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O Instituto de Ciências Sociais (ICS) é uma escola da Universidade de Lisboa e um Laboratório Associado do Sistema Científico Nacional dedicado à investigação, aos estudos pós-graduados e à divulgação de ciência nas áreas de Antropologia, Ciência Política, Economia, Geografia, História, Psicologia Social e Sociologia (www.ics.ulisboa.pt). Durante um ano, todos os domingos, investigadoras e investigadores com diferentes formações, idades e percursos académicos partilham o seu trabalho com os leitores do P2. Ciências Sociais em Público (II) Opinião Nos últimos anos, vários estudos têm demonstrado como as várias sinergias negativas em torno da Amazónia (desflorestação, alterações climáticas e incêndios) estão a acelerar a sua savanização. São alterações que, para além consequências drásticas para a biodiversidade local, terão um impacto no clima global. Perante o falhanço da resposta global a esta realidade, porque não tentar uma resposta policêntrica, que junte ciência e política a nível mais local? Tentar uma governança policêntrica? Por Fronika de Wit Ver a floresta para além das árvores Governança climática na Amazónia

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O Instituto de Ciências Sociais (ICS) é uma escola da Universidade de Lisboae um Laboratório Associado do Sistema Científico Nacional dedicado à

investigação, aos estudos pós-graduados e à divulgação de ciência nas áreasde Antropologia, Ciência Política, Economia, Geografia, História, PsicologiaSocial e Sociologia (www.ics.ulisboa.pt). Durante um ano, todos os domingos,investigadoras e investigadores com diferentes formações, idades e

percursos académicos partilham o seu trabalho com os leitores do P2.

Ciências Sociais em Público (II) OpiniãoNos últimos anos, vários estudos têm demonstrado comoas várias sinergias negativas em torno da Amazónia(desflorestação, alterações climáticas e incêndios) estão aacelerar a sua savanização. São alterações que, para além

consequências drásticas para a biodiversidade local, terãoum impacto no clima global. Perante o falhanço da

resposta global a esta realidade, porque não tentar umaresposta policêntrica, que junte ciência e política a nívelmais local? Tentar uma governança policêntrica?

Por Fronika de Wit

Ver a floresta paraalém das árvoresGovernança climáticana Amazónia

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30 anosA florestaamazónica,em Xapuri,no Estadodo Acre,Brasil.

Segundocientistasdeveriasáreas,dentro decerca de 30anosaflorestaamazónicapodetornar-seumarealidadesemidesér-tica

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A Amazónia é um lugar quemexe com a nossa

imaginação. Para uns,pensar na floresta tropicalsugere a imagem de um

espaço vasto e verde: umaimensa unidade de

conservação a ser

preservada. Para outros, é um faroeste, comanimais selvagens e perigosos. Para a

maioria das pessoas, resume-se a um lugarque se vê apenas nos filmes ou emfotografias. Para mim, depois de lá ter vividoentre 2010 e 2016, a Amazónia é um lugaronde vivem cidadãos com uma enorme forçade vontade de fazer a diferença e mudar omundo. Por isso, acho importante partilhar aminha experiência e levar-vos comigo a umaviagem pela Amazónia real.

A viver no fim do mundoEstávamos em 2010 e lembro-me muito bemdo medo da minha família quando lhes disse

que ia mais uma vez para a florestaamazónica. "Mas como vais viver e dormirlá? E os animais? E as doenças?" Em 2005 e

2007, já lá tinha estado para fazer a minha

investigação de bacharelato e de mestrado, esabia que a realidade da Amazónia urbananão era assim tão diferente das cidades

europeias: não faltavam centros comerciais,restaurantes e hotéis com nomes familiares,assim como casas luxuosas com arcondicionado.

Não era só a minha família na Holanda quereagira como se eu estivesse a ir para umlugar remoto e perigoso. Quando cheguei ao

aeroporto de São Paulo e expliquei que iacontinuar a minha viagem até à cidade deRio Branco, no Acre, o agente da políciaolhou para mim com um ar desconfiado e

perguntou-me se eu tinha a certeza de queesse era o meu destino. No Brasil, o Estadodo Acre, um dos nove estados brasileiros queconstituem a Amazónia brasileira (tambémreferida como a Amazónia Legal), éconhecido como o "fim do mundo". NoBrasil, é costume dizer-se que o Acre está tão

longe que não existe.De 2010 a 2016, vivi neste "fim do mundo"

e descobri que, em muitos aspectos, ele é, naverdade, o centro. Rio Branco fica

objectivamente longe das grandesmetrópoles brasileiras, mas, com a

conclusão da Estrada Interoceânica em 2010,a cidade tornou-se a porta de entrada para oPeru. De Rio Branco até à cidade de Cusco

(Peru), a famosa capital do antigo impérioinça, demora-se um dia de viagem. O nome"Cusco", aliás, vem de Qosqo, que emquéchua, língua nativa de muitos povosindígenas contemporâneos, no Brasil,

Equador, Bolívia e Peru, significa umbigo oucentro do mundo. Outra curiosidade sobre oAcre é que este é o único estado brasileirocom um fuso horário com duas horas amenos em relação a Brasília. Isto significaque nas eleições brasileiras o país inteiroprecisa de esperar pelos dados do "fim domundo" para saber o resultado final.

A ciência climática e a AmazóniaEm 2008, uma equipa de investigadoresclimáticos, liderada por Tim Lenton,publicou um estudo sobre os elementos

globais em risco crítico, a que chamaram

tipping elements. Um dos nove tippingelements do planeta Terra é a Amazónia.

Interacções complexas entre a

desflorestação local e as emissões globaiscom efeito de estufa determinam os

potenciais cenários futuros. Este estudo

apontava para o trágico cenário de a

Amazónia se transformar numa savana e

passar de uma floresta que captura ocarbono a uma nova realidade emissora decarbono. Essa transformação teriaconsequências drásticas não só para abiodiversidade local, mas também para onosso clima global. Estudos anterioresindicavam que essa transformação poderiaacontecer com uma desflorestação de 40% e

um acréscimo da temperatura global de 4°C.Estudos mais recentes do climatólogo

brasileiro Carlos Nobre e do biólogoamericano Thomas Lovejoy, publicados narevista científica Science Advances em 2018,consideram que este ponto crítico será

atingido num prazo ainda mais curto. Estes

autores mostram que as sinergias negativasque se geram entre a desflorestação, as

alterações climáticas e o uso do fogo,colocam a Amazónia em risco com o pontocrítico de 20-25% de desflorestação. É,

portanto, muito preocupante sabermos quea actual perda florestal já está na casa dos 16

a 18%. Segundo investigadores de váriasáreas disciplinares, se continuarmos com as

taxas actuais de desflorestação, em cerca de30 anos a floresta Amazónica pode tornar-seuma realidade semidesértica.

No início deste ano, o mundo ficouabalado com as notícias sobre os fogosflorestais na Austrália. Vale a pena destacar a

diferença entre ambas as florestas e as

causas dos seus incêndios. O cientista Jos

Barlow, da Universidade de Lancaster,explica, num artigo publicado em 2019 narevista Global Changeßiology, que a maiorparte dos incêndios na floresta amazónicaocorre em áreas já desflorestadas. Na

Austrália, pelo contrário, os incêndiosacontecem na floresta em pé. Uma outradiferença é que a floresta australiana tem

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uma vegetação completamente diferente da

amazónica. A primeira é mais seca e, ao

longo do tempo, foi criando mecanismos de

adaptação. Estes são mecanismos que afloresta da Amazónia não tem. É aqui queentra a questão da governança, ou seja, o

conjunto de processos que permite regularum sistema social ou, através de leis,normas, poder ou linguagem, umasociedade organizada.

Governar o climaO que podemos então fazer para lidar comestes sinais críticos e proteger a Amazónia dasua savanização? A resposta está na ligaçãoentre ciência e política. A Convenção- Quadrodas Nações Unidas sobre Mudança do Clima(UNFCCC) tem reuniões anuais chamadasCOP (Conferências das Partes). As COPreúnem representantes dos governos dos

países-membros da Convenção, com o

objectivo de tomar decisões para promover asua efectiva implementação.

Infelizmente, a eficácia da governançaclimática internacional através da UNFCCC edas suas COP não tem sido muito efectiva.Uma das suas realizações mais celebradas foio Acordo de Paris, assinado na COP 21 de2015. Cinco anos após ter entrado em vigor, a

maioria dos países-membros não cumpriu os

compromissos assumidos. A investigadoraclimática Corinne Le Quéré, da Universidadede East Anglia, sublinha, no seu artigopublicado na revista Nature Climate Changeem 2019, a importância de melhorar as

acções políticas para reduzir as emissões

globais de carbono, de modo a serem mais

rigorosas. Sem acção climática mais rigorosa,o objectivo geral do Acordo de Paris -reduzir a emissão de gases com efeito deestufa para conter o aquecimento globalabaixo de 2°C em relação ao períodopré-industrial - estará longe de ser atingido.

A cientista política Elinor Ostrom, a

primeira mulher a receber o prémio Nobelde Ciências Económicas (2009), publicouum artigo em 2010 na revista GlobalEnvironmental Change, em que argumentaque, em vez de nos concentrarmos apenasnos esforços globais, devemos incentivaresforços policêntricos para reduzir as

emissões de gases com efeito de estufa. E o

que quer dizer uma governança"policêntrica"? Poli, do grego polus, significavários. Governança climática policêntricaexprime, portanto, a ideia de recorrer a

vários centros de tomada de decisãorelacionados com o combate às alteraçõesclimáticas. Para Ostrom, em vez de nosfocarmos apenas nas acções dos governosnacionais, devemos também valorizar o

poder dos governos subnacionais, da

sociedade civil, das entidades privadas e dasiniciativas transnacionais, entre outras. Este

tipo de tomada de decisão tem vindo acrescer como prática, e de forma muitopositiva, na Amazónia.

Governança policêntricana AmazóniaAntes da minha viagem em 2018, já conheciabastante bem a Amazónia brasileira, quecompreende cerca de 60% do bioma, ouseja, os ecossistemas, habitats oucomunidades biológicas com um certo nívelde homogeneidade. Mas a Amazónia não ésó brasileira. A maior floresta tropical domundo é partilhada por nove países. Depoisdo Brasil, a parte mais extensa está emterritório peruano (13%) e colombiano

(10%). Para uma melhor visão da

governança climática policêntrica naAmazónia, escolhi um estudo de casobrasileiro (o Estado do Acre) e um outro

peruano (o Departamento de Ucayali).Nestes meus dois estudos de caso entrevistei

representantes de governos subnacionais,ONG, associações indígenas, universidades eentidades privadas.

O meu trabalho de campo na Amazónia

peruana, conhecida como a regiãogeográfica da selva, começou em Agosto de2018 quando cheguei à cidade de Pucallpa,capital do Departamento de Ucayali.

Durante os meus três meses em Ucayali,conheci várias experiências de governançaparticipativa, com um papel especial para os

diferentes povos indígenas. Em 2015, Ucayalifoi o primeiro departamento peruano a criarum Grupo Regional de Trabalho de Políticas

Indígenas (GRTPI). O GRTPI estabeleceu um

espaço onde representantes de

departamentos governamentais e de

organizações regionais indígenas se juntampara falar sobre, entre outros temas,participação e representação políticaindígena. De acordo com os envolvidos, este

diálogo subnacional tem, aos poucos,aumentado os níveis de confiança e

fortalecido as organizações indígenas. Umexemplo prático disso foi a criação de umagerência subnacional para os povosindígenas que tem desenvolvido acçõesinterculturais e destaca a importância da

espiritualidade da floresta.Um outro exemplo de governança

policêntrica na Amazónia prende-se com o

papel das cidades. A geógrafa brasileiraBertha Becker identifica a Amazónia comouma "floresta urbanizada" e, no seu últimotrabalho, "A Urbe Amazônida" (2013),propõe um olhar diferente para as "cidadesflorestais". As cidades amazónicas desafiama divisão entre urbano e rural e, portanto, a

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governança local precisa de ter em contaessa relação. No Acre, inventaram umapalavra para isso - a florestaria - quedestaca a importância de uma cidadaniaflorestal. Exemplos práticos desta florestariana cidade de Rio Branco são a ampliação dos

parques urbanos e o desenvolvimento de

acções de educação ambiental quepromovem uma cultura de conservação dafloresta.

A floresta para além das árvoresSerão estas iniciativas de governança localsubstantivamente diferentes daquelasdesenvolvidas noutros países? Muitas vezesestamos demasiado focados em acções e

projectos individuais. Temos o hábito de veras árvores e não a floresta. Para ver além das

árvores, Peter Senge, autor do aclamadolivro The Fifth Discipline: TheArtandPracticeofthe Learning Organization (1990), propôsaquilo que designa como o "pensamentosistémico". Ele descreve esta abordagemcomo a arte de ver a floresta e as árvores, o

que permite ampliar a nossa visão. Penso

que era isso que Elinor Ostrom tinha emmente com o seu conceito de governançapolicêntrica. Não há só uma resposta certa

para prevenir a destruição da florestaamazónica. As iniciativas locais, como as queaqui foram descritas, fazem parte do

sistema, da floresta. Vendo a floresta paraalém das árvores, vemos melhor a força e a

importância da governança climática local.

Geógrafa