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RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS DOSTOIEVSKI ·- ~ # W) I, cl.) F. M. DOSTOJEVSKI Por V. C. Peroy, artista russo (retrato de 1872) COLEQμ0 FOCOS CRUZADOS 50 DOSTOIEVSKI RECORDA OES DA CASA DOS MORTOS ROMANCE O Traduvao de RACHEL DE QUEIROZ Xilogravuras de OSVALDO COELDI Prefacio de BRITO BROCA Capa de SANTA ROSA 1945 'Livraria JOSÒ OLYMPIO Editora Ouvidor, 110, Rio - Gusmões. 104, S. Paulo # D Deste livro foram tirados, para- bibli¢filos. cento e cinquenta exemplares em papel Bouffant extra, creme, em grande for- mato, numerados de 1 a 150. e, c~ VUk C, Pw - =-:z- 1

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RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOSDOSTOIEVSKI

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W) I, cl.) F. M. DOSTOJEVSKI Por V. C. Peroy, artista russo (retrato de 1872) COLEQµ0 FOCOS CRUZADOS 50 DOSTOIEVSKI RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS ROMANCE O Traduvao de RACHEL DE QUEIROZ Xilogravuras de OSVALDO COELDI Prefacio de BRITO BROCA Capa de SANTA ROSA 1945 'Livraria JOSÒ OLYMPIO Editora Ouvidor, 110, Rio - Gusmões. 104, S. Paulo#

D Deste livro foram tirados, para- bibli¢filos. cento e cinquenta exemplares em papel Bouffant extra, creme, em grande for- mato, numerados de 1 a 150. e, c~ VUk C, Pw - =-:z- 1

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I& I IF NOTAS SOBRE "RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS" Poi& BRITO BROCA A id�ia de Dostoievski condenado por crime pol¡tico ao mais duro degredo na Si-beria, tem levado o p£blico pouco infotrmado sobre a vida do escritor a imagin -lo um revolucionario. �. o erro em que vinha incorrendo muita gente, entre n¢s, antes da vulgari- za�ão de biografias do romancista e do incremento dos estudos dos- toievskianos de alguns cmos para c , no Brasil. Dostoievski nunca foi revolucionario no sentido pol¡tico e social, e sua obra, nesse plano, � meMo a de um reacionario e conformista. Somente no terreno literario, art¡stico, ou mais propriamente psicol¢gico, podemos consi- der -lo revolucionario. Nesse, terrewo,, �im, Dosfoievski revolucio- nou o conceito de romance indo de encontro ... psicologia cl ssica, e abrindo caminho para os abismos do inco-nciente, onde mergulharia, mais tarde, Preud, como um escafandro. O romancista russo iniciou a descida aos infernos a que se refere um dos bi¢grafos do sabio vienense. Mas quais foram, na realidade, as circunstancias que levaram Dostoievski ... pris"o? Uma injusti�a, podemos dizer. O romancis- ta na-da fez que merecesse t"o duro castigo - a punicõo tremenda infligida aos implicados na pseudo-consPira�ão Petradevski., Veja- mos a historia. Petrachevski era um funciovario do MNister¡o do Interior, descontente com o regime - a tirania (Ia tzar Nicolau 1, que sempre nos aiparece com as cores mais negras, embora tantos historiadores tenham procurado ateviM-la , eXPUcando-a em face das wndi�õe:, especial¡ssimas da vida russa. O inicia do governr,1 do Izar foi, como se. sabe, as,~ina?,7(lo pela insurrei�ão dos "decem- bristas" - um movimento de nobres, exigindo reformas pol¡ticas e sociais. Os conspiradores pagaram a audacia na forca, e no exilio. Mas o ambiente ficou, carregado e o esp¡rito do tzar tern¡veIm ente prevenido. Ali s, o descontentamento continuou em ebul~Põo sub- terranea, principalmente entre a pequena burguesia e os intelectuais. Petrachevski era dos que achavam que havia muita coisa errada,

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ou antes, tudo estava errado, embora não possuisse id�ia n¡tida e#

- X - definida do que Seria preciso fazer para modificar aquilo. COM menor nitidez ainda se esbo�avam as id�ias no esp¡rito dos intelec- tua£. A Europa vivia em plena efervescencia rom�ntica, em pleno s~ libertario, o por toda parte surgiam as exalta�ões m¡sticw do sooWlinno ut¢pico. ' Os intelectuais russos liam, como tanta gente, pourier, Saint-Simon, os romances socializantes de George Sand e im&ginavam as maneiras de aplicar aquelas teorias na Russia - na Russia, esse mundo diferente, isolado do resto da Europa. De que maneira concretizar tais principios numa realiza�ão pr tica e positiva? Era o que winguem sabia, mesmo porque os russos ainda ~ que fazer a "revolu�ão francesa", vencer essa grande etapa, para chegar aos ideais de Fourier e Saint-Simon. Na Russia ainda havia servos, como no apogeu do feudalismo, e sem a medida prelimi- nar de abolir a servidõo nada seria possivel. Eis um dos problemas capitais que se discutiam em casa de Pe,trachevski. Discussão sem consequencia, sem nenhum inicio de a�ão, mesmo porque os interlo- cutores div�rgiam em seus pontos de vista. O destino de Dostoievski levou-o a frequentar essas reuniks. Como intelectual, pensava tarn- bem na sorte da Santa Russia, na miseria do povo e na arrogancia- dos nobres. Lera os utopistas, admirava enormemente George Sand e perdia-se em confabula�ões. Bastariam essas cireunstaneias para fazer dele um revolucionario? Certamente não. Havia em Dos- toievski o anseio de harmonia e (le justi�a comum. a quase todos os intelectuais. Por que tanta gente a gemer na servidão? Por que tanta dor, tanta queixa? Ah! era preciso suprimir esses males! E as palavras de Cristo a ecoarem em seu cora�ão: "Amai-vos uns aos outros". Teria isso alguma coisa com a id�ia de pegar em armas, rebelar-se contra o poder, derrubar o tzar? Não. Dostoievski tem confian�a no tzar e acha que do proprio soberano devem partir as medidas reformadoras. No fundo, o que o exalto, � o iJeal de um mundo perfeito. Temperamento nervoso, tem, entretanto, os seus instantes de arrebatamento. Imvreca, contra os abusos da nobreza, a intolerancia do clero, fala em revolta. Não nos esque�amos de que se trata de um epil�tico. Seria absurdo Julg -lo por essas expan- sJes passageiras. Dostoievski est longe de ser uma das figuras prin- cipais,nas reuniões de Petralchev�W: h outros que falam e se excedem mais do que ele, embora tão ivocuos quanto o romancista., no terreno pr tico. A fatalidade leva-o ai distinguir., entre todos, o £nico pe- rigoso - o estranho Spechnev, com o qual se liga em -intima caniara- dagem. Spechnev � o tipo d( conspirador vato: vasceu para isso r parece prelibar a volupia do martirio. Acabar w forca, ele bem o sabe, e todos os seus passos o encaminham, dia a dia, para esse desti, no inevitavel. Dostoievski sofre a influe?~eia irresistivel do compa- nheiro, do anjo mau. Talvez houvesse uma inten�ão literaria -nessa - X, - aproxima�U. O roma"tai veria em gpechnev um bom tipo~ um estranho exemPlar humano. E a propria maneira de referir-se ao#

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companheiro, chamando-o Mefist¢feles, trai literatura. Descontente com aquelas reuniões, onde muito se discutia, sem cuidar de agir, Speehnev pensa numa conspira�ão mais efioiente, para a qual seduz Dostoievski. Essa conspira�ão, na verdade, tam- bem não chegou a efetivar-se, mas a, influencia de Spec�nev teria con- tribuido_para que o romancista tomasse atitudes mais exaltadas na casa de Pet~evski. Enquato isso, a Terceira Sec�ão trabalhava. Certo Antonelli, espião estipendiado pela policia, tomava parte nas reuniões, fazendo detalhados relatorios de tudo que presenciava. Por maior que fosse o seu empenho, entretanto, não conseguia reunir provas capazes de comprometer Petrachevski e. os amigos. Era preciso esperar, ter paciencia. A&3 poucos a realidade da eonspira�jo havia de concre- tizar-,se. As expansões iam-se tornando cada vez mais graves. E num banquete em homenagem a Fourier, no qual, ali s, Dostoievski não tomou parte, o ¡mpeto subversivo do pequeno grupo alinge o limite almejado por Antonelli. O chefe de policia Orlof alarma-se com, o rei�atorio. Aqueles jovens palradores, que pareciam inofensi- vos, transformam-se, de um momento para outro, em perigosos rebel- des aos olhos das autoridades. A lembran�a do movimento "Decem- brista" continuava bem viva no esp¡rito de todos; urgia abafar a intentona com a maior rapidez pdssivel. Da¡ o resultado que o leitor j conhece: a prisão de Petrachevski e dos companheiros, inclusive Dostoievski e o seu ir~ Andr�. O romancista estava dormindo, quando a policia chegou, e ficou duplamente espantado, porque não contava com aquilo. Que fizera para ser preso? Con- versara, discutira entre os amigos. Mas o aparato da escolta indicava a g , ravidade do caso. Bem depressa lhe fugiram as esperan�as de que as coisas se esclarecessem rapidamente, sem maiores misequen- cia3. Era um conspirador perigoso e assim o tratava a polida, encerrando-o na fortaleza Pedro e Paulo, onde deveria aguardar o desenvolvimento do processo. As acusa�ões contra ele estavam longe, porem, de ser convimentes. Ter frequentado reuniões onde se ala- cavam o absolutismo e a Igreja ortodoxa; ter assistido ... leitura de uma -novela dissolvente, mesmo sob o regime de Nicolau, I, não bastavam para justificar uma condena�ão, se as autoridades não e,stivessem, empenhadasno prop¢sito de condenar de qualquer forma. DoistUevski � submetido a interrogatorios capciosos, fazem tudo Para arrancar-lhe respostas comprometedoras e o romancista resiste de tal maneira que chega a 4i-itar os membros da comissão de i*- qu�rito. Nega de p�s firmes qualquer intuito subversivo, repele as#

Z X111 - Xil id�ias socialistas e protesta sua$ convic�ões de patriota. ---Nãoimpor- ta: ora preciso condenar. E, a condena�ão -vem finalmente. Uma segunda junta de inqu�ritd, composta de membros oiv¡s e militares, profere a mais rigorosa senten�a: deporta�ão e fuzilamento. O ve- redictum sobe a nova instancia, ficando a pena para todos reduzida a trabalhos for�ados. O tzar limita a, senten�a de -Dostoievski a quatro anos, devendo o romancista, depois, ser transferido para o ex�rcito, como simples pra�a de pr�. Mas a puni�ão ainda ia revestir-se de um detalhe diab¢lico: os criminosos deviam ser conduzidos para o posto de fue¡lamento,

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e^ se tivessem sido condenados ... morte, viria o padre, diriam a £ltima vontade, todo o aparato sinistro da praxe, e quando houves- sem experimentado, em seu indescritivel horror, essa sensa�ão terrivel, ouviriam a leitura da v�rdadeira senten�a: o tzar, na sua infinita misericordia, transformava a pena de morte em exilio na Si-beria. A comedia foi desempenhada ...s maravilhas. Os - condenados não duvidaram um s¢ momento de que iriam morrer. Dostoievski nunca mais esquecer essa hora tremenda: de olhos vendados esperava, a morte. Como podia ser aquilo? Sentia-se forte, jovem, ViSUe e sete anos ardentes de vida, em perfeita mude, a vida dorrendo no seu sangue e, de repente, a mortel Ah! como não soubera defen- der-se melhor contra ela? como não cuidara de apegar-se ... existencia? S¢ agora, naquele instante supremo, compreendia o que poderia fazer na vida. O mundo seria seu! Que for�a extraiordinaria e nunca pressentida lhe palpitava nas arterias1 No entanfo. a morte, al¡ a dois passos, implacavel, irremovivel, irremediavel. Ouvia car- regarem os fuz¡s. A morte, coisa estranha, inconcebivel. Dois se- gundos ainda, um apenas. E o tiro não vem... Em lugar disso arrancam-lhe a venda dos olhos e o romancista, ao lado dos outros companheiros, ouve a leitura (Ta verdadeira senten�a. Depois da sensa�ão da morte, a sensa�ão da vida � qualquer coisa de demasiado forte para a capacidade nervosa de um ser humano. Dostoievski exulta de alegria - uma alegria hist�rica e- quase tr gica. No fundo, compreende que j � outro homem, algo de si mesmo j morreu. Agora, s¢ lhe resta o caminho: "a Casa dos Mortos". A escolta est a postos. Na noite gelad..., de um luar nevado, essas tristes noites da Bussia, os conjurados vão partir para a Siberia. Quatro anos num presidio perdido nas solidões das estepes, entre oriminosos vulgares, condenados de toda esvecie. � o inferno. � mais do que o inferno - � a morte. Urgia dar testemunho ao mundo dessa dura, d s sa terrivel experiencia. E da¡ as Rf,,corda�ões da Casa dos Mortos, publicadas em 1863, livro que inicia a segunda fase da obro de Dostoievski, ou ales, a sua grande fase, aquela em#

que atinge as fronteiras da ge alidade. Logo depois de sair da prisão, inspirando-s� __ tentimental pessoal, Dostoievski es- creve Humilhados e Ofendidos. O romance foi depr�ciado pelos cr¡ficos e o proprio autor lhe reconheceu defeitos graves, embora hoje a obra não nos pare�a tão fraca assim e muita gente chegue mes- mo a admir -la sem reserva. Mas talvez Dostoievski sentisse a impos- sibilidade de produzir um grande romance, enq uanto não contasse ... humanidade o que vivera e assistira na "Casados Mortos". Esteera um livro que precisava ser escrito quanto antes, uma esPecie de catar-se, de depura�ão. Saira do c rcere rodeado de fantasmas e tinha que libert -los de qualquer maneira. Mais tarde, ele definir o romancista como um individuo que se livra dos seus fantasn~as. Entretanto, como conseguir essa liberta�ão? Escrever a obra, con- tarado toda a verdade., não lhe seria dificil; mas devia public -la, divulgar pelo mundo a verdade terrivel, e aqu¡ teria que esbarrar nas restri�ões rigorosas do censura tzarista. Naquela �poca a pro- priq palavra Siberia era um voc bulo tab£ - diz Melchior de Vog��. Em"li,nguagem jur¡dica usava-se at� de um eufemismo pitoresco para não se falar em Siberia: o reu era condenado ... deporta�ão "em lu- gar muito distante". Urgia, pois, vencer tamanha barreira por meio

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de um artificio, de uma transposi�ão engenhosa. Antes de tudo, não dar ao livro o carater de memorias e não falar em condenados pol¡ticos. Tratar-se-ia de um romance, onde as cenas, os episodios, tremendamente ver¡dicos, podiam correr por conta da fantasia do autor. Nenhuma acusa�ão direta; tudo transposto para o terreno do ficcionismo. Afim de tarnar a situa�ão mais romanesca - segundo a praxe de mistifica�ões literarias muito em voga na �poca - Dostoievski informaria ao p£blico de que estava simplesmente di~ tWgando o manuscrito de um tal Alexandr Petrovitch Goriantchikov, `tex-nobre, proprietario na Russia, condenado a trabalhos for�ados da segundo categoria por haver assassinado a mulher". Crime passional/ Excelente tipo de criminoso para o caso. Goriantchikov contaria todos os horrores, como personagem de romance, tendo, apesar de tudo, o cuidado de observar que aludia a uma �poca bem distante. Atualmente j não devia dar-se o mesmo. A adminis- tra�ão decerto fora substituida. Relatava, portanto, costumes de outros tempos - esclarecia, com toda a cautela - coisas h . muito abolidas. Depois, a obra não evidenciaria nenhum intuito revolu- ~rio. O autor mostrava a atrocidade do castigo, mas não o JWgava, injusto. Se para uns era excessiva a disciplina, havia muita gente m que a merecia. Enfim, essa pintura do c rcere em cores t¡lo vivas devia incutir no esp¡rito do povo maior horror ao 2 I#

- X1V - crime. Gra�as a semelhante subterfugio, o livro p"de aparecer. Um funcionario da Censura - informa-nos Troyat - ainda quis objetar, impondo modifica�ões no texto. A Dire�ão Central contentou-se com a omissão de algumas expressões obcenas. A obra apareceu, alcan�ando, de pronto, um �xito formidavel. Toda a Bussia vibrou de emo�ão ante aquelas p gi nas dantescas, pois o j~aralelo com o inferno de Da-nti se tornou Nevitavel. A caminho da Siberia, numa das etapas da jornada, Dostoievski o seus companheiros, j . de cabe�a raspada, recebem a visita das 'esposas de alguns decembristas, mulheresWnobres, que, abdicando o lu--o e, a comodidade, haviam acompanhado os maridos ao degredo. procuram elas confortar aqueles novos condenados pol¡ticos, exor- tando-os a suportar, com resigna�ão �ristã, os sofrimentos que os esperavam. E dão a cada um deles um Evangelho, o £nico livro, ali s cuja leitura era permitida na, prisão. O cristianismo de Dos- toievski j se havia manifestado antes do degredo, mas s¢`no c rcere, na medita�ão constante dos vers¡culos do 7_7,vangelho, esse sentimento o absorve, por completo.. dando-lhe uma visão diferento dos homens o do mundo. Andr� Gide lembra o efeito radicalmente oposto que produziu o mesmo livro no esp¡rito de Nietzsche. O autor de Hu- mano, demasiado humano rebela-se contra Cristo e, para vingar-se Dele escreve o Assim falava Ziratustra, no mesmo tom evang�lico e messi�nico. Dostoievski con forma-se admiravelmente aos ensinamen- tos de Cristo, descobrindo neles o verdadeiro segredo da Vido. A dor, as humilha�ões, a ii·quidade do castigo, a prisão - tudo se reveste de um novo sentido aos olhos do condenado. Como rebelar- se? Como culpar os hoinens? Como desesperar-se? Pois se o cas-

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tigo lhe parece agora fndispensa-vel, util, precioso. Que seria da sua existencia, sem essa terrivel prova�ão? A vaidade, o orgulho, a euforia de, uma existencia tranquila haviam de embotar-lhe a alma. E bem mesquinha lhe pareceria esta, sem a condena�ão da dor. J quando fora ele preso.. embora não prevendo o arremate do processo, dissera, em carta ao irmão que, afinal de contas, era melhor assim. os dias lhe corriam mon¢tonos, preferia o choque, o traumat¡smo. Sua tendencia cristã ansiava pelo estado ag"nico, que a condena�ão levaria ao paroxis,~. Depois, aquela sev�a�õo irolvi- davel e terrificante da morte a, dois passos. Passara o perigo. A -vida *continuaria, mas o fermento da morte fi~ia para sempre na alma de quem j a defrontara, uma vez. '0 Evangelho trouxe a solu�ão para esse conflito. Na morte encontra-se o caminho da ressurrei�ão, o proprio segreclo da vida. Se o grão morre - diz a G - XV - par bola de Cristo - ent nasce o trigo. Dostoievski confessa que, no c rcere, *sentia ...s ãfzes o cora�ão bater com for�a ante o#

pressentimento da liberdi te murmurava consigo onesmo: "A li- berdado'- a ressurrei�ão dos mortos]" Entretanto, bem depressa se acalmava. Era preciso aprender a amar o sofrimento, a compra- zer-se na dor - aprender a "morrer". Sem isso, jamais poderia alcan�ar a gra�a da ressurrei�ão. No Evangelho de. São João, Cristo anuncia a Nicodemus: " - Em verdade vos digo que aquele que não nascer novamente, não ver a meu Pai". Dostoievski aceita a tdmorte" para nwcer novamente. L� a Biblia e procura fazer com que os companheiras a le~am.. Mas trata-se de uma injusti�a - qirão os que apreciam o dra- ma do romancista, de fora -, de um castigo iniquo; Dostoievski não chegou a conspirar, não tinha nenhum plano de revolu�ão. Co- ma deixar de rebelar-se contra essa senten�a absurdo? Ante tais palavras o romancista responder , da mesma maneira por que res- pondeu, mais tarde, a um amigo: "Não; a senten�a foi justa e o povo nos t" condenado; eu o sent¡, l na prisão. Depois - quem sabe? - talvez tudo isso fosse designio do Alt¡ssimo, para que eu aprendesse o essencial, sem o que não podemos viver, se-não nos de- vorarmos uns aos outros.- e para que eu levasse o essencial aos meus semelhantes, tornando-os melhores, ainda que em, pequeno n£mero. S¢ isto justificaria minha ida ... prisão." Como ge v�, o Evangelho baniu do esp¡rito de Dostoievski a *id�ia de injusti�a. O verdadeiro cristão nunca julgar iv justo nem protestar contra o sofrimento, que lhe vem trazer a purifica�ão ne- cessaria: o essencial. No conceito cristão, o homem veio ... terra para explar~ os seus pecados - são "os degredados filhos de Eva, neste vale de l grimas" - e cumprir tanto melhor o seu destino, quanto mais completa for a expia�ão. Interessante, porem, ser notar como Dostoievski estabelece -no plano social e pol¡tico uma correspondencia direta para a necessidade do castigo. Pelos designios cio Alt¡ssimo, afim de encontrar o essencial, teria ido para o c rcere; mas est certo, ao mesmo tempo, de que o povo o condenaria. Reconhece-se culpado perante Deus o perante, o povo. Pois se, no c rcere, encon- trou a verdade cristã, encontrou igualmente o povo russo no que este tem de essencial, na sua predestina�ão m¡stica. Em carto a

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Maikov, em 1855, ele diz: "A infelicidade me ensinou muita coisa; a experiencia teve grande influencia sobre mim e gra�as a ela me � Mio cada vez mais rUSSO. � a confissão da sua eslavofUia. Como se sabe, Dostoievski foi uma c?" maiores figuras da 'mentalidade estav¢fila, que considerava os russos completamente diferentes dos europeus, com fim destino Proprio, alheio aos imperativos da cultura ocidental. E antevia um glorioso futuro para a Russia, na medida#

I - XV1 - em que esta se preservasse de influxos estranhos. "Possui-mos uma superioridade sobre os senhores - dizia ao Visconde de Melchior de Vog�� _: � gue os outros povos não nos compreendem, enquanto n¢s os compreendemos a todos". Na prisão, em contato direto com a a¡ma popular, Dostoievski sente o quanto o russo se distancia dos ocidentais o as gra�as que lhe estão reservadas se ele se mantiver fiel a si mesmo. Pois bem, aquelas id�ias de conspira�ão, de rebeldia, bafejada por doutrinas europ�ias, sem consultar as verdadeiras as- pira�ões da Santa Russia, lhe parecem criminosas e bem dignas de c¡astigo. Pecara contra Deus e contra a Buss¡a. O povo o conde- n¡u-ia - estava.certo disso. O romancista identif a a natureza das dum culpas, pou sua conotenci . a cristã se conf und om o sentimento eslav¢filo. Por esse motivo, ainda, em lugar de ~Oar odio ao tzar ,Yicolau I, que o fizera condenar inocente, chega a louv -lo mais tarde, com entusiasmo. Não recebia de Deus o tzar o poder absoluto para governar os russos?. E o povo não se habituara a cham -lo de "Paizinho"? 1 , Aqu¡ nos tenta uma, interpreta�ão freudiana - aventura em que %U nos abalan�amos, afiInde evitarmos mais um abuso de psican lise Uteraria. Limitamo-nos a alguns pontos de ref erencia. Para) Freud, o crime � muitas vezes a resultante de um sentimento de culpa inconciente: o individuo, sente a necessi...ade de puni�ão e o ¡mico meio de obt�-la - quando não consegue sublimar o complexo ou dar-lhe um outro derivativo - � violar as leis. Em Dostoievski, a especie de alivio que ele experimenta, logo ao ver-se encerrado no calabou�o, e o reconhecimento de uma falta, que na realidade não cometeu, podem ser atribuidos igualmente ...quela no�ão inconciente de culpa, cuja origem seria encontrada.. talvez na infancia, nos traumas morais do romancista.' Os conflitos cristão e eslav¢filo t~se-iam, então, as demonstra�ões de, um drama inconciente, que s¢ a psican lise lograria desvendar. L�mbremos a particularidade do tzar representar para o povo russo qualquer coisa de semelhante ao super-ego do esquema freudiano. � a personifica�ão do pai, o "Paizinho". As conspira�ões tomariam, pois, na Russia, mais do que em qualquer outro lugar, certo carater de parricidio, entron- c~do-se no, famoso conflito do complexo de �dipo. Estas indica- �Oes vdo, porem, aqu¡ apenas a t¡tulo de curiosidade. Dostoievski de h muito que vem sendo assunto de psican lise e o proprio Freud Prefaciou o livro de Ana Grigorievna sobre o marido. Das Recorda�ões da Casa dos Mortos sairam, por assim dizer, os maiores romances de, Dostoievski, nos quais se debate, angustiosa-

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O fr. #

- XV11 - mente, o problema do bem o do m . al, da culpa e do resgate. Crime e Castigo chega quase a ser um corolario das Recorda�ões. Antece- dendo Nietzsche e tornando-se deste verdadeiro precursor, Dosto~e- vski pretendeu fazer de Raskoz',nikov um super-homem,. capaz de sobrepor-se ao bem e ao mal, ao imperativo da moral humarsa. Mas, depois de cometido o delito, a conciencia cristã do estudante reage e ele não sossega enquanto não confessa a culpa, que o levaria, o omo ao romancista, ao degredo da Siberia. Nos Demonios e nos Irmãos Karamazov, o escritor continua a reconstruir as experiencias da prisão: são livros de criminosos e pecadores. Os problemas t�m sempre um aspecto moral e outro psicol¢gico, sendo que ambos se conjugam, com efeitos rev¡procos. O aspecto moral se apresenta da seguinte maneira: o homem precisa sofrer para resgatar suas culpas. E o lado psicol¢gico com estas interroga�ões angustiantes: Mas em que consiste a culpa? Num ato dp maldade? Que � a maldade? Que sabemos dos nosos sentimentos? O amor leva a monstruosi- dades. - O homem bom, s¢ experimenta muitas vezes impulsos maus. E quanta inocencia podemos encontrar num pecador! Um senti- inewto bom possue, frequentem ente, o seit reverso mau. Na l¢gica des- concertante da alma humana 2 e 2 nem sempre são quatro. E ainda aqu¡ teria sido a "Casa dos Morto0 a grande escola de Dostoievski. Não vira ele como as almas de algumas bestas-feras, de bandidos inveterados, imprevistamente se expandiam com tal riqueza de sen- timento e cordialidade, com uma compreensão tão viva dos sofrimen- tos alheios e dos proprios, que pareciam feitos de ternura e purezal E não percebera, por outro lado, como um homem f ino ,, culto ...s vezes desconcertava pela barbarie, por um cinismo verdadeiramente repugnante? Sim, foi a prisão que inspirou ao romancista as bases do seu sistema psicol¢gico; al¡, no trato com os criminosos, aprendera ele que 2 e 2 nem sempre são quatro. "Dostoievski, a ~mica pessoa, que me ensinou alguma coisa em psicologiall' - dissera Nietzsche. pes da Casa dos Mortos Q~ando Dostoievski Publicou as Recorda� ainda repercutia na Europa a profunda impressão causada pelo livro de Silvio Pellico: Minhas Prisões. E não faltou quem com- parasse a obra do romancista russo a esta £ltima. De fa`to, alem de constituirem ambos memorias de criminosos pol¡ticos, refletem uma atitude semelhante: a aceita�ão cristã da dor. Silvio Pellicd foi, como se sabe, um poeta italiano, que conspirou contra o jugo aus- triaco, filiando-se ... sociedade secreta dos "Carbonari", depois de j ter manifestado os anseios de liberdade em verso, na imprensa e em pe�as teatrais. Detido em outubro de 1831, esteve primeiramente 1 #

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~f XV111 XIX - na famosa prisão "Piumbi", de Veneza, de onde o transportargm para a fortaleza de Spielberg, na Moravia. Nove anos sofreu as agruras do c rcere, sendo afinal indultado em 1840. Narrando seu martirio, Silvio Pellico não se revolta nem se desespera; longe de acusar os algozes, sua alma se ~fesmancha em perdão e conformidade. Eis como explica ele o livro: "Teria es.~rito estas memorias pelo sim- ples prazer de falar de mim mesmo? Desejo que assim vão seja; e na medida em que podemos julgar os -nossos proprios atos, parece- me que fui levado pela melhor das inten�ões: a de contribuir para o alivid de alguns infelizes com a narrativa dos males que sofr¡ e das consola�ões que, por minha experiencia, reconhec¡ ser possivel iar no ¡nfortunio - a de afirmar que, no meio dos meus tormentos Ço achei a humanidade tão injusta, tão indigna de indulgencia, tão , s- provida de nobreza moral, como costumamos represent -la -a. de exortar os cora�ões nobre~ a amar sempre e nunca odiar; não ter odio irreco,nciliavel sendo pela mentira, covardia e toda especie de avil- tamento - a de repetir uma verdade, proclamada h muito tempo, mas sempre esquecida: de que a religião e a filosofia recomendam; uma e outra, a vontade en�rgica e o julgament~ imparcial, pois sem estas duas condi�ões, não poder haver nem Justi�a, nem dig- nidade, nem principios certos". Tamb�m Silvio Pellico, como Dostoievski, lia a Biblia',n-ã prisão, haurindo nas suas p ginas o conforto para todas as penas. Entre- tanto, apesar dessas semelhan�as, a d¡stancia que sepaTa os dois livros � bem grande. Silvio Pellico não passa de um escritor secun- dario. O que interessa em Mei Prigiorti � principalmente o assunto - assunto humano, palpitante, emocionante por natureza, capaz de falar sempre ao cora�ão dos homens. Nas Recorda�ões da Casa dos MorItos, pelo contrario, h a descoberta de um mundo por um esp¡rito verdadeiramente genial. A obra contem em si muitos romances. Não basta o interesse do assunto: o talento - a genialidade, se qui- serem - evidencia-se na maneira pela qual o tema foi explorado, pelos efeitos extraordinarios que Dostoievski dele conseguiu tirar. . Dois decenios, mais ou menos, depois do aparecimento das Re- corda~ da Casa dos Mortos, dava entrada na prisão do Reading, na Inglaterra, um escritor cujas pe�as tinham encantado o p£blico londrino, o artista requintado de Dor¡an Gray - Oscar Wilde. A porta, fechou-se, e l ficou, nas suas vestes de for�ado, sob uma rude dis&iplina, o aristocr tico frequentador dos salões e do "hall" dos hot�is de luxo; o sibarita, habituado a vinhos finos e a perfumes raro$, 40 Nbo de dois anos de tr gica reclusão, toma ele da pena ot, para escrever uma carta ao amigo niam q prolonga por muitas, p ginas, vindo a form intitulado De Profundis. Tambem o prision#

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acentos de agonia na voz e tambem ele tra da "Casa dos Mortos". Wilde teria lido nas do De Profundis h um comovente esfor� O poeta declara que quando sair do c rcere Francisco de Assis. Onde estiverem a dor e o lutO al¡ estar ele para consolar'e chorar com os aflitds. Refere-se, num transporte ~tico, ao prazer da renuncia - essencia do Cristianisnjto - falando do sacrificio de uma maneira que faz lembrar a "religião do sofri- mento", preconizada, por Dosto.ievski. Alguns dos pensamentos mais belos sobre Cristo, n¢s o encontramos nessa longa e pungente ep¡s- tola a Lord Douglas. Entretanto, depois de deixar a prisão, o poeta não pode rea- lizar os seus. altos'projetos de vida espiritual. Falta-lhe inteiramente ú voca�ão cristã. Antes, parecera desejar o c rcere; esquivara-se ú (odas as insinua�ões de fuga; no fundo, ningu�m duvidara de que ele quisera ser condenado; de que procurara o castigo. Re- conhecia-se culpado e o c rcere, seri . a a £nica solu�ão para a angustia inco,ncUnte que torturava o homem, aparentemente tranquilo e seguro de si mesmo: o vitorioso "rei da vida". Mas depois do casti- go, o sofrimento awiquila-o, arrasa-0, e o poeta, apesar das elevadas aspira�ões, não consegue reconstruir a existencia em bases cristãs. Porque era visceralmetite um pagão, um romano da decadencia, como ele proprio confessara a Frank Harris. A ¡ndole pagã não encontra, geralmente, beleza nem sublimidade no sofrimento e por meio da dor jamais poder engrandecer-se. Em U~gar de assemelhar-se a São Francisco de Assis, o ]Vilde de post-c rcere torna-s� apenas um b�bado, mal arranjado, pedindo dinheiro emprestado aos ami- gos. Para ele, a liberdade não fora, conto para Dostoievski - ¡ndole profundamente cristã - a ressurrei�ão dos mortos. Bem expressivo, portanto, nos parece o t¡tulo da sua dram tica mensagem do Rea- ding: "De Profundis". Quando as portas do c rcere se fecharam, Wilde ficou d(,finitivamente sepultado. O cristão v�, parem, na dor, o ponto mais alto da existencia. Nunca DoPtoievski sitbiu tanto, como no momento em que o encer- raram na prisão. Em £ltima a~7i¢lise, quem ai figitrou contu r�u foi a propria humanidade. Pois os grilhões hão de cair por terra, as grades hão de romper-se, e o prisioneiro, aureolado de luz, numa miraculosa ascensão, ultrapassarã os kwiros da cidadela (aquele mu-#

- XX - ro- a que se refere o her¢i da Voz Subterr anea), para atingir a supre- t~a revela�ão do Misterio. "Em verdade em verdade vos digo que aquele que não nascer de novo não ver a meu Pai". Rio de Janeiro, julho ae -1945. #1 N. -No que se refere ... conspira�ão Petrachevski, fomos obrigados a restringir-nos ...s informa�ões

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do conhecido livro de Troyat e ao "Dostoiewsky - Sa vie et son oeuvre", de Serge Persky. i& N1 3 i O I IV,* I ntrodugio a nas remotas regiões da Siberia, por entre a este- pe, as montanhas e as florestas impenetraveis, encon- fra-se aqui e alem um povoado. Mal t�m umas duas mil almas, constando cada um apenas de feias casinho , Ias de madeira e duas igrejas, uma no centro, outra no cerniferio. Parecem mais um simples arruado dos arrabaldes de Moscou, que uma cidade. Em geral, e bem sortida de ispiravniks, assessores, e demais funcionarios subalternos (1). Por mais fria que seja a Siberia, o servi�o publico sempre nos aquece bem, no seu rega�o. Os habitantes são almas sing~las e bem intencionadas, seus costumes são patriarcais, consagra- dos por seculos de tradi�ão. Os funcionarios que, com razão, representam realmente a nobreza local, ou são si- berianos da gema, ou russos que, na maioria, vem direta- mente das capitais, a+saidos pelos altos vencimentos, pelas generosas ajudas de custo para despesas de viagem, ou por belas perspectivas de futuro. Entre esses éltimos, os mais espertos, os que sabem resolver o problema da vida, agra- dam-se da terra e nela se fixam definitivamente. Depressa#

conseguem fortuna e posi�ão. Mas os outros, os esfouva- dos que nada entendem do enigma da exis+encia, moem-se de nostalgia, e vivem a perguntar, desde a chegada: "Que diabo vim fazer na Siberia?" E cumprem com impaciencia (1) A policia distrital era entregue a um capitão-ispravnik eleito pela nobreza. Esse magistrado presidia o tribunal da policia rural, o qual se ccmpunha de dois cam- poneses nomeados pelo poder central e dois assessores. eleitos pela nobreza. (N. de H. M.)#

2 DOST~111EVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 3

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os +r�s anos obrigaforios do servi�o, pedem remo�ao e reiri- fegram os peria+es dizendo da Soiberia c¢bras e lagartos. Todos laboram em erro. Pois, excUndo-se mesmo as van- fagens que traz ... carreira funcional, e a Siberia, por todios os respeitos, a +erra da promissão. O clima e magnifico. La se enconfram comerciantes riqu¡ssimos, no+aveis pela hos- pi+alidade; as raparigas são coradas como rosas e honestas como vesfais. A ca�a corre pe~as ruas e vem s,9 atirar aos pes'do ca�ad6r. O champanhe e bebido em abundancia, o caviar e delicioso, 9 trigo, em cerfas. zonas, d colheitas de quinze por um ... Em resumo, a +erra e de uma feracidade assombrosa, mas carece que a saibam explorar. E os si- barianos sabem explora-ia. Numa dessas cidadezinhas alegnes que se bastam a si pro- prias e cuja amavel popula�ão me deixou na lembran�a uma recorda�5o enfernecida, +Favei amizade com um ex-fidalgo e pomechfchik (2) russo, Alexandr Petrovi+ch Goriantchi- kov, condenado aos trabalhos for�ados de segunda catego- ria (3) em puni�ão ao assassinato da sua esposa. Finda a pena, depois de dez anos de presidio, instalara-se discrefa e placidamenfe na cidade de K ... (4). Oficialmente. deveria residir numa das comunas suburbanas, mas � que em K. ele ganhava a vida como mestre-escola. Professores dessa casta não são raros na Siberia, e ninguem os menospreza. Ensi- nam principalmente a lingua francesa, indispensavel a quem fem ambi�ões sociais, - e sem eles,*ninquem, naqueles fins de mundo, poderia ter do franc�s a menor no�So. A pri- meira vez em que me avis+ei,com Alexandr Pefrovi+ch, foi em casa de um fchinivnik (5) lvan Ivani+ch Gvosdikov, ve- (2) Proprietario rural. (N. de R. Q) (3Y Quer dizer, "trabalhos for�ados numa fortaleza". Edificava-se então na Siberia uma linha de fortins destinados a prevenir os levantes, sempre possiveis, pro- v~ pelas questões raciais. A primeira categoria, a mais dura, eram os "trabalhos de minas" e a terceira, os "trabalhos de usina". Os trabalhos for�ados, em geral, in- cluiam a pena de exilio perpetuo na Siberia. (N. de H. M.) (4) Provavelmente Kuznetsk, na provincia de Akrnolinsk, onde em fevereiro de 1857 Dostoievski contraiu o seu primeiro casamento, com Maria Dmitrievna issaiev. (N. de H. M.) (5) Funcionario p£blico, (N. de R. Q. 1 4 . lho burocrata honrado e bospifaleiro, pai de cinco filhas que sugeriam lindas esperan�as. Alexandr Petrovitch ia 16 qua- fro vezes por semana, dar li�ões as raparigas a razão de trinta copeques de prata (6) por hora. Seu aspecto ex+e- rior me interessou. Era um homenzinho fra'nzino, +errivel- menfe palido e magro, mas ainda mo�o, e vestido sempre#

com esmero, a moda europeia. Quando a gente lhe falava,

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ele nos fixava com um olhar de fixidez exfraordinaria, e acompanhava com escrupulosa cortesia cada uma das pala- vras que se lhe cl~ia, como se lhe propusessemos um enigma ou quisessemos vi'~"~ar seus segredos. Respondia depois com algumas frases rapidas e claras, tão ponderadas, +ão cir- cunspecfas, que a gente imediatamente se sentia mal, e não desejava senao acabar a conversa. Logo que pude, interroguei Ivan lvanitch.a respeito do homem. Soube que Gorianfchikov vivia de modo irrepre- ensivel. sem isso ele não lhe confiaria a educa�ão das filhas, mas muitissimo re+raido. lns+ruidissimo, lendo muito, fugia do convivio social, e falava tão pouco, espon- taneamente, que ninguem conseguia travar com ele uma pa- lesfra demorada. Alguns o supunham louco - porem não viam nisso um defeito grave. Os magnatas da cidade, na sua maioria, o viam com bons olhos. O homem lhes pres- fava, as vezes, servi�os importantes, redigindo peti�ões, por exemplo. Suspeitavam-no de pertencer a uma familia de relevo, de alta posi�ão, talvez, mas sabia-se +ambem que, depois da deporta�ão, corfara +odas as rela�ões com os seus - em resumo, prejudicara-so muito. Todo O mundo, ali�is, lhe conhecia a historia: logo no primeiro ano do casa- menfo, mafara a -esposa, levado pelo ciume, depois enfre- gara-se voluntariamenfe ... justi�a - o que lhe proporcionara as circunsfancias atenuantes. Em geral esses crimes s�io en- carados como desgra�as, e os seus autores despertam pie- (6) O rublo-prata valia quatro vezes mais que o rublo-papel. Salvo indica�ões em contrario, as referencias a rublos, neste romance, serão sempre a rublos-prata. Como se sabe, 9 ~~j~!q tem cem copeques. (N, de H. M.)#

�l 4 O DOSTOIEVSKI dade. Entretanto, este exc�ntrico se enterrava no seu janto,. e dele não saia senão para dar aulas. A principio não lhe ~ediquei aten�ão espe�ial; mas, sabe Deus por que, pouco a pouco fui me interessando por aquela enigm tica criatura. NSo consegui faz�-lo pales+rar. Respondia direito as minhas interpela�6es, parecia ate con- siderar um dever faz�-lo, porem sua maneira de replicar me provocava um constrangimento +ão intenso que eu não ou- sava repetir as perguntas, vendo-lhe o rosto carregado de fadiga e -sofrimento. Numa linda noite de verão, lembro-me ainda, saimos juntos da casa de Ivan Ivani+ch. Convidei-o repentinamente a vir a minha casa fumar um cigarro. Não consigo reproduzir o pavor que se pintou nos seus olhos. Des- concertado, balbuciou algumas palavras sem nexo, e de su- bi+o, com . os olhos tumidos de odio, p"s-se a correr na- dira- �ão oposta. Fiquei imovel, at"nito. Desde então, sempre que me encontrava, ele me olhava de r-eves, medroso. Mas

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eu não me satisfiz com isso: havia algo que me impelia para Gorianfchikov, e um m�s depois, sem pretexto plausivel, dirigi-me a sua casa. Confesso que esse gesto era insensa- +o e pouco delicado. Ele morava no extremo da cidade, em casa de uma velha cuja filha, uma pobre fisica, lhe dera uma netinha bastarda, garota de uns dez anos, risonha e mimosa. No momento em que entrei no quarto de Ala- xandr Pefrovi+ch, ele, sentado junto a pequena, lhe ensinava a ler. Avisfando-me, per+urbou-se como se eu o houves- se apanhado em flagrante delito, levantou-se precipitada- mente, e fitou am mim os olhos assustados. Afinal, sen- famo-nos. Seu olhar, figo sobre o meu, me interrogava com insis+encia, como se farejasse em mim as piores inten�ões secretas. Adivinhei que sua desconfian�a chegava quase a loucura. Encarava-me com hostilidade tão evidente, Elue quase me perguntava: "Sera que não +e vais embora?" Falei da nossa cidadezinha, das novidades: e ele mal me respondia, esbo�ando um sorriso irritado. Depressa descobri que igno- rava os acontecimentos mais no+orios, e, mesmo, que nenhum deles o interessava. Falei-lhe depois do nosso pais, das suas O RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 5 #

necessidades: ele me escutava sem replicar, com o mesmo olhar de fixidez +ão estranha, que acabei lamentando ter iniciado a conversa. Mas quase consegui fira-lo do seu torpor quando lhe ofereci, ainda infac+os, os livros e revistas que acabara de receber no correio. Lan�ou-lhes um olhar avido. porem imediatamente se conteve, e os necusou, alegando falta de tempo. Despedi-me afinal, e, ao sair, senti-me aliviado dum peso insupor+avel. Parecia-me vergonhoso, parecia-me absurdo, ir atormentar um bom-em cujo principal cuidado era se manter o mais possivel afastado do convivio social. Mas a tolice estava feita. Eu observara que ele possuia muito poucos livros: então não era verdade que lesse muito. Duas vezes, entretanto, passando de carro, muito +arde, defronfe as suas janelas, avistei luz acesa. Que faria ele assim acor- dado ate madrugada? Escreveria? e se o fazia, que cousas escreveria? Fui obrigado a me ausentar durante alguns meses uns +r�s. Quando voltei, no rigor do inverno, soube que Ale- xancir Pe+rovitch morrera durante o outono, em absoluta so- lidão, sem nem uma vez ter consultado o medico. Ja o ha- viam -esquecido quase completamente. Seu alojamento ficara vago. Fui sem tardar visitar a senhoria, e a interroguei acerca dos afazeres do defunto., Dei-lhe uma moeda de vinte cope- ques, e ela me entregou em troca uma cesta cheia de papeis, confassando-me, contudo. que ia des+ruira dois daqueles ca- dernos. Era uma velha taciturna, Mal encarada. que nada me confdu de novo sobre o finado loca+ario. Segundo ela, o homem não se ocupava nunca em quase nada, e levava meses sem - tocar num livro ou numa pena. Passava noites

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inteiras a andar pelo quarto, mergulhado nas suas cismas, falando sozinho. Adorava a garotinha, Kafia - principal- mente depois que lhe soubera o nome. Todos os anos, no dia de santa Kaferina, mandava dizer uma missa por alma de uma pessoa que usara esse nome. Não tolerava visitas, não saia senao para dar aulas, -e ate a velha olhava com maus olhos, quando, uma vez por semana, ela lhe vinha arrumar um pouco o quarto-, durante os tr�s anos em que fora seu inqui-#

6 DOSTOIEVSKI lino quase nunca lhe dirigira a palavra. Perguntei a'Kafia se tinha saudades do professor. A pequena me olhou sem responder, depois, voltando-se para a parede, pos-se a chorar. Assim, pois, apesar de tudo, aquele homem conseguira fazer- se amarl Apanhei os pap�is e passei um dia inteiro em casa, Orde- nando-os. Tres quartas partes deles eram rascunhos sem imporfancia, temas de aula corrigidos. Enfim, descobri um caderno volumoso, coberto por uma calilrafia fina; estava, porem, inacabado, abandonado decerto por seu autor: era a narrativa dos seus dez anos de presidio. Nessa narrativa incompleta se intercalavam fragmentos estranhos, recorda�ões abominaveis evocadas desordenadamente, convulsivamente, como num desabafo. Li-a, reli-N, e chequei quase a conclusão de que havia sido redigida numa crise de loucura. Mas as notas sobre o presidio, aquelas "Cenas da Casa dos Mortos" como o proprio Alexandr Petrovi+ch as inti+ula em certo trecho do seu manuscrito, não me pareceram falhas de infe- resse. O mundo dos decaidos, mundo absolutamente novo, at� hoje impenetravel, a estranheza de certos fatos, algumas observa�ões bizarras, cativaram-me a aten�ão e a curiosi- dade. Todavia, talvez eu me engane quanto ao valor da obra. Publico, pois, aqui, algurir capi~ulos dessa narrativa: o publico julgar6.. . 9 PRIMEIRA PARTE#

a 10. C~' II A casa dos mortos onosso presidio ficava nos limites da fortaleza, iun+o ao baluar~e. Quando, afraves das fendas da pali-

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�ada, procuravamos avistar o mundo, en+reviamos apenas uma -nesga estreita de c�u e um alto barranco de ferra, invadido pelo mafo alfo, noite e dia percorrido pelas sentinelas. E n6s pensavamos locio que não adiantava passa- r-em-se os dias: veriamos sempre, olhando por aquelas fendas, a mesma muralha, o mesmo soldado. a mesma nesga de ceu, - não o c�u da fortaleza, mas um oufro,-um ceu mais lon- gincluo, um c�u livre. - Imaginai um vasto patio de duzenfos passos de compri- menfo e cento e cinquenta de largura, com a forma dum hex6gono irregular. Uma pali�ada feita de altos moirões, profundamente encravados no solo, forfemenfe ligados um ao outro, e falhados em penfa - rodeava por todos os lados 3#

lo DOSTOIEVSKI o nosso presidio. Num dos lados da pali�ada um portão, sempre fechado, sempre guardado por uma sentinela, não se abre sendo a vista -de uma ordem afim de dar passaqem aos presidiarios que vão para o trabalho. ' Alem desse portão, havia o mundo luminciso da liber- dade. E, de dentro, aquele mundo nos parecia como u m conto de fadas, como uma miragem. O nosso mundo noda tinha de analogo com esse outro! eram leis, costumes, habUs carafer¡sticos, uma casa morta-viva, uma vida a parte c~ homens a parte. E e esse recanto qu� desejo, desc.rever. Quando se -penetra no recinto, distinguem-se Ia diversas ,consfru�6es.- Dos dois lados do grande patic, se erguem amplas- constru�ões de madeira de um s6'andar. ~ão s casernas. L6 vivem os for�ados, separados em c~ate orias. 1 9 --- No fundo do patio seeleva uma edifica�ão do mesmo genero, a cozinha, dividida em duas pe�as, e, mais afr6s, um barra¡- cão que, sob o mesmo feto, abriga a adega, a despensa e o celeiro. O centro do pafio forma uma especie de pra�a ampla, nua e plana. Os de+en+os Ia se reunem para a chama-' da, pela manhã, ao meio-dia e a +arde, e, ...s vezes, af�' ex+emporaneamen+e quando os soldados da guarda são des-~-, confiados ou gostam de fazer contas. Entre as cons+ru�õe~s', e a pali�ada ainda ha um espa�o consideravel. Nesse frech'�' e que, nas horas de descanso, alguns defentos sombrios, poucO, sociaveis, vão passear, e, longe de todos os olhos, mergulham nos seus pensamentos. Quando eu os encontrava no decorrer dessas passeios, gostava de lhes perscrutar os rostos som- brios e estigmatizados, a lhes imaginar as preocupa�ões. Um deles passava o seu tempo livre a contar as estacas da cerca� Eram quinhen+as, contudo ele as conhecia de cor. Cada uma das estacas lhe significava um dia. Descontava uma di ria- mente e, assim, contando as que restavam, podia com um olhar calcular o tempo que ainda passaria -nos +rabalh¢s. Quando terminava um dos lados do hexagono, nao escondia a sua alegria, res+ava-lhe ainda mais de um ano de espera: mas o presidio e uma boa escola de paciencia. Assisti ce~

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vez um presidiario, !iber+o ap¢s vinte anos de pena, despe-#

O 4 RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 13 dir-se dos colegas. Alguns ainda lhe recordavam a chegada, quando jovem, descuidoso, não se preocupava com o crime nem com o castigo. E ei-lo que partia agora com a cabe�a grisalha, um rosto sombrio e triste de velho. Passou silen- ciosamente por nossos seis alojamentos: quando penetrava em cada um deles, murmurava uma ora�ão diante do icone; depois, fazia uma reverencia profunda, ate a cintura, diante dos de+en+os, pedindo-lhes que não guardassem de si, uma lembran�a rtia. Lembro-me +ambem de um preso, um cam- pon�s siberiano, que fora abastado. Uma tarde, chamaram- no a porta. Seis meses antes ele soubera, magoado, que sua mulher +ornara a casar. Agora, era ela propria que o mandava chamar para lhe dar*uma esmola. Conversaram dois minutos, , rebentaram em pranto, e despediram-se para sempre. Ainda lhe veio o rosto quando voltou ... caserna ... Sim, realmente o presidio � uma boa escola de pac¡encia. Quando chegava o crepusculo, fechavam-nos, todos, nas nossas casernas. E nunca me deixou de ser penoso sair do patic, para o alojamento. Candeias de sebo espalhavam uma luz ba�a pela sala comprida, baixa, sa+urada dum odor nauseabundo. Não consigo compreender, hoje em dia, como pude passar, ali, dez anos. Na especie de tarimba que ser-- via de leito comum a trinta de nos, todo o meu dominio se reduzia ao espa�o de +res fabuas. Quero crer que naquela sala toda variedade de cr¡mes se achava representada. A maior parte dos deten+os se co�npunha de condenados civis. Esses individuos, privados para sempre dos seus direitos de cidadão, membros ampu- +ados da sociedade, tinham o rosto marcado com. ferro em brasa, estigma eterno do reprobo. Demoravam de oito a dez anos no presidio, depois eram mandados na qualidade de colonos pqra qualquer recanto esquecido da Siberia. Havia +am bem 'criminosos vindos do ex�rcito; mas, segundo o costume das "companhias correcionais", esses conservavam os seus direitos civis. Condenados por um lapso de tempo bastante curto, uma vez cumprida a pena, reintegravam o seu posto num batalhão siberiano. Muitos dentre eles não 4 11#

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tardavam a reaparecer, apos novo crime grave - mas por vinte anos, dessa vez. Formavam a se�ão dos "reinci- dentes", que fambem não eram privados dos seus direitos civ¡s. No inverrro. ~echavam-nos muito cedo: passavam-se pelo menos quatro horas antes que todos dormissemos. E, af� então, quantos gritos, quantas risadas, quanto palavrão! o retidir das grilhefas, o cheiro imundo, a fun~arada espessa, as cabe�as raspadas, as caras marcadas com ferro em brasa, as roupas em farrapos, tudo nessumava vergonha, infamial. . : A1 o home`rn tem a vida bem rija! "Um ser que se habi- tua a tudo" e, segundo o �reio, a melhor defini�ão que se possa dar do homem. Nosso presidic, reunia uma media de duzentos e cin- quenfa defenfos: uns chegavam, outros sa¡am, outros mor- riam. Quanta gente havia Ia! Cada provincia, cada re- gião da Russia, creio bem que tinha ali o seu representante. Viam-se af� alguns nativos das montanhas do C6ucaso. Eram todos classificados de acordo com a gravidade e a dura�ão da pena. Havia, enfim, uma ultima se�ão, bas- tante numerosa, a dos veteranos do crime, na maioria mili- +ares ... Era chamada a "se�ão especial". Para 16 envia- vam criminosos de toda a Russia. Ignorando o limite da sua pena, consideravam-se a si proprios condenados ... pri- são perpetua. Segundo a lei deveriam fornecer um fraba- lho duplo ou friplice. Eram mantidos no presidio, enquanto esperavam a organiza�ãc, de trabalhos for�ados particular- mente penosos. "Voc�s es+So aqui por algum tempo, di- ziam �les aos outros presidiarios; nos estamos para a vida infeira". Segundo ouvi dizer, essa se�ão foi suprimida: teriam mandado embora todos os datidos civis, conservando apenas os militares. Mudan�a de administra�ão, C 16gico. O que descrevo, portanto, são cousas de outrora, praticas abolidas, fatos ia h6 muito esquecidos. Sim, ia h6 muito tempo. Tudo isso hoje me parece um sonho. Recordo minha chegada ao presidio. Era -uma tarde de dezembro: a noite ia cair, os presidiarios volta- a RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 15 vam da tarefa diaria, preparavam-se para a chamada. Um sub-of¡c¡al de-grandes bigodes abriu-m� a porta daquela es- tranha moradia onde eu deveria passar tantos anos, suportar emo�ões de tal ordem, que seria incalwz de compreend�-las se as não experimentasse. Por exemplo, não poderia conce-#

ber nunca o tormento espantoso de não la*er ficar so - um minuto que fosse - durante os dez anos em que estive preso. No trabalho - uma escolta - na prisão,---a companhia de duzentos outros presos - e nem uma vez a solidão! E, de qualquer modo, tinha que me afazer a isso! Havia Ia assassinos ocasionais e matadores de profissão, malandros e capitães de bandidos. Havia gatunos, batedo-

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res de carteira, vagabundos, cavaleiros de inclus+ria e viga- ristas- Havia +ambem alguns deles que nos deixavam per- plexos.- por que estariam ali? Contudo cada um tinha a sua historia, hisforia tão perturbada e confusa quanto o ama- nhecer apOs uma noite de bebedeira. Alias, eles pouco fa- lavam do passado, não gostavam de o narrar, procuravam ate nao o rememorar . Jamais. Conheci entre os presidia- rios alguns assassinos, tão satisfeitos, +ão descuidosos, que, nunca, (pode~~se-ia apostar com seguran�a) a ~conciencia os atormentara um s0 instante. Mas havia tambem outros de rosto sombrio, quase sempre mudos. Em resumo, quase ninguem falava sobre a vida pre+eri+a, e a curiosidade não pertencia nem aos costumes, nem as regras da casa. Toda- via, de tempos em tempos, um defen+o que queria desabafar confiava um segredo qualquer a um vizinho, que o ouvia fria- mente, de cara fechada. Ninguem, ali, poderia causares- 11 panfo a n¡nguem. "N6s ca sabemos ler e escrever 1 diziam os presos com uma especie de c¡nica satisfa�ão. Lembro-mo que um dia um bandido, bebedo (arranja-se bebida algumas vezes, no presidio) se pos a contar como as- sassinara um garoto de cinco anos: seduzira-o com um brin- quedo, depois levara-o para um galpão e Ia o degolara. A caserna inteira, qXe a principio rira das suas pilherias, soltou um brado, e o homem foi obrigado a calar a boca: aquele brado un�nime não era um sintoma de indigna�ão. Significava#

16 DOSTOIEVSKI RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 17 apenas que não se devia falar "naquilo", que falar "naquilo" era inadmissivel. Devo observar, ali s, que aquela genfe de nada. Viviam apenas peICS aparencias. Mas muitas (4 vezes, com esparifosa rapidez, a cara mais insolenfe cedia tinha alguma instru�ão, no sentido literal da palavra. Pelo lugar a uma expressão de chapada covardia. Havia por menos a mefade dentre eles sabia ler e escrever. E onde, 16 homens naturalmente forfes; eram Simples e sem rodeios. na Russia, em qualquer agrupamento popular, se enconfrarão Porem, coisa estranha, alguns davam mosfras de umaikidade .duzentos e cinquenfa individuos metade dos quais saiba ler quase doentia. A gloriola, a exferioridade, tinham prio- e escrever? Soube, depois, que alguem concluiu, segundo ridade sobre tudo. A maioria deles era apavorantemente esses dados, Jue a instru�ão perde os homens. Erro grave, pervertida. As calunias, os mexericos, não* paravam nun- creio eu. V preciso procurar em oufra causa as razões desse ca: aquilo era um inferno, uma verdadeira reprodu�ão do desvio moral. Com efeito, a insfru�ao provoca a presun�ao t rtaro. Ninguem, enfrefanfo, ousaria insurgir-se contra as no povo; mas isso, no meu entender, não � um defeito, e regras e habifos consagrados. Alguns espirifos de forma�ao abunda em focla parfe. especial tinham dificuldades em se submeter, contudo subme-

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Disfinguiam-se as se�oes pelos +raios. Em uma das fiam-se. Chegavam-nos ¡ndividuos, que, dominados pela vai- se�ões metade do casaco era pardo escuro- e a oufra cin- dade, haviam ultrapassado todos os limifes, e perpetrado os za, enquanto as cal�as tinham uma perna cinza e a o ra seus crimes como que involunfariamen+e, como num delirio, pardo escuro. Um dia, durante o frabalho, uma 'rapariga, como numa embriaguez. Mas n¢s depre~sa os domavamos, - vendedora de kalafch (1) aproximou-se dos defenfos, olhou- domavamos ate aqueles que tinham sido o ferror de cidades e os longamenfe, e p"s-se a rir: aldeias. Olhando em forno de si, o "novato" depressa com- - Ai, como e feio! exclamava. Não tinham pano preendia que não caira em lugar propicio a surpresas, e não que chegasse para a roupa deles - nem do prefo, nem demorava a adotar o tom comum. Esse tom se caraferi- do pardo! zava por uma dignidade estranha e especialissima, que ne- Oufros usavam um casaco de 13 cinzenfa, com mangas nhum dos habitantes do presidio poderia abandonar. Dir- pardas. Tambem as cabe�as eram raspadas de maneiras se-ia que a situa�ão de presidiario representava um titulo, diversas: em alguns a metade do cranio raspado ia de alfo e, at� mesmo, um fifulo de honra! Nenhum sinal de vergo- a baixo, em outros, ia de traves. nha ou arrependimento. No+ava-se en+refanfo um simula- Ao primeiro olhar descobria-se uma infensa semelhan- cro de docilidade, - mais ou menos oficial, - cerfo �a entre os membros daquela esfranha famiia. As per- raciocinio franquilo. "Somos condenados, não soubemos sonalidades mais salientes, as mais originais, os que domi- -viver em liberdade; agora, femos que nos arrasfar atrav�s navam, mau grado seu - procuravam, esbafer-se, adaptar- da "rua verde" (2), femos que ficar -em fila para a chamada. se ao diapasão do presidio. Salvo alguns individuos 'cuja Quem não deu ouvidos ao pai e a mãe acaba obedecendo inesgofavel alegria granjeava o desprezo geral, todos ao rufar do fambor. Quem não aprendeu a bordar com os presos eram sombrios, ariscos, invejosos, presun�osos, fio de ouro, acaba quebrando pedra." Tudo isso se dizia fanfarrões,. suscepfiveis e exfremamenfe formalisfas. Para e se repetia muifas vezes, como maximas, como anexins, eles, a suprema qualidade consistia em não se espantarem mas nunca em tom serio Eram apenas palavras. Have- ria um £nico presidiario que reconhecesse a propria delin- (1) Pãozinho de trigo em forma de cadeado. Os kalatchi de Moscou são :11 afamados. V. p g. 46. (N. de H. MJ (2) A explica�ão dessa expressão vem ... p s. 257. (N. de R. Q-) i 11 i;#

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711 . 41 DOSTOIEVSKI quencia? Se alguem de fora se atrevesse a censurar a um preso os seus delitos. ou o injuriasse (cousa aliU rara no ca- rafer russo) receberia insultos sem fim. E que mestres eram os presidiarios erri materia de insultos e invectivasi Injuria- vam requinfa da mente, sutilmente, arfisficamente. Levavam o insulto ate a ciencia, aplicavam-se em descobrir palaffiw menos ofensivas pela forma que pela id�ia, pelo sentido, pelo espiri+o-, era perfeito como um veneno! E as rixas perpetuas desenvolviam consfantemenfe essa cienc¡a. Como +raba- lhavam sob o azorrague, focla aquela gente era pregui�osa e depravada'. Se não o eram anteriormente, depressa o fi- cavam. Reunidos ali, confra a vonfade, continuavam sem- pre estranhos uns aos outros. "O diabo gastou +r�s pares de lapfi (3) para nos frazer aqu¡", diziam referindo-se a si proprios; por isso a calunia, a infriga, os mexericos, a inveja, o odio, ocupavam o primeiro plano naquela vida condenada. A mais intrigante das co- madres de suburbio não feria a labia de alguns daqueles ban- didos. Encontravam-se entre eles, repito-o, ~ximas de boa ferri- pera, de uma intrepidez a toda prova, habituados a dobrar os outros diante de si. Esses gozavam da uma estima espon- fanea; e por seu lado, embora muito ufanos da sua gloria, esfor�avam-se por não molesfar ninguem, por jamais se lan- �arem em brigas inufeis, portavam-se com absoluta dignida- de, eram quase sempre corda+os e obedientes as ordens, - não por principio, ou por conciencia do dever, mas por uma especie de tratado, do qual reconheciam as vantagens re- ciprocas. E a administra�ão, com esses, sabia ser pruden- te. Lembro-me que um dos nossos colegas, homem valente, com fendencias de fera, foi chamado um dia para o verga- lho. Era no verão, na hora do descanso. Como chefe he- diafo do presidio, o maior compareceu ao corpo da guai---da, que ficava junfo ... porta de entrada, afim de assistir ... pu- ni�i'o. Esse maior era para os detidos um enfe fatal: con- (3) E~O de alPargatas feitas em geral de corti�a de b�tula. (N. de PI QJ RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 19 seguia faz�-lOs fremer diante de si. Sua severidade raiava a extravagancia,' e ele "se afira,^ a genfe", segundo a ex- pressão dos presos. -0 seu maior recurso para causar ter- ror era o olhar de lince, ao qual nada se podia escon-#

der. Aquele'homem via ate mesmo sem olhar. Mal en- frava no presidio ia sabia o que se estava passando no ex- fremo oposfo do recinfo. Os presos o chamavam Mito olhos". E seu sistema de nada adiantava, pois aqueles pro-

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cessos diabolicos serviam apenas para fornar os homens ain- da mais furiosos. Se não houvesse acima dele um gover- nador condescendente, razoavel, que lhe moderava os im- pulsos selvagens, o maior feria provocado grandes desgra- �a s. Nem compreendo mesmo como � que pode chegar são e salvo ao fim da carreira; e verdade que s0 foi refor- mado depois-de passar por um julgamento (4). O preso ficou l¡vido quando o chamaram. o Em geral oferecia corajosamente o dorso as varas; aturava o castigo sem dizer palavra, depois erguia-se como se nada aconfece- ra, igual a um filosofo que encara friamente a sua. pouca sorfe. E, aliU, com ele, tomavam-se precau�ões. Mas, da- quela vez, o homem se julgava no seu direito. Ficou l¡vido, pois, e sem que os soldados da escolta o percebessem, feve tempo de enfiar na manga um +rinchefe de sapateiro, muito afiado. As facas e outros insfrumenfos cortantes nos eram proibidos. Não relaxavam a esse respeito, davam buscas fre- quenfes, imprevisfas, minuciosas: e os delinquentes incorriam is. 1 em puni�ões crue �. porem, dific¡limo apanhar o que um ladrão infenfou esconder; 'a despeito das buscas, as facas e outros insfrumen+os indispensaveis não. desapareciam. E os que eram confiscados, imediatamente se viam subsfifuidos. Os fidos todos correram ao patio, de cora�ão ba- fendo, para olhar a cena. Cada um sabia que, daquela vez, Petrov não tencionava se deitar sob as varas, e que chegara (4) Dostoievski copiou esses tipos da vida real. O norne do maior era Krivtsoy; o governador era o general Grave. (N. de H. M.) O#

RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 20 DOSTOIEVSKI a derradeira hora do maior. Mas no ultimo momento, o maior subiu ao carro e foi embora, encarregando da execu- �ão da pena outro oficial. "Foi Deus que o salvou", excla- maram os defenfos. Quanfo a Petrov, suportou passivamen- te os a�oites. Seu furor abrandara com a partida do ho- mem. O defento man+em-se humilde e obedien+e ate certo limite, porem esse limite não deve ser ultrapassado. Não h6 nada mais curioso que os seus subilos arrancos de irrita~ �ão, de rea�ão. Dado individuo, que durante anos placida- mente suportou os castigos mais atrozes, se enfurecg de re- pente por uma ninharia, por uma bagatela, por um nada. Um estranho pode consider -lo doido, - e realmente mui- +os assim o julgam. Ja disse que durante os meus anos de presidio jamais constatei entre os meus companheiros o menor remorso, o menor r~e de conciencia; no seu foro intimo, a maioria deles considerava que agira bem. Isso e um fato. Eviden- temente, a vaidade, os maus exemplos, as bravatas, o res-

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peito humano, devem, nesse caso, ser levados em conside- ra�ão. Mas, por outro lado. quem se pode gabar de ha- ver sondado essas almas decaidas, de ter descoberto no seu misterio o que fica escondido ao universo inteiro? De qualquer forma, porem, no decorrer de tantos anos, eu de- vera ter surpreendido em alguns daqueles cora�aes um indicio qualquer de sofrimento, de desespero. E, positivamente, na- da descobri. � claro que não se devem fazer julgamentos de -acordo com id�ias preconcebidas, e decerto a filosofia do crime e mais completa do que se imagina. O presidio, os trabalhos for�ados, não melhoram o criminoso; apenas o castigam, e garantem a sociedade contra os atentados que ele ainda poderia cometer. O presidio, os trabalhos for�a- dos, desenvolvem no criminoso apenas o odio, a sede dos prazeres proibidos, e uma +errivel indiferen�a espiritual. Por outro lado, estou convencido de que o famoso sistema celular consegue atingir apenas um resultado enganador, apa- rente. Suga a seiva vital do individuo, enerva-lhe a alma, en- fraquece-o, assusfa-o, e depois nos apresenta como um mo- O 21 .delo de negenera�ão, de arrependimento, O que e apenas uma mumia ressequida e meio louca. � claro qu� i delinquente rebelado contra a sociedade#

a odeia; considera quase sempre que e ele quem +em razão e ela que erra. O castigo que lhe impuseram permite-lhe alias considerar-se absolvido, quite para com os homens. Pode-se afinal encarar a cousa sob um �ngulo que da azo quase a inocentar o culpado. Entretanto, todo o mundo re- conhecera qua, em toda parte, desde o inicio das eras, e sob qualquer legisla�ão, houve crimes que sempre foram consi- derados crimes, e que serão olhados como tais, enquanto o homem for homem. E so no presidio ouv¡ contar com uma risada infarifil, irresistivelmente alegre, as a�ões mais- espantosas, mais desnaturadas, as fa�anhas mais monstruosas, mais infames. Certo parricida, especialmente, jamais me saira da lembran�a. De origem fidalga e antigo funciona- rio publico, exercera junto ao pai sexagenario o papel de fi- lho prodigo. Seu procedimento era +ao desregrado, suas dividas +ao escandalosas, que o pai, mais de uma vez, teve que o conter e censurar. Mas o velho possuia uma gra*, uma casa, e o filho o suspe^va de guardar economias: matou-o. O crime so foi descoberto um mes depois. Du- c ranfe todo esse mes, o criminoso (que alias avisara as au- toridades da desapari~ão do vielho) entregou-se a mais de- senfreada orgia. Enfim, na sua ausencia, a policia desco- briu o corpo coberto de fabuas, num canal de esgoto que atravessava o pa+io em toda a sua extensão. O cad;sver estava vestido, preparado; a cabe�a encanecida, degolada, fora colocada no seu lugar, sobre o +ronco, e sob ela o assas- sino pusera um travesseiro. O rapaz não confessou, foi de- gradado, privado dos seus t¡tulos de nobreza, condenado a

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vinte anos de trabalhos" for�ados. Durante todo o tempo em que o conheci nunca o vi senão em excelente disposi�ão d-- espirifo, jovialissimo. Sem ser um tolo, era a criatura mais estouvada, mais leviana, mais descuidosa deste mundo. Nun- ca observei nele nenhum tra�o especial de crueldade. Os defen+os o desprezavam, não pelo crime, no qual ele não 1 1 J I#

DOS TO I EV.SK I falava nunca, mas por sua leviandade, por sua falta de com- posfura. Na ' palestra, aconfecia-lhe- referir-se ao pai. Uma vez, falando-me do robusto f¡sico heredifario da familia, dia- se: "Cito como exemplo o aufor dos meus dias, que ate ao fim jamais se queixou de uma doen�a". Uma insensibili- dade fão bestial parece quase impossivel. Chega a ser um fen"meno. Ja não e um crime, e uma falha org�nica, uma monsfruosidade f¡sica e moral ainda não classificada pela ciencia. Eu não podia, e 16gico, acredifar na culpabilidade da- o~ mas algumas pessoas da sua provincia, que de- quele mo� viam esfar a par dos fatos, confaram-me a hisforia corri mi- nucias tã'o precisas que era misfer que eu me rendesse ... evidencia. Os defenfos uma vez ouviram-no grifar em so- nhos: "Segura, segura! A cabe�a, corfa-lhe a cabe�a!" Quase foclos sonhavam e divagavam duranfe o. sono:' e o que mais frequentemente se ouvia, então, eram pragas, gritos em calão, referencias a facas e machados. "Somos criafuras malfrafaclas, diziam eles; esfamos es- magados por dentro, e � por isso que grifamos de noite.* Os trabalhos for�ados não eram uma ocupa�a . O, mas uma penifencia. Depois dEr cumprir o n£mero de horas fi- xado pela lei, os defenfos voltavam para o presidio. Odia- vam as suas farefas. Sem os afazeres pessoais aos quais se dedica com focla a alma, com todo o esp¡rito, o for�ado não resistiria. Como, realmenfe, arrancadas ... sociedade e a uma exisfencia normal, criaturas forfemente propensas a vi- ver, desejosas de viver, poderiam se portar normalmente, nafuralmenfe, com boa vontade e bom humor? Basfaria a ociosidade para desenvolver neles os instintos viciosos dos quais não tinham conciencia antes. Sern fra- balhos, sem leis, sem nada que lhe perten�a especialmente, o homem não e mais ele proprio, avilfa-se, iorna-se um ani- mal. E eis por que, levado por suas capacidades nafurais e por um confuso senfimenfo de conserva�ão, cada for�ado tinha um oficio. Duranfe o verão, os trabalhos preenchiam inteiramente, os longos -dias, e as noites curtas mal nos deixa- veim %mpo para dormir. Ne inverno, porem, o regulamento RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 23

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prescrevia o infernamento dos detidos logo ao cair do sol. Que se haveria de fazer durante aquelas tediosas e infer- minaveis noites? `Apesar, pois, da regulamento, cada ca- serna se transformava numa vasfa oficina. Verdade que o trabalho pessoal não era inferdito; mas proibiam-nos seve- ramenfe a exisfencia de quaisquer ufensilios, o que fornava#

impossivel focla ocupa�ão. Então, trabalhava-se escondido, e em certos casos, ampropria adminisfra�"o fazia vista grossa. Muitos de n6s chegavam ao presidio sem a menor no�ão dum oficio, todavia aprendiam com os outros, e quando soava a hora da liberdade, iam embora providos dum bom ganha-* pão. Tinhamos Ia sapateiros, marceneieos, carpinteiros, gra- vadores, dourador3s. E ate mesmo cerfo judeu, lsai Bumch- +ein, descobriu a maneira de ser simulfaneamente ourives e usurario. Todos procuravam ganhar alguns copeques. Vi- nham encomendas da cidade. O dinheiro e~m si j representa liberdade; mas para o homem r�almenfe privado da liberda- de, o dinheiro fica com o valor elevado ao decuplo. Basta a gente poder filin+ar as moedas no bolso, e, mesmo q4c-;"n'ao as possa dispender, senfe-se consola,4,j pela metade. E con- seque-se de qualquer modo gastar o dinheiro - principalmen- fe porque o fruto proibido nos parece sempre duas vezes mais saboroso! Ate no presidio e possivel conseguir bebida. Oslcachimbos eram rigorosamente proibidos, contudo todo o mundo fumava. O dinheiro e o fu,mo salvavam os presos do escorbu+o e de outras doen�as: o trabalho os salvava do crime: wm ele, se entreclevorariam, como aranhas fechadas num frasco. Todavia, proibiam-se o trabalho e o dinheiro! Frequenfemen+e, duran+e a noite, era realizada de chofre uma busca e levavam-se todos os objetos interdifos. Por melhor escondido que estivesse o dinheiro, caia algumas vezes nas mãos dos guardas. iE, em parte por essa razão. em vez de economizar nos nos. apressavamos a beber. Dai o consumo d� vodca. Depois de cada busca, alem da confisca�ão dos seus bens, o culpado sofria uma puni�ão exemplar. Mas, de cada vez, preenchia-se imedia+amenfe, o claro, in+roduziam-se novamente objetos. e a vida refornava o seu curto. A admi- O 'i#

24 DO ST O 1 E VS K 11 RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS nistra�ão não o ignorava. e os defen+os, por seu lado, não murmuravam contra a puni�ão, - embora uma vida daquelas se pudesse assemelhar a que se leva nas faldas do Vesuvio. Aqueles que não tinham oficio, entregavam-se a ocupa- �ões muit¡ssimo originais. Alguns, por exemplo, comerciavarril e- trocavam cousas que, fora dali, não ocorreria a ninguem traficar com elas, nem mesmo lhes emprestar a minima valia.

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O presidio, porem, era tão pobre quão industrioso. O mais fri- fimo dos trapos tinha o seu pre�o e encontrava uso. A mi- ,seria dava ao dinheiro um valor muito diverso do que ele tem 16 fora. Um trabalho enorme e dificil pagava-se com uma ou duas moedas de cobre. Outros faziam empr�stimos com vencimento semanal. O detenfo prodigo ou arruinado levava o seu derradeiro objeto ac, usurario, que lhe empres- fava sob penhor alguns copeques a juros monstruosos. Se o cliente não resgatava o objeto na data marcada, via-o ven- 1 dido sem piedade. A usura florescia a fa, ponto que se empenhavam ate mesmo os objetos sujeitos ... inspe�ão: roupa branca marcada, botas e outros pertences que a administra- �ão poderia reclamar a qualquer momento. Mas, por oca- sião desses emprestimos, a cousa assumia, as vezes, um as- pecto imprevisto (não +ão imprevisto, alias). Assim que recebia o dinheiro, o "cliente" ia procurar o sub-c,ficial que era o mais accessivel dos dirigentes da prisão, e lhe denunciava a penhora de objetos de uniforme. E o sub-c,ficial, sem recorrer sequer a administra�ão, tomava do prestamista os objetos empenhados. Cousa curiosa: nesses casos não surgia nenhuma briga. O usurario devolvia em silencio o que lhe ~reclarriavam, como quem esperava por aquilo! Talvez reco- nhecesse no ¡ntimo que no lugar do "cliente" agiria da mesma forma. E se depois julgava necessario praguejar, fazia-o sem acrimonia, por simples descargo de conciencia. Em geral, os presos roubavam tremendamente entre si. Quase todos guardavam num bau, fechado a cadeado, os objetos que lhes dava a administra�ão. Esses cofres eram tolerados, mas não ofereciam garantia alguma. Não e dificil imaginar que artistas do roubo se encontravam entre nos! Um companheiro, que me era- sinceramente afei�oado (conto-o com toda a singeleza) roub�u-me uma Biblia, o u ri Ico 1 objeto cujo uso me fora autorizado. E confessou-me o roubo no proprio dia em que o cometeu, não por arrependimento, mas por do, ao me ver procurar dernoradamente o livro. Ou- tros exerciam a profissão de botequineiro, e rapidamente enriqueciam. Mais adiante falarei acerca desse comercio especial e bastantd' curioso. Como finhamos no presidio#

varios condenados r~or ~ontrabando, não ha razão para que se admire a entrada 16 de vodca a despeito das buscas e da vigilancia. O &on+rabando e um crime ... parte. O in+eres- se - quem o ha de crer? - desempenha nesse caso apenas um papel secundario. O contrabandista trabalha por vicio, por voca�ão. � um poeta ao seu modo. Arri---r~P tudo, afronta os piores perigos, gasta astucia, engenho, agiliincriveis: algumas vezes suas a�ões parecE~m at� inspiradas. ,e E' uma paixão-tão forte quanto a,do *jogo. Conheci um for�ado de estatura colossal, porem +ão manso, tão sossega- do, +ão bem humorado, que sua estada entre n¢s parecia um enigma. Nunca - mas nunca - durante todo o seu

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periodo de prisão, teve uma briga qualquer, com ninguem. Era originario da fronteira ocidental, fora deportado como contrabandista, e, � claro, não podia se coibir de exercer o trafico secreto de vodca. Quan+os castigos sofreu por isso, e~ que pavor tinha ele dos a�oitesl Continuava, todavia,, no oficio, apesar do lucro irrisorio, pois so quem enriquecia era o dono das bebidas. O pobre rapaz amava a arte pela arte. Chorão como uma mulher, jurava a todos os deuses, depois de cada fustiga�ão, que *jamais +ornaria ao vicio. ·s vezes mantinha o juramento um m�s inteiro, depois dei- xava-se cair em tenta�ão ... E gra�as a individuos da sua especie, a aguardente não nos faltava jamais, no presidio. Os defen+os tinham ainda outra renda que, sem os enri- quecer, não era menos regular e benefica: refiro-me ...s es- molas. As nossas "altas classes sociais" não fazem a menor id�ia dos cuidados com que os comercian+es, os pequerios- 4#

DOSTOIEVSKI burgueses e a plebe em geral cerc~m os "desgra�ados", como eles dizem. A esmola se faz de modo continuo, quase sempre sob a forma de pães ou kalafchi, e, mais raramente, em moedas de pequeno valor. Se não fossem essas esmolas, certos lSresos. especialmente os que ainda estão dependentes de julgamento e que sofrem regime mais severo que os con- denados, dificilmente poderiam viver. A esmola se divide religiosamente Crifre os detentos. Se não ha bastante para todos, corta-se um kalafch em partes iguais, as vezes em seis peda�os, mas cada um ganha o seu quinhão. 8 Lembro-me bem da primeira esmola que recebi. Foi pouco ap6s minha chegada. Eu vinha do trabalho da manhã, com um £nico srldado de escolta. Caminhavam ao meu encontro uma mulher com a filhinha - menina de dez anos, linda como um'anjo-, ia eu as vira antes. A mãe era viuva de um rapaz, um soldado, que, depois de ser submetido a conselho de guerra, morrera no hospital. no pavilhão dos defen+os, onde eu proprio estava em tratamento. Mãe e filha lhe tinham vindo dizer adeus, ambas chorando amargas lagrimas. Quando me avistou, a garotinha ficou rubra, e a pro murmurou algumas palavras ' mãe, a mulher se deteve, curou no cesto um quarto de copeque e deu a moeda a crian�a, que correu para mim ... - Toma, "desgra�ado", recebe este cobre por amor # de Nosso 'Senhor, gritou ela, enfiando-me a moeda na mão. Recebi o dinheiro; e a pequena, satisfeita, voltou para junto da mãe. Durante muito tempo conservei a moedinha. Primeiras impressões primeiro mes e, de. modo geral, o inicio da minha vida o de p risioneiro desenham-se vivamente ante a minha imagina�ão: mas os anos seguintes deixaram-me ape- nas retorda�ões confusas. Algumas lembran�as ate se fun- diram, desbotaram, e nSo guardei delas senão uma id�ia ge-

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ral de peso, de uniformidade, de sufoca�ão. Isso, alias, e um fen"meno absolutamente normal. O que me impressionou logo que entrei nessa vida, foi, lembro-me bem, não poder descobrir nela nada de extraor- dinario, ou melhor, nada de inesperado. Tudo aquilo pare- cia ia me haver desfilado ante o espirifo, quando, de caminho para a Siberia, eu me esfor�ava por adivinhar a sorte que me aguardava. Mas, logo apos, um abismo de fatos mais que surpreendentes, mais que monstruosos, a cada passo mo foi defendo. Depois de viver longos anos no presidio, aca- bei por compreender todo o elemento imprevisto daquela i#

I Biblioteca,Pr iblica "Artkur Vian LJ ~ia~n#

28' DOSTOIEVSKI exisfencia, todavia nem por isso deixei de me espantar ante ele. Devo confessar que esse espanto me acompanhou du- ranfe todo o per¡odo de prisão; nunca me pude afazer aque- le cenario. Entrando no pres¡dio, a minha primeira impressão foi principalmente de horror, contudo - cousa estranha! - a vida me pareceu muito mais facil do que eu a imaginara du- rante a viagem. Embora usassem a grilhefa aos p�s, os detenfos circulavam livremen+e, praguejavam, cantavam, fra- balhavam por conta propria, fumavam cachimbo*, alguns ate u bebiam vodca e ' noite (esses em muito pequeno n'mero) a jogavam cartas. Quanto aos trabalhos, pareceram-me muito menos duros, muito menos "trabalhos for�ados" do que seria de pensar; so muito +empo depois compreendi o verdadeiro carafer desses trabalhos, menos penosos por sua dureza e con- finuidade que pelo fato de serem "impostos", obrigatorios, cumpridos sob o azorraque. � inegavel que o nosso mujique labuta muito mais que um for�ado: em alguns per¡odos do ano, sobretudo no verão, e obrigado a trabalhar em serões que lhe +ornam a noite inteira. Mas esfor�a-se por sua conta, no seu interesse, e por isso se sente imcomparavelmen+e menos fatigado do que o for�ado, que realiza uma tarefa que lhe e imposta, absolu- tamente improdutiva para si. Ja me ocorreu uma vez que, se se procurasse aniquilar, esmagar, castigar um homem da maneira mais implacavel, se se quisesse fazer com que ante esse castigo o pior dos faci- noras trem-esse antecipadamente - bastaria dar ao seu +ra- balho um cara+er de inteiro absurdo, de absoluta inutilidade. Os trabalhos for�ados atuais, por mais despidos da interesse

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que sejam para os condenados, pelo menos não são inteira- mente desprovidos dum sentido. O for�ado-operario fabri- c~ tijolos, cava o solo, faz argamassa, edifica; e nessas tarefas ha um pensamento, ha um fito. Algumas vezes, ate, ele se interessa por sua obra, procura reali -la melhor, mais habil- mente. Mas se o empregarem, por exemplo, a carregar a aqua dum tonel para um outro, e do segundo para o primeiro, t RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 29 ou a esmagar areia, ou a transportar +erra daqu Ia Pa ra al 1, e devolve-ia depois ao sitio primitivo, - creio que o cabo de poucos dias ele se enforcara, ou cometera mil desatinos, afim da merecer a morte e escapar aquele rebaixamento, aquela#

vergonha, aquele tormento. Alias, essa especie de castigo significando apenas tortura e vingan�a, seria insensata, por- que ultrapassaria o seu fim. Contudo, qualquer trabalho .a obrigaforio contem a sua parte de tortura, de absurdo, de humilha�ão, e e esse o~ motivo que +orna os trabalhos for�ados irricom pa ravel mente mais penosos que os outros. Alias, como chequei ao pres¡dio no mes de dezembro, 4 não pude formar nenhuma ideia das tarefas de ver5o, cinco v.ezes mais pesadas que s de inverno. M~ inverno, na nossa fortaleza, havia muito pouco trabalho regulamen+ar. Os pre- sos iam para as margens d~ lrtych, deffioiir velhas barca�as do governo-, trabalhavam nas oficinas, varriam dos edif¡cios a neve amontoadja pelas ventanias, que-imavam e moiam alabastro, etc.. . . Os dias eram curtos, a labuta terminava lego, todos nos volfavamos cedo ao pres¡dio, onde ficar¡amos quase a-toa, sa não fora o trabalho pessoal que cada um ar- ranjava para si. Mas apenas um ter�o dos presos se entre- gava a uma ocupa�ão regular; os outros vagabundeavam, andavam pelos alojamentos, brigavam, mexericavam, embria- gavam-se, caso dispusessem de um pouco de dinheiro. A noite arriscavam no baralho ate a camisa do corpo: tudo por +edio, por ociosidade, para matar o tempo. Compre- endi, depois, que alem da priva�ão da liberdade e da imposi- �5o do trabalho, o de+en+o ainda sofre de um outro supl¡cio mais penoso: a cohabi+a�ão obriga+oria. A vida em comum exist,e decerto em outros lugares, porem os companheiros do pres¡dio em geral não seriam ~-f olhidos como +ais por ninguem. e tenho certeza de que todos os presos, inconcien+ernenfe embora, sofriam com aquela promiscuidade. A comida me pareceu +ambem muito +cleravel. Os presos me garantiram que não se fornece comida +ão boa#

DOSTOIEVSKI

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nas "companhias correcionais" (1) da Russia Europ�ia, coisa em que não posso opinar, porque não as conhe�o. Ali6s, muitos tinham dinheiro para obter comida ao seu gosto. A carne nos custava dois copeques por libra, e durante o verão tris copeques. Os que tinham dinheiro podiam pois comprgr carne. A maioria, entretanto, comia do rancho. Quando os for�ados elogiavam a comida, referiam-se ao pão, e nota- vam -safisfei Ds que nos davam pães inteiros, e nSo por peso, cortados em peda�os. O racionamento individual os apa- vorava: teria deixado pelo menos um ter�o deles famintos, enquanto o fornecimento em bloco fazia com que chegasse 11 para todos. Nosso pão era afamado ate na cidade-, a+ribuia- se o seu sabor a feliz constru�ão dos fornos. ~#sopa, ao conf rario, - a f radicional sopa de couve azeda, - nao era bem reputada. Cozinhavam-na num caldeirão, engrossav~m- na de leve com centeio, o que nã*o a impedia de ser muitor rala, e, sobretudo, nos dias de trabalho, deixar a barriga a roncar de vazia. Na minha opinião, o mais repelente cle tudo ora o numero inconcebivel de baratas que nadavam nela: mas os defenfos não se importavam. Nos tr�s primeiros dias não fui ao trabalho-, deixavam que todos os recem-vindos descansassem da viagem. Entre- tanto, fogo ao dia'seguinfe da chegada, fizeram-me sair da fortaleza para me porem os grilhões. Os que eu trazia não eram os regulamentares: "soavam fino", segundo a expressão dos defen+os, e apareciam sobre a roupa. O modelo usa- do, afim de permitir o trabalho, não se compunha de argo- las, mas de quatro hastes de ferro da grossura de um dedo, mantidas juntas por quatro aneis: deviam ser usadas sob as cal�as. No anel do meio enfiava-se uma corrente que por sua vez se afivelava a cintura, sobre a camisa. Recordo bem minha primeira manhã no presidio. No corpo da guarda, junto ao por+So, o tambor rufava a alvorada, (1) Trata-se das "companhias correcionais civis", cri.-d3s em 1825 segunde o modelo das companhias correcionais militares. Mandavam-se para elas os indivi- duos condenados ... deporta�ão por crimes relativamente de pequena gravidade, bem como os membros das classes privilegiadas, condenados por crimes at� mesmo capitais. Os d@fentos, submetidos ... disciplina militar, eram utilizados em diversos trabalhos de uti- RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 31 e dez minutos depois o oficial de dia abria as casernas. Des- pertamos. A luz debil de uma candeia, os presos se ergueram, tiritantes de frio. A maioria es+ava taciturna e mal humo- rada. Bocejavam, espregui�avam-se, franziam a +esta mar- cada pelo ferro. Uns se benziam, outros brigavam. O aba-#

famenfo era abominavel. No momento em que se abriu a

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porta, o ar frio do inverno entrou em borbotões, formando nuvens de vapor Ia dentro. Os homens se reuniram em*forno dos baldes de agua-, cada um por sua vez +ornava a caneca, bochechava, molhava o rosto e as mãos. A agua fora posta ali desde a vespera pelo parachmili: (2), titulo dado ao preso escolhidoãen+re os outros para o servi�o do alojamento. Dis- pensado do trabalho externo, ele cuidava do asseio da sala, lavava e esfregava o chão e as tarimbas, trazia e levava a cuba. mantinha a agua limpa nos baldes - de manhã para o asseio corporal, de noite para beber. - Não empurra, cara de macaco! rosnava um preso magro, +rigueiro,-melanc61ico, com estranhas pro+uberancias no cranio raspado,' empurrando um outro for�ado de pe- quena es+a+u;a. en+roncado, rijo, de cara vermelha e jovial. - Para que esse berreiro? Alugaste o lugar? Desin- fe+a daqui, obelisco! Ora vejam o ... E o palavrão que dizia provocava o seu efeito: os outros rebentavam em gargalhadas. Era justamente o que queria o corado trocista, que, evidentemente, desempenhava na ca- serna o papel de bufão. O preso alto o encarava com des- pre(~,c, profundo: - Cara de vaca! Decerto engordaste Com O Pão branco daqu � ! No Natal ' has de parir pelo menos uma duzia de leitões, heim? lidade p£blica (pavimenta�ão de ruas, canaliza�ão, constru�ão de pontes, etc.), sem nenhuma remunera�ão. De acordo com um regulamento de 1845, a condena�ão ...s companhias correcionais veio a ser -a mais grave medida coercitiva para os individuos condenados aos castigos corporais, paralelamente ... deporta�ão para a Siberia para os membros das classes privilegiadas. (N. de H. M.) (2) Limpador de privadas (N. de R. Q)#

32 DOSTOIEVSKI - E tu, que ra�a de passaro pensas que es? gritava de repenfe o oufro, ia rubro. - Isso mesmo, não sou uma leitoa como fu, sou um passaro. - Que qualidade de p6ssaro? - Isso � comigo. t-- Não, dize, anda, que passaro? E se devoravam com os olhos. O vermelhac, esperava a resposfa, de punhos fechados, como pronto para a luta, Eu estava cer+o de que eles se iriam agarrar: e aquele* espe- faculo novo me a�ulava a curiosidade. Soube depois que essas cenas, inteiramente inocentes, eram *representadas para cliverfin¡en+o geral. Quasi nunca passavam de palavras. Mas tudo aquiio era caraferisfico e refletia a mer~+alidade da prisão.

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O preso alfo manfinha-se sossegado e majestoso. Sabia que o olhavam: e sua resposfa seria sua deshonra ou sua gloria. Devia susfenfar o que dissera, mostrar que era real- menfe um passaro. Lan�ou um olhar de vies ao adversario, e com inexprimivel desdem, fifando-o por cima do ombro, como a um insefo, len+amenfe, sigri ificaf iva mente, articulou: - Pois sou um kagan (3). Uma gargalhada re+umbanfe acolheu essa afirma�ão. - O que es e um malandro, e não um kagan, gague- jou o vermelha�o, que, senfindo-se vencido, atingira o grai, mais alto do furor. Quando, porem, a coisa come�ava a ficar seria, trata- ram de amansar os adversarios. - Que foi que deu neles? grifaram. - Seria melhor que voces brigassem a murro, e não com a lingua! falou alguem Ia do seu canto. ---Segura os dois, senão se agarram! observou um oufro. Cada qual � mais valente: so brigam de sete contra um! (3) Não h nenhum P ssaro com esse nome. A palavra kagan, entre alguns povos orientais, significa chefe, pr¡ncipe, e entre outros grupos de siberianos significa . raposa". Para o for�ado, que escutou a palavra sem a entender bem, o kagan sipificari@ decerto um w superior, um p ssaro das alturas. (N, de 11. M.) RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 33 - Sim, são uns anjinhos: um esta aqui por causa de uma libra de pão, e o outro bebeu o soro do leite de uma velha e por isso me+eram-lhe o knufl#

- J chega! bradou o invalido que exercia as fun�oes de vigilante e dormia num canto, numa farimba especial. - Agua, meus filhos! O "Nevalido" (4) Petrovi+ch 16 acordou! Bom dia, meu irmãozinho "Nev61ido" PefrQvi+chi - Se eu fosse +eu irmão nos bebiamos juntos! rosnou ,o invalido, estirando as mangas do capote. Preparavamo-nos para a chamada. O sol nascia. Os dãenfos se aglomeravam na cozinha. Ja pronfos para o +rabalho,.com ocapofe, os gorros de duas cores, esperavam ,junto ao pão que um dos cozinheiros dividia. Esses cozi- nheiros, eleitos enfre os presos a razão de dois por cozinha, eram encarregados da guarda da Unica faca que servia para cortar o pão e a carne. Alguns for�ados tinham diarife de si uma caneca de kvass (5). Esfarelavam o p3o ali dentro, e depressa o enguliam. O barulho era insupor+avel, mas nos cantos a conversa era discreta, sossegada. - Paizinho Antoni+ch, pão e sal, saude! exclamou um preso jovem cumprimentando um for�ado +ris+onho e des- denfado. - Bom dia, se não estas de +ro�a! respondeu o velhote sem erguer os olhos, continuando a mastigar o pão com as gerigivas.

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- Imagina, Anfoni+ch, e eu que pensava que tu tinhas morrido! Deveras! - Ainda não. Vai na frente, me mostrar o caminho! Sen+ei-me perto deles. A minha direita conversavam dois outros presos, sossegados, procurando ambos manter um ar de dignidacl_e. C - - Eu te garanto que não me hão de roubar, dizia um. � mais facil ser eu quem roube aos outros. - Pois +ambem e bom que ninguem meta as mãos no que e meu, senão a coisa engrossa! (4) Deturpa�ão de "inv lido". (N. de R. Q) (5) CebiOR fermentada, feita de pão preto e malte. (N. de H. M.) 4 - 'lo 1#

34 DOSTOIEVSKI - Então e assim? Tu es diferente de nos? Sossega * Não passamos de gales ... e nada mais. Ela e que te ha de embrulhar. sem nem dizer muito obrigada ... Da mim fambem, meu filho, ela surripiou quatro copeques. Apare- ceu aqu¡ outro dia. Mas onde haveria cle meter-me com ela? Pensei num adjutorio de Fedka, o carrasco, ele ainda tinha a mesma casa no suburbio, - a casa que comprou de Salomonka. aquele judeu piolhento que se enforcou ... - Eu sei. Era bo+equineiro aqui ha fr�s anos aftas; n6s o chamavamos "Grichka-bodega-escura". Eu sei. - Não, não sabes. O "bode ga-,escu ra " era outro. - Que outro! Estas louco, rapaz. Posso +e apresen- +ar fantos testemunhos quanto queiras. - Podes +razer! De onde e que vens? Sera que sabes quem sou eu? - Quem, fu? Não e para me ciabar, mas ia +e dei umas boas sovas. Ora, quem es +u! - J me deste sovas, fu? Ainda esta para nascer aquele que me ha de dar uma sova, estas ouvindo? E aque- le que me sovou ia esta enterrado! - Ora, ma peste te mate! - E.a lepra que +e roa! - Vai atras dum turco que +e meta o sabre! E choviam os insultos. - Basta, basfa! que berreiro e esse! gritavam ao neclor. Voc�s não sabiam viver soltos, e agora estão satisfeitos, por- que aqui +em pão fresco! Basta! Separaram-nos rapidamente. Os insultos, os desafo- ros, toleram-se de bom grado, porque servem de distra�ão para o auditorio. Quanto as rixas, so são autorizadas em casos excepcionais. As vias de fato podem ser denuri-cia- das ao maior, que vem pessoalmente fazer um inqueri+o: o inqu�rito significa aborrecimentos para todos, e deve por- tanto ser evitado. Alias, quase sempre os adversarios fro- cem desaforos por distra�ão, por amor ... arte. Frequante-

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mente o sangue lhes sobe a cabe�a, ficam'furiosos, e a gente pense que se v-ao agarrar, mas não: assim que a raiva de O I RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 35 um e outro atinge certo diapasão, separam-se. Tudo isso, a principio, me provocou uma extraordinaria, surpresa. Foi#

de proposito que citei este exemplo de palestra habitual, enfre os for�ados. Não compreendia que alguem pudesse trocar insultos por prazer, encontrar nesse mister um encan- to, um deleite, um divertimento. Não se deve esquecer tambem. a parte que cabe a vaidade: o colecionador de pragas sobe na estima geral-, um pouco mais, e e aplaudido como ator. a Logo ' primeira +arde notei que me fitavam de vi�s, apanhei mesmo alguns olhares sinisfros. Por outro lado, des- confiando que eu trazia dinheiro, alguns defentos me ron- davam. Ofereceram-me logo os seus servi�os, ensinaram-me a carregar os ferros novos, ob+iveram-me - mediante di- nheiro, e claro - um bau com cadeado, para arrumar nele o meu enxoval de presidiario e a pouca roupa branca que trouxera. Mas logo no dia seguinte roubaram-me tudo e gastaram o produto em bebida. Um dos meus* assaltantes +ornou-se mais +arde precio- sissimo para mim, erribora continuasse sempre a furtar o que era meu, sempre que a ocasião lhe parecia adequada. ~Co- metia o roubo sem o menor acanhamento, como por obri- ga�ão; e eu não lhe podia guardar rancor. Entre outras cousas, aqueles colegas servi�ais me infor- maram de que a gente poderia ter o seu cha: seria pois ato ufil, para mim, a compra de uma chaleira. E, esperan- do a compra, poderiam me alugar uma. Recomendaram-me tambem um cozinheiro que mediante trinta copeques por mes me prepararia as refei�ões, se eu quisesse comer 'P' pa rte ... ~Orrio era de esperar, pediram-me dinheiro em- pres+a_ _~ogo no primeiro dia, cada um deles renovou os empresfimos duas e +r�s vezes. Os ex-fidalgos são em geral muito mal vistos no pre- sidio. Embora +enham perdido os direitos civis e sejam ali iguais a todos os outros, os for�ados se recusam a encara-los como companheiros. Ali s, nSo decorre isso de nenkurn pre-#

DOSTOIEVSKI conceito, mas de uma opinião inafa. Aos seus olhos confi-

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nuamos sempre a ser fidalgos, o que não os impede de gozar a nossa queda: "Agora acabou! Ainda ontem Piofr an- dava brilhando em Moscou! agora. Piotr force a corda que vai usar no pesco�o!" e outras cousas classe jaez. Gozavam os nossos sofrimentos; entretanto, faziamos tudo para os esconder deles. Era principalmente nos pri- meiros tempos que lhes atra¡amos as zombarias, porque, como a nossa for�a nSo era igual a deles, não os pod¡amos equiva- ler no frabalho. � dific¡limo obter a confian�a do povo, so- brefudo daquela qualidade de gente do povo, e lhes conquis- far a afei�ão. Tinhamos no presidio varios fidalgos. Para come�ar, cinco polacos, dos quais falarei mais tarde. Os de+entos os detestavam ainda mais que aos nobres russos. Os polacos (refiro-m,e aos condenados polificos) tratavam os colegas de prisão com uma delicadeza meticulosa, exagerada, altiva; não podiam dissimular a repugnancia que a sua convivencia lhes inspirava. Os for�ados compreendiam isso muito bem e lhes pa- gavam na mesma moeda. Precisei passar quase dois anos no presidio para con- seguir a boa vonfa& de alguns presos. Contudo, no fim da pena, a maioria deles gostava de mim e me considenQva um "bom sujeito". Excluindo-se a minha pessoa, a fidalguia russa tinha no presidio quatro representantes. Em primeiro lugar, um su- jeifo crapuloso, medonhamenfe corrompido, espião e de- lafor de oficio, de quem eu ia ouvira falar antes da minha chegada e com o qual cortei rela�8es logo no primeiro dia. O segundo _era o parricida de quem ia falei. O ferceirb chamava-se Akim Akimi+ch. Raramente tenho visto um ori- ginal daqueles: ficara para sempre gravado na minha lem- bran�a. Era um homenzarrSo ossudo, de espirito fraco, ig- norancia crassa, mefoclico e preso a regra como um alemão. Os presos o ridicularizavam, mas alguns evitavam irrita-lo, temendo-lhe o genio briquen+o. Desde o inicio nivelara- kECORDAC ES DA CASA DOS MORTOS se com os outros, rixando-se, agarrando-se ate com eles. Era de uma honestidade fp-nomenal, e, assim que constatava uma injusti�a, voava a corrigi-ia, e muitas vezes se imiscuia ern negocios que absolutamente não eram da sua confa. Sua ingenuidade era prodigiosa; por exemplo: quando brigava com os defen+os, censurava-lhes as ladroagens e os conci- fava ao arrependimento. Fora alferes no exercito do C�iu- caso. Fizemos amizade logo no primeiro dia e ele imedia-#

famente me confou a sua his+oria. Come�ara a vida Ja mesmo no Caucaso, como sulo-oficial volun+ario num regi- men+o de linha; esperara durante muito tempo a promo�ão a oficial, mas afinal mandaram-no como comandante para um velho forfim. Um principe +ribufario dos arredores incen- diou esse for+im, e fenfou um ataque noturno, sem nenhum �xito ali s. Akim AkiMi+ch, por as+ucia, fingiu que não sabia quem fora o autor do ataque. O caso foi a+ribuido

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aos dissidentes; um m�s depois Akim Akimi+ch convidou o principe para uma visifa de cordialidade. E o principe compareceu, sem des~onfiar de nada. Akim Akimi+ch formou sua guarni�ão em linha de batalha e confundiu publicamente o visitante, lan�ando-lhe em rosto a sua felonia. Explicou- lhe miudamente a conduta que doravan+e deveria ter como 1 a pr ncipe fribufario, e depois, ' guisa de conclusão. . . fu- zilou-o. E no fim de tudo, mandou um relaforio circunstan- ci;" o aos seus chefes. Foi a conselho de guerra; condena- do a morte, teve a pena comutada para trabalhos for�ados de segunda categoria, e foi mandado passar doze anos na Siberia ... Reconhecia que a sua conduta fora ilegal, ga- ranflu-me ate que sabia disso antes de mandar fuzilar o prin- cipe; nSo ignorava que o principe deveria ser julgado se- gundo a praxe; contudo, não conseguia compreender em que consistia o seu crime. - Mas veja, o principe tinha incendiado o meu forfim! Na sua opinião, eu ainda deveria dizer muito obrigado, heiri? respondia ele a +JJas as minhas obje�;-5es. Os for�ados, por mais que zombassem de Akim Aki- mi+ch e o chamassem de louco, tinham em alta confa o seu#

DOSTOIEVSKI to de ordem e as suas prendas. Akim Akimi+ch sabia os oficios: era marceneiro, sapateiro, pintor dou- serralheiro; e todas aquelas artes aprendera-as no io. Auto-clidata nato, bas+ava-lhe ver um objeto para ifar. Confeccionava fambem uma enorme variedade ixas, cestos, lanternas, brinquedos, e os vendia na cida- Isso lhe rendia algum dinheiro que ale empregava ime- mente na aquisi�ão de roupa branca ou de um traves- mais macio. Conseguira ate mesmo fabricar para si olchão dobradi�o. Como ocupava o mesmo alojamen- e eu, ajudou-me muito durante os primeiros meses da deten�ão. Antes de sairem da fortaleza para o local do trabalho, esos formavam dois a dois diante do corpo da guarda. infe, e a cauda da forma�ão colocavam-se os soldados scolta, de armas embaladas. Aparecia então um ofi- e engenharia, condutor dos trabalhos, e alguns sapade- esignados como moni+ores. O condutor contava os s, depois os mandava em pelotões para os locais de- dos. 1 Juntamente com outros, destinaram-me a oficina de en- aria, constru�ão baixa, toda de pedra, situada no meio grande patio atulhado por uma infinidade de`ma+eriais. -w ali uma forja, tendas de marceneiro, de serralheiro, s+rador, e+c_ . , 'Akim Akimi+ch trabalhava no enverni- into; esquentava o oleo, moia as tintas, e pintava mesas ros moveis de cor de nogueira. Enquanto esperava as minhas novas grilhe+as, comuniquei- s minhas recentes impress6es. - Sim, e verdade, confirmou: eles não gostam dos es, principalmente quando s3o condenados -pol¡ticos: so

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l+a come-los vivos. � facil de compreender. Para co- r, voc�s e eles nada +�rn de comum. Em segundo prifes de virem para ca eram todos pobres servos ou es soldados. Julgue por si se podem gostar de nobres. - sou eu que lhe digo, - a vida e dura, mas nas anhias correcionais da Russia europeia e bem pior. Os RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 39 e v�m de Ia para c acham que passaram do inferno para c�u. E não e que o trabalho seja mais penoso. Parece que Ia a primeira categoria não tem uma cline�ão estrita- n+e militar: tratam os presos de modo muito diverso daqu¡; *deportados podem at� ter a sua casinha; não vi com meus os, porem foi o que me disseram. Não raspam a cabe�a,#

o obrigam a uniforme, todavia, acho ate bom que os esos tenham a cabe�a raspada e usem uniforme: a ordem melhor, e e mais agradavel a vista. Mas e isso justa- men+e o que desagrada a esses camaradas. E. +ambem, ,que bandos de vagabundos! Circassianos, raskoiniki, (6) ,bons cristãos ortodoxos que deixaram na aldeia mulher e ilhos, judeus, boemios, a Deus sabe quem mais, obrigados os a viver bem uns com os outros, a comer na mesma ga- a, a 'dormir na mesma tarimba! E que liberdade! - O 1. comer da gente, e preciso enguli-lo ...s escondidas, cada vin+enn e guardado no fundo das botas; não precisa dizer ,mais: presidio e presidio ... E quer a gente queira quer não, acaba meio louco. Aquilo eu ia sabia. Era principalmente a respeito do nosso maior que eu queria interrogar Mim Akimi+ch. Ele não me dissimulou nada e a impress3o que me ficou não foi absolutamente agradavel. Tive que passar dois anos sob as ordens desse individuo, e tudo que no primeiro dia me disse Akim Akimi+ch se re- velou exato, - com a diferen�a apenas de que a sensa�So direta sempre ultrapassa a impressão provocada por uma simples narrativa. Era um homem apavorante, sobretudo gra�as a autoridade absoluta que exercia sobre duzentas pessoas: porque ele, em si, não era senão desordenado e mau. Considerava os de+en+os como seus inimigos nafu- rais: era esse o seu primeiro e principal engano. Sua pouca capacidade, suas proprias qualidades se desviavam e tomavam uma dire�ão ma. Violento, impulsi- vo, cruel, precipifava-se como8~,,ima bomba na fortaleza, ate (6) Welhos crentes". O "Raskol" foi um cisma provocado pelo patriarca Nikon que em 1666 corrigiu os livros sagrados. (N. de R. Q)#

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bos'ro I E vs I( I Mesmo alta noite. e se observava algum preso dor lado esquerdo punia-o no dia seguinteMindo do gundo as minhas ordens, deve pela manhã. /'Se- Era odiado e temido com -se dormir do lado direito111 melha�a e enfarruscada O pe�onha. Tinha um Todos sab* a cara ver ioguefe nas mãos do se * iam que O maior era um neste mundo era O cac u ordenan�a, Fedka. Seu unico queceu quando o anima horrinho Tresorka (7) e izinho caiu dmor fam, como � quase enlou- depois se se tratasse dum doente. Solu�a va ~ co de lhe haver dado -filho. , Expulsou um uma surra, segundo o s r; eu n vete - Mas sabendo, Por infermedio de Fedka pres;d;o um curandeiro que sempre se sa- , que havia ridou cham6-10 inconfinenfi. ia muito bem, - Salva-ol grifava ele. bro de dinheiro! Cura O homem um lf o Meu Iresorka e eu te 'fo bom veferinarim u~ [que s;beriano 'asfufo, inteligente. . e visita , O, contou ma r a casa do m - is fa de aos com ajor, - ali s Panheiros quando o caso estava 16 o fez muito mais u- Olhei Para Tresorka, quase esquecido. ma almofada clue estava no sof ~ em cima muito alva, vi irpediafamenfe que sofr- inflama�ão e seria preciso sangi-6_lo, para o salvar sei tambem: ta lei: E se eu fracasso e o cão rebenta?'; "Excelencia, mandou-me chamar muito tarde. m Ou anteontem eu ainda Pem mais jeif¢.tv o Poderia salvar; o assim, f;'Ou-se Tresorka. nforam-me fambem, c quisera m Om muitos Pormenores que um#

atar o maior. )-se que - O pre- J h Muitos anos' n sse homem dava mostras de uma submissão exemplar. r debil Iamais dir;g~a a Palavra a i

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menfal. ninguem, Passava S Ma Pen fa 8 o abia ler e escrever, e levara o ano a ler a B'b"a, ia e noite. rmia di M, erguia-se No meio da noite, quando Stufa, abria acendia uma vela O 1;vro.'e lia af- inst lava-se e O amanhece' a inuti,0 russo da Pala~ra francesa Um dia de- "Tr�sor" (tesoro). (N. de R. Q.) P rem agora RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS Ir r 41 clarou ao sub-oficial de guarda que se recusava a ir para o trabalho. Avisaram o maior, que se enfureceu e correu ao alojamento. O preso lhe atirou um tijolo, que ia tinha con- sigo, com essa inten�ão. Mas errou. Agarraram-no, jul- garam-no, a�oifaram-no. Passou-se tudo com grande rapi- dez. Tres dias depois o desgra�ado falecia no hosp~ital. Antes de morrer, declarou que não queria mal a ninguem, que tinha apenas procurado o marfirio.. Não pertencia en- tretanfo a nenhuma seita dissidente. E nunca mais sua lem- bran�a foi evodada sem certa como�ao respeitosa. Enquanto me punham as novas grilhe+as as vendedoras de kalafch entraram em fila, na oficina. Havia entre elas ate criancinhas; enquanto eram pequenas vinham mercar os kalafchi que as mães faziam. Depois de crescidas, continua- vam a vir, mas sem mercadoria. Entre as vendedoras, havia +ambem mulheres casadas. O kalafã valia dois copeques e#

quase todos os presos compravam deles. Reparei num dos for�ados, marceneiro de profissSo, ia grisalho, mas de cara rubicunda, que pilheriava com as ven- dedoras. Antes da entrada delas, amarrara ao pesco�o um len�o encarnado. Uma mulherona gorda, com a cara toda picada de bexigas, foi sentar no seu banco; e se travou en- fre, eles a seguinte conve'rsa: - Por que voc� não foi on+em? perguntou o homem .com um sorriso fatuo. - Fui sim; e levei o bolo! retrucou ela, despachada. - Precisaram da gente; se não fo~se isso, estariamos todos 16! Mas anteontem, voc�s correram todas ...

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- Quem foi? - Quem? A Mariachka, a Kavrochka, a Tchekunda, a Dyugrocheva¡a ... (8) - Escute, perguntei a Akim Akimi+ich, sera pos,~ivel que. . .9 Acontece, sim, respondeu-me Akim baixando modes- famenfe os olhos, porque era pudicissimo. 1 (8) Tchekunda: "E' barato" - Nugrochevaia: "Dois groches~'. (N. de R. Q) O0"#

42 DOSTOIEVSKI Aquilo acontecia realmente, mas de raro em ra~o e com. imensas dificuldades. De modo geral, havia mais apre- ciadoros da bebida que dessa outra diversão, -apesar da dureza daquela vida. Para conseguir algum dos presos apro- ximar-se de uma mulher, precisava escolher o momento, o local, marcar o encontro, conseguir ficar sO, ~ cousa que era particularmente difici) - subornar os vigilantes, - cousa mais dificil ainda, - em suma, gastar um dinheiro realmente insentafo. Apesar disso, aconteceu-me mais tarde teste- munhar cenas de amor. Lembro-me de certa vez, no verão, em que nos esfavamos num galpão as margens do Irfych, queimando um forno de tijolos. Os vigilantes- eram bons rppazes. Logo mais apareceram duas "souffieuses" como as chamavam os de+enfo"s. - Por que vieram tão tarde? Estavam com os Zver- kovi? pergun+ou-lhes o preso. Ja as esperava ha muito tempo. -~- Eu? Nunca. Mais demora uma gralha numa ar- vore do que eu com eles, replicou jovialmente a rapariga. Era a Tchekunda, - a virago mais horrenda deste mundo. Trazia consigo a sua amiga Dvugrochevaia. ~_ssa, então, desafiava qualquer pintura. - J faz tempo que a gente não se v�, continuou o galã', dirigindo-se a Dvugrochevaia. Voc� anda magrinha. - � isso. Dantes eu era gordo+a, hoje parece que enguli uma agulha! - ~E anda sempre correndo atras dos,soldados? - Qual! Isso e lingua comprida de alguem! mas a verdade e que ainda que a gente fique sem um fio de seu, não h6 �orrio um soldado! - Deixem de pensar em soldados, e venham com a genfe... Nos pelo menos temos dinheiro. . . Para completar o quadro, e preciso imaginar o galã com a cabe�a raspada, a libr" de duas cores, a grilhefa aos p¢s, sentinela a vista. Despedi-ma de Akim Ak'¡m¡fch, e sabendo que poderia . voltar, pedi um vigilante a fui embvra. Era a hore do re- IPA#

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I If 1 ~ (� RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 45 gresso. Os farefeiros 550 os que vão em primeiro lugar. £nica maneira de tirar servi�o dum for�ado e lhe impor um farefa. Mesmo quando � pesada demais, eles a termina duas vezes mais depressa do que se labutasse sem defen� a+6 ao soar do tambor. Finda a tarefa, o preso volta par a caserna, e ninguem mais cuida em lha por empecilhos. Não se jantava em grupo: quem chegava primeiro to mava lugar a vontade. Alias, a cozinha não comportaria +11 dos ao mesmo tempo. Provei a sopa mas, por falta de habito, nao a pude engolir e esperei o cha. Senfamo-nos ... ponta da mesa. Eu tinha comigo um companheiro - ex- fidalgo tambem (9). Os defenfos entravam o saiam. Havia muito lugar, faltando �nda tantos. Cinco presos formavam um grupo sep rado. O cozinheiro lhes serviu duas tigelas de sopa e pos na mesa um frigideira cheia de peixe frito. Decerfo estavam se banqueteando, em comemora�ão de qualquer aniversario. Olhavam-nos de vies. Um dos polacos chegou e veio se sentar ao nosso lado. - Eu não estava Ia, mas sei de tudo! exclamou um preso alto, penetrando na cozinha a olhando em c¡rculo todos os homens presentes. Cinquenfa anos mais ou menos, magro, MUSCUloso, tinha uma cara ao mesmo tempo astuta e jovial. O labio inferior, pesado, pendente, dava-lhe ao rosto uma expressão muito comica. - Saude, bom proveito! Saude aos mo�os de Kursk! continuou ele, senfando-se perto dos convivas. Pão e sal! Recebam bem o h6spede! - Não somos de Kursk, rapaz. - Então são de Tambov? - Nerri de Tambov- Não arranjas nada aqui, mano Se queres pedir esmola, corre afras dum rica�o. (9) S. F. Durov, condenado ao mesmo tempo que Dostoievski, e com quem o ro- as "Recorda�ões" e -s¢ faz duas ou tr�s alusões ... sua Pessoa Z-ndceistarrandousbriugado durante toda a sua estada no presidio. Não o nomeia nunca (N. de H. M.)#

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46 DOSTOIEVSKI (r - Hoje*, mano velho, na minha barriga, Ivan Taskun e Maria lkofichna andam ...s furras!(1 O) Onde acharei esse rica�o! - L esta Gazine, que � cheio dos cobres! Vai a+ras 1 dele! - Gazine? Esta de farra hoje, maninho, est , b�bedo como um porco - bebeu o sortimento todo! - Deve ter uns vinte rublos, observou outro. Todo o mundo sabe que um botequim não e mau negocio. - Então não me querem mesmo? TenhobtIue comer por conta da casa? - Sim, cai fora. Vai pedir cha aos harines na outra mesa. - Que barines? Não ha bar¡ne nenhum aqu¡. Agora são iguais a gente, resmungou um outro gal�, que esfava sentado longe. a ainda não dera pal#vra. - Bem queria eu fornar ch ! Mas não sou homem para pedir - tenho vergonha na cara! declarou o preso do bei�o grosso, olhando-nos com a cara bonachona. - Se quer cha, com todo gosto lhe ofere�o, falei eu. Quer? - Se quero? Pois não! - E aproximou-se de nos. - Eh! Em casa dele +ornava sopa sem colher, e agora bebe cha com os barines1 continuou o pneso resmungão. - Sera que ning*uem aqu¡ toma cha? perguntei. Mas ele não achou que me devia responder. - Kala+chil olha os ka10chil! quero um fambem! Um jovem de+enfo enfrava realmente com um rosario de kallOchi, ~que ia vendendo pelo alojamento. A vendedora lhe dava de gra�a um em cada dez, para lhe pagar o tra. balho, e com isso ele jantava. - Kala+chi, kalafchi quentinhos! gritava o rapaz enfra.f- do na cozinha. Quem quer kalafchi, lindos kalafchi de Moscou? Eu bem que os comeria, mas preciso dos cobres. Vamos, �hos, s6 me resta um! Quem feve mãe? Esse apelo ao amor maferno provocou risadas, e lhe compraram alguns kalafchi. (10) Alegoria popular, que significa fwc (N. de R. Q) O RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 4~ - Escutem, rapazes, falou ele. Gazine es+repou-se! Est b�bedo como uma vaca - 'so falta aparecer mesfre "Oifo olhos" ...#

- O melhor e esconder Gazine. Mas est mesmo chumbado? - Esta e furioso.

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- Então precisa duns tapas ... - De quem estão falando? indaguei do poiaco sen- +ado ao meu lado. - De Gazine, um preso que vende bebidas. Quando junfa uns cobres, embriaga-se e fica uma fera. Sem bebida, e quieto; porem quando esfa b�bedo, mostra o que e: atira- se aos outros, de faca na mão. E, então, o aquietam. , Como? - Uns dez dos outros se afiram a ele, esmurram-no af� que fique desacordado - quase morto. Depois o es- tiram na tarimba, coberto com o capote. - Mas não correm risco de o matar? - Sim, e outro qualquer levaria o diabo - ele não. � forte como um +ouro. Mais forte que os outros todos: quando for amanhã de manhã levanta-se como se não hou- vesse nada. - Diga por favor, perguntei ainda ao polaco. Aqueles ali comem em separado e eu esfou bebendo cha simples. E entretanto, parece que me invejam o cha. Por que? - Oh! nSo* e por causa do cha, explicou o polaco; e o barine que eles hosfilizam. Tem raiva dos harines por- que não parecem com eles. Qualquer um ficaria contente em o ofender, irritar, humilhar. Vai ver o diabo por aqu¡! Pode crer, a vida aqui e dura, e muitissimo mais dura para ,nos do que para os outros. � preciso muito boa vontade para se acostumar. Vai ter muitos aborrecimentos, sofrer mai de um insulto, porque toma cha e n8o come na game- Ia, - embora muitos presos comam a parte e tomem cha; mas eles podem, nos, não. Dizendo isso, deixou-me. Alguns minutos &~pois suas predi�6,es se realizaram.#

O lu A, VF IL ~ v . 1-101 - Primeiras impressões (continua�ão) 1 11~ L? A ssim que M-cki (o Polaco) acabava de sair, Gazine, in- feiramente b�bedo, irrompeu na cozinha. Em pleno dia de trabalho, durante o qual deveriam todos estar cumprindo as suas tarefas, com um chefe se- vero que poderia aparecer a qualquer instante, com um sub-c,ficial de servi�o, e os invalidos, e todo o pessoal da vigilancia, a entrada daquele ebr¡o punha em choque com- pletc, as id�ias que eu houvera formado sobre a vida no presidio. Alias, fiquei muito tempo sem conseguir explica- �ão para fatos desse g�nero, que me pareciam de inicio

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verdadeiros enigmas. J6 contei que cada um dos for�ados tinha a sua ocupa- �ão pessoal. Isso representa uma exigencia nafuralissima da vida na prisão; ademais, fa-lo ganhar dinheiro, e o de+ento preza tanto o dinheiro quanto a liberdade; sente uJ consolo i I#

dentro do bolso: fica Pouco em fazer retinir algumas moedas inquieto, desanirgado, quando 1não tem ... vontade, triste, ~O dinheiro nem meios de o obter. Entretanto, embora o di- um ~esouro inapreciavel. o seu feliz pos nheiro represente suidor não o conserva nunca consigo. Em primeiro lugar. como o esconder, de, modo que não seja nem roubado nem confiscado? o maior, mal descobria algum peculio, nas suas buscas repentinas, dele se apossava imedia+amente. Talvez o empregasse no melhoramento da ra�ão: mas +omava-0. Corri mais frequencia, porem, era o dinheiro roubado. Seria imposs¡vel ter confian�a em alquem. Des~obrimos afinal um m�todo de o guardar sem perigo: entregava moIo a um velho que. pertencia a confraria de VietI�a, hoje refugiada entre os mujiques de Starodubov ti). E não posso deixar de dizer algumas palavras a respeito desse velho, embora sais um pouco do meu assunto. Era um homenzinho encanecido, de uns sessenta anos. Despertou intensamente a minha curiosidade, logo ... che- gada, porque diferia em tudo dos outros presos. Seu olhar tinha uma expressão +ão meiga, +ão calma, que eu contem- plava sempre com um prazer especial aqueles olhos claros, luminosos, aureolados de pequenas rugas. Conversavamos fre- quentemeriM, e raras vezes tenho encontrado tanta bondade, tanta mansidão! Cometera, entretanto, um crime grav¡ssi- mo. Iinham-se registrado, entre os seus companheiros de cren�a, varias deser�ões; o governo -estimulava bastante os tr�nsfugas e tudo fazia para obter novas conversões. O nosso velho e alguns outros fanaficos do seu grupo resolve- ram "manfer a verdadeira fe", como diziam. Quando se quis edificar uma igreja ortodoxa, eles a incendiaram. Preso como um dos insfigadores do crime, foi o velho mandado (1) No fim do s�culo XVII, Vietka, burgo situado então no territorio polon�s e que hoje faz parte da provincia russa de Mohilov, constituiu durante meio s�cuio o prin- cipal refuSio dos "ritualistas", ou adversarios das reformas lit¢rgicas preconizadas pelo patriarca Nikon. Durante a guerra de sucessão da Polonia (1734) as tropas russas des- truiram esse refugio; e Starodubov, situado na provincia de Tchernigov, lhe herdou a influencia. (N. de H. MA Os dissCentes de Starodubov eram chamados, raskoiniki, ou "velhos crentes".

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(N. de R. QJ D`GSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS (t I#

si para os trabalhos for�ados na Siber¡a. Era um comerciante abastado, e tinha mulher e filhos. Abandonara tudo para tomar o caminho do exilio. - achando, na sua cegueira, que estava sofrendo pela f�. Vivendo junto a ele, a gente meditava, involun+ariamente: qual a razão por que aquele homem resignado, +imido como uma crian�a, pudera , revol- Interpelei-o varias vezes a respeito da sua "f�' - e Ele far-se? as as r pli- nao abandonava uma linha das suas convic�ões. m de. Con- cas que dava não traiam jamais a minima animosida tudo, queimara uma igreja e não o negava, pois aos seus olhos aquele ato, aquele limarfirio", constauiam uma honra. vão o sondei, em vão o in+erro- uma gloria. Entretanto, em quek nunca descobr¡ nele o menor tra�o de orgulho ou de vaidade. Tinhamos entre n¢s outros "velhos crentes", sibe- rianos na maioria, bastante instruidos, bons dialeficos a sua maneira, extremamente aferrados ao texto sagrado, porem intolerantes, cheios de astucia e presun�ão. Nosso velho não os imitava em nada. Versado nas Escrituras mais que qual- quer um deles, fugia no entanto as controversias . Tinha o genio extremamente comunicativo, estava sempre alegre, ria frequentemente - não com a gargalhada grosseira e cinica dos for�ados, - mas com um riso manso e claro que corres- pondia bem a sua cabe�a grisalha, e no qual se sentia uma grande e ingenua simplicidade. Posso enganar-me, todavia me parece que a gente pode conhecer um homem pelo seu riso, e que, se ao 'primeiro encontro um desconhecido ri ante nos de uma maneira agradavel, sua alma e boa. O nosso ve- lho gozava dum respeito un�nime, do qual absolutamente não /I ~11 se orj~lhava. Os for�ados, que o chamavam avo , não o ofendiam jamais. E isso explicava em parte a influencia por ele exercida sobre os-seus correl igiona rios. Entretanto, apesar do esfoicismo real com que suportava os trabalhos for�ados, uma tristeza crescia dentro dele, tristeza profunda, incura- vei, que dissimulava o melhor que podia. Nos dois ocupava- mos o mesmo alojamento. Uma noite, pelas fres horas, es- cutei alquem chorar baixinho. O pobre coitado, sentado I

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52 DOSTOIEVSKI junfo ao fogareiro, naquele . mesmo lugar ocupado outrora pelo leifor da Biblia que quisera matar o maior, lia ora�ões I.S num caderno manuscrito. , Solu�ava, e de tempos em tem- pos dizia: "Senhor, não me abandones! Senhor, da-me for- �as! Meus filhos, meus filhinhos, nunca mais os +ornarei a ver!" Não posso exprimir o do que aquela cena me causou. Foi pois a esse velho que pouco a pouco os for�ados iam enfregando o seu dinheiro. ~Embora fossem todos la- drões, cada um tinha a certeza de que, com o "av"", podia ficar sossegado. Sabia-se que ele dispunha dum esconde- rijo num lugar onde ninguem o descobriria. Mais +arde, o velho confiou o seu segredo a alguns dos polacos e a mim: numa das estacas da pali�ada havia um no na madeira, que parecia estar solidamente ligado ao +ronco, mas podia ser retirado, o que descobria um oco bastante profundo; ele Ia depunha o dinheiro, e depois recolocava o no de modo fão perfeito que ninguem jamais desconfiou de nada. Mas afas+ei-me do meu assunto. Tinhamos ficado nisto: por que o dinheiro demora +ão pouco tempo no bolso dum for�ado? � que não s0 lhe e dificil conserva-lo, como o pre- s¡dio provoca uma tristeza +ão grande! O for�ado, por sua propria natureza, fem umabsede fão grande de liberdade e por sua posi�ão social e fão descuidoso, +ão desordenado, que lhe vem naturalmente a id�ia de ao menos uma vez dar alegria ao cora�ão, afogar todo o desgosto em barulho e musica, afim de esquecer, um minufo talvez, a sua desgra�a abominavel! Nada mais estranho que ver alguns deles a frabalhar meses e meses sem uma folga, com o fito ¢nico de dispender num so dia todo o lucro obtido; depois disso, novamente se curvam, novamente se encarn¡�am na labuta, af� a proxima bambochafa. Muitos deles gosfavam de usar roupa vistosa, mais ou menos exquisifa, cal�as pretas de fantasia, cafe+ãs cur+os ... moda siberiana. Tambem esfavarri muito em moda cami- sas de chifa e cinfurões com fivelas de cobre. Os presos se enfeitavam aos domingos, exibiam-se em todo o esplen- dor atrav�s do alojamen+o. Chegava a ser infantil a safis- RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS fa�ão que sentiam com o seu fraio novo. Alias, em muitos aspectos, não passavam os gales de crian�as grandes. Falar verdade, todos aqueles ouropeis rapidamente desapareciam; algumas vezes naquela mesma noife o seu proprie+ario os er~- penhava ou vendia por quase nada. Sempre havia, alias, pretexto para festas: ou porque era dia santo, ou porque era aquele o dia onornastico de um dos defenfos. O ani- versariante, assim que acordava, acendia uma vela defronte#

ao icone, e fazia as suas ora�ões: depois endorningava-se, en-

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comendava uma refei�ão, - carne, peixe, e pratos a moda siberiana, - e os devorava como um bicho esfomeado, -em geral sO, pois raramente convidava um amigo para lhe par- filhar o festim. Então aparecia -o vodca. O for�ado bebia como um odre, e andava pelas casernas, titubeando, trope�ando, mas altivo por mostrar a todos que "esfava de farrcV - pois aquilo lhe era uma garantia da estima geral. O povo russo sente uma esfranha simpatia pelo b�bedo, po- rem, no presidio, essa simpatia chegava ate ao respeito: os paus-dagua pertenciam a uma especie de aristocracia. Assim que se sentia alegre, o for�ado exigia musica. Havia entre nos um polaco, condenado por deser�ão - um crapula, a bem dizer, mas que possuia um violino e tocava. Como não tinha nenhuma profissão, o seu unico recurso consistia em se alugar a um aniversariante e tocar para ele alegres musicas dansan+es. Essa fun�ão o obrigava a acompanhar o seu ebrio patrão de alojamento em alojamento, arranhan- do a rabeca com quanfa for�a tinha. Muitas vezes o rosto lhe traduzia o +edio, o desespero, o cansa�o, mas ao escutar o grifo "Toca, diabo, ganha o teu dinheiro!" fazia o que podia, a manobrar o arco. O fes+eiro sabia muito que se por ajaso ficasse por demais ruidoso, feria quem cuidasse de Si- , dei+a-lo-iam, escond�-lo-iam mal aparecesse um chefe, uilo seria feito com absoluto desinteresse. ' Por seu l¡ado, os sub-c,ficiais e os invalidos que zelavam pela ordem inferna, poderiam ficar sossegados: o b�bedo n3o provocaria ne- nhuma complica�ão, pois todo o seu' alojamento feria nele os olhos. 1i#

54 DOSTOIEVSKI Ao menor barulho, a menor revolta, tinham meios de o fazer calar, ou simplesmente o amarravam. Por essa razão os sub-c,ficiais fechavam os olhos: sabiam muito bem que se não tolerassem o vodca ali dentro, as cousas andariam muito piores. Mas como o obtinham os presos? O vodca era comprado dentro do propric, presidio, a defentos apelidados "bofequineiros" e cujos negocios ca- minhavam muito bem, embora os nossos beberrões fossem em pequeno numero: aquelas orgias custavam caro e nos finhamos grande dificuldade em obter dinheiro. O comarcio de vodca se iniciava, desenvolvia-se e se concluia de, maneira realmente original. Vejamos um defento sem profissão defi- nida, e pouco dado ao trabalho (havia desses) mas desejoso e impaciente por enriquecer. Como possue alguns copeques, resolve comerciar com aguardente, -.empresa bastante au- daciosa. Grande e o risco: pode paga-lo na "rua verde", e ao mesmo tempo ver dinheiro e mercadoria confiscados. En- fr,efanto, o botequineiro não hesita. A principio. não dis- pondo senão de alguns cobres, ele propric, introduz o vodca, do qual, O 10giCO, so se desfaz com grande lucro. Repete a experiencia segunda. terceira vez; se não e apanhado, em breve possue um peculic, que lhe permite dar expansão ao negocio. Torna-se negociante, capitalista; tem agentes e auxiliares; arrisca-se muito menos e enriquece muito mais ...

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São os auxiliares que se expõem no seu lugar. Ha sempre no presidio alguns loucos que o jogo ou os excessos arruinaram de todo, gente sem oficio, lamentavel, esfarrapada, mas de certa maneira dotados de 'audacia e energia. Essas criaturas não possuem senão uma cousa: as costas, e aquilo ainda pode ter uma utilidade. O desgra�ado resolve porfanfo lan�ar mão desse ultimo capital: enfende-se com um bofequineiro, propõe-se a lhe con+rabandear vodca. E todo bofequineiro rico utiliza muitos empregados dessa es- pecie. Tem, na cidade, rela�ões com um individuo qual- quer, um soldado, um artesão, uma meretriz, que, mediante comissão relativamente elevada, compra num bofequim a aguardentis do rimim r~dedor, e vai depo;s escond�-la RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 55 perto do local onde trabalham os for�ados. Esse inferme diario, come�a sempre provando a qualidade da mercadoria: e substitue implacavelmente por agua pura a por�ão consu- mida nessa prova. Os seus fregueses não podem ter ex¡ gencias: devem se dar por felizas em arranjar vodca, seja qual for. O fornecedor v� então a chegada dos carregadores indicados pelo bo+equineiro. Essas trazem consigo algumas#

tripas de boi que foram antecipadamente lavadas e cheias de agua, para ficarem frescas e macias. Depois que o vodca e mudado de recipieriM, os carregadores enrolam as +ripas em redor do corpo - nos lugares mais secretos em que e pos- sivel af6-las. � a¡ que se mostra toda a asfucia, toda a ha bilidade do contrabandista. Sua honra esta em jogo. � preciso enganar vigilantes e sentinelas: e ele os engana. Um bom contrabandista sempre se arranja de modo que o sol dado da escolta (em geral um recruta) de nada desconfie. � claro que, para come�ar, o for�ado estuda bem a psico logia do soldado; leva farribem, em confa a hora e o local da sua tarefa. Se, por exemplo, e foguis+a na olaria, trepa no for= quem e que vai enxergar o que ele esta fazendo? Quando volta ao presidio, fraz sempre na mão uma moeda de quinze ou vinte copeques, para ado�ar os possiveis ri gores do cabo da guarda que esta ao portão, e e encarre gado de examinar os presos que reforriam do +rabalho, antes que Nem entrada no recinto da fortaleza. O portador de vodca espera que não lhe inflijam a vergonha de apalpa-lo minuciosamente em certos lugares - mas acontece, as vezes, que um cabo mais insistente va direto aqueles ditos lugares e descubra o contrabando. Resta então uma derra deira esperan�a ao desgra�ado: as escondidas do soldado da escolta, enfia na mão do cabo a moeda que trazia consigo. Essa manobra quase sempre lhe permite penetrar sa . o a salvo no presidio. Algumas vezes, porem, o negocio acaba mal: ele então +em que contar com o seu Ultimo capital - isto 6. as costas. Faz-se um relaforio ao maior. a�oifa-se impiedosamonfr, o capitel, e confisca-se o corpo de de';+o. I

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56 DOSTOIEVSKI Nesses casos, o contrabandista assume 'toda a responsabili- dade e evita cuidadosamente denunciar o botequineiro, não que receie ficar deshorirado pela dela�ão; mas simplesmente porque aquela dela�ão de nada lhe servir . Sera fustigado do mesmo modo e seu unico consolo sera ver o negociante apanhar ao seu lado. E, afinal de contas, ainda precisa do patrão, embora, segundo os usos e o contrato previamente feito, não fenha-o carregador direito a indeniz 3 1 pelos a�oites recebidos. A 1:' -,, o a guma Issima. as, as aeia�Ses são no presidio ~cousa comuni * O delator não e objeto de nenhum desprezo, não provoca nenhuma indigna�ão, ninguem o evita, pelo contrario, e ate uma amizade procurada. Se alguem tentasse mostrar aos for�ados quanta vilania ha numa dela�ão, eles decerto não o, compreenderiam. Aquele ex-fidalgo, s6rdido e viciado, com quem rompi rela�ões desde o primeiro dia, era amigo de Fedka, a ordenan�a do maior. Servia-lhe de espião e Fedka contava ao comandante tudo o que o outro lhe comunicava. Ninguern ignorava -esse fato. nunca entretanto um dos presos cuidou em castigar esse canalha, nem mesmo em lhe fazer a menor censura. Mas eis-me de novo afastado do meu assunto. Quando a aguardente � infroduzida sem trope�os, o negociante se apo- dera das +ripas cheias, paga os contrabandistas e p6e-se a fazer c lculos. Considerando que a mercadoria lhe sai muito cara, acha justo aumentar um pouco os seus futuros lucros, acrescenta rido-lhe mais uma boa por�ão de agua. Depois de tudo pronto, espera, --rifão, a freguesia. No do- mingo seguinte, ...s vezes mais cedo, o cliente se apresenta sob a forma dum detenfo que trabalhou varios meses como um boi de canga e reuniu vinfem por vinfem o dinheiro ne- cessario aos seus prazeres. J h muito tempo, durante o sono, durante o trabalho, o miseravel pensa, encantado, na- quele dia. A id�ia da festa em perspectiva o ampara afra- ves da dureza da sua vida. Enfim, acaba de luzir a aurora da data festiva, e como o dinheiro junto nSo foi roubado nem confiscado'. enfrega-o ao bofequineiro. O negociante lhe RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS #

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serve o vodca, do mais puro que e POssivel, - isto e, batiza- do apenas duas vezes; mas ... medida que se esvazia a garrafa, vai enchendo-a com agua. Nessas condi�6es, como a dosa e paga cinco ou seis vezes mais cara do que nos botequins de verdade, e facil de conceber quanto e preciso beber, quanto dinheiro � mister gastar, para chegar a embriaguez. Entretanto, dada a falta de h bito e a abstinencia anterior, o for�ado se embebeda muito depressa, mas, em geral, con- finua a.beber ate não ter mais um real consigo. Então, como o bofequineiro tambem exerce a usura, o aniversariante empenha toda a roupa; em primeiro lugar a sua linda blusa nova, depois os trapos velhos, enfim os objetos que recebeu do governo. Bebido afinal o derradeiro farrapo, o "espon- ja" se deita, e quando no dia seguinte se levantar com a inevifavel ressaca, pedira -em vão ao botequineiro que lhe arranje uma gota de vodca para lhe corrigir o mal-estar. Então, tristemente, +era que suportar os seus inc"modos, e voltara inconfinen+i ao trabalho. "E de novo vai se matar durante meses, com vivas saudades daquele dia feliz. Pouco a pouco no entanto se reanimara, esperara outro dia seme- lhante, ainda longinquo, talvez, mas que acabara afinal por nascer. Quanto ao bofequineiro, depois de fazer fortuna - al- gumas dezenas de rublos - prepara uma ultima provisão de vodca - sem batismo, dessa vez - porque e destinada a si proprio. Basta de negocios, agora +em direito de se di- verfir. E come�a então a fes+an�a, bebida, comida e mUsica. 'Ele +em dinheiro, pode comprar a aquiescencia das autorida- des subalternas. A festa dura, as vezes, alguns dias. Note-se que a provisão de vodca depressa e esgotada; ele, então, vai procurar os colegas, que ia o esperavam, e continua a beber enquanto tiver uma moeda no bolso. A despeito da vigilanc¡a dos defen+os, acontece as vezes que um dos bebedos caia sob os olhos do maior ou dum oficial: levam-no então ao corpo da guarda, confiscam-lhe o dinheiro, se ainda traz al- gum consigo, e, finalmerte, passam-no pelas varas. Ele sofre 6 I#

58 DOSTOIEVSKI o castigo, ergue-se, sacode-se, volta a caserna a dentro de poucos dias reforna o seu oficio de bofequineiro. Encon- fram-se, as vezes, enfre esses dissipadores, quero dizer, enfre os ricos, alguns apreciadores do belo sexo. Por um bom cli- nheif o galã em perspectiva corrompe o soldado da escolta, e ambos, em vez de se encaminharem ao trabalho, tomam as escondidas por um carreiro isolado. La, nalgum cantinho sossegado, nos fins da cidade, então a festa e grossa e os copeques correm sem conta. O dinheiro de um pneso não � mais sujo do que o de outro qualquer homem, alias, o sol- dado da escolta e +ambem um candidato aos trabalhos for-

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�ados. Com o dinheiro tudo se arranja, e essas sortidas são em geral mar¡ficias secretas. � preciso, entretanto, confes- sar que custam caro e são raras. Os amantes do belo sexo +em outros necursos menos dispendiosos. No inicio do meu tempo de presidio, um jovem cle+enfo muito simpatico, chamado Siro+kine, me desper+qu particular- menfe a curiosidade: parecia enigmafico a muitos respeitos. A beleza do seu rosto me impressionara. Não devia fer mais de vinte e fres anos. Como fazia parte da se�ão es- pecial, tinha que ser considerado um criminoso da pior es- peci.e. Calmo, delicado, falava pouco e raramente sorria. Tinha os olhos azues, fei�ões regulares, a pele alva, e os ca- belos dum louro acinzen+ado. A cabe�a meio raspada não o afeiava, tão bonito -era o homem. Não tinha nenhuma profissSo, porem quase sempre dispunha de dinheiro, em pe- quenas quantidades. Insigne pela pregui�a, Sirofkine não se preocupava com os +raios; mas se, por acaso, alguem lhe dava de presenfe uma blusa varmelha, por exemplo, o rapaz nao escondia o seu prazer, e ia se exibir por todo o alojarnen+o. Não bebia, não jogava, não brigava quase nunca. Passeava, as vezes, por +r�is das barracas, com as mãos nos bolsos, franquila a pensativamente. Em que pensaria? Se o cha- mavam, se lhe faziam uma pergunta, respondia logo com uma especie de deferencia pouco comum ali; e o fazia com ai- gurna's palavras rapidas, sem tagarelice inufil, fixando na RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 59 i 1 gente o olhar de uma crian�a de dez anos. Se t¡nha algum dinheiro, não adquiria nada ufil; não mandava remendar o casaco, nao comprava botas novas: comprava kalOchi ou pão doce, que devorava como um garotinho. E os outros for- �ados lhe diziam: "Ei, Sirofkine! coitadinho do orfão de Kazan!" (2) Nas horas de folga, aquele desocupado solifario vaguea- va duma caserna a outra, enfre os companheiros entregues#

aos seus oficios particulares. Quando qualquer um lhe atirava uma zombaria, e faziam muita tro�a dei-e, Sirofkine dava meia volfa sem responder e tocava para outro alojamento; as vezes, quando a pilheria era por demais feriria, ele corava. E eu perguntava a mim propric, que crime feria cometido aquele mo�o pacifico e simples. Durante uma das minhas estadas no hospifal, tive Sirofkine como vizinho de leito. E, certa ocasiSo, ele se animou, contou como haviam feito de si um soldado, como sua mãe o acompanhara chorando, os formenfos que sofrera no batalhão. Nunca se p"de habi- fuar a vida de quartel por causa da rispidez dos chefes, sempre desconfenfes com os seus servi�os. E depois? perguntei. Que foi que +e trouxe aqu¡? E para a se�ão especial, ainda por cima ... Ah, Siroffine, Sirofkine! - � verdade, Alexancir Pe+rovi+ch, passei apenas um ano no batalhão. E estou aqui porque matei Grigori Pe- frovi+ch, meu capitão.

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- Esfou ouvindo, Siro+kine, contudo não acredifo no que dizes. Então e mesmo verdade que mataste um homem? - � verdade, Alexandr Pe+rovi+ch;,eu ia nSo podia mais. - Mas todos os outros recrufas se acostumam. � claro que o come�o e dificil, porem a gente se habitua e acaba sendo um bom soldado. Tua mÇe foi que +e es+ra- gou: criou-f� com pão de 16 e doce de leite a+� aos dezoito anos. (2) Siroffine deriva de sirota, orfão. A expressão "orfão de Kazan", que tem uma origem hist¢rica, designa ordinariamente os falsos pobres. (N. de '. 1. 1v1 ) i#

'60 DOSTOIEVSKI - � verdade que minha mãe gostava muito de mim Quando fui ser soldado, ela caiu de cama, e segundo me con- +aram, nunca mais se levantou ... E eu não podia mais. O capitão finha-me +ornado odio, casfigava-me o tempo lodo. E porque? Eu obedecia ' a quem me mandava, cuidava do meu o tinha vicios, porque, va servi�o, não bebia, nã ia bem, Ale xandir Petrovi+ch, e muito ruim um homem +tr vicios. Todo o mundoera malvado e eu não linha ninquem com quem desa- bafar meus desgostos. As vezes metia-me num canto para chorar a vontade. Um dia, finham-me posto de sentinela, junto ao dep6sifo de armas. Soprava um vento de outono e a noite estava tão escura que não se enxergava dois dedos diante dos olhos. Ah, que agonia me apertou o cora�ão, que agonia! De repente, +irei a baioneta da arma, deifei-a ao meu lado, descalcei a bofina do pe direito, e apertei, o gatilho com o dedo grande. Mas o tiro falhou! Examinei o fuzil, pus carga nova de polvora. a'Iei+ei a pederneira, e novamente encosfei o cano ao peito. Que houve, outra vez? A polvora queimou. porem o tiro não saiu ... Calcei a bola, ajustei de novo a baioneta, e continuei a dar guarda, calado. Foi nesse momento que me resolvi a acabar: mil vezas a Siberia que aquela vida desgra�ada! Depois de meia hora o capitão que fazia a ronda caiu-me em cima: "En+ão, e assim que se faz sentinela?" Pequei o fuzil e enterrei nele a baioneta ale ao punho. Recebi por isso quatro mil a�oites e me mandaram para a se�ão especial ... Não estava mentindo. Mas por que o haviam mandado para a se�ão especial? Em geral esse crime provoca um cas- ligo menos severo. Entre os quinze individuos que formavam aquela sec�ão, Sirofkine era o unico de bela aparencia. Sal- vo duas ou tr�s caras mais ou menos +oleraveis, os outros todos davam medo de olhar: orelhas compridas, cabanas, fei�ões medonhas, roupa em desordem. Havia, entre eles, algumas cabe�as brancas. Se as circunstanciais o permiti- rem, falarei detidamente sobre essas homens. RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 61 i ,P

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Sirotkine era grande amigo de Gazine, o qual no inicio deste capitulo vimos entrar cambaleando na cozinha, com o fim £nico, pelo que parecia, de destruir as id�ias que eu anteriormente formara acerca do presidio. Aquele horrendo individuo provocava em todos uma im- pressão de angustia e pavor. Sempre me pareceu impossivel encontrar criatura mais feroz, mais abominavel. Vi em To- boisk o bandido Kameniev, cujos crimes são celebres. Vi de-#

pois o desertor Sokolov, medonho matador lambem. Mas nem um nem outro ma inspirou +amanha repugnancia como Gazine. Parecia-me, ...s vezes, que estava ... frente de uma aranha enorme, gigantesca, do +amanho dum homem. Era. um +artaro cuja for�a monstruosa ultrapassava a de lodos os outros for�ados. Estatura acima de mediana, com mus- culos de Hercules, cabe�a disforme, desmesurada, caminhava com as costas arredondadas em corcunda e os olhos no chão. Corriam estranhas hisf6rias a seu respeito: sabia-se que vinha do exercito. mas alguns de+en+os pretendiam, com ou sem l razão que ele se evadira de Nertchinsk (3) ' deportado para 'i a Siberia mais de uma vez, conseguira fugir e trocar de nome, para acabar finalmen+a na nossa se�ão especial. Contava- se lambem que ele se divertia outrora em massacrar crian- il cinhas: arrastava-as para um lugar propicio, aformentava-as, martirizava-as, e depois de lhes gozar amplamente o pavor, o panico, ma+ava-as lentamente, deliberada mente, saborean- do o seu prazer. Tudo isso talvez fossem apenas contos de carochinhas, engendrados pela desagradaval impressão que Gazine provocava em todos nos, mas aquelas inven�ões se ca- 1 savam bem com os seus modos, com a sua cara. Entretanto, quando ele não estava b�bedo, portava-se de maneira muito razoavel. Imperturbavel sempre, sem procurar brigas com n¡nguem, evitando disputas, parecia desprezar os companhei- ros e se considerar muito acima deles. Pouco loquaz, ou (3) Cidade da Transbaikalia, dentro da região mineira para onde eram deporta- dos os for�ados da primeira categoria. (N. de H. M.) I#

DOSTOIEVSKI antes, intencionalmente taciturno. Seus movimentos eram lentos, +ranquilos, determinados: os olhos traiam intelig�ncia e astucia exf raordina rias, e o rosto, o sorriso, tinham uma ex- pressão uniformemente arrogante, escarninha, cruel. Era um dos mais ricos bofequineiros do presidio-, contudo, duas vezes por ano bebia a larga e mostrava a luz do sol a bestialidade da sua natureza. Quanto mais se embriagava, mais assaltava os outros com zombarias mortifican+es, sabiamente calculadas, e que pareciam preparadas com grande antecedencia. Che- gando- ao paroxismo da embriaguez, ficava furioso, apanhava

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uma faca e se atirava aos deten+os. Conhecendo-lhe a for�a prodigiosa, eles fugiam dele e se escondiam, pois Gazine ata- cava todos que lhe calam nas mãos. Mas depressa conse- guiam meios , de o dominar. Uma dezena de homens se pre- cipifava sobre ele, moia-o de pancadas no peito, no ven- tre, por sobre o cora�ão, no es+âmago: não se poderia ima- ginar cousa mais cruel. E isso ate que ele ficasse desacor- dado. Era tratamento que mataria qualquer outro que não fosse Gazine, mas com ele não havia esse risco. Depois da pancadaria, enrolavam-no na sua pele de carneiro, e o deita- vam na tarimba. "Deixa esse malandro cozinhar agora o v , odca que bebeu!" No dia seguinte, com efeito, ele se levantava quase curado, e ia para o trabalho, com a cara fechada, em silencio. Cada vez que Gazine se divertia, todos sabiam co- mo o seu dia iria terminar. Ele fambem o sabia, contudo se embriagava da mesma maneira. Alguns anos se passaram assim; afinal, regisfrou-se uma mudan�a em Gazine: queixava- se de toda especie de doen�as, emagrecia visivelmente, fre- quenfava cada dia mais o hospital . . . "Esta dando baixa!" diziam dele os defentos. No dia de minha chegada, Gazine entrou na cozinha enquanto eu ainda estava Ia, seguido pelo s6rdido polaco ra.boquista que os b�bedos contratavam para lhos completar .os Prazerps. Defeve-se no meio da pe�a, e encarou em silencio todos que 16 se encontravam. Avistando-me por fim junto ao meu camarada, fixou em n6s'um olhar escarninho,#

RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS AW .i 65 cruel, e com o sorriso satisfeito de alguem que preparou uma boa pilheria, aproximou-se a cambalear da nossa mesa. - Sera ousadia perguntar se os seus rendimentos lhes permitem beber cha, aqui? Troquei um olhar com o meu vizinho; compreendernos ambos que seria melhor ficarmos em silencio. A prime¡ra contradi�ão o furor do ebrio se desencadearia. - Então t�m dinheiro? continuou ele. T�m uns bons cobres, heiri? Mas, digam uma cousa, foi para tomar cha- zinhos que vieram para a Siberia? Respondam-me, seus fi- lhos da ... I Vendo-nos resolvidos a não lhe dar resposta, a não lhe prestar nenhuma aten�ão, ele ficou rubro e p"s-se a tremer de furia. Descobriu ao seu lado, num canto, uma pesada tabua na qual arrumavam os peda�os de pão destinados ... nossa comida. Tinha +amanho suficiente para conter as ra- �ões de metade dos presos: naquele momento estava vazia. Gazina agarrou-a com as duas mãos, brandindo-a sobre as nossas cabe�as. Mais um instante e nos quebraria o cranjo.

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Uma morte, ou tentativa de mor+e. provocava sempre os maiores aborrecimentos: inqueri+os, buscas, severidade redo- brada. Por isso tinham os detenfos o maximo interesse e cuidado em evitar +ais excessos. Entretanto, nenhum se me- xeu! Nem uma voz se elevou para nos defend2r: nem um rito se ergueu contra Gazinei O oclio de todos contra os harinesera +ão intenso, que se alegravam ao v�-los em perigo. Mas a cousa assumiu um aspecto inesperado: no momento em que Gazine ia abater a +abua, alguem gritou da porta: - Gazinei roubaram o +eu vodca! O +ar+aro deixou cair a +abua no chão, e se precipitou como um louco para fora da cozinha. - Foi Deus que salvou aqueles dois! disseram entre si os outros: e durante muito tempo ainda repetiram a afirma�ão. Nunca pude saber se o roubo do vodca foi real, ou se o simularam para nos salvar. I#

66 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 67 Nessa noite, anfes do fechamento das casernas, fui pas- sear ao longo dos muros, dentro da escuridão crepuscular. Uma pesada tristeza me esmagava a alma, uma frisfeza tão .grande que durante toda a minha estada no presidio, jamais sen-ri outra igual. O primeiro dia de in+ernamenfo e par- ficularmenfe doloroso de suportar, seja numa prisão, num quar- fel ou num pres¡dio. Mas. se bem me lembro, eu ia ruminava um problema que me atormentou sem descanso durante todo o per¡odo da minha reclusão, problema que ainda hoje me parece em parte insoluvel, - isto e, a desigualdade do cas- tigo para crimes similares. Porque, na verdade, nenhum cri- me e inteiramente semelhante a outro. Velamos por exem- plo dois assassinatos: pesaram-se todas as circuns+ancias e se infligiu aos dois culpados um castigo quase id�nfico, ape- sar das diferen�as muito sensiveis que existem enfre am- bos. Um deles, profagonista de uma lenda que corre enfre os for�ados, matou a-toa, por um nada, por uma cebola: emboscado na estrada, assassinou um pobre-diabo que passa- va, e não lhe enconfrou nos bolsos senão uma m¡sera cebola. "Ai, paizinho, tu me mandaste chamar! matei um cristão e e so achei com ele uma cebola!" - "Idiota! lhe diz o demo- nio, uma cebola vale um copeque; cem almas sSo cem ce- bolas! E cem cebolas s3o um rublo!" (� assim que reza a tal lenda). O outro mafou um libertino fir�nico para salvar a honra da sua noiva, da sua irmã, da sua filha. Um terceiro, servo fugitivo, meio morto de fome, falvez, matou um dos policiais atirados em bando a sua persegui�ão; matou para defender a liberdade e a vida. Aquele outro, por simples divertimento, degola criancinhas, e goza um prazer intenso ao lhes sentir o sangue +epido correr nas mãos; da-lhe prazer o pavor delas, da-lhe prazer a sua derradeira convulsão da pombinhos sacrificados! Entretanto, uns e outros são pu- nidos com a mesma pena. Ha realmenfe uma variante na in- +ensidade do castigo - mas essa variante e muito precaria em rela�ão ... diversidade na mesma especie de crimes. Tan-

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tos quantos forem os caracteres, tantas serão as diferen�as. Hão de me objetar que seria dificil aplainar essas diferen�as, que elas representam um enigma quase tão insoluvel como a quadrafura do circulo. Pois concordemos com essa desi- gualdade, passemos a examinar outra desigualdade: a das consequencias do castigo. Um dos condenados se consome, derrefe-se como uma vela; outro, não desconfiara nunca que houvsse no mundo vida tão divertida, grupo tão agrada- vel deespl�nclidos carriaraclas; porque, no presidio, ate gente com esses sentimentos se enconfra. Outro defen+o, homem cultivado, presa dos remorsos de uma conciencia requinfacla, torturado por sofrimentos morais diante dos quais emo.ali- dece qualquer outro castigo, inflige ao seu crime um jul-#

gamen+o muito mais implacavel do que aquele com o qual a mais severa das leis o poderia punir. E o outro ao seu lado, nem por um segundo, durante toda a pena, se preocupara com o crime cometido: acha mesmo que agiu com a raz3o. Alguns chegam ate a executar um crime unicamente para terem aber- tas as portas do presidio, e se desembara�arem assim c19 uma exisfencia muito pior. Em liberdade, o desgra�ado vi- via talvez na mais torpe miseria, não comia nunca o suficiente para matar a fome, trabalhava ...s ordens de um patrão da ma- drugada a noite. No presidio, o labor e menos pesado, o pão mais abundante e de m-elhor qualidade, come-se carne aos domingos -e dias de festa, recebem-se esmolas, pode-se ganhar alguns cobres. E que companheiros! Gente esperfa, habilidosa, que sabe tudo. Com efeito, um desses desgra- �ados a que aludo, encara os coLegas com admira�ão respei- fosa; nunca viu gente igual, considera-os a nata da humani- dade! ... Concebe-se, pois, qua se imponha o mesmo casf*,go a pessoas tão diferentes? Mas que adianfa nos preocupar- mos com ptoblemas sem solu�ão! O tambor esta rufando, e preciso entrar no alojamenfo. I#

IV Primeiras impressões (continua�ão) t come�ou-se a ultima chamada, depois da qual se aferrolha- ram as casernas, cada uma com um cadeado especial, e os presos ficaram trancados aos grupos, at� o arria- nhecer. A chamada era feita por um sub-oficial e dois soldados. Algumas vezes o oficial da guarda a assistia, e os for�ados se enfileiravam então no pat¡o. Mas, em geral, o controle era realizado sem nenhuma cerimonia, nos alojamentos. E

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assim sucedeu na primeira noite depois da minha chegada. Os encarregados da contagem muita vez se enganavam nos n£meros: e logo que sa¡am, tinham de voltar para nova chamada. Nessa noite, tendo afinal os pobres vigilantes afin- gido o numero preciso, fecharam definifivamente a caserna.#

70 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 71 A nossa continha uns trinta for�ados, estropiados de cansa�o, homem vivo: um for�ado, seja ele quem for, pode conservar deitados com bastante aperto nas tarimbas. Ainda era seus sentimentos, seu desejo de viver, sua sede de vingan�a, mito cedo para dormir. Cada um parecia ter necessidade todas as suas paixões, junto com a necessidade imperiosa de uma ocupa�ão qualquer. Não ficava conosco outro vi- de as sa+isf...zer. Noenfanto, repito-o, e errado teme-lo. Um a gilante alem do invalido a que ia me refer¡. Cada aloja- homem não se atira assim +ão rSpida e facilmente sobre ouL mento contava tambem com um "moni+or" escolhido pessoal- o +ro, com a faca na mão: esses acidentes s' em raros casos mente pelo maior, em aten�ão a sua boa conduta. As vezes, se produzem, e deve-se portanto convir que o perigo e ne- contudo, esse moni+or cornefla as suas faltas e era a�oitado, nhum. Não me refiro, e claro, senão aos for�ados ia em demitido, substi+uido. , iExercia o cargo, então, Akim Aki- cumprimento de pena, entre os quais muitos se sentem no k mitch, que, para grande surpresa minha, ralhava a vontade presidio como num porto seguro, e estão prontos a viver com os presos. Estes, em geral, lhe respondiam com pilhe- kali em sossego e submissão (tão grande e o atrativo que pode rias. Mais prudente que Akim, o "nevalido" não se envolvia ter uma vida nova); e os proprios turbulentos depressa são com coUsa alguma; se chegava a dizer uma palavra, era .3n+es aquietados pelos companheiros, porque o rriais audacioso e por descargo de conciencia. De c¢coras na tarimba, remen- o mais insolente dos gales se assusta com um nada. Quanto dava em silencio umas botinas velhas. Os for�sdos não lhe ao criminoso que ainda não recebeu o seu castigo. o caso prestavam a minima aferi�ão. � outro; este pode muito bem atacar sem motivo qualquer Nesse dia fiz um reparo cuja exatidão pude constatar

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pessoa, na vespera da fus+iga�ão, afim de criar novo caso mais +arde. Todos que tratam com os defentos, a come�ar e retardar a hora fatal. A agressão +em uma causa, um fim: pelos vigilantes, adotam em rela�ão a eles uma atitude falsa: e preciso fazer com que a sorte derive, de qualquer maneira. dão a id�ia de que estão se arriscando a receber uma facada, e o mais rapidamente possivel. Conhe�o ali s a esse respeito a todo instante e por da ca aquela palha. Os for�ados um caso de psicologia bastante estranha. se apercebem muito bem do medo que inspiram, o que lhes Havia na se�ão militar um for�ado condenado a dois a�ula as bravatas. Entretanto, o melhor chefe e justamente anos de presidio sem priva�ão dos direitos civis. Tra+ava-se, aquele que não os teme, e os presos s¢ se sentem a vontade de um fanfarrão odioso, um nofabilissimo covarde. Em ge- quando despertam confian�a. Pode-se ate, por essa manei- ral a fanfa,rronada e a covardia s¢ raramente se encontram ra, lhes conquistar a afei�ão! Durante a minha deten�ão, a no soldado russo, sempre tão ocupado que rem para gabo- verdade e que raramente um dos chefes enTrou na peni+en- lices +em tempo. Contudo, quando se descobre algum #

dessa ciaria sem escolta, e quando isso acontecia, era de ver-se a especie, e quase sempre um covarde integral. Depois de cum- estupefa�ão dos nossos! Ali s, esses visitantes infrepidos prir pena, Du+ov - assim se chamava o defen+o - voltou ao conquistam sempre o respeito dos homens, e se realmente seu batalhão. - Acon+ecera-lhe o mesmo que a todos os.seus uma desgra�a devesse acontecer, não seria na sua presen�a. colegas que são mandados a prisão afim de se corrigirem: O medo que o gale inspira e universal. Todavia não com- voltam de 16 infinitamente mais pervertidos. E, alguns deles, preendo em que se baseia. Provem decerto da cara do pre- ap¢s no m ximo umas duas ou +r�s semanas de liberdade, so, do seu renome de facinora. E depois, toda criatura que +ornam a ser julgados e s5o devolvidos ao presidio, mas dessa visita um presidio sente que aquele mon+ão de gente não vez va . o para a se�ão dos re;nciden+es, por quinze ou vir+e esta ali por seu gosto, e que por mais que se +ornem medidas

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anos. Assim acon+eceu com Du+ov. Cerca de +res semarias de precau�ão, ninguern pode transformar em cadaver um ap¢s sua liberta�ão, cometeu um roubo com violencia, d~)i_i#

72 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 73 esc�ndalo, revoltou-se. Condenaram-no a severa puni�ão corporal, cuja perspectiva o apavorou. No ultimo momenfo, na vespera do dia em que deveria passar sob as chibatas da sua companhia, o condenado agrediu com uma faca o ofi- cial da guarda, no instante em que este penetrava na cela dos defenfos. Dutov decerto compreendia muito bem que o seu ato lhe agravaria muifissimo c caso. Mas precisava de qualquer modo adiar por alguns dias, por algumas horas ao menos, o pavoroso momenfo do castigo. Era- tão covarde que não chegou sequer a ferir o oficial; apenas fingiu a agres- são com o unico fifo de perpefrar novo crime, que lhe pro- porcionaria novo julgamento. O minufo que precede a execu�ão e evidentemente pa- voroso. Durante os meus anos de presidio tive ocasião -de ver inumeros condenados na v�spera do dia fatal. Em geral enconfrava-os no hospital, no pavilhão dos presos, onde eu +ambem ocupava um leito, doente, - cousa que me aconfe- cia com grande frequencia. Em toda a Russia os prisioneiros sabem que a compaixão dos m�dicos não lhes permite consi- derar os for�ados diferentes dos outros homens, como em geral faz a maioria das pessoas, exce+uando-se a gente hu- milde. Nunca um homem do povo censura qualquer cousa a um for�ado: por mais horrendo que seja o seu crime, ele o perdoa pensando no castigo que aquele homem sofre, e por causa da sua "desgra�a". . . Não e a-+oa que o povo chama ao crime uma "desgra�a" e ao criminoso um "desgra�ado". Essa expressão profundamenfe cara+eristica tem importan- cia maior precisamente porque e inconciente, instintiva. Quanfo aos m�dicos, representam realmenfe em muitos casos a providencia dos gales, sobretudo para aqueles que ainda não receberam o seu castigo, - categoria submetida a um regime muifo mais tevero. Quando v� aproximar-se o dia em que ser executada a senten�a, o condenado frequente- menfe se declara enfermo, na esperan�a de afastar, por qual- quer pre�o, o ferrivel momento. Quando o devolvem da enfermaria, ele espera com toda a cerfeza receber os a�oites na manhã seguinfe; e por isso manifesfa uma agita�ão fre- menda. Alguns, por amor proprio, procuram escond�-la, mas a jactancia desajeitada que exibem

não engana os companhei- ros. Todos compreendem o que o agita, e ficam calados por compaixão. Conheci um jovem soldado, assassino, condenado ao numero m ximo de a�oites. Tão grande era o seu medo, que resolvera beber uma tampa de gamela cheia de vodca, onde pusera rape de infusão. Alias, o condenado sempre bebe bastante aguardente antes da execu�ão do castigo.

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Obtem vodca com grande antecedencia, mesmo a pre�o exorbitante; privar-se-a do indispensaval durante seis meses, economizara custe o que custar afim de comprar um quar-#

filho de aguardente que h de beber quinze minutos antes da execu�ão. Estão convencidos os presos de que o homem b�bedo sente com menos intensidade as pancadas das varas ou do knuf.- Mas volto a minha hisforia. Engulido o vodca, * pobre rapaz adoeceu de verdade: leve uma hemorragia * o transportaram ao hospital quase inanimado: o v"mito de sangue por tal forma lhe devasfou o peito que a t¡sica não tardou a se declarar e ele morreu ao cabo de seis meses. Os m�dicos que o trataram nSo souberam nunca qual fora a causa da sua molesfia. Ao lado dessa falta de coragem diante do castigo, cri- confram-se +arribem, devo diz�-lo, casos assombrosos de in- trepidez. Ao escrever isto, penso em certos gestos de atire- vimenfo vizinhos da insensibilidade, gestos menos raros que o que se pode supor. Posso cifar especialmente certo bandoleiro, o famoso deserfor Orlov. Num dia de verão, espalhou-se o boato de que ele seria castigado a noite, e que depois da execu�ão o levariam ao hospital. Os doentes 1 garantiam que Orlov seria a�oitado sem do. Todos se mos- travam mais ou menos febris, de tal modo que foi com enor- me curiosidade que fiquei a espera daquela celebridade do crime. Ja ha muito tempo ouvia contar casos inauditos a seu respeito. tEsse facinora deespecie rara trucidava friamen- te velhos e mo�os; dotado de exfraordinaria for�a de von- fade, tinha o orgulho e a conciencia dessa for�a. Depois de 7#

74 DOSTOIEVSKI confessar um grande numero de assassinios, viu-se ele con- denado aos a�oites. Ja ficara escuro, e ia estavam acesas as candaias quando o trouxeram quasa desacordado, o rosto livido sob a grenha espessa, cacheada e negra como pixe. As costas em carne viva estavam inflamadas, roxas. Durante toda a noite os companheiros se ocuparam dele, mudando-lhe as, compressas, virando-o dum lado e de outro, dando-lhe uma po�ão, como se se tratasse dum parente pr¢ximo ou dum benfeitor. No dia seguinte o homem recuperou toda a lucidez, e deu uma ou duas voltas pela sala. Aquilo me surpreendeu: ele recebera duma so vez a metade do castigo, pois o m�dico suspendera a execu�ão quando se convencera de que lhe poderia pro- vocar um desenlace fatal. Entretanto Orlov era de baixa estatura e seu estado geral fora debiWaclo pela longa deferi- �ão. Como todos os condenados ao a�oite, tinha a cara livida, exhausta, esgotada, e o olhar febril. Contudo, rapi-

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damente melhorou; evidentemente a sua alma energica aju- dava a natureza. Não, aquele homem não era uma criatura ordinaria. A curiosidade me impeliu a conhec�-lo melhor, e o estudei durante uma sernaria infeira. Posso afirmar que nunca, em minha vida, ericontrei cara+er de melhor ' t�mpera, mais inflexivel. Avisfei-me em Tobolsk com uma celebridade da mesma especie, Koneniev, verdadeiro animal feroz; bas- tava olh -lo e, mesmo sem o conhecer, a gente adivinhava naquele homem uma criatura monstruosa. Mas na sua es- +Upida ausencia de alma, senfia-se logo ao primeiro olhar q-je a maferia dominava ali. Aquele hornem não sentia nada alem da sede dos apetites fisicos, a sensualidade, a luxuria. Tenho a certeza de aquele Koreniev, capaz de degolar um homem sem pestanejar, desmaiaria e tremeria de medo diante do knuf. Orlov, ao contrario, encarnava a vitoria do espiri+o sobra a carne: podia dominar-se ate o fim, desprezava todos os tormentos e todas as puni�ões, não temia absolutamente nada. Emanava de si uma energia sem limites. Senfia-se ne- le uma sede de vingan�a e uma atividade inabalavel para atingir os seus fins. Seus modos estranhamente altivos, que#

RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS I **%e i 77 nada tinham de proposital, que lhe eram naturais, me deixa- ram at"nito. Creio que ninguerri no mundo o poderia in- fluenciar. Considerava as cousas com a placidez das cria- turas as quais nada espanta. Admitindo claramente que to- dos os defentos o respeitassem, nunca entretanto se jactou ante eles. Todavia, a fatuidade, a gloriola, são naturais em quase todos os for�ados. Era inteligente e de uma estranha franqueza, embora pouco loquaz. As minhas perguntas res- pondia sem rodeios que esperava curar-se para sofrer o resto da pena, e que de inicio receara não a poder suportar. "Agora, acrescentou com um piscar de olhos, a cousa esta liquidada. Aquento o resto dos a�oites e logo depois man- dam-me para Ner+chinsk, e em caminho fujo - fujo com toda certeza! Contanto que minhas costas cicatrizem depressa!" E durante cinco dias ele esperou com avidez o momento de partir. Mos+rava-se em geral muito alegre e de muito bom humor. Tentei levar a conversa para as suas aventuras: e, embora franzisse um pouco o cenho as minhas perguntas, ele sempre respondia abertamente. Entretanto, quando des- cobriu que eu lhe sondava a conciencia para descobrir nela algum sinal de arrependimento, olhou-me com um ar tão al- +ivo, de tanto desprezo, que me senti diante dele como um garoto estUpido com o qual a gente não se da ao trabalho de discutir. Lia-se no rosto do homem uma especie de compai- xão por mim. Um minuto mais tarde -ele dava gargalhadas, de todo o cora�ão, sem a menor ironia, e tenho a cerfeza de

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que mais de vez, recordando minhas palavras, ha de ter rido sozinho. Enfim, sem esperar que suas costas estivessem com- pletamente cicatrizadas, reclamou o resto da pena. Eu +am- bem tivera alta, nessa data. Saimos juntos da enfermaria, eu para a caserna, ele para o corpo da guarda, onde ia o tinham prendido antes. Deixando-me, aper+ou-me a mão. o que, de sua parte, era um sinal de alta confian�a. Creio que agiu assim porque estava naquele momento muit¡ssimo satisfeito consigo proprio. Na realidade, deveria necessa- r¡amenfe me desprezar, encarar-me como uma criatura ven-#

78 DOSTOIEVSKII cida, fraca, lamenfavel, inferior a -ele em todos os respeitos. E logo no dia seguinte recebeu a outra metade da puni�ão ... Depois de fechada, a nossa caserna +ornava imediata- mente outro aspecto: a de uma verdadeira moradia. S¢ então eu podia ver os defen+os a vontade, como se estives- sem em casa. De dia os sub-oficiais, os vigilantes, ou qual- quer outro chefe poderia aparecer de repente; e por essa razão todo o mundo ficava mais ou rrienos alerta, todo o mundo vivia num estado de expectativa perp#+ua, numa espe- cie de inquieta�ão latente. Mas, assim �e fechavam a porta, quase todos procuravam o seu lugar e se entregavam ao trabalho. O alojamento se iluminava de sUbi+o: cada um tinha a sua vela, presa num casti�al. de madeira. Um fazia bofinas, o outro costurava roupas. O ar confinado ia ficando sempre mais irrespiravel. Um grupo de jogadores se 'irisfa- lava num canto, em redor dum tapete desenrolado. Em cada caserna um de+ento possuia um tapete ralo, uma candeia e um baralho pavorosamente sebento; -esses utensilios tinham o nome de maidane (1). O proprie+ario recebia dos jogadores quinze copeques por noite e isso const¡tuia a sua profissão. Tinham curso apenas jogos de azar. Cada jogador punha diante de si uma pilha de moedas de cobre - o confeudo fofal dos seus bolsos, - e s¢ se levantava depois de perder tudo ou tudo ganhar. O jogo se prolongava, as vezes, a+6 ... madrugada, ate ao propric, instante em que vinham abrir a caserna. Na �ossa, como em todas as outras, havia sempre pobrefões que tinham bebido ou perdido todas as suas eco- nomias, - no caso de jamais haverem possuido, econornias. Eram pobre+ões "nafos". Chamo-os "nafos", e acentuo par- ficularmen+e a expres...o. Com efeito, no nosso povo, qual- quer que seja a condi�ão ou a situa�ão social, sempre houve e havera esses estranhos individuos que um temperamento pacifico e indolente destina a uma eterna mendicidade. S5o eternamente uns pobres-diabos, uns perpetuos esmoleres. Sempre esmagados, numa especie de apatia, servem de bode (1) Inferno. (N. de R. Q) RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 79 expiaforio ou de fac-fofum a todos: as vezes a um libertino,

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as vezes a um novo-rico, ...s vezes a um ambicioso. Qualquer esfor�o lhes pesa, incomoda, oprime! Parece que.vieram.ao mundo sob a condi�ão de nada come�arem por si proprios, de não terem vontade pessoal, mas viverem para ser o polichi- nelo, o tifere de alquem. Sua missão no mundo consiste#

apenas em executar as ordens de alguem. Circuns+anci-9 ne- nhurria, fortuita que fosse, conseguiria enriquec�-los; m¡seros são, miseros devem morrer. Encontrei dessas individuos não so na plebe, mas em todas as esferas sociais, nos partidos, nas associa�oes, nos grupos li+erarios. Tinhamos deles em cada um dos alojamentos, e assim que come�ava o rinaidane, logo um se vinha por a servi�o dos jogadores. Nenhum mai- dane poderia dispensar esses ajudantes. De ordinario eram contratados para a noite inteira, mediante o ordenado de cinco copeques. Sua fun�ão consistia em ficar de sentinela durante seis ou sete horas, Ia no escuro da entrada, numa temperatura de trinta graus abaixo de zero, e escutar qualquer voz, qualquier passo que soasse no pafio. O maior ou o oficial da guarda faziam ...s vezes uma ronda, noite alta: chegavam na ponta dos pesa surpreendiam os jogadores, os trabalhado- res, as candeias particulares, que alias se avistavam do pro- prio pa+io. Quando se escutava ranger a chave na fechadura da porta que dava entrada para o patio, não se tinha tempo sequer de apagar as lu`Zes e estirar-se na tarimba. Como, po- rem, o maidane cobrava caro do seu vigia, as incursões dessa especie eram muit¡ssimo raras. Mesmo no pres¡dio, cinco copeques constituem um salario infimo e irrisorio; portanto, nesse caso como em outros, a implacavel dureza dos "pa+roes" que o pagavam sempre me impressionou. "Recebeste di- nheiro, faze o teu servi�o!" Esse argumento não tolerava nenhuma contradi�ão. Em virtude daqueles sOrdidos co- bres, o alugador tirava do seu "empregado" tudo o que podia, - e ainda por cima se considerava como seu benfei- tor. Qualquer pr6digo, qualquer b�bedo que em outras oca- siões atirava o dinheiro pelas janelas, sempre achava, entre- i#

80 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 81 fanto, que pagava demais aquele escravo. Isso eu o observei em mais de uma caserna. e em mais de um maidane. Todos, portanto, se entregavam mais ou menos ao +raba- lho. Fora os jogadores, apenas uns quatro ou cinco ficavam, sem fazer nada: deitavam-se imediatamente. Eu ocupava uma ponta da farimba, perfinho da porta. Do lado oposto, com a cabe�a ao nivel da minha, ficava Akim Akimi+ch. En- frefinha-se das dez ...s onze em pintar uma lanterna chinesa, multicor, - encomenda que lhe seria bem paga. Fabricava lanfernas como um mesfre do oficio, trabalhando metodica- mente, sem de+en�as. Ao acabar, guardava os seuXtensilios

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com cuidado, desenrolava o colchão, rezava e deitaIM-se na cama como um justo. Levava a ordem e a minucia af� o pe- clar¡tismo: como foclos os homens est¢pidos e limitados, de- ver-se-la supor muito inteligente. Desagradou-me desde o .primeiro dia, embora me fornecesse. depois material para me- dita�ão: espantava-me ver no presidio um homem que pa- recia fadado a vencer na vida. Alias, ainda terei opor+uni- dade de falar em Akim Akimi+ch. Digamos agora algumas palavras a respeito dos ocupari- fes da nossa caserna. Como eu deveria passar varios anos em sua companhia, a curiosidade intensa com que encarava os meus camaradas e muitissimo compreensivel. Um grupo de montanheses caucasianos - dois lezghianos, um fchefchen- ge, e dois f6rfaros do Daqu�s+an, - condenados quase foclos por bandoleirismo, ocupavam a tarimba da esquerda. O fchefchenge, individuo taciturno e sombrio, quase não falava com ninguem; atirava sempre olhares de vies, em forno de si, e fitava os outros com um sorriso mau, venenoso, zombe- teiro. Um dos lez9hianos, homem velho, de comprido nariz aquilino, tinha uma aut�ntica fisionomia de bandido. Porem o outro, Nurra, deu-me logo de inicio a mais favoravel, a mais agradavel das impress6es. Era ainda mo�o, de estatura mediana, mas senhor de for�a herculea, muito louro, com olhos dum azul clarissimo, nariz arrebitado, cara de finland�s, e pernas arqueadas de cavaleiro. Tinha o corpo riscado de cicatrizes, marcado de golpes de baionafa. No Caucaso, iembora perfencesse a uma fribu submissa, reunia-se sorrafei- ramente aos rebeldes, para junfo com eles realizar razias con- fra os russos. Todos entre nos lhe queriamos bem. Dum genio sempre igual, era delicado para com todos e trabalhava sem se queixar. Apesar do seu temperamento sossegado e alegre, muitas vezes a gente lhe via o nojo pela vida abjeta dos for- �ados: as Jadroeiras, a bebedice, o indignavam ate o furor; a deshoriesficlade o punha fora de si; mas afastava-se sem pro- curar briga com ninguem. Durante foclo o periodo em que es- feve recluso, nunca furtou nada, nem cometeu a m'nima#

indignidade. Religioso af� o fanatismo, rezava com fervor, observava todos os jejuns que precedem as fesfas maome+a- nas -e passava noites inteiras em ora�ão. Todo o mundo o estimava, todos lhe prezavam a honestidade: "Nurra e um leão", diziam os for�ados - e o apelido lhe ficou. Conven- cido de que, depois de liberto, volfaria a sua ferra, no Cau- caso, ele vivia apenas nessa esperan�a je se lha roubassem, creio que morreria. Aftaiu-me as simpatias desde o pri- meiro dia: entre as caras malignas, sombrias, sard"nicas dos outros de+enfos. aquele rosto bondoso e simpa+ico não me poderia passar despercebido. Eu estava Ia havia uma meia hora, quando Nurra me veio bater no ombro, rindo com bon- dade e olhando-me no fundo dos olhos. Não o compreendi bem a principio, porque ele se exprimia muito mal em russo. Mas logo depois Nurra +ornou, sorrindo, e de novo me deu uma palmada amigavel no ombro. Essa mimica se renovou com frequencia nos +r�s primeiros dias, e significava, segundo o adivinhei então e compreendi mais tarde, que Nurra tinha do de mim, que sentia a dificuldade que eu feria em me acos-

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fumar ao presidio, que me queria testemunhar sua simpatia, esfimular-me, prornefer-me sua prote�ão. Bom e ingenuo Nurra! Os +r�s f...rfaros de Daguesfan eram irmãos. Dois ia haviam atingido a idade madura, mas o ferceiro, Ali, tinha#

82 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 83 apenas vinte e dois anos e parecia mais mo�o ainda. Seu lugar na tarimba era vizinho ao meu. Encan+ou-me ao pri- meiro olhar o seu belojosto franco, inteligente, ingenuo, e agradeci a sorte que mo dera como vizinho imediato. Mos- trava a alma a nu naquele belo, - pode-se dizer naquele magnifico rosto. O sorriso traduzia a confian�a e a sim- plicidade da juventude, e uma +ão grande meiguice lhe im- pregnava os olhos pretos que s6 o fato de olh -!os me ali- viava a tristeza - conto-o sem o menor exagero. Na al- deia natal, o seu irmão mais velho, (tinha cinco irmãos: os outros dois foram condenados as minas) ordenou-lhe um dia que apanhasse o iatagã, montasse a cavalo e o seguisse. O respeito palos mais velhos e tão grande nessas familias mon- fanhesas, que o rapaz jamais se atreveria ~pergun+ar aonde ~e ~ informa-lo. iriam. Os mais velhos não julgaram nece s Iam assaltar na estrada um rico negociante armenio. Com efeito, assassinara m-no, bem como aos homens da escolta a deitaram mão as mercadorias. Todavia descobriu-se a coisa: os seis foram apanhados, a�oitados, e deportados para a Siberia. O tribunal não mostrou inclulgencia senão para Ali, que foi condenado ... pena minima, isto e, a quatro anos de presidio. A afei�ão que lhe tinham os irmãos era como um amor de pai. Era o consolo que eles tinham no exilio ... e, sempre tão sombrios, +ão tristes como eram, sorriam ao olha-lo, e quando conversavam com Ali (raramente, ali s, porque decerto o consideravam muito mo�o para lhe pode- rem confiar qualquer cousa seria) as caras melancOlicas se iluminavam, abrandavamõ e pelo piscar dos olhos, pelos sorrisos bem humorados que trocavam ao ouvi-lo, eu adivi- nhava que se dirigiam a ele como a um garoto com quem se brinca. Quanto a Ali, mal ousava dirigir a palavra aos outros, +ai o respeito que lhes votava. � dificil de conceber como. em vez de se corromper, aquele mo�o pudera con- servar no presidio um cora�3o f8o manso, uma honestidade tão escrupulosa, uma sinceridade f3o aberta, uma bondade +ão simp tica. Era ali s uma natureza forte, apesar da vi- sivel mansidão do seu genio, como mais +arde o ver¡fiquei. Pu- dico como uma rapariga, qualquer a�ão vil, c¡nica, repug- nante ou injusta fazia com que luzissem de indigna�ão os seus olhos magnificos. Mas ele tambem evitava disputas * injurias, embora não fosse homem capaz de consentir que * rebaixassem. Ali s, não poderia ter questões com ninguem: todo o mundo o adulava, todo o mundo o adorava. De ini- cio, foi apenas delicado comigo, porem, pouco a pouco, che-

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gamos a conversar; alguns meses lhe haviam bastado para aprender a se exprimir corretamente em russo, o que os ir-#

mãos jamais conseguiram fazer. Pareceu-me inteligenfissi- mo, muito modesto e delicado, e ao mesmo tempo forte o sensato. Em resumo, considero-o como criatura acima do comum, -e sempre evoco o seu encontro como um dos me- lhores da minha vida. Ha dessas naturezas belas de nas- cen�a, tão ricamente dotadas por Deus. que a id�ia de as ver corrompidas parece absurda. A gente sempre fica tranquila a seu respeito. Sinto-me +ranquilo quanto a sorte de Ali. Onde entretanto estar ele agora? Uma vez, bastante tempo apOs minha chegada ao pre- sidio, eu estava estirado na tarimba. presa de dolorosos pen- samenfos. Embora ainda fosse cedo para dormir, Ali, sempre ativo, nada fazia naquela noite, porque os irmãos observa- vam então uma festa mu�ulmana. (Eu estava deitado, com um bra�o sob a cabe�a, e meditava. - Por que +e sentes tão triste? Olhei-o surpreso, considerando estranha aquela pergunta partida de Ali, sempre tão delicado, tão cheio de tato, de cora�ão tão inteligente. Mas, olhando-o com mais aten�ão, vi-lhe no rosto o reflexo de toda a dor, toda a angustia da saudade, e compreendi imediatamente quanto o mo�o fam- bem se senfia infeliz naquele momento. Deu um suspiro profundo e sorriu amargamente. Eu gostava do sorriso dele, sempre +ão afavel, que descobria duas fileiras de dentes ai- vissimos, capazes de fazer inveja a mais bela rapariga do mundo. - Dize, Ali, estas pensando na festa que se celebra hoje na tua +erra, no Dagues+an? L e muito lindo?#

84 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 85 - Oh, sim! respondeu ele exaltado, enquanto os seus olhos se iluminavam. Por que viste que eu estava pensando na festa? - Ora, grande dificuldade! Como se a gente não fosse mais feliz em casa do que aqu 1 - Oh1 por que me dizes isso) - Agora, quanta flor não deve haver na tua +erra, que paraiso ha de ser lai - Oh, cala-fe, cala-fe! Sua agita�ão estava no auge. - Escuta, Ali, tinhas alguma irmã? - Sim, por que? - Deve ser bonita, se parece configo! - Não se compara comigo! � tão bonita que não +em nenhuma igual em todo o Daquesfani Ah, como e bonita! Nunca viste uma mulher tão linda! Alias, minha mãe +am- bem era bonita. - E tu gostas muito de tua mãe? - Ai, que me estas pergunfando! Decerto morreu de

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desgosto, por minha causal Eu era o seu preferido: gostava mais de mim que de minha irmã e de meus irmãos ... Esta noite sonhei com ela: estava chorando. Calou-se, e não disse mais nada durante todo o resto da noite. Mas, depois dessa ocasião. procurava todas as oportunidades para falar comigo, apesar do respeito que eu lhe inspirara, nem sei berril por que, e que o impedia de me dirigir a palavra em primeiro lugar. E eu fambem, que ale- gria sentia quando o interrogava sobre o Caucaso, sobre a sua vida passada! Os irmãos não o impediam de conversar comigo, e parecia ate que ficavam contentes quando o viam responder ao que lhe perguntava. E quando constataram que eu dia a dia mais me afei�oava a Ali, +ornaram-se cada vez mais delicados para comigo. Ali me ajudava no trabalho, pres+ava-me todos os ser- vi�os que podia, na caserna. Senfia-se que lhe dava prazer ser-me agradavel, auxiliar-me um pouquinho que fosse. E não havia nisso, da sua parte, nem servilismo, nem procura de uma vantagem qualquer, mas apenas um sentimento de ardorosa amizade, que j6 não dissimulava. Como tinha muita capacidade para os trabalhos manuais, aprendeu a costurar muito bem roupa branca e botinas, e depois, tanto quanto era possivel, a marcenaria. Os irmãos, muito orgu- lhosos pelo �xito do rapaz, o felicitavam por isso. - Escuta, Ali, disse-lhe eu certa noite. Por que não aprendes a ler e a escrever em russo? Ha de ser-te muito util mais tarde, na Siberia. - Eu bem queria, mas com quem? - Aqui não falta quem saiba. Se queres, eu te en-#

,sino. - Oh, por favor, ensina-me! Ergueu-se da tarimba, juntou as mãos e me olhou, com ar suplice. Come�amos no dia seguinte a tarde. Eu possuia uma tradu�ão russa do Novo Testamento, livro autorizado no pre- sidio. Sem abecedario, com o auxilio Unico desse livro, Ali, em algumas semanas, aprendeu a ler correntemente. Tres meses depois, compreendia muitissimo bem a linguagem es- crita. Estudava com ardor, com exalfa�ão. Certa vez, lemos juntos o Sermão da Montanha. Obser- vei que lhe interessavam particularmente algumas passagens. E perguntei se lhe agradara o que acabara de ler. Ele me lan�ou um olhar vivo, e a cor lhe subiu ao rosto: - Oh, sim! Issa (2) e um grande profeta. Issa fala as palavras de Deus. � muito bonito. - Que e que mais +e agrada? - O trecho onde ele diz: perdoa, ama, não ofendas, estima o teu inimigo. Ah, como elo diz bem isso! Virou-se para os irmãos que nos escutavam e falavam com anima�ão. Ficaram a conversar os fres muito tempo, seriam-ente, com gestos afirmativos da cabe�a. Depois, sorrindo com um sorriso ao mesmo tempo grave e benevo!o, - o puro sorriso mu�ulmano, cuja gravidade me encanta es-

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(2) Deforma�ão russa de fisus (les£s), (N. de H. M.)#

.f 86 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 87 pecialmente - volveram-se para mim e confirmaram, qu3 Issa era um profeta de Deus e obrara grandes milagres; depois de esculpir um passaro de argila, soprara nele, e o passaro voara; isso estava escrito num dos livros. (3) Diziam essas cousas certos de que, louvando Issa, me davam grande prazer. Quanfo a Ali, estava radianfe: os irmãos tinham conversado com -ele, e tinham se dignado aprovar-me! Tive igualmente grande �xi+o no ensino da escrita a Ali. Arranjou papel (não permitiu que eu lho comprasse com meu dinheiro) penas, tinta, e dentro de dois meses escrevia p,~r- feitamente bem. Os irmãos ficaram embasbacados. Sua alegria, seu orgulho, ultrapassaram todos os limites: nassi~- biam como me agradecer. Durante as tarefas, se nos acon- tecia estar juntos, eles faziam tudo para me auxiliar, e consi- deravam aquilo uma felicidade. Ja- não falo de Ali, que se afei�oou a mim quase tanto quanto aos irmãos. Não es- quecerei jamais a sua partida. Arrasfou-me para fora da caserna, e agarrou-se ao meu pesco�o, chorando. Nunca antes me abra�ara, e nunca eu o vira derramar uma lagrimal - Fizeste tanto por mim, fizeste tanto por mim! dizia. Mais que meu pai, mais que minha mãe! Fizeste de mim um homem. Deus +e recompensar6 e eu não +e esquecerei nunca 1 Onde esfaras agora, querido, angelical e meigo Ali? Alem dos circassianos, nossa caserna abrigava ainda alguns polacos. Formavam um grupo inteiramente a parte, e não se davam com os outros for�ados. Ja lhes descrevi o exclusivismo, ia expliquei que o desprezo deles pelos de- tentos russos lhes havia granjeado o odio geral. Tinham o temperamento atormentado e doentio. Eram em numero de wis - e alguns deles homens de instru�ão: falarei mais detidamente destes ulfimos. Algumas vezes, duran+e os der- radeiros anos da minha reclusão, me emprestaram livros; o primeiro que li me provocou uma impressão forte, estranha, (3) Essa lenda cristã est com efeito registrada no Corão, 111, 43. Chegou aos rabes por intermedio da versão rabe do pseudo-evangelho de S. Tom�. (N. de H. M.) especialissima, da qual falarei mais tarde. Considero essas sensa�ões muito curiosas e tenho a certeza de que muitas pessoas nada poderiam compreender delas. Sem as expe- rimentar, a gente não pode julgar certas cousas. Basta dizer 1 que os sofrimentos morais são muit¡ssimo mais pesados que 1 a os sofrimen+os f¡sicos. No presidio o homem simples es¡5

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no seu meio - talvez a+e num meio mais adiantado que o seu. Evidentemente ele perdeu muito - a sua aldeia, a sua familia, tudo, se o quisermos, mas não mudou de ambienfe! O homem instruido, punido pela lei do mesmo modo que o rUs+ico, perde incon+es+avelm ente muito mais: deve reprim*,r todas as suas necessidades, todos os seus habi+os, deve aprer.- der a respirar um ar inteiramente estranho! � como um peixe +irado da agua e jogado a areia ... Muitas vezes o castigo, que a lei dita igual para todos, torna-se para ele um tormento multiplicado por dez. E isso e verdade, mesmo sem se levar em conta o sacrificio dos Mbi+os materiais. Assim, pois, os polacos tinham um grupo a parte. En+re todos os defenfos estimavam apenas o nosso judeu, simples- mente porque ele os divertia. Esse judeu, alias, gozava da afei�ão geral, embora os for�ados, sem exce�ão, o levassem na tro�a. Era o Unico da sua ra�a. e nao o posso recordar sem rir. Sempre que o olhava, fazia-me lembrar aquele Yankel do "Tarass Bulba" de Gogol, que uma vez despido e pronto a entrar, junto com a sua judia, num objeto que parecia um armario, fica de repente igual a um frango de- penado (4). Ja idoso, - andava perto dos cinquenta, - era de pequena estatura, de constitui�ão fraca, astuto e es- +Upido, impertinente e covarde ao mesmo tempo. O rosto, vincado de rugas, mostrava na fronte e nas faces as marcas do pelourinho. Jamais consegui compreender como e que ele (4) A memoria de Dostoievski o traiu. Na realidade o episodio citado não se re- fere a Yankel, mas ao judeu ruivo que guia Bulba na noite da sua chegada a Varsovia. Eis o texto real: "j anoitecera. O dono da casa, o judeu da cara sardenta, trouxe um colchão s¢rdido, coberto duma esteira ainda pior, destinados a Bulba. Yankel se deitou no chão num colchão id�ntico. O judeu ruivo enguliu um c lice de aguardente e despiu o cafetã: de cerouias e sapatos assemelhava-se vagamente a um frango; de- pois, junto com sua judia, penetrou num objeto que se assemelhava vagamente com um armario.‾ Cogol, "Tarass Bulba", cap¡tulo XI. (N. de H. M.)#

88 DOSTOIEVSKI RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 99 pudera suportar sessenta a�oites de knuf. Porque estava pre- so por crime de morte. Guardava consigo, muito bem es- condida, uma receita que outros judeus lhe haviam obtido, logo depois da execu�ão do castigo. Tra+ava-se dum b lsa- mo que depois de uns quinze dias de uso apagava as marcas do pelourinho. Ele não ousava utiliza-lo na prisão, e para ex- perimentar as virtudes da tal receita, esperava acabar os vinte anos de trabalhos for�ados, depois dos qua¡s seria desterrado

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/1 para uma aldeia. "Sem isso não me poderei casar , dizia, no seu sotaque, "e fa�o questão absoluta de ter mulher". Eramos n¢s dois muito amigos. Ele estava sempre nas me- lhores disposi�ões de espirito. A vida no presidio não lhe era absolutamente penosa: ourives de profissão, os habitantes da cidade, - que não dispunham de nenhum joalheiro - o enchiam de frabalho: e ele assim escapava aos labores mais pesados. Como seria de esperar, +arribem praticava a usura e emprestava a juros a caserna inteira. Entrara no presidio antes de mim, e um dos polacos me descreveu um dia a sua chegada. � uma his+oria divertida que mais +arde conta- rei, porque mais de uma vez terei que falar em Isai Fomi+ch. Havia ainda no nosso alojamento quatro raskoiniki, ou "velhos-cren+es", anciãos versados nas Santas Escrituras, entre os quais se. encontrava o velho de S+arodubov. Dois ou +r�s pequenos-russos, gente de temperamento sombrio; um for�ado muito jovem, de nariz pontudo, que a despeito dos seus vinte e +r�s anos j assassinara oito pessoas. Um bando de moedeiros falsos, dos quais um nos servia de bobo. E, enfim, mais alguns individuos taciturnos e mal encarados, raspados ou desfigurados, infelizes e invejosos, resolvidos a se mostrarem como +ai, cenho franzido, boca costurada, alma oclienfa, durante ainda longos anos, durante todo o tempo da sua reclusão. Eis o quadro que me desfilou ante os olhos durante essa primeira +arde sem alegria da minha nova existencia. Vi-o atrav�s da fuma�a e do ar sufocante, das pragas, do cinismo indescrifivel, do cheiro f�tido e do filin+ar das grilhefas, das a risadas estridentes e das maldi�ões. Esfirei-me, sobre a ta- bua nua da tarimba, pus a roupa debaixo da c�ibe�a (não tinha ainda fravesseiro), enrolei-me na pele de carneiro e por mais exhausfo, por mais extenuado que estivesse gra�as as impressões monstruosas e inesperadas desse primeiro dia, não consegui adormecer. Aquilo no entanto era apenas o come- �o. Muitas outras cousas me esperavam, cousas que eu nao poderia nunca prever, nem adivinhar. . . #

I#

O primeiro m�s r�s dias depois, da minha chegada, recebi ordem de ir frabalhar. Esse dia me ficou gravado na lembran�a, T embora nada tenha acontecido de especial - pelo menos se levarmos em conta o que minha propria situa�ão tinha de exfraord¡nario. Mas eram impressões novas e eu ainda encarava as cou- sas com avidez. Acabava de passar tr�s dias presa das emo�ões mais penosas. "Cheguei ao fim da viagem! estou

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no presidio!" repetia eu de minuto em minuto. "Eis-me no porto, onde passarei longos, longos anos. Esta aqui o meu canto! Chego com o cora�ão ferido cheio de apreensão e desconfian�a. . . E quem sabe se, daqui a muito tempo, no momento de partir, não terei SaudadesV' acrescentava, es- +imulado por essa perfida necessidade que, as vezes, nos faz magoar uma ferida ate o seu ponto mais profundo, para#

92 DOSTOIEVSKI saborear a dor intensa, para goza-Ia em toda a sua imensi- dade. O pensamento de que um dia eu teria saudades da- quele lugar, enchia-me de angustiado horror. Desde então pressentia quanto o homem e feito de h bitos. Isso, todavia, representava ainda o futuro, enquanto que nQ presente tudo que_ me cercava me parecia hostil, abominavel; pelo menos, se não o era completamente, assim eu o enxergava. Aqueia selvagem curiosidade com que contemplava os for�ados, meus novos companheiros, a dureza deles para com o ba- rine feito agora seu igual - dureza que chegava quase a ser odio, atormentavam-me tanto que eu ardia por ir mais de- p 1 ressa para O trabalho, afim de penetrar de- uma vez at� ao f�rido da minha desgra�a, de me por a viver como eles, de puxar com eles pela mesma trela. Não posso dizer quanfos fatos n?e escaparam então, e quão pouco me apercebia eu do que se passava sob o meu proprio nariz; ao l d¢ da- hosfi- lidade por demais visivel, não me apercebia de nada con- solador; contudo, foi nesse momento que encontrei algumas criaturas amave¡s, cuja acolhida me deu coragem. O mais amavel, o'mais acolhedor, foi Akim Mimitch. Na multidão de rostos +riston.hos e pouco amigos dos outros for�ados, fui obrigado a notar algumas boas caras. Por toda parte h gente ruim, mas nem todas as ovelhas dum rebanho são pw- teadas, depressa disse eu a mim mesmo, para me consolar. "Quem sabe? Talvez estes individuos não sejam muitos piores que os demais, que esses que vivem 16 fora, do outro lado dos muros da fortaleza". E pensando isso, eu meneava a cabe�a - entretanto, meu Deus, nem de longe descon- fiava de que aquilo era a verdade pura! Eis um exemplo: o condenado Suchilov: levei varios anos para o conhecer realmente, embora estivesse a todo tempo ao meu lado. Exatamente no momento em que eu dizia que alguns não são piores do que os outros, ergue-se a sua lem- bran�a, na minha memoria. Servia-me de aio, juntamente com Ossip, um ou+ro defen+o que desde o inicio Akim Aki- mi+ch me inculcara, afirmando que por trinta copeques men- sais me prepararia uma refei�ão, se o rancho do presidio RECORDA�âES DA CASA DOS MORTOS i. 93 se eu tivesse meios me inspirasse excessiva repugnancia. e de comer por conta propria. Ossip era um dos quatro cozi-

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nheiros eleitos pelos presos para tomarem conta das nossas duas cozinhas. Esses eleitos, alias, pocleriam aceitar ou re-#

cusar o oficio, e mesmo aceifando-o, abandonar o lugar no dia seguinte, se lhes desse na veneta. Os cozinheiros fica- vam dispensados do trabalho for�ado; s6 se ocupavam em cozer o pão e preparar a sopa. Não eram chamados cozi- nheiros mas "cozinheiras", não por desprezo, (pois eram es- colhidos para a cozinha os homens mais honestos e inteli- gentes que era possivel encontrar) mas por uma familiaridade que absolutamente não os ofendia. Durante varios anos o Ossip foi "cozinheira" quase sem interrup�ões: s' abando- nava o emprego quando o atormentava o fedio, ou lhe davam desejos de confrabandear vodca, pois esse contrabandista de profis~ão era homem de uma honestidade e uma bondade raras. J falei um pouco a seu respeito - era o +ai rapa- gão a quem os a�oites inspiravam pavor tão grande. Sosse- gado, arriavel, paciente, incapaz de promover uma briga, não podia, apesar das suas apreensões, deixar de introduzir aguar- dente, quando o assaltava a paixão do contrabando. En- tregava-se pois ao trafico de vodca, igual aos wus colegas, mas em propor�oes mais modestas que Gazine, cuja audacia, amor do risco, não partilhava. Sempre mantive muito boas rela�ões com Ossip. As refei�ões em separado n3o saiam muito caras: creio n5o me enganar, afirmando que eu na .. o gastava mais de um rublo por mes com minha alimenta�ão, sem contar com o pão, e claro, fornecido pela casa, e alqu- mas vezes a sopa, que +ornava quando estava com muita fome. - pois acabara por desaparecer a repugnancia que ela de inicio me inspirara. Em geral eu comprava um ~e- da�o de carne de uma libra, - o que no inverno custava dois copeques. Um dos inv lidos, vigilante na caserna, en- carregava-se dessa compra. Todos os invalidos espon+anea- mente se ofereciam para as compras-, não recebiam por isso nenhuma nemunera�ão, salvo uma ninharia aqui ou alem. Agiam assim por amor do seu proprio sossego, porque de i i, #

94 DOSTOIEVSKI outra maneira não se poderiam aguentar. Traziam fumo, "fabie+f,es" de ch (1), carne, kalafchi e mais outros g�neros, salvo o vodca, que ninquem lhes pedia para trazer, embora de vez em quando eles aceifassern iornar um trago. Du- rante varios anos seguidos Ossip me preparou o mesmo pe- da�o de carne: pouco importa o modo como o fazia! Cousa curiosa: por todo esse tempo não consegui nunca arrancar- lhe duas palavras. Tentava, as vezes, iniciar uma conversa,

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,mos ele parecia incapaz de sustentar qualquer dialogo seguido. Sorria, respondia por sim ou por não, e era tudo. Aquele H�rcules, com o esp¡rito de um garoto de oito anos, me produzia uma impressão estranha. 1 Suchilov +ornou-se pois minha ordenan�a. Eu não o procurara nem escolhera. Foi ele esponfaneamenfe que se ligou a mim, nem me lembro mais quando nem como. Pos-se a lavar minha roupa branca: havia por +r6s das barracas um grande tanque, onde os defen+os faziam a sua barrela, em finas disposfas especialmente para esse fim. E afora a la- vagem, Suchilov arranjava meios de me prestar mil outros pequenos servi�os; preparava-me a chaleira, corria a dar meus recados, arranjava as coUsas de que eu precisava, le-. vava o meu casaco para o remendão, engraxava-me as bofas quatro vezes por mes. E fazia isso tudo com zelo, com afã, como se se tratassem sabe Deus de que obriga�ões! Em resumo, ligara inteiramente a sua sorte ... minha e +ornara ...s suas costas tudo que me concernia. Por exemplo, não d~Öria nunca: "Voce +em tantas camisas; seu casaco esfã rasgado. . . " e sim "Nos temos agora tantas camisas; nosso casaco est rasgado. . . " Eu vivia pois sob os seus cuidados e evidentemente ele considerava aquilo a finalidade da sua vida. Como não exercia nenhuma profissão, so de mim po- deria esperar alguns copeques. Pagava-lhe tanto quanfo podia, - isfo 6, umas frisfes moedas de cobre, uma miseria; entretanto, jamais o vi mal satisfeito. 9e não poderia viver (1) Na Siberia consome-se o ch fortemente comprimido, sendo vendido em for- m4 de "tablette~". (N. de H. W#

RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 97 sem servir �ilguem. e me escolhera, suponho, porque eu era mais indulgente que os outros e mais justo ao lhe avaliar os ganhos. Era um desses homens que não conseguem nunca libertar-se da rriiseri,-, �¡aqueies que por uma moeda de cinco copeques se fazem guardas de ma¡dane, - que podiam ficar durante horas inteiras imoveis, na antecamara gelada, escutando qualquer ruido vindo do pafio, ou a chegada do maior, e que, em caso de disfra�ão, perdem tudo e respon- dem com as proprias costas. J falei dessas criaturas. Sua caraferistica e a atitude humilde, a falta completa de perso- nalidade; desempenham sempre e em qualquer lugar um papel de segunda e mesmo terceira categoria. A na+ureza O,-; criou assim. Suchilov era um pobre diabo, inteiramente irresponsavel, humilde como um c5o a�oitado, embora nin. guem lhe ba+--sse: devia ter de nascen�a aquele ar. Sempre senti do por ele. Não o conseguia olhar sem sentir uma inexplicavel impressão, - inexplicavel ate mesmo para mim. Nunca pude +ambem faz�-lo conversar. Ele não sabia exprimir-se: ara-lhe um esfor�o penoso escutar e dar resposta, e animava-se quando, para acabar, a gente lhe pedia para correr a algum lugar ou fazer qualquer cousa. Acabei por me convencer de que so um mandado lhe poderia dar algum

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prazer. NSo era nem alto nem baixo, nem feio nem bonito, alourado, levemen+e picado de bexigas. Nada se poderia dize de definido a seu respeito senão (tanto quanto era possivel julgar) que ele pertencia a mesma ra�a de espiri+os -de Siro+kine-, e essa convic�ão nos fora inculcada pelo seu ar de toleima irresponsavel. Algumas vezes os outros presos o debicavam contando que, durante a marcha para a Sibe- ria, ele se "frocara" por uma blusa vermelha e uma moeda de um rublo. O que provocava as risadas, era o infimo pre�o da venda. "Trocar" e +ornar o nome de algum outro condenado, e por consequencia a sua sorte. Por mais mons- fruoso que o fato pare�a, nem por isso deixa de ser neal; no meu tempo, esse costume vigorava ainda com toda a for�a, entre as colunas de deportados, consagrado pela#

98 DOSTOIEVSKI 1 tradi�ão. A principio recusei-me a crer, mas depois rendi- me a evidencia. E~s como se passavam as coisas: um comboio se põe a caminho; ha nele uma grande variedade - presid¡arios, con- denados as minas, simples deportados. Em qualquer lugar, perto de Perriri, por exemplo, um for�ado procura se "frocar" com um outro. Vamos que seja um Mikhailov qualquer, con- denado por assassinio, ou outro crime capital, a um grande numero de anos no presidio, cousa que evidentemente lhe desagrada. Suponhamo-lo um homem astuto, inescrupuloso; imediatamente procura encontrar no comboio algum indivi- duo simplorio, abordavel, sem defesa, cuja condena�ão seja branda, - por exemplo, as minas duranfe alguns anos, ou a deporfa�ão para alguma aldeia, ou mesmo o presidio por pouco tempo. Enfim, acaba por descobrir um Suchilov. Suchilov, servo de nascimento, foi condenado apenas a de- porfa�ão. Ja +em mil e quinhentas versfas nas pernas e nem um copeque no bolso, porque � claro que os Suchilovi jamais trazem consigo um vintem. Caminha, embru+ecido, exhaus- to, em geral mal alimentado, sem nem ao menos qual- quer cousa para mastigar, frazendo sobre si apenas os far- rapos do umforme, - pronto a servir seja para o que for em troca de alguns cobres. Mikhailov insinua-se ao seu lado, trava conversa, conquista-lhe a amizade, e, afinal, na pa- rada. paga-lhe um trago. Chegou o momenfo de lhe propor a troca: "Eu me chamo Mikhailov-, vou para o presidio; isto e, não e propriamente o presidio, � a se�ão -especial; 16 não ha trabalhos for�ados, mas coisa diferente, muito melhor". A proposi+o da se�ão especial, hoje supressa, devo dizer que muitos altos funcionarios, ate mesmo em Pefers- burgo, ignoravam ao certo o que ela significava. Locali- zava-se nalgum recanto longinquo da Siberia, compunha-se de poucas pessoas, (no meu tempo cerca de sessenta de- tentos) de forma que era dificil acompanhar-lhe o rasfro. Depois de minha liberta�ão, enconfrei pessoas que conhe- ciam muito bem a Siberia, porque haviam servido Ia, e que

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souberam por meu in+ermedio da exis+encia da se�ão espa- RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 1_ 99 cial. o cOdigo contem apenas seis linhas a seu respeito:#

"Esperando que se organizem na Siberia trabalhos fo r�ados especiais, fica anexada a essa casa de deten�ão uma se�ão igualmente especial, desfinada a delinquen+es mais perigo- sos.11 Mesmo os de+en+os dessa se�ão não sabiam se ela era +emporar¡a ou perpetua. Diziam: "Não temos +ermo inclicado; esperamos apenas a organiza� o dos trabalhos for- �ados especiais; isso quer dizer: sera por pouco tempo. 11 Nem Suchilov nem ninguern do combõio sabia qualquer cousa a respeito dessa se�ão, salvo falvez Mikhailov, que fora enviado para Ia, e cujo horrendo crime ia lhe propor- cionara +r�s ou quatro mil a�oites: dizia-lhe o faro que o lugar não poderia ser grande cousa. Suchilov, ao contrario, ia apenas para uma aldeia, so isso. "Queres trocar comigo?" Suchilov, cora�ão singelo, meio tonto a cheio de reco- nhecimenfo para com Mikhailov que o obsequiara, não se atrevia a recusar. Alias, ia ouviu dizer que aquilo se faz com frequencia, que nada tem de ex+raordinario. E aceita: aproveitando-se da simplicidade do camarada, Mikhailov lhe compra o lugar por uma blusa vermelha e uma moeda de um copeque, que tem o cuidado de lhe entregar diante de testemunhas. No dia seguinfe, Suchilov ia não esta b�bedo, mas novamente o embriagam; ali s, +orna-se dificil voltar aftas do trato: o rublo ia foi bebido, e a blusa vermelha não tardou nada em acompanha-lo. "Não queres mais? então devolve o dinheiro!" De onde tirara dinheiro o pobre Su- chilov? Se não quiser devolver o rublo, +era o arfei (2) que o obrigar6 a isso, porque reina severidade, em +ais casos. Ademais, toda palavra dada deve ser marifida, - e a regra do arfei, que vela por isso: um delinquen+e não +er6 repouso, ficara com a vida in+oleravel, ser6 atormentado, talvez ate morto. Com efeito, se uma umca vez o arfei desse mostras de indulgencia, +ais trocas não se poderiam realizar. Se fosse poss¡vel renegar uma promessa e desmanchar um ne- gocio depois de recebido o dinheiro, quem. então, cumpriria (2) Espede dP comit� de vigilancia e dire�ão formado entre os deportados. (N. de R. Q ) O#

100 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 10 os acordos? Em suma, a coluna inteira toma o negocio

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a sua conta, e, por essa razão, se mostra impiedosa. En- fim, Suchilov se apercebe que ia n3o pede voltar afras, que suas suplicas são inuteis; resolve concordar sem restri�5es. Anuncia-se o caso ao comboio inteiro, e se houver neces- sidade, da-se uma gorjeta aqueles que poderiam falar demais. Que importa alias aqueles miseraveis que o presi- diario seja Such¡lov ou Mikhailov? Podem muifo bem ir para o diabo todos os dois, se assim o querem[ E depois de receberem a gorjeta, o jeito que t�m e calar a boca. Na parada seguinte, a hora da chamada, quando chamam Mikhailov, Suchilov responde: "Presente!" quando chamam Suchilov, Mikhailov responde: "Presente!". Continua-se o caminho e a troca esta feita. Em Tobolsk, os depor~ados são escolhidos: "Mikhailov" vai para a colonia, e "Su- chilov", com forte escolta, +orna o -caminho da se�ão espe- cial. ... nenhum protesto e mais poss¡vel. Alias, que pro; vas se poderiam apresenfar? Quanfos anos se arrastaria o processo? Que novo castigo sofreria o desgra�ado? Onde arranjaria fes+emunhas? Se as encontrasse, elas se recusa- riam a depor. E por fim de contas, eis como, a troco de uma blusa vermelha e de uma moeda de um rublo, o pobre Suchilov esta instalado na se�ão especial. Os defe~fos o levavam na +ro�a não porque trocara de personalidade com o outro, mas porque eram geralmente desprezadas fedas as pessoas que se deixavam embrulhar. Zombavam dele porque recebera pela troca apenas uma blusa vermelha e um rublo, - indeniza� o irrisoria. Em geral a troca se opera mediante quantias relativamente elevadas, - algumas dezenas de rublos, as vezes. Contudo o pobre Suchilov, +ão nulo, +ão apagado, tão insignificante, não po- deria senSo ser levado a ricliculo. Vivemos muito tempo juntos, Suchilov e eu. Pouco a pouco ele se ligou a mim, e eu tomei o habito de o ver ao meu lado. Um dia - nunca o perdoarei a mim proprio - apesar de ter recebido dinheiro de minha mão, ele não fez o que lhe pedira, e tive a perversidade de lhe dizer: "Suchilov, voc� s0 presta para receber . dinheiro!" Ele não respondeu, correu a fazer o que eu queria, mas ficou subita- me-,~te triste. Passaram-se dois dias. Eu não poderia supor que ele houvesse tomado tão a peito as minhas palavras. Sabia que um defento, An+one Vassiliev, o atormentava con- finuamen+e, cobrando-lhe uma divida rifima. "Decer+o. pensei, Suchilov precisa de dinheiro e não se atreve a vir pedir-me". No fim de +r�s dias, perguntei: "Suchilov, voc� queria me pedir uns cobres afim de pagar a Anfone Vassi- liev, não? Torne!" Eu estava na tarimba, e Suchilov de pe, a minha frente. Parecia muito comovido com a oferta que#

lhe fazia e surpreso por me haver lembrado do seu aperto - principalmente porque, na sua opinião, nestes Ulfimos tempos, ele ia me +ornara excessivo dinheiro emprestado, e não ousava receber mais nada. Olhou as moedas, fitou- me, e de repente deu meia volta e saiu. Tudo aquilo me surpreendeu muit¡ssimo. Fui procur6-lo e o encontrei Ia, atras das casernas. Estava encostado a pali�ada, a ca- be�a e os bra�os apoiados a uma estaca. "Suchilov, que

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houve?" perguntei-lhe. Ele não me olhou, e grandernenfe surpreso, vi que estava prestes a chorar. "Alexandr Pe- trovi+ch, voce pensa. . . - come�ou com voz tremula, ten- fando evitar o meu olhar - pensa que eu ... que e por di- nheiro. . . e eu. . . eu. . . eu ... ah!" Dizendo isso, voltou- se para a estaca, e com tanto es+ouvamento que bateu com a cabe�a, e se p"s a solu�ar. Era a primeira vez que eu via um for�ado chorando. Tive muito trabalho para o con- solar. Depois disso, Suchflov mosfrou-se ainda mais zeloso que antes no meu %õservi�o" - caso isso ainda fosse possivel; cuidava-me, mas por sinais quase impercep+iveis verificava que ele ainda não me pudera perdoar aquela censura. Entretanto os outros o cobriam de escarneos, faziam-lhe picuinhas a respeito de tudo, injuriavam-no as vezes rude- mente, e ele vivia com todos em bons termos, sem se ofender nunca. Como e dificil conhecer um homem, mesmo depois de longos anos de vida em comum!#

102 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 103 Eis porque o presidio não me apareceu, de entrada, no seu verdadeiro aspecto. Eis porque, ia o disse, embora en- carando tudo com +ão avida a intensa aten�ão, não me apercebi de inumeros fatos que se passavam sob o meu nariz. 50 os mais aparentes me impressionaram; mas como eu os considerava sob um �ngulo diferente, eles fambem não me podiam deixar na alma senão uma sensa�ão de peso, de tristeza, de desespero. O que contribuiu muito para esse estado de espiri+o, foi o meu encontro com A ... v, defento, chegado pouco tempo antes de mim, que me produziu uma impressão particularmente atroz, logo' ap6s meu ingresso na prisão. Tinham-me, no entanto, prevenido de que o en- contraria Ia. Ele me envenenou aqueles primeiros dias ia de si tão penosos, e por +ai modo agravou meus sofrimentos morais, que não poderei ficar calado a seu respeito. Era o exemplo mais repugnante de baixeza, de avilta- mento em que pode cair um hornem; mostrava ate que ponto a gente pode matar dentro de si. sem luta e sem remorsos, qualquer sentimento de honra. Esse A. era o jovem fidalgo ao qual ia aludi, e que, por amizade a Fedka, a ordenan�a do major, servia de espião na caserna. Posso resumir-lhe a his+6ria em poucas palavras. Antes de acabar os estudos, ele rompeu com os pais ' assustados por seus desregra- menfos. e deixou Moscou por São Pe+ersburgo. La, afim de obter dinheiro, não recuou nem diante de uma sordida dela�ão. Explico-me: possuido pela sede desenfreada, in- saciavel, de prazeres bestiais, obteve dinheiro vendendo a vida de dez homens. A capital. seus caf�s, seus botequins, suas casas suspeitas, o seduziram de tal maneira que, a des- peito da in+eligencia que inegavelmente possuia, ele se arris- cou a essa insensata empresa. Foi rapidamente desmasca- rado: e como sua denuncia falsa comprometia pessoas ino- cen+es e era um escarneo as autoridades, condenaram-no a dez anos de presidio. Ele ainda era muito jovem - estava apenas no inicio da vida. Era de crer que +ão pavoroso castigo o comovesse. lhe despertasse no intimo uma resis-

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fencia qualquer, lhe provocasse uma crise. Mas ele aceitou sua nova condi�ão sem o menor pejo, sem mesmo a menor repugnancia; não se revoltou moralmente, não se mostrou sens¡vel senão-ao pavor do trabalho, a obriga�ão de dar adeus aos seus h bitos de liberEno. NEo via no fi~ulo de · for�ado senão a possibilidade de ampliar o campo das suas vilanias e baixezas. "Se temos que ser um gale, sejarrio-lo f de todo. E quando a gente e um for�ado, tem direito de rastejar pelo chão, sem pudor." Era essa, literalmente, a f sua concep�ão da vida. Evoco como um fenomeno aquela repugnante criatura! Vivi varios anos entre assassinos, ceie- -rados confessos, libertinos, mas garanto que nunca +esterriu-#

nhei queda moral mais completa, corrup�ão mais total, bai- xeza mais cinica. Tinhamos entre n6s um parricida de ori- gem'nobr,e, - ia falei nele, +ambem - todavia pude me convencer por meio de muitos fatos e palavras de que ate mesmo esse individuo era incomparavelmente mais elevado e mais humano do que A.. Durante todo o periodo de minha 11 ¡ reclusão, esse desgra�ado jamais foi senão um peda�o de carne com dentes e ventre, e com uma sede insaciavel pelos prazeres mais sOrc¡licios; era capaz de tudo, desde que nao 1 1 corresse nenhum risco. Não exagero de modo algum. Es- fudei A. profundamente, e reconheci nele um especime com- pleto da animalidade que não ¢badece a nenhuma norma, a nenhuma lei. E que repulsa me causava o sorriso eterna- mente escarninho daquele monstro, daquele Quasimodo moral! Al s, alem da sua asfucia e da sua infeligencia, aquela fera possuia certa beleza, um pouco de ins+ru- �ão e algumas capacidades! Não - antes o incendio, antes a fome e a peste do que a presen�a na sociedade dum indi- viduo de +ai especie! Ja contei que no presidio todos se depravavam tanto que a espionagem e a denuncia flores- ciam ... solta e a ninguem infamavam. Pelo contrario. os defentos se mostravam muito mais amaveis com A. do que conosco- Os favores que lhe dispensava o nosso maior b�bedo, davam-lhe valor e impor+ancia aos olhos dos demais. Ele afirmara ao maior, entre outras cousas, que sabia pintar, fazer retratos (aos defentos contava que era#

104 DOSTOIEVSKI tenente da guarda); o maior liberou-o do trabalho e o mandou escoltar a, sua casa, afim de lhe aproveitar os falenfos. Vendo- se Ia, A. se acamaradou com Fedka, a ordenan�a, que tinha uma ex+raordineria e- 5 temente sobre o presidio inteiro. E A ... v passou enfão a fazer at� relaforios a nosso respeifo, a pedido do proprio maior,.que nas suas horas de bebedeira o esbofeloava, o

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injuriava, lhe chamava de espião, de sabujo. Muitas vezes, depois de o espancar, o maior se insfalava numa cadeira e ordenava a A. que continuasse o retrato. Nosso maior, a despeifo de o considerar um pintor nofavel, quase um Brul- lov (3) (pois ouvira falar nesse mestre), achava-se todavia no dineito de lhe bater no rosfo, - porque "por melhor pinfor que sejas, esfas no presidio, e mesmo que fosses Bruilov em pessoa, nem por isso eu deixaria de ser o +eu chefe, e de fer o direito de fazer de ti o que en+endess.e". Ufilizava-o afe para lhe tirar as botas e carregar o seu vaso noturno. En- frefanto, demorou muifo fempo a convencer-se de que o miseravel não possuia nenhum falen+o arfisfico. O refrato arrasfou-se quase um ano in+eiro. O maior acabou por adi- vinhar que o ludibriavam e compreendeu que. longe de ficar pronto, em cada se�3o ficava o refrafo mais diferente. Zangou-se, sovou o pintor, e o devolveu ao servi�o pesado. A. tinha bastantes motivos de queixa: sentia saudades dos dias de vagabundagem, dos presentinhos, das sobremesas furtadas a mesa do maior, do seu Fedka querido e da boa vida que levavam os dois na cozinha. Depois da queda de A., o maior deixou de perseguir o defenfo M., contra quem o canalha o irritava incessanfe- menfe pela razão seguinte: no momento em que A. chegara ao presidio, M. vivia so, e presa de desespero, Nada tinha em comum com os oufros gales, e os olhava com horror, com repugnancia. Não reparava nem observava neles nada (3) Pintor russo (1799-1852) descendente de uma familia de huguenotes fran- ceses (Bruieleau). Representante do academicismo rom�ntico, gozava nessa epoca um renome que nos parece hoje bastante injusto. Seus retratos ali s são muit¡ssimo su- periores aos seus quadros hist¢ricos. (N. de H. M.) RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 105 que o pudesse afrair, odiava-os em vnz de se aproximar deles a�ao - e era pago na mesma moeda. � espantosa a sifu ...#

desses homens- M. ignorava a causa,que trouxera A. ali, ,enquanfo A., adivinhando com quem irafava, lhe cjar£n- tiu logo que esfava no presidio não inculpado de dela�ão falsa, mas em virtude do mesmo delito que acarretara a pena de M.. O pobre M. alvoro�ou-se por encontrar en- fim um companheiro, um irmão. Duranfe os primeiros dias, supondo que o outro deveria sofrer muifo, frafou-o, conso- lou-o, deu-lhe os seus Ulfimos vin~ens, f�-lo comer separado, partilhou com ele os seus obiefos mais indispensaveis. Mas A. lhe +ornou aversão, desde logo, justamente por causa dessa generosidade do outro, do seu horror a qualquer bai- xeza, da sua falta de indenfidade consigo proprio. E tudo aquilo que, nas suas primeiras confidencias, M. lhe revelara sobre o presidio e o chafe, assim que teve um momento

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propicio, A. se apressou em o fransmifir ao maior. O maior tomou odio a M., e se não fosse a auforidade do governador, teria decerto dado cabo dele. E A., não so não mostrou nenhuma confusão quando mais +arde M. lhe descobriu a feionia, como a+6 procurava encon+ra-lo para o escarmen+ar com o seu sorriso ironico. Esse feito lhe causava uma ale- gria visivel. Muitas vezes M. me fez reparar nisso. Aquele infame canalha fugiu fempos depois, em companhia de um outro for�ado e um vigilan+e-, mais alem falarei dessa aven- fura. Quando cheguei ao presidio, ele se pOs logo a me rodear. pensando que lhe ignorava a hisforia. E, repito-o, envenenou os primeiros dias da minha esfada na prisão, e me aumentou o desespero. Horrorizava-me ante a igno- minia na qual me via mergulhado. Supunha que ali não ha- via senão sordidez, abje�ão; mas estava enganado: e que eu julgava todos os oufros presos pelo exemplo de A.. Durante os fres primeiros dias não fiz outra cousa senão me arrastar pela fortaleza, ou esfirar-me na farimba. Enf re- ~uei ao defenfo que me fora indicado por Akim Akimitch a fazenda destinada a me costurarem camisas, (pagava ai- 9#

106 DOSTOIEVSKI gumas moedas por camisa feita); depois, guiado sempre por Akim Akimifch, arranjei um colchão dobradi�o de feltro, forrado de pano, delgadiss¡mo, e um travesseiro recheiado de 15, duro demais para quern r30 esfava acosfurnado a ele. Akim Mimi+ch dispendeu bastante esfor�o para me arranjar isso tudo, e com suas proprias mãos cosfurou-me um coberfor, feito de farrapos da esfamenha dos umformes, resfos de ca - sacos e cal�as gastas at� ao fio que comprei de varios deferi- fos. Quando completam certo tempo, os umformes se for- riam propriedade dos for�ados, que imediatamente os reven- dem no proprio presidio; por mais rota que pare�a uma roupa velha, não deixa de render qualquer cousa, mudando de dono. Aquilo tudo me espantou muit¡ssimo. Era o meu primeiro confacfo real com o povo. Eu me +ornara de repenfe fão da "Plebe" fão "pres¡diario" quanto eles todos. Seus ha- bitos, suas opiniões, seus cosfumes, +ornavam-se por assim dizer os meus, pelo menos pela forma e pela lei, mesmo que -não os partilhasse na realidade. Tinham-me prevenido, e eu sabia o que esperar; mas não ficaria mais surpreso nem mais envergonhado se nada houvesse esperado daquilo, antes. A realidade produz uma impressão muito diferente daquilo que s0 conhecemos por ouvir dizer. Suporia euPiamais, por exemplo, que farrapos sujos, que trapos velhos pudessem fer algum valor? Entretanto, ufilizava-os para fazer uma coberta! � difi~il explicar como e o pano com o qual ves- tem os for�ados. Aparentemente, parece 13, burel. esfame- nha de soldado espessa e grosseira; mal a genfe o vesfe, se desfia e se fura lamentavelmente. Davam-nos umformes novos todos os anos, e durante esse lapso de tempo era com

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esfor�o que o conservavamos. O defenfo frabalha, carrega pesos, a roupa se gasfa e se rasga muito depressa. So reno- vavam as nossas peles de carneiro de fres em fres anos; con- tudo, tinham que nos servir de capa, de coberfor e colchão. Embora uma pele de carneiro seja s61ida, algumas delas, espe- cialmenfe no fim, consfifuiam apenas um £nico remendo. Quando atingiam os fres anos, embora usadas ao maximo possivel, valiam ainda uns quarenfa copeques. Algumas, RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS mais bem conservadas, chegavam a sessenta e setenta co- peques, qua . rifia elevada, para o presidio. 107 O d;nhe;ro +ambem - ~... fiz a isso uma r pida referen- cia - tinha um valor extraordinario. um poder assustador.#

Pode-se afirmar que um preso possuidor de alguns recursos sofre dez vezes menos que aquele que nada tem. Quando o governo fornece tudo, para que se quer dinheiro? � assim que a nossa adminisfra�ão raciocina. Entretanto, repito-o, se os defenfos fossem privados da faculdade de possuir al- gum dinheiro, enlouqueceriam; ou morreriam como frioscas (embora "providos de tudo") ou, então, enfregar-se-larri aos piores desmandos, uns por desespero, outros para mais depres- sa serem punidos e aniquilados, e desse modo mudarem, de qualquer fo~rma, o curso do proprio destino ("mudar de sorfe" � a expressão t�cnica). Se depois de ganhar alguns copeques, suando sangue e agua, ou depois de obter o di- nheiro por alguma as+ucia excepcional ajudada muitas vezes pela fraude ou pelo roubo, o defen+o se põe a gastar ...-toa, com o descuido de uma crian�a, isso não quer dizer - em- bora o pare�a, ... primeira vista - que ele não sabe o pre�o do que ganhou. O gale +em -pelo dinheiro uma avidez que vai at� -ao espasmo, ate ... obnubila�ão do juizo; se quando se diverte o afira ... direita e ... esquerda, como cavacos sob o cepilho, � para se apropriar de algo ainda mais precioso. E que cousa � essa, mais preciosa para ele do que o dinheiro? A liberdade, ou pelo menos a ilusão da liberdade perdida. Os for�ados são grandes sonhadores. Falarei disso mais tarde; ia, porem, que a palavra sonho me caiu da pena, posso afirmar que ouvi condenados a vinfe anos me dizerem em tom perfeifamenfe calmo, frases desta natureza: "Espera um pouco, quando eu acabar meu tempo, se Deus quiser, então vais ver..." A id�ia +raduzida pela palavra "de+en- +o" e o homem privado do seu livre-arbitrio. Mas quando esse homem gasta o seu dinheiro "faz o que quer". Apesar das testas marcadas a fogo, das grilhetas, do muro odiado que lhe fira a vista do umverso e o fecha como um animal#

108 DOSTOIEVSKI

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feroz na jaula, - ele pode obter aguardente, isto e, um prazer pelo qual incorre em castigo severo. Pode arranjar uma mulher, e, ...s vezes, (embora nem sempre) subornar os vigilan~es, o inv lido, ou mesmo o sub-oficial, que farão vista grossa ante sua infra�ão a disciplina. Pode at� - e adora isso - pavonear-se diante dos colegas, isto e, persuadi-los, como se persuade a si proprio,-de que e livre, - embora por fempo, Ilimifado. Tem necessidade de supor e de fazer supor que sua liberdade e sua iMporfancia t�m um alcance infinitamente mais extenso do que parece, que ele tem liber- dade para se divertir, para fazer barulho, ofender os outros af� obriga-los a se meterem debaixo do chão, se lhe der na veneta. ~Enfim o desgra�ado procura convencer-se e convencer os outros daquilo que sabe impossivel. Dai vem provavelmente, mesmo entre os defenfos sobrios, essa feri- dencia para a gabolice. para a temeridade, para um cOmico, um ingenuo exagero da propria personalidade, ainda que aquilo, para eles proprios, não passe de uma miragem. To- dos esses prazeres, afinal, comportam um risco - mas pro- porcionam uma ilusão de liberdade. E que e que não se da pela liberdade? Qual o milionario, que vendo-se estrangu- lado por um no corredio, não trocaria todos os seus milhões por uma golfada de ar? O pessoal da administra�ão se espanta ...s vezes quando, depois de varios anos de vida sossegada, um defento - no- meado ate "monifor" gra�as a sua boa conduta '- sem ne- nhum pretexto plausivel, como levado pelo demonio, se poe a fazer asneiras, a beber, a aifercar, a cometer ate mesmo cri- mes capitais, como falta de respeito aos superiores, es- fupro, assassinio, e+c. . . Espan+a-se, e no entanto a causa daquela explosão subita, que ninguern esperaria de tal in�- viduo, provem talvez de uma insidiosa magoa, da saudade, de uma angustia instintiva, de uma necessidade de afirmar o seu eu humilhado, deixando transbordar cegamente todo o seu odio, af� ao paroxismo, ate ao furor, af� ao espasmo da epilepsia. Assim, talvez, procede o homem que desperta RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 109 i 1 fechado vivo num caixão, esmurra a tampa do ca+afalco e mune todas as suas for�as para o despeda�ar. Não reflete, não procura convencer-se de que foclos os seus esfor�os serão inu+eis, oois a razão absolutamente não intervem nesses casos. � precis o ainda considerar que qualquer manifesta�ão de per- sonalidade, partindo de um for�ado, 6 qualificada como crime: pouco lhe importa, pois, a extensão do desastre cau- sado por aquela repentina revela�ão que faz de si proprio. Se a dissipa�ão, a orgia, j representam um risco, pode-se#

muito bem arriscar tudo de uma vez, ir ate ao fim, at� ao crime. Basta apenas come�ar, basta o homem embriagar-se. Depois disso, nada mais lhe serve de barreira, nada mais o retem. Eis porque seria melhor não levar ao desespero esse homem. Representaria a franquilidade para todos. Sim - como, porem, o conseguir?#

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vi O primeiro mes (continua�ão) por ocasião de minha chegada ao presidio, possuia eu algum dinheiro; mas trazia comigo, apenas, uma pe- quena quanfia, com receio de que a confiscassem. Por seguran�a, colara algumas notas na encaderna�ão do meu Evangelho, £nico livro 16 admitido. Esse livro, com o dinheiro escondido dentro, me fora dado em Toboisk por alguns deportados que, exilados ia ha dezenas de anos, se finham habituado a vor em cada "desgra�ado" um ir- mão (1). Ha na Siberia pessoas cuja umca preocupa�ão e ajudar fraternalmente os "desgra�ados". Inquietam-se, so- frem por sua causa como se se tratasse dos seus proprios (1) O romancista se refere aos insurrectos de dezembro de 1825, conhecidos pelo nQme de "d�cembrist�is". (N. de H. M.)#

112 DOSTOIEVSKI a filhos; sentem por eles uma compaixão desinfeiressada. Devo dizer, aqu¡, algumas palavras a respeito de um encontro mei com uma dessas pessoas. Na cidade onde ficava o nossc presidio, morava uma viuva, Naihalia ivanovna com quem � claro, nenhum de nos poderia estabelecer rela�ões. Essa mulher parecia haver consagrado a vida a socorner os exilados, e, principalmenfe os for�ados. Teria, por acaso, sofrido na sua familia uma desgra�a igual a nossa, algum ente querido,Seu feria recebido castigo id�ntico? Ignoro-o, mas sua felicidade consistia em fazer por nos tudo que lhe esfava ao alcance. Pouco, alias, porque era paup�rrima. E, en- frefanto, no`s, os encarcerados, senfiamos que do oufro lado dos muros da fortaleza vivia uma amiga fiej. Ela nos fazia chegar noticias para nos muito imporfarifes. Quando deixei o presidio, com destino a outra cidade, tive oporfunidade de a visifar. Vivia num fim de rua, em casa dum parenfe prOximo. Não era nem mo�a nem velha, nem bonifa nem feia; não se poderia sequer adivinhar se era infeligente ou edu- cada. Notava-se apenas, em cada um dos seus afos, uma bondade infinita, um desejo irresistivel, de servir, de aliviar, de ser agradavel. Tudo isso se lia nos seus olhos bondo- sos e meigos. Passei em sua casa quase um serão todo, junfo com alguns companheiros. Ela nos fitava os olhos, ria quando riamos, partilhava das nossas opiniões, e esfor�ava-se ao m - ximo para nos obsequiar da melhor maneira possivel. O ch foi servido com uma merenda e alguns doces. Via-se bem que, se possuisse ela alguns milhares de rublos, a sua maior felicidade seria reconfortar os nossos camaradas que ficaram

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no presidio, alivia-los. Na hora da despedida, deu-nos como recorda�ão umas cigarreiras. Ela propria os ;ecorfara em papelão, e colara por cima - sabe Deus como! - papel colorido, desses que cobrem os compendios de aritm�tica usados nas escolas (falvez houvesse realmenfe utilizado uma arifrnefica). Em +orno, por elegancia, pusera um estreito friso de papel dourado, comprado decerfo na loja para esse fim. "Os senhores fumam, nSo e mesmo? Então isfo aqu¡ talvez lhes sirva," d,;s-se-nQs ela timidamente, como se pedisse RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS ~ 4 .1 J 113#

desculpas pela modicidade do presente. Alguns pre+enden G6 o li eouv¡ dizer) que o mais elevado amor que possamo f~` P-~C n0550 PrUrno, não passa dum imenso egoismo. Poi não compreendo absolutamente que qualidade de egoism poderia ditar a conduta daquela mulher! Embora não fosse nada rico ... minha chegada ac presidio, não me podia zangar deveras confra alguns for�ado que me lograram quase que no primeiro insfanfe, e volfavarr cinicamente a pedir dinheiro emprestado segunda, ferceira E af� quinfa vez. Mas, devo reconhec�-lo francamenfe, o que me vexava e que todas aquelas criaturas, com suas ingenuas asfucias, me +ornavam sem duvida por um folo e zombava de mim precisamente porque eu lhes dera o dinheiro pela quinta vez. Supunham que ma enganavam com suas men- +iras, e pensavam que não era mister se consfrangarem co- migo; e se, ao confrario, eu os houvesse repelido com dureza, feria cerfamenfe conquistado a estima geral. Contudo, por mais que me irritasse, não conseguia recusar: minha irrifa�ão provinha justamente da inquiefa�ão que me assaltava, em rela�So a atitude que deveria manter para com eles. Eu sentia, compreendia, naquele meio infeiramen+e novo para mim, que me encontrava em plena noite, e que a vida e im- possivel nas trevas. Era, portanto, imperioso que ma prepa- rasse. E, para isso, eu resolvera agir fraricamenfe, deixan- do-me guiar por meus senfimenfos ¡nfimos e minha conciencia. Enfre+anfo, sabia fambem que tudo isso não passava dum aforismo, a que diante de mim se apresentava a mais desco- nhecida das experiencias pr ticas. Assim, ao lado das pequenas preocupa�ões referenfes a minha instala�ão na caserna, (preocupa�ões a que ia me referi e nas quais era guiado por Akim Akimi+ch), ia pos- suindo-me uma angustia cada dia mais atroz. "A casa dos mor+os", repetia eu, olhando, afraves do crepUsculo, para a porta da caserna. os for�ados que volfavam do trabalho e

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que vagueavam pelo , pafio, indo e vindo dos alojamentos para as cozinhas. Pelas atitudes e pelas caras, esfor�ava-me por lhes adivinhar os carac+eres. Passavam e repassavam diante#

DOSTOIEVSKI de mim, com a testa franzida ou simulando uma ruidosa ale- gria. (Esses dois aspectos são os mais frequentes, e podem mesmo caraterizar o presidio). Praguejavam ou falavam simpiesmente entre si, ou então se aTraSiavam, como para mergulhar em medita�5es solitarias, uns com o ar tranquilo, calmo, outros com jeito abatido e displicente, e alguns (af� mesmo Ia) com ar fafuo, o bone dum lado, a pele de : L carneiro atirada a um ombro, o olhar insolente e escarn ri o, o sorriso cinicamente zombeteiro. "Agora, e este o meu ambiente, e esta a minha sociedade, medifava; quer eu o queira quer não, e aqu¡ que devo viver." Tinha vontade de interrogar Akim Akim¡+ch a respeito deles. Gostava muito de tomar cha em sua companhia, afim de me sentir menos s0. Diga-se de passagem, durante esses primeiros dias o cha foi praticamente a minha £nica alimenta�ão. Akinn Akimifch não recusava nunca os convites, e preparava, ele proprio, o misero samovar de lata, utensilio improvisado que M. me emprestara. Ado�ava em geral um copo de ch (pois Akinn ate copos possuia!) em silencio, cerimoniosamente, depois be. bia-o dum trago, agradecia, e imediatamente voltava ... con- fec�ão do meu cobertor. Mas o que eu tinha necessidade de saber, ele não me podia comunicar; não compreendia por que me interessava tanto pelo cara+er dos for�ados que nos cercavam: escu+ava-me com um sorriso finorio, que ainda hoje me recordo. . . "Não, não devo perguntar nada; cada um tem que fazer sozinho as suas experiencias", refle- +ia eu. No quarto dia, do mesmo modo como na manhã em que me trocaram a grilhefa, os for�ados, bem cedinho, se reu- niram em duas fileiras no pafio, em frente ao corpo da .guarda, perto da porta de entrada. Diante e por tiras deles esfendiam-se duas ordens de soldados, de armas embaladas, baionetas caladas. Qualquer soldado +em direito de atirar num defenfo, se este faz men�ão de se evadir. Em compen- sa�ão, fica responsavel pelo firo, se não o deflagrou em caso de absoluta necessidade. Acontece o mesmo nos motins dos for�ados; mas quem ousaria fugir na frente de todo o mundo? RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 115 Um oficial de engenharia, diretor dos trabalhos, apa- receu em companhia de alguns sub-oficiais e sapadores da mesma arma, designados como moni+ores. Fez-se a cha- mada. Os de+en+os que trabalhavam na oficina de cos- tura partiram antes dos outros: esses alfaiates do presidio#

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nao dependiam da engenharia. Depois deles, foram-se os que tinham oficio, e afinal chegou a vez dos simples ta- refeiros, uns vinte homens mais ou menos, entre os quais me encontrava. Aftas da fortaleza, sobre o rio gelado, havia dois velhos barcos (propriedade do governo), que era preciso desmontar para lhes aproveitar pelo menos a ma- deira. Alias, esse material não valia nada, pois a madeira era barafissima na nossa cidade, rodeada de imensas fio- restas. Mandavam para Ia os for�ados umcamente para os impedir de cruzar os bra�os; e, como eles o compreen- diam muito bem, empreendiam sempre essa tarefa com mo- leza e apatia. Sucedia cousa muito diversa quando o +ra- balho tinha uma razão, uma finalidade, sobretudo quando os nossos homens conseguiam obter uma tarefa de+ermi- nada! Imediatamente se animavam. e, embora não deves- sem receber nenhum proven+o pelo labor feito, pude cons- +atar quanto se esfor�avam para o concluir depressa e bem: e que entrava em jogo o seu amor-proprio- Mas nessa Iqbu+a a que me refiro, feita mais por formalidade que -por necessidade, seria dificil pedir uma tarefa: era preciso portanto lidar ate o rufar do tambor, que, as onze horas da manhã, anunciava a volta. O nosso grupo inteiro se dirigiu para a margem, num filinfar de grilhetas, porque elas. embora escondidas sob a roupa, produ7iam a cada passo um som claro e breve. Dois ou +r�s homens foram apanhar no deposito os ufensilios indispensaveis. Eu caminhava com eles e me sentia mais animado: enfim, ia ver com meus olhos em que consistiam os trabalhos for�ados; e como seria que eu, que jamais utilizara al minhas mãos no trabalho, iria me sair da em- preitada?#

116 DO,5TO I EVSK I Recordo o.,9- mais infimos detalhes dessa manhã. Em caminho encontramos um sujeito de barbicha, q!je se de- me teve e rgulhou a mão no bolso. Imediatamente um de- tento se destacou do grupo, tirou o gorro, recebeu a es- mola - cinco copeques, - e voltou les+amente ao seu lugar. O homem se persignou e continuou o caminho. Na- quela mesma manhã os cinco copeques foram gastos na compra de kalafchi, partilhados igualmente entre todos. No nosso grupo. uns se mostravam sombrios, facitur- nos, outros indiferentes, inertes, outros conversavam apa- ficamenfe. Um de nos, ate, francamente elegre, cantava e dansava em caminho, fazendo a cada salto ressoarem os ferros. Era aquele mesmo preso atarracado que na manhã de minha chegada ao presidio brigara com o outro for�ado que pretendia ser um 11(agari. Chamava-se Skura+ov, e en- toava uma cantiga agradavel, da qual , me recordo do estribilho: "Eu estava no moinho

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"quando me casaram "sem me consultar". SO lhe faltava uma balalaica. Seu ex+raordinario bom humor teve o condão de irritar alguns dos companheiros, que deram largas a sua indigna�ão. - Para com esses lafidos! rosnou um for�ado que não tinha nada com a hisforia. - O lobo s6 sabe uma cantiga e, assim mesmo, ele a imita! Não e a-+oa que vem de Tula! disse um dos mal- humorados com sotaque da Ucrania. - Tenho muita honra em ser de Tula, respondeu ime- dia+amen+e Skura+ov. Mas voces de Polfava cheiram a galuch¡lti - ainda +em a goela cheia de galuchkR (2) - (2) 'Os habitantes de Tula são acoimados de ladrões; devem sem d£vida essa reputa�ão aos operarios (recrutados ... for�a por toda parte) das c�lebres forjas fun- dadas por Pedro o Grande na capital da provincia. Os de Poltava são extremamente gulosos de um bolo de carne a que chamam galuchiki, muito semelhante ...s nossas alm"ndegas. São muito comuns essas zombarias entre os naturais das diversas provincias. (N. de H. M.) A DOS MORTOS RECORDA�õES DA CAS 117 #

- Mentiroso! E tu, sabes a que e que cheira o teu focinho? Decerto cheiravas os teus tamancos! - E agora o diabo Q ceva com balas de rifle! acres- cen+ou um terceiro. - Vou contar a verdade a voces, rapazes, responde Skuratov. Fui um menir·o mimado... E deu um leve suspiro, para significar que a sua ecluca- �ao efeminada o fazia sofrer. Depois, dirigindo-se a todos, continuou: - Se bem me lembro, fui educado muito bem; criei-me com "mã"e melada" e " descom porta". (Skurafov estropia- va deliberadamen+e as palavras "marmelada" e "compo+a"). Hoje, meus irmãos t�m estabelecimento em Moscou, vendem pasteis de brisa e es+So riqu¡ssimos. - E tu, que e que vendias? - Vendia de tudo. Quando recebi os primeiros du- zentos ... - RuUos? Ser possivel? in+orrompeu~ um -curi'õso, saltando quase, ao ver falar em quantia tão grande. - Não, mano velho, não foram duzentos rublos, foram duzentos a�oites. Ah, Luka, Luka! - Dobra a lingua-, v� Ia se me podes chamar de Lu¡�a; chamo-me Lu¡�& Kusmifch, replicou ofendido um preso pe- queno e magro, de nariz pontudo. -s- Sim, Luka Kusmifch, e que +e leve o diaboi ...

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- Sim, Luka Kusmifch, mas tu me deves chamar "+io Kusmi+ch". - Diabos +e carreguem a fi e ao teu flo! Não adiar+a nada +e contar cousa nenhuma. E eu que estava sendo deli- cado contigo! E então pessoal, não pude demorar muito Umpo em Moscou; eles me obsequiaram gentilmente com quinze a�oites de knuf e me mandaram para ca. Então ... - Que e que tinhas feito? observou um defento que ouvia com aten�ão. - Não fa�as quarentena, não bebas no gargalo, não te metas a engra�ado .............3 E, por isso, amigos, n o me era b#

118 _DOSTOIEVSKI possivel fazer fortuna em Moscou. E eu que queria tanto enriquecer! Nem posso dizer quanta vontade Enha! Muitos se puseram a rir. Skurafov era uma dessas cria- turas bem humoradas, desses gaiatos que acabam Obrigando a rir todo o mundo, ate os mais tristes, e em troca não re- cebem senão desaforos. Pertencia a um tipo de for�ado nofavel e muito singular, do qual ~alvez ainda me ocupe. - Sim, e agora podes ser esfolado como uma zibelina, retrucou Lu¡�a Kusm¡fch. So tua roupa dava bem uns cem rublos! Skura+ov usava com efeito a n---lgnisgasta, a mais remen- ciacia, a mais rapacia (Ias peles de carneiro; de todos os lados lhe pendiam farrapos. Ele olhou-a de alto a baixo, com ar indiferente porem atento: - E verdade, concordou, mas em compensa�ão minha cabe�a vale em ouro o que pasal Quando me despedi de Moscou, o que ainda me consolou foi ter minha preciosa cabe�a em cima dos ombros. Adeus, Moscou, vivam teus banhos turcos e feus bons ares, viva ate a surra que levei! Quanto a minha pele de carneiro, paizinho, se não a olhares ela não te doera nos olhos! - Então a gente s¢ pode olhar para fua linda cabe�a? - E se ao menos a cabe�a fosse dele! debicou Luka' Kusmitch. Foi-lhe dada de esmola quando o comboio pas- sou por Tiumene. - Escuta , Skurafov. tinhas ao menos um oficio? - Oficio, ele? Era guia de cego, disse um dos irri- fados. E enquanto o cego cantava os benditos, ele unhava as codeas que lhe punham no prato! Com efeito, respondeu Skura+ov que não ligara m- porfancia a maleclicencia do outro. ainda tentei cosfurar bo- tas, entretanto não passei do primeiro par! - O que? E te compraram esse par? - Decerto! Passei-o a um sujeito que não respeitava

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pai nem mãe, nem tinha fernor de Deus ... mas foi casfi- gado: comprou-me o par de botas! RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 119 Romperam risadas em redor de Skuratov. - Aqui, uma vez, -experimentei de novo ser sapateiro, continuou Skurafov com imperfurbavel calma. Remendei as#

botas do lenen+e Sfepan Fioclorovi+ch Pomorfsev. - E ele ficou satisfeito? - Infelizmente não! Disse-me os piores desaforos e ain- me deu uma joelhada no lombo... Ficou uma fera! meus cordeirinhos, que desgosto tem sido esta droga da Ai, da minha vida! "Depois de um bom momento "O marido de Akulina "Apareceu no patio... Cantarolava de novo, batendo o facão em terra e sal- fitando. - Oh, que idiofal rosnou o ucraniano. que caminhava a meu lado, lan�ando para Skura+ov um olhar de oclienfo desprezo. - Não vale nada, disse outro em fom definitivo. Não compreendi por que eles tinham raiva de Skura+ov, g%rem ia tivera fempo de observar que, ali, os homens alegres ozavam de um desprezo geral. O odio do ucraniano e dos outros parecia-me provir de algum ressentimento. Mas es- fava enganado. Tinham-lhe raiva porque se portava mal, porque carecia daquele ar de falsa dignidade' do qual se confagiam todos os for�ados, e que os impregnava ate a afg+a�ão. Em suma, segundo a expressão deles, Skura+ov "não valia nada". Entretanto, nem todos os engra�ados eram tratados como Skurafov e mais alguns. Mais de um, com efeito, se fazia respeitar; enquanto o bom rapaz, sem ma- licia, so colhia desdens, o gaiato que mosfrava os dentes e não consentia que ninguem lhe pisasse o pe impunha res- peito. Havia precisamenfe um engra�ado desse Ultimo fei- fio no nosso grupo, todavia so o conheci sob seu verdadeiro aspecto um pouco mais +arde. Era um camarada de ex- fer¡or bem agradavel, com uma grande verruga na face, e um rosto delicado e bonito, mas de expressSo muito co-#

120 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 121 , 1 mica. Chamavam-no o "Explorador" por ter outrora ser-

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vido nos batalhões de engenharia. Pertencia a se�ão es- pecial. Ainda falarei a seu respeito. Co-n+udo rem todos os for�ados "ser-lcs11 - er-~m +-go expansivos nem tão irri+adi�os quanto o homem da Ucra- nia. Alguns procuravam conquistar a proeminencia por sua habilidade no trabalho, pelo carafer, pela in+eligencia, pelo espirito. A muitos deles, com efeito, nSo faltava nem in- teligencia nem energ;a, para atingirem o fim visado, - isto �, renome e uma grande influencia moral entre os colegas. Essas especies de virfuoses eram muitas vezes inimigos fi- gadeis uns dos cu¡ios, e cada um sozinho criava ao seu redor muitos invejosos. Olhavam para os simples for�ados do alto da sua impor+ancia, e não sem desprezo; evitavam brigw inuteis, eram muito bem cotados, e de certo modo dirigiam os trabalhos. Nenhum deles discutiria com os ou- fros por causa de uma carifiga; não se rebai,,�avam a isso. Comigo, esses principes se mostravam de uma amabilidade absoluta, durante todo o periodo da minha defen�ão; mas fambem lac"nicos, - ques+So de dignidade, certamente. Te- rei que fai,,, dz3 novo sobre esses, aincia. Chegamos a margem. Em baixo, no rio, o velho barco a demolir estava preso no gelo. Do outro lado do rio, a estepe azulada se estirava, vazia e triste. Pensei que todo o mundo se iria atirar ao trabalho, todavia ninguem cuidava nisso. Alguns se sentaram numas vigas que por Ia rolavam; quase todos tiravam da bota uma +abaqueira - cheia da- quele espesso fumo siberiano que era comprado em folhas, a +¡rinia copeques a libra, - e um cachimbo curto de ma- deira de salgueiro feito no proprio presidio. Puseram-se a fumar, os soldados da escolta nos rodearam, em circulo, e come�aram a sua vigilancia com ar en+ediado. - Que ideia, desmanchar esse barco! resmungou um dos gales, sem se dirigir a ninquem. Sera que precisam de madeira? - Decerto quem se lembrou disso foi alguem que não +em medo de nos, retrucou um outro. - Para onde, diabo, irão aqueles mujiclues? indagou o que falara em primeiro lugar, sem mais pensar na sua pergunta e sem escutar a respos+a, apontando com o dedo, ao longe, um grupo de gen+e que caminhava em f*,Ia por sobre a neve imaculada. Todos, sem pressa, se volveram para o lado indicado, e, por desfasfio, cobriram de apodos os muiiques. Um dos passantes caminhava de modo muito engra�ado, afastando os bra�os e inclinando a cabe�a co- berta com um alto gorro de pele, redondo como um broa. - Olha, compadre, como � que o 'mano Petrovitch caminha! pilheriou um outro, arremedando a fala dos mu-#

jiclues. Coisa curiosa, embora metade deles fosse proveniente da aldeias, todos os for�ados olhavam por cima do ombro os camponeses. - Olha o de+ras, não parece que esta plantando nabos? - Aquele gordo? Esta com a moleira pesada: de- certo tem dinheiro demais! Todos ~desataram a rir, mas com um riso arrastado,

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sem, alegria. Nesse momento apareceu uma vendedora de kalafthi, alegre e esperta. Compraram-lhe os cinco copeques que o homem dera de esmolae dividiram a compra com toda a equidade. O rapaz que revendia os kalafchi na caserna adquiriu duas duzias e exigiu tr�s kalaMbi de comissão, em vez dos dois que habitualmente recebia. ,N mulher, porem, não lhe deu ouvidos. - Então, tu fambem vendes aquilo? - Aquilo o que? - Aquilo que rato n o rOi? - (Espera senvergonha! respondeu a vendedora com uma gargalhada. Enfim apareceu, com uma bengala ... mão, o nosso sub- oficial encarregado -dos trabalhos. - Que � que es+So esperando? Comecem! - Bem, Ivan ~veifch, d� ... gente uma tarefa! disse um dos monifores, erguendo-se lentamente do seu lugar. 10#

22 DOSTOIEVSKI - Não podiam pedir tarefa mais cedo? A tarefa agora e desmontar o barco.dos e caminharam sem pres Ergueram-se afinal os for�a os mon*lores sa para o leito do rio. Apareceram no grupo 1 - que o eram pelo menos no nome. Demonstraram que não se devia deswnchar o barco a torto e a direito, mas tanto quanfo fosse possivel conservar as fabuas, e, sobre- tudo, as costelas verticais, fixas por meio de cavilhas em todo o comprimento do barco - trabalho longo e fastidicso. - Em primeiro lugar, arranquem-me essa viga pequena! Vamos, rapazes! propOs um dos for�ados, quieto, pouco con- versador, e que at� então não dera um pio. E inclinando-se, segurou com ambas as mãos uma viga grossa, esperando au- xilio. Ninguern entretanto o ajudou. - Experimental Não a levantas sozinho, e mesmo que o urso do teu av" estivesse aqui, pão creio que a levan+assei rosnou alquem. - Mas então, minha gente, por onde se come�a*? ... continuou em tom lastimoso aquele que iniciara o trabalho. Largou a viga e se endireitou. - De qualquer jeito, fu, sozinho, não vais dar conta do trabalho. Não adianta +e fazeres de esperfo. - Não - sabe dar milho a Ires galinhas e est aqu¡ se fazendo de Sabido! Olhem esse anão! - Ora, ou�am, eu ia dizendo. . . tentou explicar o homem. - Então como �? Vou por voces debaixo de uma redoma, ou mando salgar a todos, durante o inverno? gri- +ou o sub-c,ficial, olhando com certo mal-,es+ar para aqueles vinte homens reunidos, que não sabiam o que fazer de si. Vamos, andem! Toquem com issol - A gente com pressa não faz nada direifo,.Ivan Mat- veifch!

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- E � por isso que esperas? Anda, Saveliev, � con- figo que estou f lando, lingua de frapoi est s esperando o que? Porque arregalas as olhos? Anda com isso! - Que e que eu posso fazer sozinho? RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 123 Marque uma tarefa, Ivan Mai^veitchi Ja disse que não h tarefa! Desmanchem o barco, -0 d.ei, IS Voltem! Andem! Puseram-se afinal a trabalhar, mas sem gos+o, sem je~fo. Era triste ver homens tão vigorosos aparentemente incapazes#

de dar conta daquele trabalho. Mal tinham come�ado a desfacar a primeira e a menor das costelas e ala se quebrou. "Quebrou-se soiinha", disseram como justificativa ao vigi- larife. Não se podia pois continuar daquele modo. E se- guiu-se uma longa discussão enfre os defenfos, acerca da maneira de frabalhar. Pouco a pouco, foram-se ouvindo insultos, e a cousa amea�ava ir mais longe. . . , O vigilante tornou a gritar, agitando o bastão, en-, juanfo outra trinca de novo se qu�brava. Verificaram então que falfavam machados, e que era preciso ainda frazer mais não- sei que utensilio indispensavel. Imedia+amenfe foram dois for�ados escoltados ate a for+a- leza; enquanfo esperavam, os outros sen+aram-se sossega- damente no barco, tiraram as +abaqueiras e os cachimbos e recome�aram a fumar. O sub-c,ficial cuspiu de raiva. - Sim, est se vendo que nenhum de voces ha de morrer de trabalhar! Que gente! que gente! bufou o ho- mem. Depois, com um, gesto impofente, retomou o cami- nho da forfaleza agitando o bastão. O clirigenfe dos trabalhos chegou uma hora ap6s. Escutou cairmamenfe as queixas dos presos, anunciou que dava quatro trincas para descavilhar sem quebrar, como tarefa, e, mais ainda, um bom peda�o do barco a desfazer; depois disso, poderiamos voltar. A farefa era pesada, mas ob, meu Deus! como se atiraram a ela! Ja não havia inercia, j não havia hesita�ão: ~ os machados enfraram a dansar. arrancaram-se as cavilhas. Os que não tinham machados, punham escoras sob as trincas, e vinte mãos pesando sobre elas simulfaneamen+e, as frincas saltavam do lugar direi- tinho, artisticamente, e para surpresa minha, absolutamente#

124 DOSiOIEVSKI infactas. O trabalho se adiantava rapiclamenfe. Todos, de chofre, pareciam aptos para a labuta. Ja não se ouviam

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pracias, j6 não se ouviam discussões inufeis; cada um sabia que gesto fazer, que conselho dar. Meia hora antes do rufar do tambor esfava feita a tarefa e os for�ados volfa- ram ao presidio cansados, mas satisfeitos. Aquela meia hora ganha sobre o tempo de servi�o os pusera, a todos, de, bom humor. Quanto a mim, fiz uma observa�ão curiosa. Por toda parfe onde eu me queria meter, para os ajudar, era afasfa- do; não servia em parfe nenhuma, i,ncomodava em +od4 parte, mandavam-me embora de foclo lugar, quase com in- sulfos. O pior esfarrapado, o mais rus+ico labrego que não se atrevia a dizer uma palavra diante dos companheiros mais desenvoltos, achava-se no dineifo de me atirar desa- foros se eu parava perto dele, e prefendia que o incomo- dava. Enfim um dos "O'espachados" me falou bru+alm,eri+e: - Não fiques parado ai! Para que vens te meter onde n5o es chamado? - Engole essa, aprovou logo um outro. - - Arranja um mealheiro e vai pedir esmola para a consfri~So da igreja e a clerrubada da taberna! Aqui não feris nada que fazer! bradou um ferceiro. � desagradavel ficar de pe, com osbra�os balan�ando, quando fodos trabalham. E, enfrefanfo, quando quis real- menfe me afastar para o outro exfremo do barco, recome�a- ram os gritos. - Na verdade, bons ajudantes nos digol Mal a genfe lhes enfrega um servi�o, caem fora! Tudo aquilo era feito de prop¢sito. Sentiam prazer em humilhar o karine que eu era, e aproveitavam a oca- siso. Concebe-se agora por que a primeira pergunta que eu fiz a mim propric, foi para saber como me compgrfaria com aquela gente. Pressentia que feria com eles frequen- tes choques claquela especie. Apesar disso resolvi não ai- +erar nada no plano de conduta que me tra�ara, e qua sa- RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 125 ,b¡a correto. Eis no que consistia esse plano: portar-me o mais simplesmente possivel, man+er-me independente, sriSà fazer o menor esfor�o para me aproximar deles, mas +am- bem não os repelir se ma procurassem; não lhes recear nem as amea�as nem o odio, agir como se deles não me aperce-#

besse; não lhes chegar perto em cerfos momentos, nem me cumpliciar de certos costumes e h bitos seus; em suma, não procurar esporifaneamenfe a sua camaradagem. Eu adivinhara ao primeiro olhar que eles ficariam me despre- zando de inicio se eu agisse de modo diverso. Porque, na opinião geral, (soube-o mais +arde com certeza) minha origem nobre me autorizava a arrotar imporiancia a frente dos outros, - isto �, procurar considera�ões, mostrar-me susceptiv¡pi e exigente, -e não fazer nada com os meus dez dedos. Esse pro�edimento me feria granjeado insultos abertos, e o ¡nfimo respeito de foclos. Porem era papel

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que nao me convinha: nunca assumi para com eles as manei- ras que eraM consideradas adequadas a um barine, mas em compensa�ão jurei a mim propric, nunca rebaixar, por uma concessão, minha educa�ão e meus pensamentos infimos. Se me houvesse misturado com eles, se me houvesse proposto a granjear as suas boas-gra�as por maio de familiaridades e condescendencias, concluiriam imediafamente que eu agia assim por covardia, e me tratariam de acordo com essa con- clusão. A ... v não era exemplo que se pudesse seguir: denun- ciava-os ao maior, e era temido por todos. Por oufro lado, eu não desejava, como os polacos, isolar-me numa frieza e numa pol ` idez altivas. Via muito bem naquele momento que eles estavam com raiva porque eu procurava me +ornar ufil, em vez de fazer caretas e me queixar. C~erfo embora de que mais +arde seriam obrigados a mudar de ideia a meu respeito, não deixava en+refan+o de me sentir mortificado: pelo simples fato de desejar trabalhar e não saber como o fazer, ia lhes dava o direito de me desprezarem. a Quando volfei ' tarde, roido da fadiga, vi-me +ornado por uma pungente tristeza. "Quan+os milhares de dias id�n-#

126 DOSTOIEVSKI Òcos tenho diante de mim, sempre os mesmos, todos imufa- velmenfe umformes?" cismava. Em silencio, sob a noite, que caia, ou vagueava sozinho pelas casernas, ao longo da pa!i�ada, quando o nosso Charili: correu ao meu encontro. Char¡t era o cSo do presidio, pois h cães de presidio, 1 como os ha de companhia, de bateria ou de esquadrão. , ,Vivia al¡ j6 h6 tempo indeferminado. considerando a todos ..c~õmo seus donos e alimentando-se dos restos da cozinha. ,-,. :, Era - um mastim bem grande, ainda não muito velho, com pelo preto mosqueado de branco, cauda peluda, olhos Aipifeligentes. Ninguem lhe fazia uma festa, ninguem sequer ,, . , , 'se prestava aferi�ão. Logo ao primeiro dia eu o conquis- 1~,I'~4,1~,J,` tara dando-lhe uma codea de pão: e enquanto eu o acari- --- , , i, .- Java, ele não se mexia, olhava-me com carinho e sacudia ... cauda para me mostrar o prazer que lhe dava. Como se ,1 . haviam passado alguns dias sem que ele me visse, a mim que, ,L depois de anos, fora a primeira pessoa que lhe fizera uma 1 . 1 festa, Charik correu em busca de mim, no meio dos outros, . e descobrindo-me por t s das casernas, saltou -ladrando,, alegremente ao meu encontro. Não sei o que se passou,, comigo, mas abr¡ os bra�os para o cão, segurei-lhe a cabe�ai en quanto ele punha as duas patas sobre meus ombros e m procurava lamber o rosto. "Esta aqui o amigo que me manda o destino!" pensava eu. E todas as tardes, durante essas primeiras semanas de ,sofrimento, assim que chegava do trabalho, corria para +rãs das casernas; vinha aos saltos, ladrava, cumprimentando-me,

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eu lhe segurava a cabe�a, cobria-a de beijos, enquanto um sentimento suaviss¡mo, e ao mesmo tempo um ~pungente amargor me apertavam o cora�ão. Lembro-me bem que me comprazia naquele tormento, sentia um estranho prazer 'em pensar q--e não me restava senão um amigo no mundo: o 6.orri, o'fie¡ ChariJk. 4#

N V t (14 U a 6 4 45p--l-W 9qkk 44. 400- Opp Novos conhecidos - Petrov confudo iam-se passando os dias, e, pouco a pouco, eu me habituava ...quela nova vida, cujas cenas cotidia- nas a principio me mortificavam tanto. Os acon- tecimentos, o ambiente, os individuos, tudo me deixava in- diferente. Parecia-me impossivel habifuar-me ...quela exis- fencia, e, entretanto, era mais que chegado o tempo de me habituar, uma vez que estava diante do inevitavel ... Dis- simulava minhas inquiefa�6es no recesso mais profundo da minha alma, i6 não vagueava mais como um tonto, não dei- xava mais que vissem a minha dor. Os olhares ferozmente curiosos dos for�ados ia não se-definham com a mesma fre- quencia sobre a minha pessoa, e diminuia a exagerada in- solencia com que me tratavam: eu fambem lhes ficara in- diferente, ��vsa que muit¡ssimo me alegrava. Eu ia e vinha#

130 DOSTOIEVSKI como denfro de minha casa, no presidio. Conhecia o meu lugar na tarimba, acostumara-me com coisas que supunha ,n3o poder acei+ar nunca. De oito em oito dias ia ao barbeiro para que me raspasse mefade da cabe�a; nos s - bados, duranfe o nosso periodo de repouso,, faziam-nos pas- sar um a um no corpo de guarda, (deixar de comparecer

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era motivo para puni�ão) onde os barbeiros do batalhão, depois de nos ensaboar a cabe�a com agua fria, raspavam- ,na sem do com navalhas cheias de mossas: so a lembran�a dessa tortura ainda hoje me arrepia. Todavia, depressa des- cobri um rem�dio para isso: Akim Akimifch me indicou um defen+o da se�ão militar que, mediante um copeque de pa- gamenfo, raspava a gente de acordo com o regulamenfo, usando uma navalha de sua propriedade, que consfifuia , o seu ganha-pão. Tinha varios clientes entre os for�ados, gen- te dura, que, porem, fazia tudo para escapar aos barbeiros oficiais. Chamavamos ao nosso colega barbeiro "maior" - mas nao sei em que poderia ele recordar o maior au- fenfico. Enquanfo escrevo estas linhas, revejo-c, menfalmen- te, ao "maior": rapagão magro e silencioso, talvez est£- pido, sempre enfregue a sua obriga�ão, fendo na mão uma correia na qual, noite e dia, afiava confinuamenfe uma nava- lha admiravelmente amolada: decerfo encontrara naquela -profissão a meta definitiva da sua existencia. Mos+rava-se francamente radiante quando alguern se vinha entregar aos seus cuidados; tinha sempre a navalha afiadissima, a agua de -sabão quente, a mão macia como veludo. A genfe via que ,ele tinha orgulho da propria pericia. Recebia com ar distrai- do a moeda ganha e parecia trabalhar mais por amor da arte que pelo dinheiro. A. passou mal um dia em que, ao fazer O seu relaforio a quem de direito, chamou imprudentemente o nosso barbeiro pelo apelido. O verdadeiro maior enfu- receu-se como um louco: - Então não sabes, crapula, o que e um maior? berrou, deitando escuma pela boca, e aplicando em A. um castigo a sua moda. Compreendes q que e um maior? E ~ncon, RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 131 cebivell Chamar de maior a qualquer presidiario imundo, e na minha presen�a! o S' A. seria capaz de entender aquele homem. Logo no primeiro dia comecei a sonhar com a liberfa-#

�ão. Minha ocupa�ão favorita ficou sendo confar o fem- pc, que me resfava a cumprir, de mil diferenfes maneiras. Não conseguia, pensar noutra cousa, e creio que todas as pessoas privadas de Rk>erdade agem da mesma maneira. Ignorava se os outros for�ados pensavam ou contavam como eu, mas logo ao primeiro dia, a inconcebivei leviandade das suas esperan�as me impressionou muito. As esperan- �as de um prisioneiro nada +�rn que ver com as esperan- �as de um homem livre. O homem livre pode esperar por uma mudan�a de sorte, ou pela realiza�ãQ de uma ambi�ão qualquer, porem Vive, age, e a vida real o arrasta sem cessar. Ja não acontece o mesmo com o prisioneiro. Admitamos que a vida da prisão, o presidio, +ambern � vida: mas seja qual for o for�ado, e sejam quais forem os anos de sua defen�ão, ele se recusa instintivamente a considerar sua sorte

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como positiva, definitiva, como fazendo parfe da sua exis- fencia. No presidio, qualquer for�ado sente que não "es+6 em sua casa", supõe-se por assim dizer em visita. Encara os vinte anos da sua pena 'como Se fossem umcamente dois; esta convencido de que aos cinquen+a anos, quando soar a hora da sua liberta�ão, sera fão jovem quanto agora, aos trinta e cinco apenas. "Ainda terei muito tempo bom a viver!" cisma ele; expulsa obstinadamente todas as dUvi- das, todos os +ristes pensamentos que o assaltam a esse res- peito. E af� mesmo os condenados a gal� perpetua, ate mesmo os da se�ão especial, +�m como certo que um belo dia vira de Pi+er (1) uma ordem que o mandara para as mi-- nas de Nerfchinsk, e a vida no comb¢¡o e bem melhor que no presidio, e depois, findo o seu tempo em Ner+chinsk, então! ... Escutei velhos de cabelos brancos raciocinarem assim. (1) Petersburgo. N. de K Q)#

132 DOSTOIEVSKI , Vi em Tobolsk homens chumbados a parede, ao lado do cafre, por uma corrente de um sachene (2) de compri- men+o. SSo punidos assim por algum crime horrendo, co- metido -Ia na Siberia apos a deporta�ão: e ficam ali cinco, dez anos. Eram na maioria bandoleiros de estradas. Um umco, que fora empregado não sei em que, aparentava um melhor a pecto; falava com um sorriso adocicado, um tom resignado e sibilante; mos+rou-nos a corrente, disse qual a maneira mais c"moda de dormir com ela. Era mesmo uma ave estranha! Todos se portam muito bem, e parecem de bom humor, embora estejam roidos pelo desejo de verem terminado o seu tempo na corrente. Para que? da-nos von- tade de perguntar. Mas então ele sair6 daquela masmorra sufocante, de fec+o baixo, em arcadas de tijolo, podera passear no pa+io ... Isso, apenas isso, porque jamais poder6 franspor'as portas do presidio. O preso sabe muito bem que os que estão acorrenfados ficarão Ia, que morrer3o pre- sos as grilhetas. Sabe-o, e, enfrefan , to, deseja ardentemen- te terminar o seu tempo nos ferros. iE, com efeito, sem essa esperan�a, poderia -um homem. ficar acorren+ado cinco, seis anos, e não morrer, não enlouquecer? Poderia ele re- sisfir,- realmente? Quanto a mim, eu compreendia que so, o trabalho me poderia preservar a saude e o corpo. A inquieta�ão moral perpetua, a irri+a�ão dos nervos, o ar mefifico das -casernas me teriam abatido completamente. "O air livre, a fadiga, o h6bi+o de carregar fardos pesados, - isto � que me salvara, pensei. H6 de me manter o vigor e a juventude ate o instante da liber+a�ão". Não me enga- nava: o trabalho e o movimento me foram muito ufeis. Vi com ferrcir um dos meus companheiros, ex-ficialgo, (3) con- sumir-se no presidic, como uma vela: entrara ao mesmo tem- po que eu, ainda jovem, belo e forte; quando saiu, era apenas um farrapo de homem, asmafico, encanecido, pernas tr�mu-

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las. "Não, dizia-me ou. olhando-o: quero viver e viverei". (2) A toesa russa; 1 m 98. (N. de R. Q.) (3) Duroy. Ver nota p gina 45. (N. de H. M.) RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS e 133 De inicio, durante longos meses, meu ardor no trabalho me granjeou, da parte dos for�ados, um grande desprezo, in-#

finitas indiretas, mas eu não me importava e ia alegremente para oncle me mandavam. queimar e moer alabastro, por 1 e exemplo. Esse oficio, um dos pr~meiros que aprend¡, '. muito facil. Alias. os oficiais de engenharia aliviavam o mais. que podiam as tarefas designadas para os barines e isso menos por inclulgencia que por esp¡rito de iusfi�a. issimo menos vi- Seria estranho exigir de um homem muiff Ö goroso e deshabifuado a labuta manual o mesmo esfor�o que ,se exige de um trabalhador. Essa "poupan�a", porem, era feita quase as escondidas, -porque eramos vigiadissi-'. mos. Com frequencia era a tarefa excessivamente penosa; e, então, os nobres sofriam duas vezes mais que os outros for- �ados. Eram em geral mandados para o alabastro tr�s ou quatro homens idosos ou pouco vigorosos; a eles nos re- umam, mas +inhamos como monifor um operario de verdade, que conhec~a o oficio. Durante varios anos seguidos, o nosso monifor foi sempre o mesmo, certo Almazov. individuo severo, trigueiro, magro, ia velho, calado e exigente no fra- balho. Desprezava-nos profundamente: como, porem, não gostava de falar. n3o se dava ao trabalho de nos passar des- composturas. O galpão no qual moiamos o alabastro erguia- se na margem escarpada e deserta do lrfych. No inverno, principalmente durante os dias escuros, a vista do rio e da outra margem longinqua provocavam uma grande nostalgia. Uma impressa . o despecla�adora de tristeza emanava daque- la estepe arida e vazia. Mas era ainda pior quando um sol )claro dardejava os seus raios sobre o imenso campo de ne- we; a gente sentia o louco desejo de se evadir para aquela planura dis+,,,.n+,e que come�ava na outra margem e se alon- gava em dire�ão ao sul, como uma toalha infinita, num es- pa�o de mil e quinhentas verstas. O silencioso, o severo Almazov punha-se a trabalhar; nos nos envergonhavamos porque nao o podiamos ajudar segundo as suas regras, e ele, contudo, nos dispensava muito de prop¢sito como se nos quisesse fazer sentir a nossa completa inutilidade. O :i#

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134 DOST61EVSKI trabalho consistia de inicio simplesmonfe em aquecer ~ o,," forno; depgis fraziamos alabas+ro suficiente para enchi 1 - lo. No dia seguinfe o alabastro estava infeiramenfe cal- cinado e era refirado do calor. Cada um de n6s fornava então uma pesada mão de pilão, enchia de alabasfro um, deposito ia destinado a esse fim, e punha-se a pilar. Não---, era'frabalho que oferecesse dificuldade. O alabastro, friave[,.' facilmenfe se esfarelava, e depressa se transformava num p branco e brilhanfe ... Faziamos um barulho fão grande, a, pilar, que nos proprios nos admiravamos. Quanfo mais au-a menfava a fadiga, mais leves nos senfiamos, o sangue nos subia ao rosto, a circula�ão se acelerava. Almazovenf�io nos , . . olhava com a condescendencia que a genfe fem com crian- cinhas, punha-se a fumar o cachimbo com ar indulgente, mos,,, ,não podia deixar de rosnar assim que abria a boca. Ali s, ,procedia desse modo com foclo o mundo; no fundo, falvez- fosse um homem bom. Ufilizaram-me depois para movimenfar a roda do forno; era uma roda pesada e grande, que exigia g~ande esforqp para ser girada, sobretudo quando o +orneiro (um sapador Oe engenharia) fabricava um balausfre de escada para algÇ funcionario, ou uns pes de mesa, o que exigia um +ronco de rvore quase inteiro. Nesses casos, um Unico homem não fes. ria for�a suficiente para girar a roda; devam-me erifão corino auxiliar o meu colega 13.. Fizemos esse frabalho varios anos seguidos, focla vez que havia qualquer cou , sa para fornear. 13. era um rapaz doentio e magricela, mo�o ainda, porem do- enfe do peifo. Chegara ao presidio um ano anfes de mim, com dois outros companheiros de inforfunio: um - um velhi- nho que vivia a rezar, (o que lhe conquisfara a estima dos for�ados) morreu durante minha reclusão; o outro, robusto o corajoso adolescente de cara vermelha, durante a caminhada (quer dizer duranfe setecentas verstas), carregara as costas o seu companheiro 13. que caira de fadiga, depois de me#4 jornada: valia a pena ver a afei�ão que tinham um ao outro.' B. era homem de fina educa�ão, carafer nobre e generoso, , mas a doen�a o tornava irrifadi�o. Nos junfos consegu¡a-#

ILECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 137 mos fazer girar tf roda, e o exercicio nos interessava: eu o considerava excelente para a saude. Do que mais gostava era de limpar a neve depois das borrascas, cousa frequente, no inverno. Bastava um dia para que os turbilhões de neve cobrissem as casernas, as vezes ate metade das janelas, ou então inteiramente. Assim, quando o furacão passava e reaparecia o sol, enviavam-nos em bando (aconfecia at� irmos todos) desimpedir os edificios escondi- dos sob anevasca. Davam a cada um de n6s uma p6 e nos marcavam uma tarefa, +ão grande que parecia impossival dar conta dela. Todos se enfregavam alegremente ... labuta. A

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neve quase em p6, ainda não umda, mal gelada na superficie, elevava-se em montes enormes que iamos atirando por parto, transformada em nuvens de poeira reluzente. As p s se en- terravurri facilmente na espessura brilhante que luzia ao sol, e os defentos gostavam daquele trabalho. O ar fresco, os movimei,fo- , lhes estimulavam as risadas, os ditos, as pilherias; atiravam bolas de neve uns nos outros; mas ao cabo dum instante os mais ajuizados, que detestavam o riso e a alegria, punham-se a gritar e a anima�ão. terminava geralmente em desaforos. pouco a pouco se foi ampliando o c¡rculo das minhas re- 11 la�ões. Por mim proprio eu não as procurava: deixava-me estar, inquiefo,,+risfe, desconfiado. A cousa se fazia sozinha. O primeiro que me veio visitar foi Pe+rov. Falei "visitar' o chamo a aten�ão para o voc6bulo. P * e+rov pertencia ... se�ão especial, que ocupava a caserna mais afas+ada da mi- nha. Nenhum la�o, evidentemente, poderia existir entre n6s, nada +inhamos nem poderiamos absolutamente ter em comum. Entretanto, nos primeiros tempos, Pe+rov assumiu a obi-lga�ão de ir diariamente me procurar no meu alojamento, ou então me deter durante os passeios, quando eu andava por +ras dos edificios, o mais longe possivel de +odos os olhares. Suas visi+as a principio me eram desagradaveis, mas de W modo se portou ele, que em breve Ia as considerava uma dis ¡ra�ão, embora ele não fosse nada comunicativo. De estatura media,#

138 DOSTOIEVSKI a consfifui�ão robusta, movimenfos faceis, com um rosto p�ili- do bastante agradavel, pârnulos salienfes, olhar crtrevido, denfes pequenos, brancos e muito umdos, ele mascava in- cessantemente um pouco de tabaco, rolando-o entre a gen- giva e o labio inferior, - habito cultivado por muitos dos presos. Parecia mais jovem do que o era: tinha quarenta anos e a gente lhe dava frinfa. Falava comigo, sem o me- nor consfrangimenfo, e se portava como meu igual, mostran- do todavia composfura e delicadeza. Se, por exemplo, no- fava que eu desejava estar s¢, deixava-me dentro de dois minutos, 'agradecendo-me a simpatia que lhe fesfernunhava, - cousas que decerfo jamais dissera a alguem, desde que estava no presidio. E, curioso, essas nossas rela�ões se man- tiveram assim, durante varios; anos, sem nunca se fornarem mais ¡nfimas, embora Pefrov me tivesse sincera afei�ão. Ain- da hoje, eu não seria capaz de definir exatamente o que vinha ele procurar ao meu lado, e qual a razão que me pro- porcionava a honra cotidiana da sua visifa. Aconfecia-lhe roubar-me, "sem querer", no entanto, e quase nunca me pe- dia dinheiro empresfado: não era portanto o inferesse que o impelia. Nem sei bem por que, mas ele n3o me dava a impressão de viver no nosso presidio, e sim longe, na cidade - fal era o seu jeito de aparecer como que por acaso, para saber no-

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ficias, indagar do que era feito de mim, pedir informa�ões sobre a nossa maneira de viver. Chegava sempre com o ar de alguem que deixou suspenso um negocio impor+anfe. ,E confudo, não se apressava absolufamen+e a sair. Seu olhar, um pouco afrevido e zombeteiro, tinha uma estranha fixidez. Olhava de longe, por sobre os objetos, como para distinguir o que ficava para alem das cousas. Parecia sempre disfraido. Algumas vezes eu r)ergunfava a mim proprio: "Para onde ir Pefrov quando sair daqu¡? Onde o esperam com fanfa impaciencia?" E ele ia apenas para um dos alojamenfos ou uma das cozinhas, e Ia, aproximando-se dum grupo que con- versava, escutava com aferi�ão, exaltava-se, dava um aparte, depois calava-se de sUbito. Mas quer me falasse, quer fi- O I RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS V 1 139 #

casse em silencio, via-se claramenfe que se defivera de passagem, que tinha outros interesses � sua espera. O mais esfranho 6 que ele rigo tinha nunca a menor ocupa�ão: não absolufamenfe nada (afora o trabalho obrigatorio, e claro) não enfendia de nenhum oficio, não possuia quase nunca dinheiro, o que ali s não o enfrisfecia. E sobro que me fa- lava? Sua palestra era quase fão estranha quanfo a sua pessoa. Se me via a andar no patio, por fr�is das casernas, dava uma s£bita meia volfa para chegar ao meu lado. Ca- minhava sempre em grandes passadas, e aquelas meias volfas eram tão r pidas que davam a impressSo dum inicio de corrida: Bom-dia! Borri-dial Não estou atrapalhando? De modo algum! Escute. quero lhe fazer uma pergunta a respeito de Napoleão III. � parenfe daquele que esfeve, na Russia em 1812? (Pe+rov, antigo soldado, sabia ler e escrever). - Sim, � sobrinho. - E por que então o chamam de presidente? Como pode ser isso? Fazia sempre indaga�ões repentinas, como se realmente tivesse urgencia em se informar o mais rapidamente possivel sobre aquele assunto, fão importante que não poderia folerar nenhum afraso. Expliquei-lhe que especie de presidente era Napoleão, e acrescenfei que decerfo em breve seria imperador. - Como? Expus a cousa na medida do possivel. Pe+rov escutava com aten�ão intensa, o ouvido inclinado para mim, e com- preendendo tudo com grande rapidez. - Hum! Tambem queria lhe pergunfar, Alexandr Pe,

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frovitch, se 6 verdade o que contam, que h6 macacos do +a- manho de homens, com bra�os que tocam na ponta dos pes? - Sim, � verdade. - ~E como � que eles são? I#

140 DOSTOIEVSKI Dizia-lhe o que sabia a respeito. - E onde e que vivem? - Nos paises de clima quente, na ilha de Suma+ra. - Fica na Am�rica, não �2 La onde dizem que as pes- soas caminham de cabe�a para baixo? - Não e de cabe�a para baixo ... são os arifipodas ... 1 E eu lhe explicava o que são a America e os ant¡podas. Ele me ouvia com a mesma aten�ão, como se so me houvesse procurado para saber daquilo. - A prop¢sito, diga-me uma cousa: li no ano passado a his+oria da Condessa de Ia Valliere. Foi o ajudante Are- fiev que me empr�s+ou o livro. � his+oria de verdade ou in- ven�ão? O autor se chama Dumas (4). - � claro que e inven�ão. - Então afe a vista, e muito obrigado. E Pe+rov desaparecia. A falar verdade, quase nunca conversamos de outra maneira. Tomei informa�ões a seu respeito. Quando soube das nossas rela�ões, M. me advertiu: afirmou-me que se muitos for�ados lhe haviam provocado horror, sobretudo de inicio, nenhum (nem mesmo Gazine)- o impressionara fanfo quanto Pe+rov. - � o mais ousado, o mais fernivel dos bandidos, avisou- me -ele. � capaz de tudo, nada o defern quando quer sa- fisfazer o minimo capricho. Não hesifaria em o degolar, se lhe desse na veneta; sim, e homem para o assassinar, sem um esfremecimenfo, sem remorso algum. Suponho at� que � meio louco. Essa declara�ão me inferessou muito. Mas M. não foi capaz de me explicar as razões de tão implacavel conceito. E, cousa curiosa, depois disso avistei-me com Pefrov e con- versamos quase diariamente, porque ele na verdade se afei- �oara a mim, nunca eu o soube por que. Levava vida sossega-. da, não cometia nenhum ato repreensivel, e entretanto, (4) Engano talvez do Autor, porque Dumas não escreveu romance nenhum ~ esse t¡tulo. Decerto se trata dum p�ssimo livro de Mme. de Cenlis, "La Duche~se de Ia Valli�re" (1804), que foi traduzido com grande sucesso para o russo. Gogo) refere-se tambem a ele. V. "Almas Mortas". 1.8 parte, cap. X. (N. de H. M.) Ik RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 141

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cada vez que ele se aproximava, eu não o podia olhar nem lhe falar sem pensar que M. dissera a verdade, que Petrov era o homem mais fernivel, o mais intrepido, o mais dificil#

i i de dom~nar do presid*c infa*ro. E por que pensava eu isso? Não o sei absolufamenfe. Esse Petrov era precisamenfe o for�ado que quisera matar o maior, quando ochamararri para sofrer os a�oites. J confei que o maior - salvo por milagre, segundo a ex- pressão dos defenfos - refirou-se exatamente no momento que precedeu a execu�ão do castigo. Quando ainda era ho- mem livre, e soldado, Petrov foi espancado pelo coronel du- ranie uma manobra. Decerto j lhe haviam batido basfarifes vezes, antes, mas daquela vez Pefro~, não estava disposto a aturar pancadas, e se afracou com o coronel abertamente, a luz do sol, diante de toda a tropa em formatura. Ignoro os detalhes da hisforia, porque ele nunca a contou a mim. Toda- via, essas explosões onde a sua natureza real aparecia a nu eram raras; mosfrava-se em geral razoavel e pacifico. Suas paixões ardiam forfes, indornaveis, contudo uma pouca de cinza cobria aqueles carvões em brasa. Jamais observei em Pefrov, como ern inumeros outros for�ados, uma sombra de vaidade, de farifarronada. Brigava raramente, não tinha ami- zades com ninguem, salvo com Siroffine, e, apenas, quando dele precisava. Entretanto, vi-o desa 1 finado um dia em que lhe recusaram algo que reclamava. Seu antagonista era um condenado civil, Vassili An+owv, especie de hercules, mau, rixenfo, atrevido e nada covarde. Grifaram durante muito tempo, e pensei que a briga acabaria como todas as outras do mesmo genero, com simples bofetões, porque Pe+rov as vezes +ambem brigava a murros, como o derracleiro dos gales. Mas a cousa de subifo tomou um aspecto diferente: Pefrov ficou l¡vido, seus labios tremeram, azularam, a respira�ão fornou-se ofegante. Endireifou-se devagar, muito devagar, e sem ruido, (no verão gosfava de andar descal�o) aproximou- se de Anfonov. Instantaneamente o arruido da caserna deu lugar ao silencio: ouvir-se-la o vOo de uma mosca. Todos esperavam. An+onov saltou contra Pefrov, que ia não tinha o i I#

142 DOSTOIEVSKI mais cara humana ... Não pude suportar a cena e sal. Tinha certeza de que quando chegasse ... porta, ouviria o esterfor dum homem sangrando. Não houve nada, porem. Antes que Petrov o agarrasse, Antonov lhe atirou sem dizer palavra o objeto em lifigio - um misero farrapo. , Depois de dez minutos Anfonov se pos a praguejar, mas não muito, simples- mente por descargo de conciencia, para não derrogar habitos, para mostrar que não tivera medo. Quanto a Petrov, não concedeu -a minima imporfancia ...s pragas do outro, nem

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mesmo os ouviu. Palavreado não o inferessava; recuperara o farrapo da que carecia, guardara-o consigo, o resto pouco importava. Um quarfo de hora depois ele vagueava como de h6bifo, com ar sossegado, a procura de um grupo onde dissessem cousas interessantes, e onde pudesse dar um pai- pite. Tudo parecia inferessa-lo; e, entretanto, mantinha-se indiferente a tudo, e arrastava incessantemente a sua indo- lencia dum lado a outro do presidio. Poderia ser comparado a um desses operarios vigorosos, devoradores de trabalho, n¡as que se senta e se põe a brincar com crian�as, enquanto espera a tarefa. Jamais compreendi por que ele se deixava estar ali, por que não fugia. Pe+rov não hesitaria em se evadir - bastava apenas lembrar-se disso. A razão s6 go- verna entes como Petrov enquanto a vontade dorme dentro deles, porque quando desejam qualquer cousa, nada lhes serva de obs+aculo. Tenho convic�ão de que ele saberia fugir e enganar todo o mundo, e passar depois uma semana sem comer no meio da mata, ou nos juncais da margem do rio: mas, evi- denfemente, ainda não tivera nem o desejo nem a id�ia disso. Nunca observei nele nem um raciocinio sOlido, nem muito bom-senso. Gente dessa especie nasce com uma id6ia qual- quer que os atira dum lado para outro, sem que eles o enten- dam bem. Vagueiam assim, enquanto não encon+ram algo que lhes desperta uma violenta cobi�a; porem, chegado o mo- menfo, não regateiam riscos. & me espantava ...s vezes por ver aquele homem - que, para vingar-se duns a�oites, assas- sinara o coronel - suportar tão docilmente as varas. Porque ele era a�oifado foclei vez em que o apanhavam a introduzir f� RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS qt sa ' qual se aventurava de tempos em aguardente, empre a tempos, como todos os desocupados. Dobrava-se sem pro- testo para receber o vergalho, como se se reconhecesse cul- pado. De outra maneira, preferiria deixar-se matar a dei- xar-se- a�oitar. Espantava-me fambem que, a despeito da sua visivel afei�ão por mim, não se abstivesse de me roubar.#

Aquilo o assaltava como um acesso de tosse. Foi assim que roubou minha Biblia, que lhe pedira para guardar no meu lugar. Embora ele precisasse dar apenas alguns passos para me fazer esse favor, achou meios de descobrir um compra- dor, vender a Biblia e beber o dinheiro. Decerto tinha na- quele instante um violento desejo por bebida, desejo que era mister satisfazer de qualquer maneira. Nesses momentos, uma criatura como ele e capaz de assassinar um homem por uma moeda de vinte e cinco copeques, umcamente para obter vodca. Em qualquer outra ocasião, desdenharia cem mil rublos. Na mesma noite confessou-me o roubo, mas sem a minima confusão ou remorso, com absoluta indiferen�a, como se se tratasse dum acidente ordinario. Tentei ralhar com ele um pouco, porque a Biblia me fazia falta. Ouviu-me sem se zangar, calmamente, reconheceu que a Biblia e um livro utilissimo-, e lamentou, sinceramente, a perda que eu sofrera,

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sem, contudo, se arrepender do seu roubo. Olhava-me com tanta seguran�a, que parei com minhas censuras. Ele as to- lerara-, considerando certamente que por seu ato as merece- ra, que os desaforos aliviam a alma, que no fundo, porprn, um homem de juizo não pode se prendera fais.ninharias. Creio al s que ele me considerava como um garotinho, que nada entende das cousas mais simples deste mundo. Se, por exem- plo, lhe come�ava a falar de outra cousa que não fosse ciencia ou livros, ele me respondia, apenas por simples delicadeza, com algumas palavras rapidas. Muitas vezes perguntei a mim proprio o que o interessava nesses livros sobre os quais me interrogava. Acon+ecia-me, durante as nossas conversas, olh6-lo de vies para verificar se o homem não estava zom- 143 a#

144 DOSTOIEVSKI bando de mim. Mas não, escutava muito a serio, emb¢ra com uma aferi�ão pouco constante, o que ...s vezes me abor- recia. Fazia suas perguntas com clareza, com precisa*, e não se mosirava nunca nem surpreso nem embara�ado com as explica�ões que lhe dava. Sem duvida se convencera de uma vez por todas de que não deveria falar comigo como aos,oufros, e que, fora dos livros, eu de nada entendia. Tenho, contudo, certeza de que me queria bem, e isso sempre me admirou. Tomava-me por um rrwnino, por um homem incompleto, sentia em rela�ão a mim essa especie de compaixão que os fortes sentem pelos fracos? ... não sei Mas seus sentimentos, quaisquer que fossem, não o impediam de me roubar, e estou certo de que ele tinha pena de mim no momento em que perpetrava o furto. "Ora, afinal de contas isso o ensinar6 a +ornar conta das suas cousasi" diria talvez, na ocasião. Mas 6 possivel tambem que gostasse de mim justamente porque eu não sabia cuidar das minhas cou- sas. Declarou-me ate uma vez, como involun+ariamente, que eu tinha "a alma boa demais". "Voce 6 tão simples, +ao simples, que at� causa c16! Porem não se ofenda, Alexancir Petrovitch, acrescentou logo depois; disse isso sem m6 in- ten�ão." Individuos da especie de Petrov tem as vezes oporfuni- dade para aparecer bruscamenfo, totalmente, nos momentos de perturba�6es, de revolu�ão. Como não +em o dom da palavra, não são nunca inspiradores: são os executantes, fazem as cousas andar. Agem com toda a simplicidade e sem ruido: são os primeiros que se atiram aos obstaculos, sem reflexão, sem receio; jogam-se contra as baionetas, e cada um 'ap6s ele se precipitam cegamente ate junto ...s muralhas, onde em geral perdem a vida. Não creio que Petrov acabe bem: morrera um dia ou outro de morte violenta: isso ainda não lhe aconteceu porque não houve ocasião. !E quem sabe, afinal, se não lhe chegarão os cabelos brancos, e ele morre

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pacificamente de velhice, depois de vaguear pelo mundo sem destino? Entretanto, na minha opinião, M. não errava ao considerar Pe+rov o mais +ernivel habitante do presidio. 7: 4 O V Vill#

facinora 10 Luka ao � facil falar dos "facinoras", que alias eram tãoN poucos no presidio quanto em qualquer outra parte. Tem. aspecto de homens ferozes: e pensando nos horrores que lhes são atribuidos, a gente os evita. De inicio um sentimento irresistivel me obrigava a fugir deles.* Com o ,tempo, meu modo de julgar modificou-se muito, mesmo a respeito dos piores bandidos. Ha c.&fo individuo que nunca matou ninguem, contudo e mais de temer do que um outro cuja conciencia es sobrecarregada, por seis crimes. H6 de- litos que a gente dificilmente concebe, tal a estranheza da sua realiza�ão, e e por isso que afirmo que, no nosso povo, certos crimes tem as causas mais surpreendentes. � muito comum, por exemplo, este tipo de assassino: um mul¡que, um criado, um ar+esão, um soldado, at6 então vivendo sossegadamente e suportando com resigna�ão a sua sor+e-, de repente, como I I ,#

146. DOSTOIEVSKI se qualquer cousa se abrisse denfro de si, sente que a sua reserva, de paciencia acabou e enfia uma faca no peito do seu opressor ou do seu inimigo. E e esse o pgnfo de parficla de uma nova exisfenc~a. Daquele momenfo em dianfe o nosso homem perdera focla no�ão de medida. Da primeira vez matou o seu f irano, o seu inimigo; e um crime, porem com- preensiveLcuia causa e evidenfe; depois, ia não mafa inimi- go nenhum, mas o primeiro franseunfe que enconfra, e o que � pior, pratica aquela fa�anha por prazer, por causa de uma palavra aspera, um olhar desagradavel, para complefar a sua confa, ou simplesmenfe para confirmar o seu grito de

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guerra: "Torna cuidado, olha que vou passando!" Dir-se-6 um b�bedo ou um louco furioso. Uma vez que transp"s a linha fatal, parece comprazer-se com a id�ia de que nada mais lhe e sagrado. Parece que esta impaciente por saltar sobre qualquer lei, qualquer barreira, e gozar de uma li- berdade sem limites, duma liberdade fão desenfreada que a ele proprio apavora, deixando-lhe o cora�ao tremulo e parado. E senfe ali s que um castigo implacavel o aguarda. Suas sen- sa�ões lembram talvez a dum homem que, debru�ado no alto duma forre, sofre a vertigem da alfura at� querer se atirar dali, de cabe�a para baixo. As criafuras mais pacificas, mais insignificarifes, são as vezes presas desse delirio. Depois do primeiro impulso, compõem então uma atitude. Quan+o mais o homem se sente aviltado, mais se ergue, mais procura causar pavor. Goza aquele pavor, goza a repugnancia que provoca nos outros. � uma especie de desespero que o im- pele; arde por acabar com tudo, por ver resolvida a sua sina, por ser castigado, para não ter que carregar sozinho o fardo da sua iniquidade, o fardo esmagador do seu desespero. Cousa espanfosa: essa exalfa�ão o man+Bm em geral ate ao pelourinho: mas, então, desaparece, como se houvesse anfe- cipadamen+e marcado um prazo para findar. No pelouri- nho,.o homem se acalma repentinamente, anula-se, forna-se um farrapo; choraminga, pede perdão a +urba.' E quando afinal esta no presidio, ninguem diria que aquele chorão, aque- RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 147 le baboso, aquela criatura apavorada foi capaz de matar cinco ou seis pessoas. � claro que alguns dentre eles não se acalmam tão depressa. Conservam ainda certo ar de bravata, certa fa- fuidade: "Olhemque nSo sou bem o que imaginam! Tenho seis mortes nas costas". Todav ia acabam submetendo-se,#

de quaquer maneira. De tempos em tempos, consola-se, lem- brando-se das suas fa�anhas e dos desregramen+o¡ de outrora, dos tempos em que era -um "facinora"-, e se encontra um basbaque, diverte-se em se pavonear confandg-lhe os feitos passados. Procura, enfrefan+o, disfar�ar essa necessidadei de jactar-~e. E como se vigia, quanta prudencia usa, que re- quin+es de amor-proprio, que displicencia na narrativa, que sabia presun�ão no fom, na minima palavra! Onde fera ele aprendido aquilo tudo? Durante um dos compridos serões dos primeiros fempos de minha reclusão, deitado na farimba, desocupado e triste, escutei certa vez uma conversa entre eles: carecido de ex- periencia, +ornava o narrador por um celerado de alta enverga- dura, por uma,alma de bronze. e chegava quase a zombar de Pefrov. Luka Kusmitch, o - profagonisfa, sem outro motivo senao O capricho, fizera o "servi�o" com um maior. Luka Kusmifch era aquele homenzinho de nariz afilado a quem ia me referi. Embora fosse russo, nascera *na Ucrania, creio que na condi�ão de wrvo domestico. Emanava dele algo

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de dominador, altivo: lembrava um passaro de pequeno por- te, mas bem provido de bico e garras, visfo ser extraordina- riamente suscepfivel. Ali s os defenfos, que tinham farc? para homens, dedicavam-lhe precaria estima., Nessa noite, sentado a beira do cafre, ele cosia uma camisa, pois seu ofi- cio era costurar roupa branca. Tinha ao lado o seu vizinho de tarimba, Kobyline, rapagão forte, est£pido, porem afetuo- so e bom. Por causa da vizinhan�a, Luka frequentemente rixava com ele, a o tratava alfivamenfe, com uma ironia e um despotismo dos quais o pobre Kobyline não se apercebia.#

S 148 DOS T(ki EV-SK I -Nesse momento Kobyline tecia uma meia de 15% escutaAdO distraidamente Luka. Luka falava em voz alta e clara: que- ria ser ouvido por todos, mas fingia falar apenas a Kobyline. - Pois eu, mano, fui mandado de minha ferra Tch ... por vagabundagem, - come�ou, enquanto puxava a agulha. Faz muito tempo? indagou Kobyline. Quando amadurecerem as ervilhas, fara outro ano. Depois, chegando a K ... v, puseram-me na cadeia por uns tempos. Ao chegar, verifiquei o pessoal. Estava Ia. co- migo,uma duzia de rapazes, - todos da Ucrania, altos, fortes como uns touros. ~E tão quietinhos! E, alem disso, a co- mida não,valia nada. O maior manejava a rapaziada como queria. Fiquei com eles um dia, dois dias, e vi logo que tinham um medo danado do homem. Perguntei por que razão eles punham o rabo entre as pernas assim que viam aquele cretino. "Vai falar com ele!" foi o que me disseram, rindo na minha cara. Fiquei calado. Pois fiquem sabendo, pessoal, tinha Ia um sujeito engra�ado, continuou Lu¡�a aban-, donando subitamente Kobyline, para se dirigir a todos. Essa sujeito- contava como e que tinha sido julgado, que,6 que, tinha respondido ao juri, e como e que choramingara falando na mulher e nos filhos. Era um homenzarr...o, ia todo gri-~ salho. "E eu dizia: (ele que contava) Não, senhor, estou- inoc.ehfe! mas o diabo do filho de uma cadela continuava ei.~ creve que escreve ... E então (ele que dizia), então tão certo como eu estou inocente, tu vais +e estrepar, miseravel! E o bandido sempre na porcaria da escrita! Então fiquei louco (ele que dizia)" Vassia, me da linha. Esta est R_Ore. 1 - Pois vem da cidade, respondeu Vassia es+endendo-lhe o,novelo de linha. 1 - A linha que temos na oficina e melhor. Esta daqu¡ ~ * o novall¡do que traz; va Ia alguem saber de que marafona compra linha! continuou Luka erguendo a agulha para a luz,- a-Fim de a enfiar. I#

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F O 1 O I a", I RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS - Decerfo em casa da comadre delei - Decerto. - E então, que foi que aconteceu com o maior? per 151 guntou Koby1ine, que j6 estava complefamente esquecido. Luka s¢ esperava por isso. Entrefanfo,.não voltou ime- diafamenfe a hisforia, nem parecia mesmo presfar'afen�ao a Kob line. Primeiro enfiou vagarosamente a agulha, cruzou displicenfam ente as pernas e fornou afinal: - Tanto aperreei a rapaziada da Ucrania que eles aca- baram fazendo com que o maior aparecesse. Dp manhã, eu tinha abafado uma faquinha dum companheiro e a escondera, para o que desse e viesse. E o maior chegou feito uma fera. Eu então falei: "Escutem, voces que são da Ucrania, nada de rabo enfre as pernas!" Mas ia esfavam todos mor- rendo de medo. O maior veio aos gritos, bebedo como uma vaca: "Quem foi que me chamou? Que esfa se pas- sando aqu¡? � a mim que procuram? Sabem que aqui eu sou o fsar, sou Deus" - então, enquanto ele dizia que era o fsar, que era Deus, prosseguiu Luka - eu me adiantei, cofri o punhal na manga da blusa. "Não, Excelencia, sou eu que lhe digo.." e enquanto isso, ia me chegando de manso, perfinho, cada vez mais perfinho. . . "Não. não � possivel, Excelencia, como � que o senhor poderia ser nosso fsar e nosso Deus?" - "Ah, berrou o maior, então es tu o cabe�a?" - "Não, disse eu, e me aproximei ainda mais - não, Exce- Iencia, exisfe apenas um Deus Onipo+enfe, que esfa em focla parte. E quanfo ao nosso +sar, Excelencia, temos apenas um, e foi Nosso Senhor em pessoa que o colocou por cima de todos n6s. Esse e que e o nosso senhor, sou eu que lhe digo. E quanfo ao senhor, Excelencia, � apenas nosso maior, nada mais, e isso pela gra�a do fsar e dos seus meritos." - "O que? o que?" gaguejava o horriem; não podia mais nem falar, nem voltar a si. Isso mesmo!" repeti. E pluf! enferrei-lha o punhal af� o cabo, bem no meio da barriga! Foi uma furada e tanto! O desgra�ado caiu ali mesmo, s6 fez ciscar um pouco com os p�s. E eu atirei fora a arma a#

grifei para os rapazes: i

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"k#

152 DOSTOIEVSKI - Agora, meus pafricios, me apanhem aquele punhal t ..........................................1 Devo fazer aqu¡ uma ligeira digressão. Infelizmenfe as palavras "Sou o Deus aqu¡, sou o isar'', eram empregadas cjm muita frequencia, antigamenfe, por cerfos chefes milifares. Devem¢s reconhecer que hoje resfam poucos dessa especie, ou talvez nenhum. � preciso confessar fambem que * esses ,que se jactavam assim provinham em geral da tropa. Os galões de oficial os enchiam de vento, firavam-lhes a cabe�a do lugar. ' Depois de muitofempo, de pra�a, viam-se de re- pente promovidos a oficiais, a fidalgos. E e logico que, por falfa de h6bifo, na primeira embriaguez do exifo, 'exageravam a imporfancia do proprio poder, - claro que apenas em rela- �ão aos subordinados. Porque em presen�a dos superiores conservavam o mesmo servilismo - j agora inufil e af� mesmo desagradavel. Alguns levavam a obsequiosidade ao ponto de dizer ao chefe, num tom singularmente meloso, que, como haviam passado por fcdos os posfos subalfernos, sabiam conhecer o seu lugar. , Mas, com os pequenos, tiravam a sua forra, e se portavam com um despotismo inaudito. Não, decerto j não h mais sujeifos capazes de grifar: "Sou o fsar, sou Deus". E, confudo, devo observar que nada irrita fanfo o defento ou qualquer outro subalterno como seme- lhanfes expressões, partindo dum chefe. , Essa fatuidade,- essa falsa convic�ão de impunidade, desperta o odio no mais submisso dos homens e o leva ao desespero. - � uma sorte que abusos dessa especie estejam quase desap recidos; ali s. mesmo nos fempos antigos, havia medidas severas contra os culposos de +ais faltas. Conhe�o mais de um exemplo. Em geral. nada irrifa mais os subordinados que se verem frafados com desprezo. Certas pessoas supõem que alimen- fando e tratando os presos de acordo com a lei, ia fizeram o basfante. � fambem um erro. Por mais aviltado que es- 'feia, fodo individuo exige. insfinfiva mente o respeifo pela sua dignidade de homem. Sabe que e um gale, um reprobo, co- nhece a distancia que o separa dos seus superiores, mas nem RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 153 as grilhefas, nem as cicatrizes do knuf lhe fazem esquecer que � um homem. E j que � um homem, deve ser tratado como tal. E ai, meu Deus! um frafamenfo "humano" pode soer- 1---- --- JUL215 U 3 ~S; U- --- i_ - - - _. aparece empanada! � precisamente com esses desqra�ados#

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que nos devemos portar o mais humanamente possivel, por amor de sua salva�ão e de sua alegria. Encontrei chefes dotados de grande cora�ão e vi o efeito que eles produziam sobre o~ humilhados. Com algumas palavras afaveis, res- suscifa~am moralmenfe os seus homens. Ouvindo-os, os de-' tentos se alegravam como crian�as, e como cri"�as se pu- nham a adora-los. Fa�o notar aqui que o for�ado não apre- cia, da parte do chefe, nem a condescendencia, nem a fa- miliaridade exagerada. Aquilo o leva a irreverencia - a ele, que tem fanfa necessidade de respeitar. O preso sen+e-se orgulhoso, porexemplo, se tem um chefe condecorado, boni- fo, bem reputado; gosta dele severo, impodante, jusfo, digno. Gos+a de um chefe que sabe o que vale, porque um homem desses não ofendera nunca a ninguem, e tudo correra da m,-3!hor n, aneira. - E então por causa disso te cozinharan-l a fogo bran- do, heiri? perguntou calmamente Kobyline. - Sim, realmente me cozinharam, mano velho, me cozi- nharam de verdade. Ali, passa-me a tesoura! Escuta, pessoal, não h maidane hoje? - J foi tudo bebido, explicou Vassia: se a sede não fosse tão grande, decerto havia maidane! - Sim, sim! Em Moscou pagam os "sim" a cem ru- blos o alqueire, zombou Luka. - Mas quan+os +e deram pelo "servi�o" no maiar? insis- fiu Kobyline, obstinado na sua ideia. - Quinhen+os a�oites, maninho. Porem declaro ao pes- soal que se eles não me mataram andaram bem perto, ex- clamou Luka abandonando novamente Kobyline. Levaram-me em procissão, para receber as minhas quinhenfas varadas. E eu a+� então não sabia o que era um a�oite. Juntou gente de 12 I i#

154 DOSTOIEVSKI toda parte, s~S se via o povareu correndo: "Vão a�oitar o bandido, o assassino!" Nem se pode mesmo dizer como o povo e burro! O carrasco me despiu, me estirou, e gritou: 1 repl~-;£ o quS v,:~15 Ser G~----1_111 C, e sabem o que aconfeceu? Quando bateu a primeira Iam- bada, eu quis gritar, abrir a boca, mas não tinha voz. Perdi a fala. Quando me deu a segunda, acredite quem quiser, mas ouvi dizer: "Dois!" Dai, quando voltei a mim, ouvi contar: Mezessetel" Depois disso, meninos, me levantaram quatro vezes do cavalete para eu +ornar um pouco de f¢lego e me atiraram agua fria por cima. Eu olhava para todos, com os olhw esbugalhados, e pensava: "Hoje deixo o couro 'I" aqui. - E não morreste? perguntou ingenuamenfe Kobyl¡ne.

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Luka o envolveu com um olhar de desdem absolu+o; es- frondaram as gargalhadas. Não se pode ser mais burro! Esse tem uma aranha no miolo, escarneceu Luka, qu@' parecia lamentar haver travado conversa com um individuo daquela especie. - �, tem o miolo mole, concordou Vassia. Luka. que tinha seis crimes na conciencia, rigo fazia medo a ninguem; no entanto, gostaria de sier um "ferror". Isai - Fornitch - O banho - A h¡storia de BaMuchine A proximava-se o Nafal. Os de+entos aguardavam as festas com uma especie de solenidade, e, vendo-os, eu não podia deixar de esperar como eles qualquer cousa extraordinaria. Quatro dias antes, foram levados os presos para o banho de vapor. No meu tempo, sobretudo durante o primeiro ano, os de+en+os raramente se banhavam. Todos, portanto, se alegraram e iniciaram os preparativos. Devi- amos ir para o banho depois do rancho e naquela tarde não haveria trabalho. Na nossa caserna nenhum se afanava tanto, nenhum se alegrava tanto quanto Isai Fomitch Bumchfein, o preso judeu de quem ia falei no capitulo IV. Ele gostava de transpirar ate ao espasmo, ate ao desfalecimento. Cada#

156 DOSTOIEVSKI vez que hoje em dia volvo ...s velhas recorda�ões, quando evoco as estufas (e elas merecem esse frabalho'I) no primeiro plano do quadro aparece imediatamente o rosto do diqno, do inesquecivel Isai, meu camarada de presidio e meu vizi- nho de alojamento. Senhor, que grofesco inexprimivei que era! J disse algumas palavras sobre o seu'aspecfo: cin- quanta anos, debil, enrugado, com horrendos estigmas na fronfe e nas faces, magro, doentio, um corpo livido de frango. Se[i rosto exprimia uma perpetua satisfa�ão consigo proprio, uma auto-suficiencia quase beatifica. Não parecia lamentar seu destino. Como era ourives de profissão e na cidade não havia nenhum oufro, trabalhava incessantemente para os funcionarios e ate mesmo para particulares, o que lhe rendia algumas moedas. Não lhe falfava nada, vivia "corno rico", sem todavia gasfar demais do seu dinheiro, *que era empres- fado com usura ao presidio todo. Possuia um samovar,, um colchão, chicaras e talheres. Em vez de o renegarem, os judeus da cidade o protegiam. Nos s bados, e!~,- ia com as- colfa ao servi�o da sinagoga, (como o autoriza a lei). Vivia in+eiramen+e feliz, embora esperasse com impaciencia o fim dos seus doze anos de pena, para "casar-se". Era uma c"mi- ca mescla de ingenuidade, tolice, astucia, imperfinencia, simplicidade, timidez, fatuidade e imprudencia. Surpreendia- me muito ver que os for�ados não o levavam a rid¡culo:' ape- nas implicavam com ele de tempos em tempos, de brincadeira. Isai Fomifch lhes servia de perpetua dis+ra�ão: "S6 temos este aqui, deixem-no em paz!" diziam. E Isai Fomitch, embora compreendesse por que diziam aquilo, ficava ufano com a

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sua notoriedade, e nada divertia mais os presos. Fizera sua entrada no presidio de maneira extraordinariamente engra�a- da (isso sucedera antes da minha chegada, mas alquem me contou). Certa noite, na hora do descanso, espalhou-se o boa- +o de que haviam trazido um iupim (1) para o corpo da guar- da, que lhe estavam raspando a cabe�a e em breve aparece- ria. O presidio não confava dentro das suas paredes, então, (1) judeu. (N. de R. Q) RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 157 i nenhum judeu; e os defentos, que o esperavam com ¡mpacien- cia, cercaram-no logo que ele surgiu a entrada. O sub-c,ficial conduziu-o a pri~So civil e lhe mostrou o seu lugar na tarimba. Isai Fomifch carregava um saco com pe�as de umforme e os seus proprios objetos. Dep"s o saco, subiu a tarimba, sen- fou-se, com as pernas dobradas sob o corpo, sem ousar le- vantar os olhos para ningt~em. Ao seu redor, os for�ados es- frugiam em gargalhadas, dizendo pilherias sobrie a ra�a do#

nova+Q. De repente um jovem defenfoi que tinha nas mãos uma *velha cal�a suja, rasgada, r-emen~ada com farrapos, atravessou o grupo, fornou lugar,ao lado de ]sai Fomifch e ãp bateu no ombro: - Ah, meu velho, ha seis anos que te esperol Quanto me d s por isfo*? -, � mostrava a cal�a velha ao recem- chegado. Assim que viu o penhor que lhe apresentavam, Isai Fo- mitch, - tão intimidado antes que nem ousava dizer pala- vra, ou erguer os olhos para a turba de rostos zombeteiros, fer re+ea dos,, assustadores, reunidos ao se * u redor, - Isai Fo- mitch e~strerneceu de chofre, e pOs-se a apalpar o farrapo com os dedos ageis. Olhou-o a luz da candeia. Todos es- peravam o que ele ia dizer. - Decerto não vais querer emprestar um rublo por isto; enfrefanto as cal�as bem o valem! continuou o "presta- mista" piscando o olho. ainda vai! - Um rublo-prata não posso; porem sete copeques Foram essas as primeiras palavras de Isai Fornitch; todo o mundoestalou em gargalhadas. - Sete copeques! Bolas! Da de uma vez! Mas cuida bem do meu penhor! Respondes por ele com fua cabe�a! - Com +res copeques de juros serão dez que me ficas devendo, prosseguiu o juc[eu em voz arquejante s tr�mula, mergulhando a mão no bolso e olhando timidamente os#

158 DOSTO(EVSKI RECORDA�õES DA

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CASA DOS MORTOS 159 outros. Tinha um medo horr¡vel, contudo queria fechar o ne- gocio! _uo por ' 1 -5 ires =~------ - Não, por ano, não, por m�s! - �s um ladrão, judeu! Como te chamas? Isai Fomitch. Pois bem, Isai Fomi+ch, has de vencer aqui! At� a vista. Isai Fomitch examinou mais uma vez o penhor, dobrou-o, enfiou-o cuidadosamente no saco, sob a risada incessante dos for�ados. E, com efeito, embora fossem quase todos seus deve- dores, os defenfos pareciam gostar dele; ninguem o ofendia. Alias, ele era menos capaz de enraivecer que um pinto. Quando constatou os sentimentos que despertava, fez-se fanfarrão, mas com bom humor, suficientemente cOmico para nSo agas- far ninquem. Luka, que em outros tempos conhecera muitos judeus. o espica�ava frequentemente, mas sem animosidade, apenas por distra�ão, como a gente brinca com um cãozinho, um papagaio, um animal ensinado. lsai Fomitch, que o com- preendia bem, não se formalizava com aquilo e respondia na altura. - Toma jeito, ffipim, olha que +e dou uma surra! - Por cada pancada que me deres receberas dez de troco, replicava bravamente lsai Fomitch. - Sarnen+o dos diabos! - Que mal +e faz que eu seja sarrienfo? - Jud-eu pioffienfo! - Posso ser pio!hento mas tenho dinheiro. Tenho os meus cobres! cantarolava lsai na sua fala ceceada. - Vendilhão de Cristo! - Isso mesmo! - Bravo, Isai Fornifchi Não o estragues, Luka, que so temos este! gritavam os defentos. Siberia! - O que tu esf s precisando e de knuf, judeu! Knuf e - J estou na Siberia! - Ir s ainda mais long~! - Deus +ambem não esta l ? - Bem, l isso esta ... - Então não faz mal: tendo Deus e dinheiro, nada mais � preciso. - Bravo, Isai Fomitchi bem se v� que 'valentel es um bradavam de novo.#

E. a despeito das zombarias, Isai Fomitch continuava a Ibrava+e...r, Os cumprimentos lhe causavam tanta satisfa�ão que ele se punha a cantar, atraves da caserna, numa voz debil de soprano: "La-la-la" numa melodia cOmica e est£pida. En- 1~uan+o durou sua deten�ão, não cantou nunca outra cousa,

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afora essa mUsica sem letra. Mais tarde, quando travou conhe- cimento mais intimo comigo, garanflu-me sob juramento que aquele era o hino entoado pelos seiscentos mil hebreus - do mais mo�o ao mais velho - durante a f ravessia do Mar Verme- lho e que todo israelita tem ordem de o cantar nos momentos solenes de triunfo sobre o inimigo. Toda sexta-feira a noite os presos das outras casernas vinham para a nossa apreciar [sa¡ Fomi+ch a celebrar o sabbat. iE ele era de uma vaidade tão ingenua que essa curiosidade geral o lisonjeava muito. Com ex+raordinaria afeta�ão e uma majestade bsfudadas, cobria a sua mesinha, ao canto, abria o livro, acendia duas velas e resmungando palavras mis- teriosas, envergava uma especie de estola, (cujo nome não sa- bia pronunciar) (2). Era uma especie de marifeau de 13 colorida que ele conservava cuidadosamente no bal.i. Punha nos pulsos uns braceletes de couro, e na cabe�a, segurando-a com um cordSo, uma esp--cie de caixinha que parecia lho nascer da testa como um como grotesco (3). E come�ava, en13o, suas devo�Ees-, recitava lentamente, soltava gritos. escarrava dum lado, piruetava, gesticulava de modo estranho e c"mico. Na (2) O TVet ritual. (N. de P, QJ (3) Trata-se evidentemente dos "tefilim" filacterais que os estritos observadores da Lei judia amarram aos pulsos e ... testa, seguindo as prescri�ões do Òxodo (Xili. 9 e 16) e do Deuteronornio (Vi. 8 - XI, 18). (N. de H. M.)#

161 160 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS i realidade, o rifual que ele observava s¢ se tornava, ridiculo x lhe ordenava que nesse momento mostrasse uma e pressão de devido a exibi�ão, aos ares que assumia. Cobria a cabe�anobreza e felicidade perfeitas, ele tratou de obedecer, en, as mSos e se punha a ler em vc7 c'~ sciu�os,p;scando o oinio, rindo, e balan�ando a cabe�a para o visitante. que iam aumenfando af� ao paroxismo; enfim, exhausfo, quaseE o maior, a prmcipio espantado, acabou rindo, e passou uivando, inclinava sobre o livro a cabe�a adornada com o taladiarife, chamando o judeu de idiota, enquanto Isai Fomitch como; depois, parando de chofre os solu�os arquejados, desa-prosseguia nos seus grifos de triunfo. Uma hora mais tarde, fava a rir, e volfava a salmodiar em voz agora triunfante e enquanto ele ceava, pergunfei: fr�mula de alegria. "Ele'acaba se desconjuntando!" diziam os - , E se o maior, est£pido como �, se zangasse com voc�? defenfos. - Qye maior? Indaguei um dia de Isai Fomitch o que significavam os seus solu�os repentinamente interrompidos peila felicidade - O que! que maior? Então não o viu?

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triunfal. O judeu deliciava-se por lhe fazer essas perguntas. - Não! Explicou-me, imediatamenfe, que o medo e os solu�os eram - Ora, ele estava dois dedos a frente do seu nariz! provocados pela ruina de Jerusalem e por esse motivo a Lei Mas Isai Fomitch me garanfiu formalmente que em abso- ordenava que os fieis gemessem e batessem no peito com luto não se apercebera da presen�a do maior; suas ora�ões quanfa for�a pudessem; mas, no insfan+e do mais violenfo da- o mergulhavam numa especie de �xtase, e ele nada via nem sespero.ele, Isai Fornitch, deveria de subifo e como inconcien- ouvia do que se passava ao seu redor. temente (aquele de s£bito era +ambem prescrifo, pela lei) re- , Ainda hoje, parece que estou a ver Isai Fomi+ch passar cordar que uma profecia promete aos filhos de Israel a sua vol- o sabado infeiro vagueando pela forfaleza, cuidando em não +a para Jerusalem. Tinha então que manifesfar alegria com fazer nada, segundo as prescri�ões da Lei para o dia de sab- c�nticos e riso, dar a sua voz umaenfona�ão de vivo prazer, e b.af. Que anedotas ¡mpossiveis que ele me repetia quando vi- ao rosto uma expressão solene. Essa mudan�a repentina, essa nha da sinagoga, que noticias, que boatos extravagantes, vin- obriga�ão indispensavel, encantava Isai Fomitch: via naquilo dos de Pefersburgei, - cerfo de que os seus correligiona rios re- uma obra-prima de engenho,.e me explicava com imenso orgu- cebiam de primeira mão tudo que lhe con+avam! lho essa prescri�So sutil da Lei. Um dia; no momenfo, mais pa- Mas ia falamos demais em Isai Fomitch. fefico da sua ora�ão, o maior enfrou no alojamento, em com- panhia do oficial de guarda e dos soldados da escolta. En- A cidade possuia apenas dois estabelecimentos de ba- nhos. Um, mantido por um judeu, era reservado aos nofaveis, quanto os demais for�ados ficavam em confinencia defronte tinha cabinas de cinquenfa copeques. O outro, destinado a ...s farimbas, Isai Fomitch redobrou a grifaria. Como o re- plebe, era sujo, deteriorado, escuro. Era para Ia que nos leva-#

gulament" autorizava a pratica dos cultos, ele sabia que nao vam, num dia muito frio, mas de sol. Os defenfos se alegra- se arriscava absolutamente a nada; continuou a berrar como vam com a id�ia de sairem do

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presidic, e olharem a cidade, de um possesso. Mas, o que mais o encantava, era ter o direito i forma que as brincadeiras e as risadas não pararam, durante de se esgani�ar e gesticular assim diante do maior. Este todo o caminho. Um grande pelotão de soldados nos escolta- se aproximou, chegou ate a um passo de distancia do judeu. va, de armas embaladas, espanfando a gente da rua. Quando Isai Fomi+ch deu as costas a mesa e de p� diante do oficial, chegamos aos b&.~ihos, fomos separados em dois grupos. Dada entoou, gesticulando, o seu hino triunfal. Como a religião a esfreifeza ~e espa�o, um dos grupos esperaria no vesfibulo,#

162 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 163 glacial, enquanto o outro se lavaria. Apesar disso, a sala era tão minuscula que indagavamos como caberia ali a metade 's. Mas Pefrov n5o m-,:) leraave- sem escerar por consen- timento de minha parte, acorreu em meu auxilio, e se ofereceu ate para me esfregar. Seu exemplo foi seguido por outro for- �ado da se�ão especial, Bakiuchine, que era chamado o "Ex- plorador" e que me ficou gravado na lembran�a como o mais alegre e o mais agradavel dos companheiros. J eramos conhecidos. Pe+rov ajudou-me at� a me despir, porque, por falta de habito, eu andava devagar demais, e na antec�mara fazia quase tanto frio quanto no pafio. Um de+enfo novi�o sente geralmente enorme dificuldade em se despir sozinho. Em primeiro lugar, � preciso desatar depressa as correias queIk prendem as grilhetas; são correias duns quatro verchok (4) de comprimento que se usam em baixo da roupa branca, por sob o anel de ferro que rodeia a perna. Embora um pcir dessas correias custe sessenta copeques, cada for�ado as adquire por sua conta. pois de outra maneira ser-lhe-la im- possivel caminhar: o anel da grilhefa não aperta muito, pode-se ate introduzir um dedo entre ele e a pele; mas o ferro, batendo de encontro a perna, acaba ferindo-a de tal sorte que ao fim dum dia o for�ado que não usa correias tem uma chaga aberta no lugar da grilhefa. Ali s, a dificuldadie não come�a com as correias: come�a com a ceroula, presa sob o anel de ferro. Para desp¡-la, � misfer ser prestidigitador. Quando se fira a ceroula do p� esquerdo, por exemplo, e preciso a principio ir puxando enfre o p� e o aro da grilhela; depois, deixando livre o pe, vai-se erguendo a perna da ce- roula ate o aro; quando o p� esquerdo asta livre, a ceroula e, passada por baixo, para o pe direito; e afinal, pelo mesmo aro, fira-se tudo para cima. E o +rabalho para vestir 6 o mesmo que para despir. Um novato não sabe como h de fazer. O primeiro professor que tive foi, em Toboisk, o for�ado Kore- niev, que passara cinco anos na corrente. Uma vez adquirido o (4) O verchok � uma medida equivalente a 4,445 cent¡metros. (N. de R. Q)

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habito, a gente se arranja-sem dificuldade. Dei alguns cope- quas a Petrov para que me comprasse sabão, e um dos peda- cin~n-s de es+ong com que nos disfriLam um peda�o cle sabão a cada um, mas do famanho de uma moeda de dois copeques e fino como as fatias de queijo que servem nas mesas de gente pobre. Ven- dia-se sabão na propria sala de entrada, bem como sbifen (5), katafchi.e aqua fervendo. Segundo as conven�~es es+abele- cidas �om o proprie+ario, cada for�ado tinha o direito a um jarro cic, agua quente. Quem -fazia questão de se assear melhor podia, mediante o pagamento de d¢is copeques, adquirir um segundo jarro, que era passado da entrada para#

a sala de banhos por um postigo ia aberto para esse fim. Depois de me despir, Pefrov me +ornou nos bra�os, obser- vando que seria para mim dificil caminhar com as grilhetas. - Puxe o ferro para cima, para a barriga das pernas, disse ele, segurando-me como uma ama segura uma crian- cinha ... E aqui, cuidado com o degrau! Eu estava envergonhadissimo com tantos cuidados, e gostaria muito de mostrar a Pefrov que poderia andar so, mas ele não me acreditaria. Tinha para comigo os cuidados que a gente acha devidos a um menino pequeno e desa- jeitado. Petrov n~o tinha nada dum lacaio, nem o procura- va ser; se o ofendesse, ele saberia muito bem como se portar. Eu nada 1.he prometera pelos seus servi�os, e ele nada me pediu. Que lhe inspiraria tanta solicitude? Quando abrimos a porta da estufa, parecia-me que entrava no inferno. Imagine-se uma sala de doze passos de comprimento e outros tantos de largo, onde estav~m juntos senSo uns cem homens, pelo menos oitenta. pois eramos du- zen+os, divididos em dois grupos. O vapor nos cegava; o sujo , a lama, a falta de espa�oeram tais que n3o se sabia onde por os pes. Assustado, eu quis recuar, mas Pefrov logo me sossegou. Com dificuldade inaudita abrimos caminho ate"tim banco, passando por cima da cabe�a dos presos sentados (5) Bebida feita com agua, mel e especiarias. Hidromel. (N. de R~ Q)

164 DOSTOIEVSKI em baixo. aos qua¡s pediamos que se curvassem para nos dar passagem. Porem todos os lugares estavam ocupados: Petrov me explicou depois que, eu dwicri-- ccmrr,,r um, e entrou fogo em. negocia�ões com um defento sentado perto do pos- figo. Mediante um copeque o homem me cedeu o lugar, agarrou depressa a moeda que Pefrov ia tinha na mão, e es- corregou, bem por baixo de mim, para o escuro e a sujeira de sob os bancos: e embora ia se patinhasse ali na lama com bem um dedo de altura, formigava de gente. Não havia no piso espa�o para a palma de uma s0 mão. Alguns for�ados,

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de cOcoras, despejavam sobre si a agua do jarro. Outros, de p� entre os acocorados, seguravam o jarro com a das mãos e com a outra se esfregavam. A agua suja � lhes escorria do corpo, cata diretamente sobre as cabe�as raspa- das que ficavam por baixo. Os degraus que levavam aos bancos estavam famEem fervilhando de homens que, enrob- dos sobre si proprios, se banhavam o melhor que podiam. Mas a lavagem era pouca; o homem do povo não abusa nem da agua quente nem do sabão; procura suar tremendamente, e, depois disso, se encharca de aqua fria - o que constitue o seu me+odo de banhar-se. No banco, as vassouras de b�- +ula baixavam-se e se erguiam em cadencia. Uns cinquenta for�ados se fus+igavam uns aos outros ate ao esgotamento. O vapor aumentava de minuto em minufo. Ja não se estava num banho de vapor, mas numa fornalha. Todos berravam, todos urravam entre o ranger da ferragem que batia no soa~ Ao passar, alguns agarravam a sua grilhefa na grilhela do outro, batiam nas cabe�as dos queestavam agachados em baixo, calam, praguejavam, arrastando na queda aqueles aos quais se agarravam. A agua imunda corria por toda parte. Os homens ficavam numa especie de estranha bebedeira; os uivos, os gritos, se cruzavam. No posfigo da entrada, por onde passava a agua quente, a turba era ainda mais densa. Al¡, as pragas e os empurrões eram mais +erriveis. Antes de chegar ao seu destino, a agua quente se entornava na cabe�a#

RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS I 4 167 dos que estavam em baixo, de cOcoras. Re tempos em tem- pos, na janela ou na porta entreaberta, um soldado barbudo, com o fuzil na mão, verificava se não estava acontecendo alguma cousa de anormai. As cabe�as rdsp"das e c - cor- pos vermelhos de suor pareciam - ainda mais monstruosos. Nas costas, amolecidas pelo vapor, as cicatrizes do knuf ou das varas sobressaiam com tanta nitidez que pareciam re- cen+issimas. Horrendas cicatrizes! Dava-me arrepios sim- 111, plesmente olh6-las. Tornavam a atirar agua sobre a pedra ardente do forno, e um vapor espesso enchia a estufa como uma nuvem chamejante. Todos ganiam, gritavam. Entre a nevoeiro, apareciam dorsos remendados, cabe�as raspadas, dedos crispados de mãos em garra, pernas tortas. Para completar o quadro, l¡sai Fomi+ch berrava o mais alto que podia, trepado no banco mais elevado. Transpirava aM desfalecer, porem calor nenhum lhe parecia bastante. Pagou por um copeque um esfregador, mas o homem sem poder mais atirou fora a vassoura e correu a se inundar de agua fria. Isai Fomi+ch não desanimou: contratou um segundo, um terceiro, sem encarar despesas, - chegou a cinco es- fregadores. "Faz bem suar, remo�a, hein, Isai Fomi+ch?"

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bradavam-lhe os for�ados de baixo. Naquele momento Isai Fomi+ch senfia-se acima do presidio inteiro: mais alto que todos os for�ados, pavoneava-se, e, com voz rachada, esga- ni�ava um Ia-la-la que tinha for�a suficiente para cobrir to- das as vozes. Ocorre-me que se um dia tivermos que nos reunir todos no inferno, - 16 ha de ser muito parecido corri o lugar onde nos encontramos agora. Não posso deixar de comunicar esse pensamento a Pe+rov, - ele, entretanto, olha apenas em +orno de si, e não responde. Quis pagar 1 para ele um lugar configuo aquele em que estou, mas Pe+rov se instalou aos meus pes e declarou que estava muito bem. Enquanto isso, Bakluchine ia nos corri- prava agua, e ia +razendo-a a medida que a gris+avamos. Petrov anunciou-me qua ia me lavar dos pes a cabe�a, para me deixar 1impinho" e me intimou a transpirar bem, cousa#

168 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 169 que não me atra¡a absolutamente. Ensaboou-me todo; "e, agora, vou passar sabão nos pezinhos". Eu quis respon- .1 - der que me poderia lavar s¢, mas Ia não. estava capaz de u ~,~Jiiiiõ~Ii-dC e i-ti�~ ZUCA VUJIf Cie. No diminutivo "pezinhos" não descobri nenhum tom de ser- vilismo; Pefrov simplesmente não podia chamar meus pes de forma diferente. Os outros, os homens de verdade, podiam ter p¢s, mas eu! Depois de me enxaguar com o r~�smo cerimonial, isto �, segura , rido-me e vigiando cada um dos meus passos como se eu fosse de porcelana, levou-me de volta a antec"mara e me ajudou a vestir a roupa branca; e, enfim, quando aca- bou tudo, precipitou-se para a estufa afim de por sua vez f ranspirar. Quando voltamos, ofereci-lhe um copo de cha que ele não recusou. Ocorreu-me oferecer-lhe um pouco de vodca. Havia aguardente na nossa caserna. Pefrov mostrou-se ex- +raordinariamen+e feliz: enguliu o conteudo do copo dum trago, rosnou de prazer, declarou que eu lhe havia dado vida nova, e se precipitou para a cozinha, como se l nin- quem pudesse resolver nada de imporfante sem sua presen�a. Logo depois apresen+ou-se outra visita. Bakluchine, o "Explorador", que eu convidara durante o banho. Nunca encontrei criatura de genio mais delicado que o seu. Para falar verdade, era muito suscepfivel, e brigava com frequen- cia. Detestava principalmente ver alquem se meter com a sua vida: em suma, sabia defender-se. Mas nunca se zangava por muito tempo. Todos pareciam lhe querer bem; por onde ia, era recebido com prazer. Alias, ate mesmo na cidade gozava de uma reputa�ão de bom sujeito, sempre jovial. Era um rapagão duns trinta anos, de cara ingenua e c�ndida, muito bonita, embora es+ragada por uma verruga. Tinha o dom de fazer caretas de modo f3o c"mico, imitando qual- quer pessoa, que se apinhavam grupos de gente ao seu redor, e ninguem podia deixar de rir. Formava entre os engra- �ados do presidio, porem não se deixava vencer pelo azedume

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I dos rixentos, inimigos da alegria; assim ninguem lhe pisava o pe, ninquem o chamava de "desmiolado" de "sujeito ...- foa". Transbordava de vitalidade. Logo ... nossa primeira- entrevista con+ou-rne que de soldado de infantaria passara a sapador de engenharia, e que varias personagens impor- tantes lhe tinham amizade e reparavam nele, cousa pela qual sentia um grande orgulho retrospectivo-, depois interrogou- me minuciosamente a respeito de Pefersburgo. Lia at�#

alguns livros. Quando veio +ornar chia em minha companhia, come�ou fazendo rir todo o alojamento, contando como, naquela propria manhã, o tenente Ch. maltratara o nosso maior. E, depois de instalado ao meu lado, anunciou-rne satisfeito que o teatro j6 era cousa certa. Realmente, os detentos andavam planejando uma representa�ão para as festas. Tinham-se arranjado atores, e um ou dois wnarios. Algutrias pessoas da cidade prometiam emprestar frajos, e Sis femininos. Por in+ermedio de af' mes¡mo para os pap� um bagageiro, esperavam obter uma farda de oficial, com- pleta, inclusive as dragonas. Contan+o que o maior nao acabasse com a fun�ão, como o fizera no Natal passado! Aquele demonio andara de mau humor, nesse tempo: per- dera no jogo, e não houvera barulho no presidio: assim, de raiva, acabara com a festa. Desta vez, esperava-se que estivesse mais manso. Em suma, Bakluchine sentia-se ani- madissimo. Via-se que era um dos principais instigadores da representa�ão, ... qual dei-lhe minha palavra que assisti- ria ... Sua ingenua alegria me comoveu. E, aos poucos, fomos conversando com mais intimidade. Ele então me con- fessou que passara todo o seu tempo de servi�o militar em Petersburgo: uma falta qualquer fizera com que o mandassem para a quarni�So de R., com a patente de sub-c,ficial. . - E de Ia me deportaram para ca, acrescentou. - Por que? perguntei. - Por que? 'Não � capaz de adivinhar, Alexandi- Petrovi+chi Porque me apaixonei. W#

170 DOSTOIEVSKI - Mas que � isso? Nunca vi deportar-se um homem porque esta apaixonado! comentei, rindo. "IS- - E' verdade: porem, devido a isso dei tim +iro de ;-i +ola no diabo dum alemão que andava por Ia. Ser justo me mandarem para o presidio por causa dum alemão? Jul- que por si.

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- Como foi a hisforia? Conte que deve ser in+eres- sante! - E' mesmo uma hisfor~a engra�ada, AlexancIr Petro- vi+ch! - Melhor, então conte! - Quer mesmo ouvir? Pois 16 vai! E a hisforia do crime que ouvi era, senão engra�ada, pelo menos bastante estranha ... - Aconteceu assim, come�ou Bakluchine. Quando me mandaram para R., que foi que encontrei Ia? Uma cidade grande, bonita, mas com alemães demais. Eu, que ainda era mo�o nesse tempo, dava na vista; usava o gorro de banda, e me divertia a larga - compreende, nSo? Arrastavo a asa as alemãs, e tinha uma, chamada Luiza, que me agradava muito. Eram engornadeiras, ela e a +ia, - mas engorna- deiras de roupa fina. A +ia era uma bruxa velha, porem a pequena enchia os olhos. De come�o passei pela janela, fa- zendo pose, depois ficamos amigos. Luiza falava russo mui- to bem - s6 com um pouco de sotaque. -E era muito en- gra�adinha! N3o encontrei nunca outra igual. Então, - ia sabe - fui pedindo ... ela porem me disse: "Não, Sacha. isso não; quero guardar minha inocencia e casar contigo." Passava todo o tempo me acarinhando e dando risada. Ti- nha um riso tão alegre ... Enfim, - � claro, -Z- uma rapa- riga tão bonitinha, tão limpa - tinha que me agradar mais que quaiquer outra. Ela e que queria se casar - e como � que eu poderia dizer não, heiri? E me prepAci para pe- dir autoriza�ão ao coronel. Mas de repente, que foi que aconteceu? Luiza faltou a um encontro, a outro depois, e a mais outro. . . Mandei-lhe uma carta, e nada de respos- RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS r 171 ta; então, pensei: "Que e que h ? Se ela estivesse me enganando, daria um jeito para responder a carfa,ou vir aos encenics; n£,~ icã~,e tijeinTir, e rompeu, simpiesmen-#

te. Deve ser cousa da fia!" 1\15o me afrev¡ a ir em casa da velha; ela sabia que n6s namoravamos, porem a gente se escondia para despistar. Eu estava como louco; escrevi ,mais uma carta ... Luiza, e disse: "Se tu não apareces, vou a casa da tua +ia!" Ela teve medo e veio. E, então, me confessou chorando, que havia um alemão chamado Schultz, seu parente afastado, relojoeiro rico, que queria casar com ela - para faz�-la feliz. Era s¢ o que queria: faz�-la feliz, e ao mesmo tempo não viver sem. mulher, na velhice. E Luiza disse mais: "Ja faz muito tempo que Schultz gosta de mim, que esta com isso na cabe�a, mas não tinha co- ragem de casar comigo: calou-se, e esperou, tu compreendes, Sacha; mas e rico, e e para minha felicidade. Tu não queres impedir que eu seja feliz, queres?" Olhei para ela: estava chorando, me beijando, e pensei que afinal a pequena tinha razão: que lhe adiantava casar com um soldado, fosse embora

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sub~oficial como eu era? - "Bem, falei - adeus Luiza, e que Deus te aben�oe! Não 'quero impedir tua felicidade! Co- mo � esse alemão? Bonifo?" - E ela respondeu: "Não, e um velho narigudo." E deu uma risada. Deixei-a, e pensei: 99;V porque não era minha sor+e!" No d*,a seguinte passei diante da loja de Schul+z-, - ela me havia' dito em que rua ficava Olhei pela vitrina, e vi um alemão remexendo num relogio. Tinha uns quarenta e cinco anos, nariz de pa- pagaio, olhos esbugalhadose e um fraque de gola alta - alfis- sima! Aquilo me deu um nojo! Tive vontade de lhe quebrar a vitrina na cara. Mas pensei: para que? Não adianta fa- zer barulho, tudo j5 foi por agua abaixo! Voltei para o quar- fel, a noifinha, esfirei-me na tarimba e, h de crer, Alexandr Pe+rovifch? de repente me pus a chorar... "Passou-se um dia, e outro mais, e um terceiro. Não vi mais Luiza. Foi então que soube por uma amiga (uma ve- lha engornacleira que Luiza ...s vezes visitava) que o alemão#

172 DOSTOIEVSKI tivera ciencia do nosso namoro, e estava apressando o ~asa- menfo, por causa disso. Se não fosse assim, esperaria ainda um ano ou dois. Parece que ele tinha feito com que Luiza jurasse nunca mais me procurar. Parece fambern que ele apertava a fia e Luiza por minha causa. Ela decerto ainda não refletira bem, não se resolvera. A velha fambem me disse que no outro dia, domingo, iam as duas +ornar um caf�- em casa do noivo; iria, aincla, um parente velho, antigo comerciante ca¡do na miseria, e que era agora vigia numa faverna. Quando compreendi que, no domingo, cerfamenfe, a cousa toda ficaria resolvida, fiquei numa furia tão grande que não sabia mais de mim. . Durante todo esse dia e no dia seguinte não pensei -em oufra cousa. Era capaz de engo- lir vivo o desgra�ado daquele alemão. "No domingo de manhã eu ainda não de , cidira o que haveria de fazer; mas, assim que acabou a missa, vesti o ca- pofe, e foquei para a casa do alemão. Tinha na mente en- confrar foclos Ia, porem juro que não sabia para que os queria, nem adivinhava que ia dar cabo de alquem. Por via das d£- vidas, levei no bolso uma pisfola, -- uma pistola de nada, com um gatilho a moda antiga, que eu tinha comigo desde me- nino. Ja não valia cousa nenhuma. Mas pus-lhe carga, de qualquer modo, porque pensava: "Vão me tocar para fora, vão ser grosseiros comigo; então eu firo o brinquedo do bolso e fa�o um pouco de medo ao pessoal!" Entrei na loja: nin- quem. Esfavam nos fundos, sozinhos, sem criada. O sujeito tinha alias uma cozinheira alemã. Atravessei a loja, e dei com uma porfa fechada, - uma porcaria duma porta velha, francada com uma +ramela. Parei, com o cora�So batendo for¡a, o escutei: estavam falando alemão. Dei um pontap� na porta com toda a for�a, e imediafamen+o ela se abriu. Vi a mesa posta, e em cima uma cafeteira enorme, e o caf� fer- vendo numa l�mpada de alcool. Biscoi+os num prato, uma garrafa de vodca, arenques, um salsichão e mais outra garra- fa de não sei que vinho. Luiza e a fia estavam senfaclas

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no sof6, todas no trinque-, defronte delas, numa cadeira, o RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 173 alemão, o noivo, todo penfeado, com o fraque de gola alta; no canto da mesa outro alemão, um velho gordo de cabelo branco, muito quieto. Entrei: Luiza ficou da cor de cera; a fia deu um sa¡to e tornou a sen-rar; o aiernão fechou a cara. levantou-se, mal satisfeito e caminhou para mim: - Que deseja aqui, soldado? perguntou.#

Eu devia estar atrapalhado, mas a raiva me deu coragem: - Que desejo? que me recebas e me ofere�as bebida. Vim aqu¡ de visita. O alemão pensou e disse: - Sente-se. Son+ei-me e falei: - Vamos, serve-me bebida. E ele resmungou: - Esta aqui o vodca, beba, por favor. - Sim, falei, mas esfe vodca presfa? A mostarda ia estava me subindo ao nariz: - E' muito bom. Ele me espiava por cima do ombro, e aquilo me fazia ferver o sangue. !E o pior, ia se sabe, era ver Luiza me olhar. Engulf o vodca e disse: - Por que esfas com tanta grosseria, alemão? Tens que ser meu amigo. Para isso vim aqui. - Não posso ser seu amigo, respondeu ele. Voc� não passa dum soldado. Então fiquei uma fera. - Cara de espantalho, grifei, salsicheiro de uma figa, irigo esf6s vendo que ou agora posso fazer de +i o que quiser? Esf6s vendo esta pisfola? Queres que fe rebenfe a cabe�a com ela? Tirei a pisfola do bolso, e apontei bem para o meio da cara dele. Os outros olhavam, mais morfos que vivos, não -rinham coragem nem de respirar. O velho +remia como uma folha, sem dar um pio, branco de medo. O alemão estava antes admirado, mas de qualquer modo se refez depressa.#

174 DOSTOIEVSKI - Não fenho medo de voc�, falou ele. :E se � um homem bem educado pe�o-lhe que acabe ia com essa brin- cadeira. Nio me laz medo nenhum. - Mentira! bradei. Esfas com medo! E' verdade que ele não se afrevia a mexer com a ca- be�a, debaixo da pistola; não movia um dedo. - Não, o senhor não fem absolufamenfe o direito de fazer isso!

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- E por que e que não fenho direito? - Porque e proibido, e depois feria que que fez. Diabos levem o burro daquele alemão! Se ele não me fizesse perder as esfribeiras, ainda estaria vivo! Foi a dis- cussão que provocou tudo! - Ah, repliquei, então es+6s pensando que eu não me atrevo? pagar pelo - N-não! - Não me afrevo? Não se atreve absolutamente! Pois então toma, cara de salsicha, forna! Dei o firo, e o sujeito escorregou da cadeira, enquanfo os outros se puseram a berrar. Enfiei a pistola no bolso e me raspei de 16. Chegando ao quartel, atirei a pistola nas urtigas, perto da enfrada. Enfrei, me estirei na cama, e pensei: "Vão me pegar". Mas passou-se uma hora, outra, e nada! Ja era noite, quan- do me veio uma magoa, uma dor fão grande, cNe quase me rebenfa. Tinha que encontrar Luiza naquele mesmo ins- fanfe. Passei pela relojoaria, vi 16 um povareu enorme e a policia. Pedi ... velha que chamasse Luiza, esperei um pouco e Lu¡za chegou. Agarrou-se comigo, chorando: "Sou eu a culpada, porque fui escutar os conselhos de minha fia!" E confou em seguida que, logo depois da hisforia, a fia voltara para casa, doente de medo, incapaz de dizer uma palavra. "Não quis falar nada a n¡nquem e fez com que eu jurasse que calava a boca. A velha esfava morrendo de f RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS i 175 medo! Fa�am eles o que quiserem! Ninguern nos viu 16-,#

ele tinha mandado embora a criada-, tinha medo dela; era capaz de lhe arrancar os oilhos quando soubesse que o pa- frão ia casar comigo. Os empregados fambern não esfa- vam - ele mesmo preparou o cafe e a merenda. E o pa- rente velho, sempre calado a vida inteira, ha de con- tinuar calado agora. Quando -a cousa aconfeceu, apanhou o cRapeu e saiu sem dizer nada." Tudo se passou assim mesmo. Duranfe uns quinze dias n¡nguem me prendeu, ninguern suspeitou de mim. E, du- ranfe, esse tempo, acredite se quiser, Alexandr Pefrovitch, nunca fui fão feliz na minha vida! Via Luiza todos os dias, e que carinho que ela me dispensava! Chorava, e dizia: "Vou para qualquer lugar onde fe mandarem. Deixo tudo por til" Eu ia pensava afe em acabar com a vida, tanta pena que ela me clava; mas, depois dessas duas semanas, me pren-

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deram O velhoe a fia cor¡luiaram-se e me denunciaram." - Escute, Bakluchine, interrompi. Um caso des- ses podia lhe arranjar uns dez a doze anos, na se�ão civil. Contudo, voc� es+6 na se�ão especial. Por que? - Isso ia e outra hisforia! Quando fui a conselho, de guerra, o capitão me disse uma por�3o de palavrões diante dos juizes. Eu não pude afurar aquilo, e grifei: "Por que me insultas desse modo? Onde e que pensas que estas? Não esf6s vendo o "espelho da justi�a" (6) na tua frente, ani- mal?" Junfaram uma hisforia com a ouira, pequei quatro mil varadas, e a se�ão -especial. Mas quando me !evaram para sofrer o castigo, o capifSo fambem estava Ia. Eu sofr¡ os a�oites. Ele, porem, foi degradado e mandado para o C6ucaso como simples pra�a. Ate logo, A!enxandr Pe+ro- vi+ch, não falfe ao nosso teatro. (6) Na mesa de todos os tribunais russos havia um "espelho da justi�a" (zerha- to) - prisma de vidro triangular encimado por uma aguia e em cujas tr�s faces erarn colados tr�s Lkazes de Pedro o Grande, referentes ao processo e aos direitos dos cidad os. (N. de H. M.)#

Natal Enfim, chegou o N�£al. Desde as v�speras os presos quase não trabalhavam; os alfaiates e outros oficiais foram para as oficinas porem os demais se reuniram para a chamada e voltaram quase imediatamente, de um em um ou aos grupos. Depois da rafei�ão, ninguem se mexeu mais. AUs, desde pela manhã a maioria dos defentos não se ocupa- va senão dos seus proprios negocios. Uns, conspiravam a proposito do vodca que era preciso fazer entrar, ou en- comendar ainda. Outros, pediam permissão para visitar amigos ou amigas; algun,% recolhiam para as festas as pa- quenas quantias que haviam ganho com o seu trabalho parti- cular. Bakiuchine e a turma encarregada do teatro procu- ravam convencer alguns indecisos, sobretudo entre as orde- nan�as dos oficiais. que tinham possibilidade de lhes err~-#

178 DOSTOIEVSKI prestar fraios. Alguns iam e vinham com ar absorto e apres- sado; mas apenas porque viam os outros absortos e apressa- dos; não tinham nenhum dinheiro em perspectiva, todavia com- porfavam-se como se o esperassem das mãos dos devedores. Em resumo, todos aguardavam o dia seguinte como um acon- fecimento extraordinario. A tarde, os invalidos voltaram da cidade com as encomendas dos presos; traziam varios co- mesfiveis, carne, leitões e a+� gansos. Alguns dos nossos, entre os mais simples e os mais econ"micos, ate mesmo aque- les que durante o ano inteiro iam juntando um a um os seus 1 copeques, senfiam-se obrigado- a afrouxar os cordões da

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bolsa, e a comemorar condignar.,` rife a festa. O Natal repre- sentava para os for�ados uma solenidade de que ninguem os poderia privar, que a lei lhes reconhecia formalmente. Era um dos +r�s dias do ano em que ninguem tinha o direito de os fazer trabalhar. Afinal, poda-se conceber quanfas recorda�ões agitavam as almas daqueles r�probos nas proximidades do Natal! A gente do povo cultiva, desde a infancia, o respeito pelas festas solenes, durante as quais se abandona a rude !abufa e congregam-se as reuniões de familia. No presidio, onde a comemora�ão das festas não poderia provocar senão sau- dade, esse culto assumia um aspecto imponente. SO alguns defentos bebiam, e maioria se mantinha grave, como que preocupada, apesar da sua absoluta desocupa�ão. Os pro- prios beberrões se -esfor�avam por manter um ar serio. As -risadas pareciam proibidas. Reinava em todo o presidio uma atmosfera de susceptibilidade, de infoleranc¡a: e, quem, mes- mo involuntariameriM, perturbava a compostura geral, era chamado ... ordem por gritos, por injurias; zangavam-se contra ele como se faltasse ao respeito ... propria festa. Esse esta- do de espiri+o era tão comovenfe quanto curioso. Mem da venera�ão intr¡nseca que sente nesse grande dia, o for- �ado se apercebe inconcienfemen+e de que a sua coparfi- cipa�ão na festa o poe em comunhão com o resto do mundo, a que, por consequencia, j não � e!e um r�probo, um de- . RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 179 ca¡do, um farrapo sem dono, mas, embora no fundo do pre- sidio, ainda e um homem. C;gal, ~i o vis¡vel, compreensivel. O proprio Akim Akim¡fch se preparava ativamente. Não tinha recorda�ões de familia, pois se criara orfão em casa de estranhos e, aos quinze anos, iniciara os duros fraba- lhos do servi�o militar. Sua vida não contara nunca ale-#

grias especiais, porque -ele a passara na regularidade, na rotina, no receio de infringir qualquer infimo dever que lhe era imposto. Não era muito religioso, uma vez que o for- malismo lhe absorvera todos os dons humanos, todas as paixões, todos os desejos, bons e maus. Preparava-se por- tanto, sem nenhum sentimento febril, sem emo�ão, sem a minima especie de saudade. Mas tinha ali excelente opor- funidade para aplicar sua met¢dica pontualidade nos deve- res impostos por uma festa de tradi�ão indiscutivel. Alias, Akim Akimitch não gostava de refletir. A'imporfancia dos fatos lhe deixava o cerebro em repouso; bastava que uma ordem lhe fosse dada para a cumprir com religiosidade e mi- nucia. Se no dia seguinte lhe dessem nova ordem, inteira- mente antag"nica a da vespera, obedeceria com a mesma docilidade, o mesmo cuidado. Certa vez, uma unica vez na sua vida, agira por sua propria cabe�a, e aquilo o levara ao presidio. A li�ão nao se perdera. Por mais incapaz

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que fosse ele de compreender em que consistira o seu crime, tirara, daquela aventura, uma regra salutar: não raciocinar nunca, porque raciocinar não era "negocio" seu. Devoto cego das f¢rmulas, considerava com antecipado respeito -o leitão que recheara com centeio, e que, com suas proprias maos, assara no forno, - pois ate cozinhar sabia. Não o con- siderava um simples leitão que se pode em qualquer tempo comprar e assar, mas um animal criado especialmente para festejar o Natal. Decerfo, habituado desde a infancia a ver figurar um leitão na ceia do Natal, concluira que esse animal ora indispensavel ... celebra�ão do dia; estou convencido de que se Akim Akimitch não pudesse comer leitão na noite de ~- i t2, 2 aquL.-l eird#

ISO POSTOIEVSKI festas, aquele dever não cumprido lhe daria remorsos para o resto da vida. Trajava af� ent~o um casaco velho e umas cal�as que, apesar de todos os cuidadosos remendos, tinham chegado ao ultimo grau de usura. Descobr¡ que ia h6 qua- +ro meses ele guardava preciosamente dobrado no baU o uniforme novo, com o fim Unico de o estrear no Natal. Na vespera desse grande dja, Akim o tirou do bau, estendeu-o, olhou-o, escovou-o, assoprou-o, examinou-o costura por cos- +ura, e afinal o experimentou, para ver como ficava. Cons- fa+ou que ficava bem, que estava decente, que os colchetes fechavam at� em cima, que o colarinho, duro como carto- l~na, lhe mantinha o queixo elevado. O frai\ '.,iha uma certa linha militar no corte, e Akim Akim+ch, com um meio sorriso de satisfa�ão, virava-se e revirava-se lestamen+e diante do seu espelhinho, cuja moldura, ia ha muito tempo, numa hora de folga, ele proprio dourara. So um colchete do colarinho não parecia Ia muito bem pregado. Akim Akimitch o des- cobriu e resolveu muda-lo de lugar. Depois de repregar o colchete, experimentou de novo o casaco e viu que estava irrepreensivel. Tranquilizado, então, dobrou a roupa e +or- nou a guarda-la cuidadosamente no ba£. Estava com a ca- be�a bem raspada: todavia, depois de severo exame ao espe- lho, observou que o alto do cranio não se mostrava inteira- mente liso: avistavam-se alguns cabelos um pouco crescidos: foi imediatamente procurar o "maior" para raspar a cabe�a direito, de acordo com o regulamento. Ninguem, decerto, o iria revistar no dia seguinte, mas ele procedia assim por alivio de conciencia, afim de cumprir seus deveres para com a festa. Desde crian�a trazia gravada na alma a venera�ão pelo botão, os alarriares, as dragonas: seu espirifo estava preso a essas marcas externas do dever, e as cul+uava no ¡nfimo como a imagem da mais perfeita -elegancia que pode ser cobi�ada por um homem de bom-+om. Depois de proceder a todas essas verifica�ões, na sua qualidade de monifor, man- dou trazer palha e fiscalizou a sua me+6dica disposi�ão sobre o chão. Procedia-se a mesma opera�ão em todos os outros RECORDA�õES DA CAU DOS MORTOS

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181 alojamentos. Não sei por que, quando chegava o Natal, punham palha no chão. Acabados os trabalhos, Akim Aki- mifch rezou as suas ora�r~Ses, es+ii-cu-se na farimba e ador- meceu imediatamente, no so-no suave da infancia, para des- perfar o mais cedo possivel no dia seguinte. Foi, alias, o que tambem fizeram os demais detenfos. Em todos os alo-#

jamentos foi-se dormir muito mais cedo que nos outros dias. Os trabalhos comuns de serão foram abandoriados: quanto ao maidane, nem se pensava nisso. Cada um vivia na ex- pecfafiva do dia seguinte. Enfim, o dia chegou. Muito cedo, antes da madrugada, bateu-se a alvorada, abriram-se as casernas, e o sub-c,ficial que veio fazer a chamada nos desejou boas-festas. E em tom arriavel, lhe refribuimos os votos. Acabadas as rezas, Akim it Akim' ch e varios outros se precipitaram para a cozinha, afim de vigiar o preparo do seu ganso ou do seu leitão. Na som- bra, atrav�s das janelinhas tapadas pela neve e pelo gelo, viam- se luzir os seis fogões das cozinhas, acesos desde a madru- gada. No patio escuro passavam os defen+os, com o ca- pofe atirado ao ombro, afraidos todos pelos fogões. Al- guns - em pequeno n£mero, porem - ia tinham tido tempo para visitar os bofequineiros. Eram os mais impacientes. A maioria se portava com dignidade, com decencia, muito melhor que de h6bifo. Não se ouvia ninguem a praguejar ou a brigar, como sempre. Todos compreendiam a gran- cleza, a solenidade da'festa. Alguns iam ...s outras casernas, para dar boas-festas aos amigos e conhecidos; senfia-se nas vozes daqueles homens um sentimento que parecia muito com amizade. Diga-se de passagem que os for�ados rigo se afei�oam a ninguem; e muito raro ver algum fornar-se amigo de outro. A amizade quase n"o existia entre ri~s-, as rela- o �ões enf re os defenfos---nanfinham-se sempre 6speras, secas; ora esse o tom adotado e vigorante, praticamente sem ex- ce�ões. Quando por minha vez sai da caserna, o dia come�ava a nascer: as estrelas empalideciam, e uma leve nebIlina con-#

DOSTOIEVSKI ~e erguendo da +erra. A fuma�a sa¡a am aut�n- ~is pelas chamines das cozinhas. Os poucos com- Roffilro que e,-,C me dar boas-festas. E eu agracteci e retribui os bons votos. Alguns ma dirigiam a palavra pe~a primeira vez. Na poria das cozinhas encontrei um defenfo da se�ão milifar, com a pele de carneiro atirada ao ombro. Do meio do pafio, avistando-me, ele gritara: "Alexandr Pe+rovi+ch!

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Akxandr Pe+rovitch!" E se precipitara para as cozinhas. Detive-me para o esperar. Era um rapaz de cara neclonda, olhar calmo, muito pouco conversador; nunca me dirigira c~ palavra nem me prestara a minima ateri�ão: e eu não lhe sa- bia sequer o nome. Chegou, afogueado, resfolegando, e ficou parado diante de mim, sc( - do. e fi+ando-me com os olhos es+Upidos. - Que deseja? pergun+ei-lhe, não sem espanto, vendo que ele não se mexia e me olhava sem encontrar palavras. Mas ... e ... a festa ... gaguejou afinal, e, com preendendo que nada mais tinha 6 me dizer, deu meia volfa e entrou na cozinha. Farei notar aqui que desde esse dia ate ao fim da mi- nha deten�ão não nos enconframos praticamente nunca mais. Nas cozinhas, junto aos fo98es aquecidos ate ao rubro. um verdadeiro formigueiro se agitava. Cada um +ornava conta do que era seu, enquanfo os cozinheiros preparavam a comida geral, porque nesse dia a hora das refei�oas era adiantada. - Entretanto, ninguem se senfava a mesa, apesar dos desejos de alguns. Esperava-se o padre, pois o jejum s¢ deveria terminar depois da sua visita. O sol ainda não clareara de todo, quando no por+So de entrada soou o grifo do cabo de servi�o, chamando os cozinheiros. O mesmo grifo ecoou a todo instante, durante perto de duas horas; chamava para que se recebessem as esmolas man- dadas de foclos os canfos da cidade. Enviavam em quan- +idades -enormes kala+chi, pães, pas+eis de queijo, frifuras, doces de toda especie. Penso que n3o havia na cidade RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 183 ~,I. uma vendeira, uma burguesa que não mandasse, como fes- fas, uma esmola para os "desgra�ados". Algumas esmoias eram opulenfas, como nor exempilo r~9~ c!,~ f!nr d-~ f,~Ir-¡rk- ,outras mesquinhas, um pãozinho redondo de dois copeques ,, u uma forta lambuzada de creme azedo: aquilo era o pre- ,,,senie do pobre ao pobre; mas o doador gastara nele o seir Ifimo copeque. Recebia-se tudo com o mesmo reconhe- i 1 rr!enfo, sem fazer disfin�Ses entre os donafivos ou entre#

res. Os de+enfos que recebiam esmolas tiravam o clinavam-se para saudar os doadores desejando-lhes s-fesfas, e levavam para as cozinhas o que lhes havia sido fregue- Quando reuniam grandes montes de pão, charria- m-se os monifores, e eles os repartiam em partes iguais, 1 1 nfre focios os alojamentos. A partilha não provocava brigas m descomposfuras; fazia-se honesta, equi+afivamenfe. Mim ,,,kimifch, ajudado por outro preso, nos distribuia o quinh3o nosso alojamento; dividiam-no com suas proprias mãos e ! irifregavam a cada um a sua parte. Não h¢uve a m¡nima ma�ão; cada um se considerava safisfeifo, nenhum sentia a, nenhum pensava que as esmolas haviam sido escondidas as sem igualdade. do terminou os seus preparativos de cozinha, Akim vesfiu-se com �uidado e gravidade, sem deixar

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do o menor colchete; depois foi rezar, ro que de- as+an+e tempo. JEram sobretudo os mais velhos � desempenhavam os seus daveres religiosos. Enfre os o 1 ,~vens, muitos se contentavam em fazer o sinal da cruz, ao levanfarem, mesmo nos dias de fesfa. Acabada a reza, im Akimitch me procurou, e me deu as boas-fesiras com certa gravidade. Convidei-o a +ornar ch e ele me con- 41dou a comer do seu leitão. Um pouco depois, Pe+rov :i ara mim para me oferecer tambem seus bons votos. a iS fer bebido; um pouco sem f"lego por causa da cor- o me falou muito, ficou' alguns segundos parado de- e mim. como se esperasse alguma cousa, e me deixou rapidamenfe para correr af� a cozinha. Nesse ¡nterim, na t#

184 DOSTOIEVSKI r prisão militar, faziam-se os preparativos para a recep�ão do pope. Essa caserna não era construida de modo igual ...s outras-, a tarimba era ao comprido da parede, em vez de fi- car no meio, como nas demais. Era, pois, a unica que não tinha o centro ocupado. Tinham-na arrumado assim para os casos em que houvesse necessidade de reunir os for�ados. Puseram no meio da sala uma mesinha, coberta com um pano branco; depois, colocaram em cima um icone, e acendeu-se uma lamparina. Enfim, entrou o pope, carregando a cruz e agua benta: ap¢s rezar e cantar diante da imagem santa, de- frontou os de+en+os, que, com sentida compun�ão, desfi- laram perante ele afim de beijarem a cruz O pope afra- yessou em seguida todas as casernas, e as dspergindo de agua benta. Na cozinha, felicifou-nos pelo nosso pão, que. era gabado ate na cidade; imediatamente lhe oferecemos dois pSezinhos que acabavam de sair do forno e encarrega- mos um dos invalidos de os levar ate a casa do pope. E despedimo-nos da cruz com o mesmo respeito com que a baviamos acolhido. Então, quase no mesmo instante, apa- receram o maior e o governador. Este, que era querido por todo o mundo, visitou os alojamentos em companhia do ma- lor, desejou feliz Natal aos for�ados, passou pela cozinha e provou a sopa de couves, suculenta naquele dia, porque tinham posto nela cerca de uma libra de carne por de- tento. Ademais, um cozinhado de milho, onde a manteiga não fora poupada, fervia no fogo. Depois de levar ... porta o governador, o maior deu o sinal para a refei�ão, mas os presos se esfor�avam por não lhe ficar sob as vistas; te- miam o olhar ocliento que, por tr s dos ¢culos, passeava ... direita e a esquerda, procurando, ate mesmo naquele mo- mento, uma desordem a reprimir ou um culpado a castigar. Senfamo-nos a mesa. O leitão de Akim Akimitch es- +ava otimamente assado. Não sei como foi que isso se deu,

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mas cinco minutos não tinham decorrido depois da partida do maior, quando descobrimos que grande numero de ho- mens j estava b�bedo - e, entretanto, na presen�a do t#

RECOR,DA�õES DA CASA DOS MORTOS 187 ,," ningiuem parecia ter tomado nada. Muitas caras fi- cavammei, nos e lustrosas; apareceu uma balalaica; o polaco do violino fora, contratado para todo o dia, e seguia um 40ão, arranhando alegres m£sicas de dansa. A conversa ~-se faz mais animada,.mais ruidosa; contudo a refei�ão se aca- e, mn grande tumulto. Todos, estavam fartos. A maio- · "'~` -da dos velhos, -dos mais serios,, foi fogo se deitar; o mesmo fez'Aki;~ Akimifch, considerando decerto que nas grandes sesta �-de rigor. O velho raskoiniki de Sfaradubov u um pouco, depois esfirou-se na estufa, abriu o pâs-se a rezar: ficou assim, sem se interromper, af4 ~: ._* noite fechar de todo. Era-lhe penoso o espet culo da- "verq(>nha" (assim designava a embriaguez colefiva ,~, -- do presos). Os circassianos foram todos sentar-se na en~ frada, � contemplavam com curiosa repugnancia os despau- terios dos bebedos. Enconfrei-me com Nurra: "Iaman! iarnan!" ~-~,,w , (Mal!'mal!) disse-me ele abanando a cabe�a com honesta in- di o. igna�a "Oh, iamant Alah vai se zangar!" Isai Fomifch, com ar provocante e obstinado,' acendeu uma vela e se pos a trabalhar, para tornar bem patente que nada tinha com aque- Nos cantos, organizavam-se partidas de jogo; não Ia festa. se temiam os inv lidos-, entretanto, por causa do sub-c,ficial, que ali s fechava os olhos, puseram-se sentinelas a entrada. ,0 oficial de guarda apareceu fres vezes fazendo a ronda. A sua chegada escondiam-se os bebedos, desapareciam os maidanes - e ele proprio parecia resolvido a não an~ergar as Leves infra�ões ao regulamento. Em dia de festa, a em- briaguez não era *considerada crime. Pouco a pouco, au- ~ava¡ a anima�ão e come�avam as brigas. Mas como o maior n£mero se conservara sobrio, não faltava quem to- masse conta dos ebrios. Estes, realmente, se excediam. estas a �oChi!o #Viro o Gazine triunfava. Passeava como um rei ao redor do seu hi , ~,4; , gar- Acabava exafamenfe de transportar para debaixo da tarimba a aguardente ate então muito bem dissimulada num esconderijo por fr6s das casernas sob a neve. Dava uma r¡sadinha ladina olhando os que vinham comprar be-#

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188 DOSTOIEVSKI bida, mas não tocava numa gota de, vodca, pois sua inten- �ão era divertir-se apos ter esvaziado de todo a algibeira dos companheiros. As casernas vibravam com as can�oes, porem a bebedeira tornava-se infernal e as cantigas pareciam pranto. Muitos passeavam aos bandos, a pele de carneiro atirada displicentemente as costas, dedilhando com ar cas- quilho as cordas da balalaica. Na se�ão especial uns oito homens tinham ate organizado um coro, can+a~ann muito bem, acompanhados por balalgicas e guitarras. Mas as can- figas realmenfe populares faziam exce�ão; recordo-me apenas de uma, admiravelmenfe cantada: "Outrora, quando mo�o, "a muitas festas fui... t e da qual guardei de memoria uma variante que ainda não co- nhecia. No final da toada acrescentavam alguns versos: "Quando eu era mo�o "Boa casa tinha "Tudo limpo, asseado. "A lavagem dos pratos "Engrossava a sopa; "No sebo do degrau "Se fritava a broa... Cantavam-se principalmente as can�ões chamadas "do presidio" que todo o mundo conhece. Uma delas, intifulada . "Oufrora", era engra�adissima; conta a hisforia de um ho- mem que dantes se divertia e vivia como barine, e acabou dando com os ossos no presidio. Outrora, bebia cham- panhe e agora, "Dão-me couves com agua, 11 que quando as mordo mexo at� as orelhas. . moda: RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS "Outrora vivia eu "garoto, feliz no mundo. "Tinha um capital guardado mas, ai 1 veio a pouca sorte e o meu capital voou.#

Agora j perdi tudo, perd¡ mesmo a liberdade e peno no cativeiro."

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189 E assim por diante. Apenas, entre n¢s, pronunciava- se "kopifal" e não "kapital" porque derivavam a palavra de "koPiV (economizar). Can+avam-se +arribem cantigas +ristes. Uma delas, carateristica can�ão de presidio, parece-me que � conhecida fora dele: ¡~, "Acende-se a luz do c�u "e o tambor rufa a alvorada. "A velha porta se abre, "faz a chamada o sargento; "Ninguern v�, por. tr s dos muros, "como vivemos aqui ... Mas Deus sempre est conosco, embora nos guarde aqu¡. . . " A outra can�ão, conhecid¡ssima, esfava e arande Uma outra can�ão, mais triste ainda' Cuia M usica e magn¡fica, embora a letra seja inculta e sem beleza, foi feita decerto por um preso qualquer. Alguns dos versos ainda me ocorrem ... lembran�a: "Meus olhos não mais ~vistarri 11 a provincia onde nasc¡. 'irido penando, inocente, "condenado a este martirio. "Adeus, amores antigos! "No telhado chora o mocho, 11 e a mata ecoa o seu pranto. "E o meu cora�ão se aperta! "Nunca mais, ai, nunca mais! "hei de rever minha terra!" Cantavam-na frequentemente, mas em solo, jamais em coro. Nas horas de descanso, um for�ado vai at� a porta I#

190 DOSTOIEVSKI da caserna, sen+a-se, medita, com o rosto entre as mãos, e entoa essa queixa, num tom agudo de faisefe; e a tristeza que emana da cantiga dilacera a alma da gente. Não faitavam bonitas vozes entre n6s. ,Enfim, caiu o crepusculo. A angustia, a dor, o pesado fed¡o refornavam atrav�s da orgia, da bebedeira. Aquele

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que uma hora antes estava rindo, solu�ava agora num canfo, depois de atravessar os limites da simples embriaguez. Alguns ia tinham tido tempo de trocar pancadas duas ou tr�s vezes. Outros ainda, lividos, mal se segurando nas pernas, vagueavam oscilantes atrav�s das casernas, provocando, brigas. Os . que o vinho entristecia procuravam obstinadamente amigos: queriam aliviar a alma e desabafar as magoas que o ilcool erguera a toria. Aqueles desgra�ados tinham desejado tanto divertir-se, passar alegremente a grande festa e - meu Deus! que peso, que esmagamento para quase todos! Cada um quisera, naquele grande dia, embalar-se com uma esperan- �a; mas a esperan�a n�io se realizara. Duas vezes ainda Pe- frov me procurou. Bebera muito pouco. e parecia quase sobrio de todo, porem esperava o acontecimento que deveria necessariamente acontecer - at� ao derradeiro minuto: seria qualquer cousa extraordinaria, solene, profundamente alegre. Não dizia isso, mas lia-se a expectativa nos seus olhos. Cor- ria sem descanso duma caserna a outra, e contudo, nada de especial sucedia: não encon¡rava senão b�bedos, criaturas que vociferavam pragas imbecis, caras inflamadas pelo 61cool, Como Pefrov, Sirofkine, vestido com uma blusa vermelha nova em folha, rondava pelas casernas, elegante e limpo; ele fam- bem parecia esperar ingenuamente. Pouco a pouco, a af- mosfera do meu alojamento se tornou irrespiravel, nau- seabunda. Não faltavam espefaculos comicos, mas eu me sen- +ia tão triste, tinha tanto do daqueles desgra�ados, que su- focava. Dois, ali, brigavam, para decidir quem obsequiaria o ufro; o �Qusa j6 duro, hi mvifo tempo e esf�io prontos a tro- RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 191 car murros. Um deles tem uma rixa velha com o outro; e queixa-se remexendo a lingua pastosa. Esfor�a-se por demonstrar que acaba de sofrer uma in- justi�a: durante o Ultimo carnaval, o companheiro lhe vendeu um capote e o dinheiro sumiu. Contudo não e so isso. O quei-#

xoso e um -rapagao musculoso, sossegado, infeligenfe; mas toda vez que bebe, procura um amigo para desabafar. Apesar das - pragas, das ofensas que alega, senfe-se, o seu desejo de fazer as pazes com o outro for�ado, afim de se aproximarem mais. E este, forte, atarracado, tem a cara redonda, um ar astuto de intrigante, talvez tenha bebido mais que o companheiro, porem mal se lhe descobre a embriaguez. � homem serio -e passa por rico; não quer irritar mais o colega excessivamenfe expansivo, e leva-c, ao bofequineiro. O rapaz sustenta sempre que tem direito de receber sua divida e que o outro tem obriga�ão de lhe oferecer bebida, "se � que es um homem honrado". Demonstrando alguma considera�ão pelo homem que paga. e um leve desprezo pelo for�ado expansivo que recebe do outro em vez de beber por conta propria, o bofequineiro apanha um calico e o enche.

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- Não, Sfiopka, tu e que pagas, diz o for�ado expan- sivo vendo-se convidado - � a tua obriga�ão. - Não adianta estragar a lingua falando contigo! re- f ruca Sfiopka. - Não, Stiopka, esf6s mentindo, sustenta o rapaz re- cebendo o calice das mSos do bofequineiro. Sabes que me deves, ou então não tens conciencia. Não tens conciencia e % falta um olho - ate o olho empenhaste! Empenhas tudo! �s um canalha, Stiopka, um canalha, não passas dum canalha! - Ainda não paraste de choramingar? Olha, estas en- tornando o vodca! Enchi o +eu copo, bebe, grita o botequi- neiro ...quele b�bedo por demais ruidoso. Tenho que esperar ate amanhã?#

192 VOSTOIEVSKI - Sim, esfou bebendo, não preciso que me grifes! Boas festas e boa saude, Sfepan Dorofeitchi fala delicadamente o ebrio, com uma mesura cort~s. Depois, o:hando para aquele a quem momentos anfes chamara de "canalha", continua, om o copo a mão: - Desejo-te mais cem anos de id fo s que j feris! v a,ra Bebe, rosna de satisfa�ão, limpa a boca. - Antes, minha gente, eu virava uma boa por�ão de od . ca, declarou com dignidade, sem se dirigir especialmente ninguem; mas agora, esw tempo passou. . .Muito obri ado, Stepan Dorofeifch. - Não h de que! - E agora, Sfiokpa, deixa-me continuar. Na minha pinião �s um grandissimo malandro, porem ainda fe digo ... - E est aqui o que eu vou +e dizer, seu b�bedo de ma figa, in+errompe Stiopka, irritado. Escuta bem minhas alavras: olha o mundo a nossa frente; vamos d ¡-lo em ivid' ucis metades. Eu +orno por uma e tu pela outra. Anda, e ue eu nunca mais fe ponha os olhos em cima! Esfou farto! - E não me pagas meu dinheiro? - Que dinheiro hei de +e pagar, seu b�bedo? - Muito bem, se o vieres devolver no oufro mundo, não recebo. Nosso dinheiro e o nosso trabalho, nosso suor. ssas mãos calejadas. Tu has de me pagar os meus cinco peques no outro mundo. - Cai fora! Diabos te levem! - Não me a�oifes! Não sou cavalo de arado! - Anda. anda, cai fora! - Sujo! - For�ado ...-toa! E as injurias choviam muito mais asperas que artes da bida. Na farimba. dois amigos esfSo sentados não longe um do 1+

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fro. Um e alto, robusto. musculoso, uma legi ima cara ~de ougueiro. Est quase desfeito em pranto, pois sua emo�ao RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 193 e enorme. O outro, debil, franzino, +em o nariz comprido, de onde parece ciofejar qualque, cousn, e olhinhos azues fixos#

no chão. Foi escrivac, outrora, � instruido e malvado, e frata o amigo com cer+a altivez, o que não deixa de o ofender in- fimamen+e. Beberam juntos o dia inteiro. - Ele se portou pessimamente comigo! brrra o gran- dalhão, sacudindo violentamente a cabe�a do escrivão, que segurara com a mão esquerda. "Portar-se mal" significa "baf,er". O for�ado grandalhão, antigo sub-oficial, invejava secrefamenfe o seu magro amigo; e, por isso, travam um duelo de palavras rebuscadas. - ~E eu +e garanfo que não fens fundamento no que dizes, come�a em fom dogmafico o escrivão, mantendo fixa e gravemenfe os olhos presos no solo. - Ele bateu em mim, est s ouvindo? insisfe o outro, sacudindo mais forternenfe a cabe�a do amigo do peito. Agora, tu es o unico que me resta nesfe mundo, est s ou- vindo? Sou eu que +e digo, ele se porfou mal comigo! - E eu mais uma vez +e repito, meu caro, - uma hisforia tão +r¡sfe so fe pode cobrir de vergonha, replica po- lidamente o escrivão, em voz debil. Olha, meu amigo, seria melhor que reconhecesses que toda essa bebedeira e um sim- pies resultado da tua inconstancia ... O grandalhão oscila um pouco para tr s, considera com olhos ba�os de b�bedo o escrivão magrelo e contente consi- go, e de chofre, no momento em que o outro menos espera, o esmurra na face, com toda & for�a do seu enorme punho. E, assim, acaba uma amizade que durou um dia inteiro. O querido amigo rola desacordado pela farimba. Mas eis que penetra no alojamerto um dos meus co- nhecidos da se�ão especial, - um sujeito sempre bem hu- morado, que não +em nada de tolo, brincalhão sem mal- dade e de aspec~c, muito simples. F"ra ele quem, no dia da minha chegada, procurara um rica�o na cozinha, afir- mando que tinha o seu amor-proprio e que eu o convidara#

1% DOSTOIEVSKI a +ornar cha comigo. Tem quarenta anos. uma bei�orra enorme, um nariz esborrachado e picado Je espinhas. Se- gura uma balalaica, cujas cordas vai tangendo descuidosa- menfe. Um outro preso, de baixa esfatura, nofãvel 'pela

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cabe�a enorme, acompanha-o como, um cão. Esse, mal -o conhe�o. -Alias, ninguem repara naquela criatura. � um individuo esfranho, desconfiado, facifurno, sempre serio, que frabalha na oficina de cosfura e procura viver solifario, sem se aproximar de ninguem. Agora, que esfa b�bedo, gru- dou-se a Varlamov como uma sombra, mas acompanha-o agifadissimo, gesticulando, esmurrando as paredes e as fa- rimbas; com um pouco mais esfara chorando. Varlamov pa- rece não lhe notar a exisfencia. Cousa curiosa: aqueles dois homens nada tinham em comum, nem no frabalho, nem no genio; pertenciam, ademais, a duas se�ões e duas casernas diferenfes. O menor chamava-se Bulkine. Logo que me avistou, Varlamov sorriu. Eu esfava sen- +ado ... beira da minha tarimba, junto ao fogão; ele se de- teve a alguma distancia, refleflu, titubeou, aproximou-se mais com passadas incerfas, e, espigando o busto, arrancando as cordas da balalaica, batendo no chão com a bota, p"s-se a recifar: "Cara redonda, cara branca, $'canta como o rouxinol, "meu benzinho. "Corn seu vestido rodado "barrado de cetim "� linda como uma rainha.. Essa can�ão teve como resultado enfurecer inteiramente Bulkine: fazendo molinefes e dirigindo-se a todos, ele excla- mou: - São 'marifiras, s¢ mentiras, rapazes, mentiras somen- te! Não diz uma unica palavra de verdade, so mentiras! - Meus respeitos ao "velho" Alexandi- Pefrovi+ch, diz Varlamov olhando-me no fundo dos olhos; depois, com um riso canalha. inclinou-se como para me beijar. Estava com a sua conta de vodca. A expressão "o velho Fulano" C. um i, ~,, n .141 - E como vai voc�, Variamov? k ¢timo. Safisfeifiss¡mo com a festa e b�bedo desde 1 U que em anheceu. V desculpando!#

2~ Varlamov falava arrastando um pouco as palavras. J est de novo com a menfirada! grifou Bulkine presa de um desespero sincero, clando.murros na farimba. _ Mas o oufro parece que jurara não lhe prestar a minima aferi�ão. E o mais engra�ado e que, desde que amanhece- ra, Bulki'ne não deixava os calcanhares de Varlamov, afim de o impedir de conversar. Vagueava afras dele como uma sombra, discutia-lhe foclas as palavras, torcia os bra�os, batia nas paredes e nas tarimbas, af� ensanguentar as mãos, e sofria, sofria realmente porque na sua opinião Varlamov men- fia como um condenado! Se tivesse cabelos na cabe�a, ar- ranca-los-ia, de puro desespero! Poder-se-ia supor que ele fomara sobre os ombros a responsabilidade das a�ões de

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Varlamõv, e que cada falta do outro lhe pesava na concien- cia. � o pior de tudo e que Varlamov nem o enxergava. - Tudo � mentira, menfirada! Nem uma palavra e ver- dade! berrava Bulkine. RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 195 sinal de respeito empregado pela genfe do povo, na Siberia, mesmo quando e dirigida a um rapaz de vinte anos. A pa- de respeito, ate lavra "velho." tem um sentido de estima~ mesmo de lisonja. e - E que ' que tu tens com isso? exclamavam os outros for�ados, divertidos. - Quero que fique sabendo, Alexandr Pefrovi+ch, que fui um lindo rapaz; as mulheres eram loucas por mim, come- �ou de repente Varlamov. - Mentiroso! Olha o menfiroso! inferrompeu Bulkine numa esPecie de uivo. Todos os defen+os romperam em gargalhadas. 1 - E eu sabia luxar: tinha uma blusa encarnada, cal�as de veludo bem largas; e me deitava como o conde Bufilkin (1), e para designar a garrafa. (N. de P, Q.) rig que serv I i I#

196 DOSTOIEVSKI 4~ b�bedo como um sueco. Afinal de c ritas ... querer mais! não se pode - Mentira! afirmou energicamente Bulkine. - Nesse tempo eu tinha a casa de meu pai, uma casa de dois andares. Mas dentro de dois anos os dois andares vieram abaixo, e fiquei s¢ com a porta, sem os portais. Que havia de fazer? Dinheiro � como os pombos: quando voou, voou, esta acabado! - Mentira, mentira! garantiu hulkine ainda mais ener- gico. - Quando cheguei aqu¡, mandei uma carta chorona aos

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parentes, afim de que me mandassem um d¶nheirinbo. E pensar que eu procedi contra a vontade da minha gente, que lhes faltei com o respei+o! E ia faz bem sete anos que man- dei essa carta! � não recebeu resposta? indaguei, sorrindo. Não, não receb¡ resposta nenhuma, prosseguiu ele sorrindo +arribem, e aproximando o nariz do meu. E aqui, Akxandi- Pe+rovi+ch, tenho uma namorada ... - Uma namorada? Aqu19 - Onufriev estava dizendo outro dia: "A minha pode ser feia, picada de bexiga, mas +em os seus +rapinhos; e a tua pode ser bonita, porem e uma, mendiga, vestida de saco ... - Sera possivel? - � verdade, ela pede esmolas, respondeu Varlamov com Um riso silencioso. O alojamento inteiro +ambem ria; todos realmente co- nheciam a liga�ão de Varlamov com uma mendiga, a quem ele dera no maximo uns dez copeques durante seis meses. - E então? perguntei, desejoso de me livrar do b�bedo. Varlamov ficou num silencio reticente, depois falou, api- nhando os labios: - Sera que por causa disso tudo, n3o me emprestara uns cobres para beber um trago, Alexandr Petrovi+ch? Olhe, RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 197 #

passei o dia inteiro bebendo unicamente cha, acr~scentou prnavel, recebendo o meu dinheiro. Estou cheio de ch ate aqui. . . J flique; sem TWego, e minha barriga sacoleja como uma garrafa ... No momento em que metia o dinheiro no bolso, o desespero de Bulkine ultrapassava todos os limites. Estava quase chorando e gesticulava como um possesso. - Criaturas de Deus, berrava ele para o alojamento todo, vejam esse homem! SO diz mentiras! Mentiras e mais mentiras, s0 mentiras! - Mas que e que tu tens com isso? pergun+aram-lhe de novo os outros, espantados com aquele furor. Sera que estas maluco? - Não, não consinto que ele minta desse jeito, urrou ainda Bulkine, revirando os olhos e despejando um murro. enorme na tarimba. Não admito tanta mentira! Rebentaram de novo as risadas. Varlamov, depois de receber o que queria, inclinou-se diante de mim e tratou de sair da caserna, trope�ando, para ir diretamente ao bote- quineiro, e logico. Nesse instante, parece que avistara Bulkine pela primeira vez. - Vamos, anda, disse de+endo-se na porta afim de o esperar, como se aquele doido lhe fosse indispensavel. Ca- be�a de pau! exclamou empurrando Bulkine diante de si, com ar de desprezo, e +o rido de novo a balalaica. Como, porem, descrever o tumulto daquele dia sufocan-

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te? Acabou, afinal. Os detenfos se estiram pesadamenfe -nas tarimbas, falam, resmungam, sonham mais que de costu- me. Aqui e aliem joga-se um pouco, mas a festa, a festa tão !ongamenfe esperada, ia terminou. Amanhã e de novo f . aja ufil, sera de novo o trabalho. . . I I(#

C 14% 400 x1l o espet culo No terceiro dia das festas, a noite, nosso teatro deu o seu primeiro espetaculo. Foram inumeros e ardentes os conciliabulos referentes a organiza�ão, mas os atores guardaram tanta reserva sobre os seus problemas que n6s não sabiamos sequer o que iriam represenfar. Duran+e esses tr�s dias, quando iam ao trabalho, esfor�avam-se os atores por trazer a maior quantidade de +raios possivel. Quando me encontraram, Baffichine estalava os dedos bem alto, para significar o seu confentamento. O maior parecia estar dum relativo bom humor; contudo ninguem poderia saber se es- tava a par de tudo, se dera seu consentimento, ou se apenas resolvera fechar os olhos, depois de se certificar de que as cousas correriam convenientemenfe. Creio que o homem nac, poderia ignorar a exis+encia do teatro, mas não queria se envolver no caso, compreendendo que, se o proibisse, po- L, i#

200 DOSTOIEVSKI deriam surgir surpresas desagradaveis: Os for�ados se re- voltariam ou se embriagariam, e pesado tudo, melhor valia deixa-los entregues a sua distra�ão. Atribuo este rqciocinio ao maior, porque e o mais na- tural e o mais lOgico. Pode-se afirmar que se, durante as festas, os detenfos nSo dispusessem do teatro ou de qual- quer cousa analoga para os distrair, a administra�ão teria que organizar um sarau. Mas como o nosso maior se disfin- guia por id�ias inteiramente opostas a da maioria da hu-

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manidade, eu e que dou provas de uma grande falta de dis- cernimento pretendendo que o homem sabia bem o que iazia. Um individuo como o nosso maior, sempre, e por toda parfe, +em necessidade de esmagar alquem, de retirar qualquer cousa, de suprimir um direito, em""resuj'x\,o, de manter uma ordem rigorosa. Toda a cidade o conhecia sob esse aspe f cr Pouco lhe importava que sua opress5o acarretasse o risco e provocar uma revolta. "Existe um castigo para os rebeldes (e assim que raciocin os homens do mesmo calibre que o nosso maior) e com aZes for�ados imundos a gente deve aplicar a lei severa, impiedosameriM, ao pe da letra, - nada de mais, nada de menos." Esses -executores cegos não com- pr,eendem, e jamais serão capazes de compreender, que a aplica�ão da lei ao pe da letra, sem preocupa�ões pelo seu esp¡rito, leva diretamente ... rebelião, nem pode levar a outra cousa. "A lei o diz - que e que quer mais?" exclamam eles, sinceramente surpresos ante alguern que lhes pe�a um pouco de bom senso e sobriedade junto com a aplica�ão da lei. Essa ultima condi�5o - sobriedade - e a que mais lhes parece superflua e revoltante: consideram-na como um vexame, uma falta de folerancia para consigo. Seja como for, o sub-c,ficial nao se opos aos desejos dos for�ados; era tudo o ~ue lhe pediam. E afirmo que o teatro e a condescendencia que o tolerou foi a razão pela qual du- rante as festas não houve nem desordens nem roubos. Teste- munhei a maneira pela qual os for�ados +ornavam conta dos b�bedos a dos inconvenientes e os faziam desaparecer, ale- RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 14., -201 gando que, por causa deles, poderiam proibir a representa- �ão. O sub-c,ficial fez com que os deten+os lhe garantissem que tudo decorreria bem e em calma. Eles concordaram,#

lisonjeados por essa confian�a, e mantiveram religiosamente a promessa. � preciso acrescentar que o consentimento dado não acarretava nenhuma despesa a administra�ão: os lugares tinham sido marcados antecipadamente-, a cena se montava e se desmontava toda num quarto de hora; a fun�ão deveria durar hora e meia e se sobreviesse bruscamente or- dem de in+erromp�-la, tudo desapareceria num abrir e fechar de olhos, os +raios seriam escondidos nos baUs dos detenfos. Mas antes de descrever os cenarios e os frajos, quero dizer algumas palavras sobre o programa - isto �, sobre as pe�as que deveriam ser representadas. Não havia programa escrito. Entretanto, a segunda ou a terceira represen+a�3o, apareceu um, composto por Baklu- chine para uso dos senhores oficiais e outros frequen+adores que, desde o primeiro dia, honraram o nosso teatro com sua presen�a. Nossos espet culos a principio foram acompanha- dos pelo oficial de guarda-, uma vez ate o oficial da ronda dignou-se assisfi-lo, de outra vez foi o nosso oficial de en-

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genharia; e em honra desses grandes personagens e que se preparou o programa. Imaginavamos que a fama do nosso teatro se espalharia Ia por fora, tanto mais porque na cidade não havia nenhum outro; so de raro em raro algum espef culo de amadores. E como verdadeiras crian�as, os for�ados se alegravam com isso, e se envaideciam pelo mais infimo exifo. "Quem sabe?" cochichava-se entre n6s, "pocle ser que os chefões saibam do teatro e venham assis+ , -lo; e, então, vã' o ficar admirados ao ver o que valem os for�ados. O que nos fazemos não +em nada de semelhante com esses +ea+rinhos feitos pelos soldados: não usamos nem manequins, nem barquinhos flutuantes, nem ursos, nem bodes amestrados: aqui temos atores de verdade, que representam uma comedia de "cavalheiros" e a cidade não tem nenhum teatro parecido. 15 I J#

202 VOSTOIEVSKI Urna vez houve uma represenfa�ão em casa do general Abros- simov, e parece que vão dar outra; mas, excetc, nos frajos, eles não nos vencem, em mais nada, porque no di logo nao f�m nada de melhor que n¢s! E pode ate chegar aos ouvidos do governador o boato do que sabemos fazer, e quem sabe se ele não vem assisf ir? Na cidade não ha mesmo featro ne- nhum!" Em suma: sobretudo depois do primeiro �xito, a imagina�ão dos for�ados subiu ao auge; chegaram quase a esperar recompensas ou diminui�ão de pena - ao mesmo fempo que tinham bastante juizo para rir das proprias diva- ga�ões. Sim, eram crian�as, auf�nfl~--as crian�as, embora a maioria denfre eles j houvesse Oassado dos quarenta anos. Apesar da ausencia de programa, eu sabia mais ou menos o que iriamos ver. A primeira pe�a tinha como titulo: "Fi- lafka e Mirofka, rivais". Uma semana antes da represenfa- �ão, Bakluchine se gabara diante de mim de que desempe- nharia o papel de Filafka melhor do que jamais o represen- tariam nos palcos de Pefersburgo. Passeava pelas casernas e se jactava despudora da mente, embora sempre de bom hu- mor. As vezes assumia de repenfe, uma atitude "de artista", ou punha-se a declamar um frecho do seu papel, e todo o mundo rebentava em gargalhadas, fosse a +irada engra�ada ou não. � preciso nofar, ali s, que os de+enfos sabiam man- ter reserva e conservar a dignidade: para apreciar as +iradas de Bakluchine, ou falar do feafro em prepara�ão, era pre- ciso ou ser um mocinho leviano, ou um de+en+o cuja aufo- ridade tinha base s¢lida e cujos sentimentos se podiam ex- primir sem rodeios, nus e crus, por mais ingenuos que fossem (cousa que no presidio representa o pior defeito). Os outros deixavam passar em silencio os comen+arios, sem julgar, sem confradizer, +ornando todo o cuidado em escutar com indi- feren�a, e at� mesmo com desdem- 56 no Ultimo momen- to. no proprio dia da representa�ão e que cada um come�ou

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a se interessar: que haveria? que diria o maior? sa¡ria +udo +ão bem como dois anos afras? e assim por diante. Bakiu- chine me garantiu que a escolha dos atores fora excelenfe, RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 203 -que todos esfariam "no lugar devido", que hayeria af� mesmo um pano de boca, que Sirofkine faria o papel da noiva de Fila+ka. "Vai ver como as saias lhe assentam!" acrescentou piscando o olho e estalando a lingua A "baridia bonfeifora" usar¡a um vestido de folhos, uma pele- rine, fraria uma sombrinha na mão; o "nobre benfeitor" ves- firia farda de oficial, com dragonas e um rebenque. Em segundo lugar dever-se-ia represenfar o drama: "Ke-#

dril, o glufão". Esse titulo me infrigou muito, mas não me adiantaram pe!gunfas; nada consegu¡ apurar, anfes. Soube apenas que a pe�a não fora tirada de livro, porem de uma "escritura" copiada por um sub-cficial reformado; o fal sub- oficial decerto representara algum papel numa das repre- senfa�ões da pe�a dada por um grupo de amadores militares. Nas nossas cidades e provincias disfantes enconfram-se real- mente pe�as desse genero, que provavelmente ficarão para sempre in�ditas: não foram nunca impressas, - apareceram apenas para servir ao feafro popular. Falei: "teatro po- pular"-, e seria realmente bom que os nossos escritores se ocupassem com pesquisas novas e mais objetivas nesse g�- nero de feafro que 6 muito mais vivo e mais rico do que o imaginamos. Disso me conv�nci dianfe de tudo que vi nos- sos for�ados fazerem para o seu espet culo. H tradi�ões, m�todos, no�ões j esfabelecidas que se transmitem de uma gera�ão a outra. Seria possivel lhes seguir os rasfros por meio dos soldados, dos operarios da usinas, e ate enfre os habitantes dos pequenos vilarejos longinquos. Conservam-se fambem no campo e nas capitais de provincias, entre o pessoal domestico dos grandes lafifundiarios. Creio mesmo que muitas pe�as antigas s¢ tiveram amplitude e s¢ se disse- minaram afraves da Russia gra�as a esses afores improvi- sados. Os grandes proprie+arios e senhores moscovifas de outrora tinham o seu elenco particular composfo de artistas- servos. E esses teatros foram o ber�o de nossa arfe dra- m6fica popular, arfe cuja exis+encia 6 indiscufivel. No que se refere a "Kedril, o glufão"; apesar de foclos os meus de-#

DOSTOIEVSKI seios, nada pude saber cie preciso, senão que apareceriam de- monios em cena, que levariam Kedril para o inferno. Mas que significaria esse nome "Kedril"? E por que Kedril, em vez de Kyril (Cirilo)? A pe�a seria russa ou estrangeira? Não pe-le obter nenhuma informa�ão precisa. Anunciou-se que, para ferminar, haveria uma "pantomima musicada". O con-

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junfo pois prometia muito. Os atores aram em numero de quinze, foclos espertos e despachados. Esfor�avam-se extra- ordinariamente, ensaiavam as vezes a+ras das ca¡siernas, fa- ziam-se de misteriosos, em suma, preparavam-nos algumõ surpresa extraordinaria. Nos dias de trabalho, fechavam-se os alojamentos ao cair da noite. Por exce�ão, durante as fesfas de Natal so eram francadas as porfas depois do foque de recolher. Esse favor especial fora concedido por causa do teatro. Duranfe o fempo das fesfas todas as noifes mandava-se pedir ao ofi- cial de guarda que autorizasse a representa�ão e deixasse abertas as casernas mais tempo, explicando-lhe que, na v�spera, quando houvera espet culo, se haviam fechado tarde as porfas sem que se regisfrasse desordem alguma. O oficial de guarda dizia então: "Ontem, com efeito, não sa passou nada de grave, e se eles me dão a palavra de que não havera nenhuma infra�ão a disciplina, e que eles proprios farão o policiamenfo, fico de acordo, e espero que esse policiamento seja muito mais rigoroso que o nosso. Al s, se proibo a representa�ão, pode-se Ia saber o que acon- face com -essa genfe? decerto havera encrenca, e em boa complica�ão estarei metido! Ademais, � muito aborrecido montar guarda: fenho o direito de assistir a esse espe+6cu16, dado não por simples soldados, mas por presos, que são genfe muito mais curiosa. Vamos ver o que e que eles são capazes de arrumar!" E realmente, o oficial de guarda sempre tinha o direifo de ir ver. Alias, se o oficial de ronda indagava: "Onde esfa o oficial de guarda?" nespondiam-lhe: "Foi fazer a chamada e fechar as casernas", o que era uma resposta exata e uma fa- - i RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 2DS cil justificativa. Assim, durante as festas. o espefaculo foi autorizado, e não se fechavam as casernas senão a hora de recolher. Os for�ados sabiam de antemão que a guarda não entravaria nada, motivo pelo qual se sentiam tranquilos. Pelas seis horas, Petrov me veio procurar, e saimos juntos#

para a fun�ão. Toda a nossa caserna estava Ia, exceto o "velho crenfe," de Tchernigov e os polacos. Estes £ltimos s6 se resolveram a vir no derradeiro dia, 4 de janeiro, depois que lhes garantiram defalhadamente que tudo era decenfe, alegre e sem perigo. O desdem dos polacos irrifava os nossos for�ados, de forma que os receberam com uma po- lidez extraordinaria; insfalaram-nos af� nos melhores lugares. Para os circassianos e, principalmente para Isai Fornitch, o featro foi uma delicia. Todos os dias o judeu sacrificava tr�s copeques; no ultimo dia, chegou a depor no prato uma moeda de dez copeques, - e a gente lia o deslumbramenfo no seu rosto. Tinham resolvido os responsaveis que a assis- fencia pagaria o que quisesse, para cobrir as despesas e para

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'/estimular" os atores. Pefrov garanflu-me que me deixa- riam ocupar um dos principais lugares, mesmo que o teatro ficasse a cunha, porque, sabendo-me mais rico que os outros, esperavam que eu desse contribui�ão mais generosa - e fambem porque me consideravam um enfenclido. E assim sucedeu. Vou primeiro descrever a sala e o arranjo do teatro. A caserna da se�ão militar, na qual fora insfalado o palco, tinha quinze passos de comprimenfo. Subia-se do pafio para um p6rfico, que dava para uma salinha de entrada, precedendo a sala propriamenfe dita. Como ia o expliquei, essa coserna fora arrumada de modo diverso das outras; a +a- rimba ficava ao comprido das paredes e o meio do salão era livre. A metade da caserna do lado da entrada fora re- servada para os espectadores, e a segunda metade, que co- municava com uma outra pe�a, servia de palco. A primeira cousa que me impressionou foi o pano de boca. que se es- fendia dez passos afraves da sala. Era de uma opulencia inaudita, aquela cortina: fora pintada a oleo, e nela se viam#

206 DOSTOIEVSKI rvores, cararrianchões, lagos, estrelas. Compunha-se de pano novo e usado, ao acaso dos donalivos. velhas +iras de enrolar os p�s, camisas velhas remendadas num len�ol enorme. Nos trechos em que faltava o pano, tinham simplesmente feito os remendos com papel, mendigado folha por folha nos diver- sos escriforios da fortaleza. Nossos pintores, na primeira fila dos quais se distinguia o nosso "Bruilov", - isto e, A. . . v, empregaram todo o seu engenho em decora-lo o colori-lo. O efeito ultrapassava qualquer expectativa. Aquele luxo satisfez ate mesmo os mais sorumbaticos e os mais exigentes dos for�ados, que ali s, desde o come�o do espe+6culo,lb mostraram +ão infantis quanto os mais impacientes e exal- tados. Estavam todos de ofimo h umor, direi ate de um bom humor orgulhoso. Tocos de vela consti+uiam a ilumina�ão. Diante da cortina ficavam dois bancos tirados da cozinha, e duas ou +res cadeiras +ornadas ... sala dos sub-c,ficiais. As cadeiras tinham sido postas ali prevendo uma possivel vi- sifa dos oficiais superiores. Os bancos eram destinado6 aos sub-oficiais, secrefarios de engenharia, capatazes e outros chefes sem patente de oficial, - se lhes ocorresse vir dar uma olhadela. - o que justamente aconteceu: mais ou menos numerosos, os visitantes de fora~ não faltaram durante foclos os espefaculos; na ultima noite`I não ficou nos bancos um £nico lugar desocupado ... Aftas dos bancos comprimiam- se os for�ados, de pe, em sinal de respeito para com as vi- sifas, sem gorro, de casaco ou de capote, apesar da fuma�a e do calor sufocante. Estavam literalmente amontoados uns sobre os outros, sobretudo nas Ultimas filas, e ocupavam ainda as tarimbas e os bastidores; alguns espectadores ate, reunidos na segunda pe�a por fras do palco, olhavam de Ia a fun�ão afraves dos bastidores do fundo. Na primeira metade da caserna o aperto era fão.granda quanto o que eu vira nos banhos. A porta do anfec�mara estava aberta. L dentro fazia vinte graus de frio, contudo fambem ela estava cheia.

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Empurraram-nos imediafamenf e para diant e, a Pefrov e a mim, ate aos bancos, onde se avistava a cena muito melhor que no RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 207 fundo da sala. Considaravam-me bom juiz, um entendido, que Ia estivera em grandes tea+ros; tinham visto Bakluchine varias vezes me vir pedir consa¡hos, e mosfrar deiFerencia para comigo; deveriam, portanto, me honrar com um lugar bom. Os for�ados são gente vaidosa, insensa+a; apenas, porem, na superficie ... Podiam zombar do mesquinho operario que#

eu era, um Almazov tinha direito de nos encarar com des- prezo - o a n¢s, os barines - e gabar-se diante de n's da sua habilidade em calcinar alabasfro; mas suas zombarias, s�us es- carneos, provinham de outra causa: n¢s finhamos sido nobres, perfenciamos a mesma classe que os seus -antigos senhores, dos quais não conservavam nenhuma boa lembran�a. Entre- tanto, al¡, no teatro, afastavam-se para me ceder lugar. Reconheciam que, naquele assunto, eu.entendia mais que eles. Os menos bem dispostos para comigo (soube-o de fonte limpa) desejavam agora ouvir minha opinião sobre o espe+aculo, e, sem o menor servilismo, me empurravam para a primeira fila. Analiso hoje isso, de acordo com as minhas impressões de então. Naquele mesmo momento, compreencl¡ - recordo-o muito bem - que no julgamento sensato que eles faziam sobre si proprios, não havia nenhuma humildade, mas antes o sentimento do proprio ~neri+o. O tra�o mais caraferisfico e mais impressionante do nosso povo � sua con- ciencia e sua sede de justi�a. Fazer-se de galo, adiantar-se, disputar o primeiro lugar, quer seja digno ou não de o ocupar, - esse defeito não se lhe pode atirar ... face. Assim que a gente lhe fira a grosseira casca e estuda atentamente e sem preconceitos o que est em germe por baixo, descobre qua- lidades das quais não desconfiava absolutamente. Nossos moralistas não +em muita cousa a lhe ensinar. Dinei mais: os nossos moralistas poderiam aprender muito em confacto com o povo. Pe+rov me afirmava ingenuamente que me deixariam pas- sar ... frente porque eu pagaria mais. Não havia pre�o fixo: cada um dava livremente o que podia, mas todos puseram pelos menos um copeque no prato, quando este circulou. Na#

DOSTOIEVSKI alidade, se me deixaram passar a frente, na certeza de que ar¡a mais que os outros, isso +ambem provinha dum sen- imenfo particular de dignidade. µu �s mais rico que eu, assa ... frente; conquanto sejamos iguais aqui, pagas melhor, portanto, espectadores como tu são mais agradaveis aos fores. Ocupa o primeiro lugar, porque não es+amos aqui

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evido ao nosso dinheiro, mas em considera�So aos atores ue representam: nos mesmos sabemos classificar-nos". Que Ifivdz nessa maneira de agir! Procede não do respeito ao' inheiro, porem do respeito proprio. Ali6s, no presidio, não e tinha grande deferencia. pela riqueza, sobretudo se a gente ncara os detenfos em bloco. E af� mesmo passando-os em evisfa de um em um, não me recordo de ter visto um unico umilhar-se por causa de dinheiro. Não falfavam os pedin- hões - e muitas vezes fui vitima deles, todavia agiam mais or esperteza que cupidez. Sabiam pedir com gra�a, com rifanfilidadel Não sei se me expresso com clareza ... Con- udo, voltemos ao teatro, que ia ia esquecendo. Anfes de levantar o pano, a sala apresentava um quadro de esfranha anima�ão. Em primeiro !ugar, a multidão de espectadores amontoados, apinhados, acumulados em toda parte, com as caras impacienfes e felizes esperando o inicio. Nas Ultimas filas, homens frepados uns em cima dos outros. Muitos tinham trazido foros de lenha da cozinha: encosta- ra-nos as paredes, e, trepados sobre eles, apoiando os bra�os nos ombros dos que estavam por baixo, manfiveram-se du- rante horas nessa posi�ão, safisfeifissimos consigo proprios e com os seus lugares. Outros, com as pernas apoiadas a borda inferior da estufa, ficaram assim todo o tempo, sus- tentados pelos que lhes ficavam a frente. E o mesmo acon- tecia com as ultimas filas, junfo a parede. De lado, nas farimbas, havia fambem uma multidão formigante e com- pacta, que rodeava os musicos. La estavam, alias, os me- lhores lugares. Cinco homens tinham trepado e estirado por sobre a estufa, de onde olhavam para baixo; esses na- davam em beati+ude. Nos portais das outras paredes fi- 4w 4' turba dos refarda+arios, dos que nada haviam con ;Y~ cava a J-, g,5 seguido de melhor. Todos se portavam decentemente, sem 11 1 sob Lm bom as- pacto aos harines e as "visitas". As caras vermelhas e lus-#

suor, devido ao calor sufocante, exprimiam a frosas de mais ingenua impaciencia. Que esfranho reflexo de alegria infantil, que contentamento radioso emanava daquelas fronfes marcadas de cicatrizes, ferrefeadas, dos olhares daqueles homens af� então desolados e sombrios, olhares onde outrora brilharam clarões +erriveis! Do lado direito, onde eu estava. as cabe�as sem gorro me apareciam comple+amen- +e raspadas., . . Mas de repente, na cena, observa-se um mo- vimenfo, um rumor... O pano vai subir... a orquestra ini- cia a "ouver+ure". Essa orquestra merece men�ão especial ... De um lado, na tarimba, via-se um grupo de sete musicis+as: dois violinos (um pertencente a um deiento e outro arranjado

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na fortaleza - porem o artista era um dos nossos); +r�s bala- laicas - obra dos for�ados: e um tamboril, fazendo as vezes de confrabaixo. Os violinos rangiam, guinchavam, as quitar- ras não valiam nada, mas em compensa�ão as balalaicas eram incomparaveis. A agilidade dos dedos que tangiam as cordas tinha algo de prestidigita�ão. Tocavam principalmente musicas de dansa. Nas passagens mais movimenfadat, os musicos batiam com o dedo fechado na madeira do insfru- mento; o tom, a execu�ão, tudo era original, tudo +raia o presidio. Um dos guitarristas +ambem entendia maravilhosa- mente do seu instrumento: era ele o jovem barine parricida. O pandeiro fazia maravilhas: ora girava o disco nos dedos, ora fazia ressoar a pele com o polegar; ora se ouviam pan- cadas claras, hmpidas, monoforias, ora irrompia dele um rumor sonoro que caia como uma cascata e se espalhava num diluvio de pequenos ruidos tr�mulos, em ricochete. En- fim, havia ainda duas sanfo'nas. Palavra de honra, eu ate então não tinha a minima id�ia do partido que se pode firar desse grosseiro instrumento popular: a harmonia dos sons. a execu�ão, e, sobretudo, a expressão, a compreensão perfeita RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 209 A#

210 DOSTOIEVSKI dos motivos, eram verdadeiramente exfraordinarios. Foi en+So que descobri quanto abandono infinito, quanto amor do risco traduzem as sugestivas m£sicas de dansa da Russia. Afinal, ergue-se o pano. Todos estremeceram, inquietaram- se; os de fras levan+aram-se na ponta dos pes, alguern caiu dum foro, e do primeiro ao ultimo espectador, ficaram todos de boca aberta e olhos arregalados. Reinava um absoluto silencio. A fun�ão come�ara. Ao meu lado estava Ali, no grupo dos irmãos e dos outros circassianos. Todos se apaixonavam pelo espelaculo; não faltaram a uma unica das represen+a�ões. Como ia o observei mais de uma vez, os mu�ulmanos, far+aros e e+c. são grandes apreciadores do teatro. Ao lado deles, Isai Fo- mi+ch, logo ao subir do pano, esticava o rosto ex+asiado para os milagres que se iriam produzir. Que desola�ão se sofres- se uma decep�ão! O belo rosto de Ali resplandecia com um prazer de menino, tão bonito, que dava gosto ve-lo-. Toda vez que uma das +iradas divertidas dos atores provocava o riso geral, eu involu n+a ria mente me voltava para o olhar. Ele não me enxergava, cuidava de cousa bem diversa! Junto a mim, do !ado esquerdo, estava um for�ado de certa idade, sempre sombrio, descontente, resmungão. Ele +ambern re- parara em Ali, e, mais de uma vez, vi-o virar-se com um meio sorriso, para contemplar aquele rosto tão agradavel! Não sei por que, cha,mava-o Ali Sernionitch. i,

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Principiaram por "Fila+ka e Mirofka". Bakluchine repre- sentava com perfei�ão o papel de Filatka. Via-se que medi- tara cada frase, cada movimento. A menor das palavras que dizia, o minimo gesto, tomavam um sentido inteiramente de acordo com o carafer do papel. Acrescen+e-se a esse esfor�o, a esse estudo, uma alegria surpreendente, irresistivel, e simplicidade,, na+uralidade. Quem quer que visse Bakluchine erifão. afirmaria imediatamente que estava diante de um verdadeiro ator, de um ator nato, dotado de um enorme ta- lento. Assisti mais de uma vez a "Fila+ka" em Moscou e Pe- tersburgo, e afirmo que nenhum dos comediantes de ambas . IL RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 211 as capitais se igualava a Bakluchine: comparados a ele, eram camponeses ... francesa, e não autenticos mujiques. Via-se o esfor�o que faziam para meter-se na pele do personagem.#

Bakluchine tinha, ademais, o acicate da emula�ão: todos sabiam que na segunda pe�a o papel de Kedril seria desem- penhado por um +ai de Pofseikine, considerado, não sei por que, melhor comediante que Bakluchine, - e Bakiuchine sofria como uma crian�a por causa dessa preferencia. Quantas vezes, nos £ltimos dias, não veio desabafar no meu peito os seus ciumes! Duas horas antes da representa�ão, tiritava de febre. Ante as risadas e os gritos da assis+encia: "Bravo, Bakluchine! Isso! Muito bem!" o seu rosto resplandecia e a inspira�ão lhe brilhava nos olhos. A cena, dos beijos com Mirofta, quando Fila+ka lhe recomenda antes que se limpe e acaba limpando-se a si propr¡o, foi duma comicidade per- feita. Todo o mundo explodiu numa gargalhada. Contudo, o mai s interessante para mim era os assistentes se abandona- rem, sem nenhuma censura. Os gritos de aprova�ao ressoa- vam cada vez mais copiosos. C6 es+6 um for�ado que em- purra o vizinho com o cotovelo e lhe comunica vivamente as suas impressões, sem saber sequer a quem se es+6 dirigindo. Um outro, na sua exalfa�ão, no inicio de um a cena comica, vira-se para a assis+encia, abarca-a com o olhar vivo, ges- ticula como se a estimulasse a rir, depois +orna a fixar avida- mente os atores. Um terceiro estala a lingua e os dedos, não pode estar sossegado, mas como lhe e impossivel me- xer-se, fica marcando passo, num p� e noutro. No fim da pe�a, a alegria atinge o auge. Não exagero, absolufamen- te. Imagine-se a prisão, os ferros, o cativeiro, os longos anos tristes que devem ser passados Ia, naquela vida mono- tona, semelhante a chuva que cai gota a gota num escuro dia de outono - e de repente todas aquelas criaturas apri- sionadas, aferrolhadas, conseguem durante uma hora perm¡s- são para se expandirem, para se alegrarem, para esquecerem o seu pesadelo e organizarem um espefaculo capaz de des- pertar a inveja e a admira�ão da cidade in+eira! "Offi--m

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RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 212 DOSTOIEVSKI os for�ados!" Tudo apaixonava, a come�ar pelos frajos. Era para eles extremamente inferessante, por exemplo, verem Vanka Otpiet, ou Nietsvietaiev, ou Bakiuchine com roupa dlf�- rente da que eles estão habituados a usar diariamente, ia ha anos. � um for�ado, nada mais que um for�ado, ressonando as grilhefas, e ei-lo que entra no palco vestindo sobrecasaca, cartola e sobrefudo, como um cavalheiro. E pinfou um bi- gode, e +em cabeleira! Tira do bolso um lindo len�o ver- melho e faz gesfos fidalgos, como se fosse um barine aut�n- fico! O entusiasmo chega ao auge. O "nobre benfeitor" enfra em cena, com a farda de ajudante de ordens - bem gasta, e verdade, - mag com dragonas, gorro com +opiiiiiii militar, e produz um efeito indescrifivel. O papel teve dois candidatos - e quem o acreditaria? ambos brigaram como garotos para ver quem o obtinha, tão grande desejo tinham de se exibir na farda de oficial! Os outros atores tiveram que os separar: a maioria dos votos deu o papel a Nie+svi�-' faiev, - não porque fosse mais bonifo, ou parecesse mais com um nobre; mas persuadira-os de que arranjaria um re- benque com o qual faria molinefes, baferia no chão, exata- mente como um barine legitimo, como um elegante aut�ntico, cousa que Vanka não poderia fazer, pois jamais se avisfara de perfo com um fidalgo. E realmente, quando apareceu com a sua dama peranfe o publico, Nie+svie+aiev passou o tempo todo dando voltas no'ar com um leve rebenque cle bambu, que ele arranjara sabe Deus onde, certo de que assim dava provas de alta educa�ão, de uma elegancia inconfes- +avel. De certo, na infancia. pequenino servo descal�o, vira um cavalheiro elegantemente vestido divertir-se em girar com um rebenque: ficou-lhe gravada a impressão, e frinfa anos depois servia-se dela para seduzir e encantar o presidio infeiro. Niefsviefaiev estava fão absorto em sua ocupa�5o, que não via nada nem ninguem, e falava com os olhos fixos na badine. A "nobre benfeitora" +ambem era nofavel, ao seu modo. Apareceu com um velho vestido de musselina, 213 que mais parecia um farrapo, bra�os e colo nus, uma cara esfranha, pintada de vermelho e branco, uma fouca de dormir, de chifa, amarrada debaixo do queixo. Corri uma das mãos segurava uma sombrinha, e com a outra se abanava com um W~lue de papel visfoso. Uma salva de gargalhadas a recebeu,#

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e a noGre senhora, ela propria perdendo a gravidade, diver- sas vezes pos-se a rir. O papel era desempenhado por um tal de 1vanov. Sirofkine, vestido de rapariga, esfava encan- fador. E cantou muifissimo bem as suas copias. Em resu- mo, a pe�a ferminou com geral agrado. Não houve a menor critica. nem poderia haver... Tocou-se mais uma vez a "ouverture" "Sombras, minhas sombras" (1) e o pano subiu para "Kedril". Kedril e uma es- pecie de Don Juan, pois no fim da pe�a amo e criado são levados para o inferno. O manuscrito foi representado sem corfes, mas senfia-se que estava incomplefo, sem come�o nem fim, sem pe nem cabe�a. A a�ão se passava num local qualquer da Russia, numa estalagem de posta; o esfalajadeiro, leva para um quarto um senhor que usa capa e chapeu re- dondo. Nas suas pegadas caminha o criado Kedril com um ma- lofe e um frango enrolado em papel azul. Kedr¡i usa capofe e um gorro de libre: e ele o glutão. Po+seikine, o concorrente de Baffichine, fazia o papel, enquanto lvanov, "a nobre ben- feitora" da primeira pe�a, representava o amo. O esfalaja- deiro (Niefsvie+aiev) avisa o harine de que o quarto e assom- brado por derrionios; depois. refira-se. O cavalheiro, preo- cupado, sombrio, resmunga a parfe que ia sabe disso ha muito fempo. Ordena a Kedril que arrume a bagagem e prepare a ceia. Kedril e um covarde e um glutão. Escu- +ando falar em demonios, empalidece e +reme como uma folha. Tem vontade de fugir, mas fambem +em medo do amo. Ademais, esfa louco para comer. Adora empanturrar- se, � est£pido, covarde, astuto ao seu modo, engana o amo a todo momento, apesar do medo que esfe lhe inspira. Nesse (1) C�lebre can�ão popular (N. de H. M.) V' ~ J, 1~ I#

214 DOSTOIEVSKI r tipo notavel de lacaio � gente encontra um vago e longin- quo parentesco com Leporello. O papel estava realmente muito bem desempenhado: Pai Potseikine tinha um talento indiscutivel, superior at� ao de Bakiuchine. � claro que quando no dia seguinte me avistei com Bakluchine, não lhe fransmif¡ esse meu juizo; feria magoado muito o coitado. O preso que representava o amo farribern se saiu muito bem: seu palavrorio desalinhavado não significava nada, porem a dic�ão ara precisa, os gestos adequados. Enquanto Kedril cuida da maleta, o senhor vai e vem pelo palco e anuncia aos qua+ro ventos que aquela noite pora fim as suas viagens.

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Kedril escuta com curiosidade, faz caretas, da apartes, pro- voca estrondosas gargalhadas. Não sente nenhuma compai- xão pelo amo. mas ouvindo falar em diabos, quer saber como são, e faz perguntas sobre perguntas. O amo afirMil lhe ex- plica que, enconfrando-se outrora em dificuldades, pediu auxilio ao inferno. Os demonios o ajudaram, 1 o libertaram, mas hoje e o dia marcado para o fim, e segundo o pacto, decerto eles virão para lhe carregar a alma. Kedril põe-se a tremer de verdade; contudo o amo não perde a e ~agem, e manda-o de novo tratar da ceia. Ouvindo falar em ceia, Kedril se anima; desembrulha o frango, +ira uma garrafa, desossa o bicho, não sem provar dele. O publico gargalha. De repente range a porta, o vento sacode as janelas; Kedril estremece, e as pressas, quase invol untaria mente, mete na boca um tão grande peda�o do frango, que o não consegue engolir. Novas risadas. "Esta pron+o?" indaga o amo en- trando de novo no quarto. "Um instante ... barine... estou preparando. . . " responde Kedril, que est pondo a mesa e com toda a franquilidade se propõe a devorar a ceia do fidalgo. O publico admira a pouca vergonha e a as+u- cia desse lacaio que de tal modo ludibria o amo. Deve-se dizer que Po+seikiw merecia todos os elogios. As palavras: "Um instante ... barine ... estou preparando. . ." foram ad- miravelmenfe ditas. Desde que ele come�a a por a mesa, põe-se fambem a devorar, sobressal+ado a cada passo do N~ RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 215 1 amo, que lhe poderia descobrir as bandalheiras. Cada vez .1 que o barine se volta, Kedril se esconde debaixo da mesa, e puxa um peda�o do frango. Por fim, sacia um pouco o#

apetite e pode cuidar na ceia do patrão. "Kedril, esf6 pro ar ;"r' rifo?" grita o h ine. "Esfa pron+o", responde Kedril -,.com vivacidade, mas verifica que não resta senão uma coxa no prato ... Sempre absorto, sombrio, o fidalgo senfa-se ... mesa sem nada perceber de anormal, e Kedril, munido de um guardanapo. planfa-se por +ras do seu senhor. Cada palavra, cada gesto, cada careta de Kedril - quando, por exemplo, voltado para o publico, abana a cabe�a ante a tolice do barine, provoca risadas inex+inguiveis. Mas, exa- famenfe no momento em que o amo come�a a refei�ão, a- parecem os diabos. A partir dai, não ha mais jeito de com- preender cousa nenhuma: os diabos não t�m absolutamente nada de humanos, a porta do lado se abre, uma cousa branca aparece, com uma lanterna acesa no lugar da cabe�a: seque-a um segundo fantasma, que +ambem +em como cabe�a uma lanterna e na mão segura uma foice. Por que as lanternas, por que a foice, por que os diabos de branco? Esperto quem o explicar. Tinha que ser assim, e nada mais. O fidalgo se mostra bem valente: encara os diabos e diz que esta pronto, que eles s0 carecem +ornar o que � seu. Ke-

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dril, ao conirario, � poltrão como um coelho: esconde-se debaixo da mesa, mas apesar do seu pavor, n3o se esquece de apanhar a garrafa. Os diabos desaparecem um instante, Kedril sai do esconderijo. No momento em que o amo vol- ta ao frango, reaparecem +r�s diabos, agarram-no, levam-no consigo. "Kedril, me acode!" brada o harine. Kedril +em outros cuidados: a garrafa, o prato, o proprio pão, que carre- ga para debaixo da mesa. Enfim, ei-lo so: ia não ha dia- bos, j não h amo. Kedril ergue-se; olha em forno de si; um sorriso amplo lhe ilumina a cara. Canalha que e, pisca o olho, senfa-se no lugar do barine, e balan�ando a cabe�a para o p£blico, diz ... meia voz: - Muito bem! agora ia não tenho senhorl 1 i#

216 DOSTOIEVSKI Todo o mundo ri por v�-lo sem amo; então ele acres- centa, sempre a meia voz, dirigindo-se confidencialmente ao publico, com olhares cada vez mais alegres: - Qs demonios o carregaram! O entusiasmo dos espectadores torna-se indescrifivel. Alem do fato de terem os demonios carregado o barine, as palavras foram ditas num jeito tão can...¡ha, com uma caref tão zombeteira e triunfante que ninguern p"de deixar d� aplaudir. A felicidade de Kedril, porem, não dura muito. Mal apanhou a garrafa e encheu um copo, os diabos retor- riam, deslizam por fras dele, na ponta dos p¢s, e o seguram pelas costas. Patife demais para se volfar, Kedril berra com toda a for�a de que dispõe. E nSo pode defender-se , : est com as mãos ocupadas pela garrafa e pelo copo, dos quais não tem coragem de se separar. Com a bp, ca escarf- carada de horror, fica wrca de meio minuto de 'olhos arre- galados, com uma +ai -expressão de covarde a~avorado, que decididamente merece um quadro! Enfim, arrastam-no , car- regam-no, com a garrafa que ele não larga4grifa, sem parar; seus gritosecoam nos basficlores. Mas cai o pano, com uma gargalhada geral. A orquestra da ri i i ' K m nk- ti o a a?arjnSKaga 1 Come�a num pianissimo que mal se escuta, depois o motivo se amplifica, o compasso se acelera, os dedos d~9bra- dos batem ousados na madeira da balalaica. � gr.~karri...rins-` kaia em todo o seu furor, e seria bom se Glinka por acaso a ouvisse no presidio. Então, inicia-se a pantomima. A Ka- marinskaia acompanha-a durante focla a sua dura�ão. A cena representa o interior de um moinho. Senfado a um canto, o moleiro con,erfa um arreio, enquanto a mulher fia

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(2) M£sica de dansa Popuiar, que inspirou ao Compositor Fiodor Glinka (1803- 1857) uma "fantasia" c�lebre. A letra da l(amarinskaia � bastante escabrosa. O mujique de Komarino � um vagabundo onginario de Sievsk, antigo lugar de deporta� lo da provincia de Orei. Dostoievski fala mais longamente sobre essa can�ão no seu livro: "O Burgo de Stepantchikovo". Gogol tambern a comenta em "Almas Mortas". (N. de H. M.) 16 I#

UCOILDA�õES DA CASA DOS MORTOS 4 219 num outro- canto. Sirofkine represenfava o papel da mulher, Niefsvitaiev o do moleiro. Farei notar que os cenarios eram paup�rrimos. Nessa pe�a, como nas precedenfes, era preciso completar com a imagina�ão o que os olhos viam. Em lugar de parede no fundo, pendia uma especie de tapete, ou manta de cavalo; ... direita, tinham posfo um biombo desmantelado: o lado es- querão, que nada tapa, deixa ver a tarimba. Mas os espec- tadores não são exigenfes, o estão dispostos a completar em pensamento as deficiencias da realidade. Desde que lhes dizem "isso a¡ �.um jardim, um quarto, uma isbat# - não precisa mais, não adianfa tarifa cerimonia. Sirofkine, no papel da mo�a moleira, estava um encanto; murmuram-se alguns elogios enfre os espectadores., O moleiro acaba o que est6 fazendo, apanha o chap�u e o chicote, dirige-se ... mulher e lhe explica por m¡mica que precisa sair e se durzi - te sua ausencia, ela receber alguern, então-. . . o mosfra-lhe o chicote. Ela parece enfender muito bem do que se frafa. pois assenfe com a cabe�a. Sai o moleiro. Mal franspõe o umbral, a mulher o amea�a com o punho fechado. Ba- tem, a porta se abre, o um vizinho, moleiro +ambem, enfra. � um muiique barbudo, vestido- num cafe+3. Traz de pre- senfe um len�o vermelho. A mulher ri, mas no momenfo em que ele vai abra�a-la, bafem de novo. Que fazer? Ela o esconde precipifadamenfe debaixo da mesa, e volta a fiar. Apresenta-se novo adorador: � um furriel, fardado. A pari- fomima af� então foi irrepreensivel, e cada gesto perfeita- mente exato. Olhando-se aqueles afores improvisados, a gen- te fem que se espantar e dizer, mau grado seu: "quanta for- �a, quanfo falenfo perdido na nossa Russia, enferrados, por uma insignificancia ...s vezes, no fundo dos presidios ou do degredo!" Porem o for�ado que representava o furriel assis- fira decerfo a alguma represenfa�ão, - falvez numa cidade de provincia, talvez num feafro de barines; achava decerto que os nossos atores, do primeiro ao £ltimo, não entendiam

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nada de palco e n3o se apresentavam direito em ceria.#

220 DOSTOIEVSKI Executou pois a sua enfrada a maneira dos herois do velho reperforio classico: depois de uma vasta passada, emperfi- gou a cabe�a e o busto, lan�ou em +orno de si um orgulhoso olhar circular, -e executou afinal segunda passada, tão majes- tosa quanto a primeira. Um andar daqueles, ia grotesco nos herois classicos, ficava-o ainda mais num furriel fardado, re- pnesenfando uma cena c"mica. Mas o nosso p£blico pensava que devia ser assim mesmo, e aceitava como fato consumado as passadas do homem, sem sombra de critica. Mal o furriei feve tempo de chegar ao meio da sala, bateram novamente. A dona da casa perdeu de novo a cabe�a. Que fazer do homem? Esconde-o num bau, que por felicidade est aberfo. Dessa vez aparece uma visita importante, um galã* de espe- cia rara: � um br�mane (3), vestido a rigor. Uma garga- lhada louca rebenta entre os espectadores. O for�ado Ko- chkine, que tem a cara para o papel, representa maravi- lhosamenfe de bonzo. Descreve com gesfos a ardencia do seu amor, ergue os bra�os para o ceu, aper+a-os ao peito, sobre o cora�3o. No momenfo em que se vai +ornar mais afoi+o, uma pancada violenta ressoa na porta. Pelo modo como batem, reconhece-se que � o dono da %asa. A mu- lher +reme de pavor, o bonzo se agita como um possesso e suplica que o escondam. Ela acaba por enfia-lo de qual- quer modo denfro do armario; mas, esquecendo de abrir a porta, atira-se a roca, fiando, fiando, sem escutar as repe- +idas pancadas do marido. Perdeu de tal modo a cabe�a que force entre as mãos um fio inexisferife, e faz o gesto de gi , rar o fuso, que esfa caido no chão. Sirofkine representa- va - muifo bem o pavor da mulher. O moleiro arromba a porta a pon+apes, e se afira a esposa com o chicofe erguido. Viu tudo, porque estava escondido: e mostra, portanto, pe- loS' dedos, que ela escondeu fres namorados. Procura-os; enconfra primeiro o vizinho que e expulso com um pontap� nas cosfelas. O furriel apavorado quer fugir:. levanta com (3) Deve-se entender por br rnane, ou bonzo, um pope. O autor temia a cen- sura. (N. de H. M.) k, RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 221 a cabe�a a tampa do ba£, gesto que o trai; o moleiro o abarca com o chicofe e dessa vez o galarife milifar esquece as passadas cl ssicas. Resta o bonzo, que o moleiro procura#

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muito tempo; en ' fim, descobre-o no canto, por fr s do armario. Faz-lhe uma mesura cortes, segura-o pela barba e o arrasta para o meio de cena. O bonzo tenta defender-se e grita: "Maldito! maldito!" (6 a unica palavra difa durante toda a pantomima). O marido não lhe d ouvidos, faz-lhe justi�a ao seu modo. Vendo que afinal chegou sua vez, a mulher afira longe o fio e o fuso e foge da sala cLerrubando o fambo- refe. os for�ados estalam em risadas. Sem me olhar, Ali me puxa pela manga e diz: "Olha o borizo, o bonzoll" Não se pode manter em p�, de fanfo rir. Cai o pano. Come�a outra cena. Todavia nao posso descreve-las todas. Houve ainda duas ou tr�s, todas de cara+er comico e, com efeito, engra�a- dissimas. Se os for�ados não as haviam composto, pelo menos lhes acrescentaram muito de seu. Quase todos os atores im- provisavam: de modo que a cada representa�ão o mesmo pa- pel era desempenhado de maneira diversa. A ultima parifo- 'mima, de g�nero fan+asmag6rico, acabava por um bailado du- ran+e o qual enterravam um morto. O bonzo, acompanhado por uma infinidade de servos, faz sobre o caixão uma por�ão de gestos inuMis. Afinal soa a musica do "Sol poente", o morfo w reanima: foclos trepidam de alegria. O borizo dansa com o morto, mas a sua moda sacerdotal. E, assim, termina o espefaculo, ate a pr6xima noite. Separamo-nos, risonhos, satisfeitos, elogiando os atores, agradecendo ao sub-c,ficial. Nenhuma briga. Todos estão num bom humor raro, todos se sentem como que felizes, e adormecem não com o sono ha- bi+ual, porem com a alma quase +ranquila. Is , so não e inven- �ão de minha fantasia: e a vardade, a exata verdade. Foi permitido aquelas pobres criaturas viver, embora por alguns instantes, viver ... vonfade, diver+inem-se, passar algumas horas- esquecidas de que são gal�s, - e esses r pidos minutos os fransfiguraram moralmente. 1,#

222 DOSTOIEVSKI Mas a noite ia vai alta. Esfreme�o e acordo de chofre. Junto ... estufa o velho reza, e, rezara ate amanhecer. Ali re- pousa suavemenfe ao meu lado. Recordo a sua conversa com os irmãos a respeito do feafro, as risadas que dava, antes de adormecer. Mau grado meu, fico a mirar aquele rosto pl cido de crian�a. Pouco a pouco, tudo me volfa ao esp¡rito; revejo os ulfimos dias, as fesfas, o mes que se acaba de passar. Tomado de horror, ergo a cabe�a, olho os pcior- mecidos, meus companheiros, ... luz fremula da candeia admi- nisfrafiva. Olho as caras liVidas, o cafre miseravel, sua nu- dez, suas miserias exposfas- Olho-os bem, para fer a cerfeza de que não sofro de um pesadelo abominavel, mas veio a realidade. Ressoa um gemido, alguern agifa pesadamenfe um bra�o, sacode a grilhefa. Um defenfo se sobressalta a se p5e a resmungar, enquanfo 16 na esfufa, o velho reza por fo- dos os "crisfãos ortodoxos"; ou�o as palavras da ora�ão,

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que ele arficula lenfamenfe, suavemenfe, em compasso: "Se-, nhor meu Deus. fende piedade de nos!" "Não vou ficar aqu¡ para sempre", cismo. "Estou aqu¡ apenas por alguns anos!" E deixo recair a cab%�a sobre o fravesseiro. SEGUNDA PARTE#

1 O4 i O hospital pouco tempo depois das festas, cal doente e mandaram- me para o hospital militar, situado num local que fi- cava a uns quinhentos metros da fortaleza. Era um comprido edificio terreo, pintado de amarelo. No verão, quando chegava o tempo das repara�ões, gastavam a repin- ta-lo uma quantidade exfraordinaria de ocre. No grande pafio ficavam as dependencias, a casa da dire�ão medica e as outras constru�ões necassarias. 'Numerosas enfermarias ocupavam os edificios principais: duas apenas eram reserva- das aos defentos, e estavam sempre, cheias, principalmente no verão. Muitas vezes, ate, era preciso reunir os leifos. En- chiam-se essas duas salas com os "desgra�ados" de toda es- pecie: Q~ p95ws, os defenfos militares provenientes dos cl¡- i,#

226 . 1 DOS TO 1 E V $IK I .--- 11. RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 2Z7 versos corpos de guarda, individuos em insfancia de conde- ~ 1 terna e inferna que vesfiamos; deram-nos roupa branca do na�ão-, depor-fados de passagem. Enviavam-se fambem os hospital, e mais umas meias compridas, chinelas, um gorro de doentes das companhias correcionais, estranha institui�ão on- algodão, um roupão de grossa 15 cinza forrado de não sei que, de são reunidos os soldados de mau procedimento para seiw parecendo esfopa ou emplasfro; - o seu grau de sujeira era corrigidos - e de tal maneira agem que saem de 16 os mais tão grande que ultrapassava todos os limites - foclavia a- completos bandidos que e possivel imaginar. Toda manhã,

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prec 1 o for�ado que se sente doente previne o sub-oficial. Ime. iei-o bastante depois que o vesti. Fomos, então, le- diafamente seu nome e inscrito num registro e ele e mandado vados para a enfermaria dos for�ados. A limpeza exterior ao hospital militar, escoltado por um soldado que leva o re- -era agradavel de ver, - pelo menos tive impressão de asseio, . 1~ vindo do presidio. Os dois outros defenfos passaram para gistro. La, o medico examina a+enfamente os doentes en- a Sala da direifa e eu para a da esquerda. Diante da porta viados por foclas as unidades acanfonadas na fortaleza, e, fechada por uma barra de ferro, estava a sentinela armada, depois de os identificar, au-foriza-os a ficar. Inscreveram- me, a 'Um jovem cabo, que e não longe de 15, o seu substituto. o perfencia ao posfo militar do hospital, deu ordem para me pois, no regisfro, e cerca de uma hora ap's a partida dos nossos homens para o trabalho da +arde, encaminhei-me para o hospital. O cle+en+o enfermo levava em geral consigo o infroduzirem numa enfermaria comprida e esfreita, onde, de m6ximo possilvel de pão e dinheiro, - porque no primeiro dia ambos os lados, ao longo das paredes, os leitos se alinhavam-, não podia -esperar receber ra�ão do hospital: conduzia a mais havia vinte e dois, - e, enfre eles, +r�s ou quatro desocupa- um cachimbo, uma +abaqueira, um isqueiro, - tudo cuidado- dos. Eram ca+res de madeira pintados de verde, velhos conhecidos de todo o mundo na nossa boa Russia desses samenfe escondido na bota. Penetrando no recinto do hos- e pital senti despertar em mim carta curiosidade por esse novo ca+res que, por uma esp'cie de fatalidade, não podem existir aspecto da nossa vida de gales. 1 sem percevejos. Ocupei um que ficava junto ...s janelas. Era um desses dias qu�-rifes, +ristes, encober+05~. em que Como ia o disse, uns poucos dos nossos companheiros a a os edificios daquela especie assumem um aspecto INais som- estavam 15; alguns me conheciam, ou pelo menos iS me ha- brio e rebarbativo. Entramos, o soldado da escolfa e eu, na viam visfo. Mas os doenfes em insfancia de #

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condena�ao e os da companhia correcional eram em numero muito maior. sala de visitas, onde se viam duas banheiras de cobre, e onde e iã esperavam dois enfermos ladeados pela escolta. O enfer- Havia poucos gravemente enfermos, - isfo ', incapazes de deixar o leito. O ar sufocante, nauseante, exalava o cheiro meiro apareceu, olhou-nos displicentemente com ar profefor, IS emana�ões de- e mais displicentemente ainda foi prevenir o medico de ser- cara+er¡ fico dos hospitais. Toda especie de J ~ ; j vi�o. O medico, por sua vez, nos examinou com bastante leferias, de cheiro de po�ões, o infetavam, a despeito da esfufa que ardia a um canto duranfe quase todo o dia. Uma afabilidadee nos enfregou "os cartões de molestia", nos quais i , colcha lisfrada me cobria a cama; avistei por baixo um cober- esfavam inscrifos os nossos nomes. O que se deveria seguir o de asseio - diagn¢stico, indica�ões de tratamento, regime, etc., era for de b�ieta grossa e uns Len�'is de esfamenha, trabalho do interno que dirigia a sala dos for�ados. Ouv¡ os duvidoso. Ao lado da cama ficava uma mesinha com um jarro a um caneco de estanho. Tudo isso, por higiene, era for�ados cobrirem de louvores os seus m�dicos. "São uns coberfo com um peda�o de pano, que para esse fim me foi pais para n¢s", disse-me um deles quando me preparava dado. Debaixo da mesa ficava uma prateleira onde os be- para ir para o hospital. Entretanto, firaram-nos a roupa ex- bedores de cha - uma minoria - arrumavam a chaleira, e#

228 DOSTOIEVSKI os bebedores de kvass o seu p£caro. Cada um, ate mesmo os fisicos, possuia o seu cachimbo e sua fabaqueira, que eram escondidos sob o coichão. O.m�dico e os guardas quase nunca os pesquisavam, e se surpreendiam alguem fumando, fingiam não ver. Ali s, os doentes +ornavam suas precau�ões, e iam cachimbar ao lado da estufa. Quase não fumavam na cama, senão a noite, porque ia então não havia mais rondas, exce+o, as vezes, a do oficial comandante do posto do hos-

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pital. Como eu jamais me tratara num hospital, inferessava- me por tudo que via ao meu redor. A principio compreencl¡ que minha entrada provocava certa curiosidade. Tinham ouvido falar de mim. e mo olhavam sem constrangimento, ate mesmo com um ar de superioridade, como são olhados os novatos nas escolas ou os pedintes nas antec�maras minisfe- riais. Eu tinha -por vizinho da direita um escrivão, filho natural de um capitão reformado, preso como moedeiro falso, e que estava h um ano sob observa�ão. Parecia não sofrer de nada e diziam os medicos que tinha um aneurisma. Alias, conseguira o seu fito: evitou o presidio e a fusfiga�ão e um ano mais +arde foi transferido para T., onde o hospitalizaram. Era um rapaz de vinte e oito anos, atarracado e forte, malan- dro integral, que conhecia todos os arcanos do cOdigo, in- +eligenfissimo, extremamente inescrupuloso, presun�oso, dum amor-proprio doentio. Convencido de sua absoluta honesfi- dade, jamais se reconhecia culpado, não se afastando nunca dessa negativa. Foi o primeiro a me dirigir a palavra. Inter- rogou-me com curiosidade, e me deu informa�ões minuciosas sobre os h bitos internos do hospital. Antes de tudo, e cla- ro, fez-me saber que era filho dum capitão. Gostaria que eu o tomasse por um nobre, ou pelo menos por um homem "bem nascido". Depois dele, outro doente, da companhia correcional, veio me dizer que conhecera varios deportados nobres, e os indicou por nome e sobr~enome. Era um antigo soldado, chamado Tchekunov-. a sua cara respirava hipocrisia: se me procurava as boas-gra�as, e porque farejava o meu di- RECORDA�¢ES DA CASA DOS MORTOS avistado ch e a�ucar na minha prateleira, nheiro. *Tendo o ereceu-me imediatamente os seus servi�os para me obter ferver aqua. prometera man- uma chaleira e me faze, 4~ 1 dar no dia seguinte minha chaleira por intermedic, dos for�a- PÇos que viriam trabalhar no hospital. Mas Tchekunov arranjou ~.x,4%cIo. Obteve uma chaleira de folha, ate mesmo uma chicara,#

er a agua e preparou o cha - em resumo, sarvilu-Me, to zelo que atraiu os comenfa¡rios escarninhos dum +ai ev, tuberculoso, que ocupava a cama defronfe. Era esmo soldado condenado aos a�oites que, por medo igo, bebera uma infusão de tabaco e vodca. Af� então estava deitado, silencioso, respirando com dificuldade, ~enca,rando-me, e acompanhando com olhos indignados as manobras de Tchekunov. Um ar exfraordina riam ente serio lhe tornava comica a indigna�ão. Afinal, não se pode confer: - Olhem esse lacaio! Arranjou um barine para servir! articulou com voz entrecorfada e sem timbre, porque j es- tava perto do fim. Tchekunov, ofendido, voi+ou-se para ele: - Quem e lacaio aqui? disse, lan�ando um olhar de desprezo. -, Tu, replicou Us+ian+sev em tom firme, como se ti- vesse amplo direito de ralhar com Tchekunov, e como se fosse

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seu dever faz�-lo. - hucaio, eu? - Sim, tu. Escute, pessoal: ele acha que não e lacaio! ~ , .,,Zt6 se viu! - Trata da tua vida! Não estas vendo que o harine Ô... não sabe fazer nada, que o harine esta acostumado a ser ser- vido? ... Se estou ajudando, ninguem +em nada que ver com --fez ferv ,--,,.,dom fan .'U s f i a ri f s oquele m "~do cas+ isso, focinho peludo! - Quem e focinho peludo? - Tu! - Eu? - Sim, +u!#

230 DOSTOIEVSKI - E fu? Pensas que es muito bonifo? Se eu fenho focinho cabeludo, fu fens focinho de um ovo podre. - Cabeludo, cabeludo! Olhem, j esta com o pe na cova e ainda apoquenta os outros! Ora que esperfinhol - Sim, sou esperfoi Prefiro me'curvar diante de umas bofas a curvar diarife de um par de llapfi! Meu pai não gos- fava de dobrar a espinha diante de ninguem, e me ensinou a mesma coisa. Eu... Quando ia continuar, fornou-o um acesso de fosse, que o sacudiu duranfe alguns minutos, provocando um escarro de sangue. Logo depois um frio suor de esgotamento lhe pore- jou no fesfa esfreita. Apesar da fosse que o forfurava, ainda queria rixar, de qualquer modo: via-se nos seus olhos a neces- sidade de continuar com as injurias. Mas, esgotado, não pode fazer senão um gesto com a mão, a Tchekunov acabou por esquece-lo. Eu sentia muito bem que o odio daquele f¡sico se dirigia muito mais a mim que a Tchekunov. Ninguem o censuraria, desprezaria, por empregar seus bons oficios para ganhar al- guns copeques. Todos compreendiam muito bem que ele não visava senão meu dinheiro. A esse respeito a plebe não fem falso pudor e sabe por as cousas nos seus devidos lugares. O que desagradara a Us+ianfsev fora o Meu di- nheiro, o meu cha, era o fato de, apesar da grilheta, eu con- finuar a ser o barine incapaz de dispensar criados. - En- frefanfo, eu não procurara absolufamenfe arranjar quem me servisse: queria sempre agir por mim proprio, fazer com que não me fornassern por nenhum barine cheio de luxos, d~ mãos delicadas derriais; punha nisso todo o meu amor-proprio, se essa expressão pode caber ai. Todavia, - não compre- endo como foi que isso se produziu - nunca me pude liberfar dos varios companheiros condescendenfes ou presfimosos que

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vinham esponfaneamenfe a minha procura, e que me acaba- vam frafando como se fossem eles meus amos e eu o servi- Idor. E - quisesse ou não - continuava a ser para todos um verdadeiro barine, incapaz de dispensar conforfo nem RECORDAI;OES DA CASA DOS MORTOS 231 do isso me desgosfava muito. Mas Ustianfsev era ,um tuberculoso irascivel. Os outros doenfes tomaram um ar c ,¡riados. Tu de desdenhosa indiferen�a Para comigo. Naquela farde. eram#

dos presa da mesma preocupa�ão. Compreend¡, escufan- os conversar, que iam frazer para a enfermaria um conde- do que nesse momento esfava a sofrer os a�oites. Os for- dos esperavam o recem-vindo com certa curiosidade. Pre- ndiam que a puni�ão era leve - quinhenfos a�oites, apenas. Pouco a pouco fiz meu circulo de amigos. Segundo de compreender, a maioria dos meus companheiros de en- . rmaria sofria de escorbufo, doen�a dos olhos, molesfias caraferisficas dessa região. Os outros, os "doentes de verdade", esfavam afetados por afec�ões do peito ou febres diversas. Nossa sala tinha a caraferisfica de receber toda especie F6 enfermos, af� os de molesfias venereas. Falei em doentes "de verdade" porque havia enfre nos alguns for�ados que ti- nham conseguido vir "para descanso" e que os medicos admi- fiam por compaixão, sobretudo quando havia muitos leitos vagos. Apesar da enfermaria ser fechada, apesar da sua atmosfera mefifica, a vida do hospital parecia agradavel de- pois dos rigores do presidio e do corpo da guarda: e por isso muitos defenfos se faziam passar por doenfes. Havia mesmo verd de* "h bifu's" dos leitos, vindos na maioria da com- ,~a i ros a e panh correcional. Examinei com aten�ão meus novos com- panheiros, mas minha curiosidade foi especialmenfe afraida por um dos nossos presidiarios, um agonizante que ocupava o primeiro leito ao lado de Usfianfsev,,e, por consequencia, fi- cava defronfe, de mim. Chamava-se Mikhailov, e, quinze dias ,onfes, eu o -vira ainda na fortaleza. Doente ha muito tempo, deveria fer-se frafado; porem, com uma especie de desprezo o uma obstina�ão infeiramenfe inufeis, dominava-se, engulia dores, e s0 no Nafal baixou a enfermaria, para morrer fres se- manas depois, de tuberculose galopante. Derre+era-se como cera no fogo; j não era senac, um esquelefo. Ainda lhe veio I#

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232 DOSTOIEVSKI o rosto descarnado, - um dos que me chamaram aferi�ão a logo ' chegada. Ao seu lado estava deitado um preso da companhia correcional, ia velho, horrimel, repugnante de su- je~ra ... Mas'não Posso realmenfe enumer -los todos. Se me recordo desse velho, e porque no momento ma produzia uma maior impressão, e por ele fui iniciado em algumas parficula- ridades da enfermaria. Atingido por um defluxo forMe, ele es- pirrava sem parar, (não fez outra cousa durante a semana se- guinte), mesmo durante o sorio; dava verdadeiras salvas de cinco a wis tiros, e de cada vez repetia concienciosamenf�~: "Senhor! tende piedade, que castigo!" Nessas ocasiões senfava-se no leito, -e tomava avidamente um rap� clume- guar- dava num canudo de papel, afim de espirrar mais forte e com e mais m'fodo. Espirrava num len�o de xadrez, sua propriedade particular, e ia desbotado de tanta lavagem. O nariz pequeno se pregueava de forma especial, a cara -s-- enchia dum numero infinito de rugas, e mostrava alguns dentes negros, nas gen- givas vermelhas, escorrendo saliva. -Apos espirrar, abria o len�o, olhava com muita aferi�ão o catarro copioso, e de- Pois o esfregava no roupão pardo e de tal 'forma lhe pas- sava toda a gosma, que o len�o ficava apenas levemente umido. Vi-o fazer isso durante uma semana inteira. Essa in- dignidade, para economizar um objeto pessoal em prejuizo dos do governo, não despertava protesto nenhum da parte dos outros doentes, embora algum deles talvez fosse obrigado depois a vesf ir o mesmo roupão. Mas a nossa gente do povo d6 provas de uma ausencia de repugnancia realmente espan- tosa. Isso me impressionou tanto que passei a olhar com nojo e curiosidade o roupão que eu proprio vestira. Notei primeiro o odor forte: o pano ia tivera tempo de esquentar no meu corpo, e cheirava cada vez mais a remedios, a emplastros, e (segundo me pareceu) a pus, como, se desde tempos ime- moriais estivesse a vestir corpos de doentes. Talvez lhe tivessem lavado o forro alguma vez, contudo não o ousaria afirmar. De qualquer modo, era semeado por nodoas es- franhas, embebido de exsuda�Ses mais ou menos gordurosas, RECORDµCUS DA CASA DOS MORTOS 11~idas de vesicatorios, de unguentos, de cataplasmas, e+c ... mo frequentemente nos chegavam for�ados que acabavam passar pela "rua verde", com as costas cobertas de equi poses, eram tratados com ep¡ternas e compressas - e os 'rOLIpoes u21,1 , vestidos por sobre as camisas 'midas, não poderiam#

e se ¡mpreg 1, v Oeixar d nar de tudo. Durante os meus longos :t,,,,~f*nos de deten�ão, cada vez que devia voltar ao hospi- (o que acontecia frequentemente) vestia sempre os rou-

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poes com uma desconfian�a medrosa. Essa desconfian�a "' ` 'Provinha fambem dos piolhos, que pululavam neles, e que afin- giarri um tamanho enorme ... Os for�ados os esmagavam . .com satisfa�ão, e quando os estalavam enfre as unhas, adivi- nhava-se pela cara do catador, o prazer que sentia. Como os presor. fambem não gostavam de percevejos, todos juntos se ocupavam em desfrui-los nos longos e tristes serões de in- verno. Contudo, a despeito do odor f�tido, reinava um cer- to asseio na sala, pelo menos na aparencia: não se deveria olh6-la muito de perto. Os doentes estavam habituados a considerar natural aquela ordem de cousas. Ademais, os re- gulamentos não estimulavam o asseio: falarei sobre isso mais tarde. Quando Tchekunov me serviu o ch6 (direi de passagem que a agua da nossa enfermaria, frazida uma vez cada vinte e quatro horas, confaminava-se rapidamenfe em con+acto com o ar ambiente), a porta se abriu de chofre e o soldado que acaba&de ser a�oitado entrou sob boa escolta. Era a pri- meira vez que eu via um horr¡am fustigado. Depois, +rou- xeram muitos outros, - alguns at� foram trazidos ap6s pu- ni�ão por demais severa, e sempre o preso a�oitado represen- fava grande distra�ão para os dwn+es. Recebiam-se esses in- felizes com austera expressão de gravidade e com muita dis- cri�ão. A recep�ão dependia em parte do grau da impor- tancia do crime e, consequen+emenfe, do numero de a�oites recebidos. Os condenados que recebiam a�oites mais se- veros, os facinoras legitimos, gozavam de uma considera�ão que nao era dispensada a um pobre recruta punido por tenta- 17#

234 DOSTOIEVSKI fiva de deser�ão - e era esse o caso do desgra�ado que nesse dia traziam. Mas nem uns nem outros provocavam d6, nem davam lugar a nenhuma observa�ão malsonanfe. Ajudava- r se- o jusEgado, frafava-se Ue em siJencio, sobretudo quando o desgra�ado não podia dispensar socorros. Os enfermeiros sabiam bem que os depunham em ma 1 os peritas. Os cuidados consistiam principalmente na mudan�a cont¡nua de compres- o carri sa ou com um trapo qualquer molha- do, e que se colocavam nas costas magoadas, se o paciente não esfava em condi�Ses de as aplicar pessoalmente; era pre ciso, alem disso, tirar das chagas as felpas de madeira que Ia se introduziam todas as vezes que as varas se quebravam. Essa £ltima opera�ão era dolorosissima. Mas a extraordinaria resist�ncia dos fustigados sempre me deixou afOnito. , , Entre todos os que vi, alguns tinham sido horrivelmente maltratados, e posso afirmar que bem poucos se permitiam gemer. So o rosto liVido parecia diferente; os olhos brilhavam, porem, com um clarão desvairado, e o desgra�ado era, as vezes, obrigado a morder os l bios ate deitar sangue, para os impedir de tre

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mer. O soldado que acabava de entrar era um belo rapaz de vinte e +r�s anos, alto, esbei+o, trigueiro, bem feito. Seu dorso fora todo escalavrado. Com o corpo nu ate ... cintura, trazia nos ombros um pano molhado, sob o qual fremia de febre, e, durante cerca de hora e meia. nSo fez senão andar dum lado para outro, na sala. Eu o fifava atentamente: parecia não pensar em nada: seus olhos fugidios, perdidos, tinham dificul dade em se -fixar em qualquer cousa. Adivinhei que minhe chaleira o atraia O ch estava quente, a fuma�a subia da chicara, e o pobre diabo tiritava, casfanholando os dentes. Ofereci-lhe o cha. Sem um olhar com uma volta repentina, ele me encarou, segurou a chicara, enguliu a infusão sem a�ucar, as pressas, esfor�ando-se tremendamente para não me blhar. Depois de beber, repousou a chicara em silencio, não fez se- 11 quer um sinal com a cabe�a, voltou a andar pela enfermaria. Não es+ava em estado de agradecer, nem de fazer reveren- cias. Quanfo aos for�ados, todos, a principio. evitaram falar sas feitas com uma i RECORDA�US DA CASA DOS MORTOS 235 depois#

-lhe as compressas, corri o recruta punido: aplicaram rido provavelmente fingiram não lhe prestar aten�ão, procura deixS-lo em paz, n5o o importunar com perguntas nem com "compaixão" - o que era precisamente o desejo do homem. Entretanto, chegou a noite e acenderam a lamparina. Al- guns doentes, mais ou menos numerosos, possu¡am candeias- O medico fez a visita noturna, a sub-c,ficial de guarda contou os doentes e fecharam a sala, depois de trazerem a cuba para as necessidades noturnas... Soube, surpreso, que o tal vaso servia ali, a noite in+eirar, embora as latrinas ficassem apenas a dois passos da nossa porta, no corredor. Assim o queria o ro- gulamento. Duranfe o dia, deixavam sair da enfermaria os for�ados por um minuto, não mais: porem ... noite, não se to- Jeravam sa¡das sob nenhum pretexto. As enfermarias dos for- �ados não estavam sob o regulamento comum-, um de+en+o, mesmo doente, deve sofrer o seu castigo. Ignoro a quem se deve semelhante regulamento, s6 lhe conhe�o a absurda aplica- �ão; jamais o pedantismo da burocracia se exibiu melhor do que nesse caso. Tais medidas não emanavam decerto dos m�dicos, a quem, repito, os de+en+os não se cansavam de louvar, e que eram respeitados, venerados como pais. Repeli- dos por todos, os for�ados sabiam apreciar as boas palavras e a afei�ão dos m�dicos, senfiam-lhes a bondade e a fran- queza sob as mais simples palavras, sob os gestos afaveis, que poddWam muito bem não ser feitos. Ninguern se lembraria de ter raiva dos doutores, se eles se mostrassem grosseiros ou brutais; eram queridos, porque eram humanos. Compreen-

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diam bem que um for�ado tem tanta necessidade de ar puro quanto qualquer outro enfermo, mesmo de patente elevada. Os convalescentes das outras salas, por exemplo, podiam pas- sear livremente nos corredores, mexer-se um pouco, respirar um ar menos pesteado que o da enfermaria, saturado sempre de emana�oes deleterias. Não poderia haver nada mais in- fecto que o ar podre da nossa sala, depois que o vaso da noite era Ia posto-, quanto mais avan�ava a noite. mais esse ar i I#

236 DOSTOIEVSKI se tornava irrespiravel, gra�as a alta temperatura e as fre- quentes necessidades provocadas por certas doen�as. Se eu disse que o for�ado sofre a sua pena at� na doen�a, -ao quero fazer supor que o regulamento 'visasse apenas o castigo. Seria de minha parte uma calunia sem fundamento. Não havaria ne- cessidade de punir um doente. Em consequencia, e de crer que um motivo imperioso imp6e ... administra�ão essa medida tão cruel. Que motivo, porem, sera esse? O que ha de precisa, a mente irritante, no caso, e que ninguem esf' em condi�Ses de explicar tal medida, como alias varias outras, tão ineptas e ilOgicas que desafiam qualquer compreensão. Como. real- mente, explicar crueldade tão inufil? Rensarão eles que os for- �ados se declaram doentes com a inten�ão unica de enganar os medicos, e aproveitar a noite para fugir do hospital? Mas essa suposi�ão não resiste a um exame. Por onde fugiriam, com que roupa? Durante o dia so 1 se permite sair da sala a um homem de cada vez; poder-se-ia fazer o mesmo ' noite. Juntinho da porta, a dois passos das lafrinas. fica uma senti- nela armada. Ela +em, ademais, o direito de acompanhar o doente -e não o abandonar de vista. Numa das cloacas ha uma janela de vidra�a dupla, com barras de ferro. Bem debaixo dessa janela, no patio, e sob as janelas da enferma- ria dos presos, uma outra sentinela vai e vem. Para passar por ali seria preciso quebrar as vidra�as e as barras. Quem o per- mitiria? Mas suponhamos que um doente mata silenciosamente a sentinela, sem desper+ar nenhuma suspeita, admitamos essa impossibilidade; pre~isara ainda quebrar os vidros e as barras. Observemos ainda que, bem ao lado, dormem os enfermeiros e, dez passos alem, diante da outra sala de defentos, velam ainda umo sentinela armada e o seu substituto. Isso soma muitos guardas. E para onde fugir, no cora�ão do inverno, de meias e chinelas, com roupão e gorro de dormir? Se, portanto, o perigo de fuga e min¡mo, ou, por assim diWr, inexistenfe, para que trancar os doentes, para quem o ar puro e mais necessario que aos sãos? Com que fim? Nunca o pude compreender. REColtDA�õES DA CASA DOS MORTOS

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Todavia, Ia que propus essa pergunta: para que ? - não ,posso deixar de dizer uma palavra a respeito de outro pro- ¡ r. Quero fala- das riri- blerna que jamais consegui resolve lhetas, das quais o mais doente dos for�ados não se pode libertar. Mesmo os +uberculosos~ a cuja morte assisfi, ainda as#

carregavam. Todos estavam habituados a elas, todos as consideravam uma necessidade inelufavel. Durante o meu .tempo de presidio, nunca que eu soubesse, pessoa nenhuma -teve a id�ia de solicitar a dispensa da grilhe+a a um doente. .- principalmente de um +uberculoso, proximo da morte. Para falar francamente, as cadeias não são tão pesadas assim, - não pesam mais de oito a doze libras (1), o que representa um fardo suportavel para um homem v61ido. Entretanto, dis- seram-me que ao cabo de alguns anos, as pernas come�am a definhar. Não sei se isso e exato, mas inclino-me a crer que o seja: fixado para sempre a perna, um ferro, embora leve, ppenas de dez libras, aumenta de qualquer forma o peso _do membro de uma maneira anormal, e depois de algum fempo provoca perturba�ões perigosas. Admitamos, contu- -do, que as grilhefas sejam uma bagatela para um homem que goze boa saude. S�-lo-So igualmente para um enfermo? ~Admitamos ainda que elas nSo pesem quase nada para um doente comum. Porem, repito, para doentes graves, para os fisicos cujos bra�os e pernas se descarriam, qualquer palha s.er6 lesada. Realmente, se a administra�ão medica re- clamasse a tirada dos ferros ao menos para os t¡sicos, teria direito a grande gratidão. Alguem dira talvez que os for- �ados são monstros, que nSo merecem nenhuma benevolen- cia-, mas sera necessario redobrar o castigo daquele sobre quem j6 pesa a mão de Deus? Não se pode acreditar que tal maneira de agir vise apenas punir: a lei perdoa ao +uber- culoso as penas corporais. Trafa-se, portanto, de uma mis- feriosa medida preventiva: que fim visara, ao cer+o? Bem inteligente sera quem o adivinhe, pois ninguem pode recear a fuga dum +uberculoso. A quem poderia ocorrer sernelhan- 1 (1) Ou sejam: de tr�s quilos e meio a cinco e meio. (N. de R. Q)#

.m - 'DOSTOIEVSKI te id�ia, principalmente quando o enfermo j6 est6-gravemente atingido?' O~ doentes dessa especie não podem enganar os medicos, -'sgo reconhecivais ao primeiro olhar. Ademais, prendem-se cadeias as Pernas de um homem unicamente para que ele não fuja e nao possa correr? Absolutamente. A,,, grilhefa � um sinal ~ de infamia, uma vergonha, um fardo f¡- sico o moral - e pelo menos assim que a consideram - mas nunca impediu ninguem de fugir. O mais esfUpido, o

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mais desajeitado dos presos, não tem dificuldade em serrar, , ou em quebrar com uma pedra o elo de ferro que o prende. . . ~,,4 Os ferros são pois uma precau�ão ihufil, e ia que não re- presentam senão um castigo, novamente pergunfo: por que mortificar af� os moribundos? Is Escrevendo estas linhas, revejo um f¡ ico, agonizante, aquele mesmo Mikhailov que se deitara defronte a mim, não longe de Usfianfsev e- que, se bem me lembro, morreu quatro dias ap6s minha chegada ao hospital. E, talvez, agora, fa- lando de f¡sicos, eu esteja a repetir involunfariamenfe as id�ias que me ocorreram por ocasião dessa morte. Eu conhecia pouco esse Mikhailov, rapaz de vinte e cinco anos no max¡mo, alto, esbelto, de beliSsima aparencia, e que pertencia a se�ão especial. Fazia-se notar por uma estranha facifurnidade, por uma tristeza meiga e franquila. Tinha positivamente "se- cado" na prisão como a seu respeito diziam os for�ados, entre os quais deixou uma boa recorda�ão. Revejo os seus olhos magnificos, mas a falar verdade, não compreendo pbr que guardei dele uma imagem tão clara. Expirou pelas fres horas da tarde, um dia muito claro eµrio, com o sol a brilhar nas vi- dra" , esverdeadas e cheias de gelo das nossas janelas. Uma verdadeira torrente de luz inundava o desgra�ado. Morreu lucidez e depois de agonizar durante varias an icou com os olhos vidrados, e nSo reconheceu mais os que se aproximavam do seu leito. Que- riam alivi * a-lo, pois compreen 1 diam que ele sofria muito. Es- tava com a respira�ão penosa, arquejante, rouca. Seu peito 'ap6s perder a horas. Desde 11 A n~ L= t#

Afastou se erguia muito alto, como se o ar lhe faltasse. primeiro o cobertor, depois a roupa, e pos-se afinal a es- , gar�ar a camisa. Nada mais pavoroso do que ver aquele corpo comprido, com pernas e bra�os descarnados, ventre ;~-cavado, peito soerguido, com as costelas salientes como as ~,~,µurn esqueleto. Não tinha mais sobre si senão uma cruz de madeira, um breve de pano, e as grilhe+as, das quais as equidas poderiam sair sem dificuldade. Um qu s ar- , pernas res to de hora antes da sua morte, estabeleceu-se um silencio ~I ~` na sala: não se falava senão cochichando, não se caminhava senao na ponta dos pes. Os for�ados trocavam raras pa- -lavras sobre assuntos alheios, lan�ando olhares de esguelha ao moribundo, que arquejava cada vez mais alto. Afinal, com mão tremula e incerta, ele procurou o breve no peito para o arrancar, como se aquilo fosse um fardo que o ator- menfasse, o esmagasse. Tiraram-no. Dez minutos apOs, o homem expirou. Batemos na porta afim de prevenir a sen

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finela. Veio o guarda, olhou o morto, estupidamente, e foi procurar o enfermeiro. Este ultimo, bom rapaz, muito preo- cupado com seu f¡sico, - alias agradavel - depressa apa- a 11 11 receu; em passos rSpidos, que ressoavam no silencio da en- fermaria, acercou-se do morto: enfSo, com ar desenvolto, 1,1 -e preparado de antemão, tomou-lhe o pulso, +a+eou-o, como qu fez um gesto impotente e se retirou. Logo depois foram 1 prevenir o posto da guarda: como o criminoso pertencia ... se�ão especial, a cons+afa�ão do 6bifo exigia formalidades . e de certa ordem. Enquanto se esperava, um dos for�a- 1 r os olhos do de- ,? dos opinou que se deveriam fecha ! ~I , funto. Um outro, que ouvia atentamente, avan�ou sem di- i ~:' ~, zer palavra, e lhe baixou as p61pebras. Avistando a cruz que escorregara para o travesseiro, segurou-a, olhou-a bem, e a repOs no pesco�o de Mikhailov, e, afinal, benzeu-se. Os Ö �os do morto iam se endurecendo; um raio de sol lhe brin- ra cava no rosto; pela boca entreaberta, duas fileiras de 4 dentes brancos reluziam entre os labios finos, colados as 1 1 gengivas. Enfim, o sub-c,ficial da guarda chegou, armado e 1~ #I RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 241#

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242 DOSTOIEVSKI de Capacete, seguido por dois guardas. Aproximou-se, di- minuindo cada vez mais o andar e olhando com embara�o os detenfos, que de todos os fados o fitavam em silencio, com ar sombrio. A um passo do morto se imobilizou, como intimidado e pregado no lugar. Aquele cadaver, comple- famenf� nu e ressequido, carregado ainda de ferros, o im- pressionava; bruscamente levantou a jugular, tirou o capacete, - cousa a que não era absolutamente obrigado - e fez um amplo sinal da cruz. Era um rosto grave e grisalho, o da- quele soldado idoso. Ao seu lado' estava Tchekunov, gri- salho fambem; não deixava de fitar o sub-oficial, e acom- panhar cada um dos seus gestos com uma obstina�ão obse- dante. Entretanto seus olhos se encontraram, e de repente o labio inferior de Tchekunov pOs-se a tremer. O preso mordeu-o ate fazer sangue, trincou os dentes, depois, como que mau grado seu, com um gesto involunfario da cabe�a, indicou o

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morto ao sub-c,ficial e exclamou vivamente: - Esse fambem tinha mãe! Acabando de dizer isso, afastou-se. Lembro-me que essas palavras me trespassaram ... Por que as dissera ele, a como lhe vieram ao espirifo? Porem j6 vinham apanhar o cadaver. Erguq-am-no com o cafre, e a palha estalou. No silencio geral, as grilhefas ressoavam, ar- rasfando-se pelo soalho. Repuseram-nas no lugar. Levaram o corpo. E imediatamente todos se puseram a falar ao mes- mo tempo, muito alto. Do corredor nos chegava ainda a voz do sub-c,ficial que mandava chamar o ferreiro: era prae- ciso desferrar o morfo! Mas sal do meu assunfo.. . 6 O hospital (continua�ão) visita dos m�dicos se fazia pela manhã: apareciam todos A juntos pelas onze horas, acompanhando o chefe de cl¡ nica: mas hora -e meia antes deles o interno fazia a ronda dos leitos. Nessa ocasião finhamos como interno um rapaz muito expedito, sempre afavel e manso. Os for�ados lhe queriam muito bem, e s6 viam nele um defeito: o de ser "sos- segado demais". Realmente, como não tinha o dom da pa- lavra, ele parecia intimidado, corava, apressava-se em modi- ficar os regimes ao primeiro pedido dos doentes; dava a im- pressão que lhes receitaria apenas os remedios que eles qui- sessem tomar. No fundo era um excelente rapaz! � pre-#

ciso notar que muitos dos nossos medicos gozam da estima#

244 DOSTOIEVSKI e da afei�ão Popular, pelo que sei. a justo t¡tulo- Compre endo que estas palavras parecem um paradoxo, mormente se se �ncara a falta de con-~an�,3 elo nosso povo para com tudo que se refere ... medicina e aos remedios de origem estrangeira. De preferencia a recorrer ao m�dico e ao,hos- pita], um homem do povo, embora atacado por dolorosas enfermidades, trafar-se-6 durante longos anos com uma fe¡fi- ceira, ou se enchera com os mais primarios remedios de comadre (que alias não devem ser desprezados). Essa pre- ven�ão tem uma causa extremamente grave, inteiramente alheia a medicina: provem da desconfian�a gerQI do nosso povo por tudo que traz uma estampilha oficial. � preciso confessar fambem que ele fem preven�ao contra o hospital gra�as a uma infinidade de narrativas pavorosas que ouve, - frequentemente est£pidas e despidas de qualquer funda- m�rito. O que lhe inspira mais repugnancia são os h bitos

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alemães em vigor nos nossos hospitais, as pessoas estranhas que os cercam durante as doen�as, a severidade da dieta os boatos sobre a dureza das enfermeiras e dos medicos, sobre' a disseca�ãoe autopsia dos cadaveres, e+c ... O povo pensa fambem que fera um barine a traM-lo, pois afinal de contas, todos os doutores são barines. Quando, porem, trava mais amplo conhecimento com os m�dicos, (ha exce�ões. embora Pouco numerosas) todas essas repugnancias caem por si, gra- �as, creio eu, a probidade dos nossos clinicos, - particular- mente os mo�os. A maioria deles sabe granjear a estima e ate mesmo o amor da gente do povo. Em todo caso, escrevo sobre o que vi e experimentei mais de uma vez e em muitos lugares, e não tenho razão para crer que em outra parte as cousas se passem de Modo diferente. Sei que em algumas localidades longinquas os m�dicos podem ser acusa- dos de mercenarios: abusam dos rendimentos dos hospitais, negligenciam os doentes, e chegam m-esmo a esquecer infei- ramente a medicina. Isso j se fem visto. Mas quero falar aqui da maioria do corpo m�dico, que se inspira num espirito novo, que se regenera dia a dia. Quanto aos apostafas da rofissão, aos lobos do redil, embalde tentarão justificar do o meio, responsabilizando-o por sua desgra�a: car sempra no w , rO,5_~ i �5 perderam -4,0d3 de. Porque a humanidade, a afabilidade, a com fernal para com os doentes são ...s vezes mais afi zes que os remedios.Ja e tempo de por +ermo ...s nos queixas ap ticas contra o meio que nos gangrena. mifamos que essas queixas +enhann base, que o meio nos deforma muito; entretanto, um canalha astuto, que conhece o seu negocio, acusa esse mesmo meio e sua#

,influencia afim de dissimular não s¢ as proprias fraque ·, como fambem a propria indignidade, principalmen quando sabe falar bem e escrever melhor. Mas estou novo a me afastar do meu assunto. Queria mo limitar a 11 _~dizer que a ciente simples tem menos hostilidade e descon -,fian�a para com os cl¡nicos do que para com a administra e Vendo os medicos a trabalhar, eles perdem ,�ão m'dica. a maioria dos seus preconceitos. Em muitos detalhes, a ad ministra�ão dos nossos hospitais não esta em harmonia com o esp¡rito do nosso povo, vai de encontro aos seus habi+os, e não lhe sabe granjear a confian�a e a estima. � pelo menos o que pude concluir das minhas observa�ões pessoais. Nosso interno tinha o h bito de se deter diante de cada doente, inferroga-lo seria e atentamente, antes de lhe pnescre ver o regime e o remedio. As vezes notava que o "enfermo" estava de boa saude, mas deixava-o ficar assim mesmo. Aque le desgra�ado vinha descansar do trabalho for�ado, ou dor ~,mir num colchão, em vez de numa +abua nua, numa sala aquecida, em vez de num corpo de guarda Umido, onde são atirados em massa os presos preventivos, palidos e descar- nados. (Em toda a Russia os defenfos que sofrem prisão prOT155c10, ~~ic acusan o cia 1 i

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humanida faixão fra Ca. 4¡, fe preventiva são p lidos e descarnados, o que prova quanto o seu sustento moral e material e inferior ao dos condena- dos.) E por isso o nosso interno fazia sem resmungar a ins- cri�ão do falso doente, deciarava-o afetado por uma "febris catarrhalis", depois deixava-c, tomar ferias durante uma longa RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 245 ,i#

246 DOSTOIEVSKI semana. iEssa "febris cafarrhalis" divertia todo o mundo. Sabia-se muito bem que, por um acordo fatico enfre o me- dico e o seu doente, a f¢rmula designava uma doen�a sir-,iu-. lada, "a febre de emergencia" como fraduziamos nos. Algumas vezes o doenfe, abusando da indulgencia do inferno, ficava ali af� que o expulsassem. Era então que valia a pena ver o nosso inferno; parecia intimidado, enver- gonhado de dizer direfamenfe ao enfermo que, j que es~ va curado, tinha de pedir o seu boletim de alfa. confudo, poderia sem a menor explica�ão, sem a menor considera�ão, obriga-lo a partir, escrevendo na papelefa: "Sanat --sf". A principio ele insinuava, depois procurava convence-lo: "Ja acabou, hein? Anda, ia ficasfe bom! E aq u i esfa falfan- dck lugar!" e assim por diante, af� que o doente senfia afinal alguns remorsos, e se resolvia pedir o papel de alfa. O m¢- dico-chefe, homem compassivo e honesto (e fambem muito querido) era muito mais severo e mais resoluto que o in- terno; em cerfos casos mosfrava uma dureza rebarbativa, que alias lhe conquisfava uma estima especial dos presos. Che- gava acompanhado por fodo o pessoal medico do hospifal, depois do inferno fer feifo a sua ronda, e se punha a visifar os doentes um ap¢s outro, defendo-se longamenfe junto ...queles que sofriam mais. E sempre tinha uma palavra es- fimulante para lhes dizer, - uma palavra que penefrava at� ... alma e provocava uma excelenfe impressão. Não ralhava nunca COM os recem-vindos afacados de "febre de emergen- cia", mas se um desses gaiafos se obstinava em demorar mais que a confa, assinava-lhe simplesmenfe a senfen�a: "Vamos, meu velho, chega de descanso, não se deve abusar!" Os feimosos eram ou for�ados que reclarnavan~ confra o ser- vi�o duranfe a �poca de maior calor, ou os condenados em insfancia de castigo. Lembro-me que em rela�So a um des-

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ses foi preciso usar de severidade especial, e ate mesmo de crueldade. Ele veio frafar da visfa, esfava com os olhos vermelhos, e queixava-se de uma dor lancinanfe. Puseram- lhe vesicaforios, sanguessugas, inje+aram-lhe no local um liqu¡- RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 247 in- do corrosivo; todavia. os olhos do homem continuavam flarnados. Pouco a Pouco os m�dicos descobriram que es- favam as voltas com um simulador: a inflama�ão ficara es- facionaria, o caso era suspeito. Ja h6 muito tempo os for-#

'-�ados sabiam que o camarada representava uma far�a, em- bora ele não houvesse falado nisso a ninguem, Era um ra- pagão bem bonito, mas que provocava em todos n¢s uma impress So desagradavel. sonso, sombrio, não conversava com os outros, sempre de olhos baixos, sempre afastado, como se desconfiasse de todo o mundo. Lembro-me ate que ocorreu a alguns de n¢s que ele talvez preparasse uma pe�a. Era um soldado condenado por um roubo grave a mil a�oites e ... companhia correcional. Como ia o confei, para afastar a hora do castigo, os condenados se resolvem, ...s vezes, a 'tremendos disparates, na vCspera do dia fatal: dão por exemplo uma facada num chefe ou num companheiro, o que lhes acarreta novo julgamento e recua um ou dois meses a -execu�ão da pena. E, assim, atingem o seu fito. Não se preocupam ao saber que depois dos dois meses sua peria- lidade sera duplicada ou friplicada; basta que o minuto amea�ador seja afasfado por qualquer pre�o duranfe alguns dias, - de fal modo esses desgra�ados carecem de cora- gem para o afrontar. Alguns dos nossos doentes murmura- varri que seria bom vigiar o homem, para o impedir de as- sassinar alguem, durante a noite. Todavia, ficou tudo em conversa, e mesmo os seus vizinhos de leito não +ornaram ne- nhuma precau�ão. Tinham-no visto durante a noite esfre- gar os~olhos com a cal raspada ... parede, e com outra cousa mais, afim de os manter vermelhos. Enfim, o m�dico-chafe amea�ou-o de lhe fazer um sedenho. Quando um doente dos olhos resiste ao +ratamento. quando foclos os meios medicos i6 foram empregados para lhe salvar a vista, os m�dicos se resolvem a essa providencia energica: tratam o doente como um cavalo e lhe fazem um sedenho; ele enfSo se deixa curar. Mas o rapaz era tão obstinado ou fão covarde que af� mesmo o sedenho, embora doloroso, lhe pareceu prefe-#

248 rivel as varas. Para essa opera�ão, agarra-se o paciente Por tras, segura-s-e-lhe o couro da nuca, puxam-no o mais Possivel para o afasfar da carne. enferra-se o bisturi ar de

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¡ naquele lug modo a produzir um corie comprido e largo, que ocupa toda a largura da nuca, e, afrav�s desse corte, se faz passar uma mecha de algodão da grossura dum dedo; cL-pois,-todos os dias, numa certa hora, puxa-se a mecha, como para abrir novamente a ferida, afim de a fazer supurar, e impedir a cicafriza�ão. O pobre diabo suportou obstinadamente, du- ranfe varios dias, essa forfura abominavel, antes de se con. formar a pedir alta. Um belo dia seus olhos apareceram infeiramenfe claros, e assim que a nuca sarou, devolveram- no ao corpo da guarda, que ele deixou no dia seguinfe para ir receber os seus mil a�oifes. DOSTOIEVSKI O minuto que precede o castigo e horrivelmente perio- so; errei, pois, em dizer que o medo dos condenados provem da covardia. Deve realmenfe ser um momento espantoso, j que eles arriscam uma dupla, tripla puni�ão, afim de o adiar. Ja falei, enfrefanfo, dos condenados que pedem que se lhes d� o resto dos a�oites, sem esperar que as costas cicatri- zem depois de recebida a primeira parfe do castigo. Querem acabar o mais rapidamerte possivel com focla, a pena, liqui- dando assim a prisão preventiva, - de fal modo a vida no corpo da guarda lhes parece mais dura que nos trabalhos for�ados. Mas, pondo de parte a diferen�a dos fempera- mentos, o habito inveferado de receber pancadas e casfi- gos corporais desempenha um grande papel nessa decisão infr�pida. Os que ia foram muito a�oitados +em a alma e as cosfas curtidas; acabam por encarar as puni�ões com ce- ficismo, quase como um pequeno incomodo, que j6 não pro- voca nenhum mal-es+ar. Eis um exemplo: um dos nossos for- �ados da se�ão especial, um kalmuk batizado, Alexandr ou Alexandra, (1) como o charnavamos enfre n6s, - rapaz es- (1) Turguenev observa. em "Memorias de um Ca�ador", que "a gente do Povo con- sidera mais carinhoso dar a um prenome masculino uma termina�ão feminina". (N. de H. M.) RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS L r t-nntou- 249 anho, engra�ado, atrevido, sempre de bom umo .#

sem deixar de rir e pilheriar, que receµra quatro mil ifes; porem jurou-me que, se desde a mais tenra infancia, o o houvessem acostumado com chicofaid*" na sua horda, as correias ia nao lhe houvessem marcado as costas com atrizes indeleveis, não poderia nunca suporfar esses quatro il a�oites. E, con+ando-me isso, parecia reconhecido a sua rufa] educa�ão. Uma noite, em que esfava senfado no meu fre, falou assim: "Olhe, Alexandr Petrovi+ch, batiam em

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im por causa de tudo e por causa de nada, e isso durou m parar quinze anos a fio; +ao longe quanto posso me ]em- ,gar, fui a�oitado, varias vezes por dia; todos que tinham onfade podiam bafer em mim, de modo que acabei acostu- ,-,teadoi" J6 não recordo mais o acaso que o fizera soldado, V- ue, no fundo, ele devera sempre fer sido um vagabundo; o ou�o contar-me o medo que sentira quando via ainda vira condenado a quatro mil a�oites, por fer assassinado superior. "Eu sabia que iriam me castigar de rijo, que tal- ,vez morresse debaixo das varas. Era habituado a pancadas, , : , mas quatro mil ... Ja e bastante, e alem do mais os chefes 1 todos estavam umas feras, devido a his+oria. Eu sentia, sabia muito bem que a coisa não iria correr macia, que, deixaria o couro ali. Então frafei de me batizar, pensando: ~ "Talvez me perdoem!" Os companheiros tinham me preve- , ~ ~nido que não adiantava batismo, que não me perdoariam; ITI N as eu cuidei: ao faz mal, experimento, eles hão de ter mais pena de um cristão que de um mu�ulmanol" E foi as- sim que me batizaram, me puseram o nome de Alexandr, mas as varas são sempre as varas, e não perdoaram uma so va- rada. E isso me ofendeu tanto que jurei a mim mesmo que e �O eles'me haviam de pagar! E, acredife, Alexandr Pefrovitch, apanhei-os! Eu sabia fingir de morto - morfo propriamente não, porem moribundo. Levaram-me para o pelourinho na frente do batalhão. Deram-me os primeiros mil a�oi+es: pare- cia fogo, e eu grifava; deram-me o segundo milheiro, a eu vi 18#

250 DOSTOIEVSKI que o meu fim estava chegando. Tinha perdido a cabe�a, as pernas se dobravam debaixo do corpo, e eu ia desfalecendo#; meus olhos reviravam, minha cara estava roxa, eu não res- pirava mais, tinha a boca cheia de espurna; o medico chegou perto e disse: "Ele est morrendo!" Levaram-me para o hospital e logo tornei a mim. Depois disso, come�aram mais duas vezes, - esfavam`com cidio de mim, estavam furiosos, isso lhe garanto. Mas das duas outras vezes consegu 1 en- ganar novamente a eles todos; no fim do terceiro milheiro, tornei a morrer; porem � preciso notar que quando chegou o quarto milheiro, cada ~ancada valia por fres, era como uma faca que me enterrassem bem no meio do cora�ão, tal a dor! EstAvam encarni�ados contra mim: aquele cachorro que dava o £ltimo milheiro - diabos o carreguem! - valia pelos fres outros juntos, e se eu não me houvesse fingido de morto antes do fim (so faltavam duzentos), tinham me acabado de verdade; mas não deixei que eles me liquidas- isem; dessa vez como das outras - revirei os olhos - e bumba! pensaram que eu tinha morrido. E como

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não haveriam de acreditar, se era o m�dico que es- fava dizendo? Mas ainda faltavam duzentos, e eles deram esses £ltimos com toda a vontade - pode-se dizer que duzentos a�oites foram dois mil; e, ainda assim não conse- guiram me liquidar mesmo! E por que isso? Simplesmente porque me criei debaixo de chicote! Se ainda estou vivo hoje em dia, devo-o a isso! Ai, sin-sei bem o que � levar pan- cada," ajuntou pensativo, como se procurasse recapitu~ lar todas as surras que recebera. "Não, tornou depois de um minuto de silencio, ninguem seria capaz de contar as pari- cadas que deram nestas costas. E, ademais, para que confar? não haveria numero que chegasse!" Olhou-me o soltou uma gargalhada, onde se revelava tanto bom humor, que não pude deixar de lhe retribuir com um sorriso. "Sabe, Alexandr Pefrovifch, quando sonho de noite, penso sempre que estão me a�oitando - não tenho nunca outro sonho!" ILECOltDA�"ES DA CASA DOS MORTOS 251 te flauit...s vezes durante a noite ele se punha a urrar, :_v,1*~ a o acordassem muito alto, e era preciso que ...s I1J6 paraste de berrar, bicho do inferno?" Era premas: e r, da de estatura media. agil, alegre, facil de v*# camara anos de idade, como tinha uma uns quanenta e cinco a o roubo, isso lhe proporcionava fre- ~~Cloncia forte par ~enfe pancadaria. Ali s, quem, dentre n¢s, não apanha o recebia a�oites por essa razão? ---va na Não acrescentarei senão uma palavra: * a ex+raordinaria bonomia, a falta de rancor com que os a�oitados contavam como o por que tinham ido as varas, sempre me espantaram. Nessas narrativas que 's vezes me faziam palpitar o cora- a �~ão como louco, não se percebia o menor indicio de rancor ou de odio. Mas acontecia coisa muito difenente com M-cki quando ele falava em fusfiga�ão. Como não era no- 6re, levou quinhentos a�oites; eu soube disso por outros, e lhe perguntei se era verdad.e. Ele confirmou com duas pa- lavras r pidas, com uma especie de sofrimento Intimo, es- for�ando-se -por não me olhar. Ficou com o rosto subi+a- mente rubro. Depois -de meio minuto, levantou os olhos que reluziam ao fogo do odio, vi-lhe os labios a tremer de in- digna�ão e senti que ele jamais poderia esquecer essa pagina do seu passado. Quanto aos nossos for�ados (e logico que havia exce�ões) viamessas cousas por um �ngulo muito diver- SO. Não e possivel, pensava eu ...s vezes, que eles se reconhe- �am francamente culpados, e considerem a puni�ão justa,

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sobretudo se pecaram contra os chefes e não contra os com- panheiros. A maioria dentre eles não se acusava absoluta- mente. Nunca, repito, observei entre os meus companhei- rQs remorsos de conciencia, mesmo nos casos em que o crime fora perpetrado contra os de sua propria classe. Quanto aos crimes cometidos contra superiores, nesses nem falo. Pa- receu-me compreender que os for�ados tinham a +ai respeito um modo de ver especial e, por assim dizer, empirico;, leva- 11 , 1 1 , I#

252 DOSTOIEVSKI 253 RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS vam em --Onsidera�So o destino, o fato consumado, e, -isso, sem refletir, inconcientemente; era, neles, uma es 1 pecie de fe. Nessa especie de crimes, o criminoso da sempre razão a si mesrno, e a ques+Zo de sua cu!pab¡lidade nem se propoe ante ele proprio; entretanto, sabe muito bem que os seus supe- riores não encaram o delito com os mesmos olhos com que ele o v�, e, portanto, deve sofrer um castigo para ficarem as duas parfes de confas saldadas. A luta ai e reciproca. O cri- minoso pensa que um tribunal constifuido por gente humilde da sua terra ou o absolveria, ou pelo menos o justificaria em grande parte, confan+o que o crime não fenha sido perpefra- do confra seus irmãos, confra os seus, contra a plebe. Fortificado por sua conciencia, fica todavia sossegado e sem remorsos. E e o principal. Senfe-se por assim di- zer num terreno sOlido, e gra�as a wessa convic�ão, o castigo se fransforma numa desgra�a inevifavel, e mais nada. Ele não ei O primeiro nem o Ultimo a sofrer fal desv.-ntura. Duranfe muito tempo, muito tempo aind , prosseguira o combafe, um combafe obstinado, imposto pela for�a. O soldado não tem odio pelo turco com quem esfa¡ em guerra, contudo o furco o mata a golpes de sabre ou da baioneta, a tiros de fuzil ... Todas as his+orias, alias, não revelam o mesmo sangue- frio, a mesma indiferen�a. Por exemplo, não se falava nunca do tenente Jerebiafnikov sem wrfa indigna�ão recalcada. Travei rela�ões com o fenenfe durante a minha primeira es- fada no hospital - por infermedio das hisforias dos for�ados, compreende-se. Vi-o mais farde, em carne e osso, uma vez que ele comandava na fortaleza. Deveria fer uns frinfa¡ anos. Era alto, gordo, vermelho, desfilando graxa, com uns denfes brancos e a risada estrondosa, infermiferife, um riso a Nozdriov (2). O rosfo lhe refletia o vacuo absoluto das id�ias. Adorava castigar, dar varadas, quando o designa- (2) C,0901 - "Almas Mortas" - Primeira parte, cap¡tulo IV. (N. de H. M.)

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i i 5~,,_va �xecufor de uma senten�a. Os outros oficiais - Mjocimo i-meam cliz -lo - consideravam o tenente Jerebiafni- kov como um monsfro, e os for�ados manfinham sobre ele lid�nfica opinião. Evidentemente houvera, nos bons tempos#

de anfanho, "cuja fradi�ão, embora custe cr�-lo, ainda esfa .. viva", (3) executores que gostavam de realizar escrupulosa- --- imerifis a sua tarefa. Mas em geral as varas eram vibradas - com simplicidade, sem nenhuma especializa�ão, nem prazer para o execufor. Esse tenente, pois, era uma especie de gas- m refinado, um "connaisseur" no mais amplo sentido e . fr6no o da express...o. Tinha a paixão da sua arte. e amava a arfe pela arfe. Comprazia-se nela como um pa+ricio enfediado da,Roma Imperial, inventava toda especie de requintes suffs, afim de estimular, animar um pouco a sua alma afundada na banha. Eis Jerebiafnikov encarregado de uma execu�ão: um olhar' -atirado ... longa fila de soldados armados de grossas' varas basta para o e * ncher de inspira�ão. Percorre a fila com ar satisfeito, reifera a ordem para que foclos cumpram concien- ciosamente o seu dever, orião... Os soldados sabiam antecipadamente o que significava aquele "senSo". O cri- minoso e frazido, e se ate então ele não travou conhecimento com Jerebia+nikov, se ninguem o pos ao corrente do que se vai passar, veja-se a pe�a que Jerebiafnikov lhe prega: e ape- nas uma pe�a entre mil, porque aquele +anen+e não faltava inventiva. Enquanto lhe desnudam as cosfas, e lhe atam as mãos a coronha do fuzil, por meio do qual os sub-c,ficiais o arrastam depois. ao longo da "rua verde", todo condenado se põe sempre, em voz de choro, a suplicar aos executores que, nao bafam com muita f"r�a, que não redobrem o casti- go com uma severidade superflua. - Excelencia, grita o desgra�ado, tenha piedade, mos- fre o seu cora�ão de pai, deixe-me rogar a Deus eternamente por si, não me desgrace, tenha d,6! (3) Verso de Criboiedov, que se tornou proverbial, (N. de H. M.)#

254 DOSTOIEVSKI Jerebiafnikov, que não esperava senac, essas palavras, suspende imediatamente a execu�ão, e, num tom sentimen- tal, enfabola com o for�ado o seguinte - Meu querido amigo, que queres que eu fa�a? Não

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sou eu que +e castigo, e a Lei! - Excelencia, tudo depende de si. seja compassivo! - E pensas que não sou compassivo? Pensas que tenho prazer em ver te a�oitarem? Eu fambem sou um ho- mem. Vejamos, sou um homem ou não sou? - Se e, Excelencia, se e! A verdade � que os oficiais são os pais e nos somos os filhos; mostre o seu cora�ão pa- terno, Excelencia! brada o preso, fremente de esperan�a. - Mas meu amigo, julga por ti proprio: tens um cere- bro para refletir. Sei muito bem que o sentimento de huma- nidade me ordena que te olhe a ti, pecador com iedade com misericordia. I P I - O que Vossa Excelencia diz e a pura verdade! - Sim. e devo te olhar com misericordia, por mais peca- dor que sejas. Porem não sou eu, e a Lei que te castiga. Reflete! Tenho que servir a Deus e a minha pafria, e cometo um grande pecado se assumo a responsabilidade de atenuar a lei. Pensa nisso! - Excelencia! - Então não faz mal! Passa por esta vez! Sei que estou errado, mas não faz mal! E, entretanto, se eu +o fV¡�r isso, presto-te um pessimo servi�o! Pois se +e perd"o, se s0 te castigo um pouquinho, ficaras pensando que de outra vez e a mesma cousa. Tornaras a fazer asneiras, e então como h6 de ser? ficara esse peso na minha conciencia. - Excelencia, juro que não me ha de castigar uma segunda vez! Juro-o diante do trono de Deus! - Muito bem, então, muito bem! Jura que vais te portar direitinho. - Deus Todo Poderoso que me castigue e que no outro mundo, .., I#

t 4 RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 4 257 - Não ¡ures que � ecado! Acredito, se me deres a fua palavra! - Excelencial - Esfa bem - vou te perdoar por causa das tuas Ia- gr¡mas de orfão. Porque es orfão, não es? Orfão, Excelencia, s¢ no mundo, sem pai nam mãe ... Muito bem, perdoo-fe por causa das tuas l grimas de orfão, mas e pela £lf¡ma vez, v� bem! Levem-no - diz com voz fão comovida que o for�ado ia nem sabe com que palavras h de agradecer a Deus, por o haver enf regue a um

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oficial dotado de tão bom cora�ão. Mal o amea�ador cor- feio se põe em marcha, a ordem e dada, o fambor rufa, a primeira vara se ergue... - Duro com ele! grifa Jerebia+nikov com todas as suas for�as. Surrem-no bem! Arranquem-lhe a pele. Mais, com mais for�a, liquidem o orfão, liquidem o canalha! Sirvam- lhe a sua ra�ão, sirvam-no bem! Os soldados dão as varadas com toda a for�a, os olhos do pobre diabo soltam faiscas, ele come�a-a urrar, e Jere- biafnikov corre a sua frenfe, ao longo da "rua verde": ri, da gargalhadas, segura as costelas com as duas mãos, ri tanto que af� se sente mal. Esta no s�timo c�u, acha aquilo uma delicia! De tempos em tempos uma risada formidavel e so- nora, seu riso cascafeanfe de homem gordo refine de novo; e de novo ele berra: - Arranquem-lhe a pele! Quero v�-lo esfolado! folem-me esse canalha! Pelem~me o lombo do orfão! Havia ainda outras varianfes desse motivo, no seu reper- u forio. O for�ado que vai apanhar come�a com as s'plicas. Jerebia+nikov não faz as palha�adas costumeiras e lhe diz francamenfe: - N5o, meu caro, vou +e castigar segundo as regras, conforme o mereceste! Mas h uma cousa que posso fazer por f i: não fe mando amarrar. Vais caminhar sozinho, a moda#

258 DOSTOIEVSKI RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 259 nova. Basta apenas que corras bem depressa pela linha da soldados. Não te livrar s das pancadas, � verdade, porem a cousa andar mais depressa. Que achas? Queres expe- rimentar? O for�ado escuta. incerto, desconfiado, depois medita: "Quem sabe? Talvez seja mesmo vantagem para mim. Se eu correr com toda a for�a a coisa durara pelo menos cinco vezes menos e talvez nem todas as varadas me apanhem!" Esta bem, Excelencia, concordo! E eu tambem! Vamos, marcha! Aten�ão, voc�s Ia, aferi�ão! Não estão aqui para dormir! grita para os sol- dados, embora saiba muito bem que nenhum dos a�oites dei- xara de apanhar o lombo do culpado: se um soldado erra o a�oite, sabe por experiencia o que o espera. O for�ado põe-se portanto a galopar pela "rua verde" mas não passa mais de quinze filas porque as varas sibilam no ar. as pan- cadas chovem como geada nas suas costas, e o pobre diabo se abate num urro, como apanhado por uma bala. - Não, Excelencia, prefiro que sigam o regulamento, suplica ele erguendo-se com dificuldade, liVido de pavor, en- quanto Jerebiafnikov, que sabia antecipadamente o resultado daquela boa partida, ri a sufocar. Contudo, eu não poderia descrever todas as diversões ag~se oficial, nem todas as historias que correm a seu res- peito.

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De modo muito diverso falavam entre n¢s do tenente Smekalov, que precedera o atual maior nas fun�ões de coman- dante da pra�a. Discorriam sobre Jerebiafnikov num tom calmo, sem lhe gabar as fa�anhas, sem odio; não o estimavam, despreza- vam-no. E o desprezavam por assim dizer - de cima - enquanto ninguem evocava a lembran�a do tenente Smekalov sem lhe fazer o elogio en+usias+ico. Sendo o oposto do apre- ciador das varas, esse tonQofe ne .3da tinha pois em cQmum A com Jerebiafnikov. Não que ele desdenhasse punir: ao con- trario, empregava muito bem as varas, mas em vez de lhe guardarem rancor, os presos se enierneciam. Esse hornem soubera agradar aos for�ados! Como lhes teria granjeado a estima? Nossos for�ados, como quase toda gente da plebe, estão prontos a esquecer os piores sofrimentos por amor de uma boa palavra: limito-me a constatar o fato sem procurar analisa-lo. flada e menos dificil que agradar a essa#

genfel Mas o tenente Smekalov gozava de uma popularida- de especial, pois ate suas execu�ões eram mencionadas com enternecimento. "Era bom como um pai", diziam dele os gales, e soltavam um suspiro, comparando Smekalov com o nosso maior. "Que boa alma!" Era um homem simples, e sem duvida bom ao seu modo. Contudo, acontece as vezes ninguem querer bem, e mesmo se fazer +ro�a de alguns ho- mens bons - zombam ate da sua misericordia no comando. O fato e que Smekalov de +ai modo se portava, que todos os defentos reconheciam nele o "seu homem" e deve-se dizer que isso representa um grande dom, uma capacidade inata, da qual muitas vezes aqueles que a possuem não se apercebem. Cousa estranha: entre os oficiais ha alguns que, sem serem bons, atraem uma grande popularidade, simplas- mente porque não desprezam o povo, porque não o tratam com altivez. Não se sente neles nem o barine mimado, de maos brancas, nem o espirifo de cas+a; emana das suas pes- soas uma especie de cheiro especial, de simplicidade; isto lhes e congenito, e, meu Deus, como sabe o povo farejar esse cheiro! Que dedica�ão não e capaz de sentir por +ai es- necie de cricturas! Com que rapidez sacrificar o chefe mais humano para escolher o mais severo! E se o persona- gem em quem o povo fareja esse cheiro especial e ademais uma boa pessoa, então não +em mais pre�o! Como ia o disse, o tenente Smekalov as vezes castigava com dureza, mas sabia como o fazer, eam vez de lhe guarda- r-em rancor, todos os presos do meu tempo evocavam rindo as suas "bg.?5 pe~as". Pe�as que ali s não eram muito variadas,#

260

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DOSTOIEVSKI pois o tenente carecia infeiramenfe de fantasia arfisfica ,Na realidade, duranfe um ano infeiro, ele não se divertira senão corn uma unica e mesma far�a, que talvez devia o seu presfigio ao fato de ser énica. Não lhe faltava ingenuidade. O delinquente e trazido: Smekalov deve assistir pessoalmente ... execu�ão. Vai para Ia brincando, rindo, interrogando o culpado sobre cousas indiferen+esl sobre seus negocios pes- soais, sobre os seus trabalhos, e isso sem inten�ão zombeteira, sem id�ia preconcebida, "+So s0 porque lhe apraz ficar a par dos negocios daquele homem". Trazem as varas e uma cadeira para Smekalov. Ele sen+a-se, acende o cachimbo, (cachimbo muito comprido, alias). O for�ado come�a as suplicas ... - Não, meu amigo, vamos, dei+a-fe, que foi que +e deu? resmunga Smekalov. O for�ado suspira e se deita. - ~Escufa, meu amigo, sabes as tuas ora�ões? - Decerto, Excelencia! Sou batizado, aprendi a rezar quando ainda era da altura da sua bo+a! - Bem, então reza! O for�ado ia sabe o que vai rezar e o que se seguir . porque a brincadeira ia foi repetida pelo menos umas frinfa vens. O propric, Sm.ekalov não ignora que o preso sabe disso e que os soldados, que esperam com as varas erguidas sobre o culpado, estirado no chão, +ambem o sa- bem, mas isso não o impede de se repetir. A brincadeira lhe agradou de vez, e talvez ele a aprecie principalmente por vaidade de autor. O desgra�ado come�a a recitar suas rezas, os soldados se imobilizam com as varas, a Smekalov, que ia não se pode confer, levanta a mão, para de fumar, espreifa a palavra esperada. O for�ado a articula afinal: õ'no ceu" (4). (4) Trata-se evidentemente do Padre Nosso, mas, com receio ia censura, a cita- �ão � vaga. (N. de H. M.) RECORDA�õES DA CASA DOS MORTO d .41 � a palavra de ordem _ Alto! grifa o tenente cujo rosto se inflarria; bru camenfe, com um gesto inspirado, dirige-se ao homem que#

]e vai bater em, prime'iro lugar, e brada: - Para o ceu v e, ! E solta uma gargalhada. Os soldados +ambem sor- riem, o fustigador sorri, o proprio fustigado se prepara para sorrir, - embora a ordem de "para o c�u! . - . " a vara fenha sibilado no ar e venha cortar como uma navalha o

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lombo do paciente. Entretanto Smekalov esta satisfeito, porque a pilheria e de sua inven�ão, e lhe agrada mui+ts- simo. E vai para um lado, encantado, enquanto o fu%fl- gado seque pelo outro, satisfeito consigo proprio e cr)m Smekalov. Meia hora mais farde confa-se em focla a for- taleza que a famosa pilheria foi de novo dita, pela frig'sir-na primeira vez. "Ai, aquele era mesmo um homem de ver- dadel" As vezes as louvaminhas dedicadas a esse tenente c~e_ gavam a aborrecer. - Lembram-se, rapazes, as vezes, quando a gente ia trabalhar - (conta um for�ado cujo rosto se ilumina ante a recorda�ão) - via o tenente sentado na janela, de roupão, cachimbo na boca, fornando cha. Tiravamos o gorro "Para onde vais assim, Aksionov? ele dizia. - Vou para o trabalho, Mikhail Vassili+ch, mas antes tenho que passar na oficina!" Ele então punha-se a rir. Sujeito bom! Cora�ão de ouro! - Dessa especie ia não os fazem mais! acrescentava oen- -sa+ivo um dos ouvintes. I i, 1#

IK "·" O hospital (continua�ão) O 4 se falei longamenfe- sobre as puni�ões e sobre aqueles que &s administram, e porque durante minha estada no hos- pifal testemunhei com meus proprios olhos cousas que não conhecia senão por ouvir dizer (1). Traziam para as nossas duas enfermarias os condenados as varas de todos os batalhões, companhias correcionais e outras unidades acan- +onadas na cidade, e no distrito que dela dependia. Du- ranfe os primeiros dias, quando eu estudava ainda com gran- de avidez os costumes do presidio, todos esses a�oitados, foclos esses homens na expectativa da "rua verde", me da- (1) O que contei sobre castigos corporais passava-se no meu tempo. OuvI dizer que tudo foi mudado, ou est em vias de mudan�a. (Nota do Autor). I#

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264 DOSTOIIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 265 vem uma impressão horrivel. Eu ficava comovido, perfur- bado, aferrorizado. Lembro-me de que então me p£s a refletir febrilmente em todos os detalhes desses fatos novos para mim, a escutar as conversas e as hisforias que a eles se referiam, a fazer perguntas aos for%ados, querendo des- cobrir uma solu�ão para esse.estado de cousas. Desejava em especial conhecer minuciosamente os graus das diversas condena�ões, todas as diferentes cambiantes de castigo, com os modos de ver dos condenados a esse respeito. Esfor�ava-me por imaginar o esfado de alma dos que par- fiam para o suplicio. � rarissimo, ia o contei, que um con- denado conserve o sangue-frio ate ao momento fatal, em- bora ia fenha sofrido varias outras fusfiga�ões. Nesse ins- +ante, ele sente um ferror puramente fisico, agudo, involun- fario, inconcienfe, e esse terror o afurde. Durante meus lon- gos anos de presidio tive mais de uma vez a oporfunidade de observar alguns desses condenados que, entrando no hospi- fel com as cosfas em carne viva, depois de sofrerem a pri- meira metade da puni�ão, se inscreviam para a alta logo no dia seguinte, afim de mais depressa afrontar o resto. Essa interrup�ão no castigo e sempre devida as ordens do medico que assisfe a execu�ão. Quando o numero de a�oifes ao qual foi condenado o criminoso parece elevado demais para ser recebido todo de uma vez, e ele dividido em dois ou tr�s, segundo a opinião do medico que, no decorrer da execu�ão, verifica se o fustigado esfa em condi�ões de suporfar a pena sem perigo de vida. Quinhentos, mil, mil e, quinhenfos a�oites podem ser adminisfrados de uma vez: mas dois mil a�oites são em geral disfribuidos em duas ou fres por�ões. iEm geral, aqueles que, com as cosfas mal cica- frizadas, sa¡am para receber a segunda metade do castigo, fornavam-se desde a vespera da partida sombrios, +risfonhos, faciturnos. Observava-se neles uma especie de embrufeci- menfo, uma disfra�ão singular. Não +ornavam parte nas conversas e na maioria do tempo - cara+erisfica curiosa, - w~�Ompanheiros evitavam falar com eles, evitavam fazer a menor alusão ao que os aguardava. Nenhum consolo, ne . nhuma palava inufil: parecia que todos tinham combinado _.. não M presfar a menor aten�ão. E era muito melhor assim. Havia, confuido, exce�ões - Orlov, por exemplo, de quem '. J falei.- Depois da primeira metade da sua puni�ão, ele não parava de gemer, porque suas costas não saravam bas- , fanfe depressa. Tardava-lhe acabar, e ser metido num. comboio de deportados, porque contava fugir durante o C inho. Esse não via senão o fim que visava atingir; e-R Nu sabe do que era capaz uma natureza daquelas, tão apaixonada, fão ardente. No dia em que chegou, parecia#

1 , ",,safisfeifo a muito excitado, embora se esfor�asse por dis- simular seus senfimenfos. Na verdade, Orlov_ cuidara não sobreviver ... primeira metade do castigo, nao se poder levantar de sob as varas. Durante a prisão preventiva,

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chegaram-lhe aos ouvidos boatos sobre as medidas +orna- das a seu respeito pela administra�ão, e finha-se preparado para o fim. Mas o fato de suporfar a primeira metade devolvera-lhe a esperan�a. Quando chegou ao hospital, esfava semimorto. Jamais vi na minha vida umas costas Coa chegadas, contudo a alegria lhe tomava o cora�ão. Es- +ave cerfo agora de que lhe tinham confado boatos falsos, o que se sairia da segunda vez como se saira da primeira. ,Depois da longa reclusão preventiva, não sonhava senão com g futuro comboio no qual seria incluido, na viagem que faria, na evasão, na liberdade nas estepes e florestas ... E dois ,ckas ap6s sua saida do hospital, voltou para morrer no pro- o prio leito que deixara: não pudera resistir ... segunda metade do castigo. Ja falei, porem, a esse respeito. Todavia, esses condenados, mesmo os mais pusil�nimes, aformenfados noite e dia pela expectativa do momento fatal, suporfavam a sua dor com coragem, uma vez chegada a hora. Raramente os ouvi gemer durante a noite que se seguia a fustiga�ão, por mais rigorosos que houvessem sido os a�oites, - tão grande e a for�a de resisfencia do nosso povo. Infer- 19#

266 DOSTOIEVSKI roguei muit¡ssimo os meus companheiros acerca dos sofri- mentos causados pelos a�oites. Queria infeirar-me da sua :nIensidade,e saber a quc~, poder*,a¡~ c-'bs ser comparados. Não sei realmente que razão me impelia, mas recordo bem que não era a simples curiosidade. Repito-o, a emo�ão e o pavor me estrangulavam. Por mais que indagasse, porem, nunca obtive uma resposta sa+isfatoria. "Queima como fogo", res- pondiam sempre. "Queima - e e s6!" Nos primeiros tem- ,pos. quando me aproximei de M-cki, interroquei-o +ambem. "Doi horrivelmente, confessou ole; sen+e-se uma impressão de queimadura, como se grelhassem as costas da gente no fogo do inferno". Assim, todos se exprimiam de maneira un�nime. Lembro-me de +er feito então uma observa�ão estranha, cuia exatidão alias não garanto, mas que o consan- so geral dos for�ados confirmava: uma severa flagela�ão de varas constitue o mais ferrivel dos suplicios em uso entre nos. Ao primeiro olhar, a afirma�ão parece absurda, entretanto quinhe0os a�oites, quatrocentos mesmo, bastam para matar um homem; acima de quinhentos, a morte e por assim dizer certa; e o mais robusto dos individuos nSo pode enfrentar de uma vez s0 mil varadas. De chibata, pelo contrario, su- por+am-se quinhentos a�oites sem perigo para a vida. Um homem de constitui�ão media pode aguentar mil chibatadas, duas mil af�, se esta de boa saude. Todos os for�ados con- sid.eravam as varas infinitamente mais assustadoras que a chi- bata. "As varas doem muito mais, queimam mais", explica- vam eles. � evidente que torturam muito mais, porque atacam muito mais os nervos, irritam e abalam ao mais alto grau o organismo do paciente. Não sei se ainda existem

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hoje, mas havia outrora cavalheiros que se de!eitavam em fustigar as vitimas - por exemplo, o marqu�s de Sade e a Brinvilliers. A emo�So do espe+6culo provocava, segundo creio, uma especie de desfalecimen+o ex+afico, que e ao mesmo tempo perversão e delicia. Ha pessoas que, como os tigres, lambem avidamente o sangue que derramaram. Aquele que, embora uma Unica vez, exerceu um poder ilimi- &EColtDA�OES DA CASA DOS MORTOS r, 267 fado sobre a carne, o sangue, a alma do seu semelhante, - sobre o corpo do seu irmão, segundo a lei de Cristo, - aquele que gozou da faculdade de aviltar ao grau maximo L" outro ente, feito a imagem de Deus, esse alguem torna-#

se escravo de suas sensa�ões. A tirania � um habito dotado ~pio extensão, pode-se desenvolver e acabar afinal se frans- formando~ doen�a. Sustento que o melhor dos homens pode, gra�as ao h bito, endurecer-se ate se transformar num animal feroz. O sangue o o poder embriagam, engendram -a brutalidade e a perversão, fazendo com que a alma e o esp¡rito se tornem acessiveis aos prazeres mais anormais. O homem e o cidadão se eclipsam para sempre no tirar*. E 1 a volta ... conciencia humana, ao arrepenclinvenfo, a ressurrei- �ão, se lhe torna quase impossivel. Acrescentemos que o poder ilimifado de gozo tem uma sedu�ão perniciosa, que age por contagio sobre toda a sociedade. A sociedade que encara com indiferen�a a�ões desse jaez, ia esta con+ami- nada at� ao cerne. Em suma, o direito de puni�ão corporal que um homem exerce sobre um outro e uma das chagas da sociedade, e um meio seguro de abafar, ainda em germe, qualquer civismo e lhe provocar a decomposi�ão. A sociedade despreza o carrasco profissional, porem não o genfleman-carrasco. Quiseram recentemente pretender o contrario, mas de maneira inteiramente abstrata, inteiramente Ilivresca. Os que exprimiram esse conceito não tinham +ido ainda tempo de matar dentro de si o instinto de dominio. Qualquer industrial, qualquer diretor de empresa, deve fre- quen+emenfe sentir uma especie de satisfa�ão exasperada quando recorda que muitos operarios, carregados de fami- lia, não dependem senão de si. Não � rapidamente que as gera�ões extirpam os seus vicios heredifarios, nem que o homem renuncia ao que tem na massa do sangue, ao que, por assim dizer, sugou no leite materno. Nenhuma revolu�ão se faz as pressas. Não basta confessar o seu erro, o seu#

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pecado original; e mister elimina-lo complefamenfe. E isso não se obtem senão com fempo. Falei em carrasco. Os ;nsfin+os bestiais es+So em germe em quase foclos os nossos con+emporaneos, mas não se de- senvolvem uniformemente em cada individuo. E quando su- focam os demais insfinfos de um homem, este se torna - e claro - um monsfro, abominavel. Ha duas especies de carrascos: os carrascos volunfarios e os carrascos a for�a, ou por obriga�ão. Os carrascos volunfarios são, e claro, infe- riores sob todos os aspectos aos carrascos involunfarios. Estes £l+imos, enfrefanfo, inspiram ao povo uma repugnancia que raia ao horror, um receio irrefletido e quase miSfico. De onde provem esse medo supersticioso por um e -essa in- diferen�a quase aprobafiva pelo ou+ro? Ha casos parti- cularmente esfranhos. Conhec¡ individuos bons, honestos, estimados no seu meio, que julgavam indispensavel que o condenado gritasse debaixo do knuf, que implorasse per- dão ... Isso era para eles uma cousa esfabelecida, regular, necessaria. Assim, um executor meu conhecido, que em qual- quer outra ocasião passaria por um bom sujeito, senflu-se um dia pessoalmente ofendido porque a sua vitima nSO se digna- va grifar. De inicio não tinha inten�ão de castigar de rijo; não escutando, porem, nenhuma das palavras habifuais: "Ex- celencia, paizinho, tenha piedade, rogarei eferna mente a Deus por si!" perdeu o sangue-frio e mandou dar cinquenfa a�oites a mais no recalcifrante para lhe arrancar os grifos e as su- plicas de rigor, - e arrancou-os. . . "Era impossivel agir de oufra maneira; a insolencia do homem ultrapassava os li- mi+es", explicou-me ele com grande seriedade. Quanto ao verdugo de profissão, sabe-se de onde ele sai. � um condenado que obteve comuta�ão de pena, co- me�ou como aprendiz junto a outros carrascos e, uma vez senhor do oficio, insfalou-se vi+aliciamen+e num presidio; +em seu alojamento particular, seu quarto, e ate mesmo o seu lar, mas anda quase sempre sob escolfa. Um homem vivo não � afinal de contas uma maquina: embora comece a a�oitar RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 269 por. dever, acontece-lhe ser assalfado pelo furor e sentir pra- zier nas pancadas que da, sem Por isso alimentar oclio contra a 1 e sua, v'iirna. A nece"ldãde de provar qua ' habil na pro- f¡ssão, que enfende do oficio, a necessidade de se exibir perante os companheiros e diante do publico, estimulam-lhe#

zelo. Trabalha por amor da arte. Não ignora que, aos hos de foclos, e um r¢probo, que um terror supersticioso o acolhe e o acompanha por toda parte, cousa que, sem d£- vida, � bastante para lhe aun-kenfar a furia e os instintos besfiais. Ate mesmo as crian�as sabem que ele "n�io conhe- co pai nem mãe". Fato estranho, todos os carrascos que ma foi dado conhecer, deixavam-me a impressão de incliv¡¡ duos inteligentes, de palavra facil, dotados dum amor- -oprio excessivo. O orgulho crescera neles para resistir

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ao desprezo geral. fortificara-se gra�as ao medo que ins- pirava as-suas vitimas, pelo sentimento do seu poder sobre elas? Não o sei. A encena�ão teatral com a qual se mos- frann ao publico, no pelourinho, contribue falvez para de- senvolver neles certa presun�ão. Tive ocasião de observar de perto um dos nossos verdugos. Era um quadragenario de estatura mediana, seco, musculoso, cabelo crespo, 'rosfo pode-se dizer franco, afavel. Tinha uns ares graves de pes- soa de impor+ancia; suas respostas eram breves, cheias de bom-senso, amaveis. mas amaveis com altivez, como se ele não se permitisse abrir mão da propria imporfancia. Os oficiais de guarda não desdenhavam falar-lho, e lhe teste- munhavam ate uma especie de respeifo. O homem o com- preendia perfeitamenfe-, por isso, quando em con+afo com eles, redobrava de polidez, de frieza, de dignidade. Quanto mais delicadamente lhe falava um chefe, mais ele parecia inabo'rdavel, sem nunca se afastar de uma perfeifa amenida- de. Estou cerfo de que, nesses minutos, se considerava in- comparavelmente superior ...quela que lhe dirigia a palavra: ria-se a conciencia disso no seu rosto. ·s vezes, num belo dia de verão, mandavam-no sob escolta matar com uma vara comprida os cães vadios que se mulfiplicavam na cidade com "I#

270 DOSTOIEVSKIsurpreendente rapidez, e que duranfe o calor forfe se frans- u formavam num perigo P'blico. Essa fun�ão s¢rdida não pa- recia absolutamenfe humilhar o wnhor carrasco. Era de ver o ar grave com que percorria as ruas da cidade, acompanha- do pelo seu vigilante, morfo de facliga; espanfava com o olhar as mulheres e as crian�as que encontrava, e fitava de alfo todos os transeuntes. Alias, os verdugos f�m vida facil: não lhes falta dinheiro, são bem aiimenfados, e bebem o seu vodca. As suas rendas provem das gorjetas com que os presos civis lhes abrandam a mão, anfes da pena. Os con- denados pobres usam para esse fim o seu derradeiro copeque. Quanfo aos ricos, o carrasco mesmo lhes extorque uma quantia de acordo com as suas posses: cobra-lhes frinta ru- blos e af� mais. Quanfo mais rico e um condenado, maior e o pre�o. Esf6 claro que o carrasco não pode bafer de leve, pois sua propria pele responde por isso. Mas em troca do dinheiro recebido, compromete-se a não bafer com for�a demasiada. E os pacientes ou os seus consentem quase sempre nas exigencias do carrasco, porque, se as v� recusadas, ele a�oita como um aut�ntico barbaro, o que esta amplamenfe denfro dos seus poderes. Consegue af� arrancar dos con- denados mais pphres quantias importantes; os parenfes v�m lhe fazer suplicas, regafeiam o paigamenfo; desgra�ado de quem não o satisfaz! Nesses casos o medo sup ti i inspira ajuda muitissimo o verdugo. De que um executor? Os for�ados me afirmaram que e w, a c oso que nao se acusa

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lhe � possivel mafar um homem ao primeiro a�oite; afinal de contas, nSà � cousa inverossimil, embora eu não disponha de nenhum exemplo a citar; e a verdade e que o nosso carrasco pre- fendia ser capaz de o fazer. Os for�ados confavarri ainda que o verdugo e capaz de chibafar com focla a for�a as cosfas do criminoso, sem lhe fazer a menor marca, sem lha os esses truques, porem, são por demais conhecidos para que seja necessario insistir. Na rea. lidade, se o carrasco recebe uma gorjeta para bater com .rnenos for�a, não se exime de dar o primeiro a�oite com ~oda causar a minima dor Tod I#

I i RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 273 4 rudeza. � o uso. Adminisfra os a�oites seguintes com ais brandura, sobref udo se lhe pagaram bem. Mas quanto ao primeiro ciolpe, quer lhe tenham pago quer não, vibra-o 1,~, 1 Ignoro por que procede assim. Quer s�~:`com toda a sustancia. rar brutalmenfe a vitima para os a�oites futuros, com que, depois de uma primeira vergastada cruel, as parecerão menos dolorosas e menos violentas? Age amenfe para mostrar o seu vigor, para assustar a ara a mortificar desde o inicio, fazer-lhe compre- nder com quem esta frafando? O fato e que, anfes de , coffie�ar a execu�ão, o carrasco se senfe superexci+ado, +em :1 . 11 .conciencia da sua for�a e do seu papel, torna-se um ator o `preparar '~.:6 id�ia de e u ri e s"`-Ossim unic p --- :": que inspira ao publico admira�ão e medo, e não � sIm sa- .11 '',, 'fisfa�ao que grita para a vitima: "Aguenta, que isso 1 .-queima!" Palavras sacramentais do mornenfo. A gente dificilmente imagina ate que ponto um ente humano pode se desnaturar... 4 4 1 1 Nos primeiros tempos de minha esfada no hospital eu

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agu�ava o ouvido para todas as hisforias -que corifavam. Senfiamos todos o mesmo fedio em ficar deitados, e cada dia, fão semelhante ao outro, era de uma monofonia +re- menda. Pela manh , ainda, nos disfra¡amos com a visita dos m�dicos e, logo depois, com a chegada da comida, que - compreende-se - desempenhava um papel da maior impor- fancia na nossa vida. Os regimes variavam segundo os en- fermos. Uns recebiam apenas sopa, outros somente um min- gau de cevada, e outros s�rnola, da qual eram todos gulosos: aliU, no hospital, os for�ados acabam ficando gulosos, so-#

,bretudo quando Ia demoram muito fempo. Alguns recebiam um peda�o de cozido: "vaca", como se dizia enfre n¢s. Os melhores pratos eram reservados para os doentes de escor- bufo, - bife com cebola, rabanos, acompanhado, as vezes. de um copo de vodca. A disfribui�ão do pão variava fam- bem segundo a molesfia, - ...s vezes pão prefo, ...s vezes pão branco, mas sempre bem preparado. Os presos, de tanto viverem acamados, iam ficando melindrosos, e faziam ques-#

274 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 275 tão de banquefear-se. Se alguns doentes não tinham apetite, outros o tinham de sobra. E frocavam os quinhões, de modordo; como ia o contei, produziam sempre uma impressão que o regime destinado a um, ia reqularmen+e para outro. Os forte. Mas nos dias em que não se passava nada, o fedio era que estavam em dieta e recebiam apenas uma ra�ão magra, _~---,infoleiravel. Todos pareciam fatigados com a presen�a imu compravam carne aos doentes de escorbufo, e arranjavam das mesmas caras, e findavam por procurar briga. kvass, a cerveja do hospital, com os doentes que a obtinham.favel sa razão nos recebiamos com interesse os loucos que Alguns comiam ra�ões duplas. As ra�ões se trocavam por dinheiro; a carne tinha pre�o bas+anfe alto, ate cinco co- m trazidos. Alguns espertos simulavam loucura para peques a ra�ão. Se na nossa enfermaria ninguem firilia nada r ao a�oite. A maioria deles era rapidamente des- a vender, mandava-se o vigilante indagar na outra sala, e ada, ou antes, resolvia-se espontaneamente a mudar ca, e depois de dois ou +r�s dias de extravagancias, se Ia ele não encontrava nada. passava ao salão dos soldados, "aos livres", como eram chamados entre nos. Encontravam-o "louco" recuperava de chofre o bom-senso e a calma, e, se sempre pessoas que estimavam vender a sua ra�ão, e que,sombrio, pedia a execu�ão da senten�a. Nem os for�ados

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por amor de alguns vinfens, comiam o pão seco. A pobrezanem os m�dicos lhes faziam censuras, nem sequer os humi ,::"" , lhavam recordando as sandices. Eram inscritos em silen era incontestavelmente geral, todavia os que dispunham de algum dinheiro podiam mandar adquirir no mercado kalafchicio, em silencio a gente os acompanhava com & vista, e e o e outras guloclices. Nossos vigilantes davam conta dos mandois ou fr^s dias ap's eles reapareciam, depois de sofrida dados com um total desinteresse. . 1 . a puni�ão. Ali6s, os casos desse g�nero aram raros. Em O momento mais penoso do dia era o que se seguia compensa�ão, os alienados reais postos em observa�ão na ... refei�ão: uns tentavam dormir para matar o tempo, outrosnossa enfermaria eram verdadeira calamidade. Recebiamos conversavam; rixavam, contavam hisforias em voz alta. Se a principio quase com entusiasmo aqueles que tinham a lou- cura expansiva, os alegres, os vivazes, os que cantavam, gri- nSo chegava nenhum doente novo, o fedio ainda era mais favam, choravam. "Pelo menos vamos nos divertir!" diziam opressivo. A entrada dum novato provocava sempre uma os enfermos olhando para as contor�ões do recem-vindo. diversão, sobretudo se ninquem o conhecia: examinavam-no, Mas, a mim, o espet culo que davam esses desgra�ados era procuravam saber quem era, de onde vinha, o que o levara sempre terrivelmente perioso; nunca pude olhar com sangue- ao presidio. Os mais interessantes provinham dos comboios frio para loucos. Quanto aos outros sucedia que. sem de- de condenados. Esses tinham alguma cousa a narrar, mas, mora, em vez de provocar o riso, as caretas perpetuas e os e claro. nunca sobre os seus proprios negocios. E se não movimentos constantes do doido os cansavam, -- e ao cabo contavam his+oria nenhuma espontaneamente, a esse respei- de dois dias estavam todos fartos. Um desses desgra�ados fo, ninguem os interrogava. Pergun+avam-lhe apenas: "De ficou +res semanas conosco, de tal #

modo que ia não sabia- onde veio? Por qual estrada? Com quem? Ia para on- ---~ i,_ Por es ~ps era ascapa . rinascar de? efc." mos mais onde nos esc

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onder. Nesse intervalo, como de Alguns, escutando o que diziam os novatos, recordavamP roposifo, mandaram-nos um outro. que me provocou uma de sUbito certos incidentes de estrada: animavam-se, falavam impressão especial¡ssima. Isso se passou no meu terceiro sobre comboios, sobre vigilantes, soldados da escolta. Os ano de presidio. Durante o meu primeiro ano, ou mais homens que haviam sido fustigados chegavam no fim da exatamente, durante os meus primeiros meses de prisão, na 1 primavera, eu ia para o trabalho com um grupo de presos#

I 276 DOSTOJEYSKI forneiros, aos qua¡s deveria servir de ajudante. Ficava o local de trabalho a duas vers+as de distancia, numa olaria cujo forno precisava ser reparado para o ver�io. Nessa ma- nhã, M-cki e 8. me tinham apresentado ao nosso vigilante, o sub-oficial Cistrozki. Era um polaco duns sessenta anos, alto. magro, excessivamente bern parecido, e ate mesmo impo- nente. Servia na Siberia ia h muito tempo. Embora fos- se de baixa origem, - era um dos insurretos de 1830 -, M-cki e B. lhe queriam bem e o estimavam. Vivia sempre mergulhado na leitura da Biblia. Conversei com ele. Pa- lestrava amavelmente, com sensatez, com interesse, encaran- do o inferlocu+or com franca benevolencia. Eu ia não o re- via ha dois anos, mas sabia que estava submetido a um in- qu�rifo, quando de repente o trouxeram para a nossa en- fermaria: enlouquecera. Entrou soltando uivos e gargalha- das, e se pOs imediatamente a darisar, empregando os gestos mais obcenos, mais canalhas, para grande divertimento dos for�ados. Quanto a mim, fiquei muito triste. Depois de tres dias, nos ia não sabiamos o que fazer. Ele brigava, fro- cava murros, urrava, cantava noite e dia; suas repugnantes inven�ões nos provocavam nauseas. E, atem disso, não tinha medo de ninguem. Meteram-no na camisa de for�a, mas nossa situa�ão piorou ainda mais, porque nem por isso o lou- co deixou de rixar e de querer trocar pancada com todo o mundo. No fim de tr�s semanas, a enfermaria, num brado una, nime, suplicou ao medico-chefe que transferisse aquele fesou- ro para os nossos vizinhos. De Ia, tr�s dias apos, o devolve. ram para n¢s. Ficamos então com dois agitados ao mes. mo tempo, dois brigões, ambos inquietantes, e como eram regularmente devolvidos de uma sala ... outra, não faziamos senão trocar de doido. Eles se equivaliam, e todos solta- mos um suspiro de alivio quando nos livraram d 1 panhia... aque a com.

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Guardei lembran�a de outro maluco. Trouxeram-nos certo dia um preso preventivo de uns quarenta e cinco anos, sujeito forte, com a cara marcada de bexiga, olhinhos verme- RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS t A#

Z?7 inflamados, e expressão excessivamente sombria. Ins- m-no ao meu lado. Mostrou-se muito quieto, não pro- conversa, e parecia meditar. Quando ca¡a a noite, repentinamente a mim. Diretamente, sem pre6m- mas como se me fosse revelar um segredo importante, n ou-me que deveria em breve receber mil a�oites, e que ;'-~~anto a execu�ão não se realizaria porque a filha do ca- ,,~,:,p¡fão G. era sua protetora. Olhei-o inquieto e respondi a meu ver, a filha do capitão nada podia fazer num caso desconfiara ainda da verdade, porque ele , toesses. Eu não falizado como simples doente. Perguntei-lhe qual 4;ora hospi sua molestia, e ele me declarou que n3o o sabia, que não ------~',~,viapor que o mantinham na enfermaria, que estava de per- ita saude e que a filha do capitão o adorava. Quinze dias 1 fes, ao passar diante do corpo da guarda, no momento �m que olhava pela janelinha gradeada, ela se apaixonara por ' ele. Desde então, sob diferentes pretextos, a mo�a voltara vezes ao corpo da guarda: da primeira acompanhava o 1 pai, e vinha visitar o irmão, então oficial de dia na caserna. fia, segunda, viera com a mãe trazer esmolas aos prisioneiros, e, ao passar junto dele, lhe dissera ao ouvido que o amava a o o libertaria. Nada mais curioso que a minucia com a qual ele expunha os detalhes dessa absurda hisforia, nascida e de- senvolvida no seu cerebro desarranjado. Acreditava piamen- que seria perdoado; insistia, com seguran�a imperfurbavel, ',na paixao que a rapariga sentia por ele. O cora�ão da gente se apertava, ao ouvir aquele quinquagenario, com cara tão horrenda, +ão maltratada, forjar ponto por ponto tão ex+rava- garife romance de amor: mostrava muito bem o que o pavor do castigo pode engendrar numa alma fraca. Talvez, com .ofeito, ele houvesse avistado alquem pela lucarna, e a loucura ~que crescia dentro de si, alimentada pelo medo, encontrou uma saida, uma forma. Esse desgra�ado soldado, que decerto durante sua vida toda não sonhara nunca com lindas harinias, inventava de sUbito um romance, e a ele se agarrava, furiosa- menfe. Preveni os outros presos, mas quando estes lhe qui-#

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278 DOSTOIEVSKI seram fazer perguntas, o homem guardou um silencio pudico. No dia seguinte, o medico o interrogou longamenfe, e como ele pretendia não sofrer de molesfia nenhuma, e a auscu!+,,�3o nada revelava, inscreveram-no para a saida. Depois da par- tida dos medicos, quando ia não era possivel preveni-los do que se tratava, verificamos que eles haviam escrito na papeleta: "Sanat est". Ali s, que poderiamos n¢s fazer, na- da sabendo de preciso? A responsabilidade do caso cabia a nossa admini.,ifra�ão, que não indicara por que motivo fora aquele homem mandado ao hospital. Cometeram uma ne- glig�ncia imperdoavel. Contudo, aqueles que o haviam con- siderado doente, desconfiavam decerto de alguma cousa. pois tinham querido por o desgra�ado em observa�ão. Seja co- mo for, ao cabo de dois dias foi ele fustigado. Parece que -a puni�ão o deixou at"nito: quando o trouxeram ante os solda- dos, come�ou a gritar, pe indo socorro. Dessa vez não o mandaram para a nossa enfermaria, onde faltavam leitos; ins+alaram-no na outra. Indaguei dele, e soube que durante cito dias não proferira uma palavra, de +ai forma se sentia envergonhado e triste. . . Afinal, quando ficou com as cos- +as saradas, mandaram-no não sei para onde. Nunca mais ouvi falar no seu nome. No que se refere a tratamento e rem-edios, tanto quanto o pude julgar, os presos que não estavam gravemente doen- fes não obedeciam nunca ao recei+uario e nSo tomavam os remedios; mas os doentes graves gostavam de se tratar e en- guliam pontualmente as po�ões, os pos, embora guardando preferencia pelos medicamentos de uso externo. Suporta- vam de bom grado e n�io sem certo prazer as ventosas, as sanguessugas, as cataplasmas, sangrias, +ai e a cega confian�a que o povo +em nisso tudo. - Um fato curioso fambem me despertou interesse: certos cama,ra�l~as, que suportavam com paciencia as dores abominaveis da flagela�ão, torciam-se, gemiam com uma simples ventosa. Teriam ficado assim +ão sensiveis, ou apenas simulavam? E' preciso notar que as nos- sas ventosas eram de um formato especial. Numa epoca RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 279 ,que n¡nguem mais recordava, um enfermeiro estragara a ma- quina que faz com que a pele se abra instantaneamente - ou talvez a m quina se quebrara soz¡rina. Era pois necess rio 1 , recorrer a lanceta. Para uma ventosa, são precisas doze inci- soes que, feitas a maquina, não doem muito: uma cluzia de#

liminas fere a pele dum s¢ golpe, sem que se tenha tempo para sentir a dor. Não acontece o mesmo com a lanceta, que corta lentamente e faz sofrer muito; se, por exemplo, para dez ventosas são feitas na pele cento e vinte incisões, a cou- ~sa � dura, necessa riam ente. Eu proprio o experimentei: era

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bem desagraclavel de suportar, mas não a ponto do pacien- fe não se poder dominar, o gemer. Nada mais c"mico que ver aqueles rapag6es fortes lamen+arem-se, +circerem-se. Podiam ser comparados a esses homens que são ¡mpassiveis - nos negocios graves, e que em casa se mostram incessante- mente caprichosos, resmun98es, zangam-se por um nada, não querem que se lhes sirva a comida, exal+am-se, queixam-se, fudo esf6 errado, tudo os ofende, os atormenta, - em suma, � a fartui-a que os irrita, segundo diz a expressão popular. No presidio, por causa da cohabita�ão for�ada, os temperamentos dessa especie eram por demais frequentes. E o remedio, na 1 , nossa enfermaria, era levar a ridiculo um desses impertineM-es ou, singelamente, cobri-lo de insultos; ele se calava então, como se so houvesse esperado aquilo para fechar a boca. Us- fianfsev principalmente, detestava caretas, e nao perdia opor- funidade de rixar com os de "pele fina". Ali s, não esquecia nunca de chamar os outros ... ordem. Isso era nele uma ne- cessidade, criada tanto pela doen�a como pela estupidez. Acontecia-lhe olhar fixamente alguem, e depois lhe pregar ujm sermão, com voz placida e convicta. Repreendia tão bem, que parecia encarregado da boa ordem geral. - Tem que meter o bico em toda parte. diziam rindo os for�ados. Contudo, poupavam-no, evitavam brigar com -ele, e não lhe faziam senão alguma zombaria de raro em raro. - Como fala! � homem oara encher +r�s carradas de mentiras!#

280 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 281 - A gente estraga fâlego falando com esse cretino. O1 Por que gritas com a lanceta? Comeste a carne e agora r'* os ossos. Aquenta firme! - Que e que tens com isso, afinal? - Não, meus filhos, interrompia um dos presos-, venfcsa não e nada, ia provei delas. O pior de tudo e quando pu-~ xam a orelha da gente muito tempo. Todos desataram a rir. - J6 te puxaram as orelhas tanto assim? - Então! - � por isso que elas são desse +amanho? O de-tento, que interrompera a discussão. certo Cha- pkine, tinha com efeito orelhas enormes e salientes. Era um vagabundo ainda mo�o, ajuizado, manso; falava sempre com imperturbavel seriedade, porem com um bom humor disfar- �ado que dava grande comicidade as suas hisforias. - Mas seu burro, como e que voc� quer que eu saiba que lhe puxaram as orelhas? imiscuia-se de novo Ustianfsev, volfando-se indignado para os lados de Chapkine, embora este se houvesse dirigido a todos; contudo Chapkine não se dignava presfar-lhe aten�ão. - E quem foi que as puxou? perguntou alguem. - Quem? Ora quem! foi o capitão Ispravnik. No meu tempo de vagabundagem, rapazes! Esfavamos então

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em K., nos dois, -eu e um outro - um vagabundo f ambem. Chamava-se lefime. !Em caminho, em Tolmina, em casa dum mujique nosso amigo, a gente se esquentou um pouco. H por Ia uma aldeia que se chama assim mesmo, Tolmina * Che- gamos, e demos uma espiada em redor, para ver se havia al- guma coisa a fazer. Todo o mundo conhece como e: no cam- po a gente tem suas quaf ro liberdades, mas na, cidade e um horror. Ninguem sabe o que fazer! Então entramos num botequim, oNamos, e vimos vir em nossa dire�ão um homem com fr�s buracos no cotovelo, roupa a moda alemã. Veio !ogo dizendo: Com licen�a, trazem os seus documenfos? Não, não temos documentos. I "- Ah, Ofimo! eu +ambem não os +enho! Andarri comi- go dois companheiros engajados com o coronel Kukuchkin (2). Assim, queriamos perguntar se podiam nos oferecer um go- le ... estamos a nenhum. . , "_ Com grande prazer, respondemos. Erifão bebemos. Ele nos falou num bom golpe a dar numa casa no fim da cidade, onde um burgues rico morava no meio de tanta#

coisa boa que ate se perdia. E resolvemos ir Ia ... noite. Mas apenas chegamos, nos cinco fomos agarrados. Leva- ram-nos a delegacia, a presen�a do ispravnik. "Vou inter- roga-los pessoalmenfe", disse ele. Vinha com o cachimbo, e lhe trouxeram uma chicara de cha. Era um homenzarrão gordo, estalando de saude, a cara enfeitada de sui�as. Sen- tou-se. Fora nos, tinham trazido mais tr�s passaros, vaga- bundos fambem. Bicho excluisifo e vagabundo, pessoal, não se lembra absolutamente de nada: nem que leve uma paula- da na cabe�a, não sai cousa nenhuma, esquece tudo. "E de repente, o ispravnik pegou-se comigo: "- Quem �s +u? - Berrava como um tonel vazio. E e claro que eu respondi como os outros: "- Não sei, Excelencia, esqueci ... "- iEspera um pouco que ainda +e digo quem tu es. Conhe�o o teu focinho, falou-me olhando no branco dos olhos. Mas eu nunca lhe pusera a vista em cima. O ho- mem virou-se para outro: E tu, quem es? Sou o "Perna para que +e quero", Excelencia. � esse o teu nome, "Perna para que +e quero"? Sim, e o meu nome, Excelencial Bem, va Ia, "Perna para que +e quero"!? E +u? perguntou a um terceiro. Eu? "Vou com ele", Excelencia. Sim, porem como +e chamas? � como eu disse: chamo-me "Vou com ele", Exce- lencial (2) Alegoria significando a floresta onde canta o cuco. Quer dizer que são tarribern vagabundos. (Nota do Autor).

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282 DOSTOIEVSKI RECORDAC6ES DA CASA DOS MORTOS 283 "- E quem +e p"s esse nome, cachorro? "- Gente muito boa, Excelencial Não falta gente boa neste mundo, e coisa sabida, Excelencia. "- Ora, quem era essa gen~e Loa? Não feão nenhuma mernoria, Excelencia; queira ter a bondade de me perdoar. "- Então esqueceste essa gente? 1 o - Isso mesmo, Excelencia! "- Mas decerto tiveste pai e mãe? Com certeza te lembras deles? "- � de crer que tenha +ido, Excelencia; mas não me lembro; esqueci tudo! "- Bem! E onde viveste, ate agora? "- Na mata, Excelencia! "- Sempre nas matas? Sim, sempre. E no inverno? No inverno? Não sei o que e isso, Excelencia. 11 - Esfa bem! E tu, como +e chamas? Machadinha, Excelencia. E tu? "- "Come e não pia", Excelencia! E +u? "Sai da¡", Excelencia! "- Então estão todos desmernoriados? "- Isso mesmo, Excelencia! "O homem se pOs de pe, sorriu, de tal modo que nos não pudemos deixar de sorrir fambem. "Mas de outras vezes a coisa não corre +ão facil. Batem na gente bem no meio da boca, quebrando os dentes, so para estragar a cara. � um pessoal que vive gordo e sadio! "- Levem essa turma para o xadrez, que depois cuido deles. "E o ispravnik virou-se para mim: "- Tu, fica sentado a11 "Olhei, havia uma mesa, papel, pena. Pensei: "Que 6 que ele quer arrumar?" "- Sentai-te ... mesa, disse o homem, toma escreve, anda! "Segurou-me a orelha. E p"s-se a puxar por ela. Olhei-o como o diabo olharia para um pope, e falei: "- Não sei escrever, Excelencial "- Escreve de qualquer modo! o - Tenha d', Excelencia!#

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"- Escreve como puderes, anda, escreve! "E me puxava a orelha todo o tempo. Puxava e torcia. Isso mesmo, meus irmãos, garanto que preferia trezentos a�oi- fes aquilo. Estava vendo estrelas. E ele s6 fazia repetir: "Escreve, anda, escreve!" - Estava doido ou o que era? - Doido nada! Mas certo tempo antes, em T., um escrivão dera um golpe: apanhou todo o dinheiro em caixa e fugiu. O sujeito tinha orelhas cabanas; mandaram o sinal para toda parte e eu correspondia a indica�ão. Por isso o espravnik queria saber como e que eu escrevia. - Que sujeito! E doia? - Se doia! Nova gargalhada estrondou. - E então, escreveste? - Quer dizer que fiz a pena andar em cima do papel, e afinal, ele me largou. Deu-me umas dez bofetadas e de- pois me mandou para o xadrez, � claro ... � tu sabes -escrever realmenfe? Aprencl¡ ha muito tempo, mas depois que estão usando penas de a�o não tenho mais jeito ... Eis com que hisforias, ou melhor, com que tagarelice a gente mafeva o tempo. Meu Reus, que +edio mortal! Os dias eram compridos, abafantes, mon¢tonos. Se ao menos fivessemos livros! Frequentemente, de inicio, eu ia para o hospital, as vezes por doen�a, as vezes para repousar, para sair do presidio onde a vida era ainda mais dura: sempre a maldade, a inimizade, o odio, sempre rostos asperos, amea- �adores; sempre aquelas lutas, aquelas rixas, com que nos#

284 DOSTOIEVSKI perseguiam a n6s, os barines! No hospifal, pelo menos, es- favamos em pe de igualdade, viviamos como companheiros. O momento mais triste durante o dia focio, era o cair da +arde e o come�o da noife. ... luz das candeias. Deitava- mo-nos cedo. Uma lampa¡rina ba�a brilhava ao longe, perto da porta, como um ponto luminoso, e no nosso canto era completa a escuridão. O ar se tornava nauseante. Um doenfe que não consegue adormecer, levanfa-se. Fica hora e meia senfado na cama, de roupão, gorro de dormir, a ca- be�a inclinada, como mergulhado em suas reflexões. Olho-o duran+e uma hora. e para matar o fempo, procuro adivinhar ú que ele pensa. Ou então, ponho-me a sonhar, a reviver ú passado. O graride, o luminoso quadro das recorda�ões se desenha, e revejo certos detalhes que em outros tempos feria esquecido, ou sentido com menos for�a. E mais +arde, imagino o futuro. Que me aconfecera, depois do presidio? Para onde irei depois? Poderei voltar a minha terra? Pen- so, penso fan+o que minha alma freme de esperan�a ... Outra vez, ponho-me a contar: um, dois, fres, para chamar o sono. Chequei algumas vezes a confar assim af� quafro mil sem conseguir adormecer. Um doente se mexe, Ustian-

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tsev tosse, com aquela fosse espessa de fisico, depois geme fracamente e resmunga: "Senhor, pequei!" Oh, como e horrivel escutar, no meio do silencio geral, aquela voz desfa- lecenfe e quebrada! No canto, Ia ao fundo, +ambem não se dorme; dois doenfes conversam, estirados na cama. Um deles se põe a desfiar o seu passado, fala de cousas longin- quas, esquecidas, das suas vagabundagens, dos filhos, da mulher, da sua vida arrumada de outrora. Adivinha-se pelos seus murmurios que tudo de que o homem fala não +ornara mais, qua ele ia não passa dum membro decepado, rejeifado. O outro escufa, calado. Ouve-se apenas um cochicho morio- tono, regular como o marulho dagua que mina da +erra. Lembro-me de que eu farribem, numa inferminavel noite de inverno, escutei assim uma his+6ria que a principio me pare- ceu um pesadelo abominavel, engendrado pelo delirio e pela febre. .--- I i IV O marido de Mulka (histo6a)#

Era hora tardia, - meia-noite, falvez. Acordei sobressai- fado, depois de um sono curto. A luz incerta da Iam- pariria deixava a enfermaria numa penumbra. . . Quase todos os doentes ia repousavam, inclusive Usfian+sev. Ouvia- se, afraves do silencio, sua respira�ão penosa, o seu esfer+or a cada golfada de ar. O passo da senfinela que se apro- ximava para substituir a outra ressoou de sUbifo no fundo do corredor. Uma coronha bafeu pesadamen+e no soalho. Abriram a sala. O cabo veio fazer o controle dos doen+es, caminhando com precau�ão. Um minu+o apos, a porta fe- chou-se, colocaram a sentinela nova, a patrulha se afaslou e foi restabelecido o silencio. S¢ então notei, perto de mirri,

286 ,DO S,TO I EVSKI a esquerda, dois homens que não dormiam, e conversavam num sussurro. Acontece, as vezes, nas salas de hospital, ficarem dois homens deitados duran+e dias e meses um ao lado do outro, sem trocar palavra; depois, de repente, como se obedecessem ao sorfilegio da hora noturna, travam con- versa. E então, um principia a desenrolar diante do outro todo o seu passado. A palestra deveria durar ia ha muito tempo. O come-

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�o me escapara, e nem todas as palavras me alcan�avam dis- finfamente; mas, pouco a pouco, me habituei ao som delas e acabei entendendo tudo. Não tinha vonfaide de dormir; que havia de fazer senão escutar? Um dos doentes contava com calor, semi-dei+ado no leito, com a cabe�a erguida e vol- +ada para o lado do outro. Via-se que se sentia a+ormen- +ado, superexcitado, presa- da necessidade de desabafar. Seu confidente estava sentado na cama, as pernas -estiradas, numa atitude sombria e indiferente. Rosnava de tempos em tempos uma vaga resposta ou um sinal de assentimento, mas fazia-o por polidez, -e em todo o tempo metia os dedos na fabaqueira de chifre e enchia o nariz de rape. Era Tchere- vine, um correcional duns cinquenfa anos, horrivelmente per- nosfico, frio argumentador, pretensioso, ressumando amor- proprio. Chichkov, o narrador, era homem duns trinta anos, um de nossos for�ados civis. empregado na oficina de cos- tura. Ate então eu quase não lhe prestara a+en�3o nenhu- ma, e depois, durante todo o resto da minha pena, não me despertou nunca o minimo interesse, por causa da sua vai- dade e do seu es+abariamenfo. As vezes ficava taciturno, amuado, assumia uma atitude grosseira e passava semanas sem falar. Outras vezes, engo'ifava-se todo numa his+oria qualquer, inflamava-se a-toa, corria de alojamento em alo- lamento para repetir mexericos, calunias, que pareciam p0-lo fora de si. Depressa fazia com que o espancassem, e de novo se calava, porque era covarde e fraco. Todos o +ra- +avam com grande altivez. Era de es~afura media, mui+o magro, com olhos ora abstratos, ora estupidamente pen- I RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 287 safivos. Assim que contava alguma cousa. enfebrecia e gesticulava. E não ia muito longe - in+errornpia-se, muda-#

1 'ha� 1 i - -1 -1 va de assun~o, emeru¡ -se nos ...'-a,hes ou o f*10 d3 historia. R¡xava com frequencia; quando injuriava alguem acusava-o logo de lhe querer mal: fingia, então, um ar como- .vido, e choramingava. Tocava balalaica muito bem, e du- rante as festas, era facil faz�-lo d�irisar. Alias era facil e rapi- do leva-lo a fazer qualquer cousa, não que fosse obediente, mas porque gostava de conquistar camaradas e lhes ser agradavel. Durante muito tempo, não compreend , nada do que Chichkov contava. Parecia-me que ele a toda hora se afas- +ava do assunto. Talvez houvesse observado que Tchere- vine s0 lhe prestava uma aten�ão dis+raida, em vez de se mostrar todo ouvidos, entretanto preferia ignorar essa indi- feren�a, a formalizar-se. - Quando ele ia a feira, narrava Chichkov, todo o mundo o saudava. lhe tirava o chapeu ... Era um rica�o! - Negociava? - Sim, negociava. E 16 entre n6s a pobreza e grande. Uma miseria. As mulheres vão buscar agua no rio, para

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regar as hortas; labutam que e um horror, e, assim mesmo, quando chega o outono, não t�m um pe de couve para a sopa. E' uma desgra�a! Porem esse camarada possuia um bom pe- Ja�o de ferra, +r�s trabalhadores, vendia mel e gado, era por ~odos muito considerado. Mas ia estava com setenta anos, bem velho, e os ossos lhe pesavam. Tinha a cabe�a toda branca. Quando chegava na feira, com o capote de pele de raposa, todo o mundo o cumprimentava. SO se ouvia isto: "Bom-dia, paizinho Ankudime Trophimyfch!" E ele respondia: "Bom-dia, meu amigo!" Não fazia pouco de ninguem. "Saude, Ankudime Trophimyfch!" - "E os +eus negocios como vão?" peFguntava ele. - "Os negocios v5o como nozes brancas (1). E os seus?" - "iEh, +ornava o ve- (1) Proverbio russo que denota impossibilidade. (N. de R. Q)#

288 IL I DOSTOIEVSKI o. nos fambem vivemos por mal dos nossos pecados, pu- xando o diabo pelo rabo." - "Deus o guarde, Ankudime Troph;rnyfch!" Parei encurtar a histor¡a, fica sabendo que ele não desprezava ninguem, e quando falava, cada palavra que dizia valia um rublo. Lia muito, sabia muito, e entendia dos livros sanfos que era uma beleza! Mandava a velha dele senfar, e dizia: "Escuta, mulher, procura compreender!" e ex- plicava tudo. A velha, e bom dizer, não era assim tão velha, pois Ankudime casara duas vezes, para fer filhos. A primeira mulher fora esferil, mas a segunda Maria Sfepa noviria, finha-lhe dado um casal: o ultimo, Vassia, nascera quando o pai ia tinha mais de sessenfa anos, porem a filha, Akulka, era rapariga duns dezoito anos. - E era essa a fua mulher? - Espera um pouco! Foi ai que Filka Morozov foi falar com o velho: "Vamos fazer confas. Ankudime-, devol- ve-rqe os quatrocentos rublos, ia não sou feu trabalhador, não q"uero mais negocios contigo, nem quero mais saber da tua Akulka! Agora quero e gozar a vida. Meus pais mor- reram, vou beber meus cobres; depois, quando acabar, senfo pra�a e dentro de dez anos volto aqui feito marechal de campo." Ankudime devolveu-lhe o dinheiro, tudo que tinha dele, pois negociara de sociedade com o pai de FiIka. "Tu es um perdido", virou-se o velho para Filka. E Filka respon- deu: "Não me importo; esfou farfo da fua casa, velho barbu- do, velho ladrão! Na fua casa a genfe aprende ate a beber leife com uma sovela. Tu economizas dois vinfenS e junfas af� as varreduras, como se quisesses fazer a sopa com -elas! Pois vou viver como enfendo e não me caso com a fua Mul- ka! Ja dormi com ela, sem precisar de casamento!" - "C, que? berrou Ankudime. Tens coragem de ofender um pai honrado e uma mo�a honrada? Quando foi que dormiste com ela, cachorro, velhaco, vagabundo?" O velho fremia a ra va - foi Fili�a que o confou, mais +arde. - "Isso, mesmo, replicou Filka-, e não a desejo mais. E agora*

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Muli�a, não 3�hara mais quem a queira, porque esta deshon- He +An+ RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 289 rada - nem mesmo Mikifa Grigorifch a querer . Desde o#

outono passado que n6s andamos juntos. Agora, nSo a ace~o rem por cem caranguejos ... Faze a prova, da-me os cem caranguejos e ver�is que não a quero mesmo. . . " E depois, o rapaz come�ou uma orgia pavorosa. Fazia tremer a ferra, fão grande era a farra. Tinha amigos, tinha dinheiro; du- rante +r�s meses seguidos desmandou-se sem parar. E dizia: "Esperem um pouco; quando o cobre se acabar eu vendo a casa, liquido tudo e, em seguida, assento pra�a ou viro vagabundo." Vivia b�bedo, de manhã' a noite, e passeava de carro, com guizos no pesco�o dos cavalos. As raparigas andavam loucas por ele. Sabia focar citara muito bem. - E ele tinha então andado mesmo com Akulka? - Cala a boca! Espera que eu conte. Eu +ambem tinha enterrado meu pai; minha mãe fazia doces, trabalhava para Ankudime, o assim iamos fendo com que comer e mais nada. As coisas não andavam muito bem, Ia em casa. Tinhamos um campo, por defras da mafa, e nele plarifava- mos frigo; mas depois da morfe do.meu pai vendemos tudo, porque eu fambem andava na farra. E tirava os cobres da velha a for�a de pancada. . . - Fazias muito mal., isso e um pecado muito feio. - Olha, rapaz, em geral me aconfecia esfar b�bedo e a e de manhã af' ~ noite. Na nossa casa, podia-se a+' fazer ca�adas dentro! Esfava toda indo abaixo, porem era nossa; as vezes a genfe passava fome, ficava mastigando frapos du- ranfe semanas. Minha mãe me enchia de descomposturas, mas eu pouco me importava. Nesse tempo não me sepa- rava de Filka um instante. Ele dizia: "Toca a balalaica e dansa, que eu vou ficar deitado, e fe jogo -dinheiro, porque sou um rica�o". E as coisas que ele inventava! Mas não recebia nada que fosse roubado. "Eu, garantia ele, não sou nenhum ladrão, sou um/',nomem de bem". "Agora, falou uma vez, vamos sujar de alcatrão a porfa de Akuika (2) por- (2) Costurne popular apontando ao desprezo p blico as raparigas que lhaviam P~caclo contr~ ~ ~astidade. (N. de R. Q1 ,#

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que não quero que ela se case com Mikita Grigori+ch. Levo isso muito a peito!" J6 ha muito tempo o velho queria dar a filha a Miki'J-a Gr~gorif . Esse MIk*;fa era cufro ve!ho, viuvo, que usava oculos e +arribem comerciava. Mas assim que ouviu contar essas historias a respeito de Akuika, pos-se de fora! Explicou ao amigo: "Para mim, Ankudime Trophi- my+ch, seria uma grande vergonha, e alem disso, na minha idade, não fa�o questão de casar." E pintamos de alcatrão a porta de Akulka. Por causa disso, os pais deram-lhe uma surra, mM que surra! Maria Stepanovna gritava: " Dou cabo dela!" E o velho: "Antigamente, no tempo dos san- +os patriarcas, eu poderia ma+a-la a machado, em cima de uma fogueira; porem hoje em dia o mundo e apenas corrup�ão e trevas!" As vezes os vizinhos da rua inteira escutavam os gritos de Akulka, porque a a�oitavam de manhã ... noite. E Filka ainda por cima gritava: "A mo�a e de luxo, meus amigos. Muito limpa, com roupa branca bonita - não se pode pedir mais! Isso mesmo ia atirei a cara do velho, para que não o esque�a!" ... Certa vez, por essa �poca, en- confrei Akulka carregada com dois baldes, e gritei: "Bom- dia, Mulina Kudimova. Saude, beleza! Deixa de orgulho e dize com quem est s vivendo agora!" Falei s0 isso, e ela me fitou com uns olhos maiores que dois por+ões ... Alias, estava magra como um palito. Enquanto ela me olhava, a mãe pensou que a mo�a estava de prosa comigo, e gritou da porta: "Mos+ra-lhe os dentes, senvergonha!" E nesse dia deram-lhe outra surra. As vezes, a�oitavam-na durante uma hora inteira. "Dou-lhe de chicote ate liquida-la, gritava a mãe, porque ia não e mais minha filha!" Mas escuta, ela vivia mesmo na pouca vergonha? Espera, escuta ainda, meu velho. Filka e eu não paravamos de nos embriagar juntos. Uma vez, quando eu estava deitado, chegou minha mãe ralhando: "Por que estas ai de papo para o ar, desgra�ado, porcaria, sujeira! O que deverias fazer era casar! Casa com Akulka, eles terão O muito gosto em se livrar da filha, e tu recebe s trezentos rublos, sem contar o mais que vira depois." Eu respondi- "Mas todo o mundo sabe que e!a fo*, des~orrada!" 1m- becil, retrucou a velha, a coroa (3) arranja tudo! Não perdes nada: se ela pecou, h6 de eternamente ter medo de fi. E a gente endireita a vida com o dote. Ja falei a Maria Sfe- panovna, e ela não disse que não." � então aceitei: "Ponha vinte rublos em cima da mesa, que eu me casoY Quer acredites ou não, a verdade e que ate o dia do casa- mento -estive todo o tempo de pileque. Mas Filka Morozov vivia me amea�ando: "Quando fores marido de Akulka,#

quebro-te as costelas e dormirei todas as noites com ela." "Isso so vendo, carne de cão!" - Porem ele me insultou tanto, diante da rua inteira, que corri Ia em casa e disse: "Não caso mais se não me derem ia ia cinquenta rublos!" - E deram-fe os cinquen+a rublos? - Por que n3o? Nos não eramos gente ã-foa. Meu pai,-perfo de morrer, foi arruinado por um incendio: contudo,

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antes disso, era talvez mais rico que eles. Ankudime veio nos chamar de miseraveis, de esfarrapados. . . "E sua porta (respondi eu) não esta suja de pixe?" O velho +ornou: "To- pete e o que não +e falta! Prova que a minha filha esta de- shorirada! A gente não pode tapar a boca do povo com um len�o. Pelas chagas de Cristo, vai-M embora daqui! Oas de- volve o meu dinheiro!" Então combinei com Filka mandar di- zer ao velho, por in+ermedio de Mifri Bykov, que o haveria de arrastar na rua da amargura; e ate o dia do casamento, nãc, podes calcular quanto bebi, rapaz! So na igreja foi que voltei a mim. Quando nos trouxeram depois do casamento, manda- ram-nos sentar, a Mi+rophane Sfispani+ch, que era fio dela, fa- lou: "Embora o negocio não tenha sido honesto, esta fecha- do, e acabou bem!" O velho Ankudime bebera o seu golezi- nho, e choravalan+o que as lagrimas lhe desciam pela barba. Mas eu, que nao era tolo, meti um chicote no bolso antes de ir para a igreja. Tinha-o levado para o usar em Akulka, (3) A coroa nupcial que as noivas russas usavam por ocasião das bodas. (R de P, Q)#

292 DOSTOIEVSKI para ela ficar sabendo que nab,,,;e deve apanhar marido com enganos deshorirosos, e que 4 não era o idiota que ela -pensava ... 1% - Muito bem, querias que ela provasse logo do que a esperava! - Ah, meu velho, tu conclues muito depressa; espera e veras. Em casa, logo que saimos da igreja, levaram os re- cem-casados para um quarto, enquanto os outros bebiam e esperavam. E então, fiquei sozinho com Akulka na alcova. Ela estava sentada sem se mexer, sem uma gota de sangue no rosto. Tinha um medo pavoroso. Os cabelos claros como linho e os olhos enormes. Não dizia nunca uma pala- vra, ninguem lhe ouvia a fala, era como uma muda, dentro de casa. Rapariga engra�ada! Pois bem - has de crer? Eu estava com o chicote pronto em cima da cama, e a ino- cenfe não tinha culpa nenhuma, nenhuma - era pura como um anjo. Não e possivel! Pura, pura, sou eu que te digo. Honesta como uma filha honesta de casa honesta. E por que sofrera todos aque- les formen+os? Por que Filka Morozov a difamara diante de todo o mundo? - Sim, sim ... - En+So saltei da cama, p¢s-me de joelhos, juntei as mãos, e exclamei: "Perdoa-me Mulina Kudimova, fui um idio- +a em ter acreditado nisso tudo, perdoa ao band , ido que eu sou!" Ela estava sentada na minha frente, na cama, olhava- me. com as duas mãos nos meus ombros, e p"s-se a r*.r, chorando ao mesmo tempo. Ah, seu mano, chorava e ria! Então fui procurar os outros: "Escuterri, disse eu, Filka que fuja de se encontrar comigo, porque juro que n3o ha de viver muito tempo neste mundo!" Os velhos ficaram sem

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saber a que santo acenderiam velas! a mãe quase se atirou aos p�s da filha, solu�ando, e o velho falou: "Se nos sou- bessemos, não seria um marido como esse que +e dariamos, minha filha querida!" Quando no domingo seguinte fomos RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS O I 293 juntos a igreja, eu levava um gorro de pele de cordeiro, um lindo cafe+S de pano fino, e uma cal�a de veludo. Ela usava#

um abrigo novo, de pele de lebre, um f ichu de seda, -enfim, estavamos dignos um do outro. Não sou mal parecido, e Akulka não era pior que as dernais; pode-se diz--r que valia por dez, sem gabolice ... - Então tudo ia pelo melhor! - Espera o resto! No dia seguinte ao casamento, em- bora b�bedo. deixei os convidados e corri pela rua toda. gritando: '7ragarri-me aqui Filka Morozov, apare�a-me aqui esse velhaco!" E fui gritando assim ate ao mercado! Mas como eu te contei, estava b�bedo e fui barrar na porta da .casa dos VIassovi; agarraram-me e +r�s homens me trouxeram a for�a para casa. Todo o mundo falava naquilo, na cidade, e as raparigas, quando se encontravam no mercado, cochi- chavam: "J soubeste, heiri? Akulka ainda tinha a inocencia dela!" Algum tempo depois, diante de uma por�ão de gente, encontrei Filka, que me disse: "Vencle-me a tua mulher, que ter s com que beber. Faze como o soldado lach- ka, que casou de propOsi+o para isso: não se deitou nunca -com a mulher, e durante +r�s anos não ficou a seco um ins- +anfe." E eu lhe respondi: "Tu es um sujo!" - "E tu, replicou ele, não passas dum grandissimo cretino. Casararri-+e quando estavas b�bedo, hein?" Chequei em casa e grifei para o pessoal: "Voc�s arranjaram um jei+ão de me casar quando eu estava b�bedo!" A m5e de Akulka agarrou-se comigo, mas eu lhe disse: "Tu, mãezinha, tens as orelhas tapadas com o feu ouro! Traze Akulka aqui!" En+ão, durante duas horas seguidas bati nela, bati ate rolar no chão. Depois disso, Akuika ficou +r�s semanas de cama, sem poder se levan+ar! - � claro, a , provou fleumaticamente Tcheverine - quando a gente não lhes da pancada, elas ... Então tu a encontraste com um namorado? - Não, i~so não posso dizer, confessou com magoa Chichkov, depois de um sil-encio. Eu, porem, estava furioso, furioso. Todo o mundo zombava de mim, e o chefe da#

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+ro�a era Fili�a. "Tua mulher foi feita )ara os olhos dos homens!" dizia ele. Um dia convidou-~.,s para beber em sua casa, e p"s-se a falar: "Minha m¡ u!he fern Lorn cora�ao, e bem educada, bem parecida, delicada, amavel para todo o mundo", � esta a cantiga dele, agora! Entretanto não faz tempo que foi sujar de pixe a porta de Akuikal" Mas como eu estava b�bedo nessa hora, ele me segurou pelo cabelo e me derrubou. "Dansa, maridinho de Muli�a, dansa en- quanto +e seguro pelos cabelos, dansa para me distrair!" - "Cachorro, bandido!" grifei. E ele: "Vou contigo a tua casa, e na tua frente darei tanta palmada em Akulka, tantas quanto o cora�ao me pe�ai" E ai, quer acredites ou não, não me atrevi a por os pes fora na rua durante um m�s in- feiro, +ai o medo que eu tinha que ele me viesse fazer de- sordem em casa. E fambern foi por causa disso que comecei a espanca-ia ... - Por que a espancavas com tanta for�a? A gente pode amarrar as mãos das mulheres, mas não a lingua. Não se deve surr -las demais. Corrigir um pouco, e depois aca- rinhar. � assim que elas gostam! para isso foram feitas. Chichkov calou-se um momento. - Não podia engolir aquela hisforia, tornou ale, e acabei me habituando a esparicãi-la; em cerfos dias, baL fia-lhe da manhã a noite: porque ela não se levantava na hora, porque não caminhava do meu gosto. Quando não a surrava, fazia-me falta. As vezes ela ficava sentada junto da janela, chorando como uma Madalena e doia-me v�-la chorar, tinha pena dela, porem batia assim mesmo. E minha mãe ma descompunha por causa dela: "Bandido, dizia a velha. crimi- noso!" E eu berrava então: "Sim, ainda a mato, e voc� não +em direito de me dizer nada, pois foi quem me meteu nisso!" No come�o, o velho Ankudime farriberin quis dar palpite: "Deus não +e fez diferente dos outros, hei de arranjar um jeito de te dar juizo!" Mas teve que dar para +ras. E Maria Sfepanovna tambem fiou fino, comigo: um dia veio me implorar, banhada em pranto: Ivan Sernin~ofich, quero I f te pedir uma cousa'. para +i não e nada mas para mim e Muitol, o E se ajoelhou aos meus p�s. "Abranda esse cora- �go, perdoa ... minha filha! Essa gente ruim fala mal dela, confuido bem sabes como a recebeste. . . " E ficou estirada no chão chorando. Então fiquei danado: "Cale essa boca, não quero ouvir nada! Agora vou fazer o que me der na ca- be�a; fiquei doido, doido, ouviu? E Filka Morozov e meu amigo, - meu melhor amigoW#

- Então voc�s andavam de novo bebendo juntos? - Juntos? Eu não chegava nem perto dele. Fili�a ia bebera tudo o que possuia, e ia assentar pra�a no lugar do filho dum rica�o. L6 na nossa +erra. quando a gente assenta pra�a no lugar de alguem, fica em casa do engajador como na casa da sogra, e faz-se o que se quer. Recebe~se o di- nheiro todo de uma vez, na hora da partida, mas enquanto

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se espera, fica-se na casa do pai do recrufa as vezes at� seis meses. O que esses rapazes inventam, o que arranjam, para danar o pessoal, nem se pode conceber! Os velhos s6 o que podem fazer e cobrir os icones das paredes, e dar lugar ao homem! E ele berra: "Voc�s querem muito que eu va ser soldado no lugar do seu filho, não e? Então tem que_,me considerar seu benfeitor e me agradecer muito, senão, nada feito, e vou caindo fora!" E, assim, o nosso Filka ia comendo do bom e do melhor na casa do rica�o, dormia com a mo�a, e todas as noites depois do jantar pu- xava as barbas do velho. Diverfia-se como diabo! Diaria- mente queria um banho, e com vapor de vodca, ainda por cimal As mulheres tinham que o carregar no colo. Quando voltava da orgia, ficava berrando no meio da rua: "Não quero entrar pela porta, ponham a cerca abaixo!" Então abria-se uma passagem ao lado da porta e ele entrava por 16 ... Mas tudo +em um fim. Ele teve que ir mesmo para o quartel, e acabou-se a bebedeira. Tinha um gen+So enorme na'.~ua para assistir ... partida de Filka que fazia cum- primen+os para todos os lados. Nesse momento, Akulka vinha da hor+a. Assim que Fiika a avistou (ela vinha che-#

296 DOSTOIEVSKI gando em frente a nossa porta) gritou ao coche*!ro: "Para!" E saltou da felega. Caminhou para ela. e se curvou ate tocar o chão. "Minha lindeza, minha alma, meu moran- quinho,com a�ucar, amei-ie durante dois anos, e agora estão me levando com banda de musica para o quarfel. Per- doa-me, filha honesfa dum pai honesfo, porque muito pe- quei contra ti. Esfe que esfa aqui a tua frenfe e um ca- nalha, um perdido. Eu � que fui o culpado de tudo." E de novo se curvou af� ao ch3o. Akulka a principio assus+ou-se muito, depois falou, fazendo uma. mesura: "Perdoa-me farribem. não tenho queixa nenhuma contra +i!" E eu, então, enfrei afras dela em casa: "O que foi que lhe disseste, ca- chorra?" pergunfei. E ela, acredites ou não acredites, olhou-me de cara e confessou: "Sim, gosfo dele mais que de tudo neste mundo!" - Não e possivel! - E eu, durante o dia inteiro. não abri a boca. So quando escureceu. foi que disse: "Akulka, ainda +e ma+ol" Sim, falei isso. ¶ noite não pude pregar olho; sai do quarfo. fiquei bebendo kvass ate o romper do dia. Então voltei ao quarfo. "Akulka, chamei,'acorda, vamos para o campo!" J fazia algum fempo que era mesmo preciso ir ver o centeio de modo que a minha velha ficou satisfeita. Isso mesmo! respondeu ela. � preciso fazer a colheita e j ha uns dois dias o trabalhador anda doente." Preparei a +elega, sem dizer nada. No fim da nossa cidade, mesmo na saida da rua, come�a uma mata dumas quinze verstas, e depois da mata ficava o nosso campo. Quando esfavamos +r�s vers+as dentro da mafa, parei o cavalo. Akulka me olhou, assus+ou-se, e ficou de pe, sem dizer nada. "Esfou farto de fi, continuei, anda, faze

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tuas ora�ões!" Segurei-a pelo cabelo - as +ran�as dela eram grossas, assim, enrolei-as na mão, aperfei-lhe o corpo entre os joelhos, puxei a minha faca, derrubei sua cabe�a para tr s, e en+errei-lhe a faca na garganta. Ela deu um grifo e o sangue -espirrou. Eri+So, atirei fora a faca, dei' fei-a no chão, me abracei com ela, beijei-a, e fiquei berrando 21 4 k / I jb~ \#

r I RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 2" ---um possesso. Ela grifava sempre, eu lambem, e mia, esfrebuchava, e o sangue me salpicava lodo. De e, me invadiu um medo danado, i rguei-a, abandonei , p£s-me a correr, corri ale chegar em casa. Enfrei rfa¡ de fr s e fui para o banheiro do quintal. Era um ro velho, quase caindo. Deitei-me no banco e 16. Não me mexi ale que a noite ficou bem escura. E Akulka? Ela? Ah, sim! Depois que corri. levanfou-se, de- querendo lambem volfar para casa, pois a enconfraram ou menos a uns cem passos do lugar onde a feri. 1 - Quer dizer que não estava degolada direito? Sim E Chichkov calou-se um momenfo. 1---, - � verdade, observou Tcherevine, a gente +em uma '010 ; ~o , veja que se nao e cortada logo ao primeiro golpe, a criatura ,,continua vivendo. e por mais sangue que derrame, nao morre. 1 1 - Ela, porem, morreu. Foi enconfrada a noite. Deram o alarme, procuraram por mim, e me prenderam Ia mesmo no banheiro ... Ja faz uns quatro anos que esfou aqui ... acrescentou depois de um silencio. - Hum! A verdade � que quando a genfe, não as espanca, nao arranja nada, declarou Tcherevine num fom frio e sentencioso. Tornara a abrir a eterna +abaqueira. Demorou fomando uma pilada, fazendo pausas. - Entretanto, rapaz, foste um folo. Eu lambem apanhei minha mulher ;ACOm um namorado. Chamei-a para um alpendre. dobrei em ~~ , duas uma correia, e disse: "A quem foi que juraste ser fiei? ` · quem, bein?" E dei-lhe com a correia, dei com focla a .~i1~ -,' for�a do bra�o, durante uma boa hora e meia, af� que ela --- grifou: "Lavo os teus pes e bebo a aqua depois!" Cha-

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:1 mava-se Avdolia, menino! ...#

'k Primavera come�ara abril e estava proxima a Semana Santa. Pou- co a pouco, iamos iniciando os trabalhos de verão. Cada J dia o sol ia se tornando mais quente, mais brilhante; o a r cheirava a primavera e atuava sobre os nossos nervos. A 9proxima�ão da primavera perturba ate os homens que es- fão debaixo da grilheta, desperta-lhes desejos, ardores, uma s~agdade tristissima. Pensa-se com muito mais for�a na li- berdade sob os raios brilhantes do sol que durante as nevadas Jo inverno, ou nos dias chuvosos do outono. E um fato -,�4,n se pode observar entre os defentos: um dia bonito e ,�l4ro os alegra, mas os torna tambern mais impacientes, mais irritados. Constatei com efeito que, durante a primavera, aumentavam as brigas. Ouviam-se mais frequentemente ba- I#

DOSTOIEVSKI rulhos e gritos, surgiam hisforias, e ao mesmo tempo . , surpre- endia-se de subito, em pleno trabalho, alguern fixar obstina- darnenfe o olhar na disfane~a que azulava ao longe, 16 em aixo, na outra margem do lr+ych, na qual, na extensão de mil e quinhentas verstas, se desdobrava a vastidão incomensu- ravel das estepes kirghizes. E um pesado suspiro subia ao peito do homem, como se ele estivesse i rresisf ivelm ente atrai- do por aquela planicie de ar livre que lhe haveria de curar a alma,, esmagada e aprisionada. "Ai, meu DeusV' excla- mava o for�ado. e como para sacudir os sonhos, segurava com gesto rude a enxada ou os tijolos que deveria frans- portar dum lugar para outro. Depois de um ins+ante,esque- cia aquela impressão fugitiva, e punha-se a rir ou a praguejar, de acordo com o seu genio; ou, então, atacando a fa~efa com uma febre repentina, inteiramente insolita e desmedida, encarni�ava-se no trabalho afim de sufocar a for�a de fadiga o tormento intimo que o roia. Os for�ados s , So homens vi- gorosos, a maioria na flor da idade, em plena posse das suas nergias. Contudo, como lhes pesam tremendamente os ferros nessa es+a�ão! Não estou poefizando, e garanto a aufen- ficidade do que digo. Quando chegam os dias bonitos, quando o sol clareia, quando se ouve e sente em +orno de os, com toda a alma, com todo o corpo, a nessurrei�ão da natureza -e a sua imensidão, - o presidio, os vigilantes, a submissão a vontade alheia esmagam muito mais. Alem disso, e com a primavera, � com a primeira co+ovia que por toda a Siberia, por toda a Russia, come�am a andar os vagabun- dos; e então que os "filhos de Nosso Senhor" fogem das prisões, somem-se nas florestas. Depois do ambiente sufo- cante, depois dos julgamentos, das grilhe+as, dos a�oites,

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eles vagueiam a vontade, ao leu, vão onde lhes apraz, bebem e comem o que encontram, o que Deus manda, e quando chega a noite, adormecem franquilamente em qual- quer parte, num canto de bosque, num fundo de trigal, sem preocupa�ões, sem angustia da prisão, como os passaros, dando boa-noite as estrelas do ceu, sob a guarda do seu RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 303 Cr¡ador. H momentos, e claro, em que nem tudo são rosas, a "e aperta, - pois o servi�o do general Kukuchkin com- porta as suas fadigas. Passem-se dias 19~elros sem uma co- doa de pão; e preciso fugir de todo o mundo, esconder-se simi. buracos; e preciso roubar, saquear, matar ...s vezes. "O colono � como crian�a, atira-se a tudo que v�", diz-se na Siberia. Esse ditado se pode aplicar com toda a sua for�a, e com mais exatidão ainda, aos vagabundos. São raramente#

bandidos, porem quase sempre ladrões, mais por necessidade que por prazer, compreende-se. Ha vagabundos empeder- 1~ ---l-nidos. Alguns fogem depois de terminada a pena, no pre- sidio, quando ia se transformaram em colonos. Alquern po- deria imaginar que eles se sentem felizes na sua nova si+u ~ a�ão, na seguran�a de que +�m pão gararificlo; mas não - h6 algo que esta longe e os chama. A vida na floresta, mise- ravel,e ferrivel, porem livre e avenfurosa, +em para os que al- guma vez a experimen+aram um encanto misterioso, sem o qual não podem mais viver. Entre esses fugitivos a gente se espanta ao encontrar individuos sossegados, lavradores ia pr6speros. As vezes e um desterrado casado, pai de familia, fixado no mesmo local ha uns quatro ou cinco anos, que um belo dia desaparece, abandonando mulher, filhos, lavra. Mos- fraram-me no nosso presidio um desses fugitivos. Não tinha ne- nhum grande delito na conciencia, - pelo menos ninquern aludia a nada grave ao falar nele, mas desertara, - deser- tara durante a vida inteira. Estivera na fronteira russa do sul, do outro lado do Danubio, na estepe Kirghiz, na Siberia Ori- enfal e no Caucaso, - andara por toda parte. Quem sabe se um homem daqueles, em outras condi�ões, e com a mesma ,paixão por viager¡s, não se tornaria um segundo Robinson Crusoe? Tudo isso me foi narrado por outros for�ados, porque ele falava pouco, não abria a boca senão em caso de necessidade absoluta. Era um homem pequeno, de uns c¡nquen+a anos de idade, muito quie~o, com o rosto +ão pla- cido que parecia idiota. No verão gostava de senfar-se ao sol, e logo se punha a resmungar uma cantiga, mas tão b3i-#

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xinho que a cinco passos de distancia não se escutaria nada. Os fra�os do seu rosfo esfavam por assim dizer pefrificados; comia pouco, e em geral so comia pão preto; jamais com- prava kalafchi ou vodca. Teria dinheiro, acaso? e se o pos- suisse, seria capaz de o confar? Mosfrava-seem fudode uma indiferen�a absolufa- ¶s vezes atirava um pouco de comida aos cães do presidio, animais que ninguem pensava em ali- menfar. (Em geral, o russo fem uma repugnancia instintiva em dar comida aos cães.) Confava-se que era casado, que af� mesmo o fora duas vezes, e que tinha filhos, em algum lugar. Que de!ifo -expiava? Não o sei. Todos n6s espe- ravamos v�-lo fugir; enfrefanfo, talvez porque não surgisse ocasião, falvez porque os anos ia lhe pesassem, ele continuava a viver, dobrado sobre si pr¢prio, fitando do alto aquele ambienfe estranho que o cercava. Contudo, não se deveria confiar muifo naquele sossego; que inferesse, porem, feria o homem em fugir? A verdade e que, fornada em conjunfo, a vida, na flores- +a, a vida de vagabundo, e um paraiso comparada a do presidio. Nenhuma aproxima�ão e alias possivel enfre a vida do presidio e a vida livre, dificil embora, mas livre. 'E eis a razão por que, em toda a nossa querida Russia, qualquer defenfo, seja qual for o local da sua prisão, fica inquieto nos primeiros dias de primavera, com os primeiros raios sorriden- +,es do sol. No entanto, todos estão muito longe da inten�ão de fugir! Pode-se afirmar que, dadas as dificuldades e os riscos, um so entre cem se decide a fuga: mas isso não impede os noventa e nove restantes de sonhar com a evasão, de pro- curar onde e como poderiam tentar a empresa, estudar um local onde obteriam refugio. Essa esperan�a surda os anima; f�m necessidade de calcular suas possibilidades. Alguns fi, ram coragem da lembran�a de uma fuga antiga ... Sà me refiro aqui aos condenados. Porque, entre os presos preven- +ivos, e muito maior o numero dos que se resolvem a fugir. Os condenados, em geral, s6 o fazem no inicio da sua miseravel vida. Depois de dois ou +r�s anos de presi- RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS A 305 dio, o for�ado come�a a apreciar os meses de pena que ia fem cumprido e pouco a pouco acha que sera melhor terminar !eg�!r¡,.en'ie a pena -- forn,:~r-se mais tarde colono numa aldeia, do que se desgra�ar em caso de fracasso. E#

o fracasso e sempre possivel. Unicamente um for�ado, entre dez. consegue, evadindo-se, "mudar de sorte". Os que se resolvem a fugir, são em geral os condenados a longas penas: quinze, vinte anos parecem eternos, e essas criafuras estão sempre prontas a "mudar de sorte" mesmo ao cabo de dez anos de prisão. Enfim o ferrete na festa fambem constitue um obst culo. "Mudar de sorte" e a expressão t�cnica. E' essa a ambi�ão que o for�ado confessa no in~errogatorio, se e apanhado. A expressão, um pouco livresca, aplica-se ex-

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celenfernenfe ao ato que designa. Todo evadido não visa precisamente a liberdade completa, que ele sabe quase im- possivel; pretende, principalmenfe, ou passar para outra prisão, ou ver-se mandado para uma aldeia, ou ser julgado outra vez por um crime cometido ao vagabundar, - em suma, ir para qualquer parfe, conquanto não seja para a mesma ¡nfolerave! cadeia de onde escapou. Se, durante o verSo, esses fugifi- vos não encontram um a * brigo inesperado. para o inverno a che- gar, se não descobrem, por exemplo, um campones que con- sinta em asila-los, mediante um arranjo qualquer; ou se não conseguem, as vezes ate mediante um crime, um passaporte que lhes permita viverem onde quiserem, -+odos, quando cha- ga o outono, a menos que fenham sido apanhados antes, +or- nam em bandos numerosos as cidades e as fortalezas e se fazem internar nas prisões para Ia passarem o inverno, claro que não sem a esperan�a de fugirem novamente, quando chegar a primavera. Sobre mim, fambem, a primavera exercia a sua influen- cia. Veio-me de novo espiando avidamenfe o mundo livro afraves das fendas da pali�ada; ficava em pe, com a cabe�a apoiada a uma estaca, contemplando com obstina�ão insa- ciavel a erva que verdejava ao longo do fosso do recinto, e o ceu longinquo que se +ornava cada vez mais azul. Minha#

a 306 DOSTOIEVSKI inquieta�ão, minha angustia, aumentavam dia a dia e o presi- dio ia-se tornando um inferno sempre pior. O odio que mi- nha qualidade de barine rw granjeara grai-u~lamenfe en- fre, os for�ados, durante os primeiros anos, enverienara-me a vida e eu ia não a sabia tolerar. Muitas vezes, então, pedia entrada no hospital, sem necessidade verdadeira, tão somente para me libertar daquele odio obstinado e geral que nada podia amortecer. "Voc�s, harines, tem bicos de a�o para nos acabar com a ra�a. . . " diziam-nos os presos. Como eu invejava as vezes os homens da plebe que chegavam ao presidio! Esses, logo de inicio, se viam tratados como companheiros ... Assim, na primavera, o fantasma da liberdade entrevista, a alegria de toda a natureza se traduziam para mim numa fris- feza, numa irrifabilidade aumentadas. Durante a semana da Paixão incluiram-me entre os que deveriam fazer a Pascoa. O velho sub-c,ficial dividira o presidio em sete series, corres- ponden+es as sete semanas da quaresma. Cada grupo era composto de uns trinta homens que deveriam fazer sucessiva- mente as suas devo�ões, e para esse fim eram dispensados dos trabalhos. Essa semana de descanso me fez muito bem. lemos a igreja, que ficava a pequena distancia da fortaleza, - duas, e ate mesmo +r�s vezes por dia. Ja ha muito tempo que eu não -entrava numa igreja. Os oficios da quaresma, tão familiares ... minha infancia, na casa de meu pai, as ora�ões solenes, as prostra�ões, tudo isso me envolvia na alma recor- da�ões de ha muito apagadas, tudo me trazia evoca�oes

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da meninice. Revivo ainda o prazer que sentia quando, pe- Ia manhã, pisando a terra gelada pelo frio da noite, nos nos dirigiamos sob escolta para a casa de Deus. Ficavamos num grupo perto da porta, no Ultimo lugar; não escu+avamos quase a voz grave do diacono; e de tempos em tempos avisfavamos por sobre a turba a casula negra ou o cranio calvo do pope. Então eu me revia crian�a, olhando para a gente do povo, que formava um grupo apinhado na porta da igreja, e que recuava servilmente ante uma dragona dourada. um se- RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 307 1 nhor barrigudo ou uma senhora devota de saia ro�a- gente, - os donos clas`primeiras filas. La na porta,#

junto ... enfrada, ao que ma parec*,d en lão, as pessoas nSo deveriam rezar como nos lugares que nos ocupavamos; pros- tradas no chão, oravam com fervor resignado, com perfeita conciencia da propria humildade. E agora, era eu que lhes ocupava o lugar, -e nem sequer o mesmo lugar: n¢s carrega- vamos cadeias, eramos os reprobos. todos se afastavam de n¢s, pareciam nos temer, davam-nos esmolas, e diariamente eu descobria naquilo uma sensa�ão agradavel, -especial i ssima, um contentamento estranho e requintado. "Esta muito bem!" dizia -a mim proprio. Os for�ados rezavam com grande fervor, e todos eles, dia apOs dia, traziam a igreja o seu mise- ravel copeque, para um c¡rio ou para o pedi+orio. "Eu fam- bem sou um homem, pensavam decerto, enquanto davam a esmola; diante de Deus somos todos iguais. . . " Comunga- mos na primeira missa. Quando o padre, segurando o cibo- rio, recitou a ora�ão: "Como o ladrão, -eu vos digo: lem- brai-vos de mim, Senhor, quando esfiverdes no vosso rei- no. . . " quase todo o nosso grupo se prosternou, com um ti- fin+ar de ferros, +ornando essas palavras ao pe da letra. Mas afinal chegou a Pascoa. A administra�ão nos man- dou dar a cada um um ovo e um peda�o de pão branco. Novamente as esmolas choveram sobre o presidio, outra vez recebemos a visita do pope com a cruz, e a visita dos chefes; de novo tivemos a gorda sopa de couves dos dias de festa, bebedeira, o dia vadio, como no Natal - com a umca dife- ren�a de que agora a gente podia passear nopafio e se aque- cer ao sol. Tudo parecia mais claro, mais vasto que no inverno, e +ambem mais triste. Os longos dias de primavera inferminaveis, sobretudo nos feriados; as horas de +ra- -eram balho passam muito mais depressa, gra�as ao labor que as encurta. I Os trabalhos do estio, com efeito, se revelaram m mais penosos que a labuta do inverno.

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Ocupavam-se princi-.#

308 O DOSTOIEVSKI palmenfe os for�ados nas consfru�ões de engenharia. Uns edificavam, ou cavavam a ferra, colocavam tijolos, realiza- vam trabalhos de serralheria, de marcenaria. de pinfura. Os ou~ros *iam as c!arias preparar os tijolos, - cousa que conside- ravamos como a mais penosa das farefas. A olaria ficava a quatro verstas do presidio. ·s seis horas da manhã, em cada dia da esta�ão bonifa, um grande grupo de for�ados a - cerca de cinquenfa homens - se dirigia para 15. Esco- lhiam-se para esse g�nero de servi�o os simples trabalhadores bra�ais, isto e, os que nao tinham oficio, e portanto não per- +enciam a nenhuma oficina. Levavam consigo o pão, pois a distancia a que ficava a olaria impossibilifava a volfa para a refei�ão; assim, para se pouparem a caminhada de oito vers+as inu+eis, ~o comiam o janfar a noite, quando regressa- vam. Fixavam-lhes pela manhã a tarefa do dia, mas +aref-i +ão grande que dificilmenfe a executavam. Era preciso pri- meiro arrancar o barro, carrega-lo para a fossa, em seguida +ra- zer agua para molhar aquele barro e arriass -lo com os pes, de- pois enfim divid¡-lo num numero respeifavel de tijolos. duzen+os ou duzentos e cinquenfa, se bem me lembro. 50 duas vezes fui para esse trabalho. Os que a noite voltavam da olaria, esfa- vam extenuados, mal satisfeitos, e a todo o momento se acu- savam reciprocamente de se pouparem em preiuizo dos demais. Deveriam enconfrar naquilo uma especie de consolo. Entretanto. alguns iam de bom grado para a olaria: Ia, do outro lado da cidade, num local descoberfo a margem do Ir+ych, avis+ava-se uma paisagem muito mais agradavel aw olhos que as constru�6es do governo; ademais, podia-se fumar livremente, e ate mesmo sesfear durante uma meia hora. Quanto a mim, ia como antes trabalhar numa oficina, ou preparar alabas+ro, ou carregar tijolos para os pedreiros, nas consfru�S.es. Em certa epoca eu tinha que fransporfar minha carga de tijolos af� a margem do lrfych, a um quarfel qu; esfava sendo edificado a cento e cinquen+a me+ros do rio: devia afravessar o fosso da nossa forfaleza, anfes de Ia chegar. Esse frabalho durou dois meses sem interrup�ão. Tomei por ele certo gosto, embora a corda com a qual amarrava os fio- RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 309 ~ ferisse os ombros Sentia que as for�as me cresciam: cipio não podia senão carregar oito tijolos, que pesavam#

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ca de doze libras (1); depois, consequ¡ c~egar a uma duzia e ,mesmo a quinze tijolos, - cousa que me encarifava. Para prfar foclas as miserias daquela vida maldifa, a for�a f¡sica � menos necessaria que a for�a moral. F que eu ainda queria viver, depois do presidio! Se encontrava prazer nesse frabalho, não era apenas rq . ue ele me fortificava, mas porque se realizava na mar- do lrfych. Era o umco local - e por isso falo nele com frequencia - de onde se podia entrever o umverso, os rizonfes luminosos, as livres estepes desertas, cuja nudez me 1 1 cava uma impressão estranha. Era +ambem o Unicr 1 al de onde se podia dar as costas a forfaleza, porque +odor, ,t,,. .... outros pontos de trabalho se encontravam na vizinhan�a mediafa ou no inferior daquela casa sinisfra. Desde os pri- eiros dias eu lhe +ornara odio. principalmente a algumas d�,.-,. ,suias dependencias: a residencia do nosso maior me parecia ~;vm local maldito, abominavel, e cada vez que lhe passav.-i ,.defronte, atirava-lhe um olhar irado. Na margem do lr+ych ,-eu podia -esquecer isso tudo, e defronfando a vastidão infi- ifa, olhava-a como o prisioneiro espia para o mundo livre. ,pela sefeira da sua cela. Tudo ali me era querido - os raios 5,11 , 'k e ,,cegarifes do sol nos abismos azues do c'u, as cantigas lon 1 ginquas dos kirghizes, que subiam da margem oposta. Quando gente olhava com paciencia, acabava avistando a pobre rfe enfuma�ada duma baiguche (2) qualquer; conferri- .1 . ta-se a fuma�a que sai da tenda, e uma mulher khirguize que 1 , ~ ri . " ¡da ao redor de dois carneiros. Tudo aquilo e pobre e sel- tt... Nagem, mas livre. Avisfa-se um passarinho no azul franspa- ---1"~'~',renfe do ceu, e, longa e obstinadamente, acompanha-se o seu ~,,y6o com o olhar: ei-lo que ro�a a agua. ei-lo que se per~e no azul, ei-lo Ia longe, como um pontinho minUsculo ... Mesmo a ,florinha doentia que eu encontrava no come�o da primavera, (1) Cerca de cinco quilos e meio. (N. de R. Q) (2) A yurte � a tenda dos kirghizes, povo n"made, cujos baiguches constituem a classe mais pobre, (N. de H. M.) 'I . I#

310 DOSTOIEVSKI em alguma fenda de rocha, me atra¡a a aferi�ão, morbida. " mente. A angustia daquele primeiro ano de presidic,~ ora intoleravel, enervariM, horrivelmente amarga. Impedia-me ele observar uma por�ão de cousas ao meu redor. Fechava os'1'1~' 141, z olhos, recusava-me a ver. Entre os meus companheiros f30"~' W

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fiosffs, tão odientos, não via, não descobria pessoas capaz�s-,~.' de sentir e pensar, apesar da casca repugnante que Ilh 0k~ dissimulava a natureza real. Entre as frases venenosas, não,'~--- sabia +ambem distinguir as palavras amaveis, afetuosas, fant~J4~' k mais apreciaveis porque muitas vezes vinham diretamente dcw,,~: cora�ão de um homem que sofrera mais do que eu. Ai, Dara~N¡~ que me alongar a esse respeito? Senfia-me muito feliz quando' ? . voltava para a fortaleza, exhausto: pelo menos dormiria 1 Porque no-verão o sono era mais tormentoso, senac, pior qu¢"`~ no inverno. Para falar verdade, nos finhamos ...s vezest'~-' V`1 belissimas +ardes. O sol, que não parara de banhar o pafio da fortaleza, deifava-se afinal. O ar refrescava, e depressa a . " fria noite das estepes - fria relativamente - nos envolvia.~,~, Os presos, -esperando que os trancassem, passeavam em bando pelo patio. A maioria, entretanto, agrupava-se de preferencia nas cozinhas. La, debatiam-se questões de ordem geral, discutia-se isso, aquilo, recolhiam-se alguns boatos, md#--, tas vezes absurdos, mas que despertavam exfraordinaria curio.- sidade naqueles entes segregados do mundo dos vivos; assim,~`--- por exemplo, confava-se que o nosso maior fora fransferid¢. , Os for�ados são credulos como crian�as; sabem muito benv, � - que a noticia e absurda, que Kvassov, seu portador, e um reia noforio, um mentiroso incapaz de dizer uma palavra se possa dar credifo-, entretanto todos +ornam conta da nofr,~" . --- 1 11 cia, emitem opinião, rejubilam-se; e, no fim, envergonharri-",~ por se haverem deixado enganar por Kvassov. c quern o manclaria embora! exclama um tor�a "OifO olhos" tem as costas largas, ha de aparar o golpel,~, ",." , 2 - Sim. mas,af� ele +ambem fern chefes! brada um ardente, que não +em nada de tolo, que j viu muita cousa'e d6 a vida por discutir.#

RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 313 - Os lobos não se comem uns aos oufros! resmunga um terceiro, homem de cabelo grisalho, que +orna a sua sopa sozinho, a um canto. - E tu achas que os chefes virão pedir tua opinião _para saber se podem mandar o maior as favas? acrescenta ~com impaciencia um quarto preso, vibrando com indiferen�a 1 uma das cordas da balalaica. - E por que não, se nos juntarmos foclos? +orna o segundo exaltado. Mas aqui o pessoal s6 presta para bater com a lingua, nos dentes: quando se chega aos fatos, ia não h6 mais ninguerril - Esse coitado parece que não sabe que esf6 no presi- dio, retruca o focador de balalaica. Outro dia, continuou o discufidor, sem o escutar, ~ ~;,4,�¢brou um pouco de farinha. Junfaram ate o £ltimo pu- u

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nhado e levaram para vender - era um restinho. não ren- deria nada. Porem ele soube. Fizeram um rela+orio e a farinha - foi confiscada - "rnedida de economia!" Isso ser6 iusto? ¡1 - Mas a quem � que tu querias te queixar? - A quem? Ao inspetor que est6 para chegar.Que inspetor? a - � verdade que es+' para chegar um inspetor, irmãos, explicou um mo�o for�ado, muito bem posto, instruido, antigo escrevente de batalhão, que j lera a "Duquesa de Ia vallier-e" ou qualquer outro folhetim do g�nero. Era um palha�o eterno, todavia os for�ados gostavam do seu desembara�o. E sem prestar nenhuma aten�ão a curiosidade geral despertada pela noticia da futura chegada do inspetor, ele se dirigiu ao fogão' afim de pedir a "cozinheira" uma por�ão de figado. Os cozinheiros vendiam sempre pratos dessa especie: comprq- vam por -exemplo um bom peso de figado que iam cortando em peda�os e fritavam para os for�ados que os podiam com- prar. - Dois ou quatro copeques? indagou a "cozinheira". - Corta para quatro copeques! Se alguem ficar com -9 boca cheia de agua não tenho nada com isso! respondeu o 22 I I#

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314 DOSTOIEVSKI for�ado. Um general, meu irmão, um general de Pefersburgo est a caminho, vem passar revista em toda a Siberia. E' verdade, disseram isso na casa do governador. A noticia provocou uma sensa�ão extraordinaria. Durante um quarto de hora cruzaram-se perguntas sobre quem seria esse general, que titulo usaria, se seria mais importante que os generaisclaqui ... Falar de patentes e chefes, saber quem fem precedencia, quem pode fazer com que os outros se cur- vem, diante de quem o comandante fer6 que se inclinar, - são assuntos que os for�ados gostam de discutir. � um assunto que os entretem muito; discutem azedamenfe, injuriam-se, chegam quase a se agarrar; pode-se supor que não +em nisso nenhum interesse, mas � pelo conhecimento minucioso dos fatos administrativos que se mede entre eles o grau de infe- ligencia dos individuos, da insfru�ão adquirida antes da prisão, do lugar ocupado na sociedade; falar das altas esferas d igualmente uma reputa�ão de seriedade e elegancia. - Voc�s estão vendo mesmo que e verdade, rapazes:

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o maior vai ser posto para fora daqui! observa Kvassov, o homenzinho vermelha�o, exalfado eestUpido, que fora o pri- meiro a agitar a hisforia. - Ora! ige solta os cobres e d um jeitinho! comentou com voz resfolegan+e o preso velhusco, que acabara de +ornar a sua sopa de couves. - Sim, bem pode ser! ajunta um outro. Faz muito tempo que ele economiza, pois ia era maior antes que n¢s chegassemos aqui. Ultimamente, anda arrastando a asa ... filha do profopope (2). - Mas não casou! Mosfraram-lhe a porfa, o que prova que "Oito olhos", não tem vinfem. Imagine que lindo noivo! Quando se levanta da cadeira, seu guarda-roupa foclo se lavarifa com ele! Na Pascoa, perdeu tudo no jogo. Foi, Fedka que confou. - Isso mesmo! O camarada não gosta de soltar os copeques, porem dessa vez ficou a nenhum! (2) O arcipreste. (N. de R- Q.) RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 315 - - Ai, irmãos, coisa ruim e casamento para quem e pobre! Entendo um pouco disso. A noite de nuPcias e curta demais, comenfou Skurafov, que acabava de entrar na con- verso. - - Supões talvez que esfamos falando em ti? retrucou o#

rapaz despachado, o antigo escrevente. Tu, Kvassov, es um cretino se pensas que um maior possa subornar um general, e que um general venha aqui para inspecionar o maior. Cs mesmo um idiota, rapaz! - E que e que +em? Um general não pode recdber nunca uma gorjeta? indaga um c�tico. - Certamente que não. E se recebe, não e nenhuma bolacha quebrada. - Claro que a bolada e grande - vai crescendo rie acordo com a patente. - Um general recebe grafifica�3o de qualquer um, afirma Kvassov com soberba seguran�a. - J deste gorjeta a algum general? goza Bakluchin-e, que entra de subito. O que eu quero saber e isto: onde foi que ia visfe um general? - Sim, ia Vi um! - Mentiroso! -'Mentiroso es fui - Bem, rapazes, se ele ia viu um, vai nos contar de que if ' o homem. Anda, fala, eu conhe�o focla qualidade de , lei o e generais! - Vi o general Sieberf, respondeu Kvassov em tom hesi- fanfe. - Sieberf9 Não ha general nenhum com esse norre. Decerfo esfas falando num que +e olhou o lombo quando te ,k a�oitavam. Siebert poderia ser no m ximo tenenfe-coronel.

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~v,`Foi o feu medo que lhe deu patente de general! Não, escuta, grifa Skura+ov. Sou um homem serio ',,2 sou um homem casado. Havia um general Siebert em Moscou, era alemão, mas agora e russo. Todos os anos, dia da Assun�ão, confessava-se a um pope. Enchia-se clagua lr~ A i#

316 DOSTOIEVSKI i. RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS317 como um pato - quarenta copos de agua do Moskova, lodos os dias. Dizia-se que engulia essa agua toda para se curar duma doen�a, foi o seu criado de quarto clue me contou, - Ser que ele tinha peixinhos na +ripa? indagou o preso da balalaica. - EsM a[! A gente falando a seric, e eles v�m com canalhismo. Quem e esse inspetor, irmão? perguntou Marli- nov, um velho da se�ão militar, que fora hussardo. ,- Tudo isso � mentira, afirmou um dos c�ticos. De onoa � que essa gente inventa tanta mentira? - Não � mentira nenhuma! explicou dogma+icamen+e Kulikov, que at� então se mantivera num silencio majestoso. Era um sujeito pesadão, duns cinquen+a anos de idade, com fei�ões extraordinariamente corretas e modos desdenho- sos - cousa de que muito se orgulhava. Tinha sangue cigano nas veias. Ve+erin rio de profissão, +ralava dos cavalos da cidade, o que não impedia de na prisão ser bo+ecluineiro. Tinha visto muita cousa, era inteligente, e deixava cair as pa- lavras da boca como se fossem de ouro. - E' a verdade pura, irmãos! continuou, no seu tom sos- segado. Na semana passada ouvi contar isso mesmo. Uni general est mesmo a caminho, - general dos de galão gran- de, afim de inspecionar a Siberia de cabo a rabo. H6 de ser a coisa de sempre: vai receber seus presentinhos, porem não do nosso maior "Oito olhos". ~Esse não lhe ha de chegar ri . em perto. Ha generais e h6 generais, irmãos. Ha gere- rais de toda especie! Mas posso garantir a voces, qua, quanto ao nosso maior, fica por aqui mesmo. Nos vamos ficar de bico caladinho, como sempre, e nem os grandolas daqui se atreverão a denuncia-lo. O inspetor corre focla a forta- leza e ir6 embora sem dizer nada; depois far6 um relafor*ic, contando que encontrou tudo aqui em perfeita ordem. . . - Sim, entretanto o maior es+6 com medo; não e ...-toa que anda b�bedo desde que o dia amanhece. - E hoje a +arde +ornou carga nova; foi Fedka que contou. - NãO adianta esfregar um cavalo preto para ver se, ele fica branco! Sera que voc�s nunca viram o maior b�bedo, anf,-~'7 es; - De qualquer forma, ser6 um azar se o general nSo

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fizer nada! Porque estava na hora de dar um fim naquele bandido! comentavam os for�ados animadissimos. A noticia da vinda do inspetor espalhou-se num piscar de olhos. No palio, os homens a repetiam com precipita�ão. Procuravam alguns mostrar silencio e sangue-frio, para se darem ares de imporfancia. Outros ficavam indiferentes. Nas portas das casernas ins+alavam-se os locadores de baIo-#

laica. Alguns continuavam a tagarelar, enquanto outros. ,,entoavam cantigas - todos. porem, naquele serão, se mostra- varri exci+adiss¡mos. Pelas dez horas, depois da chamada, eram aferrolhados nas casernas. Apesar das noites curtas, faziam-nos levan+ar as cinco horas, mas ninguem adormecia antes das onze. Ale então havia sempre o vaivem das conversas, e algumas par- +idas de jogo, como no inverno. Embora entrasse ar frescC pela janela aberta, o abafamento era in+oleravel. Os de+en- tos se agitavam nas tarimbas, como se delirassem. Milhões de pulgas nos picavam. Ja numerosas no inverno, elas pulula- vam na primavera em propor�oes ¡nimaginave¡s: e quan~c mais avan�ava o calor, mais agressivas iam ficando. A gente pode se acostumar as pulgas - sei disso por experiencia propria, - mas o aprendizado e extremamente penoso: o tormento se torna tão insupor+avel que ate febre da: e afta- v�s do sono a gente sabe que em vez de dormir esta deli- rando. Enfim, quando ... aproxima�ão da madrugada as pulgas fartas se aquietavam e um sono suave nos +ornava, a implacavel alvorada rufava nos tambores. A gente se en- rolava na pele de carneiro, e escutava com pragas as pan- cadas intercaladas do tambor, como se fosse preciso conta- Ias; e, ao mesmo tempo, atrav�s do resto do sono, vinha-nos a id�ia desagraclabilissima de que amanhã seria a mesma cousa, e depois de amanhã e durante muitos anos seguidos, ~;! I#

318 DOSTOIEVSKI af� a hora da liberfa�ão. Quando soara essa hora? a gente cisma ... E enquanto espera, e mister acordar; a barulha- da, o ramerrSo costumeiro se inie~arn; os hornens se vestem, precisam sair depressa para o trabalho. Por felicidade, poder-se-a fazer uma hora de sesta ... A hisforia da vinda do inspetor era verdadeira. Os boa- tos se confirmavam diariamente, e, afinal de contas, soube-se com toda a certeza que um alto funcionario de Pe+ersburgo, um general, vinha inspecionar a Siberia infeira, que ia chegara, que j estava em Tobolsk. Cada dia novas minucias apare- ciam no presidio. Traziam-se boatos da cidade, confava-se que Ia o pessoal administrativo fremia, que foclos os funcio- narios se esfor�avam por mostrar-se sob bom aspecto, que as altas esferas organizavam a porfia fesfas, bailes, recep�ões.

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Mandavam-se grupos compactos de for�ados aplainar as ruas da fortaleza, arrancar capim e ervas, repinfar a pali�ada e as es+acas, remendar paredes, caia-las; em suma, procura- vam endireitar num abrir e fechar de olhos tudo que poderia ser visto. Os for�ados compreendiam a cousa muito bem, e suas discussões iam ficando cada dia mais ardentes, mais audaciosas. Sua fantasia ultrapassava todos os limites. Esfa- vam disposfos a expor suas queixas, assim que o general lhes perguntasse se estavam satisfeitos. Isso não os impedia de brigar, nem ~de frocar insultos. O maior estava sobre brasas. Vinha com muito mais frequencia fazer inspe�ões. grifava mais, afirava-se com maior furor sobre as criafuras, mandava-as ,para o corpo da guarda por um~ nada qualquer, fiscalizava imperfinenfernenfe o asseio e a ordem. Nesse momento, como de propOsifo, sucedeu um caso que, longe de comover o nosso chefe como seria de esperar, lhe deu gra,nde'prazer. Durante uma briga. um gal� feriu um outro, enfiando-lhe uma sovela bem perto do cora�ão. O for�ado que cornefera o delifo chamava-se Lomov, o ferido GavriIka, um desses vagabundos empedernidos de que j falei. Ignoro se tinha outro nome, pois entre n6s s6 lhe davam esse. LQmQv �r.~ um mujigue abastado da provincia RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 319 isfrifo de K. Todos os Lornovi viviam junfos, o velho, filhos e um irmão. Passavam por ricos. Corria 16 pela aldeia que possuiam pelo menos trezentos mil rublos em papel.,~ Lavravam a ferra, curtiam 1 peles, comerciavam, mas sua principal fonfe de renda era a usura, recepta�ão de obje- tos roubados, refugio aos criminosos evadidos, e outras indus-#

Wies do mesmo tipo. Metade dos muiiques do distrifo lhe havia feito empresfimos, e se debatia em suas garras. Di¡a-se que eram infeligenfes e astutos porem acabaram fi- 1. cando muito soberbos, principalmente quando um alto per- _~,,_scioagem se fornou de amizade pelo velho, por causa da sui finura, da sua esperfeza, e deu para se hospedar em sua ca- se, quando de viagem. Os Lomovi julgaram então que não precisavam ferner mais cousa alguma, e cada dia se afun- daram mais em negocios escusos. Todo o mundo resmun- gava contra eles, faziam-se votos de que se sumissem a cem p"s debaixo do chão - mas eles iam sempre erguendo a cabe�a cada vez mais alfo: nem a policia nem os juizes lhe faziam mais fernor. Enfim, perderam o pe. e cairam no fundo do precipicio, sem que o motivo fosse o mal que ha- . . - viam feito ou os seus crimes clandestinos: uma acusa�ão in- fundada-basfou para os desgra�ar. Possuiam a dez leguas da aldeia uma grande propriedade, onde seis trabalhadores kirghizes, que eles ha muito tempo haviam reduzido a ser- vidão, foram passar o outono. Uma noite encontraram-se os seis homens assassinados. Come�ou-se um inquerito que durou muito fempo e trouxe estranhas revela�ões. Os Lo- movi foram acusados da morte dos seus trabalhadores. Eles proprios tinham confado essa his+oria, de modo que

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todo o presidio a conhecia. , O povo malclara que eles deviam de d os f muito dinheiro aos trabalhadores; e apesar da sua fortuna noforia, a avareza deles, noforia +ambem, os +ornou suspeitos de se haverem desembara�ado dos kirghizes afim de não lhes pagarem os salarios. Durante o inqu�rito e a prisão preven- fiva todos os seus bens se dissiparam. O velho morreu, os filhos foram deporfados. Um dos filhos e o fio deram com#

I I 320 DOSTOIEVSKI os ossos na nossa forfaleza, com senten�a de doze anOS. E contudo, estavam absolutamente inocentes do crime que lhes fora impulado. Um belo dia um dos nossos defenfos, Gavrilka, malandro, vagabundo contumaz, de g'enio muito animado e alegre, gabou-se de ser o aufor das mortes. Não sei se ele fizera confissão completa, entretanto todo o pre- sidio o considerava o assassino dos seis kirghizes. No decorrer das suas vagabundagens, Gavrilka se acumpliciara as vezes com os Lornovi. Estava preso como soldado deser+or e vaga- bundo. Em companhia de fres outros da sua laia, degolara os kirghizes, esperando encontrar boas cousas na propriedacle. Não sei bem por que, mas os Lomovi nao gozavam dq estima entre nos. O sobrinho era rapaz novo e inteligente, muito dado, enquanto o fio, que acabava de ferir Gavrilka ccm a sovela, era um sujeito violento e est£pido, e brigavo a toda hora com os outros, que ali6s o espancavam ... vonfade. Quanto a Gavrilka, seu genio alegre lhe conquistara a afei- �8'0 geral. Os Lomovi sabiam muito bem que era ele o autor do crime pelo qual tinham sido condenados, porem não o provocavam, nem mesmo lhe chegavam perto. Em geral, GavriIka não lhes prestava nenhuma aferi�ão. A sua briga com o fio Lomov irrompera bruscamente por causa de uma mulher publica: Gavrilka se gabara dos favores que ela lhe concedera, e certa +arde o velho, enciumado, enterrou-lhe a sovela em pleno peito. Embora arruinados pela justi�a, os Lomovi ainda tinham fama de ricos. Deveriam guardar algum dinheiro, porque possuiam um samovar e bebiam ch6. Nosso maior, que sa- bia disso, detestava os dois homens; mulfiplicava-lhes as ve- xa�ões. Os Lomovi davam como motivo desse odio o desejo que tinha o maior de que eles lhe passassem alguns cobres; todavia recusavam-se obstinadamente a isso. E' claro que se a sovela houvesse penetrado um pouco mais, Gavrilka seria defunto. Contudo a ferida não passou dum arranhão. Fez-se um rela+orio ao maior. Veio-p ainda RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 321 irromper no presidio, esfogueado, radiante. Dirigiu-se a

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Gavrilka, num tom de grande carinho, como um pai ao filho: ' - EnfSo, paizinho, ser que podes ir caminhando afe o hospital? Não, e melhor mandar um carro. Vão depressa! gritou para o sub-c,ficial, com voz arquejante.#

- Mas Excelencia, não tenho nada, foi s0 uma picada! Nunca se sabe, meu filho, 16 e que eles verão. Foste ferido em lugar perigoso. Tudo- depende disso: ele procurou o cora�ão, o bandido. Espera, anda, espera! berrou, voltan- do-se para Lomov. Vais te haver comigo, rapaz! Para o corpo da guarda! E, com efeito, cumpriu a promessa. Lomov foi julgado. Embora a ferida fosse das mais benignas, a premedifa�ão era evidente. O criminoso teve sua pena aumentada, e sofreu dois mil a�oites. O maior ficou encantado com o incidente. Finalmente, chegou o inspetor. Logo no dia seguinfe, veio inspecionar a fortaleza. Decre+ara-se feriado. J alguns dias antes estava tudo lavado, limpo, reluzente. Os for�ados, com a cabe�a recem- raspada, vestiam um umforme imaculado. O regulamenfo Frescrevia para . o verão cal�as e casaco de linho. Todos �vavam cosfurado no meio das cosfas do casaco um circulo de fazenda preta de dois viorchkas (3) de di�metro. Durante uma hora inteira nos foram ensinadas as resposfas que deve- riam ser dadas, na hip6fese do general nos dirigir a palavra. Fizeram-se ate ensaios. O maior se agitava como o diabo na agua benta. Uma hora antes da apari�ão do general, todos os presos estavam em formatura, com a mão na costura das cal�as; enfim, pela uma hora da tarde o homem fez sua entrada. Era um general majestoso, +ão majestoso que os funcionarios da Siberia ocidenfal deveriam estremecer de medo, ao v�-lo. Mos+rou-se grave e soberbo, acompanhado por uma escolta imponente, solicita, formada por ~odos os (.3) Um viorchka tem 4 c�ntimetros. (N, de R. Q)#

322 DOSTOIEVSKI altos magistrados da cidade, e mais alguns gener 1 a . s e tOro , neis. Entre eles se encontrava lambem um paisano. W 1 Wil¢ homem de elevada es+afura, de casaca, sapatos, vindo tam- bem da capital. Esse personagem tinha um jeito sintjul�~ mente desembara�ado, e o general frequentemente lhei~ gia a palavra com extrema cortesia. Os for�ados, e claro ficaram infrigadissimos: tanta considera�ao por um pa¡sanq, e partindo de um general tão importante! Mais tarde s~ bemos-lhe o nome e a qualidade, mas at� então as linguas %~_ ram o seu oficio. Nosso maior, ostentando as condecor �&,bs na farda cor de laranja sob a cara cor de tijolo, parece n,ão fa~ produzido no general uma impressão muito boa. Como sin¡J especial de respeito ... autoridade, "Oifo olhos" pusera, -c~

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parte os Oculos. Manfinha-se a distancia, erec+p como . uma estaca, esperando febrilmente, numa afen�ão,tensissima,`o momento em que o chamassem, quando então ~pitaria para aceder ao desejo de Sua Excelencia. Mas não foram precisos os seus servi�os. Sem dizer palavra, o general percorreu os alojamentos, deu uma olhadela ...s cozinhas, chegou a provar a sopa de couves. Mosfraram-me a ele, explicando-lhe quem eu era, e o que me trouxera ao presidio - a mim. um nobre! - Ah, respondeu o general. E como se porta ele agora? - Por ora, porfa-se satisfatoriamente, Excelencia! O general meneou a cabe�a. e dois minutos depois saia do presidio, deixando os gales deslumbrados, e claro, contu- do um pouco desapontados farribem. Quanto a queixarem- se do nosso tirano, não seria possivel; ali s, ia de antemão o maior sabia disso. O9 animais do presidio compra do Gniedko (1) que se fez pouco tempo A depois, representou para os for�ados uma distra�ão muito mais agradavel que a visita do general. N6s empregavamos o cavalo para trazer agua, levar o lixo, Oc. . . Um dos presos era encarregado de o tratar e dirigir, escoltado por uma sentinela, naturalmente. Durante o dia inteiro, o pobre animal tinha bastante o que fazer. . Era um bom cavalo, mas ia gasto pelo demasiado servi�o. Um belo dia, exatamente na v�spera de S.Pedro, Gniedi�o, ao trazer a agua da tarde, caiu, e morreu no espa�o de alguns minutos. Todos lhe cho- raram a falta. Todos se reuniram para lhe comentar a morte. Os que haviam servido na cavalaria, os ciganos, o veterinario (1) DiminuUy9 ~t "Cniedoi" (Baio), (NL de R. Q1 I#

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324 DOSTOIEVSKI KECOOA~66 DA CASA Dot MOitdt O3 e alguns outros que exibiam conhecimenfos especializidos a respeito da ra�a equina, - chegaram a brigar uns,,tom os oufros. Mas isso nSo ressuscifa Gniedko: esfava ..., esfi- 3v rado no chão, e todos se conside c am no dever de, & calcar com o dedo a barriga inflamada. Informou-se o maior acerca do acidenfe, e ele resolveu logo que se comprasse novo anim ai. Dia de S. Pedro, pela manhã, depois da missa, quando estava- mos todos reunidos, frouxeram os cavalos a venda: a escolha era deixada aos for�ados. Havia enfre n¢s aufenficos peri- fos, e deveria ser dificil lograr duzenfos e cinque~ã kb~cris L - - L __

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que, na sua maioria, se tinham ocupado outrora om blirga- nhas de animais. Apareceram vendedores kÖrgbizes,-ti~anos e comercianfes da cidade. Os for�ados, alegres como cri�n- �as, esperavam com impaciencia o aparecimenfo de cada n"vo animal. O que mais os lisonjeava era ser-lhes lado comprar o cavalo como pessoas livres, como para seu uso parficylar. Recusaram-se +res rocins, anfes de ser decidida a compra. Os vendedores olhavam em forno de si com cerfa perplexidade, e lan�avam aos soldados -encarregados de os acompanhar olha- res não despidos de medo. Aqueles duzenfos individuos de cabe�a raspada, marcados a ferro em brasa, carregados de grilhefas, dentro de sua propria casa, no seu ninho de presi- diarios cujo umbral não poderia ser fransposfo por ninguem, tinham que imprimir certo respeito, ao seu modo. Os nossos usavam uma infinidade de asfucias para examinar cada cavalo oferecido. Consideravam-no por todos os angulos, apalpavam-no em focla parfe, com persisfencia, com ar preo- cupado, serio, diligenfe, como se a prosperidade do presidio dependesse daquela compra. Os circassianos chegavam af� a lhe salfar ... garupa, com os olhos faiscanfes, e discutiam viva- menfe entre si, na sua lingua incompreensivel, descobrindo os denfes brancos, meneando as cabe�as morenas de nariz curvo. Alguns dos nossos russos mostravam +anfo interesse pela- con- versa dos circassianos que praticamente os devoravam com os olhos. Não compreendiam um:)- umca palavra, mas procura- vam adivinh2r a+-av6s da expressSo dos homens a sua opinião _,: sobro o valor do animal. Uma aferi�ão fão infensa poderia .1 . parecer estranha ao espectador desinteressado- qua adianfa gasfar fan~o ardor e cu72ado, quando n3o se passa de um de um pobre for�ado apatico, domado, que mesmo ` iante dos seus proprios compan heiros não se atreve a abrir ~boca? Parece ate que o adquire para si, e afinal de#

tas lhe deve ser indiferente que se compre este ou aque- avalo! Alem dos circassianos, os ciganos e os antigos U'. t, +es de cavalo se distinguiam especialmente; f¢ra- ~!,",eigocian 'dada a primeira fila, e eles tinham a sua palavra a dizer. ~,"ve ate uma especie de duelo entre dois presos, o cigano ~~,`AP~"ko11kov antigo traficante e ladrão de cavalos, e um asfufo ,W,-~ff~0fique siberiano, veterinario por voca�ão, chegado havia ~o tempo ao pnesidio, e que j conseguira surripiar a¢,,,cigano quase toda a freguesia da cidade. � preciso 1 1 nofar que os nossos veterin rios "curiosos" eram muito apre- ciados, não so pelos burgueses o negociantes, mas ate pelos ~: 1 , olfos funcionarios, que os chamavam de prefe~encia aos ve 1 ; terinarios diplomados. Kulikov, antes da chegada de lolki- --- ne, o muiique siberiano, não encontrara nunca concorrentes; possu¡a uma rica clienfela, que, bem entendido, lhe teste- -eu reconhecimento em especie sonanfe. Mas, munhava o s auf�nfico cigano e charlatão, conhecia o oficio muito menos

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1.1'1 do que o pretendia. Seus rendimentos +ornavam-no entre 1 os uma especie de aristocrata. Sua experiencia, seu espi- ri-to, sua audacia, sua decisão, finham-lhe conquistado ha muito fempo a estima de todos os for�ados. Se ali s falava mui+o pouco, e s0 dava opinião nos casos mais imporfanfes. Era um fafuo, porem dotado de real energia. Embora ia velho, conservava a beleza e a in+eligencia de mo�o. Creio que ves- 1,1, tido convenientemente, e apresenfado como conde em qual- quer um dos clubes de Petersburgo, feria desempenhado muito bem o seu papel. jogaria whisf, abriria a boca de tempos em fempos, - com pouca frequencia - afim de pronunciar al- gumas palavras escolhidas, como o deve fazer um homem di - tinto, e durante todo o serão ninguem desconfiaria que o pre- I#

326 DOSTOIEVSKI tenso conde não passava de um cigano a-toa. Falo a serio: seu esp¡rito, seu fato, sua rapidez de adapta�ão eram surpre- end-enfes. suas maneiras de uma d~sf~n�3o perfeita. Provavel- mente vira muito mundo, em sua vida, porem jamais desven- dava algum recanto do passado. Pertencia ... se�ao especial. Com a chegada do muiique lolkine, "velho crenfe" duns cin- quen+a anos de idade, esperto como ninguem, a gloria veteri- naria de Kulikov empalideceu. Bastaram dois meses a lolkine para lhe arrebatar a freguesia: os cavalos que o outro j6 aban- donara h6 muito tempo eram rapidamente curados pelo siberiano; fazia sarar ate os que os veterinarios diplomados de- claravam incuraveis. Ele nos fora mandado com um bando de moedeiros falsos: curiosa id�ia, na sua idade, meter-se em semelhante vespeiral Confou-nos, zombando de si proprio, que eram necessarias +r�s moedas aut�nticas de ouro para fabricar uma falsa! Kulikov tinha motivos para se irritar com o exi+o do recem-vindo, porque o seu prestigio entre os defentos quase declinara: ele que sustentava amante na cidade, que usava um cafe+ã de veludo, anel de prata, brincos nas orelhas, botas com canos de cor, - devido aquela reviravolta da for- tuna, foi obrigado�,-~ fazer bo+equineiro. Esperava-se pois que os dois inimigos a~r,,-)veitassem a compra do cavalo para chegarem as vias de fato. E a curiosidade aumentava de vulto porque tinham ambos os seus partidarios. J6 os chefefes dos dois clãs se injuriavam abundantemente, ia uma careta sarcasfica crispava a cara de raposa de lolkine; mas as cousas se passaram de modo inesperado; Kulikov evitou brigas, o saiu-se do caso com no+avel habilidade. A principio simulou dar precedencia ao rival, cujas criticas escutou com defe- rencia, depois o apanhou subitamen+e pela palavra e em tom modesto, mas firme, f�-lo notar que se enganava. Sem dar ao outro tempo para mudar de id�ia, derrions+rou-lhe o erro, fornecendo minucias precisas. Em resumo, lolkine levou um xeque, dado da maneira mais rapida e mais habil, e embora tenha ficado de cima, no apurar das contas, o partido de

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Kulikov sentiu-se safisfeifissimo. RECORDACõES DA CASA DOS MORTOS 327 Não, meus filhos, esse não apanha facilmente, sabe o que faz, diziam uns. - lolkine +ambem sabe onde tem o nariz! retorquiam outros, de modo conciliador. Ambos os partidos discutiam agora em tom de conces- o rec¡proca.#

* Não e que ele saiba muito - mas tem a mão mais feliz. E, em materia de cavalos, Kulikov não tem medo de ninquerril � tão forte assim? Claro! Não tem quem o igua e ... kk, - f 11 I Enfim, foi escolhido o novo Gniedito. Era um animei bonito, jovem, vigoroso, de aparencia muito agradavel. Pa- recia irrepreensivel, sob todos os pontos de vista. Come- �afam imediatamente os regateios. Os donos queriam trinta rublos, nos ofereciamos vinte e cinco. Discufiu-se com calor, longa e acremente, cedendo de uma parte e acrescentando ,rio outra. Afinal os proprios for�ados puseram-se a rir. - Que e que a gente +em com isso? Sera que vai sair do nosso bolso? diziam. Que adianta regatear? - Esfamos poupando o dinheiro do governo, hein? - De qualquer modo, irmãos, o dinheiro tambern e nossol - Nosso? Ora bolas! Não, pelo que veio, ra�a de cretino não precisa ninguem plantar - nasce sozinha! Entraram finalmente em acordo por vinte e oito rublos. Mandaram informar o maior, e a compra efe+ivou-se. Trou- xe-se o pão e o sai; e o novo Gniedko foi conduzido em triunfo para o interior da fortaleza. Não creio que um umco for�ado ,,tenha deixado de vir dar-lhe palmadas no pesco�o, ou lhe fazer festas no focinho. Nesse mesmo dia, a+relou-se Gniedko, e todos olharam curiosamente o modo pelo qual ele arrastava &p¡pa. Nosso aguadeiro, Romane, fitava o animal com extra- ordinaria satisfa�ão. Era um labrego duns cinquenta anos, calado, circunspec+o. Alias, todos os cocheiros russos são serios e af� mesmo taciturnos, como para confirmar a opinião I#

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corrente segundo a qual o convivio constante com os cavalos acaba por dar juizo ao homem. Romane era pois sossegado, afavel com todos, pouco conversador; +ornava rape numa ta- baqueira de chifre, e, desde tempos imemoriais, cuidava e dirigia o cavalo do presidio; ia estava agora no terceiro ani- mal. Na nossa opinião, s¢ um cavalo baio servia para a for- faleza; e, por nada no mundo. feriamos comprado um cavalo ru�o, por exemplo; Romane compartilhava inteiramente dessa opinião. Quanto ao lugar de aguadeiro, cabia-lhe em vir fude de não sei que direito, e nunca a nenhum de nos ocorreria lho disputar. No momento em que o velho Gniedi�o morreu, ninguem, nem mesmo o maior, pensou em acusar Romane: Deus assim o quisera, e nem por isso Romane deixava de ser um bom cocheiro. Em breve, o novo Gniedko tornou-se o favorito do presidio. Os defenfos, embora homens rudes, iam frequentemente fazer-lhe festas. As vezes, voltando do rio, enquanto Romane fechava o porfão que lhe fora aberto pelo sub-c,ficial de guarda, Gniedko, depois de penetrar no recinto com a sua pipa, parava a esper -los iscand 1h para o cocheiro. Adiantei gritava Romane, e Gn¡edko ia embora s( o- zinho, ate defronte das cozinhas; Ia se imobilizava, aguar- dando que as "cozinheiras" viessem apanhar a aqua. - Gniedko e um malandro! exclamavam os presos. Sabe andar sozinho! &fende tudo! Sim, com -efeito, esse animal entende tudo! Cavalo infeligenfe,,~,,Gnieditol O cavalo relinchava, m neando a cabe�a, como para mostrar que sabia apreciar as lisonjas. E alguem imediata- mente lhe trazia p5o e sal. Quando acabava de comer, Gniedito levantava de novo o focinho e parecia dizer: "Bem que te conhe�o! Bem que +e conhe�o! Eu sou um bom ca- valo e tu es um bom sujeito!" Tambem ia, as vezes, levar pão a GniedI�o. Gostava de olhar o seu focinho, sentir na palma da mão os seus bei�os macios e quentes que lambiam minha oferta. RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS . Nossos defenfos tinham muita capacidade para amar animais, e se lhes fosse p�rmifido, +criam de bom grado en- chido a fortaleza de b~chos dornesficos e p ssaros. Que outra ocupa�ao seria mais indicada para- abrandar, crio- brecer, o carater depravado e brutal dos gal�s? Mas n o lhes era permitido faz�-lo. Nem o regulamento nem o es-#

pa�o o consentiam. Entretanto, no meu tempo, alguns animais encontraram abrigo no presidio. Alem de Gniedko n¢s tivemos caes, gansos, o bode Vaska e ate mesmo, durante algum tempo, uma aguia. Como cachorro titular, possuiamos Charik, de que iã falei, cão destemido e inteligente, muito meu amigo. Mas a gente do povo v� no cão um animal impuro pelo qual não

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convem criar estima, e quase ninquem cuidava em Charik. Ele vivia ao acaso a sua vida de cão, dormia no pafio, comia as sobras da cozinha, não despertava nenhuma simpatia, contudo considerava como seus donos todos os habitantes do presidio. Na hora em que voltavamos do frabalho, logo que ele ouvia gritar: "Cabo da guarda!" avan�ava para o por+ão e acolhia cada grupo abanando a cauda e fitando alegremente os olhos dos for�ados, na expectativa dum ca- rinho. Todavia, durante varios anos, jamais recebeu carinhos de ninguem, exce+o de mim. E, por essa razão, me preferia a foclos. 3" Não me lembro agora como foi que frouxemos Bieika, o outro cão. Quanto ao terceiro, Kulfiapka, eu proprio o in- froduzira certa vez em que voltava do trabalho, ... +arde. Bieika era um animal estranho. Uma carro�a lhe passara sobre o meio do corpo e lhe curvara +anfo a espinha dorsal, que de longe, olhando-o correr, a gente supunha ver dois c5es brancos, amarrados um ao outro. Ademais, tinha sarna, os olhos lhe supuravam, e a cauda pelada pendia cons- fariferrienfe. Maltratado pela sorte, resignara-se ao silencio. Jamais ladrava ou grunhia contra ninguem, como se receasse faz�-lo. Vivia sobretudo cle p5o, que comia por fras das ca- 2i I#

330 DOSTOIEVSKI sernas. Se algum de n¢s se aproximava dele, ari-fes que .chegasse junto, Bieika procurava mo~frar-se arnavel; rola costas, como para dizer: "Faze de mim o que quiseres que eu não me defenderei!" E todos os for�ados diante de quem ele :rolava assim, consideravam do seu dever lhe dar um pontape. "õ cachorro imundo!" Mas Bieika não se queixava; so se a dor fosse muito forte, solfava um ganido ra- pidamente abafado. Bieika dava suas cambalhotas diante de Chark ou mesmo de qualquer outro cão que viesse em busca de aventuras defronte ... forfaleza. Achafava-se hu- mildemente, mesmo quando um grande mastim se atirava. contra ele, rosnando. � de crer que os cães apreciam a humildade e o respeifo da parfe dos seus semelharifes, porque o mastim furioso imedia+amenfe se aplacava e, me- ditafivo, defia-se anfe o animal estendido aos seus pes com as pat;is no ar, e então, lentamente, curiosamente, farejava- o por todos os lados. "Esfe malvado ira me morder?" pen- sava decerto Bieika, tr�mulo. Porem, depois de o farejar com cuidado, o mastim abandonava-o, não enconfrando ali nada digno da sua curiosidade. Imediafamente ~ieika se erguia nas quatro patas, e, manquejando sempre, juMava-se ao grupo dos outros que partiam na pista de alguma cadela.

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Cerfo de antemão de jamais travar rela�ões ¡nfimas com a diva, seguia-a de longe, assim mesmo, como se nisso en- con+rasse algum consolo. Sobre honestidade, s¢ possuia no�ões por 'demais vagas. Tendo renunciado a qualquer esperan�a de futuro, confen+ava-se em trazer cheia a pan�a, e nada mais. Tenfei cerfa vez fazer-lhe fesfas. Mas, para ele, o fato foi fão novo, tão inesperado, que se rojou por ferra, e, fremenfe, pos-se, a ganir de satisfa�ão. Isso me deu piedade e, desde então, fiquei lhe fazendo fesfas sempre; por isso, assim que me avistava, Bieika iniciava de longe os 1seus ladridos lacrimosos. Sua vida acabou fora do prasidio, no basfiã*o, onde foi destro�ado pelos outros cães. Kulfiapka tinha o genio infeiramenfe diverso. Não sei porque eu o trouxe para o presidio, certa +arde, ievando-o da oficina onde ele nascera. Sentia prazer em alimenf -lo e RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 331 Chank imediafamente tomou Kulfiapka debaixo da �ão, o o fazia dormir consigo. Consentia af�, , que o cachorrinho 1,he mordiscasse o pelo e as ., como em gerai o fazem os grandes cães com os#

C x=a estranha: Kultiaplita não crescia quase nada 1 m, mas apenas em largura e comprimenfo. Tinha ~ 'i ------ um bonito cinzento cor de rato, e uma das s ficava pendente, enquanto a outra se erguia. a todos os cães jovens que, na alegria de avisfar ~ -~_1 , se põe a ladrar, a saltar-lhe ao rosto para o lamber, ridir diante dele'seu ardor e enfusiasmo. "Conquanfo ,,~~Örem na minha alegria, pouco me importo com as con- ,,,,v"ncias!" Onde quer que eu estivesse, se chamasse Kul- ~a# ele aparecia aos saltos, como se saisse dum al�apão, 1 1 ~ 17 1 ~ ; ladridos ruidosos afirava-se sobre mim, igual a uma om Wa que vai ro ~45, i Iando por um declive. E eu me afei�oei a 1 esse monsfrozinho. A sorte parecia +�-lo criado umcamente ~para, a alegria e a felicidade. Porem um belo dia, para des- ~gra�a sua, Kulfiapka afra¡u a afen�ão -especial do for�ado que fabricava cal�ados de mulher com peles que 1 --- ele proprio curtia. O homem chamou Kulfiapka, +a+eou-lhe o pelo, deifou-o, fazendo-lhe festinhas. Kulfiapka, sem des- ,,, confiar, gania de prazer, na manhã seguinfe desaparecera! Procurei-o muito fempo, sem encontrar em lugar nenhum, ,e s¢ soube da verdade quinze dias mais +arde. O pelo de eapka seduzira Neus+ruiev, que lho tirara e curtira, para W, com ele forrar umas bofinas de veludo. encomendadas pela , ~,,mulher do auditor do conselho de guerra. Ele proprio mo ~.,~,^osfrou as bofinas, quando as concluiu: o interior forrado

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~~-ficara uma maravilha. Pobre Kulfiapkal ---~,:, , , Muitos for�ados se ocupavam em curtir peles, e traziam --- ,de fora cães de pelo longo, que faziam desaparecer num ;,,,: abrir e fechar de olhos. Roubavam uns, compravam outros. ,,,Uma vez, afras das cozinhas, vi dois de+en+os conspirando. O primeiro trazia pela trela um cão enorme, magnifico, de ¢tima ra�a. Um lacaio ladrSo o roubara ao amo e o ven- dera por frinfa copeques aos nossos sapateiros. Esfavern I I#

332 DOSTOIEVSKI tratando de o estrangular. A opera�ão não oferecia ne- nhuma dificuldade. Esfolava-se o cão e depois se atirava o cadaver no grande fosso que ficava nos fundos da forta- leza, e que no verão, durante o calor, desprendia um cheiro terrivel, pois raramente o limpavam. O desgra�ado bicho parecia compreender a sorte que lhe destinavam. Olhava para nos fr�s com ar perscrufador, e, de tempos em tempos, se aventurava em agitar a longa cauda, em sinal de confian�a. Afas+ei-rne as pressas, enquanto os dois cumplices termina- vam a vontade a execu�ão. Os gansos se tinham estabelecido por acaso no presidio. Quem os criara? A quem, realmente, pertenciam? Não * sei, mas durante algum tempo eles divertiram os for�ados * foram assunto de conversa at� na cidade. Nascidos na fortaleza, tinham crescido numa das cozinhas. Quando fi- cararri adultos, o bando inteiro +ornou o costume de nos acompanhar ao trabalho. Assim que o tambor rufava e os for�ados se reuniam, os gansos corriam ao nosso encontro, grasnando, agitando as asas. Saltavam um aftas do outro o degrau alto do portão, o corriam para a frente das fileiras; 16 se agrupavam, (aguar- dando o fim dos preparativos da escolta. Iam-se 5empre com o contingente maior, e durante o trabalho, esgrava- favarri pelas proximidades. Assim que os de+en+os se pre- paravam para voltar, eles novamente reintegravam o cortejo. Espalhou-se por toda a vizinhan�a o boato de que os gansos acompanhavam os presos ao trabalho. Os passan+es que os viam, comentavam: "Olhem os gaik e os gansos. Como foi que ensinaram isso a eles?" "Tome para os seus gansosl" acrescentava um outro, dando-nos uma esmola. No entanto, apesar da sua dedica�ão, foram os pobres gansos sacrificados sem do, no fim da quaresma. Quanto a Vaska, nosso bode branco, ninguern se resol- veria a ma+61o se não houvesse surgido uma circuns+ancia especial. Não sei dizer de onde ele viera nem quem o +rou- xera ao presidio, ainda cabrifinho. Dentro de alguns dias, RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS 333 1 todos o adoravam, tornara-s

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e o nosso divertimento. Des- : C¢br 1 lu-se um pretexto para o guardar: era indispensavel um bode na cavalari�a (2). Entretanto, não era na cavalari�a que cio vivia, e sim primeiro nas cozinhas, depois, em toda , paria. Essa criatura graciosa e estouvada acorria a pri- . ~' ~ira chamada, saltava sobre bancos e mesas, lutava a chi-#

fradas co m os for�ados, provocava incessantemente alegria e, risadas. Certo dia, quando os chifres de Vaska ia haviam atingido um tamanho regular, Babai, o lezghiano, que estava ~,;~ ~ sentado na entrada de uma das casernas, resolveu lutar com s~ , -61 e, frente a frente. Durante muito tempo mediram for�as; esse o passatempo favorito dos for�ados. De sWito, Vada saltou no degrau mais alto, e sem deixar ao adversario o tempo de se por em guarda. erguido sobre as patas tra- seiras, marrou com os chifres na nuca de Babai, com tanta destreza e for�a, que Babai rolou escada abaixo, para gran- de alegria dos assistentes e do proprio vencido. Eram todos loucos pelo animal. Quando Vaska atingiu a idade nubil resolveram, depois de consulta geral ser¡ssima, que o bode seria submetido a uma determinada opera�ão que os nossos veferinarios sabiam praticar com mestria. "Pelo menos assim não h6 de feder!" explicavam os presos. ApOs a opera�ão, Vaska engordou demais. Al s, enchiam-no de comida. Enfim, fransformou-se num lindo bode, grande e ,gordo, com chifres de no+avel grossura. Gostava de dar ,cabriolas, ao caminhar. Ele fambem nos acompanhava ao trabalho, para divertimento dos for�ados o das pessoas que enconfravamos. Todo o mundo conhecia Vaska, o bode do presidio. As vezes, por exemplo, se frabalhavamos ... margem do rio, um de nos colhia ramos de junco e outras folhagens, ou flores, no fosso, para enfeitar Vaska. Entrela�avam-lhe flores e ramos em +orno dos chifres, +eciam-lhe qrinaldas em redor do corpo. , Na hora da volta, Vaska caminhava sempre em frente da coluna, pimp5o, enfeitado, e os de+enfos que lhe acompanhavam o passo, orgulhavam-se dele, ao cruzar (2) O bode � considerado mascote nas cavalari�as russas. (N. de H. M.) 1 . 1 1 I#

134 DOSTOIEVSKI com os transeuntes. O amor que tinham pelo bode era f50 intenso que alguns de n6s, como crian�as, pensaram em lhe dourar os chifres. Perguntei um dia a Akinn Akimifch, o

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melhor dourador do presidio depois de lsai Fomitch, se real- mente a cousa era praficavel. Akim fitou o animal com aferi�ão, refletiu um bom instante, disse que seria possivel, sim, mas que o dourado não seguraria, e o resultado não pagaria o trabalho. E o projeto ficou nisso. Vaska po- deria ter vivido muito, e morreria de asma e velhice, talvez. Um dia, porem. o maior, no seu carro, encontrou na estrada um grupo de for�ados que voltavam do trabalho, precedidos por Vaska, engrinaldado e altivo. - Para! berrou ele. De quem e esse bode? Explicaram-lhe. - O que? Um bode no presidio? Sem oermissão minha? Sub-oficiali O sub-oficial apareceu, e recebeu ordem imediata de abater o bode. A pele seria vendida no mercado, a quantia apurada recolhida a caixa do presidio, e a carne refor�aria a sopa dos presos. Discufiu-se muito, lamentou-se Vaska, mas ninguem se atreveu a infringir as ordens do maior. Mataram pois o nosso bode Ia do outro lado da fossa do lixo. Sua carne. comprada em bloco por um dos de+enfos, nos rendeu um rublo e cinquenta copeques - dinheiro que seria empre- gado em kalafchi. Depois de preparar um saboroso assado, o comprador de Vaska o vendeu a retalho, e todos que dele comeram o acharam excelente. Durante algum tempo possuimos +ambem uma aguia das estepes, de +amanho pequeno. Alguem a trouxera ferida, e em m s condi�ões. Todos os for�ados a foram ver, porque a aguia não podia voar. Sua asa direita pendia por terra e uma das garras estava quebrada. Ainda revejo os olhos furiosos que ela deitava ao grupo de homens ao seu redor. Tinha o bico recurvo entreaberto, pronta a vender caro a vida. Quando a quiseram examinar, afas+ou-se, mancando, RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 335 do numa perna e agitando a asa valida, procurando o mais afastado do recinto, e se encostou ... cerca. ~u tr�s meses seguidos sem sair do lugar. No cornejo, 1 , ¡3/4 . -la frequentemente, a�ulando contra ela , --- presos iam visita ,,,- o, nosso Chari¡k. O cão se atirava ... aguia com furor, mas#

--- ~)~enta evidentemente aproximar-se muito, o que divertia P,4~ ~~ rdinariamente os for�ados., "Que animal! diziam. Não o*ao um tolo!" Aos poucos, entretanto, Chark curando-se do, come�ou a atormentar realmente a aguia, segu- -a pela asa doente. A ave se defendia altiva e seiva- te com todas as for�as, com o bico e as garras, como rainha ferida; encostada ao seu canto, fixava os curiosos lhe chegavam perto. Enfim, cansaram-se dela, abando- m-na, esqueceram-na. Contudo, diariamente se via no '1~11~, ~~ OU canto um peda�o de carne fresca e uma tigela de agua: allguem ainda a cuidava. Durante alguns dias ela não quis

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1 , : - so alimentar, depois aceitou a comida, mas nunca das mãos de ninguem, nem na presen�a de qualquer um. Mais de uma vez a observei de longe. Vendo o vazio fazer-se ao seu 'ireclor, supondo-se sozinha, ela se resolvia a sair do seu canto, ` o saltitava dez passos ao longo da pali�ada: voltava depois ~...-,,_- dto ponto de saida, como se estivesse fazendo um passeio i"nico. Assim que me avistava, corria, capengando, sal- '~4ando como lhe era possivel ate o seu canto imutavel. E. - 1 ~-- . ` 1mediafameriM, com a cabe�a erguida, o bico aberto, a plu- ada, preparava-se para o combate. Meus ca magem eri� rinhos foram inufeis, não consegui amans�i-la, ela bicava, de- recusava-se a tocar na carne que eu lhe estendia, e 1,1 , , ,,enquanfd me mantinha inclinado sobre ela, não deixava e de me fitar com seu olhar feroz e penetrante. Odien+a solifaria, esperava a morte, todavia continuava a desafiar onh �~ 1 E pri O00 dc 10 g"' en ra foclo o mundo, a se manter inconciliavel. Afinal, ap6s dois meses de esquecimento, os for�ados a recordaram, e a onda 1de simpatia revelou-se de maneira inesperada: resolveram carrega-ia dal¡. - At16 porece �Qnos�Q! ex�lamQu um dos presos, I#

#

336 DOSTOIEVSKI - Ora ora descobm+- *- 41 e o ---so sozin oe mas a agu, uma ave, enquanfo n¢s somos gente. . . - A - guia, irmãos, � a rainha das florestas... foi c me�ando Skuratov, contudo, daquela vez n¡nguern quer escut -lo.

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Uma farde, quando o fambor rufava para a saida a frabalho, seguraram a ave enferma, apertaram-lhe o bic �om a mão, porque ela procurava debater-se e bicar, e levaram af� ao basfião. Os doze for�ados que formavam grupo estavam curiosiss¡mos por ver aonde a aguia iria. Cov sa estranha: estavam fão satisfeitos quanto se eles proprio estivessem sendo solfos. - õ desgra�ada, a gente lhe quer fazer um bem, ela d bicada! disse o homem que segurava a aguia, contem- plando quase com amor a ave m~l¢vola. - Solta-a, M¡k¡fkal - - Nem o diabo a segurava! Essa precisa de liberdade s0 quer liberdade! Do alto do fafude, atiraram a aguia para a esfepe. Era no fim do outono, o dia esfava frio e nevoento. O vento soprava na estepe nua, e gemia atrav�s dos altos fefos e da erva ressequida. A aguia pos-se logo a andar, sacudindo o asa machucada, como se tivesse pressa em fugir fão longo quanto seus olhos alcan�avam. Os for�ados lhe seguiam curiosamenfe a cabe�a que emergia acima do mafo rasfeiro, - Hein! Olhem aquilo! exclamou um deles, pensativo. - Nem se volfa para tr s! Nem uma vez se voltou para tr s, irmãos, tarifa pressa +em d� fugir! - Julgavas que ela havia de se virar para te dizer mui. fo obrigada? - Ela est sentindo o cheiro da liberdade, est faro- jando o c�u! - Sim, a liberdade! - Perdeu-se de vista! ue e que voces es+go esperando? A caminho! grifaram os soldados, e os for�ados todos se encaminharam' em silencio para o fraboffio, f 4 #

I#

O - O1, 1. 1~, µa~. A queixa ome�ando este capitulo, o editor das memorias do fale- c ciclo Alexandi- Pefrovitch Goriantchikov sente-se no dever de transmitir ao leitor a seguinte comunica�ão:

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No primeiro capitulo das "Recorda�ões da Casa dos ,,Mortos" foram feitas certas referencias a um parricida de origem nobre; apareceu como exemplo da insensibilidIade corri que alguns for�ados aludem aos crimes que perpetraram. Esse parricida, segundo o vimos, jamais confessou o assassinio, porem as narrativas das pessoas que conheciam minuciosa- ,menfe toda a his+oria do caso lhe estabeleciam a culpabili- dade de modo tão irrefu+avel que ninguem a poderia por em duvida. Essas mesmas pessoas contaram ao autor das "Re- corda�6es" que o culpado era um ¡nd¡viduo desregrado, crivado de dividas, e matara o pai ac�so pe~a ansia de herdar V f I I#

340 DOSTOIEVSKI mais depressa. Alias, toda a cidade natal do parricid�*ra i , , 1 un�nime em narrar a hisforia, cousa de que o editor corda�Ses" se informou ampla a ver2;camenfe. Enfim, o !�ku- for das "Recorda�ões" afirmava que no presid¡o o assassino mantinha um bom humor consfante, que se mostrava levia~o, esfouvado, - mas nada tinha de tolo, e não se notava n~le nenhuma crueldade especial. E então, o autor das "Rec�~r- cla�ões" comenta: "E por isso eu não podia acreditar na sua culpabilidade!" i, Ha alguns dias, o edifor das "Recorda�ões" recebeu 1 V, da Siberia a noticia de que esse "parricida" tinha as mios limpas de sangue e cumprira dez anos de pena no pres¡dio sem os merecer. A propria justi�a oficial proclamou-lhe a inocencia; os verdadeiros assassinos µciram descoberf,61 e confessaram o crime; o infeliz foi -solto. O editor não p"de por em duvida a aufenficidade dessa noticia. Mas � inutil discufi-la mais. Que adianta deplorar essa exisfencia mufi- lada em plena juventude, por acusa�ão fão horrenda! Que adiarifa alongarmo-nos sobre a profundidade fragica desse fato! Ele sozinho fala alto bastante e torna desnecessario insistir. Pensamos, en+refan+o, que se tais erros ocorrem, a sua simples possibilidade da um novo e poderoso relevo ...s cenas da Casa dos Mortos. J disse que acabei afinal por me habifuar ... minha sifua�ão. Todavia esse "afinal" foi duro de, :-,+*,,--*.-,, exigiu-me .1- 1 quase um ano, o ano mais abominavel da minha vida. E por isso esse ano se gravou em minha memoria, nos seus de- falhes mais Infimos. Parece-me que cada hora, uma atr s da outra, me deixou marca. Ja contei ali s que nenhum for- �ado se poderia "habifuar" aquela vida ... Lembro-me que, no decorrer desse primeiro ano, muifas vezes perguntei a

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mim mesmo: "E os outros? terão a alma tão calma quanfo parece ... primeira vista?" Essa questão me preocupava muifo. Como j o mencionei, todos os for�ados viviam"al-i .não como em sua casa., mas como numa estalagern,, como numa parada. Os proprios condenados a prisão perpefua, .1 quer fossem agitados ou apaticos, sonhavam com qualquer 1 :~ ` ossivel, que, porem, lhes aconteceria. Essa continua Cousa irrip inquieta�ão, simulfaneamenfe dissimulada e perceptivel, esse esse impaciente ardor de esperan�a que se frafa in- iamerte e era tão quimerico que se assemelhava a#

io, - tudo tinha em si elementos bastantes para es- ate ...s pessoas mais praticas. Eram tra�os que vam ...quele local um aspecto e um carafer excepcionais. -por exemplo um de nos, mais pueril ou mais impaciente, punha repentinamente a descobrir seus sonhos, a proclamar o que todos pensavam em voz baixa, imediata e bru+almenfe ~,o calavam, cobriam-no de apodos: mas fenho a cerfeza de ,,I que os seus perseguidores mais encarni�ados eram justamente Os que consfruiam a sos os mais insensatos castelos no ar. J confei, alias, que os individuos sinceros e simples de es- pirifo eram considerados enfre n6s como sinisfros imbecis, merecedores apenas de desprezo. Na maioria, eram foclos muito azedos, muito suscepfiveis, e por isso odiavam em massa os bons camaradas desprovidos de amor-proprio. Afora esses poucos tagarelas ingenuos e sem malicia, todo o resfo dos gal�s - isto e, os de genio reservado - se dividia 1 claramenfe em duas categorias: os bons e os maus, os frisfes e os alegres. Os tristes e maus formavam inconfes+avel- menfe o grupo maior; se entre eles se enconfrava algum fem- . 1 peramen+o expansivo, frafava-se sempre dum s6rdido mexe- riqueiro, um inquieto invejoso. Mas quanto mais se envolvia no que não era da sua confa, tanto mais recalcava denfro de si o que lhe dizia respeito pessoalmente, o que se referia ... sua alma e as suas id�ias secretas. Não era uso ninguem �w esfranho volunfar delir 1,5 se expandir. Os bons - em numero infimo - tinham modos franquilos. Dissimulavam profundamenfe as suas esperan�as, ew � claro, tinham para o devaneio uma tendencia muito mais forte que os maus. Devia fambem haver no presidio cria- furas despojadas de qualquer esperan�a, - como, por exemplo, o velho de Starodubov. - porem eram em numero RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 341 O

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342 DOSTOIEVSKI muito diminuto. Apesar dos ares sossegados desse velho, compreendi entretanto, por cerfos indicios, que era horrivel o seu estado de a!ma. Resfava-lhe um consolo, um recurso: a prece, a id�ia cIn mortifica�ão. O leitor perpetuo da Bi- blia, de quem ia falei, um belo dia enlouqueceu e atirou um tijolo no maior; deveria fambem ser um daqueles a q , uern a esperan�a abandonara. Como fosse impossivel viver sem esperan�a, procurara a mor+e por infermedio desse marfirio volunfario. Declarou que afacara o maior sem odio, sim- plesmenfe levado pelo desejo de sofrer. E quem sabe o frabalho que se processara em sua alma? Homem algum pode viver sem um alvo que se esforce porafingir; se não ferri mais finalidade nem esperan�a, o desespero faz dele um monsfro ... A meta de todos n¢s era a liberfa�ão, a saida da fortaleza. . . Es+ou tentando, nesfe momento, classificar em cafego- rias o nosso presidio, mas a tarefa e imposs¡vel. A realidade e infinifamenfe diversa, escapa as engenhosas dedu�ões do pensamenfo abstrafo; não suporta nenhuma arregimenfa�ão precisa e esfrei+a. A realidade tem +endencia para o es- facelamento perpetuo, para a variedade infinifa. Mesmo Ia, entre nos, cada um mantinha a sua vida disfinfa, privada, ao lado da vida oficial, regulamenfar. Como ia o contei parcialmente, logo a minha chegada eu não soube penetrar nas profundidades de-,d VIJa inferior, e por essa razSo foclas as suas manifesfa�8es me provocavam uma angustia inclizivel. ¶s vezes odiava aqueles seres que contudo sofriam fanto quanto eu. Acontecia-me af� invei6- [os, amaldi�oar minha sorfe. Invejava-os porque, apesar de tudo, viviam entre si como camaradas, capazes de se com- preenderem mufuamen+e-, entretanto, na realidade todos se sentiam fão fatigados como eu, todos se sentiam enojados daquele companheirismo debaixo do a�oite, daquela pro- miscuidade obriga+oria; foclos sentiam aversão uns pelos ou- fros e não procuravam senão isolar-se. Repito-c, ainda, esse odio que me obsedava nos piores momentos tinha motivos RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 343 1 leig¡timos: erramos quando prefendemos que os nobres, nas prisões, nao sofrem fanfo quanto os da plebe. Ouvi, ulfi- ~mente, sustentada essa afirmativa; li ate artigos de im- rensa defendendo-a. Mas o princip~o "Todos os homens iguais" (principio alias justo e generoso), e por demais rato. Perde de vista uma infinidade de fatos praticos, poss¡veis de compreender quando n¢s mesmos não os vamos. Não vou querer afirmar que o homem de clãs-#

superior, o homem instruido, sinta as cousas mais in-

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samenfe, mais dolorosamente, pelo fato de ser mais de- olvido. A alma e seu desenvolvimento não se medem r dados fixos. A propria insfru~So, nesses casos, não a servir de medida. Sou o primeiro a reconhecer que poderj "I as pessoas menos instruidas, mais humildes, mais .� miseraveis, descobri tra�os do mais perfeito desenvolvimento ; ; 1 , . Assim, pois, no presidio, conheci os mesmos homens ~,,~µuranfe varios anos. Desprezei-os, de inicio, n3o enxergando neles senão animais ferozes. E de repente, no momento Mais inesperado, a alma desses homens involun+ariamenfe te expandia. Revelava uma tão grande riqueza de senti- imenfos, fan+a cordialidade, uma compreensão fão clara do proprio sofrimenfo e dos sofrimenfos alheios, que nos pri- meiros instantes não acreditava nem nos meus olhos, nem nos meus ouvidos. O confrario fambern sucede: o homem cultivado desenvolve, as vezes, uma barbaria e um cinismo 1,41k1 que nos provocam nauseas, e por mais indulgente, por mais Orevenido que se esfeia, não se poderia descobrir nele nem ~ @` . justifica�ão nem desculpa. Deixarei de parte a mudan�a de h bitos, de g�nero de ~, 1 vida, de alimenta�ão, que, para um homem de certo nivel liocial, e infinifamenfe mais penosa que para um muiique. Este, na pris5o, pelo menos come o bastante para satisfazer a fome. Não quero, porem, discutir a tal respeifo. Embora essa bagatela não seja fão insignificante quanfo se pensa, admitamos que nao tenha nenhuma imporfancia para um 1~ homem de for�a de vonfade ... Mas ba uma especie de Po#

344 DOSTOIEVSKI 1 RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 345 1 sofrimento diante do qual fudo empalidece, de maneira arranjar. Ao cabo de duas horas estar6 instalado entre eles que j6 não se afenfa na sujeira infefa que nos rodeia, nem nas da forma mais pacifica, na mesma isba ou sob a mesma tenda. resfri�ões que nos esmagam, nem na comida parca e repul- Nada de semelhante acontece com um homem educado. siva. Depois de trabalhar o dia inteiro, vertendo o suor do 1 Um abismo profundo o separa do homem da plebe; isso se sou rosfo como nunca o fez em liberdade, o mais efemi,nado, observa amplamente quando ele perde os seus direitos primi- enfre os efeminados, o barine de mãos mais brancas, come tivos, e quando enfra efetivamente

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nas fileiras do povo. E sem reclamar o pão negro e a sopa f�rv¡lhanfe de baratas. mesmo que durante a vida inteira tenha o barine frequen- A genfe se habifua a fudo, como o recorda jocosamente fado os muiiques, mesmo que durante quarenta anos tenha a cantiga dos for�ados sobre o ex-fidalgo cheio de mimos estado em confacto com eles, ou como funcionario, ou pelo que cai no presidio: simples desejo de conviver, de obsequiar, jamais os conhe- "Dão-me couves com agua, cera a fundo: fudo ser apenas ilusão de ¢tica. Sei muifo e eu nelas meto o dente " bem que alguns leitores destas linhas prefenderão que estou Não, o principal e que duas horas depois de enfrar noexagerando, mas sei que fenho razão. Minha certeza não se presidio, o homem do povo, qualquer que seja ele, senfe-se se baseia em livros ou em teorias: baseia-se em fatos e ia tive tempo suficiente para a comprovar. Talvez mais tarde colocado no mesmo ponto que os oufros: esf6 em' sua casa, tem os mesmos direitos que os seus companheiros, perfencese reconhe�a o fundamento destas afirmativas ... comunidade dos for�ados. � compreendido por focios e a todos compreende, foclos o reconhecem, todos o consi Como um fato proposital, os acontecimentos confir- deram um dos seus. Não aconfece o mesmo com um homem mararn minhas observa�ões feitas logo aos primeiros dias, de classe social superior. Por mais correfo, bom, infeligenfee agiram cruelmente sobre os meus nervos. Duranfe o pri- que seja, ver-se-6 odiado e desprezado duranfe anos infeirosmeiro verao nao fiz senão vaguear, e quase sempre s0. Meu pelos gal�s em massa, que nao o compreendem, e, cousa maisestado de esp¡rifo não me permitia apreciar, nem mesmo 11 greve, nele não confiam. Não e nem seu amigo nem seu distinguir os for�ados que mais farde se afei�oaram a mim, companheiro, e se, com o fempo. cor,,gue~aifinal que não o que, entretanto, jamais me trataram em p� de igualdade. molestem, nem por isso continua a ser menos esfranho para Alguns dos meus companheiros haviam, como eu, pertencido os demais. Eterna e dolorosamenfe, +em que confessar a si as classes superiores, mas seu convivio não me atraia. Eu mesmo que continua soli+ario, que e mantido para se*rnpre não queria ver ningu�m, nem podia fugir para lugar nenhum. segregado. O vacuo se faz ao seu redor, as vezes sem m6 Vou citar como exemplo um incidenfe que me fez compre- inten�ão da parfe dos presos. O novato não e da igualha ender logo focla a estranheza, toda a solidão em que eu cair - a. deles - e e so. Nada mais horroroso que não se viver no No mes de aciosfo desse verão, por um dia claro e quente, proprio ambiente. Transplantado de Taganrog a Pefropa- 16 pela uma hora da +arde, quando de habito a gente vlosk (1) o homem do povo encontrara imediafamente oufros fazia a sesta antes de voltar ao trabalho, os for�ados se

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homens do povo com os quais depressa se ha de enfender e levantaram repentinamente, todos a um s0 tempo e se reu-#

niram no pafio. Eu ate erifão nada percebera de anormal. i') Taganr09 fica ...s margens do mar de Azav, cerca de dois mil quil¢metros de Ali is, nessa 6poca, andava, ...s vezes, +ão profundamenfe Petropaviosk, na Siberia ocidental. (N. de P, Q) mergulhado nos meus pensamentos que não prestava a+en�3o 24 J#

346 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 347 alguma ao que me cercava~ Contudo, havia ia tr�s dias o presidio se agitava intensamente. Essa agita�ão era alias gundo depo:s o descobr'¡, r2cordan- muiio mais õMicia. se 1 1 do trechos de conversa, o mau humor evidente dos for- �ados, a irrifa�ão crescente de que davam provas. Eu atri- buia,isso ao trabalho por demais penoso, aos longos dias esma- gadores da esta�ão quente, aos sonhos involun+arios de va- gabundagem na floresta, em liberdade, as noites curtas du- rante as quais não podiamos satisfazer o sono. Todas essas causas talvez, reunidas, provocaram uma explosão sUbita, cujo pretexto foi a ma alimenta�ão. Fazia algum tempo j que os homens se queixavam em voz alta, reclamavam pelas ca- sernas, sobretudo ... volta das cozinhas depois do jantar e da ceia, desconferifes com as "cozinheiras": tinham ate +enfado trocar um deles, mas foi preciso demitir imediatamente o novato e voltar ao antigo. Em suma, o mau humor era geral. - A gente trabalha de morrer, e s¢ nos dão porcarias, resmungava um, nas cozinhas. - Se a gororoba, n3o +e agrada, encomenda manjar branco! pilheriava um outro. - Não ha nada melhor do que cuuve com sebo, ir- mãos! observava um terceiro. - E se te dessem couves com sebo a vida inteira, confinuarias gostando? - � verdade, bem que podiamos comer um peda�o de carne, comentou um quarfo preso. A gente se es+rompa trabalhando na fabrica, e quando chega precisa por um bo- cado na boca. Essa porcaria não 6 comida! - E quando não e sebo que nos dão, são miudos. - Sim, ou sebo ou miudos. A 'b¢ia e so isso. Sera justo? E' uma imundicie! - E o cachorro vai enchendo o bolso!

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- Não tens nada com isso! - E por que não? A barriga e minha! Se fizermos clueixa, todos ao mesmo tempo, hão de ver! I I - Fizermos queixa? - Isso mesmo! - Est -se vendo que a~nda nSc, apanhasfe basfan~a, por causa de queixas, cretino! - � isso, rezingou um outro que ate então se man-#

fivera em silencio. Quem muito quer fudo perde. Que e que pretendes dizer, ia que �s +ão esperto? Pois fala fu, andal - E' claro que falo. Se foclos forem comigo, eu falo. Quem � pobre, sofre! Aqui +em gente que enche a barriga do bom e do melhor, enquanto a tripa dos pobres ronca. 1 - Sujeito invejoso! Vive de olho comprido na comida dos outros! - Ninguem ponha o olho no prafo alheio; acorde cedo e cozinhe o seu! - Ora bolas! Nos dois poderiamos discutir isso ate ficar de cabe�a branca! Quem fe ve, fica pensando que �s rico! - Sim, rico como lerochka que tem um cachorro e um gafo! - E' verdade, irmãos, que e que a gente espera? Ja chega de passar mal! Estão nos tirando o couro e o cabelo! Por que não vamos falar? - Para que? Pensas que "Oito olhos" vai te meter bons bocadinhos no bico? Não, meu velho, lambe os bei�os. Lembra-fe que esfamos no presidio - e o resto e fuma�a. - � sempre o mesmo: Deus mata de fome o pobre e engorda o vaivocla. - Isso mesmo. "Oito olhos" esfa¡ engordando. Com- prou uma parelha de cavalos ru�os. - Bem, e beber não lhe agrada ... - Faz dias que ele e o ve+erinario nã'o se apartam dum baralho. - Passaram a noite jogando. �-durante mais de duas horas o maior não feve um trunfo na mão!#

48 DOSTOIEVSKI - Não admira então que a gente s¢ tenha sopa de sebo! - Bando de idiotas! Se não estivessem af, de boca aberta, outro galo nos cantaria! ver que - Mas se formos 16, todos juntos, vamos que ele diz. Vamos, vamos de uma vez. - E que e que o maior vai dizer? Tens vontade de

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levar um murro nas ventas? - E ir novamente a julgamento? A agita�ão ia pois em crescendo. Naquele momento, com efeito, a comida andava pavorosa. Tudo, alias. con- corria para provocar a explosão; a angustia surda, o secreto sofrimento perpetuo enchiam as medidas. Os for�ados, por natureza, são rixen+os a rebeldes, mas as revoltas em massa são raras no pres¡dio, devido ao eterno desacordo entre os homens. E isso, todos o sentiam muito bem; eis por que havia entre n6s mais palavras que atos. Entretan+o, dessa vez, a agita�ão teve consequencias. Come�aram a se reunir em grupos, puseram-se a discutir nas casernas, a reclamar, a recapitular com odio toda a administra�ão do maior, a son- da-la a fundo, ate o amago. Alguns, principalmente, se agitavam muito. Nas questões desse g�nero, tanto nas pri- sões como nas corpora�ões operarias, ou nos destacamentos de soldados e+c., h6 sempre insfigadores, caudilhos, indivi- duos em geral curiosissimos, e pertencentes todos a um tipo iderifico. São almas ardentes, avidas de justi�a, - uma jus- +i�a da qual esperam o mais ingenuamente, o mais honesta- mente poss¡vel, uma aplica�ão absoluta, infal¡vel, sobretudo imediata. NSo +em nada de +olos: são, ...s vezes, a+� muito mais inteligentes que os demais, porem sofrem dum ardor excessivo, que não lhes consente agir com as+ucia e pruden- cia. Se, nos casos desse genero, se encontram sempre homens P que sabem dirigir a massa e resolver tudo bem, e porque eles pertencem a outro tipo de chefes populares muito raros entre nos. Porem, esses de quem estou falando agora, esses insfigadores de "queixas" perdem quase sempre a partida RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 349 e vão encher as cadeias e os presidios. A impetuosidade perde, quando lhes d6 influencia sobre as massas. deles oscompanhados. Seu ardor, sua honesta São de boa mente a indigna�ão, agem sobre foclos; e ate mesmo os mais irreso- lutos os acompanham. Sua f� cega no exito seduz a+6 os mais empedernidos ceticos, embora frequentemente essa fe#

tenha bases tão pouco firmes, tão infantis que a gente per- gunta a si proprio como foi que ela o pode inspirar. O segredo da sua influencia esta em marcharem ... frente e não terem medo de nada. Avan�am como +ouros, cabe�a baixa, defesas para cima, sem saberem sequer do que se trata, sem o jes£ifismo pratico gra�as ao qual o mais vil, o mais repug- nante dos homens as vezes tem ganho de causa e sai da chu- va sem se molhar. E, desse modo, quebram infalivelmente a cabe�a. Na vida cotidiana, essa esp�cie de gente � biliosa, de dificil convivencia, irritadi�a, in+olerante, e na maioria, muito obtusa, - o que, alias, e um dos fatores da sua or�a. O mais lamen+avel e que, ...s vezes, em lugar de se encami- nharem diretamente ... meta, se precipitam para os lados: es- quecem o essencial para se prenderem as minucias, e por

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isso se perdem. En+retan+o s3o compreendidos pela massa, e essa a sua for�a ... E preciso dizer algumas palavras sobre a significa�ão do +ermo "queixas". i Alguns dos nossos for�ados tinham justamente sido con- denados por um caso dessa especie: eram os mais excitaveis, sobretudo um deles, Marfynov, antigo bussardo, homem ar- doroso, inquieto, desconfiado, embora honesto e de boa fel Citarei ainda um outro, Vassili Antonov, indiv¡duo que a san- gue-frio exibia um olhar sarcasfico, um sorriso altivo, - muito esperto, alias, mas igualmente correto. Não os posso citar todos, infelizmente, pois eram numerosissimos. Pe+rov ia e vinha, escutando os grupos sem falar muito, mas provavol- mente animadissimo, pois foi ele o primeiro a vir para fora da caserna quando come�aram a sa reunir os presos.#

DOSTOIEVSKI Nosso sub-oficial. que desempenhava as fun�ões de sar- e reocupado.Uma vez ,n~o_major, (2) chegou logo muito Pfavor de ormados, os gales delicadamente lhe solicitaram o izer ao maior que o "presidio" lhe desejava falar e pedir Igumas explica�ões. Por tr�is do sub-c,ficial, puseram-se m fila todos os invalidos, defronte aos for�ados. O recado ado ao sargento era +ão ex+raordinario que o encheu de perito. Mas era-lhe impossivel deixar de imediatamente lafar os fatos ao maior. Em primeiro lugar, se o presidio se rebelasse, poder-se-ia esperar tudo, e ademais, os nossos chefes eram bastante polfr&es, quando se tratava de enfren tar os presos. Em segundo lugar, se nada se, passava de grave, se denfro em pouco os de+en+os mudassem de ideia 1 e se dispersassem, o sub-c,ficial continuava do mesmo modo obrigado a redigir seu relaforio. Muito paiido e +remendo de medo, ele se precipitou para a casa do maior, sem fazer i nferrog ato rios, sem discutir com os presos. Compreendera que nao era com ele que queriam "falar". Ignorando do que se tratava, coloquei-me +ambem em fila. SO mais tarde soube das minucias do caso. Naquele mo- men+o, pensava que iam proceder a qualquer chamada-, não vendo, porem, os soldados que de ordin rio se encarregavam disso, admirei-me e p£s-me a espiar ao meu redor. Notei que muitos me olhavam com grande surpresa, mas se afas- tavam sem dizer palavra. Não podiam acredifar que eu fambem tivesse queixas a articular. Entrefan+o, logo depois, quase todos que me cercavam fixaram em mim um olhar in- ferrogador. -m a di - Que fazes a[? perguntou e is+ancia, em voz alfa e em fom grosseiro, Vassili An+onov, e que ate então sempre me frafara por "senhor" e com grande cortesia. Olhei-o, perplexo, procurando perceber o que significava

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aquilo, ia adivinhando, contudo, que se passava qualquer cousa de anormal. (2) Atualmente, o sargento encarregado da contabilidade. (N. de R. Q) RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS i 351 - Sim, e verdade, que fazes aqui? Volta para o alo- jamento, +alou-me um sossegado rapaz da se�ão militar, que eu af� então não conhecia. - Não tens nada que fazer junto de nos.#

- Mas estão todos formados! respondi. Não vão fa zer chamada? - Vejam! Aquele +ambem saiu da focal grifou alguem. - Nariz de ferro! bradou outro. - Papa-moscas, berrou um terceiro, com inexprimivel desprezo. Esse novo dito provocou risadas gerais. - Vai para a cozinha, acrescentou um. - Estes onde quer que estejam estão muito bem. Aqu 1 no presidio, papam pão doce e leitão de forno. N o comes separado? Que es+6s fazendo aqu19 - Aqui não e seu lugar, atalhou em tom amistoso Ku- likov. E, +orriando-me o bra�o, me fez sair da fila. Estava muito palido, os seus olhos pretos faiscavam, e mordia o labio inferior. Decerto não esperava o maior a sangue-frio. Eu gostava muito de o olhar nessas emergen- cias, pois então revelava-se todo. Estava representando como num palco, mas agia. Creio que iria para o suplicio corri a elegancia de um grão-senhor. Naqueles momentos em que todos me tratavam por tu e me insultavam, ele se esfor�ava -em redobrar de gentilezas para comigo. Ao mesmo tempo, as suas palavras eram +ão firmes, tão altivamente resolutas, que não foleravam replica. - Esfamos aqui para tratar das nossas coisas, Aiexandr Pefrovi+ch, o senhor não +em nada com isso. Afaste-se, va esperar onde quiser. Olhe, os seus colegas estão na co- zinha, va para W - Estão no cluenfinho, Ia dentro! Pela janela entreaberta da cozinha vi realmente os po- lacos e, segundo me pareceu, muita gente com eles. Com- plefamenfe desconcertado, fui para Ia. As risadas, as jurias, os estalidos com a lingua (que no presidio subs+i+uerr os assobios), acompanha ram-me. J#

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- :Não agradou ao harine! Tiu-flu-tiu! Anda, agarra! Entre eles via-se certo numero de individuos de genio fris- Jamais, at� então, fora tão gravemente ofendido pelos tonho e grave; alimentavam a obstinada certeza de que o for�ados; e, daquela vez, a cousa me feriu profundamente. caso não levaria a nada, que dele s¢ sairia mal. Contudo, em- � que eu surgira num momento critico. Na entrada da bora convencidos de que suas previsões quanto ao resultado cozinha, encontrei T-ski, um jovem fidalgo sem grande ins- da queixa se confirmariam, (o que os fa+os- corroboraram) sen- fru�ão. mas de cara+er firme e generoso, - o mesmo que fiam-se consfrangidos e pareceu-me que o seu olhar carecia era cegamente dedicado a B. Os for�ados abriam uma ex- de seguran�a. Consideravam-se renegados que haviam frai- ce�ão a seu favor, e quase se pode dizer que lhe queriam do a corpora�ão, e vendido os seus companheiros ao maior. bem. Cada um dos gestos daquele mo�o denotava bravura, Enfre eles disfinguia-se lolkine, aquele astuto mujique siberiano, coragem, vigor. condenado como moedeiro-falso. e que roubara a clientela de - Que foi, Gorianfchikov? Venha cal grifou ele. Kulikov. Vi fambem o "velho crente" de Starodubov. Ne- - Mas que e que hV. nhuma das "cozinheiras" se mexera; julgavam decerto que, - Querem se queixar, nSo sabia? Al s, não vão con- pertencendo a administra�ão, não poderiam +ornar partido seguir riada; quem acredita em for�ados? O maior manda contra ela. procurar os insfigadores, e se estivermos enfre eles, sera - Enfrefanfo, disse eu dirigindo-me embara�ado a M-cki sobre nos que ha de recair a culpa. Lembre-se do que nos fora esfes, todos estão 1a. trouxe para ca. Eles serao apenas fustigados, mas n¢s - Sim. mas que temos n¢s com isso? rosnou 13 seremos levados a julgamento. "Oito olhos" nos odeia e - Arriscariamos muito mais que eles, indo para Ia-, e ficara satisfeito se nos desgra�ar. Seremos a sua justifica- com que fim? Je hais ces brigands (3), ajuntou M-cki em �ão. frances. Voc� acha que a reivindica�ão deles dar6 em alguma - E os "colegas" serão os primeiros a nos enfregar de cousa? Vão se complicar - e so o que lucrarão. pes e mãos atados, acrescentou M-cki, quando enframos na - � verdade, disso não vai sair nada de bom, apoiou cozinha. um dos outros for�ados, um velho de genio azedo e teimoso. - Claro, não terão do nem piedade, confirmou T-ski. 1, Almazov, que fambem esfava entre nos, apressou-se em Alem dos nobres, uns trinta presos se haviam refugiado

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concordar veementemente. nas cozinhas: uns, covardes demais para queixas, outros, con- - �! Uns cinquen+a pelo menos irão as varas, decla- vencidos da inutilidade da medida. Esfava 16 Mim M¡mitch, rou. inimigo figadal de qualquer manifesta�ão confraria ... boa - Esfa . ai o maior! grifou alguem, e todos se precipita- ordem e a disciplina; esperava sem dizer palavra, numa calma ~i 1 1 ram para as janelas. absolufa, +3o pouco o preocupava o desenlace do caso O maior acorria, furioso, desesperado, rubro, com os convicfo do triunfo inevifavel da ordem e da auforidade1'~, '¢culos na cara. Sem uma palavra, porem decidido, avan�ou Com a cabe�a baixa e muito inquieto, Isai Fomi+ch escutavaperto dos homens enfileirados. Nesses casos sua bravu com avidez medrosa as nossas conversas. Todos os rLisficos,~-¡ra era real, e não lhe faltava presen�a de espirifo. Alias, polacos haviam considerado bom agruparem-se -em `forricestava quase sempre embriagado. Af� mesmo o seu gorro dos seus fidalgos. Alguns for�ados russos, fimidos, - gentesebento, com barra alaranjada, e as dragonas de prata tinham#

ap tica, silenciosa, deprimida, que não ousava fornar parfe em (3) "QdeiQ estes briguentosi" (N de R. Q) nada, - esperavam com angustia Q resultado da reclama�ão.#

354 DOSTOIEVSKI naquele instante qualquer cousa de sinistro. Seguia-o O furrie! Dia+lov, personagem extremamente importante, que dirigia tudo no presidio, e tinha mai¡s influencia que o vo- prio maior. Era um velhaco mas sem maldades, e os for�a- dos sentiam-se satisfeitos com ele. Afras de Diaflov vinha o nosso sargento, que decerfo levara uma boa ensaboadela, e esperava outra, dez vezes pior. Tres ou quatros soldados os seguiam. Os presos, que estavam de cabe�a descoberta desde o momento em que haviam mandado chamar o maior, endirei+aram-se rapidamenfe, enrijaram-se nas pernas, depois se imobilizaram, aguardando a primeira palavra, ou melhor, o primeiro grifo do chefe. Não tiveram que -esperar muito: j ... segunda s¡laba o maior berriava como um possesso; sibilava, f5o grande era o seu furor. Da janela, podiamos v�-lo correr ao longo da fila, afirar-se para a frente, interrogar. Es+avamos entretanto afastados demais para lhe entender as perguntas, bem como as replicas dos for�ados. Escu+avamos-lhe apenas o grifar, com voz estridente: - Uma rebelião! ... As varas! ... os cabe�as! Tu que 6s cabe�a disso, fui uivou, afirando-se a um homem.

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Não se ouviu a resposta. Mas ao cabo dum momenfo vimos um for�ado deixar a fileira e sair para o corpo da guar- da. Um instante ap6s um outro o seguiu, depois um fer- ceiro. - Todos a julgamento!. . . Eu ... e que esf6 havendo na cozinha? silvou ele, avistando-nos a+rav6s das janelas aber- +as. Todos aqui! Tragam-me todos! O furriei Dia+lov veio ate a cozinha. Alguns dos nossos lhe declararam que não tinham queixa nenhuma a formular. Ele se afasfou imediatamente, afim de dar parte ao maior. - Ah, esses não +em nada que clizer! comentou o chefe, em voz baixa, evidentemente satisfeito. Não faz mal, todos aqu¡! N6s saimos. Vi que senfiamos alguma vergonha aõ faze-lo, pois esfavamos todos de cabe�a baixa.#

11 ~I 1 of i RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS Prokofievi lolkine e tu, Almazov. 357 . . por aqui, por aqu,, reur¡am-sei ordenou o nosso tirano em voz arquejante m s abrandada, fitando-nos com ternura. M-cki, tu fam- bem. Anda, toma nota dos nomes, Diailovi Toma no+a ia dos nomes dos individuos satisfeitos, e os nomes dos descon- fenfes, todos os nomes, a+� o ultimo, e me da a lista. . . Vou lev61os foclos a conselho de guerra, ... Vou mostrar do que sou capaz, seus cr pulas!... A lista produziu o seu efeito. - N6s esfamos safisfei+os! grifou um dos descon+enfes, 21 mas em voz sombria e incerta. Ah, ah! satisfeito! Quem mais esfa sa+isfeifo? estiver satisfeito que avancei Satisfeito, safisfei+o! bradaram algumas vozes. Satisfeitos? Quer dizer que foram a�ulados por alguem? quer dizer que +em entre si cabe�as, rebeldes? Pior para eles! - 'Senhor, que significa isso! exclamou uma voz, no dos homens. - Quem grifou, quem foi? rugiu o maior, precipifan- do-se par a o lado de onde saira a voz. Fosfe tu que grifaste, ~I Resforguiev? Para o corpo da guarda] Rasforguiev, um mo�o gorducho, saiu da fila e entrou lentamente no corpo da guarda. Não fora ele que grifara, 1 ~ mas como o maior o havia designado, não ousou confradi- Es+So rebentando de gordos, por isso reclamaml

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,;,,-,urrou "Oito olhos", erguendo-se nos facões das botas. ~"Olhem esse focinho roli�o! não se lhe d a volta em fres Hei de apanha-los todos! Saiam os que estão safis- foitos! Satisfeitos, Excelencia, articularam -algumas dezenas ·e vozes surdas. O resto manteve um silencio obstinado. ~~I Todavia o maior nada mais desejava. O que melhor lhe con- ~ vinha era liquidar esse negocio o mais rapidamente possivel.#

i DOSTOIEVSKI 1 ora todos estão satisfei+osi disse ele as pres- c Claro ue o sabia. A culpa e dos cabe�as - - . ~,s de motim entre eleS, conflinuou, d*¡rigindo-se que descobri-los todosi E agora ... Tambor. foca! agora es-~ .,, hora do trabalho! s. Tristemente, a Ele proprio assistiu � forma�ão dos grupo -em silencio, os for�ados partiram para o trabalho, felizes pelo menos em fugir ao olhar +errivel do chefe. Depois da partida dos pelotões, o maior se dirigiu vagarosamente para o corpo da guarda onde tornou suas medidas contra os "cabe�as", medidas alias não muito crueis. Contaram mais +arde que um deles, que pediu perdão, foi desculpado imediatamente. O maior, ou tinha pressa, ou não se sentia muito seguro. Quem sabe não estava corri medo? Urna reivi 1 ndica�ão e sempre cousa espinhosa. A falar verd . ade. a queixa dos for �ados não poderia equivaler a uma reivindica�ão, porque fora dirigida não a administra�ão superior mas ao proprio major. Nem por isso, contudo, deixava de ser desagradavel, devido ... unanimidade dos descontentes. Era preciso pois abafar a cousa a qualquer pre�o. Depressa soltaram os cabe�as. Logo a comida foi melhorada, - infelizmente por muito pouco tempo! Nos dias seguintes o maior veio com mais frequen cia inspecionar o presidio, e +ambem mais frequentemente encontrou desordens a reprimir. Nosso sargento ia e vinha, preocupado, desorientado, como se persistisse no seu estu por. Quanto aos for�ados, custaram a se aquietar: entre tanto, a agita�ão silenciosa deles não se parecia.com a dos primeiros dias: mas o seu silencio não +raia menos inquieta�ão e embara�o. Alguns se mantinham de cabe�a baixa. Alguns resmungavam e aludiam involunfariamen+e ao caso. A maio ria zombava amargamente uns dos outros, como para se pu nirem do motim. - Toma, mano velho, +orna, come] debochava por exemplo um deles. - Quem semeia ventos colhe ~empes+ades! i RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS

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359 - Onde esta o rafo que amarrava o chocalho no rabo#

do gato? insinuava um terceiro. - N¢s ca somos convencidos a poder de vara - todo o mundo sabe disso. Foi sorte que ele não nos mandasse a�oitar a todos! - Se a gente soubesse as cousas adiantado, falaria menos e se portaria melhor! observou um outro, não sem aze- dume. Queres dar alguma li�ão? Olha o professor! Isso mesmo, quero te dar uma li�ão! Antes disso, podes me dizer de onde vens? Posso te dizer que eu, eu sou um homem, e tu o que 7 es. - Um osso de cachorro, e o que es! - Osso de cachorro es fui - Basta, basta, ia berraram demais! grifavam vozes de todos os lados, acalmando os rixenfos. No mesmo dia da queixa, ao voltar do trabalho, encon- frei Pefrov por fras das casernas. Ele ia me procurava. Aproximando-se de mim, resmungou duas ou fres exclama�ões incompreensiveis, depois calou-se com ar embara�ado, e Os-se a caminhar ao meu lado, maquinalmenfe. Todo o caso ainda me pesava com for�a sobre o cora�ão, e parecia-me que Pefrov me poderia dar certas explica�ões. - Confa, Petrov, voces não estão com raiva de n¢s? - Raiva de quem? perguntou ele como se acordasse de S£bito. - Voces, de+en+os, de n¢s, os nobres! - E por que lhes haveriamos de querer mal? Porque não os acompanhamos na queixa! E por que nos haviam de acompanhar? replicou es- fQr�ando-se por entender-me. Voc�s comem separado! - Ora ora! Ha muitos de voces que comem separado e que, entretanto, se amotinaram. E n¢s deveriamos fam- bem ... por companheirismo ...#

360 e DOSTOIEVSKI - Ora! Como e que voc�s poderiam ser nossos compa- nheiros? indagou Pefrov muitissimo surpreso. E'e de-c¡d* Afirei-lhe um rapido o!~,ar. E- ;darnenfe não me compreendia, não ia ate onde eu queria chegar. Em com- pensa�ã'o, eu o compreendia perfeitamenfe. Pela primeira vez, uma id�ia -que me perseguia ha muito, sem,conseguir

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tomar corpo, se precisava no meu pensamento. Weirei-me duma coisa da qual ate então tivera apenas uma intui�ão con- fusa; compreendi que jamais os for�ados me considerariam um companheiro, mesmo que eu passasse ali o resto da vida, mesmo que pertencesse a se�ão especial. A expressão que se pintou no rosto de Pe+rov, quando ele me disse: "Como e que voc�s poderiam ser nossos com pa nhei ros? ", essa expres- são me ficou gravada na lembran�a. Havia nela +ão franca ingenuidade, tão singela surpresa, que perguntei a mim mesmo se não dissimulava a ironia, o odio, o escarneo. Mas não: - eu não era companheiro deles, e nada mais! "Seque +eu caminho que eu sigo o meu; trata dos teus negocios que eu trato dos meus." Com efeito, pensei que depois da queixa eles se puses- sem todos a nos mortificar, a nos +ornar a vida impossivel. Não houve, porem, a minima injuria, a men , or censura. nenhu- ma animosidade especial. Continuaram a nos debicar de bom humor, quando se apresentava ocasião. Não guardaram rancor nem aos que se mantiveram afastados, nem aos que em primeiro lugar se haviam proclamado satisfeitos. Nin- quem mesmo deu palavra a tal respeito. E era principalmente esse silencio que me deixava afonifo. -11 Vill Comoanheiros nfre os companheiros. os que a principio mais, me atraiam ram, e claro os meus iguais, - os nobres. Porem, enfre, os fr�s representantes da nobreza russa que se pntravam no presidio, - Akim Mimitch, o espião A. e o , condenado como parricida, - travei amizade apenas 1 1 1 Akim Akimifch. A falar franco, s¢ o procurava em deses- de causa, nos momentos mais angustiosos de fedio; 1 do supunha não me poder entender com ninguem mais. , Ö, nos capitulos anteriores, dividir os for�ados em cate- C14 .#

s, mas, ao recordar-me de Akim Akimi+ch, creio dever cenfar uma categoria, a qual, alias, ele preenchera sozi- � a dos for�ados indiferentes, aqueles aos quais pouco . rfa viver em liberdade ou no presidio. Essa especie de furas não poderia existir entre nos, senao na qualidade#

exce�ão. Akirn Mimitch. pois, c onstituia ele s¢ a e De�aIO: sfalara-se no presidio como se devesse passar ali da, a istencia. Tudo que o cercava, o colchão, o travessei :), os ensilios, estava solida e cuidadosamente arrumado, para mpre; nada sugeria uma vida provisoria, de acampamento. kim Mimitch deveria passar ainda muitos anos no presidio, berfa�ão. Entre+anW, as creio que nunca sonhou com a li

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e se acomodara a realidade, era menos por bom cora�ao por esp¡rito de disciplina, - o que para ele dava no mo. Esse bom sujeito m'e amparou, de inicio: encheu-me e conselhos, prestou-me grandes servi�os, mas algumas ~ es, confesso-o,.me provocava um aborrecimento profundo: agravava, com a sua presen�a, a minha desmedida fendencia para a angustia, essa mesma angustia que procurava esquo- er, quando dele me aproximava. Havia momentos em quo-eu tinha sede de ouvir palavras vivas, mesmo rudes, -mesmo impacientes, mesmo duras-. poderiamos desabafar juntos sobre a desgra�a do nosso destino*, ele, porem,- calava-se e faz¡a-s.e indiferente, ou então narrava minuciosamente a re- vista militar que tinha sido feita no ano tal, citava os nomes e o sobrenome do chefe de divisão, narrava a safisfa- �ão ou o descontentamento testemunhado por esse perso- nagem, discriminava as confinencias +rõcadas. Tudo isso em voz igual, mon6+ona, como agua que escorre gota a gota. Animava-se so um pouquinho mais quando me contava que, em retribui�ão ao papel por ele desempenhado em não sei que acontecimento, no Caucaso, juigaram-no digno de receber a condecora�ão de Santa Ana. Nesse minuto, sua voz se +or-- nava extraordinariamente grave e seria: baixava-a uma oitava, e assumia um ar misterioso para dizer: "Santa Ana". Então, durante pelo menos +res minutos, guardava severo silencio. Durante o primeiro ano passei por instantes absurdos em que, d� chofre, eu odiava quase, e sem o menor motivo, o coitado Akim Akin---ii+ch: e, en+3o, amaldi�oava em silencio a ma sorte que nos fizera dormir vizinhos, na mesma tarimba. Passada uma hora, envergonhava-me dessa irri+a�ão. Alias, so a DOSTOIEVSKI DOS MORTOS RECORDA�OES DA CASA 363 sofri no. primeiro ano. Depois acos+umei-me ao genio de Akim Akimi+ch e deixei de sofrer dos antigos acessos de loucura. Acho que nunca brigamos abertamente. Alem desses tr�s russos,' tive como companheiros de infortunio mais oito fidalgos - todos polacos. Travei rela-#

-�ões muito agradaveis com alguns deles, mas não com todos. Os melhores eram doentios, exigentes, impacientes ao mais alto grau. Com dois desses acabei rompendo definitivamente rela�ões. Tr�s, apenas, eram realmente pessoas de instru�ão: B-ski, M-cki e o velho J-ki, outrora professor de ma+ernafica, ¢timo velho, muito original e muito pouco inteligente, ape- sar. do seu saber. M-cki e B-ski eram inteiramente diversos um do outro. Com M-cki eu me entendi logo de inicio, e nunca trocamos uma palavra mais aspera; estimava-o muito, mas quanto a lhe querer bem, a me afei�oar a ele, disso nunca fui capaz. Profundamente azedo e desconfiado, ele conser- vava contudo um grande dominio sobre si proprio. Esse controle proposi+al, - talvez excessivamente proposital -

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era justamente o que me desagradava: sentia-se que jamais, por amor de ninquem, ele poria sua alma a nu. Entretanto, talvez eu me engane, pois ele tinha uma natureza forte e nobre ... Sua habilidade ex+raordinaria, talvez um pouco iesuifica, sua reserva nas rela�ões com os outros, +raiam um profundo ceticismo. Todavia aquele c�tico mantinha uma f� -em certas esperan�as. Essa ,¡riaBalavel em certas convic�ões, , :'dualidade representava o seu tormento. Apesar do seu +ato, ~:,v¡via em guerra aberta com M-cki e T-ski. B-ski era doente. -~predispos+o a fisica, irri+adi�o, nervoso, porem, no fundo, ge- 11, Reroso e bom. Sua irritabilidade o +ornava, ...s vezes, tão caprichoso quanto uma crian�a. NSo me pude acostumar ao seu genio, o afasfei-me de B-ski, sem contudo deixar de o aprec .Com M-cki, jamais tive um rompimento as claras, ~1~ iar. ~1~ ~ irias não gostava dele. Por causa de B-ski afas+ei-me fam- bem de T-ski, aquele rapaz de quem ia falei no capitulo pre- dl cedenfe, a prop6si~o da nossa queixa. isso me aborreceu#

364 DOSTOIEVSKI muito, porque T-ski, embora de instru�ão precaria, e~.i valen- te, generoso, encantador. Adorava B-ski, venerava-o tanto, que todos os que com ele rompiam, +ornavam-õr au+ornatica- mente seus inimigos. Separou-se +ambem de M-cki, mas dificilmente se resolveu a isso. Devo notar que todos aqueles homens tinham o moral enfermo, o genio amargo, o tempera- menfo sombrio. E isso se concebe: o presidio era para eles mais penoso que para nos. Estavam muito longe da patria, alguns haviam sido deportados por muito tempo, dez, doze anos. E, cousa mais grave, vencidos por um preconceito indesfrufivel, não viam nos for�ados senão animais ferozes, e não podiam nem lhes queriam reconhecer nenhum sinal de humanidade. Cousa compreensivel fambem: o seu destino, a for�a das circunsfancias, os lavava por esse carninho; o sofrimento os sufocava. Afaveis com os circassianos, os tarfaros, com Isai Fomi+ch, fugiam com horror de todos os clarriais de+en+os. SO o velho crente de Sfarodubov lhes conquistara a estima. Entretanto, cousa nofavel, durante todo o meu tempo de presidio, nunca nenhum dos outros presos lhes censurou a origem, nem a religião, nem as convic- �ões, como o faz frequentemente o nosso povo nas suas rela- �ões com esfrangeiros. sobretudo com alemães, vitimas prin- cipais de zombarias. Nossos for�ados mostravam muito mais respeito pelos polacos que por n¢s, russos; raramente lhes atiravam remoques, cousa em que alias os polacos não se dig- navam reparar. Mas voltemos a T-ski. Fora ele quem, por ocasião da sua fransferencia para o nosso presidio, carregara nos bra�os durante quase toda a noite o seu amigo B-ski, de saude e cons- fifui�ão debeis, extenuado ao cabo de meia jornada. O lugar para onde os deportaram fora a principio U-gorsk (1)

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onde, segundo contavam, viviam bem, pelo menos muit¡ssimo melhor que entre nos. Como, porem, tinham iniciado cor- respondencia - ali s inocenfissima - com exilados de outra (1) Sem d£vida o autor se refere a Ust-Kamenogorsk, na prov¡ncia de Semipa- latinsk. (N. de H. M.) RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 365 cidade, as autoridades julgaram necessario transferir os fr�s para a vigilancia direta do nosso comandante superior. A+6 a chegada deles, M-cki vivera s¢; quanto não devera ter so- frido, durante esse primeiro ano de deporta�ão! Todos os nossos presos pol¡ticos eram jovens. Apenas J-ki, aquele velho de quem ia falei, que vivia eternamente a rezar, -chegava aos cinquenta anos. Esse homem, decerto#

hor¡radissimo, mostrava algumas singularidades. Seus compa- nheiros B-ski e T-ski não o apreciavam; não lhe falavam quase nunca, apodavam-no de teimoso e ferino. Não sei aM que ponto tinham razão. Um presidio, como qualquer outro lugar onde as pessoas estão reunidas ... for�a, e não esponfanea- mente, parece-me lugar adequado ao nascimento de questões e odio; muitas causas para isso concorrem. Ali s, J-ki real- mente era pessoa de esp¡rito obtuso, desagradavel; nenhum dos companheiros com ele se entendia. Nunca brigamos, porem nossas rela�ões nunca foram ¡nfimas. Devia ser bom matem tico. Lembro-me que um dia se esfor�ou, na sua lingua semi-russa, por me explicar um sistema asfron"mico de sua inven�ão. Disseram-me que outrora ele imprimira uma obra sobre esse assunto, mas que todo o mundo cient¡fico o levara na tro�a. Talvez tivesse o juizo um pouco incerto. Passava dias inteiros a orar, de joelhos, o que lhe conquistara o res- peito de todo o presidio, respeito que conservou ate ... morte, pois morreu no- nosso hospital, sob minhas vistas, ao fim de tormentosa molesfia. Conquistara a venera�ão dos for�ados logo no dia da sua chegada, devido a uma his- foria que houve entre ele e "Oifo olhos". Durante a viagem entre U-gorsk e nossa fortaleza, não haviam raspado a cabe�a nem a cara dos deporfados; a barba lhes crescera, e como foram levados diretamente para o maior, este, ao v�-los, enfu- receu-se ante aquela ignominiosa infra�ão ... disciplina, da qual entretanto eram todos inocentes. - Olha essas caras! rugiu o chefe. Parecem vagabun- dos, bandoleiros!#

866 DOSTOtEVSKI Por essa �poca. J-ki ainda compreendia o isso muito." mal, pensou que lhe perguntavam: "Quern sã voc...?" e

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respondeu: - Não s6mos vaga un os, somos deportados pol¡ticos. - O que? Ainda vens com insolencia? berrou o maior. Para o corpo da guarda! Cem vergastadas! Fustigaram o velho. Ele se estirou sob as varas, mordeu,' a mão, e recebeu o castigo sem um grito, sem ao menos se mover. Nesse in+erim, B-ski e T-ski chegavam a caserna. M-cki os esperava ... porta. Aperfou-os nos bra�os, embora jamais os houvesse visto. Revoltados com a recep�ão do major, eles lhe contaram o que acontecera a J-ki. Ou�o ainda M-cki a me narrar a his+oria: "Eu estava fora de mi,%-, j não me continha mais, de tanta furia, tremia de febre. Fui esperar J-ki a entrada; deveria voltar diretamente do corpo da guarda, onde estava sendo fustigado. De repente, abri- ram a porta. Sem olhar para ninguem, J-ki, descoberto, os labios palidos e tr�mulos, passou diante dos presos que esta-' vam no pafio e que 16 sabiam que se havia fustigado um barine. Entrou na caserna, foi para o seu lugar, dep .R&- sem dizer palavra, ajoelhou-se e come�ou a rezar. Os fdr�ã- dos sentiram-se não s6 surpresos, mas comovidos. Quando vi aquele velho, aquele homem de cabelos brancos, separado da esposa, dos filhos, que ficaram todos na ferra natal, quando o vi ajoelhar-se e rezar ap6s a iniqua puni�ão, uma c61era ferrivel me sufocou; corri para +ras das casernas, e durante duas horas -Fiquei 16, embrufecido, como bebedo." . --- Desde então, os for�ados conquistados por seu silenci , o 'debaixo do a�oite, mostraram por J-ki uma considera�ão toda especial. Sejamos justos, entretanto, e não julguemos por esse exemplo a conduta da adminisfra�ao para com os deportados de origem nobre, russos ou polacos. Ve-se apenas que um homem mau, se e o comandante, pode agravar singularmente a sorte dum exilado quando este lhe desagrada. Mas, con- fessemo-lo, o alto comando da Siberia. do qual depende a#

i I V RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS , 369 a conduta dos subalternos, d' provas de discernimento no que se refere aos deportados dessa especie; em certas oportu- nidades, at�, por causas bem claras - lhes mostra mais indulgencia que aos outros. Em primeiro lugar, esses chefes tambern são fidalgos; em segundo, citam-se casos em que os nobres, de preferencia a receberem os a�oites, se atira- riam aos execu+ores, o que acarretaria lamentaveis consequen- cias; em terceiro lugar, de uns trinta e cinco anos para ca,

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~% a Siberia recebeu uma grande quantidade de fidalgos (2). NEsses barines conquistaram o respeito geral e se fizeram tão apreciados que no meu tempo, gra�as a um habito j antigo, a administra�ão encarava os criminosos de origem nobre com olhos bem diversos dos que tinham pelos deportados comuns. Essa atitude passara do alto comando aos chefes subal+ernos, os quais calcam seus modos e atos pelos dos superiores. Entretanto, muitos dentre os inferiores criticavam sem rodeios o procedimento dos chefes em rela�ão aos nobres. Ficariam encantados se lhes fosse dada carta branca, em vez de se sentirem assim coagidos. Tenho pelo menos fortes razões para crer nisso, -e ei-las aqui: a segunda categoria do pre- sidio, a qual eu pertencia, e que era composta por for�ados outrora servos, submetidos a autoridade militar, era infinita- mente mais severa que as duas outras, isto e, a terceira - (trabalhos de usina) e a primeira (trabalhos de minas); e isso nao s6 para os nobres, mas para todos os for�ados, precisa- mente porque sua organiza�ão milifarizada se identificava ... das companhias correcionais da Russia. O regime militar � mais severo, a ordem e mais esfrita, nunca se dispensam as grilhefas, nem os vigilantes, nem os ferrolhos, o que nao se ve com rigor id�ntico nas outras categorias . Era pelo menos ~... o que afirmavam os nossos for�ados, e não faltavam enfen- didos entre eles. Teriam passado contentes para a primeira categoria, -que a lei considerava no entanto como a mais penosa, e mais de um, ate. -,onhava com essa mudan�a, (2) O autor refere-�e novamente ac "decembristas". (N. de H. MA I I#

DOSTOIEVSKI Aqueles dentre os nossos que tinham estado nos presi- os da Russia, falavam a seu respeito com horror unanime; arantiam que, em compara�ão, a vida na Siberia era um pa- iso. Se, pois, apesar da severidade do noslo regime militar da presen�a do propric, governador geral, se apesar de mor de que alguns funcionarios, levados por excesso de lo, por inveja ou por maldade, mandassem relatorios se- retos sobre as trangress6es de um ou outro chefe, - se essas circunsfancias ainda se encaravam os criminosos no- r�s com mais benevolencia que os outros for�ados, deveriam ra+6-los com muito maior indulgencia nas duas outras se�ões. Dado o lugar em que eu me encontrava, creio poder eduzir o que se passava em focla a Siberia. As noticias, as arrafivas que me chegaram,a esse respeifo, por interm�dio os for�ados da primeira e da terceira categoria, confirmam inhas conclusões. Na realidade, a administra�ão dava para onosco provas de certa habilidade. Nos não gozavamos, � laro, de imunidade nenhuma, no que se referia ao +rq~)alho e reclusão: a mesma farefa, as mesmas grilhe+as, os, mesmos ferrolhos; tudo, conosco, era igual ao dos demais for�ados. Era mpossivel agir de outra maneira: sei que numa �poca pouco longinqua os delatores, os intrigantes, os cavadores de minas sob os p�s dos outros pululavam na cidade, e a administra�ão

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se mantinha aler+a-, considerava-se um crime qualquer inclul- gencia com certa classe de de+en+os. No medo de se pre- judicarem, de perderem o lugar, os chefes nos tratavam pois do mesmo modo que aos outros for�ados: mas faziam exce- �ões quanto as puni�ões corporais. A falar verdade, seria- mos fustigados direitinho, se o merecessemos, isto e, se corne- 1 fessemos a menor falfa; o regulamento exigia que a igual- dade ... Entretanto, não se atreveriam a nos punir sem motivo. E a puni�5o sem motivo não era nenhum mito e permitia a certos chefes subalternos, por demais inclinados ao zelo excessivo, aplica-la a torto e a direito. Soubemos que, ao infeirar-se do sucedido com o velho J-ki, o governador se indignara com o maior, e o intimara severamente a conter-se. RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 371 Todos me falaram nisso. Sabiamos que o maior levara uma reprimenda do governador geral em pessoa, - contudo, o -governador tinha confian�a no maior. E o nosso tirano nSo se esquecera disso. Teria muito gosto em fustigar M-cki, a O~ ~ 11 quem odiava, por causa das dela�ões de A.; mas nunca con- i" seguiu satisfazer esse desejo, a despeito das provoca�ões que#

lhe fazia, da espionagem a que o submetia. Toda a cidade depressa ficou ao par do caso de J-ki, e o maior teve confra si toda a opinião p 1 .---£blica; muitos o censuraram, alguns ate lhe 16, 1~n 1 afronfas. Recordo muito bem o meu primeiro enconfro com o maior. Durante a nossa estada em Tobolsk, +inham-nos con- fado ferriveis hisforias sobre o genio pavoroso desse homem. Alguns fidalgos deporfados, que moravam em Tobolsk havia vinte e cinco anos, e nos vieram visifar varias vezes enquanto descansavamos da jornada, fizeram questão de nos prevenir, para que +orriassemos cuidado. Tinham fambem nos prome- tido procurar, por in+ermedio de varias pessoas, poupar-nos ...s persegui�ões do maior. E realmenfe escreveram s fres filhas do governador geral, vindas da Russia em visita ao pai, e que provavelmente lhe falaram em nosso favor. Mas que poderia fazer o governador? Simplesmente advertir o maior de que mosfrasse mais composfura. Foi pelas fres horas que meu companheiro e eu chegamos a cidade: os soldados da escolfa nos levaram direfamente a presen�a do firano. Ficaffios em p�, esperando-o, na an+ecamara. Ja haviam prevenido o sub-oficial. Assim que esfe apareceu, surgiu tamb�m o maior. Aquela cara vermelha�a, avinhada, hosfil, nos causou uma impressão dolorosa: parecia uma aranha feroz pronfa a devorar uma pobre mosca, presa na feia. Teu nome? pergunfou ao meu companheiro. Falava

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em voz corfan+e, desfacada, que visava produzir um deter- minado efeifo. Fulano. E tu? continuou ele, dirigindo-se a mim, e fixando-me atrav�s dos ¢culos. i,,#

372 DOSTOIEVSKI - Beltrano- - Sub-ofici¢li Leva-os imedi citam ente ao Presil-3i01 1 . 1 isto e, metade devem raspar cabelo e barba como CIVIS - a. QUe capo- da cabe�a. os ferros serão mudados amanhi tes são esses, de onde v�rn? indagou de chofre, avistando os capotes cinzentos, com c¡rculos amarelos nas costas, que nos haviam sido entregues em Tobolsk, e nos quais estavarnos vastidos, sob a inspe�ão dos seus oculos fuzilantes. - � um- forme novo? ... Decerto esta em estudos? ... Ordem de Petersburgo? ironizava, fazendo-nos girar cada um por sua vez. . . - Não trazem nada consigo? perguntou depois a um dos guardas que nos comboiava. - Tem as suas proprias roupas, Excelencia, respondeu o guarda, que se endireitou logo, e ate mesmo estremeceu de leve. Todos o conheciam, todos o temiam. - Tomem conta de tudo: deixem apenas a ro~upa bran- ca. Se a roupa de baixo for de cor, e não branca, +ornem +arribem. O resto sera vendido em leilão. O dinheiro ser inscrito na receita. Um for�ado não possue nada, acrescen- +ou, fitando-nos com severidade. E cuidado, porfem-se berni Não quero ouvir nada, senão ... castigo cor-po-rali Ao menor delito, - as varas1 Por falta de habito, aquela recep�ão me deixou meio doente durante quase toda a noite. O que vi depois no interior do presidio, so me fez agravar o mal-estar-, todavia ia falei nisso tudo. Acabo de dizer que eramos tratados em p� de igualdade com os outros for�ados. Uma vez, entretanto, procuraram nos auxiliar; durante +r�s meses consecutivos fomos emprega- dos, B-ski e eu, como secrotarios no escri+orio de engenharia. A cousa foi feita em segredo, por ordem do engenheiro-che- fe, - quer dizer, aqueles que deveriam saber da nossa pre- sen�a Ia, fingiam ignora-la. O caso se passou sob o comando do feriente-coronel G-kov, que nos caiu por assim dizer do c�u, mas que demorou muito pouco tempo - seis meses no RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 373 m xirno, se bem me lembro, e retornou a Russia deixando uma recorda�ão irdelevel no cora�ão de todos os for�ados. -Pode-se dizer que o amavam, que o adoravam, se cabe aqui

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esta palavra. Ignoro como ele o fizera, porem os soubera con- quisfar a primeira vista. "Um pai, um verdadeiro pai!" excla-#

mavam os presos a cada instante, vendo-o dirigir os trabalhos de engenharia. Era um homem de pequena estatura. alegre, de*olhar atrevido, farrista despudorado, que se mostrava para com os for�ados de uma amabilidade que ro�ava ... ternura. Amava-os realmente como um pai. Não sou capaz de explicar as razões desse amor, mas o fato e que ele não podia avistar um detenfo sem lhe dizer uma palavra afa- vel, sem rir e brincar com ele; e agia sem mostrar o minimo esp¡rito de comando, nada que lembrasse o chefe, ou apenas a 1 condescendencia do chefe. Senfia-se realmente nele um camarada, um igual. E apesar desse dernocrafismo intenso, nem uma umca vez os for�ados se atreveram a lhe faltar com o respeito, ou a menor familiaridade. Apenas, o rosto dos clefen+os se iluminava quando avistavam o comandante: fira- ,vam o gorro, sorriam amplamente, s6 ao v�-lo chegar. Se o comandante lhes dirigia a palavra, parecia que lhe� dera um presente! Eis os efeitos da popularidade! Tinha um olhar de crian�a, caminhava com grandes passadas. "Parece uma aquia!" comentavam os for�ados. Ele não os podia auxiliar, 4 claro, não lhes podia minorar a sorte porque dirigia apenas , os trabalhos de engenharia, executados segundo formas legais, ,-~, os+abelecidas ia defi nifiva mente. Mas se por acaso encon- trava um pelotão de for�ados cuja tarefa terminara, em vez de os prender inutilmente, mandava-os embora antes do rufar do tambor. Os for�ados adoravam a confian�a que ele lhes ,testemunhava, seu esp¡rito sem mesquinharias, seu procedi M, men+o irrepreensivel nas suas rela�ões de chefe para com os subordinados. Se o comandante perdesse mil rublos e o mais empedernido dos nossos ladrões os encontrasse, creio que os devolveria. Sim, tenho certeza disso. Imagine-se pois com que profunda emo�ão souberam que o "nosso" comandante#

374 DOSTOIEVSKI esfav8 rompido de fogo e sangu� com o odioso maior! Foi . no primeiro mes depois da sua chegada. O maior, não sei quando, fora companheiro de armas do comandante. Quando se fornaram a encontrar, apos longa separa�ão, come�aram divertindo-se juntos, todavia, em consequencia de uma dis- cussão, G-kov ficou inimigo figadal do an+i~o camarada. Correu ate o rumor de que haviam chegado a vias de fato, cousa muito possivel com o nosso maior, que finha a nião leve. Assim que os for�ados souberam da historia, sua alegria chegou ao auge: "Claro que "Oifo olhos" não poderia se dar com um homem daqueles! ... Nosso comandante e um aguia, enquanto o maior e ... !" - a palavra que o,qualificava fere profundamenfe a decencia. E os presos desejavam apai- xonadamente saber qual dos dois homens vencera no pugilato que lhes era imputado. Se o boato fosse desmentido, teriam

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sofrido um enorme desapontamento. "Decerto o coman- dante escangalhou o maior", diziam; "ele pode ser pequeno,k mas não sabe o que e medo; o outro e capaz de se fer metido V debaixo da cama, para se esconder!" Porem em breve G-kov foi embora, para lufo do pres¡dio infeiro. E' preciso reco- nhecer que os comandanfes de engenharia eram todos exce- lentes pessoas. Durante o meu tempo, mudaram-ri s fres ou quatro vezes! "Nã*o, nunca veremos um igual!" afirmavam os for�ados. "Era uma aguia, um anjo da guarda!" Foi pois ess , e G-kov que nos mandou, a B. e a mim, +ra- balhar algum tempo no escriforio, por simpatia ante os sofri- men+os dos deporfados nobres. Depois de sua partida, nossa situa�ão ficou de certo modo regularizada. Alguns oficiais de engenharia (um deles, sobretudo) eram Muito bondosos conosco. Dev¡amos copiar rela+orios, e nossa caligrafia ia melhorando, quando de sUbi+o veio ordem superior de+ermi- nando que volfassemos imediatamente as nossas ocupa�ões anteriores. Alguem se dera ao trabalho de nos denunciar! Não nos entristecemos, porque a vida nos escri+orios come- �ava a ser fatigante. Depois, durante dois anos seguidos, ficamos nas oficinas. Conversavamos, falavamos das nossas RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 375 esperan�as, das nossas cmvic�ões. O meu excelente B. finha as vezes opiniões estranhissimas, muito exclusivas. Com frequencia pessoas infel~genfes se obsiinam em defender espantosos paradoxos; e que sofreram tanto por suas id�ias que lhes seria por demais penoso, quase imposs¡vel, renunciar a elas. A menor obje�ão feria B., que sempre me replicava#

---comazedume. Talvez muitas vezes ele enxergasse mais claro que eu, mas por fim tivemos de nos separar, cousa que fez sofrer enormemente, porque finhamos muitos ponfos COMUM. Entretanto, com o passar dos anos, M-cki tornava-se cada 3/4ez mais sombrio. O desgosto o consumia. Nos primeiros meses de minha deten�ão, ele era mais comunicativo, mostra- 1 va mais claramente seus pensamentos. Come�ava então seu ,,, ferceiro, ano de pres¡dio. A principio inferessava-se principal- menfe pelo que se passara no mundo durante os Ulfimos dois anos; inferrogava-me, ouvia, apaixonava-se. Mas pouco a pouco, fornou-se mais fechado, ia não se expandia. O exfe- rior ardente cobria-se de cinzas. A amargura crescia nele mais e mais. "Je hais ces brigands!" repetia ele em frances, olhando com horror os for�ados que eu j6 aprendera a conhe- �er: nenhuma das minhas explica�ões a favor daquelas cria- furas tinha influencia no seu espiri+o. Ele não compreendia 11 que eu falava, se concordava, distra¡do, nem por isso dei i . , , d pefir no dia seguinte: "Je hais ces brigands!" xava e re , Como frequentemente conversavamos juntos em frances, um

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,,.,-Vigilante dos f rabalhos, o soldado de engenharia Dranichnikov, eipelidou-nos, nSo sei por que, de "os enfermeiros". M-cki s6 se animava quando falava em sua mãe. "Esta velha, doente, gosta de mim mais do que de tudo no mundo, e eu não sei se ainda e viva ou morta! Foi um golpe forte demais para ela, saber que me haviam a�oitado!".. . Como M-cki não era nobre, tivera que sofrer antes da reclusão o casticio corporal. Não o recordava nunca sem trincar os dentes e desviar os olhos. Nos ultimos tempos, procurava cada vez mais a soli- y#

376 DOSTOIEVSKI dão. Uma ocasião. ao meio-dia, mandaram-no chamar em casa do g,;vernador, que o recebeu com um sorriso nos labios: - Então, M-cki, com que sonhaste esta noite? indagou o governador. (Quando ele me perguntou isso, estremec¡, contou m-cki ao voltar. Era como se me traspassassem o cora�ão). - Sonhei que recebia uma carta de minha mãe, res- pondeu ele. - Melhor que isso, muito melhor! replicou o governador. Estas livre! Tua mãe fez uma s£plica, e sua suplica foi levada em considera�ão. Esta aqui a carta dela, e esta aqui a +ua' ordem de soltura; vais deixar imediatamente o presidio! Ele voltou para junto de nos, livido, abaladissimo pela noticia. Felicifarrio-lo e M-cki nos apertou as mãos com os dedos tr�mulos e gelados. Muitos for�ados lhe deram os parabens. Foi ser colono, e ficou na nossa propria cidede, onde lhe arranjaram logo um emprego. De inicio vinha frequ ente- mente nos visitar, e quando o podia, comunicava-noS'-a'S noti- cias: o que mais o interessava era a polifica. Dos quatro outros polacos (fora M-cki, T-ski, B-ski a J-ki) dois jovens, deportados por pouco tempo, eram ignorantes, porem honestos, simples e francos. O terceiro, A-czukovski, era muito vulgar, mas o quarto, 13-m, homem de idade, nos produziu uma impressão abominavel. Não pude compreender a presen�a dele entre aqueles condenados, e ele proprio ne- gava qualquer participa�ão no movimento. Era um alma grosseira, mesquinhamente burguesa, com h bitos e id�ias de vendeiro enriquecido vintem a vin+em. Desprovido de ins- tru�ão, não se interessava por nada, salvo por seu oficio de pintor, no qual era alias um mestre. A administra�ão de- pressa se inteirou das suas capacidades, e toda a cidade o reclamou para decorar paredes e tetos. Em dois anos ele pOs novas em folha quase todas as res¡dencias dos funciona- rios; pagavam-no bem, de modo que nunca lhe faltava di- RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 377 nheiro. Mas o melhor da hisforia foi que lhe concederam

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auxiliares. De tanto o acompanhar, dois dos ajudantes aca- bararr¡ aprendendo o oficio, e um deles, T-czevski, +orrou-se +ão bom pintor quanto o mestre. Nosso maior, que morava numa casa do governo, pediu por sua vez a B-m que lhe pin- tasse as paredes e o teto. B-m se esfor�ou tanto, que nem mesmo a residencia do governador geral se comparava com#

a do maior. Era um velho predio +erreo forrado de madeira, deprepito e arruinado quando visto de fora, porem decora- J9 interiormente como um palacio, o maior ficou radiante ... ESfregava as mãos, contava a quem queria ouvir que ia ca- sar-se: "Com uma. casa assim, que mais posso fazer?" acres- confava em tom grave. E estava encantado com B-m e seus ajudantes. O trabalho durou um m�s, durante o qual "Oi+o olhos" mudou comple+amen+e de id�ia a nosso respeito, e come�ou ate a nos proteger. Levou as cousas tão longe que um belo dia mandou chamar J-ki. J-ki, falou, eu +e ofendi, mandei +e fustigar sem ra- zao; sei disso e o lamento. Compreendes? Eu, eu, o Ia- menfo! J-ki respondeu que compreendia. - Compreendes que eu, +eu chefe, +e mandei chamar, para +e pedir perdão? Sentes isso? Quem es tu, diante de - mim? Um verme! Menos que um verme! um for�ado! E eu, sou maior pela gra�a de Deus (3)! Maior, compreendes bem? Mi respondeu que farribem o compreendia. - Bem, então, agora, fa�o as pazes configo.- mas es+6s sentindo isso, estas sentindo de verdade9 em toda a sua grandeza? Ser6s capaz de o compreender e o sentir? Ima- gina apenas: eu, eu, um major ... E assim por criarife. O proprio J-ki contou a cena. Via-se pois que algo de humano dormia ainda dentro daquela besfa avinhada e feroz. (3) No meu tempo, não s6 o major, como varios outros chefes sub-~Iternos, prin- CiPalmente os que haviam come�ado como soldados rasos, empregavam essa expressão. (Nota do Autor). 26#

378 DOSTOIEVSKI A Se tomarmos em considera�ão suas esfreitissimas id¢ias,'Seu espirifo limitado, devemos convir que aquele gesto não ca- recia de certa grandeza de alma. Todavia, o 61cool confri- buira muito, certamente, para a realiza�ão da cena toda. O sonho do maior não se realizou. Não se casou, em- bora estivesse resolvido a isso, na ocasião em que termi- naram as repara�ões da residencia. Em vez de esponsais,

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foi levado a julgamento e obrigado a pedir demissão. Velhos crimes seus tinham voltado ... tona: ele f"ra outrora comis- sario de policia da nossa cidade. O golpe lhe foi vibrado inopinadamente. A noticia provocou, na fortaleza uma frans- bordante alegria; houve uma festa, uma verdadeira soleni- dade. Contava-se que o maior gemia e choramingava como uma velha. Mas em vão: teve que se resignar, demitir-se, -e pedir reforma. Vendeu a principio a parelha de cavalos ru�os, depois tudo o que possuia, e acabou caindo na mise- ria. Nos o encontravamos as vezes, de sobrecasaca puida, e gorro com tope. Olhava-nos de vies. Porem sei., presfi- gio desaparecera com a farda. De farda ele egr um deus. De sobrecasaca, poderia ser +ornado por um lacaio. Com quanfos outros se da o mesmo! O h6bito e que faz o monge ... Uma evasão ouco depois da demissão do maior, reviraram de alto a P baixo o nosso presidio. Suprimiram os trabalhos for- �ados, e em vez deles, criaram uma companhia corre- cional, segundo o modelo das da Russia. Isso significava que não haveria mais na fortaleza condenados e deportados a gal�s da segunda categoria; s¢ iam para 16 presos mili- fares, isto 6, homens privados dos seus direitos civ¡s. Eram soldados iguais aos ouf ros sodados, mas que haviam sido fustigados e condenados a seis anos de prisão, no m�iximo; quando libertos, voltavam, de pleno direito, para o regimento de onde haviam saido. Entretanto, os que apareciam na qualidade de reincidentes, eram como outrora condenados a vinte anos. Antes dessa transforma�ão nos ia possu¡amos uma se�ão militar, mas os soldados eram deportados para ta#

so DO STO I EVSK I or falfa de oufro sitio proprio; contudo, agora, essa Se�O9 ornara confa do presidio todo. � claro que os for�adm os aut�nticos, os que estavam pr'¡vados de todos os seu's ireifos, raspados a navalha e marcados com ferro em brasa, icaram 16 ate ... expira�ão da peria; como não eram, porem, razidos novos contingentes dessa especie, dentro de dez anos a forfaleza não deveria conter mais nenhum for�ado civil. A se�ão especial fambem foi conservada, e as vezes chegava para ela um criminoso imporfariM, condenado pelo conser lho de guerra, ... espera da organiza�ão, na Siberia, de trabalhos for�ados particularmente rigorosos. Desse moclo, nossa vida continuou exatamente como no passado: a.mesma disciplina, o mesmo trabalho, e pouco mais ou menos o mesmo regulamento. S6 a adminisfra�ão fora renovada e compl'- cada. Nomeou-se um oficial superior, comandante de com- panhia, com quatro oficiais que sucessivamente ficavam com a guarda. Subsfifuiram-se os invalidos por doze sub-oficiais- Dividiram-se os defenfos em esgiadras de dez homens, �g- mandadas cada uma por um �~Abo escolhido enfre eles pro- prios, - cabo apenas no nome, segundo e facil de imaginar. Como era justo, Akim Akimifch foi logo um dos cabos. Toda essa nova organiza�ão, - a forfaleza, os "cabos", os for-

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�ados -, continuou como antes sob a autoridade de um go- vernador. E as cousas ficaram nisso. De come�o, os for�ados, se agitaram muifo, discutiram, procuraram esfudar os novos chefes; mas quando vi~am que na realidade tudo continuava imufavel, aquie+aram-se, e a vida prosseguiu o seu curso. Pelo menos finhamos um lucro: conseguiramos nos desemba- ra�ar do maior. Cada um de n6s respirava mais livremente, e recuperava coragem. O pavor desaparecera, todos so- biam que agora, em caso de necessidade, a gente poderia se explicar com os chefes, e, salvo um erro, os inocentes n~i9 pagariam pelos culpados. A venda de vodca continuou d mesma maneira, apesar da substitui�ão dos invalidos poir sub-oficiais. Esses sub-oficiais revelaram-se, na maioria, ho- mens serios e de juizo, capazes de compreender a situa�ão. ft RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 381 E' verdade que a principio houve um ou dois que tentaram frafar-nos como a soldados, mas depressa compreenderam com quem lidavam. Os mais recalcifrarifes foram corrigidos pelos proprios for�ados, o que provocou alguns incidentes. Tenfavamos os sub-oficiais oferecendo-lhes bebida; depois, quando lhes passava a bebedeira, a gente os fazia compre-#

¢ncler, ao nosso modo, que se podiam embriagar-se com os for�ados, não valiam, por consequencia ... E os sub-oficiais acabaram por olhar com indiferen�a, ou melhor, acabaram esfor�ando-se por não enxergar mais as fripas cheias de vodca. Melhor que isso, faziam como oufrora os invalidos, iam ao mercado fra-zer kalafchi para os presos, carne e outros artigos, tudo que poderia ser introduzido no pr�sidio sem lhes rebaixar muito a dignidade. Para que servia aquela transforma�ão em prisão militar? Não o sei. A mudan�a se operou no fim de minha pena, contudo five que viver ainda dois anos sob o novo regime. .--- Devo descrever aqui toda a minha vida durante esses anos de prisão? Não o creio. Se devesse confar por ordem tudo que vi e senti durante esse fempo, feria que duplicar, ou af� mesmo +riplicar o n£mero desfas p ginas. Ademais, a descri�ão se +ornaria fastidiosa . Todos os acontecimentos assumiam um s6 e £nico aspecto, sobretudo se, pela leitura dos cap¡tulos anteriores, o leitor 16 fez uma id�ia suficiente- mente clara da vida dos for�ados de segunda categoria. Eu gostaria de descrever num quadro impressionante pela ve- racidade a nossa fortaleza e tudo que sofri durante longos anos. Consegui esse fito? Ignoro-o; eu proprio não o po- deria julgar. mas sinfo que posso terminar aqui; revolvendo essas lembran�as, a magoa me sufoca, e como poderia eu re- cordar todas as minucias daquela vida? Os £ltimos tempos por assim dizer desbotaram na minha memoria. Muita cousa esqueci de todo. En+refanfo esses anos tão umformes ar,

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rasfaram-se todos, sombrios, -tristes. Tenho lembran�a de longos dias de fedio, semelhantes ...s gotas -que, depois da chuva, caem de uma em uma dum te+o. Um intenso, ardente f i#

382 DOSTOIEVSKI desejo de ressurrei�ão, de renovamento, de vida fransfor- mada, me dava coragem para ter paciencia, e esperar. No fim, eu conseguira me enrijecer; esperava a passagem de cada dia, para o descontar; embora me restasse ainda um bom milhar deles a passar no presidio, era sempre com sa- tisfa�ão que eu cortava um algarismo a esse milhar. Cada dia decorrido, acompanhava-lhe o enterro, via-o descer no +umulo, e, alegremente, me preparava para a chegada do seguinte; dizia a mim mesmo que, +Örando-se um de mil, fi- ,cam apenas novecentos e noventa e nove. Lembro-me-tam- bem de que, cl'urante todo esse tempo, apesar das centenas de companheiros que me cercavam, eu vivia numa solidão estranha, e estimava essa solidão. S6 com minha alma, con- siderava minha vida anterior, analisava-a nos mais ¡nfimos detalhes, e me condenava severamente, sem piedade. Em certos momentos, ate, aben�oava a sorte que me concedera aquela solidão, sem a qual não poderia meditar assim, nem fazer uma severa revisão do passado. Que esperan�as me germinavam então, no peifo! Eu pensava, resolvia, jurava que na minha vida futura não haveria nenhum dos erros, ne- nhuma das quedas de outrora: tra�ava um programa com- ple+o, ao qual prometia firmemente obedecer. Desenvolvia em minha alma a f� cega de realizar, de poder realizar esse programa. Esperava, ansiava pela liberdade, queria ensaiar minhas for�as numa nova luta. *As vezes, uma impaciencia fe- bril me constrangia ... Mas �-me muito doloroso recordar isso tudo, que, alias, so interessa a mim ... Se o descrevo, � porque suponho que me hão de compreender, hão de sentir a mesma, cousa todos os que são atirados numa prisão, na flor de Mocidade e do vigor. Contudo, para que insistir nesse assunto? E para não terminar assim, de chofre, vou ainda narrar alguma cousa. � o melhor que posso fazer, afim de não terminar estas notas de,modo excessivamente brusco.' . Ocorre--me que talvez alguem pergunte se seria im- possivel um preso fugir do presidio, se durante tantos anos RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 383 nenhuma evasão se deu. Como j o contei, um defento que passou dois ou fres anos numa fortaleza, come�a a dar valor a esse lapso de tempo, e p6e-se involuntar¡amenfe a pensar que melhor sera ficar ali at� ao fim; sem trapalhadas, sem perigo; terminada a pena, sair como colono livre, legal- mente. Mas um c lculo dessa natureza so pode ocorrer aos

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for�ados cuja condena�ão 6 curta. Os que +em a sua frente longos anos de deten�ão, estão prontos a correr todos os#

riscos. Entretanto, no nosso presidio ninguem se evadia, e seria dificil dizer por que; sem duvida, deve-se atribuir essa reserva ao medo inspirado pela inflexivel disciplina militar, ou ... situa�ão da cidade da qual dependiamos - em plena estepe. Houve, todavia, um caso de evasão, no meu tempo: dois for�ados a tentaram, ambos criminosos de impor+an- *ão, A., Depois da partida do nosso maior, o seu esP, viu-se comple+arnen+e abandonado e sem prote�ão. O +em- po lhe endurecera o cara+er: muito mo�o ainda, era c¡nico, malicioso, sem escrupulos. decidido a tudo. Se lhe houves- sem dado a liberdade, continuaria decerto a exercer a espio- nagem e a fazer dinheiro . de todas as maneiras mas sem se deixar apanhar estupidamente como da primeira vez, e sem pagar a tolice com trabalhos for�ados. La no presidio, pra- ticava para o futuro, fabricando passaportes falsos. Alias, nao posso garantir muito isso, porque ouvi a his+oria da boca de outros for�ados: a lhes dar credito, ele 16 exercia o oficio de falsario na cozinha do maior, nos tempos em que ia l , o que lhe produzia pingues rendimentos. Em suma, estava resolvido a tudo para mudar de sorte. Pude obwrv6-lo bem: e o seu cinismo, que raiava a mais revoltante abje�ão, ... mais fria audacia, desperfava-me um horror invencivel. Creio que tendo vontade de beber uma garrafa de vodca, o não podendo obt�-la senão gra�as a um assassinato, ele não recuaria diante do crime, con+an+o que o pudesse exe- cufar em segredo, escondido de todos. No presidio, apren- dera a calcular. Foi na sua pessoa que Kulikov, da se�5o#

34 DOSTOIEVSKI especial. fixou a escolha para companheiro. ja falei em Kuli- kov. Homem maduro, manfinha-se forte, apaixonado, ativo, com capacidades extraordinarias e diversas. Parecia dessas pessoas que conservam ate ... mais extrema velhice a von- fado e a for�a de viver. Eu me sentiria surpreso se o visse resignado a ficar ali, -como os outros. Porem Kulikov j to- m ra a sua decisão. Qual dos dois teve mais influencia sobre o oufro? Ignoro, mas ambos se equivaliam muito bem. Feitos um para o outro, depressa estreitaram a amizade: pen- so que Kulikov contava com A. para lhe obter um passaporte. A. era de nobre familia, e isso autorizava +odas as esperan- �as - com a simples condi�ão de conseguirem chegar ... Russia. De qualquer modo, essas esperan�as deveriam ir mais longe que a simples rotina da vagabundagem siberiana. Kulikov, comediante nato, poderia desempenhar muitos pa- p�is, na vida: pelo menos contava com a variedade das suas aptidões. O presidio sufoca pessoas dessa especie. E com- binaram portanto a evasão. Mas sem a conivencia do vigilante, qualquer fuga seria

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impossivel. Era preciso en+enderem-se com o bom-em. Num dos batalhões sediados enfre n¢s, encon+rava-se um polaco energico, digno falvez de melhor sorte, individuo de certa idade, porem severo, serio. Enviado para servir na Siberia, quando mo�o, a saudade o venceu, e o rapaz deserfou. Foi apanhado, fustigado, e condenado a dois anos de bafalhão disciplinar. Quando o devolveram ... fropa, tivera tempo para refletir-, entregou-se ao servi�o com um interesse, um zelo que lhe valeram as divisas de cabo. Tinha uma exagera- da concienc¡a do seu valor; seus modos, suas palavras, res- piravam orgulho, confian�a propria. Muitas vezes, duran- +e todos aqueles anos, eu reparei nele, entre os soldados de nossa escolta. Ali s, os polacos me haviam falado no seu nome. Parece-me que a saudade da pa+ria, a nostalgia, se haviam mudado em odio surdo, irreconciliavel. Esse ho- mem era capaz de tudo, e Kulikov mosfrou faro, escolhen- do-o para cumplice. Chamava-se KoKer. Os +res se con- RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 385 luiaram e marcaram um dia. Estavamos no mes de junho. o clima da cidade era quase umforme, sobretudo no verão: o.calor persisfenl-e ajuda os vagabundos. Como e facil de conceber, de modo nenhum poderiam os cumplices sair di- refamenfe da fortaleza. A cidade fica numa colina, as pro- ximidades são descampadas, e numa extensão bastante vas- ta, floresta alguma prende o olhar. Era preciso pois tro- car de roupa, e para isso tinham que ir ao bairro Onde Kuli-#

kov Ia h muito tempo possuia um esconderijo. Não sei se os seus amigo% do fal esconderijo esfavam +o+almenfe a par do segredo. Podem-se fazer suposi�ões, mas a cousa nunca foi devidamenfe esclarecida. Nesse ano, num dos recanfos do arrabalde, uma rapariga mo�a e agradavel, chamada "Vankan',,a", come�ara carreira: dava grandes esperan�as, - esperan�as que ali s cumpriu em parte. Chamavam-na +am- bem '. Labareda". Decerto essa mulher desempenhou um pa- pel no caso, pois Kulikov, ia ha um ano, fazia loucuras por ela. Nossos homens se apresentaram de manhã a chamada, e fizeram com que os dessem como ajudantes ao for�ado Chilkine, forneiro -e gesseiro de profissão, que esfava enfã'o frabalhando num quartel vazio: os soldados que o habitavam Ja havia muito viviam acampados sob fendas. Koiler arran- jou fambem um gei+o de ser escolhido para a escolfa dos fr�s, mas como para +res for�ados o regulamento exige duas sentinelas, deram a Koiler, soldado antigo e cabo, um recruta que ele deveria iniciar no servi�o. Era mister que os nossos for�ados exercessem uma enorme influencia sobre Koiler e lhe inspirassem desmedida confian�a, para que aquele velho sol- dado, com tantos anos de experiencia, graduado, austero, ajuizado, se resolvesse a acompanha-los. 1 Chegaram ao quartel as seis horas da manh3. O local .~ esfava deserfo. Depois de trabalhar uma hora, Kulikov e ¡

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A. disseram a Chilkine que iriam a oficina, alegando a princ¡- pio que queriam ver nao sei quem, e, depois, que iam apanhar uma ferramenta que lhes faltava. Precisavam agir com as- +ucia - isto e, com naturalidade, enquanto tratavam com.#

U6 DOSTOIEVSKI Chilkine. Chiikine era um desses astutos arfesãos moscovi- tas, inteligentes mas de poucas palavras, de aspecto ~ e descarnado, fei+os para usar a vida inteira o colete e a blusa da moda, no boa cidade de Moscou: pore . m o destino resolvera outras cousas a seu respeito; depois de longas pe- regrina�ões ele acabara caindo em prisão p*petua, na se�ão especial, ou seja, entre os mais perigosos reincidentes da jus~- fi�a militar. Ignoro o ponto de partida de carreira tão Ia- menfavel, mas Chiikine jamais demõnstrava a minima acri- monia, o menor mau humor; de tempos em tempos, embria- -se como uma esponja, todavia, fora isso, seu procedi 1 gava 1-, monto nada deixava a desejar. Como ele não estava no se- gredo e não era nenhum tolo, Kulikov lhe piscou o olho, dando a entender que iria buscar aguardente escondida na oficina., desde a vespera. A id�ia agradou a Chilkine: ficou s¢ 'com o recruta, sem alimentar a menor suspeita. E A., Kulikov e Koller afas+aram-se em dire�ão do +ai arrabalde. Passou-se meia hora. Como os ausentes não retorna- Chilkine, subitamente alarmado, e que - * ita vami wa mu cousa neste mundo, pos-se a refletir, e tanto refle que seri-t, flu que as botas lhe comichavam. Lembrou-s - te' que Kuli- kov se mostrara num estado de esp¡rito anormal. Por duat vezes vira A. -lhe cochichar qualquer -cousa; e nas duas vezo Kulikov respondera ao c£mplice com uma batida de p lpa¡~. 1 1 1 bras significativa: disso Chilkine estava certo, imSiramente,_ certo. KoIler fambem lhe chamara a aten�ão, por~que arit�s, de se afastar com os dois for�ados, perdera tempo a ens¡n~ -', cousas ao recruta, a lhe explicar como deveria agir ner ausencia, fato ins¢lito, sobretudo partindo de homem quela t�mpera. Em suma, quan+o'mais Chilkine exarni as circunsfancias, mais a desconfian�a lhe aumentava. E, mo o tempo ia passando e ninguem voltava, a sua inqu4 �ão acabou por ultrapassar todos os limites. Compr muito bem os riscos que corria, naquele caso- as sUsp, '.wA ,-lflr dos chefes poderiam recair sobre a sua pessoa, acu64 ~ de haver permitido que os companheiros partissem por esta r -l)- I#

RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS

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389 de conivencia COM a fuga. Se demorasse a denunciar o desaparecimento de Kulikov e A., essas suspeitas tomariam ainda maior consisfencia. N3o finha pois um insfanfe a per- der. Então se lembrou de que nos £ltimos tempos Kulikov e A. se tinham tornado amigos intimos, passavam o tempo cochichando juntos, e iam conversar por +ras das casernas, longe de todos os olhares. Recordou-se at� de que esse fato lhe despertara a curiosidade . . Olhou então para a senti- nela; o rapaz bocejava, encostado ao fuzil, e furacava o nariz com o dedo, num'ieito tão inocente que Chilkine não consi- derou oportuno desvendar-lhe os seus pensamentos. Pediu- lhe apenas que o acompanhasse a oficina. Queria saber se os companheiros haviam chegado 16; quando verificou que ninguern os vira, suas duvidas se confirmaram. "Se eles ti- vessem ido apenas beber e divertir um pouco na cidade, como Kulikov o fazia as vezes, porque me esconderiam isso?" pen- sava Chilkine. Resolveu-se então: abandonando o trabalho, ¡rigiu-se ire amen e para o r sidio. Eram cerca de nove horas quando Chilkine se apresen- tou ao sargento e lhe explicou as causas do seu retorno. O sub-c,ficial assusfou-se, e a principio recusou acreditar. Chil- kine, e claro, so lhe apresentou a cousa sob forma de mera suspeita. O sargento voou a casa do maior, o maior cor- reu. ... do governador, e um quarto de hora depois tinham sido tomadas as medidas necessarias. Fizeram um rela+orio ao governador geral. Os criminosos eram de impor+ancia, e dever-se-ia temer uma reprimenda severa, de Peiersburgo. Bem ou mal, A. fazia parte dos condenados pol¡ticos. Quan- to a Kulikov, pertencia a se�ão especial, isto �, ... se�ão dos super-criminosos, da qual af� então ninguern conseguira fu- gir; e alem do mais, era militar. Recordaram que, de acor- do com o regulamento, todos os homens dessa se�ão, quando iam para o trabalho, deveriam levar um e ate dois soldados de escolta. O regulamento não fora pois cumprido, o que agravava o caso. Mandaram-se correios a todas as capi- fais de distrito, as circurivizinhan�as, a todos os povoados.#

390 DOSTOIEVSKI grancles e pequenos. Fez-se conhecer por toda parte a no- ficia da fuga, e foram dados os sinais caraterisficos dos eva- didos; mand,,,,,rn-,e cossacos no seu rastro ... enfim, um Pa- vor horrivel se disseminou. . . Durante esse tempo, no inte- rior da fortaleza, a agita�5o era grande. A medida que iam voltando do trabalho, os for�ados sabiam da noticia, que j corria de boca em boca, e cada um a recebia com uma ale- gria secreta, mas intensa. Todos sentiam o cora�ão lhes bater corri for�a ... Aquela evasão rompip a monotonia da vida no presidio, agitava o formigueiro. Despertava um eco fraternal no peito de todos os de+en+os, vibrava neles certas cordas ha muito tempo adormecidas. A esperan�a, a auda- cia, a possibilidade de "mudar de sor+e", faziam fremir as

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almas. "Se, eles puderam fugir, porque não o poderei eu?" E cada um, a esse pensamento, fitava no vizinho os olhos pro- vocantes, cada um se sentia bruscamente +ornado de orgulho, e encarava de cima os sub-oficiais. � ciaro que imediata- mente apareceram os oficiais. O proprio governador apresen- +ou-se. N¢s nos diverfiamos a grande; encaravamos os che- fes com silenciosa gravidade, e com certo desprezo- "Quan- do a gente quer ... 11 Esperando uma busca, +inhamos cor- rido a esconder o que era nosso; porque ninguem ignorava que, nesses casos, os chefes tratariam de tudo com grande rapidez. E as previsões mos+raram-se exatas: houve um grande reboli�o, puseram tudo de pernas para o ar, pesqu¡- saram individualmente cada preso, sem nada encontrar, 6 l¢gico. A +arde, mapdaram os for�ados para o trabalho sob escolta redobrada. A noite, os oficiais de guarda fizeram rondas continuas. Procederam-se a duas chamadas, contra o costume: e novo reboli�o se regis+ou; mandaram-nos formar no patio para nos contar outra vez, e depois novamente verificaram dentro do alojamento ... A agita�ão andava pois no auge. Mas isso quase não inquietava os presos. Tinham assu- mido ares indiferentes, e como sempre, nesses casos de "Cor- ridas", portaram-se muito bem durante toda a noite. "Pelo 41 RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 391 menos não vão poder culpar a genfei" E por seu lado, os chefes meditavam: "Não terão ficado alguns cumplices aqui?" Foram dadas ordens não s¢ para vigiar os for�ados como para lhes espionar as palavras. isso so os fez divertir:#

"Eles não seriam tão tolos que fossem deixar c£mplices; esses golpes se preparam na surdina. Camaradas do estofo de Kulikov e de A. não vão mostrar rastro, sabem esconder o E' gente que passa por um jogo! Ninguern soube nem viu! byraco de rato, quanto mais por uma porta fechada!" Em resumo, a fama de Kulikov e de A. aumentava sempre; todos ,'~',tinham orgulho por eles; calculava-se que a fa�anha dos dois 1 . % ~,:~passaria a mais remota posteridade, que sobreviveria ao pre- sidio. - São uns mesfresi - E os chefes que pensavam que ninguem pode sumir daqu¡! Agora j estão os dois bem longei acrescentavam ,~ outros. - E estão longel repetia um terceiro com ares impor- ,~fantes- , mas isso s¢ aqueles dois eram capazes de fazerl Não te comparar com eles, hein? Em qualquer outro momento, o defento a quem se diri- -plicado aceso na defesa da propria ia a pergunta teria re

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rira. Desta vez, mantinha um silencio modesto: "E' ver- 'Oade, a gente não � igual a eles; e -preciso passar por muita ousa anfesli' Afinal, irmãos, para que ficar aqu¡? disse um quarto, então ouvira em silencio, sentado sossegadamente na a cozinha. Esfregava a face com a palma da mão e com voz um pouco arrastada e mole, que tra¡a um I~refo, sentimento de satisfa�ão. - Que estamos fazendo . �qu¡? Somos vivos sem vida, e mortos que não foram enter- ,,~,tados, não e mesmo? - O presidio não e uma bota que a gente possa des- Cal�ar ...-toa, não? Ora, Kulikov, entretanto ... , cheio de ardor. replicou um mocinho.#

4 RECORDA�õES DA'CASA DOS MORTOS 393 DOSTOJEVSKI 392 - Kulikov? interrompeu um outro, piscando o Olho com desprezo para o lado do mocinho. Kulikov, meu filho, era Kulikovi Isso significava que os Kulikov não são fabricados as duzias. - Mas A. tamb�m tem o seu valor, não9 - A. e esperto como um gatol E' capaz de enganar ate Kulikov, e obriga-lo a ver a lua ao meio-dia! - Sera que eles ia estão longe? isso e que eu queria saber! E logo se puseram a falar do caminho que os fugitivos poderiam ter percorrido. Que dire�3o +ornariami Para on- de seria melhor encaminha rem-se? Qual a cidade mais pr¢- xima? Descobriram-se for�ados que conheciam a região, e suas explica�ões foram avidamente escutadas. Falaram nos habitantes das aldeias vizinhas, declararam-nos inseguros. Perto das cidades o pessoal e esperto; ninguem ha de querer ajudar fugitivos; apanham-nos a os entregam sem do. - Se voc�s soubessem, meninos, quanta gente ruim ha neste mundo! - Esses siberianos s8o umas feras! - Gente muito ...-toa! - Esses siberianos não tem sal nas orelhas: se a gente lhes cai nas unhas, adeus! - U, mas os nossos dois rapazes ... - Sim, com eles a coisa e dura. Não e com eles que h de ser facil. - Espera! Se não morrermos, logo o saberemos! - Achas mesmo que nao serão apanhados? - Eu, por mim, tenho a certeza de que não os apanha- rão nunca! afirmou um dos excitados, dando um murro na mesa. - Hum! Isso depende de como andarão as coisas! - Pois esta aqui o que acho, pessoall disse Skurafov

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Eu, se fugir, nunca mais ninguem me pega! - Tu? 27 Vk Puseram-se a rir e alguns fingiram recusar-se a ouvir mais. Porem Skuratov estava animado. - Nunca me haveriam de apanhar! repetiu energica- mente. Penso tanto nisso, irmãos, que, ...s vezes, at� me admiro. Preferia me enfiar num buraco de rato ~ deixar#

me porem a mão em cima! - Ora, se estivesses morrendo de fome, acabavas pe- dindo um peda�o de pão por -esmola! Novas gargalhadas. - Pedir esmola! Burrice! - Burro es +u! Tu e o velho Vassia vingaram a "mor+e da vaca" (1) e por isso estão aquil As gargalhadas redobraram. Os for�ados serios assu- miam um ar cada vez mais indignado. - Mentiroso! gritou Skura+ov. Miki+ka e um m,entiro- so, e inventou isso contra mim e contra meu tio Vassia. Sei que me complicaram nessa his+oria. Sou de Moscou e des- de pequeno corro mundol Quando o sacristão queria me ensinar a ler, puxava-me as orelhas e dizia: "Repete: Poupa- me Senhor, na vossa misericordia" . . . eu repetia: "Poupa- me, Senhor, da miseria e da corda. . . " Assim e que sou, desde pequenino. As risadas continuaram. Era isso que Skura+ov procura- va. Gostava de servir de palha�o. Mas depressa o deixa- ram de m3o para voltarem ... conversa seria. Os peritos em evasões emitiam pareceres; os mais jovens e os mais; calmos escutavam, satisfeitos, o pesco�o estendido, os olhos fixados neles. Havia uma multidão na cozinha, porem nenhum sub- oficial estava Ia, pois do contrario os presos mostrariam mais reserva. Entre os que rejubilavam, observei o fartaro Ma- metka, hornerizarirão de pornulos salientes, e aspecto extraor- dinariamente comico. Mal falava o russo e não compreendia quase nada do que os demais cliziam; entretanto, estirava a (1) Quer dizer que mataram Um mujique ou uma baba, suspeitos de deitarem mau olhado ao gado. Havia no nosso presidio um criminoso dessa especie. (Nota do Autor).#

394 DOSTOIEVSKI RECORDA�õES DA CASA DOS MORTOS 395 cabe�a por cima dos outros e agu�ava o ouvido com aten�ão, Claro! aprovava um outro. Os rapazes tomaram as v com beaf itude. 1 suas precau�ões1

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1 - Hein, Mametka, iakchi (que bom) falava Skuratov, As suposi�6es foram mais longe.Prefendia-se que os voltando-se para o t rtaro. Abandonado por todos. agar- fugitivos ainda estavam escondidos num arrabalde da cidade, rava-se em desespero de causa ...quele ouvinte. no fundo de uma adega, esperando que passasse a eferves- - l£chi, uch, iaLhi! aprovou ardentemente Mame- cencia, e que o cabkp raspado crescesse. Isso poderia du- fka, abanando a cabe�a grotesca para o lado de Skufarov. rar seis meses, um a�~b, e depois eles sairiam do canto. - Não os apanham, iok? (não?) Todos se mostravam de humor inventivo e romanesco. - lok, iok! Mas de repente, oito dias ap6s a evasão, espalhou-se o E dessa vez, Mame+ka se p"s a resmungar, gesticulando. boato de que tinham encontrado uma boa pista. Esse boato ---lsso quer dizer que se um mente o outro não o des- es+Upido foi logicamen+e desmentido com desprezo; entre+an- mente, não �? to, na mesma noite, ia +ornando consistencia, e os for�ados - �! e! i£chil respondeu Mamefka meneando sempre come�aram a se agitar. Na manhã seguinte, contaram na a cabe�a. cidade que os fugitivos tinham sido apanhados, que eram - Então seja ialtchil frazidos de volta. Depois do jantar, conheceram-se informes E para refor�ar o iaLhi, Skurafov lhe enterrou o gorro mais circunsfanciados: tinham sido presos em certa aldeia ate aos olhos, depois, deixando ali Mamefka at"nito, saiu da a setenta versfas de distancia. Enfim, chegou-nos a hisforia cozinha muito bem humorado. autentica. O sargento, voltando da casa do maior, noticiou Durante a semana inteira, prosseguiram as providencias que naquela mesma noite seriam os fugitivos conduzidos ao severas na fortaleza, bem como batidas minuciosas nos arre- corpo da guarda. Não se podiam mais alimentar duvidas. Seria dificil descrever a impressão que essa nova provocou dores. Os defenfos imediatamente ficaram a par - não sei nos for�ados; a principio foi exaspera��io, depois desanimo, como - de todas as medidas tomadas para a recupera�ão e afinal escarneo. Come�aram a zombar, não dos persegui- dos fugitivos. Nos primeiros dias, as noticias eram favora- dores, mas dos perseguidos. veis aos tr�nsfugas: tinham desaparecido sem deixar rastro. Nenhum indicio, nada! Nossos for�ados não se cansavam de De inicio alguns apenas

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escarneceram, porem depressa zombar dos chefes. Não sentiam a minima inquieta�ão pela todos fizeram coro. S6 uns dois ou fr�s presos ficaram em sorte de Kulikov. e A. silencio; eram homens serios e obstinados, que não se deixa - Não, n,ngu.em os encontra! não os apanham! re- vam impressionar por zombarias, e fitavam com desprezo o pefiam uns aos outros, satisfeitos. grupo estouvado dos discufidores. - Sumiram como uma bala! Tal como haviam erguido ...s nuvens Kulikov e A., do mesmo modo se esfor�avam agora em rebaix51os. Pa- 1 - Ate breve, e sempre amigos, não? a#

recia e 1 N6s. sabiamos que todos os mujiques dos arredores ha- af' que os dois acabavam de cometer uma afronta. contra todos. Os nossos contavam com ar de desprezo que, viam sido prevenidos, vigiavam todos os lugares suspeitos, batiam florestas e ravinas. 11 incapazes de suportar a fom-e, entraram ambos numa aldeia - Para que isso? tro�avam os for�ados. Decerto eles afim de esmolgr pão, - cousa que representa o ultimo grau f�m um esconderijo, em algum lugar. do nebaixamenfo para um vagabundo. Alias, essas hisforias#

DOSTOIEVSKI ,a am falsas. Vendo-se ca� dos, os fugitivos se esconderam ma mata que em breve foi toda cercada: como não dispu- am de meio nenhum para fugir, renderarn-w esponfanea- ente. Não lhes sfava outra alternativa. Mas quando a noite os trouxeram de pes e mãos atados, coitados pelos guardas, todos os for�ados se encostaram a li�ada para ver afraves das fendas o que lhes iriam fazer. ão se avistaram, e claro, senão os carros do governador e o maior parados a frente do corpo da guarda. Os evadi- fora postos na solitaria, ferrados outra vez, e no dia uinte tompareceram ante os juizes. A zombaria e o des- o zo dos for�ados depressa cairam por si proprios. Sou- e-se melhor do que houvera, soube-se que Kulikov e A. inham sido obrigados a se render, e todos se puseram a companhar avidamente a marcha do processo. - Vão +ornar pelo menos mil! dizia um.

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- Mil! replicava um outro. Est s brincando? Vão apanhar ate morrer. Pode ser que A. +orne apenas mil, mas o outro vai deixar o couro nas varas, meu velho, porque 6 da especial. Entretanto, não haviam calculado direito. A. saiu-se com quinhentos a�oi+es-, era o seu primeiro delito e foi levado em considera�ão o seu bom procedimento anterior. Quanto a Kulikov, creio que recebeu mil e quinhentos a�oites. A puni�ão foi afinal de contas bastante suave. Como ho- mens sensatos, não denunciaram ninguem. Declararam, cla- ra e resolutamente, que tinham fugido sem se deter em parte nenhuma. Quem mais lamentei foi Koiler: perdeu ate a £l+i- ma esperan�a, e o seu castigo ultrapassou os dos outros em. severidade: levou dois mil a�oites e foi enviado como-gal� os 9 re para um outro presidio. Quanto a A., gra�as aos m�dicos, não recebeu o castigo senão quase "pro-forma". Porem no hospital pOs-se a arrotar fanfarronadas, a se declarar pronto para tudo: não recuaria diante de nade e ainda daria que falar. Kulikov portou-se como sempre - homem de juizo, RECORDA�õES. DA CASA DOS MORTOS 397 o decente. Ao voltar ao pre'*dio, depois de ser fustigado, pa- recia que nunca saira dali. Mas ninguem o olhava mais com#

os mesmos olhos, embora ele soubesse sempre e em toda parte marifer-se no seu lugar. No seu foro Intimo os for�a- dos lho, tinham perdido o respeito: tratavam-no agora tão bom como tão bom, com uma familiaridade sem considera�ão. O �xito vale tanto, neste mundo!#

P, 6 x A saida do presidio udo isso se passou no meu £ltimo ano de prisão. Esse £ltimo ano, sobrefudo no fim, me ficou fio fortemenfe T gravado na memoria quanfo o primeiro. Mas para que dar minucias? Direi apenas que, apesar da minha im- paciencia, esse ano foi o menos penoso de todo o meu perio- do de presidio. Em primeiro lugar, eu tinha variOs amigos enfre os for�ados, bons camaradas, que me consideravam

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todos um ¢timo sujeito. Muitos deles me eram dedicados, tinham-me sincera afei�ão. O ordenan�a Bakluchine sen- tiu vontade de chorar quando nos acompanhou a mim e ao meu companheiro para fora da prisão: e como depois, em- bora j6 libertos, n¢s devessemos passar um m�s na cidade num estabelecimento do governo, ele 16 aparecia diar¡amen- fe, com o fim £nico de falar conosco. Deus sabe por que.#

400 ' DOSTOIEVSKI -en+re+an+o. certos indivilos rebarbativos, nunca, at� ao fim, me 1 dirig~ram a palavra. Parecia que uma barreira se erguia entre n6s. Nos £ltimos tempos, gozei de muito mais imunidades que nos outros periodos de minha deten�ão. Tinha encontrado conhecidos entre os oficiais em servi�o na cidade, antigos comppinheiros de escola (1) e reentabolara rela�ões com, el¢s. Por seu intermedig, dispunha de mais dinheiro, podia escrever ta ... rin¡nha fAmilia e obter livros. Ja havia anos que não r um 56 , livro, e seria dificil reproduzir a impressão estranha e a emo�ão , que me causou 9 primeiro volume - um n£mero de reV~i~o-, lembro-me de o ter come�ado a ter ... noite, assim que 1 fec 1 haram as casernas, e continuar na leitura at� a madru- ga.d - a. Era como_ um mensageiro de outro mundo, que hou- ves . se voado ate mim: minha vida de outrora erguia-se diante dos meus olhos num clarão limpido, e eu procurava adivinhar, afraves da leitura, se me tinha atrasado demais, se eles tinham vivido intensamente sem mim, Ia no mundo. Com que se ag¡- favam agora? Que questões debatiam? - Definha-me nas palavras, lia nas entrelinhas, procurava descobrir os pensa- men+os secretos, as alusões ao passado: procurava os tra�os do que outrora perturbava e comovia os esp¡rifos ... E que. tristeza me possuiu quando tive que reconhecer at� que pon- +o estava eu alheio a vida atual! Era um membro mutilado da sociedade. Tinha que me habituar as inova�ões, travar co- nhecim.ent¢ com a nova gera�ão1 (Enfronhei-me especial- mente num artigo assinado por um nome conhecido, o nome dum homem de quem estivera aproximado ... Mas j6 outros nomes eram famosos: novos trabalhadores haviam ocupado os lugares antigos: apressei-me em travar conhecimento com eles, desesperando-me por ter tão poucos livros em mão, e tanta dificuldade em ob+e-los. Antes, no tempo do nosso antigo maior, era grave risco introduzir livros no presidio. (1) Principalmente uma meia duzia de guardas-marinha cujas opiniões avan�adas os haviam deportado em 1849 para os batalhões da guarni�ão de Ornsk. (N. de H. M.) O RECORDA�õES DA CASA DOS MORTO 401 Em casos de busca, farpeavam a gente de interroga�ões- "De ro9 Onde o apanhaste? Quais são teus

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onde vem este liv . cUmplices?" E que poderia eu responder'a isso tudo? De forma que vivera sem livros, dobrado sobre mim mesmo, mau#

grado meu. Quanfas perguntas fiz a mim proprio sem poder eluci -las, apesar dos tormentos que me provocavam! Porem isso tudo e impossivel de exprimirl , * * Como eu chegara ao presidio durante o inverno, deveria +ambem ser libertado nessa esta�ão, no aniversario de mi- nha entrada! Com que impaciencia aguardei esse inverno, com que alegria vi morrer o verão, as folhas amarelecerem nas 6rvores, a erva ressecar na estepe! Mas enfim o verão acabou. O vento de outono gemia, o primeiro floco de neve voli+ava ... O inverno tão longamente esperado chegara ... O imenso pressentimento da liberdade me fazia bater o co- ra�ão em pancadas surdas, vioien+a~. E, cousa estranha, quan- +o mais o tempo passava, mais se aproximava o momento, mais eu me +ornava paciente, mais me. acalmava. Durante os £ltimos dias espantava-me; acusava-me de indiferen�a, julga- va-me de gelo. Muitos dos for�ados, quando me encontra- vam no pafio, na hora do repouso, vinham me falar, felicitar: - Então vai embora, Alexandr Pe+rovitchi A liberdade chega, breve estar6 a¡: voc� vai nos deixar, vai largar os pobres diabos dos seus companheiros1 - E voce tambem, Marfynov, muito breve chegar6 sua vez! respondia eu. - Oh, muito breve não, ainda tenho que tirar sete anos1 � ele suspirava, definha-se, olhava diante de si com ar disfraido, como se fixasse o futuro ... Sim, muitos me felicitavam franca e cordialmente. To- dos me pareciam mostrar mais afabilidade, sentia-se que eu 16 ' deles, que j6 se ha nao era mais um viam despedido de mim. K-czinski, um jovem fidalgo polaco, manso e delicado, gostava de, como eu, passear pelo pafio nas horas de repouso. Pen- sava que o ar puro e o movimento lhe conservariam a saude, O compensariam das noites sufo�antos da c¢sorno,#

DOSTOIEVSKI �--- A - Espero com impaciencia a sua par+ida, disse-me ele m dia, sorrindo, durante um passeio. Ficarei sabendo então uO ma resta apenas um anol Notei de passagem que, gra�as ... longe priva�ão (i ... ossa fendencia para o devaneio, a liberdade, vista da f¢r- aleza, nos parecia mais absoluta do que o era na vida tan,- ivel e real. Os for�ados viam-na por demais embelezada, ousa bastante natural num prisioneiro. Qualquer bagagWtro oficial nos parecia quase um rei, quase o ideal do homem ivre, simplesmente porque ia aonde queria, sem grilheta, s�m scolfa, sem a cabe�a raspada.

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Na v�spera do £ltimo dia, ao crep£sculo, dei pela der- deira vez volta ... pali�ada. Quanfos milhares de vezes era eu . aquele caminho? Ali, por tr s das casernas, va- ueara sor¡tario, abandonado, desesperado, durante todo o rimeiro ano da minha vida de presi...io. Recordava a �poca m que ainda contava por milhares os dias que me restavam cumprir. Senhor, quanto tempo fazia que isto se passara! C est o canto onde se debatia a nossa aguia, - aqu¡ � que Petrov vinha sempre ao meu encontro. Petrov, -ali s, não me deixava mais: corria ao meu encontro adivinhando talvez meus pensamentos, espantado mau grado seu, cami- nhova em silencio ao �neu lado. Desped¡-me de todas as vigas enegrecidas e mal esquadrejadas da nossa caserna. Como me pareciam rebarbativas, então, nos primeiros fem- pos1 Sem duvida tinham envelhecido ainda mais: eu, porem, não o podia notar. E quanta juventude hnterrada naquelas muralhas, quanta for�a inutilmente perdida, sem proveito.~ nhumI Sim, devo diz�-lo: todos aqueles homens tinham den- fro de si recursos maravilhosos, eram talvez os mais dotados, os mais en�rgicos filhos do nosso povo, mas suas capacida. des soberanas viam-se aniquiladas sem remissão. De quem a culpa? Sim, de quem era a culpa? Cedinho, no dia seguinte, entes da hora da partida dos hornens para o trabalho, logo que o sol foi nascendo, dei volta I i#

RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS · NI as casernas para me despedir de todos os de+entos. Muitas mãos calosas e rudes se estenderam cordialmente para mim. Mas os que me apertaram a mão como. c . ompanheiros não eram numerosos. Compreendiam que eu iria imed*ia-~amen~e me tornar outro homem. Sabiam que eu tinha rela�ões na cidade, que dentro em Pouco iria ... casa de alguns barines junto aos quais tomaria lugar, como seu semelhante. Com- pneendiam isso, e, embora o seu aperto de mão fosse cordial. um dos seus, mas dum barine. senti que não se despediam d não responder Alguns me deram as costas e teimaram em ... minha sauda�ão. Outros me lan�aram olhares de odio. O tambor rufava, todos partiram para o trabalho e eu fiquei s6. Suchilov, que nessa manhã acordara antes de h61- todos os outros, arranjara tempo para me preparar o c Pobre Suchilovi Chorou quando lhe dei os meus pertences de preso: as camisas, as correias de segurar as grilhefas, e um pouco de dinheiro. - Não 6 por isso, não e por isso! murmurava ele atrav�s

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das 16grimas, mordendo os labios tr�mulos . . . Corno vou suportar sua perda, Alexandr Petrovitch9 Como posso viver sem v�-lo aqu¡? Desped¡-me de Akim Akimi+ch. - Breve ser6 sua vez, disse-lhe eu. - Ainda me resta bastante tempo, bastante +empoi murmurou Mim, aper+ando-me a mão. Atirei-me aos seus bra�os e nos beijamos. Dez minunfos ap6s a partida dos for�ados o compa- nheiro com quem viera para o presidio e eu deixamos a fortaleza para nunca mais ta +ornar. Fomos diretamente ... forja afim de nos tirarem os ferros, mas ia não levavamos escolta armada, e um Unico sub-oficial nos acompanhava. Foram for�ados que nos desembara�aram dos ferros na ofi- cina de engenharia. Esperei que tirassem o grilhão do meu companheiro, depois me aproximei da forja. Os ferreiros me fizeram voltar as costas, seguraram-me a perna por fras, esti- 405 I#

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DOSTOJEVSKI i~... na ... Esfor�avam-se em realizar raram-na em cima de big o trabalho da methor maneira possivel- - olha - a ponta do cravo. vira primeiro a ponta do crav01 ordenou o mestre ferreiro. Segura assim, for�al Agora uma martelada ... Cairam os ferros. Ergu¡-os; ... Queria segur�i-105 Com minhas mãos, olh&-10S uma £ltima Vez. Maravilhava-me não os sentir mais nas pernas. - Bem, vão com Deus! Vão corri Deus! repetiram os for�ados, com suas vozes rudes, en+recortadas, nas quais mo parecia perceber uma nota alegre. Sim, iamos com Deus! Para a liberdade! Vida nova, ressurrei�ão de entre os mortos[ Maravilhoso momen+01 -m Biblio I -,- - " ~'! 7, ' ~ - - - - ~ 4 4 INDICE dos Mortos"

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Notas sobre "Recorda~ da Casa Intro&jOo ........... ix PRIMEIRA PARTE 1 - A casa dos mortos .................. Primeiras iffre~ ..... Primeiras impressões (continu~ ........... jV - Primeiras impressões (continua�&O) ................ V - O primeiro mis ............ Vi O primeiro m�s (continua�&O) .............. Vil Novos conhecidos - Petrov ................ Vill - o "fac¡nora" Luka *---- 1X - isai Fomitch - O banho - A historia de Bakluchine .... X - Natal ................... X1 - O espet culo .................. SEGUNDA PARTE #

i - O ~tal ................. 11 - O hospital (conti~o) - lli - O hospital (cont~ .................... IV - o marido de Ai�ulka (histOria) ........ V - Primavera ............... V, - os animais do presidio ................. Vil - A queixa ....*------- V111 - Companheiros ..................... 1X - uma evasilo .******** x - A saida do presidio .................. 9 27 49 69 91 III 129 145 155 177 199 225 243 263 285 301 323 339 361 379

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399 NOTA - Este livro foi publicado pela primeira vez em 1861 na revista Vremia. de Petersburgo. pertencente a Mikhail, i~ de Dos- tojevski. Saiu em folhetim. Tinha, entio, o escrim 33 anos de idadc- i#

erso Os grandes romances, da literatura umv COLE�AO FOGOS CRUZADOS o Ôste livro foi co~to e imPressO nas oficinas da EMPR�SA GRµFICA DA "REVISTA DOS TRIBUNAIS" LTDA., ... rua Conde de Sarzedas, 38, - São Paulo para a LIVRARIA jOS� OLYMPIO EDITORA Rio de janeiro em setembro de 1945. Esta cole�ão que oferecemos aos leitores brasi- leiros reune grandes obras literarias de todos os tempos e todos os estilos. Atrav�s de romances que atravessaram os s�culos, e obras modernas que tal- vez não fiquem Para a eternidade, mas que são bem representativas do momento atual, a alma e a terra estrangeiras teem na espl�ndida cole�ão as suas v0- zes mais expressivas. As ca;acter¡sticas dos "FO- GOS CRUZADOS" $do a Perfei00 literaria e forte intensidade humana: destinam-se, Pois, tanto ...., elites como aos que buscam a emo�5o de sim romance vital. Excelentes tradu�õeS. Bela apresenta�ão gr fica Formatos in-8 e in~16. Volumes iniciais: S. 4. L I 1. JANE AUSTEN - ORGULHO E PRECONCEITO Tradu�ão prefacio de LUCIO CARDOSO ETHEL VW~ - FUGA Tradu�ão de LUCIO CARDOSO TOLST01 - A SONATA A KREUTZER Tradu�ão de AMANDO FONTES NINA FEDOROVA - ISTO A UM PEDA�O DA INGLA- TBRRAI (A FAMILIA) - Premio "Atlantic" de 200 mil cruzeiros Tradu�ão de R. MAGAL1IXES JUNIOR S. uPTON SINCLAIR - O FIM DO MUNDO

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Tradu�ão de Lucio CARDOSO 6. NATRANIEI, HA=11ORNE - A LETRA ESCARLATE#

ROSA) - In- (com um bico-de-pena do autor por SANTA trodu��o de WILLIAm LyoN PlIBLPs (ex-professor de litera- tura na Universidade de Yale) Tradu�ão de SoDR� VIANA 7. REMARQUE - NµUFRAGOS Tradu�ão de RACHEI, DE QUEIROZ 8. MARGARET KENNEDY - O IRREPARAVEL ENGANO Tradu�ão e prefacio de E~AN LIMA. 9.JANE AUSTEN - MANSFIELD PARK (com um retrato da autora) Tradu�ão de RAc~ DE QUEIROZ 10. VICKI i3AuM - SANGUE B VOLUPIA Tradu�ão de VALDEMAR CAVALCANTi e RAUL LIMA li. SAMUEL BUTLER - DESTINO DA CARNE Tradu�ão o prefacio de RAC= DE QUEIROZ Introdu�ão de OTTO MARIA CARPB¶UX 12. jOHN P. MARQUAND - SOL DE OUTONO Tradu�ão de M. P. MOREIRA FILHO #

'.' 7 . 13. ARCHIBALD JOSEPH CRONIN - AS CHAVES DO RRINO Tradu�ão de ILKA LABAItTHZ C a MAGAL~S JUNIOR 14.VOLTAIRE - ZADIG OU O DESTINO - (Historia Oriental) (Com um bico-de-pena do autor por Luis JARDIM) Tradu�ão e prefacio de GzNoLiNo AMADO 15. MAURICE BARING - DAPHNE ADEANE Tradu�ão e prefacio de OSCAR MENDES 18. ARCHIBALD JOSEPH CRONIN - A FAMILIA. BRODIE Tradu�ão de RACHEL DE Quz'Roz 17.DANIEL DEPOE - AS CONPISSOBS DE MOLL FLANDERS - ou Sucessos a desgra�as da famosa Moll Flanders, que nas- ceu na prisão de Newgate e durante uma vida extraordina- riamente intensa, foi prostituta durante doze anoq, casou-se cinco vezes (uma delas com seu proprio Irmito), foi ladra durante outros doze anos, depois vag*unda deportada para a Virginia durante oito anos e, finalmente, millonaria, tendo vivido honestamente o resto de seus dias e morrendo arre- pendida, segundo as suas proprias memorias, escritas em 1683. - (Com um bico-de-pena do autor por Luis JARDIM) Tradu�Ao de Lucio CARDoso 18.HENRY BELLAMANN - EM CADA CORA�IO, UM PE- CADOI (KINGS ROW) , Tradu�ão de CLo~is R~Hriu e JoÇO TAVOPA 19.TOLSTOI - OS COSSACOS - (Com um bico-de-pena do

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autor por Luis JARDIM) Tradu�ão de ALMIR De ANDRADIM 20. HELEN MAcINNES - INSUSPEITOS Tradu�ão de*M. P. MoRieiRA FiLIIo 21. JAMES HILTON - NA NOITE DO PASSADO Tradu�ão de PzDito DANTAs e AURELIO GOMES DE OLIVEIRA 22. ARCHIBALD JOSEPH CRONIN - A CIDADBLA Tradu�ão, e prefacio de GzNoLiNo AMADO 23. FRANZ ~FEL - C�U ROUBADO Tradu�ão de SODR� VIANA 24. PHYLLIS BOTOME - TEMPESTADES D'ALMA Tradu�ão de P.AcHici, DE QuziRoz 25. PEARL BUCK - VENTO LESTE, VENTO OBSTE Tradu�ão a prefacio de VALDEmAR: CAVALCANTI 26. MAZO DE LA ROCHE - A HERAN�A DE WHITEOAK Tradu�ão e prefacio de HI:RmAx LIMA PEARL BUCK - A EXILADA Tradu�ão de RAciizi, DE QujiciRoz 28. GEORGE SAND - INDIANA Tradu�ão e prefacio de ALMIR De ANDRADE 29. MAZO DE LA ROCHE - JALMA Tradu�ão de HERMAN LIMA 30. TOLSTOI - ANA KARENINA Tradu�ão de Lucio CARDOSO 31.C. S. FORESTER - A LONGA VIAGEM (Aventuras do#

Cap¡tdo Hornblower) Tradu�ão de VivALDo COARACY 32.DAPHNE DU MAURIER - O ROTEIRO DAS GAIVOTAS (GAIVOTA NEGRA) Tradu�ão de RACHEI, D3 QUZMOZ 33. LELLA WARREN - O SOLAR DA MURALHA DE PEDRA Tradu�ão de ILKA LABARTIIZ 34.CIRO ALEGRIA - GRANDE E ESTRANHO 2 O MUNDO I.* Pr�mio no Concurso da União Pan-Americana, ao qual concorreram 300 autores das 3 Am�ricas Tradu�ão de AMADRU AmARAL JuNioa 35. ROBERT HICHENS - O JARDIM DE ALA Tradu�ão de ANA MARIA MMMINS 96.MARGARET KENNEDY - ACONTECEU HA MUITO TEMPO Tradu�ALo de H~Am LIMA i ~ I O 1 39. RACHEL PIELD - BRUMAS DO PASSADO Tradu�ão de LIA CAVALCANTI38. CHARLOTTE BRONTE - O PROFESSOR

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Tradu�ão de RAUL LIMA DAPI-lNE DU MAURIER - A MORTE NIO NOS SEPARA TradUCIO de OSCAR MENDES e MILTON AMADO40. DOSTOIEVSKI - O ETERNO MARIDO Tradu�ão o prefacio de COSTA NEVES Xilogravuras de A)ML DE I~KOSCHEK41. JAMES HILTON - FURIA NO C�U Tradu�ão de RACHEL DO QUEIROZ42. JANE AUSTEN - RAZIO E SENTIMENTO Tradu�ão de DiNAH SILVEIRA DE QUEIROZ 48. MARGUERITE STEEN - O SOL � MINHA RUINA Tradu�ão de ANA MARIA MASTINS 44. DOSTOIEVSKI - HUMILHADOS E OFENDIDOS Tradu�ão de RACHEI, DE QUEIROZ Introdu�ão de OTTO MARIA CARPEAUX Xilogravuras de OSVALDO GOELDI 45. GEORGE SAND - MAUPRAT Tradu�ão de ALmiR DE ANDRADO 46. EVELYN EATON - INQUIETAS ESTIO AS VELAS Tradu�ão de OSCAR MENDES47. DOSTOIEVSKI - UM JOGADOR (Notas de#

Tradu�ão e prefacio de COSTA NEVES XiIogravuras de AXEL DE LESXOSCHEIC48. GUY DE MAUPASSANT - PORTE COMO A Tradu�ão de µocioLY NETO49. PEARL BUCK - A, ESTIRPE DO DRAGIO Tradu�ão de ACCIOLY NETO DOSTOIEVSKI - RECORDA�OES DA CASA DOS MORTOS Tradu�ão de RACHEI, DE QUEIROZ Prefacio de BRITO BROCA Xilogravuras de OsvALDo GOELDI 51. GUY DE MAUPASSANT - SEGREDOS DO CORA�ÇO Tradu�ão de ALVARO GONCALV308 -52. NICOLAI GOGOL - ALMAS MORTAS (As Chichicov) - (Com um retrato do autor) Tradu�ão e prefacio de COSTA NEVES .introdu�ão de OTTO MARIA. CARPEAUX53. GEORGE ELIOT - O MOINHO DO RIO Tradu�ão de OLIVEIRA RIBEIRO NETO54. LVON TOLSTOI - RESSURREI�ÇO Tradu�ão de VALDBMAR CAVALICANTI Edi�ão integral profusamente ilustrada 55. EVELYN BATON - AT� UM DIA ' ME U CAPITµOI Tradu�ão de DINAR SILVEIRA DE QUEIROZ 66. HENRY BELLAMANN - A INTRUSA Tradu�ão de RACREL DE QUEIROZ E7. FRANZWERPEL-08 QUARENTA DIAS DE MUSA DAGH Tradu�ão de ANA MARIA MARTINS 58. A. J. CRONIN - ROR A. LUZ DAS ESTRELAS Tradu�ão de RUBEM BRAGA :59. CHARLESDICKENS- UMA HISTORIA EM DUAS Tradu�ão de BERENICE XAVIER 60. A. J, CRONIN - TRÒS AMORES Tradu�ão de S. MARTINS LOPES CORREIA 61. MAZO DE LA ROCHE - o JOVEM RENNY

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Tradu�ão de MiROEL SILVEIRA 62.JOHN GALSWORTHY - O PROPRIETARIO (A Crâ?1i00 dos Forsyte) Tradu�ão de RACHEI, DE QUEIROZ Os. MAURICE BARING - A PRINCESA BRANCA Tradu�ão de Lucio CARDOSO 60. um jovem) MORTE Aventuraa de FLOSS #

CIDADES#

JOHN GALSWORTRY - IRENS (A Cr~04 d06 ~,n Tradu�ão de ItACHZL DE QUXIEM JOHN GALSWORTRY - DESPERTAR (A *17-r"~," Pornte) Tradu�ão de RACREL DE- QUZMOZ NA ~.NIEL HAWTHORNE - A CASA DAS TORRES Tradu�Ao de SoDR2 VIA?z... IRINA SKARIATINA - T¶MARA Tradu�ão de JoÇO CALAZAN8 JACOB WASSERMANN - O PROCESSO W Tradu�ão de OCTAVIO, DID FARIA e ADONIAS C. S. FORESTER - AGUAO DE ESPANHA do Capitdo Hornblower) Tradu�ão de VIVALDO COARACY C. S. FORESTER - A £LTIMA AVENTURA 1=- do CapUdo Homblower) Tradu�ão de VIVALDO COARACY OLIVF, HIGGINS PROUTY - STELLA DALLAS Tradu�ão de R&cim. Dm QuEiRoz COMANDANTE EDWARD ELLSBERG - CAPITIO -98) Tradu�ão de EDUARDO Dm LIMA CASTRO MYRON BRINIG - TUDO DE SUAS VIDAS Tradu�&o de EDUARDO De LIMA CASTRO TURGUENEV - PRIMEIRO AMOR Tradu�ão de BRITO BROCA MAURICE BARING - A TtNICA DB CRISTO Tradu�ão de Luis JARDIM Ir MARGARET KENNEDY - O VAGABUNDO EVAN -10), Tradu�ão de CAIO DIZ FRUITAS MAZO DE L ROCHE - CORA�OES X44P3009*,4Mffizi Tradu�ão de IIERMAN LIMA FIM DO LIVRO