Achava-se ainda ali um rapaz (ficou de p todo o tempo), parecendo ter 22 anos de idade, de sobrecasaca, seminarista e futuro telogo, protegido pelo mosteiro e pela confraria. Era de estatura bastante elevada, tinha o rosto fresco, os pmulos salientes, com olhinhos castanhos de olhar inteligente. Seu rosto exprimia deferncia, mas sem obsequiosidade. No cumprimentou os visitantes, considerando-se no como igual deles, mas como um subalterno.

    O striets Zsima apareceu, em companhia de um novio e de Alicha. Os religiosos levantaram-se, fizeram-lhe profunda reverncia, com os dedos tocando a terra, receberam sua bno, beijaram-lhe a mo. A cada um deles, o striets respondeu com uma reverncia semelhante, com os dedos tocando a terra, pedindo-lhes por sua vez sua bno. Aquela cerimnia, marcada de grande seriedade, nada tendo da etiqueta

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  • vulgar, exalava uma espcie de emoo. No entanto, pareceu a Misov que aquilo se fazia com uma finalidade de sugesto premeditada. Conservava-se frente de seus companheiros. Teria sido conveniente, quaisquer que fossem suas idias e por simples polidez, para se conformar com os usos , que se aproximassem do striets para receber sua bno, se no para beijar-lhe a mo. Foi no que pensara na vspera, mas as reverncias e os beijos dos monges fizeram-no mudar de resoluo. Fez uma reverncia grave e digna, de homem da sociedade, e foi sentar-se. Fidor Pvlovitch fez a mesma coisa, macaqueando dessa vez Misov. A saudao de Iv Fidorovitch foi das mais corteses, mas tambm ele conservou seus braos ao longo dos quadas. Quanto a Kolgnov, tal era sua confuso que no fez saudao nenhuma. O striets deixou recair sua mo prestes a abeno-los e convidou todos a sentarem-se. O sangue subiu s faces de Alicha, estava envergonhado. Seus maus pressentimentos realizavam-se.

    O striets tomou lugar num pequeno diva de couro mvel bastante antigo e fez seus visitantes sentarem-se perto da parede em frente, em quatro cadeiras de acaju, recobertas de couro bastante surrado. Os religiosos instalaram-se de lado, um na porta, outro na janela. O seminarista, Alicha e o novio ficaram de p. A cela no era vasta e mostrava certo ar de coisa velha. Continha somente alguns mveis e objetos grosseiros, pobres, o estritamente necessrio. Dois jarros de flores na janela; a um canto, numerosos cones; um deles representava uma Virgem de grandes dimenses, pintada provavelmente muito tempo antes do Raskol.5 Uma lmpada ardia diante dela. No longe, dois outros cones de revestimentos cintilantes, depois dois querubins esculpidos, pequenos ovos de porcelana, um crucifixo de marfim, com uma Mater Dolorosa que o abraava, e algumas gravuras estrangeiras, reprodues de grandes pintores italianos dos sculos passados. Ao lado dessas obras de valor, exibiam-se litografias russas para uso do povo, representando santos, mrtires, prelados, as quais se vendiam por alguns copeques em todas as feiras. Misov lanou uma olhadela rpida sobre aquelas imagens, depois fixou seu olhar no striets. Respeitava sua maneira de ver, fraqueza desculpvel, seguramente, se se considerar que j tinha cinqenta anos, idade em que um homem do mundo, inteligente e opulento, leva-se

    5 Literalmente: ciso. Seita religiosa dos "velhos crentes" que provocou o cisma na Igreja russa, em meados do sculo XVII, contra as reformas do Patriarca Nikhon.

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  • sempre mais a srio, por vezes mesmo contra a sua vontade.

    Desde o comeo, o striets causara-lhe desagrado. Havia efetivamente em sua figura algo que teria desagradado a muitos outros que no apenas a Misov. Era um homenzinho curvado, de pernas muito fracas, de sessenta anos somente, mas que parecia ter dez anos mais, por causa de sua doena. Todo o seu rosto, alis bastante seco, estava sulcado de pequenas rugas, sobretudo em redor dos olhos. Tinha os olhos claros, no muito grandes, vivos e brilhantes como dois pontos luminosos. Seus cabelos grisalhos chegavam-lhe apenas s tmporas; sua barba, pequena e rala, acabava em ponta; os lbios, delgados como duas correias, sorriam freqentemente; o nariz agudo lembrava um pssaro.

    "Segundo toda a aparncia, uma alma malvola e arrogante", pensou. Em geral, estava muito descontente consigo mesmo.

    O soar da hora ajudou o incio do dilogo. Um pequeno relgio de pesos bateu doze pancadas.

    A hora exata exclamou Fidor Pvlovitch e meu filho Dimtri Fidorovitch que no chega! Peo-lhe desculpas por ele, santo striets! (Alicha estremeceu ao ouvir aquelas palavras de "santo st-riets".) Sou sempre pontual, dentro do minuto, lembrando-me de que a pontualidade a polidez dos reis.

    No entanto, o senhor no nenhum rei resmungou Misov, incapaz de conter-se.

    verdade, no o sou. E imagine, Piotr Alieksndrovitch, que eu mesmo o sabia, palavra! E falo sempre assim, fora de propsito! Vossa Reverncia exclamou ele, de sbito, num tom pattico tem diante de si um verdadeiro palhao. minha maneira de apresentar-me. Um velho hbito, ai de mim! Ora, se falo por vezes fora de propsito, intencionalmente, com o fim de fazer rir e ser agradvel. preciso ser agradvel, no verdade? H sete anos, cheguei a uma cidadezinha para tratar duns negocinhos, umas contas a meias com uns negociantezinhos. Fomos casa do isprvnik, uma vez que tnhamos algo a pedir-lhe e para convid-lo a comer conosco. Aparece o isprvnik: era um homem de alta estatura, gordo, louro e carrancudo os indivduos mais perigosos em semelhante caso, pois a blis os atormenta. Abordo-o com a desenvoltura de um homem do mundo: "Senhor Isprvnik", disse eu, "o senhor ser

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  • talvez, por assim dizer, o nosso Naprvnik?" 6 "Que Naprvnik?", perguntou ele. Vi imediatamente que aquilo no pegava, que ele continuava todo grave; obstinei-me: " uma brincadeira, quis tornar todos alegres, porque o Senhor Naprvnik um chefe de orquestra conhecido; ora, para a harmonia de nosso empreendimento, precisamos justamente duma espcie de chefe de orquestra". A explicao e a comparao eram razoveis, no? "Perdo", disse ele, "sou isprvnik e no permito que se faam trocadilhos a respeito de minha profisso." Volta as costas e retira-se. Corro atrs dele, gritando: "Sim, sim, o senhor isprvnik e no Na-prvnik". "No", replicou ele, "o senhor disse, sou Naprvnik." Imaginem que isso fez fracassar nosso negcio! Nem por isso me emendei. Prejudico-me por causa de minha amabilidade! Certa vez, h muitos anos, dizia eu a uma personagem importante: "Sua esposa uma mulher coceguenta", no sentido de ser muito sensvel em questes de honra, de qualidades morais, por assim dizer, ao que ele me replica: "O senhor lhe fez ccegas?" No pude conter-me, banquemos o amvel, pensei: "Sim, fiz-lhe ccegas"; mas ento quem me fez ccegas foi ele... Aconteceu h muito tempo, por isso no tenho vergonha de cont-lo; sempre assim que causo prejuzo a mim mesmo.

    est causando agora murmurou Misov, com desagrado. O striets examinava um a um, em silncio.

    Deveras? Imagine que j o sabia, Piotr Alieksndrovitch, e, at mesmo, saiba que pressentia o que fao, desde que comecei a falar, e at mesmo, saiba-o, pressentia que seria o senhor o primeiro a observar-me isso. Nesses momentos, quando vejo que minhas pilhrias no do resultado, reverendssimo senhor, minhas bochechas comeam a dessecar-se na direo das gengivas, tenho quase como uma convulso; isto remonta minha mocidade, quando era parasita em casa dos nobres e ganhava meu po por meio dessa habilidade. Sou um palhao autntico, inato, reverendssimo senhor, a mesma coisa que um idiota; no nego que um esprito mau more talvez em mim, bem modesto, cm todo caso; se fosse mais importante, ter-se-ia alojado em outra parte, somente no no senhor, Piotr Alieksndrovitch, porque o senhor no importante. Em compensao, creio, creio em Deus. Nestes ltimos tempos, tinha dvidas; mas agora espero sublimes palavras. Pareo-me com o filsofo Diderot, reverendssimo senhor. Sabe o senhor, santssimo padre, como se

    6 Nome forjado. Do verbo naprvliat, endireitar, dirigir.

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  • apresentou ele diante do metropolita Platon, no reinado da Imperatriz Catarina? Entrou e largou sem mais: "No h Deus**. Ao que o grande prelado respondeu, de dedo erguido: "O insensato disse em seu corao: 'no h Deus!*** Imediatamente Diderot lanou-se a seus ps: "Creio", exclamou ele, "e quero ser batizado. Batizaram-no ali mesmo. A Princesa Dachkova foi a madrinha, e Potiomkin o padrinho...

    Fidor Pvlovitch, intolervel! Porque o senhor mesmo sabe que est mentindo e que essa estpida anedota falsa; por que fazer-se malicioso? proferiu com voz trmula Misov, que j no se podia conter.

    Toda a minha vida pressenti que era isso uma mentira! excla-mou Fidor Pvlovitch, entusiasmando-se. Em compensao, senhores, dir-lhes-ei toda a verdade. Eminente striets, perdoe-me, eu mesmo Inventei esse fim, ainda h pouco, com o batismo de Diderot; isto jamais me ocorrera antes. Inventei-o para dar certo ar picante ao caso. Se me fao de malicioso, Piotr Alieksndrovitch, para ser mais gentil. De resto, por vezes, no sei eu mesmo por qu. Quanto a Diderot, ouvi contar isto: "O insensato disse..." umas vinte vezes na minha juventude, pelos proprietrios de terras do pas, quando morava entre eles; ouvi-o dizer, Piotr Alieksndrovitch, de sua prpria tia, Mavra Fomnichna. At agora, esto todos persuadidos de que o mpio Diderot fora casa do metropolita Platon para discutir a existncia de Deus...

    Uy Misov levantara-se, no somente porque perdera a pacincia, mas achava-se fora de si. Estava furioso e compreendia que isso o tornava ridculo. Com efeito, passava-se na cela algo de intolervel. Havia quarenta ou cinqenta anos, ainda no tempo dos precedentes strtsi, os visitantes reuniam-se naquela cela, mas sempre com a mais profunda venerao. Quase todos quantos eram admitidos compreendiam que lhes era concedido um insigne favor. Muitos, dentre eles, punham-se de joelhos e assim ficavam durante toda a visita. Pessoas de posio elevada, eruditos e at mesmo livres-pensadores, vindos, quer por curiosidade, quer por qualquer outro motivo, achavam um dever o testemunhar ao striets profunda deferncia e grandes atenes, durante toda a entrevista quer fosse pblica ou privada , tanto mais quanto no havia questo de dinheiro. S havia o amor e a bondade, em presena do arrependimento e da sede de resolver algum difcil problema moral ou uma crise da vida do corao. Assim, as piadas a que se entregara Fidor Pvlovitch, chocantes em tal lugar, haviam provocado o embarao e o

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  • espanto das testemunhas, em todo caso, de vrias dentre elas. Os religiosos, que permaneciam impassveis, fixavam sua ateno no que iria dizer o striets, mas pareciam j prestes a levantar-se como Misov. Alicha tinha vontade de chorar e curvava a cabea. Toda a sua esperana repousava em seu irmo Iv, o nico cuja influncia seria capaz de deter seu pai, e estava estupefato por v-lo sentado, imvel, de olhos baixos, aguardando com curiosidade o desenlace daquela cena, como se fosse completamente estranho a ela. Era impossvel a Alicha olhar para Raktin (o seminarista), com o qual vivia quase em intimidade: conhecia seus pensamentos (era, alis, o nico a conhec-los em todo o mosteiro).

    Desculpe-me... comeou Misov, dirigindo-se ao striets se pareo tomar parte nessa indigna pilhria. Errei ao acreditar que, at mesmo um indivduo da qualidade de Fidor Pvlovitch, visitando uma personalidade to respeitvel, saberia compreender suas obrigaes ... No pensava que seria preciso desculpar-me por ter vindo com ele...

    Piotr Alieksndrovitch no acabou e, todo confuso, queria sair j do quarto.

    No se inquiete, rogo-lhe disse o striets, que, erguendo-se sobre seus ps dbeis, pegou Piotr Alieksndrovitch pelas duas mos e obrigou-o a tornar a sentar-se. Acalme-se, rogo-lhe. O senhor meu hspede.

    Dito isto, e aps uma reverncia, voltou a sentar-se no diva.

    Eminente striets, diga-me, ser que minha vivacidade o ofende? exclamou, de repente, Fidor Pvlovitch, agarrando-se nos dois braos da poltrona, como prestes a saltar, de acordo com a resposta que recebesse.

    Rogo-lhe igualmente que no se inquiete e no se constranja declarou o striets com majestade. No se constranja, esteja como que em sua casa. Sobretudo no tenha tanta vergonha de si mes mo, porque todo o mal vem da.

    Completamente como em minha casa? Isto , ao natural? Oh! demais, muito demais. Aceito, porm, com enternecimento! Sabe, meu venerando padre? No me leve a mal mostrar-me ao natural, por demais arriscado... eu mesmo no chego a esse ponto. Digo isto para que o senhor se previna. Pois bem! o resto est ainda enterrado nas trevas do desconhecido, se bem que alguns quisessem enforcar-me. Isto dirige-se ao

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  • senhor, Piotr Alieksndrovitch; quanto ao senhor, santa criatura, eis o que declaro: "Estou transbordante de entusiasmo!" Levantou-se e, de braos para o ar, proferiu:

    "Bendito o ventre que te concebeu e benditos os peitos que te amamentaram, os peitos sobretudo!" Com aquela sua observao de h