Fisica cozinha

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26 Física na Escola, v. 5, n. 2, 2004 A Física na Cozinha A contextualização das teorias em Fïsica tem sido considerada cada vez mais importante no ensino. Muitas vezes os fenômenos ocorrem na nossa frente e não nos damos conta disso. O presente artigo mostra e explica alguns experimentos bastante interessantes que podem ser realizados com a utilização de material simples de cozinha. U tilizando recipientes de vidro dotados de tampa do tipo abre-fácil, e que são empre- gados para acondicionar, por exem- plo, patês, geléias e requeijão, é possí- vel realizar interessantes experimentos envolvendo conceitos de Mecânica, temperatura, calor, comportamento térmico dos gases, mudança de fase e hidrostática, que normalmente são abordados no Ensino Médio. A proposta tem o intuito de ilus- trar como a “cozinha doméstica” pode contribuir para o entendimento e para a contextualização de conceitos e leis de Física, além de colaborar para despertar o senso de observação e o interesse científico no estudante. Material Deve-se utilizar um recipiente vazio, sua tampa metálica e o lacre plástico que se remove para abri-la. Por ser fechada à vácuo, a tampa é dotada de um anel de vedação. Ela não pode estar amassada, nem o anel danificado, pois a integridade de am- bos é importante para o bom funcio- namento dos experimentos. É impor- tante notar que o lacre plástico possui um lado que se encaixa na depressão existente na tampa e veda o orifício existente. Em nosso caso, utilizamos um recipiente de vidro com volume interno de aproximadamente 150 cm 3 (Fig. 1). Experimento 1: Produção de um Jato de Água Procedimento Para que o efeito seja bem pro- nunciado, deve-se encher completa- mente o recipiente com água. Em seguida, colocar cuidadosamente a tampa e pressioná-la rápida e firme- mente com os polegares (Fig. 2), veri- ficando-se que um comprido jato de água saí pelo orifício. Por que isto acontece? Explicação A altura atingida pelo jato depen- Jorge Roberto Pimentel Departamento de Física, UNESP, Rio Claro, SP [email protected] Paulo Yamamura Fundunesp, São Paulo, SP [email protected] Figura 1. Material utilizado nos experi- mentos. Figura 2. Jato produzido por uma leve compressão na tampa.

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26 Física na Escola, v. 5, n. 2, 2004A Física na Cozinha

A contextualização das teorias em Fïsica temsido considerada cada vez mais importante noensino. Muitas vezes os fenômenos ocorremna nossa frente e não nos damos conta disso.O presente artigo mostra e explica algunsexperimentos bastante interessantes que podemser realizados com a utilização de materialsimples de cozinha.

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Utilizando recipientes de vidrodotados de tampa do tipoabre-fácil, e que são empre-

gados para acondicionar, por exem-plo, patês, geléias e requeijão, é possí-vel realizar interessantes experimentosenvolvendo conceitos de Mecânica,temperatura, calor, comportamentotérmico dos gases, mudança de fase ehidrostática, que normalmente sãoabordados no Ensino Médio.

A proposta tem o intuito de ilus-trar como a “cozinha doméstica” podecontribuir para o entendimento e paraa contextualização de conceitos e leisde Física, além de colaborar paradespertar o senso de observação e ointeresse científico no estudante.

MaterialDeve-se utilizar um recipiente

vazio, sua tampa metálica e o lacreplástico que se remove para abri-la.Por ser fechada à vácuo, a tampa édotada de um anel de vedação. Ela nãopode estar amassada, nem o aneldanificado, pois a integridade de am-bos é importante para o bom funcio-namento dos experimentos. É impor-tante notar que o lacre plástico possuium lado que se encaixa na depressãoexistente na tampa e veda o orifícioexistente. Em nosso caso, utilizamosum recipiente de vidro com volumeinterno de aproximadamente 150 cm3

(Fig. 1).

Experimento 1:Produção de um Jato de Água

ProcedimentoPara que o efeito seja bem pro-

nunciado, deve-se encher completa-mente o recipiente com água. Emseguida, colocar cuidadosamente a

tampa e pressioná-la rápida e firme-mente com os polegares (Fig. 2), veri-ficando-se que um comprido jato deágua saí pelo orifício. Por que istoacontece?Explicação

A altura atingida pelo jato depen-

Jorge Roberto PimentelDepartamento de Física, UNESP, RioClaro, [email protected]

Paulo YamamuraFundunesp, São Paulo, [email protected]○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Figura 1. Material utilizado nos experi-mentos.

Figura 2. Jato produzido por uma levecompressão na tampa.

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de fundamentalmente dos seguintesfatores:

• da intensidade da força apli-cada pelos polegares sobre a tampae, por conseqüência, da pressão queé exercida sobre a água no reci-piente, e

• da rapidez com que estapressão é exercida.

Como a tampa se deforma e estátotalmente em contato com a super-fície do líquido, o Princípio de Pas-cal garante que a pressão adicional∆P aplicada na tampa é transmitidapara a água que deveria:

• diminuir o seu volume ou• deformar ou romper o reci-

piente.Porém, nenhuma destas duas

hipóteses ocorre, principalmente emvirtude da existência do orifícioaberto na tampa por onde a águairá escoar em direção à região demenor pressão, no caso, para o exte-rior do recipiente, até que as pres-sões interna e externa se igualem.

A pressão adicional ∆P aplicadapela tampa sobre a água será igualà pressão com que o líquido atra-vessa o pequeno orifício (desprezan-do-se as perdas de energia devido,por exemplo, ao atrito existentequando o jato de água passa peloorifício) e, dessa forma, pode-seavaliar a altura do jato que é obtido.Conforme representado na Fig. 3, aforça que “empurra” a água parafora do recipiente através do orifíciode área S é: F = (∆P)S.

Essa força “empurra” uma certamassa de água, ∆m, numa área S epor uma distância ∆x até que ela es-cape do recipiente. Aplicando oteorema do Trabalho-Energia nesta

operação, resulta a expressãoW = F.∆x = ½ ∆m.(vfinal

2 – vinicial2),

onde vfinal é a velocidade do jato aosair do orifício e vinicial sua velocidadeno início do processo, que é nula,uma vez que todo o líquido estáinicialmente em repouso.

Considerando ainda que:• a massa de água ∆m pode ser

representada em função do seu vol-ume (V) e da sua densidade (d) daforma: ∆m = d.V = d.S.∆x e

• que vfinal, em função da alturamáxima (hmax) atingida pelo jato deágua e da aceleração da gravidadepode ser expressa pela fórmula deTorricelli (vfinal

2 = 2ghmax), o traba-lho realizado e a variação da energiacinética do líquido estão interligadospor meio da expressão: F.∆x = ½ ∆mvfinal

2, que resulta em ∆P = ½ d.vfinal2

= dghmax.Isto significa, por exemplo, que

se na tampa for aplicada uma dife-rença de pressão de um centésimodo valor da pressão atmosférica(∆P = 0,10 x 105 Pa), o jato poderáatingir um metro de altura!

Experimento 2:Verificação da Atuação da PressãoAtmosférica 1

ProcedimentoDeve-se colocar bastante água

no recipiente e tampá-lo. Mantendoa tampa pressionada, o lacre plás-tico deve ser colocado corretamenteno ressalto da tampa, para vedar oorifício. Feito isto, a tampa podedeixar de ser pressionada.

Observação: Se o recipienteestiver cheio de água, quando atampa for colocada um pouco deágua irá sair pelo orifício. Nesse

caso, deve-se manter a tampa pres-sionada e retirar o excesso de água,antes do lacre ser posicionado.

Em seguida, o conjunto pode serdisposto com a tampa voltada paraos lados e mesmo para baixo (Fig.4), sem que a água caia. Maissurpreendente, ainda: o conjuntopode ser agitado em qualquer dasposições anteriores e a tampa nãose solta! Por que isto ocorre?Explicação

Como a tampa é deformável, aose colocar o lacre plástico e deixarde pressioná-la, ela tende a voltarao formato inicial. Enquanto recu-pera seu formato, a tampa diminuia pressão interna no recipiente. Deacordo com o Princípio de Pascal,essa diminuição de pressão setransmite pela água e pelo ar da bo-lha. Como o ar é mais compressívelque a água, a diminuição de pressãoacaba por refletir na bolha de ar. Elaexpande e isso facilita ainda mais atampa voltar ao seu formato origi-nal.

O resultado final é que a pressãointerna do conjunto é ligeiramentemenor do que a pressão atmos-férica. A tampa metálica deformávelatua como uma ventosa.

Considerando o valor da pressãoatmosférica, ao nível do mar, comoaproximadamente igual a 105 N/m2

(ou 10 N/cm2), o valor da forçanecessária para retirar a tampa doconjunto pode ser avaliado da se-guinte forma: o recipiente utilizadoFigura 3. Força atuante no orifício da tampa.

Figura 4. Conjunto com a tampa voltadapara baixo.

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tem área circular interna aproxi-mada de 38 cm2. Se a pressão inter-na for diminuída de 1 atm, a forçanecessária para vencer a diferençade pressão atuante, e retirar atampa, será de 380 N. Admitindoque a pressão interna tenha dimi-nuído somente uma ducentésimaparte (1/200) da pressão atmos-férica, a força necessária para retirara tampa seria de 1,9 N.

Uma vez que o volume aproxi-mado do recipiente é de 150 cm3,quando ele estiver cheio de água, etotalmente voltado para baixo,sobre a tampa atuará uma forçapeso de 1,5 N (desprezando-se opeso da própria tampa), valorinsuficiente para vencer a diferençade pressão. Dessa análise, verifica-se que mesmo uma diminuiçãopequena na pressão interna implicanum valor razoável da força neces-sária para retirar a tampa, o queexplica o resultado observado.

Experimento 3:Verificação da Atuação da PressãoAtmosférica 2

ProcedimentoOutra maneira de verificar a

atuação da pressão atmosférica érealizar o seguinte procedimento:

• aquecer um volume de águasuficiente para colocar no recipiente.

• encher o recipiente quase com-pletamente, de modo que fique umpequeno volume de ar (isso vaievitar que no momento em que atampa for colocada haja vazamentode água, além de facilitar a obtençãodo efeito final desejado com oexperimento).

• encaixar corretamente o lacrede vedação na tampa.

• colocar a tampa e deixar oconjunto esfriar (para que o anel devedação assente corretamente en-quanto estiver esfriando, pode-secolocar um objeto pesado sobre atampa, como por exemplo umlivro).

Quando o recipiente estiver frio,tentar retirar a tampa, puxando-acom a mão. Ela não se solta! Virar

o recipiente com a tampa para baixoe agitá-lo Ainda assim, a tampa nãose solta! Por que isto acontece?Explicação

O resfriamento do conjunto fazcom que a água, a bolha de ar e ovidro estejam sujeitos a uma con-tração volumétrica (∆V), em confor-midade com a conhecida expressão:∆V = γVo∆T, onde g representa o coe-ficiente de dilatação volumétrica domaterial, Vo seu volume inicial e ∆Tsua variação de temperatura. Ago-ra,

• como os coeficientes de dila-tação volumétrica do vidro e daágua são pequenos em relação aodo ar, a variação de temperaturanão é muito ele-vada;

• como o reci-piente se encontrafechado, o volumeda massa de ar émantido pratica-mente constante eo processo pode seraproximado comosendo uma transformação isovolu-métrica,

Então, admitindo que o ar obe-dece a equação de estado de um gásideal, a seguinte igualdade é válida:(PV/T)inicial = (PV/T)final e dela deduz-se que a pressão final da bolha dear deve diminuir durante o resfria-mento.

Além disso, à medida em que oconjunto resfria, o vapor de águapresente na bolha de ar se condensa.De acordo com o diagrama de fasepara a água, essa mudança em seuestado físico diminui a pressão dabolha. Quanto mais quente estivera água utilizada, maior a tempera-tura do vapor e maior será a dimi-nuição de pressão experimentadapela bolha de ar.

Dessa forma, é a diminuição dapressão na bolha de ar, devido aoefeito combinado de uma transfor-mação isovolumétrica e da conden-sação de vapor de água em seu in-terior, que provoca a diferença depressão e torna difícil retirar a

tampa do recipiente.

Mais uma sugestão

Uma variação interessante desseexperimento, e que permite cons-tatar a importância da diminuiçãode pressão ocasionada pela conden-sação do vapor de água, consiste emcolocar água bem quente no reci-piente e, em seguida, joga-la fora.Na seqüência, colocar a tampa como lacre e sobre ela um objeto pesado,para mantê-la na posição corretaenquanto o conjunto esfria.

Nessa situação, a temperaturado vapor de água aprisionado norecipiente será alta. A diminuição dapressão interna, provocada por seu

resfriamento econdensação serás i g n i f i c a t i v a .Quando o conjun-to estiver frio, adiferença de pres-são atuante serásuficiente paracomprimir a tam-pa para baixo, im-pedindo que seja

retirada com facilidade.Na linha de produção das indús-

trias, a tampa é colocada depois daparte superior da embalagem tersido aquecida (geralmente usandovapor à temperatura próxima de80 °C). Após seu resfriamento, seobtém o valor mínimo de pressãointerna exigido pela legislação e seconsegue uma diferença de pressãosuficiente para manter a tampapresa por longo tempo, mesmo coma manipulação das embalagens.

BibliografiaA. Gaspar, Física (Ática, São Paulo, 2000).A. Maximo e B.A. Alvares, Física (Scipione,

São Paulo, 1997).H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica

(Edgard Blücher, São Paulo, 1986).P.T. Ueno, Física no Cotidiano (Didacta, São

Paulo, 2004).

Na Internetwww.cfn.org.brwww.embalagemmarca.com.brwww.rojek.com.br

Se corretamente realizados,os experimentos mostram

que mesmo uma diminuiçãorelativamente pequena napressão interna das tampasdos recipientes abre-fácil

implica em um valorrazoável da força necessária

para destampá-los