FLUZZ SÉRIE COMPLETA

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T T O O D D A A S S A A S S P P A A R R T T E E S S E E M M U U M M V V O O L L U U M M E E

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As nove partes da Série FLUZZ de Augusto de Franco (2011-2013) reunidas em um único volume

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TTOODDAASS AASS PPAARRTTEESS

EEMM UUMM VVOOLLUUMMEE

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A REDE

Augusto de Franco, 2012.

Versão Beta, sem revisão.

A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada

com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.

Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta

obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser

reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por

quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –

na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e

distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser

omitida a autoria da versão original.

FRANCO, Augusto de

A REDE / Augusto de Franco. – São Paulo: 2012.

80 p. A4 – (Escola de Redes; 7)

1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.

Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e

à criação e transferência de tecnologias de netweaving.

http://escoladeredes.net

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SSuummáárriioo

Introdução | 9

No multiverso das interações | 12

Mundos que se descobrem em rede | 15

É o social, estúpido | 23

O nome está dizendo: redes sociais | 26

É comunicação, não informação | 29

É interação, não participação | 35

Padrões, não conjuntos | 43

Conhecimento é relação social | 46

A chefia é contra a liderança | 49

Nenhuma hierarquia é natural | 52

Poder é uma medida de não rede | 54

Autorregulação é sem administração | 56

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Pessoas, não indivíduos | 59

As redes sociais já são a mudança | 61

Aranhas não geram estrelas-do-mar | 63

Epílogo | 66

Notas e referências | 69

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IInnttrroodduuççããoo

O ERUDITO GERSHOM SCHOLEM (que ficou mais conhecido nos meios

acadêmicos – tão laicos quanto pouco ilustrados – em virtude de sua bela

amizade com Walter Benjamin), no seu monumental estudo sobre o

misticismo judaico, Major Trends in Jewish Mysticism (1941) (1),

comentando a formidável abstração que os cabalistas do século 13

denominaram Ein-Sof (o nada primordial do qual emana a “seiva” que

percorre a “árvore” numérica que constitui a estrutura do universo,

criando, formando e produzindo a existência), lança mão de uma metáfora

luminosa: ele “é – diz – o abismo que se torna visível nas fendas da

existência”. E relata em seguida que “alguns cabalistas que desenvolveram

esta idéia, por exemplo, Rabi Iossef ben-Shalom de Barcelona (1300),

sustentam que em toda transformação da realidade, em toda mudança da

forma, ou toda vez que o status de uma coisa é alterado, o abismo do

nada é cruzado e por um fugaz momento místico torna-se visível. Nada

pode mudar sem entrar em contato com esta região do Ser absoluto puro

que os místicos chamam de Nada”.

Realmente impressionante. Sem pretender elaborar alguma teosofia das

redes, podemos fazer agora um paralelo meramente literário e apenas

evocativo de uma imagem para efeitos heurísticos. Esse mundo oculto dos

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cabalistas provençais, catalães e castelhanos e, depois, safeditas (o mundo

– ou árvore – das Sefirot) é como se fosse o mundo das fluições (o espaço-

tempo dos fluxos) onde as redes sociais existem, o multiverso das

conexões também ocultas que produzem o que chamamos de ‘social’.

Há fendas. Há um abismo que não se deixa ver a menos no instante fugaz

em que uma fenda se abre. E nada pode mudar na estrutura e na dinâmica

do mundo (manifesto, vamos dizer assim – ou produzido) sem que haja

uma mudança correspondente nas configurações daquele mundo oculto,

ou seja, nos fluxos que o caracterizam ou no ritmo da fluição. Seria algo

mais ou menos assim, para lançar mão de uma metáfora menos esotérica

– mas não tanto – usada pelos físicos contemporâneos, como a vibração

de uma corda ou de uma membrana.

Mas, não! Ainda não é bem isso. Há fendas, sim, mas por trás das fendas

não há uma ordem implícita, pré-existente em alguma esfera oculta: a

ordem está sempre sendo criada no presente da interação!

Que fendas seriam essas? Onde estaria esse abismo?

Abismo. Fenda. Quando a fenda se abre, “vemos” fluzz (*). Mas o que

vemos quando “vemos” fluzz?

Espiar de fora para dentro do abismo nada-revela (e esse, por incrível que

não-pareça, é um dos sentidos daquele nada primordial: porque no

princípio era a rede). Nada se pode ver a não ser que se mergulhe na

fluição, como fez o sufi Mojud, “O homem cuja história era inexplicável”

(2); quando perguntado de que maneira havia alcançado tanta sabedoria,

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ele não-explicou dizendo assim: “Eu me atirei num rio... [e] simplesmente

deixei”.

Goethe (1821) terminou com o seguinte verso o poema Eins und Alles,

“tudo deve cair no nada, se quiser persistir em ser” (3). Tem que pular

dentro – se abismar – para ver.

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NNoo mmuullttiivveerrssoo ddaass iinntteerraaççõõeess

A fonte que só existe enquanto-fluzz só pode ser conhecida quando

interagimos, quer dizer, enquanto estamos nela

NO PRINCÍPIO ERA A REDE. Mas o mundo das redes não é um mundo: é

um multiverso de interações. Multiverso das interações significa, como

disse Heráclito, que “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”; ou,

talvez corrigindo antecipatoriamente seu “discípulo” Crátilo, que

“descemos e não descemos nos mesmos rios”.

Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são

muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,

dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interações

que se constelam e se desfazem, intermitentemente.

Na verdade, quem se move é essa rede que nos envolve, como aquele “rio

que deflui silencioso dentro da noite” no verso de Manuel Bandeira (1948)

(4). Como aquele rio que corre no “lado de dentro” do abismo.

O ritmo da fluição está implicado no modo de interagir. Diferentemente

do que se pensava, não é o conteúdo do que flui a variável fundamental

para explicar a fenomenologia de uma rede e sim o modo-de-interagir e

suas características.

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Quanto mais distribuída for a topologia de uma rede, mais-fluzz ela será.

Quer dizer, mais interatividade haverá. E mais evidentes serão essas

características (invisíveis do “lado de fora” do abismo) do seu modo-de-

interagir.

Conhecer as redes é interpretar modos-de-interagir (reconhecendo

padrões). O que só se pode conseguir interagindo (estabelecendo

conexões). Eis o principal fundamento de uma teoria do conhecimento

fluzz – que é também uma teoria conectivista da aprendizagem e uma

teoria da ação comunicativa por acoplamento estrutural e coordenação de

coordenações (Maturana e Varela). Com efeito, Francisco Varela (1984)

escreveu que “não há informação transmitida na comunicação. A

comunicação ocorre toda vez em que há coordenação comportamental em

um domínio de acoplamento estrutural... cada pessoa diz o que diz e ouve

o que ouve segundo sua própria determinação estrutural... O fenômeno da

comunicação não depende do que se fornece, e sim do que acontece com o

receptor” (5). Na verdade, depende do que acontece com os interagentes.

A comunicação vareliana é uma interação: se A se comunica com B,

significa que B muda com A, que muda com B, que muda novamente com

A, que muda outra vez com B... e assim por diante, recorrentemente,

como em uma coreografia. Mas tudo isso “multiplicado” pelo número de

nodos em interação, pois que se trata sempre de um multi-acoplamento,

não ocorre aos pares, mas entre todos os que compõem cada um dos

muitos mundos que se configuram.

Goethe – em um insight heraclítico – escreveu que “a fonte só pode ser

pensada enquanto flui” (6). Alguém é nodo de uma rede nisi quatenus

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interage. A fonte que só existe enquanto flui (fluzz) só pode ser conhecida

enquanto interagimos, quer dizer, enquanto estamos nela.

Bem, isso muda tudo.

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MMuunnddooss qquuee ssee ddeessccoobbrreemm eemm rreeddee

O social não é o conjunto das pessoas, mas o que está entre elas

A GRANDE NOVIDADE DO TEMPO em que vivemos não é o surgimento de

uma sociedade em rede (que, de resto, sempre existiu desde que existem

seres humanos em interação), mas a generalização do entendimento de

que sociedade = rede social.

Na verdade, não existe nada como ‘a’ sociedade: as sociedades são

sempre configurações concretas e particulares que, olhadas de certo

ponto de vista, revelam seres humanos em interação; quer dizer, a

compreensão do social surge quando se constela a percepção de que não

existem unidades humanas separadas. De que o social não é o conjunto

das pessoas, mas o que está entre elas. E de que cada mundo social é

também (um modo de ser) humano. A medida que esses mundos sociais

vão se descobrindo em rede, como se diz, “as fichas vão caindo”. Vários

aspectos surpreendentes dessa descoberta já podem ser registrados. O

primeiro deles é que redes mais distribuídas do que centralizas são

possíveis, sim, no “mundo real”.

As redes sociais viraram moda nos últimos anos. Sites de relacionamento e

serviços de emissão e troca de mensagens na Internet como, dentre

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centenas de outros, MySpace, Facebook, Orkut e Twitter, que se

autodenominaram (ou foram denominados) – impropriamente – ‘redes

sociais’, proliferaram na primeira década do século 21, registrando

milhões de pessoas.

É fácil. Em geral não demora nem cinco minutos. Então muitos desses

milhões de usuários de tais serviços acreditaram na conversa e acharam

que, pelo fato de terem feito login e senha em um ou em vários desses

sites, estavam “participando de redes sociais”.

Fosse lá alguém dizer-lhes que redes sociais não são redes digitais ou

virtuais, mas, como o nome está dizendo, são sociais mesmo: um novo

padrão de organização, mais distribuído do que centralizado.

As pessoas não entendiam as redes, antes de qualquer coisa porque não

sabiam a diferença entre descentralizado e distribuído. Não percebiam

que descentralizado não é sem centro e sim com muitos centros. Sem

centro é distribuído.

A figura abaixo mostra os famosos diagramas de Paul Baran (1964) (7).

Note-se que os nodos estão no mesmo lugar, o que muda nos três

desenhos é a topologia, a configuração dos fluxos.

A maioria das pessoas que se registraram nas tais “redes sociais”,

entretanto, nunca tinha ouvido falar disso. De milhões de pessoas

registradas em sites de relacionamento e plataformas interativas, quantas,

na hora de elaborar um texto, vídeo ou programa, organizar um evento,

implementar ou executar um projeto, produzir algum bem, vender algum

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produto ou prestar um serviço, atuavam em rede? E quantas abriram mão

de dirigir, participar ou trabalhar em alguma organização hierárquica

(quer dizer, mais centralizada do que distribuída)?

Diagramas de Paul Baran

Mesmo os que já tinham ouvido falar das redes sociais como novo padrão

de organização distribuído – mesmo estes – tentavam escapar dessa

evidência aproveitando a profusão dos sites de relacionamento e

plataformas interativas na Internet. A maioria fazia um blog ou se

registrava em alguma "rede social" e pronto: de vez em quando ia lá,

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postava um texto, um vídeo ou um comentário e dizia que "pertencia" a

uma (ou várias) rede(s). No restante do tempo, porém, essas pessoas

continuavam estudando, trabalhando, produzindo ou prestando serviços

em organizações hierárquicas (fosse uma burocracia escolar ou

acadêmica, uma empresa, uma organização não-governamental ou uma

instituição estatal). Havia exceções, é claro. Mas, na maior parte dos

casos, era assim.

Inclusive acadêmicos, militantes sociais e consultores que falavam tanto

em redes sociais, por algum motivo tinham imensa dificuldade de articulá-

las. Provavelmente porque não conseguiam experimentá-las. Bastava ver

como essas pessoas se relacionavam com as outras pessoas que lhe eram

próximas: será que elas participavam de redes nos seus locais de moradia,

estudo, trabalho, lazer ou em torno de seus temas de interesse?

Em suma, as pessoas tendiam (e, em grande parte ainda tendem) a se

organizar – reproduzindo o que é de praxe - segundo um padrão de

organização centralizado ou multicentralizado. Para manter centralizações

e filtros que caracterizam uma organização hierárquica, os mais

inteligentes em geral argumentavam que “tem que haver uma transição”,

ou que “uma organização em rede distribuída (em um mundo como o

nosso) é uma utopia”. E argumentava assim inclusive boa parte dos que

investigavam as redes sociais e publicavam sobre o assunto.

Com o surgimento de novos mundos-fluzz, as coisas, entretanto,

começam a se passar de outro jeito. A idéia de que redes sociais (mais

distribuídas do que centralizadas) não são possíveis no “mundo real” (seja

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lá o que se entende por isso) como forma de (auto) organização da ação

coletiva, foi sendo abandonada. Essa idéia, como se sabe, está baseada no

velho preconceito de que nada que agregue uma pluralidade de seres

humanos poderia funcionar sem administração (baseada em comando-e-

controle), sem organização (a partir de modelos de ordem aplicados top

down), sem liderança (ou melhor, monoliderança).

Foi ficando cada vez mais claro que, em qualquer lugar, pode-se “fazer

redes”. Sim, em qualquer lugar: na vizinhança, na empresa, na ONG,

entidade ou organização da sociedade civil, em um órgão governamental

et coetera. Pouco importa se a estrutura dessas localidades ou

organizações é vertical, hierárquica, centralizada: as pessoas que estão lá

não são e não há como impedir que elas se conectem horizontalmente, de

modo distribuído, umas com as outras. E não importa se todas as pessoas

não estiverem dispostas a fazer isso. E não importa se a maioria das

pessoas em cada uma dessas territorialidades ou organizações for contra

isso. A partir de três pessoas já é possível começar uma rede distribuída.

Fazendo isso, articulando uma rede distribuída, cria-se uma “zona

autônoma” (em relação ao poder centralizado). Se for uma rede

distribuída (a rigor, mais distribuída do que centralizada), coisas

surpreendentes começarão a acontecer (na medida do grau de

distribuição e de conectividade alcançados). Uma nova fenomenologia

certamente acompanhará a nova topologia. Pode-se apostar que isso fará

diferença. E que a diferença será notável.

Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio começa a

brotar a consciência de que fazer rede é fazer amigos. Amigos políticos, no

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sentido original, grego, do termo ‘político’, que se refere à interação e à

inserção na comunidade política; i. e., à polis – que não era a cidade-

Estado e sim a koinonia política (como assinalou Hannah Arendt em “A

condição humana” (1958): “a polis não era Atenas, e sim os atenienses”)

(8). Isso é uma subversão completa das identidades organizacionais

abstratas, construídas top down para alocar uma pessoa em um degrau da

escada. Para que ela pise na cabeça de quem está no degrau de baixo e

tente ultrapassar quem está no degrau de cima, agarrando-se a ele e

puxando-o para baixo, como fazem os caranguejos em uma lata...

Essa é a grande descoberta da democracia como movimento de

desconstituição de autocracia, instaurada na experiência local dos gregos

para evitar a volta da tirania dos Psistrátidas (que, como qualquer poder

vertical, se baseava na inimizade política). Tratava-se de preservar a

liberdade. Mas como escreveu a mesma Arendt, em “A questão da

guerra” (1959): [para os gregos] “a liberdade... é um atributo do modo

como os seres humanos se organizam e nada mais” (9). Dizendo de outra

maneira (e pulando algumas passagens da argumentação): a falta de

liberdade é uma função direta dos superávits de ordem top down.

Antes era mais difícil reconhecer isso: todas as organizações verticais se

baseiam na inimizade política: quanto mais centralizadas, mais “se

alimentam” de inimizade e de seus bad feelings acompanhantes, como a

desconfiança. Ora, é isso que torna imperativa a necessidade de controle

e, por decorrência, a exigência de obediência.

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Fazer amigos é uma subversão de todos os mecanismos de comando-e-

controle. Fazer amigos que se conectam em rede distribuída dentro de

uma organização hierárquica vai desabilitando ou corrompendo os scripts

dos programas verticalizadores que rodam nessa organização. Redes

distribuídas, mesmo com pequeno número de nodos, funcionam, assim,

dentro de uma organização hierárquica, como espécies de vírus; ou

melhor, de anti-virus (pois em relação à rede-mãe – aquela rede que

existe independentemente de nossos esforços conectivos voluntários, à

rede que existe desde que existam seres humanos que se relacionam

entre si – são os programas verticalizadores que devem ser encarados

como vírus).

Trata-se de uma infecção antiga, resistente, resiliente, que permanece na

medida em que nós nos transformamos em vetores de contaminação por

meio de nossas formas de relacionamento. Cada piramidezinha que

construímos, nos espaços privados e públicos que habitamos, na nossa

família, escola, igreja, entidade, corporação, empresa, partido ou governo,

vai viabilizando a prorrogação da infestação do poder vertical. Pelo

contrário, cada rede que articulamos vai dificultando a propagação desse

vírus ou a replicação desse meme, por meio da criação de zonas

autônomas, mesmo que sejam temporárias (e são, como percebeu Hakim

Bey) (10), criando condições para que a confiança possa transitar (ou para

que o capital social possa fluir, se preferirmos usar essa metáfora), para

que a competição possa ser convertida em cooperação; enfim – em um

sentido ampliado do termo – para a manifestação da amizade (ou para

fazer “downloads” daquela emoção que Maturana (11) chamou... vejam

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só!, de amor, mas a palavra parece ser forte demais – um verdadeiro

escândalo – e acaba chocando as pessoas que se imaginam preocupadas

com coisas “mais sérias”.

Mas não se trata de converter as almas por meio do proselitismo, do

discurso ético normativo, exalçando as vantagens da cooperação sobre a

competição, como imaginavam os adeptos das concepções 2.0. Trata-se

de adotar padrões de organização que viabilizem a conversão de

competição em cooperação. Parodiando Arendt, “a cooperação... é um

atributo do modo como os seres humanos se organizam e nada mais”. Se

nos organizamos segundo um padrão de rede distribuída, isso começa a

ocorrer “naturalmente”; quer dizer, é uma fenomenologia que se

manifesta em função da topologia (e não das boas intenções dos sujeitos).

Uma organização hierárquica de seres animados pelas melhores

intenções, cheios de amor-prá-dar, não se constitui como um ambiente

favorável à cooperação. Em outras palavras, o capital social de uma

organização rigidamente centralizada será sempre próximo de zero,

mesmo que tal organização seja composta por clones de Francisco de

Assis ou por réplicas perfeitas de Mohandas Ghandi.

Essas descobertas foram conseqüências da formidável irrupção-fluzz que

começou a alterar radicalmente nossos flowscapes conceituais e

organizacionais. Mas tem mais.

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ÉÉ oo ssoocciiaall,, eessttúúppiiddoo!!

As redes sociais não surgiram com as novas tecnologias de informação e

comunicação

QUANDO MARSHALL MCLUHAN AFIRMOU, em uma palestra proferida em

1974, que “é o ambiente que muda as pessoas, não a tecnologia” ainda

não haviam surgido constructs – como o de capital social como rede social

– capazes de justificar adequadamente tal afirmação (12). Como se sabe, a

idéia de que capital social nada mais é do que rede social, ainda que tenha

sido formulada em 1961, por Jane Jacobs, ficou praticamente

desconhecida por mais de duas décadas (13). Os esforços pioneiros de

Coleman (1988) (14) não resgataram essa descoberta surpreendente,

segundo a qual a influência do ambiente depende de padrões

conformados pela interação (e a própria natureza do que chamamos de

ambiente nada mais é do que a de um “campo”, em um sentido deslizado

daquele em que a palavra é empregada em física: como campo de forças).

Mas a hipótese de McLuhan revelou-se correta e pode ser justificada

desse ponto de vista (e talvez só assim possa ser justificada). O ambiente

muda as pessoas porque o comportamento individual é sempre função,

em alguma medida, das relações entre as pessoas. E, além disso, porque

as próprias pessoas se constituem, como tais, na interação (um indivíduo

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isolado da espécie humana, se pudesse subsistir, não poderia ser uma

pessoa).

Conquanto ainda esteja bastante difundida a idéia de que redes são um

novo tipo de organização surgida com as novas tecnologias de informação

e comunicação (TICs), tal idéia vem se revelando inconsistente, sobretudo

porque deixa de ver o fundamental: redes são um padrão de organização

que pode ser ensaiado com diferentes mídias e tecnologias (até com sinais

de fumaça, tambores, conversações presenciais, cartas escritas à mão em

papel e transportadas à cavalo et coetera).

Ou seja, é o social que determina comportamentos, não o tecnológico.

Pode-se usar tecnologias interativas de um modo que não altere em nada

ou quase nada os padrões de interação. Por exemplo, computadores

conectados à internet na maioria das escolas não viabilizam, por si só,

mudanças no padrão de interação entre os alunos, que continuam

organizados como rebanho, cada qual com sua supermáquina conectada,

mas todos virados para um professor que centraliza a rede.

Na formulação, a várias mãos, da Declaração de Independência dos

Estados Unidos (1776), a tecnologia utilizada (midia) foi a carta escrita em

papel, o cavaleiro (carteiro) e o cavalo, mas o padrão de interação foi, ao

que tudo indica, o de rede distribuída. Hoje, mais de dois séculos depois, o

processo de elaboração de uma diretiva estratégica no Pentágono, a

despeito de usar sofisticados meios de comunicação interativos, revela um

padrão de interação centralizado.

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Ao contrário do que parece, as redes sociais não surgiram com as novas

tecnologias de informação e comunicação. Ainda que tecnologias mais

interativas em tempo real (ou sem-distância) possam facilitar a adoção de

padrões mais distribuídos do que centralizados de organização – e

possam, além disso, acelerar a interação – é o modo como as pessoas

interagem (social) e não o recurso (tecnológico) que determina o

comportamento coletivo. A fenomenologia é sempre função da topologia,

seja qual for a tecnologia empregada.

Acelerando a interação, entretanto, alguns fenômenos que só seriam

perceptíveis em linhas temporais muito longas, podem ser captados mais

rapidamente. É o caso do swarming de pessoas: enxameamentos cívicos

levando a grandes manifestações de massa podem ser observados, caso

haja possibilidade de conexão em tempo real (por telefone móvel ou e-

mail, por exemplo), em horas ou até minutos (15). Sem tais recursos

tecnológicos, esses fenômenos (ou seus similares ou correspondentes)

poderiam levar dias ou até anos para se engendrar. Mas isso não significa

que eles ocorrem por causa da tecnologia. Se as pessoas não puderem

interagir uma-a-uma (P2P), se não estiverem conectadas segundo um

padrão distribuído, de pouco adiantarão as mais avançadas tecnologias

interativas. O mesmo vale para outros fenômenos típicos das redes: eles

dependem do padrão de interação (dos graus de distribuição e

conectividade) e não das tecnologias (dos recursos, dos dispositivos, das

mídias).

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OO nnoommee eessttáá ddiizzeennddoo:: rreeddeess ssoocciiaaiiss

Redes sociais são pessoas interagindo, não ferramentas

EMBORA TENHA SE ALASTRADO COMO UMA PRAGA a idéia de que as

redes sociais são a mesma coisa que as mídias sociais, redes digitais,

ambientes virtuais, sites de relacionamento (como Facebook ou Orkut) ou

plataformas interativas (como Ning ou Elgg), tal idéia se revelou

equivocada, sobretudo porque elide o fato de que redes sociais são

pessoas interagindo, não ferramentas.

Essa discussão ganhou força nos últimos tempos com a busca por

ferramentas digitais – plataformas interativas na Internet – mais

adequadas ao netweaving, quer dizer, para servir de instrumentos de

articulação e animação de redes sociais (16).

Três hipóteses surgiram para explicar por que as plataformas interativas

disponíveis, que foram desenvolvidas para a gestão de redes sociais (ou

até mesmo para serem, elas próprias, “redes sociais”) não eram boas

ferramentas de netweaving:

Em primeiro lugar porque seus desenvolvedores confundiam midias

sociais com redes sociais, tomavam a ferramenta (digital) pela rede

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(social), quando, como vimos, redes sociais são pessoas (conectadas,

interagindo), não ferramentas!

Em segundo lugar porque, sob o influxo da chamada Web 2.0, as

plataformas disponíveis eram (e ainda são, em grande parte) baseadas na

participação (p-based) e não na interação (i-based). Assim, não se regiam

pela lógica das redes mais distribuídas do que centralizadas, quer dizer,

pela lógica da abundância (17), mas sim pelo regime da escassez (e ao

aceitarem tal condicionamento, de ter que funcionar em condições de

escassez quando já há abundância, reproduziam desnecessariamente

escassez, rendendo-se a um tipo de "economia política" onde a política é

um modo de regulação não-pluriárquico). Não é outro o motivo pelo qual

ativavam mecanismos de contagem de cliques, instituíam votações e

atribuições de preferências baseadas na soma aritmética, que significam

regulações majoritárias da inimizade política. Ora, isso ensejava a

formação de oligarquias participativas que tentavam organizar a auto-

organização (como ocorreu, por exemplo, na Wikipedia).

Em terceiro lugar - e como conseqüência do seu fundamento p-based - as

plataformas de articulação e animação de redes sociais (que já se

encaravam, algumas delas pelo menos, como se fossem as próprias redes

sociais), ainda estavam voltadas para organizar conteúdos (encarando,

inevitavelmente, o conhecimento como um objeto e não como uma

relação social). Esse é um problema porquanto a gestão do conteúdo, do

conhecimento-objeto, ao tentar traçar um caminho para os outros

acessarem tal conteúdo, cava sulcos para fazer escorrer por eles as coisas

que ainda virão (na e da interação), com isso repetindo passado e

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trancando o futuro (como fazem, secularmente, as burocracias sacerdotais

do conhecimento, mais conhecidas pelo nome de escolas e não é por

acaso que boa parte dessas plataformas tenha sido pensada por

professores ou construída para atender a objetivos educacionais,

entendidos como objetivos de ensinagem e não de aprendizagem). Mas

para uma plataforma i-based - adequada ao propósito de servir de

ferramenta para o netweaving - não se trataria de pavimentar uma

estrada para os outros percorrerem e sim de possibilitar que cada um

pudesse abrir seu próprio caminho (posto que redes são múltiplos

caminhos).

Ademais, ao contrário do que acreditavam os supostos especialistas em

redes sociais na Internet, não é o conteúdo do que flui a variável

fundamental para explicar a fenomenologia de uma rede e sim o modo-

de-interagir.

Mas para compreender essas observações é necessário entender quais

são, afinal, as diferenças entre comunicação e informação e entre

interação e participação. São questões fundamentais porque, de certo

modo, entende-las é entender as redes.

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ÉÉ ccoommuunniiccaaççããoo,, nnããoo iinnffoorrmmaaççããoo

Redes sociais não são redes de informação

QUANDO NORBERT WIENER (1950) escreveu, em Cibernética e Sociedade,

que “um padrão é uma mensagem e pode ser transmitido como tal”, abriu

uma linha de reflexão segundo a qual todas as coisas – inclusive as

pessoas, que, segundo ele, não passam “de redemoinhos em um rio de

água sempre a correr” – são como que singularidades em um continuum,

campo, tecido ou espaço (18). A hipótese é fértil, inclusive pelo seu poder

heurístico. Mais do que isso, entretanto: é uma hipótese-fluzz.

Mas por essa porta aberta à imaginação criadora, também passou um

pensamento rastejante: como transmissão de mensagem evoca sempre

informação, uma visão de que tudo poderia ser reduzido, em última

instância, à informação, acabou se estabelecendo. Redes, pensadas mais

como redes de máquinas que trocam conteúdos entre si, foram assim

concebidas como redes de informação.

Uma das descobertas tão recentes quanto surpreendentes nesta ante-sala

da época-fluzz em que vivemos é que, ao contrário do que pensavam os

teóricos da informação, redes sociais não podem ser reduzidas à redes de

informação. Ainda que toda influência seja um padrão, ela não pode ser

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reduzida a um código. É o padrão de interação que é relevante e não a

transmissão-recepção da mensagem entendida como um conteúdo de

arquivo.

Redes sociais são redes de comunicação, é óbvio. Mas ainda que o

conceito de informação seja bastante elástico, isso não é a mesma coisa

que dizer que elas são redes de informação. Redes são sistemas

interativos e a interação não é apenas uma transmissão-recepção de

dados: se fosse assim não haveria como distinguir uma rede social

(pessoas interagindo) de uma rede de máquinas (computadores

conectados, por exemplo).

Ao tomar as redes sociais como redes de informação, imaginando que

tudo não passa de bytes transmitidos e recebidos, freqüentemente

deixávamos de ver que a comunicação modifica os sujeitos interagentes (e

só acontece quando tal modificação acontece). Humberto Maturana e

Francisco Varela explicaram isso muito bem em um box (ao que tudo

indica atribuído ao segundo) do livro A Árvore do Conhecimento (1984)

intitulado “A metáfora do tubo para a comunicação” (19):

“Nossa discussão nos levou a concluir que, biologicamente, não há

informação transmitida na comunicação. A comunicação ocorre

toda vez em que há coordenação comportamental em um domínio

de acoplamento estrutural. Tal conclusão só é chocante se

continuarmos adotando a metáfora mais corrente para a

comunicação, popularizada pelos meios de comunicação. É a

metáfora do tubo, segundo a qual a comunicação é algo gerado em

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um ponto, levado por um condutor (ou tubo) e entregue ao outro

extremo receptor. Portanto, há algo que é comunicado e transmitido

integralmente pelo veículo. Daí estarmos acostumados a falar da

informação contida em uma imagem, objeto ou na palavra

impressa. Segundo nossa análise, essa metáfora é

fundamentalmente falsa, porque supõe uma unidade não

determinada estruturalmente, em que as interações são instrutivas,

como se o que ocorre com um organismo em uma interação fosse

determinado pelo agente perturbador e não por sua dinâmica

estrutural. No entanto, é evidente no próprio dia-a-dia que a

comunicação não ocorre assim: cada pessoa diz o que diz e ouve o

que ouve segundo sua própria determinação estrutural. Da

perspectiva de um observador, sempre há ambigüidade em uma

interação comunicativa. O fenômeno da comunicação não depende

do que se fornece, e sim do que acontece com o receptor. E isso é

muito diferente de ‘transmitir informação’.”

Além disso, há características da interação que não se resumem àquela

transmissão-recepção de conteúdos evocada pelo uso corrente do

conceito de informação. Em uma rede social é como se as pessoas

estivessem emaranhadas e a modificação do estado de uma pessoa em-

interação com outra acaba alterando o estado dessa outra sem que,

necessariamente, tenha havido a transmissão voluntária (e, talvez nem

mesmo involuntária) de uma mensagem da primeira para a segunda. Por

exemplo, uma pessoa tende a se adaptar ao comportamento das outras,

tende a imitar padrões de comportamento reconhecidos nas outras e

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tende, inclusive, a cooperar com elas (voluntária e gratuitamente). Uma

pessoa pode ficar alegre ou triste, saudável ou doente, esperançosa ou

descrente, em função da estrutura e da dinâmica desse emaranhado em

que está imersa. Ao contrário do que se acredita, nada disso depende

diretamente de um conteúdo transferido e recebido, intencionado na

transmissão e interpretado na recepção, mas é função de outras

características do modo-de-interagir como a freqüência e a recursividade,

as reverberações e os loopings, os laços de retroalimentação etc.

É mais ou menos como o que revelou a investigação de Deborah Gordon

(1999), professora de ciências biológicas em Stanford, que pesquisou

durantes dezessete anos colônias de formigas no Arizona. Ela descobriu

que “a decisão de uma formiga quanto a uma tarefa é baseada em sua

taxa de interação”. Mas “o que produz o efeito é o padrão de interação,

não um sinal na própria interação. As formigas não dizem umas às outras

o que fazer por meio da transferência de mensagens. O sinal não está no

contato, ou na informação química trocada no contato. O sinal está no

padrão de contato” (20). Ou seja, não se trata de uma comunicação de

conteúdo, de um código, mas da freqüência e das circunstâncias em que

se dão os contatos.

Em uma rede estamos sofrendo a influência de um campo, mas tal

influência é sistêmica e o comportamento adotado por um agente

dificilmente pode ser atribuído à ação e muito menos à intenção única e

exclusiva de outro agente. Quer dizer, quando ficamos alegres em virtude

desse efeito sistêmico do campo em que estamos imersos (a rede) é como

se tal fato fosse inexplicável, o que significa apenas que não conseguimos

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explicá-lo com base nos nossos esquemas explicativos habituais, focados

nos indivíduos e não na rede, apontando um sujeito particular que nos

sugestionou positivamente ou exerceu essa influência sobre nós de outra

forma conhecida. Mas não é assim que a coisa funciona.

Quando foi observado que os habitantes da famosa Roseto, na

Pensilvânia, se mostravam mais saudáveis, do ponto de vista

cardiovascular, do que as pessoas das comunidades vizinhas, muito

semelhantes à Roseto, em vários aspectos, isso não pôde ser atribuído a

nenhum fator particular (genética, alimentação, exercícios físicos, atenção

à saúde preventiva ou cuidados médicos), mas foi associado corretamente

à comunidade. O mistério só foi resolvido quando dois pesquisadores

(Stewart Wolf e John Bruhn) resolveram observar como as pessoas

interagiam (“parando para conversar na rua ou cozinhando umas para as

outras nos quintais”). “Elas eram saudáveis – conta Malcolm Gladwell

(2008) – por causa do lugar onde viviam, do mundo que haviam criado

para si mesmas…” (21). Sim, interação e lugar. Em outras palavras,

conversações e comunidade. Em outras palavras, ainda: rede social!

É claro que, a despeito do que foi dito aqui, ainda se pode afirmar que

tudo se reduz, em última instância, à informação: em qualquer interação,

em termos físicos, partículas mensageiras de um dos quatro campos de

forças se “deslocaram”, se espalharam ou se aglomeraram (o simples fato

de ver alguém, por exemplo, implica “deslocamentos” de bósons – no

caso, de fótons, partículas mensageiras do campo eletromagnético) e isso

pode, corretamente, ser interpretado como informação. Mas o significado

da palavra informação – tal como é tomado no dia-a-dia ou mesmo como

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às vezes é usado pelos chamados “cientistas da informação” – não ajuda

muito a entender os fenômenos que acontecem nas redes sociais e que

lhes são próprios.

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ÉÉ iinntteerraaççããoo,, nnããoo ppaarrttiicciippaaççããoo

Redes sociais são ambientes de interação, não de participação

A AFIRMAÇÃO SÓ É VÁLIDA, claro, para redes distribuídas, quer dizer, mais

distribuídas do que centralizadas. Quanto mais distribuída for a topologia

de uma rede, mais ela poderá ser i-based (interaction-based) e menos p-

based (participation-based). Tudo que fluzz é i-based, não p-based.

A palavra participação designa uma noção construída por fora da

interação. Participar é se tornar parte ou partícipe de algo que não foi

reinventado no instante mesmo em que uma configuração coletiva de

interações se estabeleceu, mas algo que foi (já estava) dado ex ante.

Como se a gente sempre participasse de algo “dos outros”. Não é por

acaso que a expressão 'democracia participativa' foi aplicada para

designar diversas formas de arrebanhamento, inclusive uma variedade de

experiências assembleísticas adversariais, onde a tônica era a luta, a

disputa por maioria ou hegemonia e se praticava a política como “arte da

guerra” lançando-se mão de modos de regulação de conflitos que geram

artificialmente escassez (como a votação, o rodízio, a construção

administrada de consenso e, inclusive, sob alguns aspectos, o sorteio).

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Mas isso não significa exatamente, como pode parecer à primeira vista,

que interagir, então, diga respeito somente à atuação em algo "nosso"

enquanto participar diga respeito à atuação em algo "dos outros".

Não, não é bem assim, a menos que esse "nosso", aqui, não seja tomado

em um sentido proprietário (como eufemismo, para dizer "meu") em

contraposição ao "dos outros" (“deles”). O "nosso" conformado na

interação não se pré-estabelece, não conforma uma identidade

identificável com um grupo determinado de agentes antes da interação,

ao contrário do "nosso" (na lógica coletiva de um "eu" organizacional já

construído) quando esse "nosso" foi instituído por um grupo que, ao fazê-

lo, estabeleceu uma fronteira (dentro ≠ fora) independentemente da

interação fortuita que já está acontecendo e que ainda virá. Neste caso, a

organização será um congelamento de fluxos, uma cristalização de uma

situação pretérita, um pedaço do passado cortado que se enxerta

continuamente no presente para manter as configurações que, em algum

momento, atribuíram a determinadas pessoas certos papéis que se quer

reproduzir (essa é a triste história da liderança, ou melhor, da

monoliderança, dos líderes que, tendo liderado algum dia, querem se

prorrogar, eternizando uma constelação passada para continuar

liderando).

Assim, quando fazíamos uma organização ou lançávamos um movimento

e chamávamos uma pessoa para nela entrar ou a ele aderir, estávamos

chamando-a à participação. Estávamos abrindo a (nossa) fronteira para

que o outro pudesse entrar. Em uma rede (mais distribuída do que

centralizada), as fronteiras são sempre mais membranas do que paredes

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opacas, não precisam ser abertas, não se estabelecem antes da interação

e todos os que estão em-interação estão sempre "dentro" (aliás, estar

"dentro", neste caso, é sinônimo de estar interagindo, mesmo que alguém

só tenha começado ontem e os demais há anos). Estarão “dentro”

também os que ainda virão, quando passarem a interagir, sem a

necessidade de serem recrutados, provados, aprovados, admitidos e

iniciados pelos que já estão.

A diferença parece sutil, mas é brutal no que diz respeito ao

funcionamento orgânico. O participacionismo (que contaminou a

chamada Web 2.0) instituiu modos de regulação que produzem

artificialmente escassez (e, portanto, centralizam a rede, gerando

oligarquias participativas compostas pelos que mais participam, pelos que

são mais votados ou preferidos de alguma forma – mais ouvidos, mais

lidos, mais comentados, mais adicionados, mais seguidos –, os quais

acabam adquirindo mais privilégios ou autorizações regulatórias do que os

outros). Formam-se neste caso inner circles, instâncias mais estratégicas

do que as demais (os outros clusters e as pessoas comuns, não-destacadas

da “massa”), que passam, estas últimas, para efeitos práticos, a serem

consideradas táticas (para os propósitos dos estrategistas, dos que

possuem mais atribuições): e não é a toa que os membros do “círculo

externo” freqüentemente são chamados de “público”, “usuários”, (meros)

“participantes”, com permissões mais restritas e poderes regulatórios

diminutivos (22).

Em um sistema-fluzz, baseado na interação, a regulação é pluriárquica,

quer dizer, é sempre feita com base na lógica da abundância: ou seja, as

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definições dependem das iniciativas das pessoas que queiram tomá-las ou

a elas queiram aderir, jamais impondo-se, o que pensam alguns, aos

demais (por critérios de maioria ou preferência verificada). Assim, em um

sistema baseado na interação, nunca se decide nada em nome do sistema

(a organização em rede), ninguém fala por ele, ninguém pode representá-

lo ou receber alguma delegação do coletivo (porque, na ausência de

representação, esse “eu = ele” coletivo não pode expressar-se (por

hipóstase) como um ser de vontade ou que seja capaz de acatar qualquer

vontade, ainda que fosse a vontade de todos). E não há deliberação

porque não há necessidade de deliberar nada por alguém ou contra

alguém ou a favor de alguém (que tivesse que delegar ou alienar seu

poder a outrem).

Em uma organização i-based, nunca se fala em nome da organização,

nunca se promove nada por ela e nem mesmo seus fundadores podem

empenhar, emprestar, parceirizar a sua marca para coisa alguma, ainda

que seja para propor uma atividade totalmente dentro do escopo da

organização. Em outras palavras, não há um ativo organizacional que

possa ser apropriado (nem mesmo como patrimônio simbólico) por

alguém em particular, porque as dinâmicas pluriárquicas não permitem.

Dessarte, não há um "nós" organizacional que estabeleça uma fronteira

entre os "de dentro" e os "de fora". Todos que estão fora podem entrar.

Todos os que estão dentro podem sair (e podem voltar a qualquer

momento; e sair de novo, quantas vezes quiserem). Entrar não significa

pertencimento a algum corpo separado do meio por fronteiras

impermeáveis, nem adesão (ou profissão de fé) a algum codex e sair não

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significa discordância, “racha”, deserção, traição, divórcio ou qualquer

tipo de ruptura. E quem compõe tal organização afinal? Ora, quem nela

quiser se conectar e interagir, aqui-e-agora. Quem saiu não é mais, mas

não porque tenha se desligado e sim porque não está interagindo. Quem

não entrou não é ainda, mas não porque não tenha sido aprovado e aceito

e sim porque, igualmente, não está interagindo.

Porque rede é fluição. Nodo de uma rede é tudo o que nela interage. Essa

foi a grande descoberta-fluzz do tempo vindouro que está vindo.

É certo que, mesmo nas redes mais distribuídas do que centralizadas, a

freqüência e outras características da interação, vão ensejando a

formação de laços internos de confiança, de sorte que nem todos são

iguais no que tange ao que correntemente se chama de liderança.

Algumas pessoas podem ter oportunidades de serem mais avaliadas pelas

outras e até de obterem uma adesão maior às suas iniciativas do que as

outras, em virtude da sua interação, quer dizer, do seu modo-de-interagir

e do seu, vá lá, histórico de interação (mas não de qualquer atribuição

diferencial que tenham recebido de fora ou de cima ou mesmo em virtude

da adoção de modos de regulação geradores de escassez que

recompensem algum esforço de participação voltado a "ganhar" as

demais pessoas, conquistando hegemonia ou maioria). Nas redes (mais

distribuídas do que centralizadas) não se quer regular a inimizade política

e sim deixar que a amizade política auto-regule o funcionamento do

sistema. Não há um corpo docente, uma burocracia coordenadora e, nem

mesmo, um time ou equipe de facilitadores (cuja formação seja baseada

em critérios de mérito ou conhecimento, antiguidade, popularidade ou

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outra característica qualquer que não possa ser verificada e checada

intermitentemente na interação).

Esse é o motivo pelo qual nas redes sociais (mais distribuídas do que

centralizadas) não se deve (e enquanto elas forem mais distribuídas que

centralizadas, não se pode) montar uma patota dirigente, coordenadora,

facilitadora ou erigir uma igrejinha de mediadores. A construção de um

“nós” organizacional infenso à interação ou protegido contra a

imprevisibilidade da interação para manter sua identidade ou integridade

(e, supostamente, para assegurar – como guardiães – que a organização

não se desvie de seus propósitos, não viole seus princípios e não fuja do

seu escopo), ao gerar uma identidade compartilhada por alguns “mais

iguais” que outros, centraliza a rede, deixando-a à mercê do

participacionismo; quando não de coisa pior.

Sim, é difícil não tentar organizar a auto-organização. E é dificílimo não

tentar reunir alguns para, como se diz, “colocar um pouco de ordem na

casa”. Mas aqui vale aquela frase brilhante de Frank Herbert, uma pérola

garimpada em “O Messias de Duna” (1969): “Não reunir é a derradeira

ordenação” (23). Para quê re-unir o que já está unido = conectado

(interagindo)? E se é assim, por que reunir apenas alguns para organizar

mais, quando se pode ensejar a ordenação emergente de muitos mais?

A tentação de estabelecer uma fronteira opaca, o medo de se deixar

abrigar (ou de se proteger do “mundo externo”, do outro, em geral das

outras organizações) apenas por uma membrana (permeável aos fluxos e,

portanto, vulnerável à interação) assolou constantemente as (pessoas das)

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organizações, mesmo aquelas que queriam transitar para um padrão de

rede distribuída.

Talvez isso tenha ocorrido, em parte, em virtude de uma confusão entre

interação e troca de conteúdo. Boa parte das pessoas que tratavam do

assunto, inclusive das que se dedicam a investigar ou experimentar redes

sociais, confundia interação com troca de informação e gestão de

conteúdo (sobretudo tomando por conteúdo conhecimento). Como

imaginavam, essas pessoas, – com certa razão – que o conhecimento é

cumulativo, queriam bolar uma, como se diz?, “arquitetura da

informação”, urdir schemas classificatórios, desenhar árvores para mapear

relações (que ainda não se efetivaram) e organizar os escaninhos para

depositar o conhecimento que ia sendo construído coletivamente. Na falta

de mecanismos de busca semântica, queriam “colocar as coisas nos

lugares certos” para facilitar a navegação dos demais. Mas ao fazerem

isso, animados pela boa intenção de organizar o (acesso ao) conhecimento

para os demais, acabavam erigindo uma escola (como ocorre, de certo

modo, com uma parte dos que adotam plataformas wikis e plataformas

ditas educacionais), quer dizer, uma burocracia do ensinamento,

inevitavelmente centralizada.

Tudo isso era assim até que começou a procura por mecanismos que

dessem conta do formigueiro e não das formigas: como se sabe, é o

formigueiro que se reproduz (como padrão), não as formigas. Por isso a

comparação com o formigueiro, que causa repugnância a alguns (que

alegam que as formigas não têm consciência e não podem fazer escolhas

racionais) não é despropositada. A pesquisadora Deborah Gordon (1999)

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descobriu que o formigueiro é i-based, ou seja, que além de nele não

haver nada que se possa chamar de administração, a auto-organização é

feita a partir da freqüência e de outras características da interação das

formigas entre si e com o seu ecossistema e não de algum conteúdo que

elas tenham trocado entre si (nem mesmo se tal conteúdo fosse uma

substância química, como se supunha) (24).

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PPaaddrrõõeess,, nnããoo ccoonnjjuunnttooss

Os fenômenos que ocorrem em uma rede não dependem das

características intrínsecas de seus nodos

QUEM QUER ENTENDER REDES deveria começar refletindo sobre a frase

do físico Marc Buchanan (2007), em O átomo social (25):

“Diamantes não brilham por que os átomos que os constituem

brilham, mas devido ao modo como estes átomos se agrupam em

um determinado padrão. O mais importante é freqüentemente o

padrão e não as partes, e isto também acontece com as pessoas”.

A idéia de que a fenomenologia de uma rede é função das características

de seus nodos (das suas idéias, conhecimentos, habilidades, valores ou

preferências) ainda faz parte de uma herança cultural não-fluzz difícil de

ser questionada. Dizer que a fenomenologia de uma rede é função da sua

topologia é um verdadeiro choque para essa cultura que encara as

sociedades humanas como coleções de indivíduos e não como sistema de

relações entre pessoas, como configurações de fluxos ou interações.

Sim, rede = interação. O comportamento coletivo não depende dos

propósitos dos indivíduos conectados (ou de suas outras características,

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individualizáveis). Ele é função dos graus de distribuição e conectividade

(ou interatividade) da rede.

Mas por que demoramos tanto para perceber isso? Talvez porque,

enquanto olhávamos os nodos (as árvores), deixávamos de ver a rede (a

floresta, ou melhor, não propriamente o conjunto das árvores, mas as

relações que constituem o ecossistema sem o qual as árvores – nem

algumas poucas, nem muitas milhares – podem existir). Talvez porque

fomos induzidos a fazer a busca errada: enquanto procurávamos um

conteúdo não podíamos mesmo encontrar um padrão de interação. Talvez

porque, influenciados pela máquina econômica construída pelo

pensamento hobbesiano-darwiniano, enquanto tentávamos prever o

comportamento coletivo a partir das preferências individuais, escapava-

nos aquilo que exatamente faz do sistema algo mais do que a soma de

suas partes: o social. Fixávamo-nos em objetos capturáveis, não em

relações, não em fluxos. Fluzz, para nós, permanecia escondido.

Conjuntos de nodos são apenas conjuntos de nodos. Não são redes. A

representação estática chamada grafo, disseminada pela SNA (Análise de

Redes Sociais) não ajuda muito a compreensão da rede: pontos (vértices)

ligados por traços (arestas) passam uma imagem abaixo de sofrível

daquele emaranhado dinâmico de interações que constitui a essência do

que chamamos de rede, sempre fluindo e alterando sua configuração.

Ademais, os nodos não são propriamente pontos de partida nem de

chegada de mensagens, como se fossem estações ligadas por estradas por

onde algum objeto ou conteúdo vai transitar. Eles também são caminhos.

Aliás, nas redes sociais, os nodos não existem como tais (como pessoas)

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sem os outros nodos a ele ligados, constituindo-se, portanto, cada um em

relação aos demais, como caminhos de constituição disso que chamamos

de ‘eu’ e de ‘outro’.

Assim, não é o conteúdo do que flui pelas suas conexões que pode

determinar o comportamento de uma rede. É o fluxo geral que perpassa

esse tecido ou campo, cujas singularidades chamamos de nodos, que

consubstancia o que chamamos de rede. Esse fluxo geral não tem nada a

ver com mensagens contidas em sinais emitidos ou recebidos: são

padrões, modos-de-interagir. Se há uma mensagem (um conceito mais

informacional do que comunicacional), esses padrões é que são a

mensagem.

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CCoonnhheecciimmeennttoo éé rreellaaççããoo ssoocciiaall

O conhecimento presente em uma rede não é um objeto, um conteúdo

que possa ser arquivado e gerenciado top down

A IDÉIA DE CAPTURAR OBJETOS para colocá-los na máquina, a idéia de

salvar (arquivar) configurações do passado, constituiu o caminho para a

construção de conhecimento nas sociedades pré-fluzz. As teorias do

conhecimento pressupostas por essa idéia podiam ser, na melhor das

hipóteses, construtivistas, mas não podiam ser conectivistas. Não é por

acaso que construtivismo gerava escolas (burocracias do ensinamento)

enquanto que conectivismo vai gerando inevitavelmente não-escolas

(redes de aprendizagem).

A idéia de construção do conhecimento – de depositar “tijolo por tijolo

num desenho lógico”, como diz a canção (26) – decorre de uma

epistemologia não-fluzz. Essa idéia, ao se aplicar, requer uma espécie de

congelamento de fluxo (ou de materialização do passado) para ir

combinando objetos, como em uma espécie de lego. Ela permitiu a ereção

de aberrações como os knowledge management systems, originalmente

pensados para abastecer de informações estratégicas o topo de

pirâmides. Era compatível, portanto, com estruturas centralizadas e não

com redes distribuídas.

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Mas o conhecimento presente em uma rede mais distribuída do que

centralizada não pode ser gerido top down, simplesmente porque não há

um nodo ou cluster capaz de capturá-lo com antecedência, domesticá-lo

ou codificá-lo (transformando-o em ensino) para facilitar o acesso a ele

dos demais.

É um conhecimento-fluzz, quer dizer, é uma relação social, móvel e

sempre em mutação. Como no sistema imunológico dos mamíferos e de

outros animais, é um conhecimento que está distribuído por toda a rede.

Um nodo interagente conhece porquanto (e enquanto) está interagindo e

não porque foi alocado em uma posição para receber uma instrução de

outrem (escola). É um conhecimento novo a cada vez. Como naquele rio

heraclítico, ninguém pode aprendê-lo mais de uma vez.

É por isso que as plataformas hierárquicas de transmissão do

conhecimento foram estruturadas para avaliar e validar o conhecimento

ensinado e não o conhecimento aprendido. E é por isso que todas elas

exigem tribunais epistemológicos, corpos (docentes) de guardiães do

passado (que são sempre coaguladores: sacerdotes, professores,

doutores, mestres e outros titulados) encarregados de dizer quais

conhecimentos podem ou não transitar.

A chamada “arquitetura de informação” das plataformas digitais p-based

segue o mesmo caminho. Tudo se resume a abrir caixinhas para depositar

e salvar conteúdos, escaninhos para coagular, guardar e ordenar o

passado com o intuito declarado de facilitar a busca futura, quando, na

verdade, seu objetivo é outro: selecionar e pavimentar caminhos para o

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futuro que sejam produzidos pela dependência da trajetória (ou pela

repetição de passado).

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AA cchheeffiiaa éé ccoonnttrraa aa ll iiddeerraannççaa

Hierarquia não é o mesmo que liderança

TODA HIERARQUIA SE ERIGE pela materialização e repetição de passado.

Na tradicionalidade, essa operação (de ereção de hierarquias) legitimava-

se pela unção ou delegação proveniente de alguma instância extra-

humana (divina), que se transferia pelo “sangue” (ou pela genética: as

linhas sucessórias parentais, familiares, da nobreza: os herdeiros

carregavam o múnus originário, que podia ser delegado, em graus

subordinados, a quem a eles se submetesse). Era um objeto (como se os

superiores possuíssem um estoque de “células-tronco” para construir o

“corpo” hierárquico) (27). A própria palavra hierarquia (hieros + arché)

designava esse poder sagrado.

Na modernidade, tentou-se substituir tal legado legitimatório pelo

reconhecimento de determinadas características intrínsecas do sujeito

que lhe confeririam a capacidade de exercer poder sobre os outros: sua

vocação administrativa ou seu carisma, sua gravitatem ou sua liderança.

Essas “explicações” impediam a percepção de que hierarquia é sinônimo

de centralização. Olhavam sempre para o indivíduo que, em virtude de ter

sido escolhido (the chosen one) ou por força de suas qualidades inatas ou

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adquiridas (pelo “sangue” ou no “berço”), tinha o dever ou o direito de

mandar nos outros (sim, em última instância era disso que se tratava), mas

não olhavam para a rede, para a configuração do emaranhado de

conexões em que o chefe ou líder se inseria.

A liderança considerada por essas justificativas não é aquela que emerge

espontaneamente na rede, quando alguém toma uma iniciativa que é

seguida por outros, em circunstâncias sempre temporárias, mas a

“liderança” que se quer permanente de alguém que, tendo liderado algum

dia, tenta congelar a configuração que permitiu essa eventualidade para

enxertá-la continuamente no presente de sorte a poder liderar para

sempre, em todas as circunstâncias. Isto é: monoliderança, na verdade o

contrário da liderança, a qual, como fenômeno emergente, é sempre

multiliderança (possibilidade, aberta a qualquer um, de liderar em

determinadas circunstâncias fortuitas).

A liderança é fluzz, ela flui como um rio. Os líderes que se sucedem,

aparecem, desaparecem e reaparecem como “remoinhos num rio de água

sempre a correr” (para usar a bela imagem de Wiener) (28). A

monoliderança – na verdade uma justificativa para a centralização e para

a chefia – é sempre uma tentativa de represar o curso.

Redes mais distribuídas do que centralizadas (caracterizadas pela

abundância de caminhos) são ambientes favoráveis à emergência da

multiliderança. A monoliderança – do líder providencial e permanente, a

prevalência do mesmo líder em todos os assuntos e atividades – constitui-

se, porém, contra a liderança e só pode se constituir assim em estruturas

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mais centralizadas do que distribuídas, ou seja, em estruturas onde foi

introduzida a escassez de caminhos.

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NNeennhhuummaa hhiieerraarrqquuiiaa éé nnaattuurraall

A escassez que gera hierarquia é aquela introduzida artificialmente pelo

modo de regulação

A HIPÓTESE DE QUE FOI A ESCASSEZ (natural, de recursos) que gerou a

hierarquia e que, assim, a hierarquia tenha brotado espontaneamente do

caos, foi tão sedutora para alguns quanto enganosa para todos. Até hoje

ainda há os que se põem a promover um deslizamento (para o natural) do

conceito (social) de hierarquia, com base na suposta evidência de que ela

é encontrada em toda parte – do mundo físico (e. g., sistemas

termodinâmicos) ao mundo biológico (e. g., sistemas vivos aninhados) – e

que isso seria uma prova de que a hierarquia é natural e, dessarte,

também naturalmente se manifestaria no mundo social.

Mas a escassez que gera hierarquia é introduzida artificialmente, sempre

pela supressão de caminhos. Não há uma escassez em si. O conceito é

relacional: escassez, quando há, é sempre em relação a algo ou alguém

que carece de determinados recursos em determinado ambiente. Ao fluir

com o curso, ao se deixar levar pela “vida nômade das coisas” (uma boa

definição de fluzz), tal escassez não se configura. A escassez só surge com

o represamento do rio.

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Nos sistemas naturais não pode haver o conceito de escassez porque não

há um indivíduo que reclame uma necessidade contra o ecossistema na

medida em que cada parte do ecossistema se insere na lógica da

abundância que regula o sistema. Nos sistemas sociais (ou anti-sociais,

seria melhor dizer), a escassez é introduzida pelo modo de regulação de

conflitos. Toda vez que se regula conflitos de modo autocrático, gera-se

escassez que permite a ereção de estruturas hierárquicas. E toda vez que

se erige um sistema hierárquico pela eliminação de caminhos, geram-se

modos de regulação não-pluriárquicos que se mantêm pela reprodução da

escassez.

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PPooddeerr éé uummaa mmeeddiiddaa ddee nnããoo--rreeddee

Centralização (hierarquização) não é o mesmo que clusterização

TAMBÉM ERA MUITO COMUM a confusão entre hierarquização (que é

uma centralização) e clusterização (ou aglomeramento provocado pela

dinâmica de uma rede). Isso dificultava a compreensão do fenômeno do

poder nas redes sociais. Desse ponto de vista, aliás, seria o exato

contrário: o poder não surge da clusterização e sim – juntamente com a

exclusão de nodos e a obstrução de fluxos – do desatalhamento

(supressão dos atalhos) entre clusters (aglomerados).

O poder (como poder de mandar alguém fazer alguma coisa contra sua

vontade, como, ao fim e ao cabo, se manifesta qualquer poder) é uma

medida de não-rede (em termos de rede distribuída); quer dizer, é uma

medida direta do grau de centralização (ou uma medida inversa do grau

de distribuição) de uma rede. Ele ocorre (ou sobrevém) não quando os

nodos se aglomeram em função da sua interação e sim, ao contrário,

quando impedimos que tal aglomeramento se dê livremente (em virtude

da dinâmica da interação), mas colocamos obstáculos, construímos

cancelas ou selecionamos caminhos por onde ela (a interação) deve

passar: sejam muros, cercas, paredes, escadas, portas e fechaduras, ou

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57

firewalls. Todo poder nasce de um impedimento imposto à livre fluição.

Todo poder é uma introdução artificial (uma fabricação) de escassez de

caminhos. Todo poder é uma tentativa de evitar a abundância de

caminhos. Todo poder – necessariamente hierárquico – é uma reação à

distribuição (29).

A tendência nas redes sociais mais distribuídas do que centralizadas é que

os clusters não fiquem isolados, mas interligados, interagindo entre si.

Simplesmente porque eles acabarão, mais cedo ou mais tarde, fazendo

isso – desde que não se o impeça. Fundamentalmente, porque eles podem

fazer isso!

A clusterização em redes sociais tende a aumentar à medida que essas

redes vão aumentando seu grau de distribuição e conectividade (quer

dizer, de interatividade). Esse é um indicador da transição para a

sociedade em rede, na qual vão se alterando as configurações congeladas

pelas fortíssimas centralizações impostas pelo sistema de equilíbrio

competitivo entre menos de duas centenas de Estados-nações em um

mundo de quase 7 bilhões de habitantes. Em termos políticos (ou

geopolíticos), a clusterização sócio-territorial que conforma e dá

identidade a miríades de novas comunidades (de aprendizagem, de

projeto e de prática – clusters de convivência enfim) é uma expressão do

localismo cosmopolita que floresce à medida em que a globalização do

local encontra a localização do global. Isso está na origem dos Highly

Connected Words que emergem em uma época-fluzz.

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AAuuttoorrrreegguullaaççããoo éé sseemm--aaddmmiinniissttrraaççããoo

Em redes distribuídas não se pode diferenciar papéis ex ante à interação

A IDÉIA DE QUE QUALQUER ORGANIZAÇÃO exige diferenciação de papéis

pré-definíveis foi aceita como um axioma universal na administração. Em

alguns casos citavam-se exemplos retirados da biosfera para mostrar que

se trata de uma verdade evidente por si mesma (por exemplo,

freqüentemente ainda se dá o exemplo das formigas, que já nasceriam

com funções especializadas: forrageiras, operárias, soldados – conquanto

essa crença já tenha sido desmascarada pela ciência).

Não é por acaso que as teorias da administração sejam teorias de

comando-e-controle. A administração, qualquer administração, é sempre

uma administração da escassez. É uma espécie de economia política

aplicada. Só há necessidade de administrar um sistema se esse sistema foi

construído a partir da seleção de caminhos para normatizar o fluxo: por

aqui pode passar, por ali não pode; para chegar aqui tem que vir por ali,

para sair lá tem que passar por aqui. Ora, é mesmo impossível fazer isso

sem comando e controle.

O fluxo quer fluir. Fluirá por onde houver caminho. Para proibir a livre

fluição é preciso obstruir caminhos, derrubar pontes, fechar atalhos entre

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clusters (nas organizações hierárquicas isso acontece inclusive pela

segregação espacial dos seus membros, alocados em andares diferentes

de um prédio fechado pela introdução de muros, cercas, cancelas, roletas,

elevadores programados, cartões magnéticos com permissões exclusivas,

que abrem algumas portas e outras não, ou pelas permissões

diferenciadas conferidas aos usuários para acessar sites, baixar

programas, enviar ou receber mensagens, interagir em plataformas etc.).

Tudo comando-e-controle.

Redes distribuídas são estruturas sem-administração, que se regulam por

emergência (quanto mais distribuídas o forem). Nas novas organizações-

fluzz, mais distribuídas do que centralizadas, os papéis ou funções se

definem e redefinem continuamente a partir da interação. Uma pessoa

que se dedicava às relações institucionais de uma empresa passará a fazer

parte da concepção de seus produtos; outra, encarregada do

relacionamento com os clientes, será chamada a compor um think tank de

inovação. Mais do que isso, com a perfuração dos muros que separavam a

organização de grande parte dos seus stakeholders, consumidores

também contribuirão para o processo produtivo, acionistas se oferecerão

para compartilhar a gestão e as comunidades afetadas de alguma forma

pela atuação de uma empresa assumirão solidariamente riscos e

oportunidades associados ao empreendimento. E isso é apenas o começo.

Nessas circunstâncias não pode haver um departamento capaz de impor,

de antemão e de cima para baixo, os caminhos que devem ser seguidos

pelos fluxos que atravessam todos os demais departamentos de uma

organização. Aliás, antigos departamentos serão substituídos,

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crescentemente, por instâncias surgidas da clusterização. Múltiplas

lideranças se revezarão no netweaving de todos os processos. O velho

indivíduo, substituível peça da máquina (por outro indivíduo substituível),

vai sendo substituído pela pessoa, insubstituível porquanto única naquilo

que faz, do jeito que faz, enquanto nodo da rede em que interage.

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PPeessssooaass,, nnããoo iinnddiivvíídduuooss

Não podem existir pessoas (seres humanos) sem redes sociais

FOI (E AINDA ESTÁ) MUITO DIFUNDIDA a idéia de que redes sociais são

formadas a partir de escolhas racionais feitas pelos indivíduos. Segundo

essa idéia as redes seriam voluntariamente construídas com propósitos

definidos e baseados nos interesses dos indivíduos. Quem pensava assim,

evidentemente, avaliava que podem existir seres humanos sem redes,

quer dizer, que primeiro existem os indivíduos (já plenamente humanos)

para, depois, se esses indivíduos resolverem se conectar, só então

surgirem as redes sociais.

Nos novos mundos-fluzz, entretanto, o conceito de indivíduo – uma

caracterização biológica ou uma abstração econômica e estatística – tende

a perder sentido para dar lugar à pessoa, que é, afinal, quem existe de

fato como ser humano concreto.

Mas pessoa já é rede. Ninguém nasce com tal condição, não basta ser um

indivíduo da espécie, em termos biológicos, para ser humano. Dizer que,

para os seres humanos, no princípio era a rede, significa dizer que é

necessário “nascer” (com-viver) em uma rede (social) para se tornar

humano. Aquele que é geneticamente humanizável só consuma tal

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condição a partir do relacionamento com seres (que já foram)

humanizados.

Redes sociais não são redes de indivíduos de uma espécie biológica, nem

redes de outras entidades abstratas que possam ser identificadas

indistintamente, numeradas e somadas para qualquer efeito (como, por

exemplo, os habitantes, os consumidores, os contribuintes, os eleitores),

mas redes de pessoas. Não existem as redes dos pensionistas do sistema

previdenciário, dos mutuários do sistema habitacional ou dos torcedores

de determinado clube esportivo (a não ser quando interagem em torcidas

organizadas), assim como não existe a sociedade composta pelos que

estão na fila para comprar ingressos para um torneio. As redes (sociais)

não somam suas partes (individuais) porque elas não são propriamente

constituídas por essas partes, mas pelas relações que se efetivam, pela

configuração móvel das interações que se processam ou pelo emaranhado

que se trama a cada instante.

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AAss rreeddeess ssoocciiaaiiss jjáá ssããoo aa mmuuddaannççaa

As redes sociais distribuídas não são instrumentos para realizar a

mudança: elas já são a mudança

TAMBÉM ERA MUITO COMUM a idéia de que as redes são uma espécie de

instrumento para se fazer alguma coisa. Quando o assunto entrou na

moda, as pessoas acharam que estavam diante de uma nova forma de

organização recentemente descoberta e queriam logo usar as redes com

algum objetivo instrumental, ainda quando desejassem colocá-las a

serviço de uma causa que, a seu ver, não poderia ser mais nobre: a grande

transformação social.

Mas a emergência da concepção-fluzz de que, na sociedade, não há o que

transformar, é realmente surpreendente. Trata-se, para cada sociedade,

de ser o que é – ou seria, se não houvesse obstrução de fluxos, exclusão

de nodos ou desatalhamento de clusters.

Dizendo de outro modo: trata-se, para as redes sociais, de serem o que

podem ser. Uma rede social não pode ser nada mais do que uma rede

distribuída. Os caminhos que seguirá dependerão da sua dinâmica, dos

fenômenos particulares que nela ocorrerão a partir da livre interação.

Toda tentativa de predeterminar esses caminhos é, na verdade, uma

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tentativa de impedir que a rede escolha seus caminhos. O que vai

acontecer depois vai acontecer depois e não pode ser determinado por

quem está antes.

Por isso se diz que as redes sociais distribuídas não são instrumentos para

realizar a mudança: elas já são a mudança.

Isso vai contra o modelo transformacional da mudança próprio das

estruturas de comando-e-controle que queriam levar as sociedades

humanas para algum futuro pré-concebido. Quando se pensava assim,

tudo virava instrumento para pré-determinar caminhos e isso, por si só, já

introduzia escassez de caminhos e centralização (hierarquia) bloqueando a

única mudança que poderia fazer a diferença (ao instalar a dinâmica da

inovação permanente): a mudança de hierarquia para rede.

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AArraannhhaass nnããoo ggeerraamm eessttrreellaass--ddoo--mmaarr

É inútil erigir uma hierarquia para realizar a transição de uma

organização hierárquica para uma organização em rede

NO VELHO MUNDO FRACAMENTE CONECTADO dos milênios passados

erigia-se sempre uma hierarquia para realizar qualquer mudança social,

assim no que era chamado de ‘a sociedade’ como em qualquer

organização particular. Diante dos sinais de que a estrutura e a dinâmica

das sociedades estavam adquirindo, cada vez mais, as características de

uma rede, os chefes de organizações hierárquicas começaram a tentar

fazer reengenharias para se adequar à mudança. O primeiro impulso foi o

de controlar as redes sociais (em geral confundidas com as mídias sociais)

para usá-las de acordo com seus velhos propósitos: para ter mais

influência, para ter mais votos, para vender mais, para extrair mais

sobrevalor dos funcionários, para derrotar mais facilmente a concorrência

ou os inimigos. Isso, entretanto, não aumentou a capacidade de

adaptação das organizações hierárquicas porque o problema não estava

em descobrir uma nova combinação dos seus recursos materiais e

organizacionais, humanos e sociais e sim na sua própria natureza de

organização hierárquica.

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Novos departamentos hierárquicos encarregados de adequar a

organização às novas possibilidades que iam se tornando disponíveis em

uma sociedade em rede (nuvens de computação, plataformas interativas,

trabalho remoto, marketing viral, sistemas de co-working e co-creation

voltados à inovação, peer production, crowdsourcing, crowdfunding,

crowdbuying, etc) não foram capazes de atingir o coração do problema,

que é o seguinte: em uma sociedade em rede as organizações também

devem ser redes. Fica faltando sempre um... crowdweaving. Porque o

problema é: como fazer a transição de pirâmide (mainframe) para rede

(network)?

Mas é inútil erigir uma hierarquia para realizar a transição de uma

organização piramidal para uma organização em rede. Aranhas não

podem gerar estrelas-do-mar, para usar as boas metáforas de Brafman e

Beckstrom (2006) (30). Deveria ser óbvio, tautológico ou quase. Se

queremos redes devemos articular redes, não erigir hierarquias. Semente

de rede é rede. Desistam os que pretendem fazer isso: uma hierarquia não

pode gerar uma rede.

A manutenção das hierarquias não ocorre em função de qualquer

discordância consciente das redes por parte dos agentes de um sistema

hierárquico. Uma vez erigidas, as hierarquias tendem a se manter e

reproduzir por força de circularidades inerentes às suas interações

recorrentes. É uma espécie de mecanismo de segurança do sistema contra

sua dissolução. É uma maneira de se proteger do caos representado pela

ausência de ordem top down. É uma forma de ficar do “lado de fora” do

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abismo, posto que cair no abismo é o maior temor de toda estrutura mais

centralizada do que distribuída.

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EEppííllooggoo

Ficamos do “lado de fora” do abismo quando nos protegemos da

interação

CAIR NO ABISMO é entrar naquela região desconhecida onde novos

padrões são continuamente gerados. É ser colhido pela corrente

alucinante na qual fluzz vai quebrando as circularidades inerentes aos

padrões conversacionais ou interativos que se prorrogam (e que só se

prorrogam enquanto tais circularidades se mantêm).

Quando nos abrimos à interação com o outro-imprevisível despencamos

no abismo. Quando erigimos fronteiras opacas, que nos separam dos

outros, evitamos a queda e ficamos do “lado de fora” do abismo. Nos

“salvamos” protegendo-nos da interação.

Aí, é claro, reproduzimos o velho mundo. Sim, o velho mundo é um

conjunto de arquivos salvados: os mesmos programas são postos a rodar,

continuamente. Enquanto protegidos da livre interação, esses programas

não se modificam.

Todas as tentativas políticas e espirituais de mudar o mundo e reformar o

ser humano basearam-se na instauração de uma nova ordem, seja a

ordem “descoberta” pela observação de supostas leis da história, seja a

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ordem revelada por alguma instância extra-humana. Todas, de certo

modo, demonizavam o caos e tinham horror à queda no abismo. Todas

queriam nos salvar mantendo-nos seguros no “lado de fora” do abismo.

Ofereciam-nos, como compensação pela aventura perdida, a segurança de

regras que disciplinam a interação.

Líderes, condutores, reformadores, sempre apelaram para nossa

consciência, acreditando que a mudança se daria quando alcançássemos

determinada visão, vivêssemos uma experiência extraordinária ou nos

convencêssemos individual e coletivamente de certas realidades. Esses

salvadores, via de regra ligados a estruturas hierárquicas (fossem partidos,

corporações, igrejas, escolas de pensamento, ordens, congregações,

seitas, sociedades ou fraternidades) queriam nos inserir nessas estruturas

centralizadas, sob a justificativa de que era necessário reunir condições

favoráveis, recursos de monta, grandes contingentes de filiados, eleitores,

seguidores ou adeptos, para poder implementar a mudança que

anunciavam.

Entretanto, os agentes de um sistema hierárquico, pensem ou acreditem

no que quiserem, são sempre agentes da manutenção e reprodução do

sistema. Não é mudando (ou “fazendo”) suas cabeças, incutindo novos

valores, disseminando novas crenças, que vamos conseguir realizar a

transição do padrão centralizado para o padrão de organização em rede

(mais distribuído do que centralizado). Todo proselitismo é inútil nessa

matéria. Não se trata de convencimento, nem mesmo de consciência. Eles

não podem mudar seu comportamento enquanto não mudarem o modo

como se relacionam com os demais agentes. E esse modo de se relacionar

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não pode mudar enquanto permanecerem como válidas apenas certas

configurações de caminhos pelos quais a organização hierárquica se

constitui disciplinando a interação.

Para libertar a interação desses constrangimentos é necessário quebrar as

rotinas, violar as fronteiras e pular as cancelas internas e externas, tomar

iniciativas que não foram planejadas pelos chefes ou inspiradas pelos

líderes, esquivar-se do seu comando, livrar-se de sua influência,

colocando-se fora da possibilidade de controle; enfim... é necessário

desobedecer! (31).

Obediência é sempre manutenção de uma ordem. Desobediência é

sempre introdução de des-ordem. Em uma organização hierárquica

desobediência é, simplesmente, fazer redes (mais distribuídas do que

centralizadas). Sim, o único caminho para a rede é a rede.

É paradoxal porque, como redes são múltiplos caminhos, esse único

caminho já são múltiplos caminhos; ou seja, qualquer rede distribuída é

caminho.

Enquanto esperamos uma grande mudança no mundo a partir da

mudança de consciência de seus agentes, o mundo único persiste.

Persistia, enquanto se conseguia impedir o surgimento de outros mundos

em rede. Agora, porém, isso já não é mais possível.

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NNoottaass ee rreeffeerrêênncciiaass

(1) SCHOLEM, Gershom (1941). As grandes correntes da mística judaica. São

Paulo: Perspectiva, 1972.

(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início de

2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor observava que

Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação, argumentando que

era necessário criar outro tipo de plataforma (i-based e não p-based, quer dizer,

baseada em interação, não em participação). Marcelo Estraviz respondeu com a

interjeição ‘fluzz’, na ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a

idéia de Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe desta

série: Fluzz: vida humana e convivência social nos novos mundos altamente

conectados do terceiro milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o

programa mal-sucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito

complexo, sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem do

livro citado: “Tudo que flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não

pode ser aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo

da rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se

expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado de

fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não há

espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É de lá

que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos... Em outras

palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são muitos os mundos.

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Tudo depende das fluições em que cada um se move, dos emaranhamentos que

se tramam, das configurações de interação que se constelam e se desfazem,

intermitentemente”. Cf. FRANCO, Augusto (2011). Fluzz: vida humana e

convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio.

São Paulo: Escola-de-Redes, 2011. Versão digital preliminar sem revisão

disponível em:

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/fluzz-book-ebook>

(2) Cf. Histórias da Tradição Sufi. Rio de Janeiro: Edições Dervish, 1993.

O HOMEM CUJA HISTÓRIA ERA INEXPLICÁVEL

Era uma vez um homem chamado Mojud. Ele vivia numa cidade onde

havia conseguido um emprego como pequeno funcionário público, e tudo

levava a crer que terminaria seus dias como Inspetor de Pesos e Medidas.

Um dia, quando estava caminhando pelos jardins de uma antiga

construção próxima à sua casa, Khidr, o misterioso guia dos sufis,

apareceu para ele, vestido em um verde luminoso. Então Khidr disse:

- Homem de brilhantes perspectivas! Deixe seu trabalho e se encontre

comigo na margem do rio dentro de três dias.

E assim dizendo, desapareceu.

Excitado, Mojud procurou seu chefe e lhe disse que ia partir. Todos na

cidade logo souberam desse fato e comentaram:

- Pobre Mojud. Deve ter ficado louco.

Mas como havia muitos candidatos a seu posto logo se esqueceram dele.

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No dia marcado Mojud encontrou-se com Khidr, que disse:

- Rasgue suas roupas e se jogue no rio. Talvez alguém o salve.

Mojud obedeceu, embora se perguntasse se não estaria louco.

Como ele sabia nadar, não se afogou, mas ficou boiando à deriva por um

longo trecho antes que um pescador o recolhesse em seu bote, dizendo:

- Homem insensato! A corrente aqui é forte. Que está tentando fazer?

- Na realidade eu não sei - respondeu Mojud.

- Você está louco - disse o pescador. - Mas o levarei à minha cabana de

junco próximo ao rio e veremos o que se pode fazer por você.

Quando o pescador descobriu que Mojud era bem instruído, passou a

aprender com ele a ler e a escrever. Em troca Mojud recebeu comida e

ajudou o pescador em seu trabalho.

Alguns meses depois Khidr reapareceu, desta vez junto à cama de Mojud,

e disse:

- Levante-se e deixe o pescador. Será provido do necessário.

Vestido como pescador, Mojud imediatamente deixou a cabana e

perambulou sem rumo até encontrar uma estrada. Ao romper da aurora

viu um granjeiro montado num burro.

- Procura trabalho? - perguntou o granjeiro. - Estou precisando de um

homem que me ajude a trazer algumas compras.

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Mojud o acompanhou. Trabalhou para o granjeiro durante quase dois

anos, quando aprendeu muito sobre agricultura, mas pouco sobre outras

coisas.

Uma tarde, quando estava ensacando lã, Khidr fez nova aparição e disse:

- Deixe esse trabalho, dirija-se à cidade de Mosul e empregue as suas

economias para tornar-se mercador de peles.

Mojud obedeceu.

Em Mosul tornou-se conhecido como mercador de peles, sem voltar a ver

Khidr durante os três anos em que exerceu seu novo ofício. Tinha reunido

uma considerável quantia e estava pensando em comprar uma casa

quando Khidr lhe apareceu e disse:

- Dê-me seu dinheiro, afaste-se desta cidade rumo à distante Samarkanda

e lá passe a trabalhar para um merceeiro.

Foi o que Mojud fez.

Logo começou a demonstrar sinais incontestáveis de iluminação. Curava

os enfermos e servia a seu próximo tanto no armazém como nas horas de

lazer. Seu conhecimento dos mistérios da vida se tornou cada vez mais

profundo.

Sacerdotes, filósofos e outros o visitavam e indagavam:

- Com quem você estudou?

- É difícil dizer - respondia Mojud.

Seus discípulos perguntavam:

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- Como iniciou sua carreira?

- Como um pequeno funcionário público - respondia.

- E você deixou seu emprego para dedicar-se à automortificação?

- Não. Simplesmente o deixei.

Eles não podiam compreendê-lo.

Pessoas o procuravam para escrever a história de sua vida.

- O que você foi, em sua vida? - perguntavam.

- Eu me atirei num rio, me tornei pescador e, no meio de uma noite,

abandonei uma cabana de junco. Depois disso me converti em ajudante

de um granjeiro. Enquanto estava ensacando lã, mudei de idéia e fui para

Mosul, onde me tornei vendedor de peles. Lá economizei algum dinheiro,

mas o dei. Caminhei para Samarkanda, onde trabalhei para um

merceeiro. E aqui estou agora.

- Mas esse comportamento inexplicável não esclarece de modo algum

seus estranhos dons e maravilhosos exemplos - diziam seus biógrafos.

- Assim é - dizia Mojud.

Então os biógrafos teceram uma história maravilhosa e excitante em

torno da figura de Mojud, porque todos os santos devem ter suas

histórias, e a história deve estar de acordo com a curiosidade do ouvinte,

não com as realidades da vida.

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E a ninguém é permitido falar de Khidr diretamente. É por isso que esta

história não é verídica. É a representação de uma vida. A vida real de um

dos maiores santos sufis.

(3) GOETHE, Johann Wolfgang von (1811). Memórias: Poesia e Verdade. Brasília:

Hucitec, 1986.

(4) BANDEIRA, Manoel (1948). O rio (Belo Belo) in Bandeira: Antologia Poética.

São Paulo: José Olympio, 1954.

(5) MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco (1984). A Árvore do

Conhecimento. Campinas: Psy II, 1995.

(6) GOETHE, Johann Wolfgang von (1811): Op. cit.

(7) BARAN, Paul (1964). “On distributed communications: I. Introduction to

distributed communications networks” (Memorandum RM-3420-PR August

1964). Santa Monica: The Rand Corporation, 1964.

(8) ARENDT, Hannah (1958). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

(9) ARENDT, Hannah (1959). “A questão da guerra” in O que é política?

(Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

(10) BEY, Hakim (Peter Lamborn Wilson) (1984-1990). TAZ. São Paulo: Coletivo

Sabotagem: Contra-Cultura, s/d.

(11) MATURANA, Humberto (1993). La democracia es uma obra de arte. Bogotá:

Cooperativa Editorial Magistério, 1993.

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77

(12) McLuhan em uma palestra pública – intitulada “Viver à velocidade da luz” –

em 25 de fevereiro de 1974, na Universidade do Sul da Flórida, em Tampa,

explicando o que entendia por seu famoso aforismo “o meio é a mensagem”:

“Significa um ambiente de serviços criado por uma inovação, e o ambiente de

serviços é o que muda as pessoas. É o ambiente que muda as pessoas, e não a

tecnologia. (Mc Luhan por McLuhan, de David Staines e Stephanie McLuhan

(2003). São Paulo: Ediouro, 2005. Título original: Understanding me: lectures

and interviews. <http://trick.ly/4ra>

(13) JACOBS, Jane (1961). Morte e vida das grandes cidades. São Paulo: Martins

Fontes, 2000.

(14) COLEMAN, James (1988). “Social Capital in the creation of Human Capital”,

American Journal of Sociology, Supplement 94, 1998.

(15) Vf. Swarming civil espanhol in UGARTE, David (2004). 11M: Redes para

ganar una guerra. Barcelona: Icaria, 2006.

(16) Cf. FRANCO, Augusto (2009). Redes são ambientes de interação, não de

participação. Slideshare [4.425 views em 22/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/redes-so-ambientes-de-interao-

no-de-participao>

(17) Cf. FRANCO, Augusto (2009). A lógica da abundância. Slideshare [2.171

views em 22/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/a-lgica-da-abundncia>

(18) Cf. WIENER, Norbert (1951). Cibernética e sociedade: o uso humano de

seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1993.

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78

(19) MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco (1984): Op. cit.

(20) GORDON, Deborah (1999). Formigas em ação: como se organiza uma

sociedade de insetos. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

(21) GLADWELL, Malcolm (2008). Fora de série (Outliers). Rio de Janeiro:

Sextante, 2008.

(22) Cf. UGARTE, David (2007). O poder das redes. Porto Alegre: EdiPUCRS,

2008.

(23) HERBERT, Frank (1969). O Messias de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1985.

(24) GORDON, Deborah (1999): Op. cit.

(25) BUCHANAN, Marc (2007). O átomo social. São Paulo: Leopardo, 2010.

(26) BUARQUE, Chico (1971). “Construção” in Construção (Álbum LP).

Phonogram-Philips, 1971.

(27) Cf. Os ‘me’ in Nota (6) ao Capítulo 8 (infra).

(28) WIENER, Norbert (1950): Op. cit.

(29) Cf. FRANCO, Augusto (2009). O poder nas redes sociais. Slideshare [1.890

views em 22/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-poder-nas-redes-sociais-2a-

versao>

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79

(30) BRAFMAN, Ori e BECKSTROM, Rod (2006): Quem está no comando? A

estratégia da estrela-do-mar e da aranha: o poder das organizações sem líderes.

Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2007.

(31) FRANCO, Augusto (2010): Desobedeça. Slideshare [5.157 views em

22/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/desobedea>

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HIGHLY CONNECTED WORLDS

Augusto de Franco, 2012.

Versão Beta, sem revisão.

A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada

com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.

Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta

obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser

reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por

quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –

na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e

distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser

omitida a autoria da versão original.

FRANCO, Augusto de

HIGHLY CONNECTED WORLDS / Augusto de Franco. – São Paulo: 2012.

72 p. A4 – (Escola de Redes; 8)

1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.

Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e

à criação e transferência de tecnologias de netweaving.

http://escoladeredes.net

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SSuummáárriioo

Introdução | 9

Inumeráveis interworlds | 11

Highly Connected Worlds | 13

Interworlds | 17

Pessoa já é rede | 23

Gholas sociais | 27

Pessoas são portas | 31

Anisotropias no campo social | 35

Deformando a rede-mãe | 38

Perturbações no campo social | 45

Destruidores de mundos | 49

Hifas por toda parte | 54

A perfuração dos muros | 57

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A construção de “membranas sociais” | 60

Notas e referências | 65

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IInnttrroodduuççããoo

E naquele instante ele viu o planeta inteiro: cada vila, cada cidade,

cada metrópole, os lugares desertos e os lugares plantados.

Todas as formas que se chocavam em sua visão traziam

relacionamentos específicos de elementos interiores e exteriores.

Ele via as estruturas da sociedade imperial refletidas

nas estruturas físicas de seus planetas e de suas comunidades.

Como um gigantesco desdobramento dentro dele,

ele via nessa revelação o que ela devia ser:

uma janela para as partes invisíveis da sociedade.

Percebendo isso, notou que todo sistema devia possuir tal janela.

Mesmo o sistema representado por ele mesmo e o universo.

Começou a perscrutar as janelas, como um voyeur cósmico.

Frank Herbert em Os filhos de Duna (1976)

MUITOS MUNDOS, ISSO MESMO. Não existe um mundo que se possa

dizer o mundo, a não ser por efeito de hierarquização.

Pensar e falar do mundo é tentar impingir um só mundo. Pois os mundos

são muitos. Um só mundo é uma invenção do broadcasting. Broadcasting

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– um para muitos – é, obviamente, centralização, quer dizer, hierarquia.

Tirem as TVs e as rádios, os jornais e revistas, as agências de notícias,

talvez o cinema e não sobrará mais um só mundo. Sem o broadcasting já

teremos múltiplos mundos: cada qual configurado pelas nossas conexões.

Com a internet esses mundos se multiplicam velozmente, mas não por

difusão e sim por interconexão. Desse ponto de vista, interconnected

networks (internet) é, na verdade, interconnected worlds. E fluzz é o vento

que varre esses inumeráveis interworlds (*).

No mundo hierárquico, não há interface para fluzz. Mas quando fluzz for

do regime dos múltiplos mundos interconectados, esses mundos serão os

novos Highly Connected Worlds do terceiro milênio (**).

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IInnuummeerráávveeiiss iinntteerrwwoorrllddss

Não havendo um mundo isolado dos demais, o tamanho do mundo de

cada um será função do “vento” (fluzz) que varre seus interworlds

PENSE EM UM MUNDO SEM TV E RÁDIO, sem jornais e revistas, sem

agências de notícias, sem editoras e distribuidoras de livros de domínio

privado e sem cinema. Não, não estamos propondo uma volta à Idade

Média. Teremos telefone, Internet, redes P2P, redes Mesh e qualquer

mídia (sobretudo interativa) não baseada no padrão um-para-muitos

(incluído spaming). Neste caso não haverá mais um (mesmo) mundo para

todos. Sem o broadcasting esvai-se a ilusão de um mesmo mundo para

todos em termos sociais. Ficará claro que cada um tem o seu (próprio)

mundo (em termos sociais). Mas ninguém estará aprisionado no seu

mundo, pois poderá se conectar com outros mundos (os mundos das

outras pessoas). Teremos uma rede de mundos: muitos mundos

interconectados. Quanto maior a interatividade de uma rede de mundos,

mais-fluzz ele – o mundo social configurado por essa rede – será.

Mas... atenção! Quanto mais-fluzz for um mundo, menor (não em termos

geográficos ou populacionais e sim em termos sociais) ele será. Mundos

grandes, nesse sentido, quer dizer, com altos graus de separação, são

mundos menos-fluzz. A interatividade reduz o tamanho do mundo e isso

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não é uma função do número de seus elementos (pessoas e aglomerados

de pessoas) e sim dos seus graus de distribuição e conectividade.

Onde fluzz está mais “ativo”, os mundos se contraem. Há um

amassamento. Small-world networks são efeitos de crunching (um

neologismo cunhado a partir da palavra crunch).

Não havendo um mundo isolado dos demais, o tamanho do mundo de

cada um será função do “vento” (fluzz) que varre seus interworlds. Os

interworlds serão inumeráveis; portanto, a rigor, o mundo de cada um é,

potencialmente, uma série de inumeráveis mundos em interação. Sim,

tudo depende da interatividade. O que significa dizer que não depende da

capacidade ou do esforço de cada um de se fazer ver por muitos. Assim,

nos novos Highly Connected Worlds, gente famosa (poderosa, rica, super

certificada ou titulada, admirada por qualquer outra qualidade intrínseca

massivamente reconhecida ou atribuída externamente à interação), tende

a não ser mais tão relevante. Com isso vai também por água abaixo essa

desastrosa idéia de sucesso, que predominou nos séculos passados,

baseada na capacidade de alguém de se destacar dos demais.

Impelido por fluzz, ninguém se deixará desvalorizar facilmente no circo

global montado para selecionar (e apresentar apenas) algumas atrações e

para polarizar sobre elas a atenção dos demais. Cada qual pode ser a

atração no seu próprio mundo e nos mundos conectados a esse mundo.

Uma aldeia global montada para subordinar os vários mundos a apenas

alguns, dando a impressão de que só estes últimos existem, está com os

dias contados. Teremos inumeráveis aldeias globais.

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HHiigghhllyy CCoonnnneecctteedd WWoorrllddss

Seu mundo-fluzz é sua timeline

O ESTILHAÇAMENTO DO MUNDO ÚNICO é uma mudança de época jamais

presenciada pelas chamadas civilizações (patriarcais, guerreiras, quer

dizer, hierárquicas). Os padrões de vida e convivência social estão

mudando. Isso significa que você também está mudando. Porque estão

mudando seus relacionamentos recorrentes: sim, seu mundo-fluzz é sua

timeline. Não, por certo, a timeline do Twitter, mas aquela que rola no

espaço-tempo dos fluxos e que não pode ser captada por quaisquer das

ferramentas digitais p-based disponíveis.

Essa mudança é a rede. À medida que aumenta a interatividade da rede

na qual você está imerso, fenômenos surpreendentes começam a

acontecer. Com a queda brusca dos graus de separação, chegará

rapidamente o dia em que você chamará um taxi em uma cidade de dez

milhões de habitantes e o motorista dirá: “O senhor não é o Steven

Strogatz, que investiga redes sociais e que descobriu que o mundo está

ficando pequeno mais rapidamente do que imaginávamos?”.

Isso, é claro, se você for de fato o Steven Strogatz. Mas, de certo modo, se

você é o motorista que se relaciona (ou que se relaciona com quem se

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relaciona, ou que se relaciona com quem se relaciona com quem se

relaciona) com Steven Strogatz, sobretudo se ele (ou quem se relaciona

com ele) está na sua timeline e você (ou quem se relaciona com você) na

dele, você será um pouco Steven Strogatz (na medida inversa do seu grau

de separação dele): eis o ponto! Tal mudança vai muito além do que

imaginávamos porque você está fazendo parte de um organismo capaz de

inteligência e, quem sabe, de outros atributos ou qualidades que sequer

conseguimos imaginar.

Os Highly Connected Worlds tendem a ser organismos humanos coletivos.

Atenção: superorganismos humanos, não organismos super-humanos!

Eles são os campos para o nascimento do ‘indivíduo social’. Steven

Strogatz fará parte de você e você fará parte dele porque ambos farão

parte de um mesmo organismo, não em termos metafóricos, como

quando usávamos a palavra ‘organismo’ para designar o que

imaginávamos que fosse ‘a sociedade’. Não. Trata-se de um organismo

mesmo. E humano.

O indivíduo social está nascendo agora. Mas ele já estava presente, como

prefiguração, desde o início, quando se constituíram os primeiros seres

humanos. Para lembrar a bela Canción Tonta de García Lorca (1924), nós,

os humanos, só o éramos enquanto estávamos “bordados en la

almohada” da rede-mãe (1).

O indivíduo-social não pôde se consumar como humanidade enquanto

algo estava impedindo: a escassez de conexões, uma escassez

artificialmente introduzida por modos de regulação não-pluriárquicos.

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Fluzz não podia passar. Mas fluzz é empowerfulness. Se fluzz não pode

soprar o corpo não se vivifica.

Essa mudança, todavia, é diferente – e única – em cada mundo. Não, não

é sempre a mesma coisa. Depende de “onde” (ou como) o fluxo (o)corre.

Manoel de Barros (1993) inventou “que um rio que flui entre dois jacintos

carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos” (2). Pois é.

No limite, você fará seu mundo. Quer dizer, você (ou você e sua timeline –

o que tende a ser a mesma coisa) será o mundo e os mundos serão tantos

quanto as identidades coletivas que forem usinadas por fluzz.

Isso significa que os Highly Connected Worlds tendem a ser inumeráveis,

assim como serão inumeráveis os interworlds, miríades de interfaces

conectando miríades de mundos e “explodindo como uma ramada de

neurônios”, para lembrar um artigo seminal de Pierre Lèvy (1998) (3).

Em termos tecnológico-sociais, o grande desafio hoje, ao contrário do que

reza a metafísica que esse Mark Zuckerberg – o chefe do Facebook – quer

nos empulhar – para torná-la, a sua plataforma proprietária única, a

própria rede e não mais uma ferramenta –, é construir os inumeráveis

interworlds que serão as novas internets.

O Facebook tem 800 milhões de usuários? É ruim. Seria melhor ter 800 mil

plataformas com mil usuários cada uma, conversando entre si... Tudo que

não precisamos agora é reeditar a ilusão hierárquica de um mundo único.

Uma sociedade em rede é uma configuração de miríades de Highly

Connected Worlds interagentes. Essa é a única mudança verdadeiramente

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sustentável: tudo que é sustentável tem o padrão de rede porque rede é

redundância de processos e abundância (diversidade) de caminhos.

A mudança-que-é-a-rede é fractal, não unitária. A mudança não é a

emergência de muitos mundos locais (que, de resto, sempre existiram),

mas os múltiplos caminhos (que não puderam existir nas civilizações

hierárquicas) entre o local e o global. E ela não se consumará sem essas

“zonas de transição” que são interworlds.

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IInntteerrwwoorrllddss

A nova internet – interconnected networks – são os incontáveis

interconnected worlds

COMEÇA ASSIM: NÃO UMA INTERNET: miríades de internets. Bem, agora

já está melhorando. Mas, como? Não estamos correndo o risco de perder

todas as referências – e, com isso, o sentido – com esse estilhaçamento?

A preocupação com a fragmentação é uma herança típica de um mundo

pouco-fluzz. A totalidade não está dada, tem que ser consumada. E serão

sempre totalidades, no plural. Eins und Alles.

Que se dane se você não terá mais uma grande narrativa, um esquema

explicativo geral. Não havendo um mundo (único), para que precisamos

disso? Por certo, você fica incomodado com a fragmentação desses

inumeráveis mundos que se fazem e liquefazem. Mas esse seu mal-estar

baumaniano (de Zygmunt Bauman) é pura falta de Pó de Flu (aquele “Floo

Powder” inventado por Ignatia Wildsmith, da série Harry Potter de J. K.

Rowling, usado para conexão à Rede do Flu); ou seja, é falta de

interworlds. Trata-se de referenciar o bem-estar na (fluição da) relação,

não na (solidez da) coisa.

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Ainda existem vários obstáculos à uma comunicação, por assim dizer,

“isotropicamente distribuída” (capaz de manter as mesmas propriedades

em todas as direções): a centralização da rede em servidores, provedores,

roteadores, cabos, satélites, torres, mainframes transceptores de ondas

eletromagnéticas, geradores de energia, resfriadores, protocolos de

reconhecimento, trânsito e integração de mensagens; a variedade de

línguas e a falta de tradutores-transdutores universais móveis que operem

em tempo real; a falta de programas de busca inteligente e de criação de

ambientes favoráveis à emergência de conteúdo novo por combinação

não-humana (polinização mútua) de mensagens; a separação entre os

dispositivos tecnológicos e o corpo humano; e a insuficiente interação

entre pessoas e não-pessoas (desde a comunicação com outros seres

sencientes ou coletivamente inteligentes, animados e inanimados, até a

parceria simbiótica com uma variedade de seres vivos).

Para começar: fluzz é obstruído pela centralização das comunicações (pela

difusão centralizada um-para-muitos chamada broadcasting), mas

também pela Internet descentralizada. O grande desafio hoje é construir

os interworlds que são as novas internets. Trata-se de um desafio ao

mesmo tempo social e tecnológico.

Rolou por décadas uma discussão fora de lugar sobre as ameaças da

tecnologia. Muitas pessoas tinham medo de que a tecnologia fosse nos

dominar, nos afastar das outras pessoas, prejudicar nossa saúde física ou

mental ou, até mesmo, inviabilizar a vida humana no planeta.

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Mas, em termos sociais, não há nenhum problema com a tecnologia. O

problema é com a tecnologia que introduz artificialmente escassez

centralizando a rede social e ensejando o controle.

Por certo, os sistemas de dominação não teriam podido se manter sem o

controle dos insumos básicos: a terra, a água, os alimentos e as fontes de

energia. Mas a escassez foi introduzida por um tipo determinado de

tecnologia urbana, hidráulica e agrícola: sem essa escassez (programada,

em certa medida) de recursos sobrevivenciais, esses sistemas de

dominação não teriam podido se reproduzir.

Assim, durante milênios fomos submetidos a tecnologias que viabilizavam

o controle. Por exemplo, o modelo hidráulico redistribuidor de água em

canais de irrigação, construídos e controlados pela tecnologia faraônica,

criava o perigo ao adensar povoamentos em locais de risco, em uma

proporção que ia muito além daquela exercida pela natural atração das

terras mais férteis. O objetivo era o controle. Se o povo não vivesse sob a

ameaça (do perigo), como poderia ser recompensado pela sua

aquiescência, sendo salvo do perigo? E como poderia ser castigado por

sua desobediência à ordem, sendo abandonado ao perigo? (4)

Agora precisamos de tecnologia para viabilizar e acelerar a distribuição da

rede social. Quanto menor a possibilidade de comando-e-controle, mais-

fluzz será essa tecnologia. Isso vale para tudo: energia e matéria, átomos e

bits. E vale também para a comunicação.

Assim como fluzz é obstruído pela centralização das comunicações e pela

Internet descentralizada, ele também é obstruído por todas as

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separações: desde aquelas impostas pela barreira da língua (que separa

pessoas que falam idiomas diferentes), passando pela busca burra (que

separa quem procura de quem gera conhecimento), pelos dispositivos

tecnológicos interativos separados do corpo humano e, inclusive, no

limite, pela separação entre pessoas e não-pessoas.

A barreira da língua é uma das principais remanescências do mundo único

hierárquico. É curioso que, mesmo tendo sido imposto um mundo único,

persistam várias línguas (cerca de 7 mil idiomas). Isso porque o mundo

único não é monocentralizado e sim multicentralizado (ou

descentralizado) em algumas identidades imaginárias (que chamamos de

nações, povos ou culturas sócio-territoriais, dominados hoje por menos de

duas centenas de Estados).

A metáfora bíblica sobre isso é esclarecedora. Na mesma Babel – não em

várias – as pessoas não podiam se comunicar umas com as outras. Não era

um problema de saber interpretar um código, de falar a mesma língua. O

que houve em Babel foi a impossibilidade de um conversar, não porque as

pessoas falassem vários idiomas e sim porque não conseguiam coordenar

mutuamente suas atitudes (o linguajear, na expressão de Maturana, que

pressupõe e exige cooperação) e, desse modo, não se entendiam (sem um

acoplamento estrutural não pode haver comunicação). É a pirâmide (a

topologia centralizada da rede social babeliana) que impede esse (assim

como qualquer outro) conversar. Tal problema só tem solução social, não

tecnológica.

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A solução para Babel é a rede social distribuída. No entanto, o problema

da remanescência de várias línguas, entendidas como idiomas, como

códigos que podem ser traduzidos, tem solução tecnológica. Dispositivos

móveis com programas de tradução simultânea, capazes de receber e

emitir dados e voz, são partes (por aproximação, assimilação ou simbiose)

dessas interfaces complexas que chamamos de interworlds.

A falta de programas i-based de navegação inteligente, da busca

(semântica) à polinização (criativa, ensejadora de múltiplos significados),

também é um obstáculo à interação entre os mundos. Mas tal desafio

pode ser superado caso não se insista em recriar monstruosos sistemas de

gerenciamento do conhecimento (top down) e em arquivar significados

únicos de modo centralizado (como faz, por exemplo, a Wikipedia).

Repetindo: toda tecnologia é bem-vinda, inclusive aquela que modifica os

corpos humanos, desde que possibilite mais distribuição. Há muito tempo

estamos modificando nossos corpos: tomamos inibidores seletivos da

recaptação da serotonina (e. g., fluoxetina) e da fosfodiesterase-5 (e. g.,

sildenafila), injetamos insulina transgênica, fazemos implantes (dentários,

auditivos e inclusive de chips capazes de devolver a visão), inserimos

nanopartículas para corrigir rugas na pele, usamos próteses de todo tipo e

instalamos órgãos ou partes de órgãos internos artificiais. Por que não

poderíamos inserir em nossos corpos outros dispositivos capazes de

ampliar e acelerar a comunicação?

Pode-se argumentar que não temos como saber se, no longo prazo, tudo

isso prejudicará a saúde. Mas também não temos como atestar isso em

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relação à maioria dos medicamentos que tomamos ou das intervenções

médicas que realizamos. Todas essas substâncias e procedimentos, em

certa medida, provocam doenças ou desencadeiam novos padrões de

saúde ou ensejam novos reequilíbrios saúde-doença. Sim, saúde não é

ausência de doenças, mas a estabilidade relativa de um sistema que, se

estiver vivo, estará necessariamente afastado do equilíbrio, convivendo,

portanto, com alterações que convencionamos chamar de doenças (e que

só são chamadas assim do ponto de vista de um padrão de saúde,

baseado em indicadores cujos parâmetros de normalidade são variáveis

com época, lugar, cultura, conhecimento). Só seres inanimados estão

livres de doenças (ainda que as infestações de vírus em seres cibernéticos

também possam vir, coerentemente, a ser encaradas como doenças).

Por outro lado, do ponto de vista biológico, já existe a parceria simbiótica

do corpo humano com outros seres vivos. Somos, na verdade, colônias de

bactérias, comunidades de micro-organismos. Somos os planetas onde

vive boa parte dos seres vivos. Tal parceria está presente no interior de

nossa unidade vital: a célula nucleada é o resultado da associação com um

procarionte que passou a compor o novo organismo por endossimbiose.

Mas todas as tecnologias que podem apoiar, vamos dizer assim, o

surgimento das múltiplas internets distribuídas, não são, elas próprias, os

interworlds que conectam os mundos em rede aqui chamados de Highly

Connected Worlds. Esses interworlds são sociais – fundamentalmente, são

redes sociais – não dispositivos tecnológicos. Ou seja, no limite, os

interworlds são pessoas.

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PPeessssooaa jjáá éé rreeddee

Em cada pessoa há algo de seu próximo.

Moises Cordovero (1522-1570) em Tomer Dvora (1588)

Toda pessoa é uma pequena sociedade.

Novalis em Pólen (1798)

Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas.

(“Umuntu ngumuntu ngabantu”: Máxima Zulu)

Você, o indivíduo, é a massa, o resultado da massa. Em nós, como você

descobrirá se entrar nisso profundamente, estão os muitos e o particular.

Jiddu Krishnamurti em Ojai 1st Public Talk (1944).

Todas as pessoas são feitas de todas as outras pessoas.

http://twitter.com/augustodefranco (08/07/10)

Toda pessoa é uma nova porta que se abre para outros mundos.

John Guare em "Six degrees of separation" Peça na Broadway (1990)

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NOS NOVOS MUNDOS ALTAMENTE CONECTADOS do terceiro milênio,

vida humana e convivência social se aproximarão a ponto de revelar os

“tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente humanos.

Todos compreenderemos a nossa natureza de “gholas sociais”.

Os tanques onde somos formados como pessoas são clusters, “regiões” da

rede social a que estamos mais imediatamente conectados.

Um tipo especial de ghola: não um clone de um indivíduo, mas um “clone”

de uma configuração de pessoas. Toda pessoa, como dizia Novalis (1798),

é uma pequena sociedade; quer dizer, pessoa já é rede! Pessoa é um ente

cultural que replica uma configuração. É um ghola social.

Em um mundo fracamente conectado, os caminhos são individuais. Cada

pessoa vive sua vida, faz suas escolhas, estabelece suas rotinas e toma

suas iniciativas sob a influência das demais, é claro, mas como se fosse

uma unidade separada. Convive, por certo, com as demais, mas essa

convivência é vivida como distinta daquela outra vida, que seria a sua

própria vida. Pode viver a ilusão de que vive sua vida, fazendo suas

escolhas, estabelecendo suas rotinas e tomando suas iniciativas de modo

autônomo. Pode alimentar a crença de que já surgiu no mundo como

pessoa, quer em virtude de uma instância super-humana que assim a

tenha criado, quer por força da genética (o “sangue”) e das experiências

particulares pelas quais passou logo após seu nascimento (o “berço”).

Em mundos altamente conectados tende a se esvair essa separação entre

vida humana e convivência social. Nossas escolhas racionais raramente

são nossas: reproduzimos padrões, imitamos comportamentos e

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cooperamos com outras pessoas sem ter feito individualmente e

conscientemente tais escolhas. Adotamos princípios, escolhemos

carreiras, compramos produtos e priorizamos atividades em função do

que fazem as pessoas que se relacionam conosco ou que estão ligadas a

nós em algum grau próximo de separação, muitas vezes pessoas que nem

conhecemos (como os amigos dos amigos de nossos amigos).

Vivemos então, cada vez mais, a vida do nosso mundo constituído pela

convivência e não apenas a nossa vida individual. Isso ocorre na razão

direta da interatividade do mundo em que estamos imersos. O fluxo da

nossa timeline pode chegar a atingir tal intensidade ou densidade que, no

limite, não podemos mais afirmar inequivocamente que há um eu que

deseja, julga, raciocina, escolhe e almeja de forma autônoma em relação à

nuvem de conexões que nos envolve. Ao mesmo tempo, sentimos e

sabemos que continuamos sendo uma pessoa, única, totalmente

diferenciada. Mas ao viver a nossa vida (a vida humana única dessa pessoa

que somos), vivemos, na verdade, a convivência (social, também única,

desse mundo construído pelo emaranhado de conexões onde estamos

fluindo e que nos constitui como seres propriamente humanos).

O social passa ser o modo de ser humano nas redes com alta tramatura

dos novos mundos-fluzz. Em outras palavras, passamos a constituir um

organismo humano “maior” do que nós. Passamos a compartilhar muitas

vidas, com tudo o que isso compreende: memórias, sonhos, reflexões de

multidões de pessoas, que ficam distribuídas por todo esse

superorganismo humano. Podemos, como nunca antes, ter acesso

imediato a um conjunto enorme de informações e, muito mais do que

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isso, podemos gerar conhecimentos novos com uma velocidade espantosa

e com uma inteligência tipicamente humana (não de máquinas,

computadores ou alienígenas), porém assustadoramente “superior” a que

experimentamos em todos os milênios pretéritos.

E tudo isso pode ocorrer sem a necessidade de termos consciência

(individual) do que está se passando. Ao viver a vida da rede, apenas

vivemos a convivência: não precisamos mais tentar capturá-la e introjetá-

la, circunscrevê-la ou mandalizá-la para conferir-lhe a condição de

totalidade, erigindo um grande poder interior de confirmação para nos

completar da falta dos outros e nos orientar nos relacionamentos com

eles. Tal necessidade havia enquanto podia haver a ilusão da existência do

indivíduo separado de outros indivíduos; ou quando um (ainda) não era

muitos. Toda consciência é consciência da separação, inclusive a

consciência da unidade, da totalidade, ou da unidade na totalidade, é uma

resposta à separação. No abismo em que estamos despencando ao entrar

em fluzz, não há propriamente isso que chamávamos de consciência.

Como epígrafe de um dos capítulos de "Os filhos de Duna", o escritor de

ficção Frank Herbert (1976) colocou na boca de Harq al-Ada, cronista do

Jihad Butleriano (a guerra ludista contra as máquinas inteligentes) (5):

"O pressuposto de que todo um sistema pode ser levado a funcionar

melhor através da abordagem de seus elementos conscientes revela

uma perigosa ignorância. Essa tem sido frequentemente a

abordagem ignorante daqueles que chamam a si mesmos de

cientistas e tecnólogos".

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GGhhoollaass ssoocciiaaiiss

Um ghola não é um borg

NO UNIVERSO FICCIONAL DE DUNA, obra monumental de Frank Herbert

(1965-1985), os tanques axlotl são mulheres tleilaxu que sofreram um

coma cerebral químico induzido, a par de outras intervenções genéticas,

para servir como usinas de gholas (espécies de clones de uma pessoa

morta a partir de seu material genético). Os Tleilaxu (ou Bene Tleilax) são

uma sociedade fechada de religiosos muito avançados tecnologicamente.

No entanto, os gholas são réplicas que não manifestam automaticamente

as qualidades dos originais. Para tanto eles devem passar por um processo

longo de aprendizagem e devem viver certas experiências (sobretudo de

relacionamento íntimo com seus treinadores) para despertar suas

habilidades.

A leitura das diversas camadas da escritura de Herbert (literal, alegórica

ou metafórica, simbólica etc.) permite um paralelo (meramente evocativo

e para efeitos heurísticos) entre o processo biológico-cultural de clonagem

e aprendizagem de um ghola e o processo social de geração de uma

pessoa (que seria, então, uma espécie de “ghola social”).

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Os “tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente

humanos seriam os clusters onde convivemos com outras pessoas (seres

que já foram humanizados pelo mesmo processo) a partir do nascimento.

De sorte que não somos humanos apenas por força da genética, da

reprodução ou da hereditariedade biológica (que replicamos como

indivíduos da espécie homo) e sim em virtude da rede social em que com-

vivemos, cuja configuração particular replicamos como pessoas, ou seja,

“gholas sociais”. Aquele que é geneticamente humanizável só consuma tal

condição a partir do relacionamento com seres humanizados. Somos

(enquanto entes culturais) filhos da rede social. E não podemos ser

humanos sem esse tipo de relacionamento. Como reza a máxima Zulu,

“uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”.

Tudo isso é para dizer que um ghola (social) não é um borg. Mas por que é

tão importante dizer isso?

No universo ficcional de Star Trek os Borgs são uma “raça” alienígena de

ciborgues, humanoides de várias espécies assimilados e melhorados com a

injeção de nanossondas e a aplicação de implantes cibernéticos que

alteram sua anatomia e seu funcionamento bioquímico, ampliando suas

habilidades mentais e físicas.

Quando encontram suas presas - quaisquer membros de outras

civilizações, aos quais andam a cata – os Borg recitam, com algumas

variações, a seguinte litania:

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“Nós somos os Borg. A existência como vocês conhecem acabou.

Adicionaremos suas qualidades biológicas e tecnológicas à nossa.

Resistir é inútil”.

Não existe uma rede social Borg, com algum grau significativo de

distribuição, porque não existe pessoa-Borg. Transformados em indivíduos

substituíveis, os borgs são replicados em série por uma estrutura

fortemente centralizada em sua rainha (sim, o regime é monárquico

absoluto), a única que pode pensar livremente (se é que isso é possível

sem o conversar). Seus cérebros são conectados a uma mente coletiva (a

Coletividade Borg) controlada por um hub central (Unimatrix Um). O

objetivo declarado do povo Borg (que só é um povo naquele particular

sentido original da palavra latina ‘populus’: “contingente de tropas”) é

“aperfeiçoar todas as espécies trazendo ordem ao caos”.

Uma interpretação possível para a metáfora é a seguinte: de certo modo

qualquer pessoa, transformada em peça substituível por uma organização

centralizada (hierárquica), é – em alguma medida – um borg.

Sim, o paralelo é mais fértil do que parece. Dizer que um ghola (social) não

é um borg (biotecnológico), seria como colocar na boca do primeiro – no

dealbar de uma época-fluzz – uma paródia da “saudação” borg como a

seguinte:

Nós somos gholas sociais. Novas possibilidades de existência, até

agora desconhecidas de todos nós, estão sendo abertas. Nossas

qualidades biológico-culturais estão se combinando em novos

padrões sociais. É só preciso deixar-ir.

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110

A rigor, como uma configuração de pessoas está sempre ligada a outras

configurações, todas as pessoas estão de algum modo emaranhadas no

espaço-tempo dos fluxos (quem sabe não era isso que chamávamos de

humanidade, uma prefiguração). Assim, no limite, todas as pessoas são

feitas de todas as outras pessoas.

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111

PPeessssooaass ssããoo ppoorrttaass

“Toda pessoa é uma nova porta que se abre para outros mundos”

PESSOAS SÃO PORTAS. Abrem caminhos. Na verdade, são caminhos.

Atalhos entre clusters. Pontes. É sempre por meio de uma pessoa que

podemos interagir com quem está em outros mundos.

Isso significa que os interworlds são realmente as pessoas, não um novo

ambiente tecnológico, mas um novo ambiente social com novos recursos

tecnológicos. Esta é uma típica compreensão-fluzz: pessoa não é o

individual e sim o social. Surpreendentemente, em mundos altamente

conectados as novas internets são... as pessoas!

Não, não é somente uma imagem poética. É uma nova compreensão das

potencialidades humanas. Pessoas interagindo são seres humanos. A

partir de certo grau de interatividade, são organismos sociais, quer dizer,

superorganismos humanos.

Quando a tecnologia fornecer os meios para manter as pessoas

continuamente conectadas e para acelerar a interação, ela o fará a partir

dessa possibilidade social. Aliás, foi assim que nasceu a velha Internet:

como percebeu Castells, sua estrutura interativa só foi projetada assim

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porque as pessoas que a projetaram a projetaram assim (6). E as pessoas

que projetaram a Internet só a projetaram assim – com possibilidade de

interatividade – porque havia tal possibilidade social. Da mesma forma

estão nascendo as novas internets: seja com o aperfeiçoamento dos

dispositivos móveis interativos, seja com implantes bioeletrônicos ou

cibernéticos, enquanto a topologia da rede for mais distribuída do que

centralizada não produziremos borgs, mas gholas-sociais.

Há sempre um risco. O risco de ser borg. A fronteira entre um borg e um

ghola-social é móvel, nebulosa e quase sempre invisível. A hierarquia

produz borgs. As redes humanas distribuídas geram gholas-sociais. Mas a

maioria dos padrões de interação se configura no intervalo entre

centralização máxima e distribuição máxima.

Evitar o risco é refugiar-se na vida individual, escolhendo racionalmente as

interações, sendo seletivo nos relacionamentos, fechando-se ao outro.

Esse é o fracasso de todas as chamadas “pessoas de sucesso”. Fecham-se

à interação com o outro-imprevisível e, ao fazer isso, a despeito de serem

muito conhecidas, obstruem conexões com a nuvem que as envolvem,

desatalham clusters (ao se recusarem a servir como pontes), excluem

outras pessoas do seu espaço de vida e simultaneamente se excluem de

outros mundos, isolando-se do superorganismo humano e deixando de

contar com uma parte (justamente aquela parte inusitada, que os

marqueteiros, os políticos profissionais e os psicólogos sociais tanto

procuram e não conseguem encontrar) das imensas potencialidades do

social.

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113

São raríssimas as pessoas de sucesso que se deixam abordar por qualquer

um do povo. Seus endereços, e-mails e telefones são mantidos em sigilo.

Seus ambientes de trabalho são protegidos por porteiros, agentes de

segurança, secretários e assessores. Seus sites e blogs são fechados à

comentários ou mediados. Sua participação nas mídias sociais é sempre

para usá-las como broadcast, para fazer relações públicas e propaganda

de si-mesmas (para ficarem mais famosas e auferirem os benefícios

econômicos, sociais e políticos conferidos diferencialmente a quem

alcançou tal condição).

Isso acaba se manifestando no que acreditam que seja sua vida pessoal,

como indivíduos, supostamente autônomos, tão importantes que não

podem ficar vulneráveis aos paparazzi do relacionamento. Como

consequência começam a desenvolver aquela sociopatia mais conhecida

pelo nome de fama. Na verdade ficam doentes por déficit de

interatividade.

Quem não quer ser porta, não acha caminhos. O sucesso é o melhor

caminho para perder caminhos. A perda de caminhos é também uma

medida de não-rede, ou seja, uma expressão do poder. A contraparte de

querer ser muito importante é a falta de importância para a rede (e não

importa para nada se essas pessoas de sucesso têm milhares ou milhões

de followers nas mídias sociais mais frequentadas ou se seu blog tem

milhares ou milhões de pageviews).

E o risco? Bem, nos Highly Connected Worlds a pessoa é compelida a

correr o risco, a fluir com o curso. Não pode se proteger, se sedentarizar

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114

em seu mundo, se agarrar às coisas para tentar permanecer como é ou a

ser mais-do-mesmo (do que já é) em vez de surfar nos interworlds,

navegar, ser nômade, fluzz.

“Se não posso achar o caminho farei um”, escreveu Sêneca (7). Nos novos

mundos-fluzz, seria o caso de dizer: como não há caminho, serei um (uma

porta para outros mundos)

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115

AAnniissoottrrooppiiaass nnoo ccaammppoo ssoocciiaall

Os deuses eram ventos.

Arturjotaef em Numância (2010)

Ama-gi é uma palavra suméria para expressar alforria...

Traduzida literalmente significa “retorno à mãe” – na medida em que

os ex-escravos eram “devolvidos às suas mães (i. e., libertados)”.

Acredita-se ser a primeira expressão escrita do conceito de liberdade.

Wikipedia (2010)

NÃO HÁ NADA A FAZER. DEIXEM FLUZZ SOPRAR para ver o que acontece.

(Na verdade, dizer ‘deixem fluzz soprar’ é apenas uma maneira de dizer,

pois fluzz já é o sopro).

Quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola? Quando fluzz soprar,

para que religião, para que igreja? Quando fluzz soprar, para que

corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para que nação, para

que Estado?

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116

Oh! É claro que todas essas instituições perdurarão: como

remanescências. Não serão mais prevalecentes. Aliás, como já se

prenuncia, elas se contaminarão mutuamente: nações serão religiões,

escolas serão igrejas, Estados serão corporações... e tudo será, afinal, o

que é – sempre a mesma coisa: programas verticalizadores que “rodam”

na rede social instalando anisotropias no espaço-tempo dos fluxos.

O cordobés Lucius Annaeus Sêneca (c. 3 a. E. C. – 65) escreveu que “se um

homem não sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe será favorável”

(8). Mas é o contrário. Pouco importa onde está Ítaca. É o vento, soprando

livre sobre a superfície das águas, que constitui o não-caminho (ou

desconstitui todos os caminhos).

Como cantou Konstantinos Kaváfis, “se partires um dia rumo a Ítaca, faz

votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras... Melhor muitos

anos levares de jornada e fundeares na ilha, velho enfim, rico de quanto

ganhaste no caminho, sem esperar riquezas que Ítaca te desse. Uma bela

viagem deu-te Ítaca... Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, e

agora sabes o que significam Ítacas” (9).

Manobrando o leme para seguir uma rota já traçada não há como viver

em processo de Ítaca. É preciso deixar-se ao sabor do vento.

Quando o sopro não percorre livremente os mundos é porque houve

direcionamento de fluxo. Pré-cursos foram estabelecidos. Velas foram

orientadas para capturar e condicionar o vento. Em geral isso é feito por

essas intervenções antrópicas resultantes do congelamento de fluxos que

chamamos de instituições (hierárquicas): escolas, ensino, religiões, igrejas,

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117

corporações, partidos, nações, Estados. São artifícios para exercer a Força,

ou seja, para impor caminhos.

A pergunta é: quando fluzz soprar, para que forçar? Por isso se diz: não há

nada a fazer (quando fluzz soprar). Não há nada a fazer significa que é

preciso deixar-ir. Ter um comportamento fluzz é deixar-ir. Fluzz não é a

força. Fluzz é o curso.

Impor caminhos é deformar um tecido, perturbar um campo. Se pessoas

interagindo com pessoas são redes, o tecido deformado é sempre uma

rede que se tornou mais centralizada ou menos distribuída. Se o campo

social é composto pelo emaranhado de conexões, a perturbação é sempre

um desemaranhar, de sorte que alguns mundos perderão contato com

outros; ou melhor, deixarão de estar sujeitos às mesmas interações. Se

isso acontece é porque interworlds foram aniquilados.

Quando forçamos um caminho exterminamos mundos (para nós, é claro –

mas o que dá no mesmo, se não podemos mais interagir com eles).

Perdemos então as oportunidades – de que fala o belo poema de Kaváfis –

de “entrar pela primeira vez um porto para correr as lojas dos fenícios e

belas mercancias adquirir” ou de peregrinar naquelas “muitas cidades do

Egito... para aprender”.

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DDeeffoorrmmaannddoo aa rreeddee--mmããee

Na ausência do poder as redes tendem a permanecer distribuídas

A INVESTIGAÇÃO DAS REDES SOCIAIS leva-nos a uma nova hipótese

antropológica: uma outra visão da natureza humana (seja lá o que isso

for), que se afasta do que foi concebido como Homo economicus, para se

aproximar – como sugeriram Christakis e Fowler – do que eles chamaram

de Homo dictyous (do latim homo, “humano”, e do grego dicty, “rede”)

(10).

Indivíduos biológicos da espécie humana se tornam Homo dictyous (seres

humanos), quando interagem. Mas quando interagem constituem rede.

Logo, sem essa rede não podemos ser humanos.

Em outras palavras: se, como pessoas, já somos rede – do contrário não

poderia haver a realidade biológico-cultural que chamamos de ‘ser

humano’ – então, para nós, humanos, no princípio era a rede. Isso significa

que somos “filhos” da rede. Logo, podemos dizer que a rede é a nossa

“mãe”. Ou seja, que existe uma rede-mãe.

A interpretação que revela tal sentido é alegórica ou metafórica. Mas a

metáfora da rede-mãe pode revelar mais coisas do que imaginamos. Ela

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sugere que, deixados a si mesmos, os humanos farão (ou melhor, serão)

redes em vez de se engalfinharem em uma guerra de todos contra todos

transformando sua vida em uma realidade “solitária, miserável, sórdida,

brutal e curta”, como queria o agourento Hobbes (1651) (11).

Os pensadores e os economistas que cunharam e trabalharam com a

concepção do homo economicus simplesmente partiram desse

fundamento hobbesiano para reificar a existência da abstração chamada

indivíduo. Trata-se de uma visão da natureza humana – na verdade quase

uma tara – baseada no egoísmo, para a qual, como escreveu Hobbes, na

ausência de “um poder que domestique os homens... não há sociedade; e o

que é pior do que tudo, [há] um medo contínuo e perigo de morte

violenta” (12). Vivendo nesse “mundo cão brutal em que a preocupação

com o bem-estar dos outros não existe” (13) existiria, entretanto,

paradoxalmente, o indivíduo enquanto unidade isolada dos outros

indivíduos. Evidentemente, diante de tantos atos gratuitos de colaboração

que praticamos e presenciamos no dia-a-dia, essa construção intelectual

só pode se revelar uma perversão. Daí a tara individualista, tão frequente

e inadequadamente denominada de liberalismo (econômico).

Não há nenhuma evidência científica de que os seres humanos

abandonados à sua própria sorte (como se pudesse haver outra sorte...)

poriam fim à sua convivência. As evidências apontam justamente o

contrário. Não havendo motivo para guerrear, as pessoas – seguindo o

fluxo da vida – viveriam sua convivência – ou seja, viveriam em rede.

Como disse Lynn Margulis (1986): “A vida não se apossa do globo pelo

combate, mas sim pela formação de redes” (14).

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A alegação de Hobbes de que é o poder que evita a destruição coletiva

deve ser invertida. Quando há poder, aí sim, é porque houve motivo para

guerrear e a convivência fica ameaçada.

Na ausência de um poder que as domestique (para insistir na expressão de

Hobbes), pessoas interagindo com pessoas tendem a configurar redes

distribuídas em pequenos grupos, só não o fazendo, em grupos maiores,

em virtude da falta de condições biológicas ou tecnológicas de

interatividade ampliada e à distância. Não haveria motivo para obstruírem

fluxos, separarem clusters ou excluírem nodos dessas redes (que é,

exatamente, o que faz o poder), a menos que queiramos lançar mão de

uma hipótese religiosa para vaticinar que o homem é inerentemente

competitivo (ou em parte competitivo, por sua própria natureza – seja lá o

que isso for). Tal hipótese é absurda neste contexto porque pressupõe

que possam existir seres humanos (entes biológico-culturais) como entes

(biológicos) isolados.

Mas não existe no ser humano nenhum atributo cultural

(comportamental) que se possa dizer inerente. A “natureza” do Homo

dictyous – se é que se pode afirmar que exista uma ‘natureza da cultura’ –

é relacional.

Todo poder acarreta anisotropias no espaço-tempo dos fluxos

(verticalizando a rede). E é por isso que o poder se define como uma

medida de não-rede (em termos de rede distribuída) (15). Na ausência do

poder (centralização) a rede tende a permanecer distribuída. Podemos

dizer que o bios (Basic Input-Output System) pré-gravado lá no firmware

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da rede-mãe não é um programa verticalizador (centralizador) pelo

simples motivo de que não há qualquer razão para sê-lo. Nesse caso, o

que precisa ser explicado é o processo de centralização, não o estado de

distribuição. São os obstáculos colocados à livre convivência que precisam

ser justificados, não a convivência.

Por certo a rede-mãe não permanece com topologia distribuída na

presença de programas verticalizadores. Aqui é um daqueles casos – mais

comuns do que se pensa – em que o software modifica o hardware (como

quando aprendemos uma língua e alteramos para tanto nossas conexões

neuronais). Programas verticalizadores deformam a rede-mãe, sejam

programas meméticos (como os que chamamos de deuses – quando lhes

atribuímos atributos super-humanos), sejam programas organizacionais

(que rodam comandos de ordem, hierarquia, disciplina e obediência –

como escolas, igrejas, partidos, corporações, Estados e outras instituições

assemelhadas com todos os seus aparatos). No interior e no entorno

dessas organizações hierárquicas o campo social é profundamente

perturbado. O espaço-tempo dos fluxos é deformado obrigando as

fluições a percorrerem caminhos estranhos. A interação é disciplinada

sem qualquer outra razão que a de manter tais estruturas monstruosas

funcionando e se reproduzindo. A imagem da Fig. 2 é aterrorizante.

Lembra à primeira vista aquelas naves de alienígenas predadores do filme

de Roland Emmerich (1996) Independence Day. Talvez não por acaso:

organizações hierárquicas de seres humanos geram seres não-humanos.

Mas se trata apenas de uma outra maneira de representar o diagrama (B)

de Paul Baran (1964) exposto na Fig. 1.

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Fig. 1 | Diagramas de Paul Baran

Fig. 2 | Organograma de uma organização hierárquica

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Se o fluxo deixar de ser aprisionado, orientado, conduzido, compelido a

escorrer pelas valetas cavadas para pré-traçar caminhos (eliminando

outros caminhos), a rede-mãe volta à sua topologia distribuída. É curioso

que a primeira expressão escrita do conceito de liberdade – a palavra

suméria Ama-gi – signifique literalmente “retorno à mãe”.

Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola?

Quando fluzz soprar, para que religião, para que igreja? Quando fluzz

soprar, para que corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para

que nação, para que Estado?

Um sinal de que fluzz está soprando é que tais instituições estão se

misturando e se confundindo, quer dizer, está ficando cada vez mais claro

que elas são aspectos das mesmas deformações ou do mesmo tronco de

programas verticalizadores que “rodam” na rede social provocando

anisotropias no espaço-tempo dos fluxos.

É assim que as perturbações no campo social que geram religiões revelam-

se as mesmas que geram nações. De sorte que, nos múltiplos mundos

altamente conectados que estão emergindo, os nômades optarão por essa

ou aquela nação por mera preferência individual, como há bastante

tempo já fazemos com as religiões que professamos quando nos

convertemos depois de adultos. Alguém preferirá ser brasileiro por

simpatia ou por outras razões afetivas, empáticas ou culturais; outro, por

razões análogas, preferirá se identificar com uma região ou cidade: será

californiano ou cidadão-cultural de Lyon.

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Da mesma forma, ao renunciar a igrejas muitas pessoas retirarão também

seus filhos das escolas (compreendendo que as duas coisas são – na

condição de centros de deformação da rede-mãe ou de fontes de

perturbação no campo social – basicamente a mesma coisa). O

movimento do homeschooling já começou e avançará para o

communityschooling (na linha do unschooling). Comunidades de

aprendizagem em rede tendem a florescer e se multiplicar nos Highly

Connected Worlds substituindo as atuais burocracias do ensinamento

(chamadas de escolas).

Ainda: Estados (nacionais) dividirão com corporações (transnacionais) o

controle dos fluxos econômicos e políticos mundiais globalizados e essa

pulverização (dos 193 exemplares atuais do modelo europeu de Estado-

nação – um anacrônico fruto da guerra, da paz de Westfalia – para

milhares de centros com autonomia crescente), dará margem à

configuração de novos modelos glocais de governança baseados no

localismo cosmopolita de miríades de cidades como redes de

comunidades interdependentes.

É claro que todas as velhas instituições perdurarão vestigialmente, como

remanescências do mundo único. Não serão destruídas, simplesmente se

tornarão inadequadas por não suportarem a fluição de alta intensidade

que atravessará os interworlds dos mundos altamente conectados do

terceiro milênio.

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PPeerrttuurrbbaaççõõeess nnoo ccaammppoo ssoocciiaall

A nuvem que envolve-e-se-move-com uma pessoa conectada tem a

capacidade de “sentir” perturbações no campo social

WALTER ROBINSON (2008), também conhecido por Ritoku – um zen-

budista que dá aulas de filosofia na Universidade de Indiana – escrevendo

“Morte e Renascimento de uma Mente Vulcana”, observa que “Vulcanos

têm “sete sentidos”, que incluem os cinco sentidos conhecidos pelos

humanos e um sexto sentido animal, que é “a habilidade de sentir a

presença de distúrbio em campos magnéticos” (16).

A metáfora, se não cai como uma luva, serve aos propósitos da presente

digressão. Por certo, admitir a hipótese e trabalhar com o modelo de

perturbações no campo social pode ser mais fácil do que sentir essas

perturbações. Não é preciso ir muito longe para saber se um campo social

foi deformado: basta entrar em uma organização hierárquica; por

exemplo, basta visitar uma instituição estatal ou uma grande empresa

para constatar com que intensidade o “campo gravitacional” em torno dos

chefes modifica a estrutura do espaço (no caso, do espaço-tempo dos

fluxos). Os fluxos se abismam nesses buracos negros. Eles são sumidouros,

engolidouros, alçapões de fluxos.

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Tão forte às vezes é a gravitatem dos hierarcas que a deformação do

campo social sob sua influência alcança até mesmo os stakeholders

externos da organização, transbordando para seu entorno. É por isso que

uma grande empresa ou corporação, em uma pequena localidade na qual

não existam outras organizações de mesmo porte, em vez de – como se

acreditava – impulsionar seu desenvolvimento, faz o contrário: extermina

o capital social local (quer dizer, centraliza a rede social). Existem

exemplos à farta.

Nas organizações altamente centralizadas, as pessoas perdem a

capacidade de ser elas mesmas (à medida que cresce sua porção-borg

diminui a sua dimensão de pessoa, quer dizer, sua porção ghola-social).

Vestem sempre uma espécie de farda; mesmo nas organizações civis que

não usam uniformes elas se uniformizam interiormente. E até

exteriormente: não raro preferem roupas que escondem o corpo e os tons

de cinza para o vestuário. No exercício continuado da servidão voluntária,

autolimitam suas potencialidades escondendo-se na penumbra das

rotinas e optando por não se aventurar na claridade do ato inédito. Fazem

tudo – sobretudo o que delas não é explicitamente exigido, eis o ponto! –

para se submeter ao sistema e aos seus chefes.

E há uma reverência indevida, uma espécie de sujeição, quase uma

genuflexão psicológica quando alguém se dirige a algumas dessas

encarnações de Dario (aquele monstro Darayavahush, um rei-borg que,

após perpetrar um golpe de Estado, dominou os persas entre 521 e 486 a.

E. C. exigindo-lhes prosternação física à sua passagem).

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Ésquilo (427 a. E. C.), em Os Persas – talvez a primeira obra escrita em que

se menciona a democracia dos atenienses como realidade oposta a

daqueles povos que têm um senhor – descreve bem a deformação do

campo social sob o domínio da sombra de Dario (17). O regime

monstruoso não tinha, ao contrário do que se propagou, grandes

vantagens militares. Os persas foram rechaçados pelos irreverentes,

insolentes e mais livres atenienses e seus aliados na planície de Maratona

(em 490). Sim, mas o que é realmente monstruoso é que tal programa

(que poderia ser chamado, em homenagem a Ésquilo, de A Sombra de

Dario) – instalado quase três milênios antes de Dario – continue a rodar...

quase três milênios depois!

Todavia, essas deformações já começam a ser sentidas. Um sexto sentido

humano-social está surgindo nos Highly Connected Worlds. Não é

propriamente um sentido individual. A nuvem que envolve-e-se-move-

com uma pessoa conectada tem a capacidade de “sentir” perturbações no

campo social. Uma rede altamente distribuída rechaçará de pronto,

mesmo que seus membros não tenham consciência disso, quaisquer

tentativas de comando-e-controle. Eis porque burocratas sacerdotais do

conhecimento ou ensinadores, codificadores de doutrinas, aprisionadores

de corpos, construtores de pirâmides, fabricantes de guerras e condutores

de rebanhos não se dão muito bem em redes sociais distribuídas e, nem

mesmo, nas mídias sociais, quer dizer, nas plataformas interativas que são

utilizadas como ferramentas de netweaving dessas redes. Porque são,

todos, netavoids.

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Esta é uma das razões – até agora muito pouco compreendida – pelas

quais o comando-e-controle, além de não poder se exercer, também não

se faz necessário em uma rede distribuída (na medida, é claro, do seu grau

de distribuição). Dizer que o emaranhado “sente” quer dizer que ele

detecta distorções. Mais do que isso: primeiro ele encapsula e depois

acaba metabolizando as fontes de perturbações que causam anisotropias

no espaço-tempo dos fluxos. E são esses incríveis seres sociais que

chamamos de pessoas que sentem isso: ainda quando não saibam explicar

os motivos dessa sensação, elas (as pessoas) percebem que “alguma coisa

está errada” quando aparece um daqueles netavoids, ou um arrivista (ou

mesmo um troll, nas mídias sociais).

É a rede-mãe se defendendo. Mas ela nem sempre consegue fazer isso.

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DDeessttrruuiiddoorreess ddee mmuunnddooss

Persistimos erigindo organizações que não são interfaces adequadas

para conversar com a rede-mãe

DARAYAVAHUSH É UM DESTRUIDOR DE MUNDOS. Joseph Campbell diria

que ele representa “uma força monstruosa, a força do Império, que se

baseia na intenção de conquistar e comandar” (18). Como aquele Darth

Vader do primeiro episódio da série que veio à luz – Uma Nova Esperança

(1977) –, na decifração de Joseph Campbell (1988), ele não é uma pessoa.

É um programa malicioso que se instalou na rede. Um programa

verticalizador.

Não, não estamos tratando propriamente da figura histórica de Dario, o

homem que governou a Pérsia. Todos os hierarcas – inclusive o próprio

Dario – replicam o mesmo padrão Darth Vader porque estão

emaranhados em configurações deformadas da rede-mãe, com

deformações semelhantes. Qualquer um, inserido em sistemas com tais

configurações, manifestará – em alguma medida – características de

Darayavahush. E será em alguma medida destruidor de mundos. Na

verdade, aniquilará interfaces (interworlds) estreitando o fluxo das

interações, impedindo que pessoas se conectem livremente com pessoas.

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É por isso que organizações hierárquicas têm tanta dificuldade de gerar

pessoas.

Sim, gerar pessoa é um processo contínuo que não se dá no nascimento e

nem apenas logo após o nascimento, mas prossegue por toda a vida (a

com-vida, quer dizer, aquela ‘vida social’ que se realiza quando vivemos a

convivência). É algo assim como o que certas tradições espirituais

chamaram de formação da alma humana: um veículo para “atravessar a

morte” (em vez de tentar evitá-la, querendo ser imortal: o motivo da

criação dos deuses à imagem e semelhança dos hierarcas) aceitando o

fluxo transformador da vida.

Para continuar com o paralelo, se a alma humana é formada com a

energia da compaixão, obtida nos atos gratuitos de valorizar a vida,

compartilhar o alimento, aliviar os sofrimentos e promover a liberdade,

Darth Vader não tem alma porque, ao invés de formá-la, criou um veículo-

substituto para escapar de fluzz: sua nave-simulacro é feita com a energia

da violência, obtida nos atos instrumentais de tirar a vida, se apoderar dos

recursos vitais, infligir sofrimentos e, sobretudo, eliminar caminhos (pela

imposição da ordem).

Nas organizações hierárquicas, um processo intermitente de

despersonalização é posto em marcha quando obstruímos fluxos,

separamos clusters e excluímos nodos. O resultado de tal processo

poderia ser interpretado, lançando-se mão de nossa metáfora, como uma

perda de contato com a rede-mãe. É por isso que nossas organizações de

todos os setores têm tanta dificuldade de contar com (a adesão voluntária

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131

das) pessoas. A reclamação geral é sempre a de que “as pessoas não

participam”. Imaginam alguns que o motivo dessa dificuldade seria a

visão, a missão, a causa da organização ou do movimento, avaliadas então

como incapazes de empolgar mais gente, porém a verdadeira razão está

na deformação da rede. As pessoas sentem – mesmo quando não

conseguem explicitar racionalmente seus motivos – que não lhes cabe

entrar em um espaço já configurado de uma determinada maneira. Não

querem ‘participar’ (tornar-se partes ou partícipes de alguma coisa) nos

termos estabelecidos por outrem, senão ‘interagir’ nos seus próprios

termos. Mesmo assim, persistimos erigindo organizações que não são

interfaces adequadas para conversar com a rede-mãe. Porque

continuamos criando obstáculos à livre conversação entre pessoas.

Pessoas conversam com pessoas. Redes conversam com redes.

Organizações hierárquicas não podem conversar com redes.

Organizações hierárquicas (ou com alto grau de centralização) têm

imensas dificuldades de provocar mudanças sociais no ambiente onde

estão imersas. A rede social que existe independentemente de nossos

esforços conectivos – ou que existiria se tais esforços não fossem

verticalizadores; quer dizer, o que chamamos aqui de rede-mãe – não

recebe bem a influência dessas organizações e continua funcionando mais

ou menos como se nada tivesse acontecido.

É o que ocorre quando ouvimos relatos de organizações sociais

profundamente dedicadas ao trabalho comunitário. Seus dirigentes

reportam que estão lutando há anos, com grande afinco, em uma

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determinada localidade, mas a impressão que têm é a de que seus

esforços não adiantam muito. O povo não reconhece o seu papel, as

relações não mudam, parece que tudo continua como d’antes...

Se formos analisar as circunstâncias da atuação dessas organizações de

base, veremos que elas terão um alto grau de centralização (ou um grau

de enredamento insuficiente). É um problema de comunicação. A rede

social que existe de fato naquela localidade não está reconhecendo as

mensagens emitidas pela organização. É muito provável que essa

organização esteja estruturada e funcione como uma pequena fortaleza,

um castelinho, uma igrejinha... É muito provável que ela faça parte da

‘nova burocracia das ONGs’, ou seja, que tenha dono, chefe, diretoria – às

vezes até familiar – com baixíssimo grau de rotatividade (menor ainda do

que o dos partidos e organizações corporativas). É muito provável que

seus chefes queiram se eternizar no poder (no caso, um micro-poder, é

verdade, mas todo poder hierárquico, vertical, seja grande ou pequeno, se

comporta mais ou menos da mesma maneira, sempre a partir do poder de

excluir o outro...) porque precisem (ou imaginem que precisem) auferir o

crédito ou obter o reconhecimento social pela sua atuação.

Se essa organização que não consegue boa comunicação com a rede-mãe

for uma corporação ou partido, será bem pior. Ela estará estruturada a

partir de um impulso privatizante, seja com base no interesse econômico,

seja com base no interesse político de um grupo particular que quer

manobrar o coletivo maior em prol de sua própria satisfação. A rede social

não-deformada é sempre pública. Mas as interfaces hierárquicas que

construímos para conversar com ela ou para tentar manipulá-la são

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133

sempre privadas, mesmo quando urdimos teorias estranhas para legitimar

a privatização, como aquela velha crença de que existem interesses

privados que, por obra de alguma lei sócio-histórica, teriam o condão de

se universalizar, quer dizer, de universalizar o seu particularismo quando

satisfeitos.

Só há uma maneira de conseguir uma boa comunicação com a rede-mãe.

Copiando-a o mais fielmente que conseguirmos; ou seja, construindo

interfaces – redes voluntárias – com o maior grau de distribuição que for

possível. Quanto mais distribuídas forem as redes que construirmos para

copiar a rede-mãe melhor será a comunicação com ela.

Nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo ficará

cada vez mais difícil recrutar, arrebanhar, enquadrar ou aprisionar pessoas

em organizações erigidas com base na seleção de caminhos válidos (ou na

normatização de caminhos inválidos). Desde que tenham essa

possibilidade, as pessoas perfurarão os muros, abrirão continuamente

seus próprios caminhos mutantes e – na sua jornada para Ítaca –

peregrinarão para aprender naquelas “muitas cidades do Egito...”

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HHiiffaass ppoorr ttooddaa ppaarrttee

Toda rede miceliana é um clone fúngico,

o filho distante de uma única linhagem genética.

Acima do solo, os fungos produzem esporos que flutuam no ar...

Quando pousam, os esporos crescem onde quer que seja possível.

Fazendo brotar redes tubulares, as hifas...

os fungos produzem quantidades copiosas de esporos,

os quais se disseminam, espalhando sua estranha carne...

Lynn Margulis e Dorion Sagan em O que é vida? (1998)

Jericó estava fechada por causa dos israelitas.

Ninguém saía ninguém entrava...

O Senhor disse então a Josué:

“No sétimo dia... os sacerdotes tocarão as trombetas...

Quando ouvirdes o som da trombeta,

o povo lançará um grande grito;

o muro da cidade virá abaixo, o povo subirá,

cada um à sua frente.

Josué 6: 1-5

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135

ENQUANTO ISSO, PORÉM, CRESCEM SUBTERRANEAMENTE AS HIFAS, por

toda parte. Os alicerces das organizações hierárquicas vão sendo

corroídos e seu muros, antes paredes opacas para se proteger do outro,

vão agora virando “membranas sociais”, permeáveis à interação e

vulneráveis ao outro-imprevisível. Pessoas conectadas com pessoas vão

tecendo articulações que estilhaçam o mundo-único-imposto em miríades

de pedaços, não pelo combate, mas pela formação de redes. E outras

identidades – mais-fluzz – vão surgindo nos novos mundos altamente

conectados do terceiro milênio.

Não se decepcione: provavelmente você não vai ver nada mesmo! As hifas

crescem, em geral, abaixo do solo. Os esporos espalham-se pelo ar, mas

são tão pequenos que a gente nem percebe.

Quando você notar as consequências, aí não adiantará mais se

desesperar. Pois se o processo, por enquanto, ainda é lento e invisível (em

parte “aéreo”, em parte “subterrâneo”), seus desfechos poderão ser bem

concretos e fulminantes nos mundos em que ocorrerem.

Nos Highly Connected Worlds não há como fechar nada. Trancar, chavear,

cerrar as fronteiras, isolar por meio de paredes opacas não é a solução

para manter a identidade ou preservar a integridade de nenhum

aglomerado. Quando os fluxos aumentam de intensidade, os muros não

conseguem mais contê-los.

Parece que a vida “sabia” disso: tanto é assim que não encerrou seu

“átomo” (a célula) em nenhuma estrutura fechada, separando-o do meio

com paredes opacas: antes, construiu membranas – uma interface de

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sustentabilidade, um convite à conexão. Um convite ao sexo, já que

estamos agora explorando um paralelo biológico: nos fungos – que são

“organismos realmente fractais”, como percebeu a bióloga Lynn Margulis

(1998) – o ato sexual (chamado de conjugação) é uma conexão (19).

Muros caindo por toda parte anunciarão “membranas sociais” surgindo

por toda parte. Ou não: o que não virar “membrana social” será

escombro.

O que as hifas – esses filamentos ou tubos finos que formam a estrutura

em rede dos fungos – têm a ver com isso? Ora, tudo. Pois são elas (ou o

processo espelhado, em termos biológicos, pela clonagem fúngica) que

estão operando tal mudança.

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AA ppeerrffuurraaççããoo ddooss mmuurrooss

Quando a porosidade aumentar, os muros vão começar a ruir

EIS COMO PAREDES OPACAS vão se tornando inadequadas para conter o

fluxo: elas vão sendo perfuradas por hifas. Essa possibilidade existe

concretamente desde que os subordinados em uma organização

hierárquica não podem mais ser proibidos de se conectar com quem está

do lado de fora do muro pelas polícias corporativas (os departamentos de

segurança, os departamentos de pessoal e, inclusive – e hoje

principalmente –, os departamentos de tecnologia da informação).

O aprisionamento de corpos e sua contenção física em prédios fechados,

com salas e andares isolados um dos outros, controlados por portarias ou

por barreiras eletrônicas que não deixam passar quem não tem o código

válido no seu cartão magnético funcional, já não resistem adequadamente

a aglomeração física não-prevista pelos protocolos de segurança; por

exemplo, dos amigos que se encontram após o expediente em bares,

restaurantes, shoppings e em suas próprias casas, ou até mesmo dos

fumantes que são obrigado a se encontrar na rua, do lado de fora das

sedes, por imposição legal. E muito menos é capaz de resistir à

comunicação à distância, por celular, e-mail, pelos programas de

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138

mensagens e comunicação instantânea ou pelos sites de relacionamento

na Internet.

É inútil proibir e não há como manter uma vigilância eficaz. Os

departamentos de tecnologia da informação (TI) podem tentar barrar

(como ainda insistem em fazer) o acesso às chamadas mídias sociais e aos

vários serviços de comunicação web na sua própria rede de

computadores, mas qualquer um que tenha um celular (3G, equivalente

ou sucedâneo), ou melhor, um dispositivo móvel de interação conectado à

Internet ou conectável a outros dispositivos por rádio (incluindo bluetooth

quando seu alcance for ampliado) já pode – ao mesmo tempo em que

trabalha (ou finge que trabalha) em uma empresa fechada – desenvolver

outros projetos conjuntos com pessoas de outras empresas fechadas,

inclusive concorrentes (20).

Tudo isso aumenta a porosidade dos muros. À medida que a porosidade

aumentar, os muros vão começar a ruir.

Só então as organizações fechadas se darão conta de que estão

irremediavelmente vulneráveis à interação e correrão desesperadas atrás

das membranas. Aí já poderá ser tarde: uma membrana é um dispositivo

ultracomplexo, que só pode ser construído pela dinâmica de um

organismo vivo em interação com o meio, com outros organismos e partes

de organismos.

Uma empresa que não aprendeu a se desenvolver conversando com as

outras empresas por medo de perder mercado ou de ter roubadas as suas

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139

inovações ou seus funcionários, não conseguirá, da noite para o dia, fazer

uma reengenharia de suas, por assim dizer, boundary conditions.

Uma corporação que insistiu em manter intranets mesmo depois de ter

sido inventada a Internet, dificilmente estará preparada para operar, em

tempo hábil, tal mudança.

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AA ccoonnssttrruuççããoo ddee ““mmeemmbbrraannaass ssoocciiaaiiss””

Deixar a interação pervadir um sistema não significa propriamente fazer,

mas – ao contrário – não-fazer: não proibir, não-selecionar caminhos...

A DERRUIÇÃO DOS MUROS não esperará que os sacerdotes toquem as

trombetas em Jericó (se bem que na saga bíblica de Josué foi o grito em

uníssono do povo que derrubou as muralhas que trancavam a cidade). De

qualquer modo, não há mais tempo para aprender a construir verdadeiras

membranas. Na verdade, membranas não podem ser construídas, stricto

sensu, como um ato voluntário de alguém que segue uma planta, um

projeto, um esquema. As membranas são “construídas” pela interação

biológica, elas surgem em função da autopoese: da produção contínua da

vida por ela mesma.

No caso das membranas celulares (plasmalemas), sua estrutura e

funcionamento complexos dependem da dinâmica de rede, de redes

dentro de redes, com canais proteicos (proteínas de transporte – espécies

de atalhos entre clusters) que atravessam suas camadas, passando por

numerosos arranjos moleculares (21) até chegar, na interface com o

citoplasma, a um emaranhado de “hifas” composto por filamentos e

microtúbulos de citoesqueleto... tudo isso fluindo (imerso em fluido

extracelular). E tudo isso com a função de ser uma porta seletiva que a

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célula usa para captar os elementos do meio exterior que são necessários

ao seu metabolismo e para liberar as substâncias que a célula produz e

que devem ser enviadas para o exterior (excreções que devem ser

libertadas e secreções que ativam várias funções de seus, por assim dizer,

“stakeholders externos”).

Esse produto de bilhões de anos de evolução biológica funciona, é claro,

como um sistema não-hierárquico, sem-administração, auto-organizado

para permitir o que chamamos de vida e não pode ser substituído por

cancelas corporativas que sigam protocolos alfandegários burros,

destinados a disciplinar a interação.

Seria inútil simular, nas organizações que voluntariamente construímos,

mecanismos semelhantes às membranas celulares. E nem seria o caso de

tentar fazê-lo, abusando do paralelo biológico. O que se deve captar aqui

é o padrão, não reproduzir o mecanismo ou simular o organismo. E o

padrão é o padrão de interação em rede.

“Membranas sociais”, seja o que forem (e como forem), serão sempre

redes (mais distribuídas do que centralizadas), interfaces. A única solução-

fluzz parece ser articular comunidades móveis (no ecossistema composto

pelos stakeholders da organização) e deixar a interação configurar tais

interfaces, esperando que elas cumpram funções equivalentes, no mundo

social, às que são desempenhadas pelas membranas celulares no mundo

biológico.

Na verdade, ao estabelecer contornos, estabelece-se a estrutura e a

dinâmica do que está dentro dos contornos. Membranas são o que são (e

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como são) porque os meios que elas conectam são o que são (e como

são). Mas tais meios são, eles próprios, constituídos pela interação, quer

dizer, não se constituem como tais antes da interação. A membrana é um

sistema complexo porque é, simultaneamente, uma interseção de

conjuntos, uma zona de transição entre um ser e os outros seres nos quais

se insere (ou, mais genericamente, com os quais interage), uma forma de

ligação ou uma espécie de conjunção.

Ainda não sabemos muito sobre membranas e, sobretudo, sobre

“membranas sociais”. Algumas coisas, porém, já sabemos. Sabemos, por

exemplo, que deixar a interação pervadir um sistema não significa

propriamente fazer, mas – ao contrário – não-fazer: não-proibir, não-

selecionar caminhos (estabelecendo apenas alguns caminhos,

proclamando-os como válidos e exterminando todos os demais caminhos,

decretando-os inválidos); fundamentalmente, não gerar artificialmente

escassez (22).

Sabemos também que as interfaces devem ser sociais stricto sensu e não

organizacionais (em termos das teorias da administração baseadas em

comando-e-controle). Ou seja, devem ser baseadas na livre conversação

entre pessoas e na sua espontânea clusterização e não na designação, ex

ante à interação, de caixinhas departamentais para alocar essas pessoas.

Simples assim? É, mas a conversação é algo bem mais complexo do que

parece. E os novos procedimentos e mecanismos, os novos processos de

netweaving e as novas tecnologias interativas que inventamos para

viabilizar e potencializar a conversação, alteram completamente o

multiverso das interações que chamamos de social.

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“Membranas sociais” são interworlds. Ao constituí-las multiplicamos os

mundos, dando origem – se quisermos fazer uma comparação

quantitativa para efeitos ilustrativos – a bilhões de organizações (em vez

de milhões que existem atualmente). Uma mesma pessoa participará de

muitas organizações, comporá numerosas empresas, entidades,

movimentos, enfim, redes – pois tudo isso é válido, claro, na medida em

que tudo for rede. Para tanto, não será necessário fazer quase nada

adicionalmente ao que já se faz hoje. Bastará não proibir a conexão, não

querer disciplinar a interação.

Um bom exemplo, hoje, são as plataformas interativas digitais, chamadas

de “redes sociais”. A quantas “redes sociais’” alguém pertence (ou seja,

em quantas mídias sociais está registrado)? O número é grande e só tende

a crescer.

Os emaranhados se adensarão a tal ponto, as timelines ficarão tão

caudalosas, que as identidades organizacionais não se manterão por

muito tempo. Despencaremos da escala de décadas e anos (que é a vida

média da imensa maioria das organizações que ainda temos) para a escala

de meses e dias (ou, quem sabe, de horas e minutos).

Não é bem como disse Andi Warhol (1968) – “no futuro todo mundo será

famoso por quinze minutos” – mas é parecido (23). Não é bem como ele

disse porque ninguém será muito famoso, no sentido de visto por todo

mundo, porque não haverá mais o mundo único forjado pelo

broadcasting. Mas é parecido porque no futuro (um conceito que também

será aposentado, de vez que não haverá mais um futuro único, um mesmo

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futuro para todos), as organizações serão sempre transitórias, estarão

sempre fluindo para configurarem outras organizações e uma mesma

configuração não poderá perdurar por muito tempo.

É assim porque redes são móveis. Novamente as mídias sociais oferecem

uma boa imagem do que ocorre. Sites de relacionamento e plataformas

interativas nunca são as mesmas ao longo do tempo e a velocidade com

que mudam (em anos, dias ou horas) é função da sua interatividade. O

exemplo mais flagrante é o twiver (as centenas de milhões – que logo

serão bilhões, se considerarmos os sucedâneos do Twitter – de timelines

fluindo no twitter-river).

Onde e quando tudo isso vai acontecer? Vai acontecer nos Highly

Connected Worlds do terceiro milênio. Para aqueles mundos que já estão

no terceiro milênio.

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NNoottaass ee rreeffeerrêênncciiaass

(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início

de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor

observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,

argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (i-

based e não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em

participação). Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na

ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de

Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe Fluzz: vida

humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do

terceiro milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o programa

mal-sucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito

complexo, sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem:

“Tudo que flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não pode ser

aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da

rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se

expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado

de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não

há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É

de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos...

Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são

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muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,

dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que

se constelam e se desfazem, intermitentemente”.

(**) Este texto foi originalmente escrito em 2010 e publicado em 2011 no

livro Fluzz: vida humana e convivência social nos novos mundos altamente

conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de Redes, 2011.

(1) Cf. LORCA, Frederico Garcia (1924). “Canción Tonta” in Canciones

(Obras Completas I). Madrid: Aguilar, 1978.

(2) BARROS, Manoel (1993). Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.

(3) LÉVY, Pierre (1998). “Uma ramada de neurônios” in Folha de São Paulo:

15/11/1998. Cf. ainda Caderno Mais da Folha de S. Paulo: 15/11/2002 (p.

5-3). O texto está disponível em:

<http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/uma-ramada-de-

neuronios>

(4) Cf. FRANCO, Augusto (1998). O Complexo Darth Vader. Slideshare [469

views em 23/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-complexo-darth-vader>

(5) HERBERT, Frank (1976). Os filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1985.

(6) CASTELLS, Manoel (2001). A Galáxia da Internet: reflexões sobre a

Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

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147

(7) Trata-se de uma tradução forçada do provérbio “Viam aut aut faciam

inveniam” cuja localização não foi possível determinar. Cf. a bibliografia de

SENECA, Lucius Annaeus (c. 3 a. E. C. – 65) em:

<http://www.egs.edu/library/lucius-annaeus-seneca/biography/>

(8) SENECA, Lucius Annaeus (c. 3 a. E. C. – 65). Cf. Wikiquote:

<http://pt.wikiquote.org/wiki/S%C3%AAneca>

Não foi possível determinar a localização desta citação. Cf. a bibliografia

de SENECA:

<http://www.egs.edu/library/lucius-annaeus-seneca/biography/>

(9) KAVÁFIS, Konstantinos (1911). Ithaca. Kaváfis não publicou nenhum

livro em vida. Estão disponíveis online as traduções de José Paulo Paes e

Haroldo de Campos em:

<http://www.org2.com.br/kavafis.htm>

(10) CHRISTAKIS, Nicholas e FOWLER, James (2009): Connected: o poder

das conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

(11) HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

(12) HOBBES: Op. cit.

(13) CHRISTAKIS, Nicholas e FOWLER, James: Op. cit.

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148

(14) MARGULIS, Lynn e SAGAN, Dorion (1986). Microcosmos: four billion

years of microbial evolution. Los Angeles: University of California Press,

1997.

(15) Cf. FRANCO, Augusto (2009). O poder nas redes sociais. Slideshare

[1893 views em 23/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-poder-nas-redes-sociais-

2a-versao>

(16) ROBINSON, Walter (2008). “Morte e renascimento de uma mente

vulcana” in EBERL, Jason & DECKER, Kevin (2008). Star Treck e a filosofia: a

ira de Kant. São Paulo: Madras, 2010.

O sétimo sentido seria “o senso de unicidade com Tudo, isto é, Universo, a

força criativa, ou o que alguns humanos poderiam chamar de Deus.

Vulcanos não veem, contudo, isso como uma crença, seja religiosa ou

filosófica. Eles tratam isso como um simples fato que insistem não ser

mais incomum ou difícil de entender do que a habilidade de ouvir ou ver”

[como escreveu o criador da série Star Trek, Gene Roddenberry (1979)].

Vulcanos chamam essa filosofia de “Nome”, querendo dizer “uma

combinação de uma diversidade de coisas para fazer com que a existência

valha a pena” (Episódio “Por trás da cortina”: The Original Series)”. Cf.

RODDENBERRY, Gene (1979). The Motion Picture. New York: Pocket

Books, 1979.

(17) Em Os Persas, Ésquilo descreve os reveses de Xerxes, filho de Dario. Já

morto na ocasião, Dario vai então aparecer na peça como uma sombra

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para advertir aos persas que jamais movam novamente uma guerra aos

gregos. Depois de dar adeus aos anciãos e de recomendar que, mesmo

“em meio a desgraças, alegrem-se na fruição do mundo... a Sombra de

Dario esfuma-se no túmulo”.

(18) CAMPBELL, Joseph (1988). O poder do mito (entrevistas concedidas a

Bill Moyers: 1985-1986). São Paulo: Palas Athena, 1990.

(19) MARGULIS, Lynn & SAGAN, Dorion (1998). O que é vida? Rio de

Janeiro: Zahar, 2002.

(20) A quase totalidade dos procedimentos e mecanismos de obstrução de

fluxos, estabelecidos nas organizações a pretexto de segurança, não se

justifica (em mais de 90% dos casos, não há nada de realmente decisivo,

estratégico ou sigiloso que deva ser protegido ou não-compartilhado,

fechado e trancado em vez de permanecer aberto e disponível). Isso vale

para os protocolos de segurança impostos pelas áreas chamadas de

“tecnologia da informação”. Não há qualquer ganho em proibir o acesso

dos funcionários de uma organização ao Youtube ou ao Messenger, ao

Slideshare ou ao 4shared, ao Facebook ou ao Twitter. Não há nenhuma

razão para impor programas de e-mail proprietários, lentos, pesados e

com limitações enervantes de poucos megabytes no lugar de adotar

correios eletrônicos web mais eficazes, rápidos, com alta capacidade e,

além de tudo, gratuitos (como o gmail ou o ymail). Não há nenhum motivo

para editar hierarquias de permissões diferenciais e preferências de

acesso a conteúdos que, se fossem realmente secretos (como listas de

espiões ou processos de fabricação de artefatos de destruição em massa),

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não poderiam mesmo estar em rede. E não há explicação plausível para a

manutenção de intranets, sobretudo em uma época em que já existe a

Internet.

(21) Por exemplo, cabeças hidrofílicas com caudas hidrofóbicas em

conjugação com fosfolípidos, aglomerados de proteínas globulares,

glicoproteínas, glicolipídios, colesterol, proteínas extrínsecas etc.

(22) Cf. FRANCO, Augusto (2009). A lógica da abundância. Slideshare

[2.172 views em 23/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/a-lgica-da-abundncia>

(23) WARHOL, Andi (1968). Cf. “15 minutes of fame” em

<http://en.wikipedia.org/wiki/15_minutes_of_fame>

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O mundo não vai virar uma aldeia global, não há um pensar global e um agir local, e sustentabilidade não tem nada a ver com guardar recursos para as gerações futuras

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O mundo não vai virar uma aldeia global, não há um pensar global e um agir local, e sustentabilidade não tem nada a ver com guardar recursos para as gerações futuras

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O mundo não vai virar uma aldeia global, não há um pensar global e um agir local, e sustentabilidade não tem nada a ver com guardar recursos para as gerações futuras

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PARA ENTRAR NO TERCEIRO MILÊNIO

Augusto de Franco, 2012.

Versão Beta, sem revisão.

A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada

com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.

Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta

obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser

reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por

quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –

na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e

distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser

omitida a autoria da versão original.

FRANCO, Augusto de

PARA ENTRAR NO TERCEIRO MILÊNIO / Augusto de Franco. – São Paulo: 2012.

30 p. A4 – (Escola de Redes; 10)

1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.

Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e

à criação e transferência de tecnologias de netweaving.

http://escoladeredes.net

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SSuummáárriioo

Introdução | 9

Miríades de aldeias globais | 13

Pensar e agir glocalmente | 18

Aprender a fluir com o curso | 22

Notas e referências | 27

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IInnttrroodduuççããoo

À velocidade da luz não existe futuro previsível...

Não há, literalmente, futuro possível.

Você já está ali, no momento que chama de situação.

É por isso que em nossa época não existem objetivos...

Para onde vamos? Estamos todos vestidos e sem ter aonde ir.

Marshall McLuhan na Universidade York, em Toronto (1979)

PARA O MUNDO ÚNICO BROADCAST que remanesce o terceiro milênio

ainda não começou. Grandes “verdades” do final século 20 não foram

ainda revistas, conquanto não faltem evidências de seu envelhecimento.

Três exemplos eloquentes:

O mundo virou uma aldeia global? Não. Está virando miríades de

aldeias globais.

Pensar globalmente e agir localmente? Não. Pensar e agir glocalmente!

Sustentabilidade é resguardar recursos para as futuras gerações? Não.

É aprender a fluir com o curso...

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Mundo. Tempo. A ilusão do mundo único é a ilusão do tempo único. Se os

mundos são vários, o tempo de cada mundo é diferente. Por certo, o

broadcasting sintoniza, ou melhor, uniformiza. Mas não iguala, em cada

mundo, o ritmo da fluição que transforma futuro em passado.

Se frequentemente temos a impressão de que o terceiro milênio ainda

não começou – já que as promessas de uma Nova Era que foram a ele

associadas não se realizaram – surge a pergunta: quando então ele vai

começar? Ora, levando-se em conta a existência de vários mundos, a

pergunta não tem sentido. Quando? – em um multiverso – sempre quer

dizer: para quem?

Um ano antes da sua morte, em palestra na Universidade York, em

Toronto, McLuhan (1979) disse que “à velocidade da luz não existe futuro

previsível”. E foi além: “Não há, literalmente, futuro possível. Você já está

ali, no momento que chama de situação. É por isso que em nossa época

não existem objetivos... Para onde vamos? Estamos todos vestidos e sem

ter aonde ir” (1). Talvez McLuhan tenha antevisto ou pressentido a

interação em tempo real ou sem distância nos novos mundos-fluzz (*)

quando apontou a “velocidade da luz” como fator que impossibilita o

futuro. Mas a questão não é que não exista futuro possível e sim que não

é mais possível, nos novos mundos altamente conectados que estão

emergindo, um mesmo futuro.

Não há um futuro universal porque não há um universo em termos sociais,

como acreditaram as narrativas iluministas. Como observou David de

Ugarte (2010), com a desconstituição “dos sujeitos com os quais se

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compunha a narração histórica: as classes, as nações, os grupos de

interesse, o marco do mercado... morre esse futuro que se pretendia ‘o’

futuro” (2). Mas a questão é que todas essas narrativas pressupunham um

mesmo mundo e tentavam explicar a constituição dos sujeitos em função

de expectativas imaginadas a partir dessa abstração totalizante em que

acreditavam.

Dependendo do mundo em que se convive, “o que aconteceu [em alguns

mundos] ainda está por vir” [em outros] e para quem já vive no multiverso

dos Highly Connected Worlds “o futuro não é mais como era

antigamente”, como cantou Renato Russo (1986) (3). Com o

estilhaçamento do mundo único, o futuro também se esporaliza.

Não há mais uma saída (aliás, quando houve, não foi propriamente uma

saída senão uma permanência, um confinamento em um mundo, para

manter esse mundo contra os outros mundos possíveis). As tentativas de

transformar o mundo herdeiras do iluminismo universalista eram

tentativas contra-multiversalistas de mudá-lo para mantê-lo (como mundo

único) ou então para substituí-lo por outro mundo (também único).

Um outro mundo é possível – bradam os militantes antiglobalização que

continuam habitando o século passado. Mas um outro mundo não é mais

possível. E, se fosse, não seria desejável. Outros mundos – isto sim, no

plural – são possíveis. A saída é a entrada em outros mundos. É a

libertação deste mundo único no qual você foi aprisionado. É a sua

desistência de procurar um líder para lhe arrebanhar e guiar nessa

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162

caminhada: você (esse complexo ser social que é a sua pessoa) é a saída,

ou melhor, a porta de entrada para outros mundos.

Para quem já entrou no terceiro milênio soam anacrônicas, em boa parte,

as verdades consideradas progressistas e politicamente corretas do século

passado, voltadas à mudar o mundo (quer dizer, a preservar o mundo

único), como – para citar apenas algumas como exemplos – a de que o

mundo ia virar uma aldeia global, a de que era preciso pensar globalmente

para agir localmente, a de que sustentabilidade era resguardar ou poupar

recursos para as futuras gerações. A despeito dos generalizados consensos

que se formaram em torno dessas ideias, elas são, todas, regressivas – isto

é: contra-fluzz – posto que nascidas do pavor da imprevisibilidade da

interação (**).

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163

MMiirrííaaddeess ddee aallddeeiiaass gglloobbaaiiss

Não é que haja uma rede cobrindo o mundo. É que mundos são redes

TOM WOLFE (2003), na introdução da coletânea de palestras e entrevistas

de Marshall McLuhan, publicadas postumamente no volume intitulado

Undestanding me, escreveu sobre a euforia, que “beirava o espiritual”,

dos visionários do ciberespaço no Vale do Silício dos anos 90: “eles diziam

a todo mundo no Vale que o que estavam fazendo era muito mais do que

desenvolver computadores e criar um novo meio de comunicação

maravilhoso, a Internet. Muito mais. A Força estava com eles. Estavam

tecendo sobre a Terra uma rede inconsútil que tornaria insignificantes

todas as fronteiras nacionais e divisões raciais, transformando

literalmente a natureza da besta humana”. Esses visionários foram

inspirados, segundo Wolfe, “por um literato canadense que morreu quinze

anos antes que a Internet viesse a existir. Seu nome, desconhecido fora do

Canadá até a publicação do livro Para entender os meios de comunicação,

em 1964, era Marshall McLuhan” (4).

McLuhan ficou famoso pela previsão de que “o mundo estava se tornando

rapidamente uma ‘aldeia global’ como resultado da difusão da rede

inconsútil da televisão por toda a Terra” (5). No entanto, Wolfe teve

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164

argúcia suficiente para perceber que havia uma visão espiritual de futuro

por trás das suas predições. A nova era anunciada – na qual todos

estariam, segundo o próprio McLuhan, “irrevogavelmente envolvidos uns

com os outros e seriam responsáveis uns pelos outros” – era algo mais

sublime do que uma simples utopia secular. Segundo McLuhan, “o

conceito cristão de corpo místico, de todos os homens como membros do

corpo de Cristo – isto se torna tecnologicamente um fato sob as condições

eletrônicas” (6).

Wolfe identifica aí a influência decisiva de Teilhard de Chardin sobre

McLuhan. Embora tenha falecido em 1955, antes mesmo da difusão da

televisão por todo mundo e quando os computadores ainda eram

paquidermes enjaulados em grandes centros de pesquisas e mega-

empresas, Chardin (1955) percebeu que a tecnologia estava criando um

“sistema nervoso para a humanidade, uma membrana única, organizada,

inteiriça sobre a Terra”, uma “estupenda máquina pensante” (7). Teilhard

de Chardin escreveu que “a era da civilização terminou e a da civilização

unificada está começando” (8) Essa membrana inteiriça (que Chardin

chamava de noosfera) – conclui Tom Wolfe – era, naturalmente, a ‘rede

inconsútil’ de McLuhan. E essa ‘civilização unificada’ era a sua ‘aldeia

global’.

Interessantíssima a sacada da membrana envolvendo a Terra (mais pelo

paralelo com uma membrana). Recentemente Don Tapscott (2006)

encarou a Internet como uma pele que cobre o planeta (9). Mas há um

problema com a idéia de que essa membrana seria “inteiriça”. Sim, todo

problema foi a idéia de alguma coisa “unificada” – termo que Chardin não

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165

só afirmou como quis enfatizar. A unificação – se é que a palavra seria

adequada – não é unitária, porém fractal. Pois o mundo não virou, não

está virando, nem vai virar uma aldeia global, mas miríades de aldeias

globais.

A emergência da sociedade-rede vem acompanhada de um processo de

globalização do local e, simultaneamente, de localização do global. O

futuro mundo das redes distribuídas – se vier – não será, como previa

McLuhan, uma aldeia global, senão miríades de aldeias globais. A aldeia

global midiática (e “molar”), de Marshall McLuhan, sugere o mundo

virando um local. A sociedade-rede (“molecular”) – percebida por Levy,

Guéhenno, Castells e vários outros — sugere cada local virando o mundo,

fractalmente. Não o local separado, por certo, mas o local conectado que

tende a virar o mundo todo, desde que a conexão local-global passou a ser

uma possibilidade (10).

Em outras palavras: o mundo das redes distribuídas não vem como um

mundo único. Não é que haja uma rede (ou várias redes) cobrindo o

mundo. É que mundos são redes.

A idéia de um mundo único – ao contrário do que vaticinaram à farta os

prosélitos da Nova Era e continuam propagando militantes ambientalistas

e espiritualistas – é regressiva. Para que haja um mundo único em termos

sociais é necessário centralizar a rede (mantendo instâncias centralizadas

de difusão um-para-muitos). Para que haja um mundo único em termos

políticos também é necessário centralizar a rede (construindo

monstruosidades como um Estado planetário ou um governo mundial).

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Para que haja um mundo único em termos de consciência unificada

(noosféricos como queria Chardin), seria preciso admitir a existência de

algum ente sobre-humano, seja um deus ou uma consciência coletiva (que

fosse capaz de ser consciente de si mesma e, neste caso, não seria

humana).

Um superorganismo coletivo está nascendo, sim, mas trata-se de um

superorganismo humano – um simbionte social –, não de um organismo

super-humano. Sua inteligência se compõe por emergência, a partir da

interação e não pode ser instalada em qualquer mainframe. É uma

inteligência tipicamente humana e não extra-humana, de um deus, de um

alienígena, de uma máquina ou da Matrix. Se esse superorganismo for

capaz de algo como uma consciência, também se tratará de uma

consciência humana composta por emergência e não de uma

superconsciência, de um olho que tudo vê e se vê ou sabe que está vendo.

Nem o velho deus hebraico (segundo a interpretação mais arguta do

esoterismo judaico) possuía tal consciência, de vez que foi levado a criar o

mundo para poder se ver no espelho da sua criação.

O modelo é autorregulacional. Assim como não há uma instância

centralizada de regulação da biosfera, assim também não pode haver uma

instância centralizada de regulação de uma sociosfera, até porque não

pode existir apenas uma sociosfera. As conexões P2P (quando o “P”

significa “pessoa”) que compõem as sociosferas não centralizam; pelo

contrário, distribuem.

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167

Os visionários do ciberespaço, herdeiros do sonho mcluhiano da aldeia

global (segundo Tom Wolfe), acreditando que a Força estava com eles,

usaram-na para construir seus mainframes: seus programas e produtos

proprietários, suas caixas-pretas para trancar – esconder dos outros em

vez de compartilhar – os algoritmos que inventavam, seus bunkers

organizativos e suas fortunas pessoais.

Todavia, há uma diferença entre o que fizeram Vinton Cerf e Robert Kahn

(1975) com o Protocolo TCP/IP, Tim Berners-Lee e Robert Cailliau (1990)

com a World Wide Web, Linus Torvalds (1991) e a multidão com o Linux e

Rob McColl (1995) e a multidão com o Apache, e o que fizeram Bill Gates e

Paul Allen com a Microsoft (1975) e o Windows (1985), Steve Jobs e Steve

Wozniak com a Apple (1976) e o Mac OS (1984), Larry Page e Sergey Brin

(e Eric Shmidt) (1998) com o Google, Mark Zuckerberg e Dustin Moskovitz

(2004) com o Facebook e Evan Willians e Biz Stone (e Jack Dorsey) (2006)

com o Twitter. Estamos verificando agora em que medida eles estavam no

contra-fluzz ou com-fluzz, o curso que não pode ser aprisionado por

qualquer mainframe.

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168

PPeennssaarr ee aaggiirr ggllooccaallmmeennttee

Não pode haver um pensar global: seriam pensares, e eles seriam tantos

quantos os locais onde foram pensados

THINK GLOBAL, ACT GLOBAL. A frase “pensar globalmente, agir

localmente” já foi atribuída ou reivindicada – de 1915 a 1989 – por mais

de dez pessoas, desde a urbanista Patrick Geddes, passando pelo

microbiologista René Dubos, pelo teólogo Jacques Ellul e pelo

futurologista Buckminster Fuller, até chegar a Harlan Cleveland.

Tanta disputa pela fórmula ou tanta vontade de atribuir ou reivindicar a

sua paternidade, revela, é óbvio, uma concordância generalizada com a

síntese que ela pretende representar. Mas revela também uma

compreensão pouco-fluzz do mundo. Não há uma esfera global que, uma

vez percebida por inteiro ou entendida em sua totalidade, forneça

elementos para orientar a ação local.

Ninguém percebe ou entende alguma coisa fora de um local e se este local

puder se conectar a outros locais, ele então já é global (um local que foi

globalizado). Na verdade, global é uma abstração para indicar a

possibilidade de conexão com outros locais, não uma instância autônoma

concreta. Se estivermos usando a expressão global para falar da Terra,

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169

então estamos falando de um local (o planeta: um global que só existirá

concretamente se for localizado).

Do ponto de vista da rede social, local é um cluster, não uma porção do

planeta físico. Desse ponto de vista, o local não está dado de antemão,

mas é constituído pela interação dos que o reconhecem como um local.

Um local em interação com outros locais é uma realidade glocal, que se

constitui quando a globalização do local encontra a localização do global.

Essa é apenas outra maneira de falar da conexão local-global, ou seja, da

interação entre diversos locais.

Os muitos mundos interagentes são realidades glocais. Se estão brotando

inumeráveis interworlds, então se trata de pensar e agir glocalmente, não

de pensar globalmente e agir localmente (ou vice-versa). Em suma, não

pode haver um pensar global: seriam pensares, e eles seriam tantos

quantos os locais onde foram pensados. Se for, entretanto, resultado da

interação com os outros locais, todo pensar será glocal e toda ação

também será glocal.

Não, não é a mesma coisa. Não é um jogo de palavras. Não pode haver um

pensar global – nem no sentido da percepção de uma esfera inteiriça ou

unificada (como queria Teilhard de Chardin) ou da percepção da aldeia

global (como queria Marshall McLuhan), nem mesmo no sentido de uma

percepção totalizante ou holística – porque isso pressupõe uma apreensão

por cima ou por fora da interação. A aldeia global de McLuhan será local,

está claro, mas nunca um único e mesmo local (pois local já pressupõe

muitos locais, cada qual – aí sim – único; do contrário desconstitui-se o

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170

próprio conceito de local). Quem a perceber estará expressando a

percepção do emaranhado de conexões no qual está envolvido. Como os

emaranhados são diversos, cada percepção será também diversa.

Teremos tantas aldeias globais quanto os mundos a partir dos quais elas

são vistas como resultado de configurações particulares de interação. Ou

seja, teremos miríades de aldeias globais.

Não é a toa que a visão de McLuhan beire o espiritual (como percebeu

indiretamente Tom Wolfe) ou esteja na fronteira entre ciência e religião,

como a visão de Chardin. A rigor ela pressupõe um ser capaz de exercer a

supervisão de todas as interações, alguém, portanto, não-humano; ou

algo como uma consciência coletiva que conseguisse apreender a

totalidade, uma superconsciência ou uma consciência do que há de

comum a todas as consciências. Mas se existisse um deus ex-machina

quem teria acesso a ele: os sacerdotes? E se existisse uma consciência

coletiva com características de uma Unimatrix One, quem conseguiria vê-

la e receber seus “comunicados”: os borgs?

Há aqui uma confusão de conceitos, um deslizamento epistemológico para

o qual contribuiu o ambientalismo – essa espécie de religião laica de

nossos dias – ao apelar para ações locais que teriam o condão de salvar o

planeta (supostamente ‘o’ global). Como se existissem diretivas globais a

ser materializadas por diversas implementações locais. Mas quem emitiria

tais diretivas, já que ninguém vive no global? Os representantes dos

locais? Ora, mas neste caso sua percepção ou seu entendimento só

poderiam ter surgido nos diversos locais em que eles vivem e convivem e,

portanto, seriam locais (não globais). Além disso, como e por quem seriam

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171

escolhidos tais representantes? Nunca surgiram respostas aceitáveis para

essas perguntas.

Por outro lado, o que seria o planeta? A geosfera e a biosfera? E as

socioesferas? A pergunta sobre as socioesferas (no plural) é relevante,

pois a combinação de expressões locais de vida e convivência social – por

mais numerosas que fossem – não poderia gerar nem ‘o’, nem ‘um’,

global. No limite teríamos, no início da segunda década deste século, sete

bilhões de expressões locais, que poderiam se combinar de trilhões de

maneiras diferentes; na verdade tais combinações seriam, por assim dizer,

praticamente inumeráveis.

Sim, mundos são redes. Senão o que seriam? A população do planeta?

Mas população é um dado estatístico, um número. A soma dos indivíduos

da espécie biológica homo não significa nada em termos humanos. E não

se pode somar pessoas.

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AApprreennddeerr aa ff lluuiirr ccoomm oo ccuurrssoo

A idéia de salvar alguma coisa, arquivá-la (com quem estoca recursos)

para prorrogar a sua durabilidade, é uma idéia contra-fluzz

O AMBIENTALISMO – ainda preso às subculturas do platonismo que

pontificaram no século 20 – difundiu uma idéia de sustentabilidade

segundo a qual o uso dos recursos naturais deve suprir as necessidades da

geração presente sem afetar a possibilidade das gerações futuras de suprir

as suas.

O crédito por tal definição – que apareceu no Relatório Brundtland (1987)

– ainda é muito disputado, se bem que sua autoria seja geralmente

atribuída ao ecologista Lester Brown. O significativo é que ela foi aceita

como um consenso universal e foi tomada, axiomaticamente, como uma

verdade evidente por si mesma, passando a idéia – pouco-fluzz - de que a

sustentabilidade é uma espécie de poupança: tratar-se-ia, para efeitos

práticos, de resguardar recursos para as futuras gerações.

O ambientalismo reduziu assim a sustentabilidade à sua dimensão

ambiental, o que – até certo ponto – é explicável: foi observando os

sistemas vivos (organismos, partes de organismos e ecossistemas) que

percebemos um padrão de autorregulação e adaptação às mudanças, uma

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capacidade desses sistemas de mudar de acordo com a mudança das

circunstâncias conservando, porém, a sua organização interna.

Mas em vez de se concentrar no padrão e tentar descobrir como

reinventá-lo em nossas atividades humanas e organizações sociais, o

ambientalismo imaginou que tudo se arranjaria a partir da compreensão

do funcionamento dos ecossistemas. Não seria então o aprendizado

coletivo, resultante da experimentação de novas formas de organização e

convivência com as diferenças humanas, como resposta aos desafios de

conservar a adaptação a um ambiente que muda continuamente – ou

seja: o aprender a fluir com o curso –, que tornaria nossas sociedades mais

sustentáveis e sim uma consciência que surgiria pelo conhecimento da

natureza e se imporia como novo padrão ético universal. Eis um novo

platonismo que, como qualquer platonismo, despreza a política, ou seja, a

interação entre os humanos ou as redes sociais.

No entanto, a mais forte evidência que temos sobre a sustentabilidade –

proveniente, aliás, da observação sistemática dos sistemas vivos – é a de

que tudo que é sustentável tem o padrão de rede (11). Ou seja, a de que só

sistemas dinâmicos complexos que adquiriram características adaptativas

– apresentando a estrutura de rede distribuída – podem ser sustentáveis.

Se foi observando os ecossistemas que logramos captar as características

de um sistema sustentável, isso não deveria ter levado a uma visão

reducionista da questão, que disseminou uma crença segundo a qual o

que está em risco é apenas a vida como realidade biológica e tentando

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dirigir todas as nossas iniciativas de sustentabilidade para, supostamente,

“salvar o planeta”.

Sobre isso, a pergunta fundamental foi feita recentemente por Humberto

Maturana (2010) e seus colaboradores: o que queremos mesmo sustentar

(do latim sustentare: defender, favorecer, apoiar, conservar, cuidar) (12)?

A vida (em termos biológicos) é de suprema importância, é a única

realidade realmente sustentável que conhecemos, mas ela já vem se

arranjando há uns quatro bilhões de anos sem a nossa, digamos,

inestimável ajuda. Seria preciso ver então o que mais queremos sustentar,

de preferência aquilo que de fato depende de nós.

Ocorre que, por meio do que chamamos de social, estamos construindo

mundos humanos, que têm como base o mundo natural, mas que não são

consequências do mundo natural. A tentativa humana de humanizar o

mundo ou, para usar uma expressão poética, de humanizar a “alma do

mundo” por meio do social, é uma espécie de “segunda criação”. Para

quem pensa assim, a vida (o simbionte natural) é um valor principal, mas

não o único: certos padrões de convivência social, além da vida (biológica)

― como a cooperação ampliada socialmente ou a vida em comunidade, as

redes voluntárias de interação em prol da invenção de futuros comuns ou

compartilhados e a democracia na base da sociedade e no cotidiano das

pessoas ― também constituem valores inegociáveis, quer dizer, valores

que não podem ser trocados pelo primeiro. De nada adiantaria, desse

ponto de vista, trocar a livre convivência pela sobrevivência sob um

império milenar de “seres superiores” (como um IV Reich, por exemplo).

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175

Surpreendentemente, aquilo que devemos preservar é, justamente, o que

pode nos preservar como sociedade tipicamente humana. Cooperação,

voluntariado, redes e democracia (em suma, tudo o que produz, relaciona-

se ou constitui o que foi chamado de capital social) são os elementos da

nova criação humana ― e humanizante ― do mundo (o simbionte social),

que lograram se configurar como padrões de convivência social e que vale

realmente a pena preservar. E são esses os elementos que podem garantir

a sustentabilidade das sociedades humanas e das organizações que as

compõem (13).

Eis a razão pela qual a sustentabilidade das sociedades humanas não pode

ser alcançada apenas com a adoção de princípios ecológicos (como

querem os defensores ambientalistas ou ecologistas da sustentabilidade,

ainda afeitos a uma visão pré-fluzz de que existe algo como uma

consciência capaz de mudar comportamentos), porque, no caso das

sociedades, trata-se de outros mundos (humano-sociais) que têm como

base o mundo natural, mas que não são consequências dele.

A idéia de salvar alguma coisa, arquivá-la (como quem estoca recursos)

para prorrogar sua durabilidade (outra confusão ao definir

sustentabilidade que foi muito comum no velho mundo fracamente

conectado) é uma idéia contra-fluzz. Sustentabilidade não é durar para

sempre. Nada dura para sempre. E a espécie humana também não durará.

Ao que tudo indica desaparecerá bem antes da biosfera (pelo menos a

biosfera deste planeta, a única que conhecemos por enquanto). Mas a

própria biosfera (da Terra e, se houver, de outros lugares do universo)

também desaparecerá. O sol deixará de ser uma estrela amarela em 5

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bilhões de anos (com 4 bilhões de anos a nossa biosfera já esgotou quase

a metade do seu tempo de vida). A Via Láctea está em rota de colisão com

a galáxia de Andrômeda, a 125 quilômetros por segundo e o desastre

ocorrerá nos próximos 10 bilhões de anos. Este universo, surgido no Big

Bang, será extinto no Big Crunch ou virará um cemitério gelado se sua

expansão não for revertida.

Enquanto isso, nem mesmo a vida, nem a convivência social,

permanecerão como são – ou desaparecerão prematuramente! Mas

poderão ser sustentáveis na medida em que aprenderem a fluir com o

curso, quer dizer, a mudar em congruência dinâmica e recíproca com a

mudança das circunstâncias. Sim, sustentável não é o que permanece

como é (ou está), mas o que muda continuamente para continuar sendo

(o que pode vir-a-ser).

Se um ente ou processo durar (como é), certamente não será sustentável.

Se não aceitar a morte, se buscar uma maneira de se esquivar do fluxo

transformador da vida, nada poderá ser sustentável. Se não aceitar o fluxo

transformador da convivência social nenhum dos mundos que cocriamos

poderá ser sustentável.

Tais mundos sociais que constituímos quando vivemos a nossa

convivência não serão sustentáveis na medida em que quisermos

permanecer no “lado de fora” do abismo. Esse horror ao caos que

caracteriza todas as organizações hierárquicas nada mais é do que o medo

de perder uma ordem pregressa ao se abandonar à livre-interação.

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NNoottaass ee rreeffeerrêênncciiaass

(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início

de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor

observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,

argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (i-

based e não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em

participação). Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na

ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de

Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe Fluzz: vida

humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do

terceiro milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o programa

malsucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito complexo,

sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem: “Tudo que

flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não pode ser

aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da

rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se

expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado

de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não

há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É

de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos...

Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são

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muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,

dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que

se constelam e se desfazem, intermitentemente”.

(**) Este texto foi originalmente escrito em 2010 e publicado em 2011 no

livro Fluzz: vida humana e convivência social nos novos mundos altamente

conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de Redes, 2011.

(1) MCLUHAN, Marshall (1979). “O homem e os meios de comunicação” in

McLUHAN, Stephanie & STAINES, David (2003). McLuhan por McLuhan

(Understandig me). Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

(2) Cf. UGARTE, David (2010). Los futuros que vienen. Madrid: Grupo

Cooperativo de las Índias, 2010. “Descomposición es descomposición

también, y sobre todo, de los sujetos con los que se componía la narración

histórica: las clases, las naciones, los grupos de interés, el marco de

mercado… con ellos muere ese futuro que se pretendía el futuro y que es

precisamente aquel por el que los universalistas se afanan. Ese futuro

universal es hoy un enfermo crónico en fase terminal. Nacido en el siglo

XVIII, tuvo su crisis adolescente con el Romanticismo, su madurez con el

progresismo decimonónico y su primera crisis grave con los genocidios

cometidos por el estado alemán durante la Segunda Guerra Mundial”.

(3) RUSSO, Renato (1986). “Índios” in Dois: Emi, 1986.

(4) WOLFE, Tom (2003). “Introdução” in McLUHAN, Stephanie & STAINES,

David (2003): Op. cit.

(5) MCLUHAN, Marshall apud WOLFE: Ed. cit.

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(6) Idem.

(7) CHARDIN, Teilhard (1955). O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix,

1989.

(8) CHARDIN: Op. cit.

(9) TAPSCOTT, Don e WILLIAMS, Anthony (2006). Wikinomics: como a

colaboração pode mudar o seu negócio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

2007.

(10) FRANCO, Augusto (2003). A revolução do local: globalização,

glocalização, localização. Brasília/São Paulo: AED/Cultura, 2003.

(11) Cf. FRANCO, Augusto (2008). Tudo que é sustentável tem o padrão de

rede: sustentabilidade empresarial e responsabilidade corporativa no

século 21. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008.

(12) Comunicação pessoal ao autor feita por alunos do curso Biologia-

Cultural ministrado pela Escola Matriztica de Santiago em 2010.

(13) FRANCO, Augusto (2008). Tudo que é sustentável tem o padrão de

rede: ed. cit.

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AA ll iivvrree aapprreennddiizzaaggeemm nnaa ssoocciieeddaaddee eemm rreeddee

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AA ll iivvrree aapprreennddiizzaaggeemm nnaa ssoocciieeddaaddee eemm rreeddee

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AA ll iivvrree aapprreennddiizzaaggeemm nnaa ssoocciieeddaaddee eemm rreeddee

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NÃO-ESCOLAS A livre aprendizagem na sociedade em rede

Augusto de Franco (em interação com Nilton Lessa), 2012.

Versão Beta, sem revisão.

A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada

com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.

Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta

obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser

reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por

quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –

na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e

distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser

omitida a autoria da versão original.

FRANCO, Augusto de

NÃO-ESCOLAS / Augusto de Franco (em interação com Nilton Lessa) – São

Paulo: 2012.

48 p. A4 – (Escola de Redes; 11)

1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.

Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e

à criação e transferência de tecnologias de netweaving.

http://escoladeredes.net

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SSuummáárriioo

Introdução | 9

A emergência da livre-aprendizagem | 11

Aprendizagem, não ensino | 15

Autodidatismo, não heterodidatismo | 19

Alterdidatismo, não heterodidatismo | 25

Não-escolas: a escola é a rede | 31

Matar a escola = matar o Buda | 34

Notas e referências | 44

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IInnttrroodduuççããoo

FASCINANTE! Escolas, igrejas, partidos, Estados, empresas hierárquicas:

construímos tais instituições – que continuam reproduzindo o velho

mundo; sim, são elas que fazem isso – como artifícios para escapar da

interação, para ficar do “lado de fora” do abismo, para nos proteger do

caos...

As escolas (e o ensino) tentam nos proteger da experiência da livre

aprendizagem. As igrejas (e as religiões) tentam nos proteger da

experiência de deus. Os partidos (e as corporações) tentam nos proteger

das experiências da política (pública) feitas pelas pessoas no seu cotidiano.

Os Estados tentam nos proteger das experiências glocais (de localismo

cosmopolita). E as empresas (hierárquicas) tentam nos proteger da

experiência de empreender.

Por isso que escolas são igrejas, igrejas são partidos, partidos são

corporações que geram Estados, que também são corporações, que viram

religiões, que reproduzem igrejas, que se comportam como partidos...

Porque, no fundo, é tudo a mesma coisa: artifícios para proteger as

pessoas da experiência de fluzz (*). (Não é a toa que todas essas

instituições hierárquicas exigem “monogamia” dos que querem manter

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capturados, como se dissessem: “- Você é meu! Nada de transar com

estranhos”).

Uma vez desconstituídos tais arranjos feitos para conter, contorcer e

aprisionar fluxos, disciplinando a interação, uma vez corrompidos os

scripts dos programas verticalizadores que rodam nessas máquinas (e que,

na verdade, as constituem), o velho mundo único se esboroa.

Isso está acontecendo. Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não-

Estados-nações e não-empresas-hierárquicas começam a florescer. Com

tal florescimento, a estrutura e a dinâmica das sociosferas estão sendo

radicalmente alteradas neste momento, mas não por formidáveis

revoluções épicas e grandes reformas conduzidas por extraordinários

líderes heroicos, senão por pequenas experiências, singelas, líricas, vividas

por pessoas comuns! Aquelas mesmas experiências de interação das quais

fomos poupados. É como se tudo tivesse sido feito para que não

experimentássemos padrões de interação diferentes dos que deveriam ser

replicados. Mas nós começamos a experimentar. E “aqui estamos – como

escreveu Hakim Bey (1984) em Caos – engatinhando pelas frestas entre as

paredes da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monólitos

paranoicos”.

Neste texto vamos examinar o ensino e a escola para contemplar as

possibilidades da livre-aprendizagem na sociedade-em-rede (**).

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AA eemmeerrggêênncciiaa ddaa ll iivvrree--aapprreennddiizzaaggeemm

As instituições e os processos educativos foram pensados para um tipo

de sociedade que está deixando de existir

Não é novidade para ninguém que, no mundo atual, qualquer pessoa que

saiba ler e escrever e tenha acesso à Internet pode aprender muito mais

do que podia há dez anos. Sim, isso é fato. Uma criança com noções

rudimentares de um ou dois idiomas falados por grandes contingentes

populacionais (como o inglês ou o espanhol, por exemplo), já é capaz de

aprender muito mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o

dobro da sua idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma

instituição de ensino altamente conceituada. Diz-se agora que, se souber

ler (e interpretar o que leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de

matemática na solução de problemas cotidianos e... banda larga, qualquer

um vai sozinho.

A novidade é que isso não depende, nem apenas, nem principalmente, da

tecnologia stricto sensu e sim de novos padrões de organização social que

estão se configurando na contemporaneidade. Uma sociedade em rede

está emergindo e, progressivamente, tornando obsoletos as instituições e

os processos hierárquicos da velha sociedade de massa, inclusive as

instituições e processos educacionais. Novas tecnologias de informação e

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comunicação – que permitem a interação horizontal ou entre pares

(pessoa-com-pessoa) em tempo real – estão acelerando esse processo.

Mas novas tecnologias sociais, tão ou mais importantes do que essas

(chamadas TICs), também estão contribuindo para mudar radicalmente as

condições de vida e convivência social neste dealbar do século 21.

Tudo isso vai mudar, em parte já está mudando, a maneira como

executamos as nossas atividades empresariais, governamentais e sociais.

Vai mudar a maneira como nos organizamos para produzir e comercializar,

governar e legislar e conviver com as outras pessoas na sociedade. E –

como não poderia deixar de ser – isso também está mudando a forma

como aprendemos.

O problema é que as instituições e os processos educativos que foram

pensados para um tipo de sociedade que está deixando de existir (à

medida que emerge uma nova sociedade cuja morfologia e dinâmica já

são, em grande parte, as de uma rede distribuída) ainda remanescem e

continuam aplicando seus velhos métodos. Em que pese o papel

fundamental que cumpriram nos últimos séculos, essas instituições e

processos já começam hoje a ser obstáculos à criatividade e à inovação.

O que tivemos, pelo menos nos dois últimos séculos, foi, em grande parte,

uma educação massiva e repetitiva, voltada para enquadrar as pessoas em

um tipo insustentável de sociedade (instalando nas suas mentes

programas maliciosos, elaborados para infundir noções de ordem,

hierarquia, disciplina e obediência) e para adestrar a força de trabalho,

para que os indivíduos pudessem reproduzir habilidades requeridas pelos

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velhos processos produtivos e administrativos e executar rotinas

determinadas.

Agora estamos, porém, vivendo a transição para outra época, para uma

nova era da informação e do conhecimento, na qual as capacidades

exigidas são outras também. Nesta nova sociedade do conhecimento, o

que se requer é que as pessoas sejam capazes de criar e de inovar,

mudando continuamente os processos de produção e de gestão para

descobrir maneiras melhores de fazer e organizar as coisas.

E isso elas só conseguirão na medida em que tiverem autonomia para

aprender o que quiserem, da forma como quiserem e quando quiserem e

para se relacionar produtivamente com outras pessoas de sua escolha,

gerando cada vez mais conhecimento – o principal bem, conquanto

intangível, deste novo mundo que já está se configurando.

Faz-se necessário, pois, libertar o processo educativo das amarras que

tentam normatizá-lo de cima para baixo, em instituições organizadas

igualmente de cima para baixo, hierarquizadas, burocratizadas e fechadas,

desenhadas para guardar em caixinhas o suposto conhecimento a ser

transferido, de uma maneira pré- determinada, para indivíduos que

preencherem determinadas condições (e, não raro, à revelia do que eles

próprios desejariam de fato aprender). Ora, já se viu que o conhecimento

é uma relação social e não um objeto que possa ser estocado,

transportado, transferido ou transfundido de um emissor para um

receptor. O processo de geração e compartilhamento do conhecimento

ocorre na sociedade e torna-se cada vez mais difícil, custoso e

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improdutivo quando tentamos parti-lo em pedaços para arquivá-lo nos

escaninhos de uma organização separada da sociedade por paredes

opacas e impermeáveis.

O que de tão importante se descobriu nos últimos anos é que, em última

instância, quem é educadora é a sociedade, a cidade, a localidade onde as

pessoas vivem e se relacionam. Na verdade, foi uma redescoberta

democrática: Péricles, no século 5 a. E. C., já havia percebido este papel

educador da polis enquanto comunidade política, quando declarou –

segundo Tucídides – na oração fúnebre proferida no final do primeiro ano

da guerra do Peloponeso, “que a cidade inteira é a escola da Grécia e creio

que qualquer ateniense pode formar uma personalidade completa nos

mais distintos aspectos,dotada da maior flexibilidade e, ao mesmo tempo,

de encanto pessoal”.

Portanto, sistemas educativos devem ser, sempre, sistemas sócio-

educativos configurados em localidades, em sócio-territorialidades, quer

dizer, em redes sociais que se conformam como comunidades

compartilhando agendas de aprendizagem.

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AApprreennddiizzaaggeemm,, nnããoo eennssiinnoo

As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre

aprendizagem

- PSIU! CALE A BOCA. Comporte-se! Pare de conversar. Pare de perguntar.

Em vez de conversação, silêncio. A quem é inferior (ignorante) cabe

apenas ouvir o superior (aquele que sabe). Isto foi, é e sempre será escola:

um artifício para proteger os alunos da experiência de fluzz.

Sim, escolas não são comunidades de aprendizagem. São burocracias do

ensinamento. Não são redes distribuídas de pessoas voltadas à busca e ao

compartilhamento do conhecimento. São hierarquias sacerdotais cujo

principal objetivo é ordenar indivíduos capazes de reproduzir atitudes de

disciplina e obediência. Não são ambientes favoráveis à emergência de

dinâmicas interativas, mas à imposição de relações intransitivas.

Estruturas centralizadas, baseadas na separação de corpos: docente

(hierarquia-ensinante) x discente (massa-ensinada).

A arquitetura traduz o conceito. Na chamada educação formal, escolas são

construções que aprisionam crianças e jovens em salas fechadas,

obrigados a sentar enfileirados, como gado confinado ou frangos de

granja; pior: nas “salas de aula” ficam alguns – a maioria – olhando para a

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nuca dos outros. São campos de concentração e adestramento, onde o

aluno tem de saltar obstáculos, vencer as provas. São prisões temporárias

em que se tem de cumprir a pena, pagar a dívida. Não é por acaso que a

maior recompensa na escola é passar de ano. Ano após ano. Até sair. -

Ufa! Livre afinal.

Por que construímos tal aberração?

Fomos levados a acreditar que o ensino era o antecedente da

aprendizagem. Em termos lógicos formais: ensino => aprendizagem;

donde, formalmente: não-aprendizagem => não-ensino. Mas ao que tudo

indica o ensino surgiu – como instituição – de certo modo, contra a

aprendizagem. E não-ensino, dependendo das circunstâncias, pode até

aumentar as possibilidades de aprendizagem. O que é sempre um perigo

para alguma estrutura de poder.

Onde começou o ensino? Qual é a origem do professor? Ora, ensino é

ensinamento. Mas ensinamento é, originalmente, (reprodução de)

estamento (ou da configuração recorrente de um cluster enquistado na

rede social). Alguém tem alguma coisa que precisa transmitir a outros.

Precisa mesmo? Por quê? Alguém conduz (um conteúdo determinado,

funcional para a reprodução de uma estrutura e suas funcionalidades). E

alguém recebe tal conteúdo (tornando-se apto a reproduzir tal estrutura e

tais funcionalidades). Eis a tradição!

Os primeiros professores – parece evidente – foram os sacerdotes. A

primeira escola já era uma burocracia sacerdotal do conhecimento (uma

estrutura hierárquica voltada ao ensinamento). Isso significa que só há

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ensinamento se houver hierarquia (uma burocracia do conhecimento).

Sim, todo corpus sacerdotal é docente. A tradição é tão forte que há até

bem pouco a doutrina oficial católica romana (e ela não é a única) ainda

dividia a igreja em docente (ensinante: os hierarcas) e discente (ensinada:

os leigos). E as escolas, que também se estruturaram, em certo sentido,

como igrejas (mesmo as laicas), consolidaram sua estrutura com base na

separação de corpos entre docentes e discentes.

O que se ensina é um ensinamento. Quando você ensina, há sempre um

ensinamento. Mas quando você aprende há apenas um aprendizado, não

há um “aprendizamento”, quer dizer, um conteúdo pré-determinado do

aprendizado. O que se aprende é o quê? Ah! Não se sabe. Pode ser

qualquer coisa. Não está predeterminado.

Eis a diferença! Eis o ponto! A aprendizagem é sempre uma invenção. A

ensinagem é uma reprodução. Mas como escreveu o poeta Manoel de

Barros (1986) no Livro sobre Nada: “Tudo que não invento é falso” (1).

O professor como transmissor de ensinamento e a escola como aparato

separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram, inegavelmente,

como instrumentos de reprodução de programas centralizadores

(verticalizadores) que foram instalados para verticalizar (centralizar) a

rede-mãe.

As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre

aprendizagem. Toda verdadeira aprendizagem é livre. E toda livre

aprendizagem é desensino. Aprender sem ser ensinado é subversivo. É um

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perigo para a reprodução das formas institucionalizadas de gestão das

hierarquias de todo tipo.

Por isso o reconhecimento do conhecimento é, até hoje, um

reconhecimento não do conhecimento-aprendido, mas do conhecimento-

ensinado, dos graus alcançados por alguém no processo de ordenação a

que foi submetido.

Mas como tuitou Pierre Lévy (2010), as universidades não têm mais o

monopólio da distribuição do conhecimento; restou-lhes tentar reter em

suas mãos o monopólio da distribuição do diploma.

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AAuuttooddiiddaattiissmmoo,, nnããoo hheetteerrooddiiddaattiissmmoo

Eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito

NA TRANSIÇÃO DA SOCIEDADE HIERÁRQUICA para a sociedade em rede

estamos condenados a nos tornar buscadores cada vez mais autônomos. É

assim que transitaremos do heterodidatismo para o autodidatismo:

quando pudermos dizer: eu busco o conhecimento que me interessa do

meu próprio jeito.

Aprender a aprender é a condição fundamental para a livre aprendizagem

humana em uma sociedade inteligente. É ensejar oportunidades aos

educandos de se tornarem educadores de si mesmos (aprendendo a andar

com as próprias pernas ao se libertarem das muletas do heterodidatismo).

O educando-buscador será um educador não-ensinante. Porque será um

aprendente (2).

Nos Highly Connected Worlds, todos seremos, em alguma medida,

autodidatas. Um autodidata é alguém que aprendeu a aprender. Uma

criança, ou mesmo uma pessoa adulta ou idosa, navegando, lendo e

publicando na web, é, fundamentalmente, um autodidata.

Todo aprendizado depende da capacidade de estabelecer conexões e

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reconhecer padrões. Cada vez mais será cada vez menos necessário que

alguém ensine isso. Quando as possibilidades de conexão aumentam,

também aumentam as possibilidades de reconhecer padrões (porque

aumenta a frequência com que, conhecendo uma diversidade cada vez

maior de padrões, nos deparamos com homologias entre eles); quer dizer

que, a partir de certo grau de conectividade, o heterodidatismo não será

necessário.

Nos dias de hoje, uma criança com acesso à Internet já é capaz de

aprender muito mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o

dobro da sua idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma

instituição de ensino altamente conceituada. Se souber ler (e interpretar o

que leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de lógica e matemática

na solução de problemas cotidianos e... banda larga, qualquer um vai

sozinho. Ora, isso é terrível para os que querem adestrar as pessoas com o

propósito de fazê-las executar certos papéis predeterminados. Isso é um

horror para os que querem formar o caráter dos outros e inculcar seus

valores nos filhos alheios.

Colecionadores de diplomas e títulos acadêmicos não terão muitas

vantagens em uma sociedade inteligente. Suas vantagens proveem da

idéia de que a sociedade é burra (e eles, portanto – que compõem a

burocracia sacerdotal do conhecimento – são os inteligentes). Para se

destacar dos demais – quando o desejável seria que se aproximassem

deles – os “sábios” precisam que a sociedade continue burra.

Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio quem

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organiza o conhecimento é a busca. Mas os caras ainda insistem em

querer organizar o conhecimento para você (isto é o hetero-didatismo).

Toda organização do conhecimento para os outros corresponde a

necessidades de alguma instituição hierárquica e está sintonizada com

seus mecanismos de comando-e-controle. Toda organização do

conhecimento de cima para baixo procura controlar e direcionar o acesso

à informação por algum meio. Os organizadores do conhecimento para os

outros ainda entendem conhecimento como “informação interpretada”.

Interpretada, é claro, do ponto de vista de seus possíveis impactos sobre a

estrutura e a dinâmica das organizações hierárquicas de que fazem parte.

Pretendem, assim, induzir comportamentos adequados à reprodução da

estrutura e da dinâmica dessas organizações hierárquicas. Por meio da

urdidura de sistemas de gestão do conhecimento – desde os velhos

currículos escolares aos modernos knowledge management systems, por

exemplo – querem codificar, disseminar e direcionar a apropriação de

conhecimentos para formar agentes de manutenção e reprodução de

determinado padrão organizacional.

Mas já vivemos em um momento em que não se pode mais trancar o

conhecimento – esse bem intangível que, se for aprisionado (estocado,

protegido, separado), decresce e perde valor e, inversamente, se for

compartilhado (submetido à polinização ou à fertilização cruzada com

outros conhecimentos) cresce, gera novos conhecimentos e aumenta de

valor (e é isto, precisamente, o que se chama de inovação). E estamos nos

aproximando velozmente de uma época em que será cada vez menos

necessária uma infraestrutura hard instalada para produzir conhecimento

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(e inclusive outros produtos tangíveis, como estão mostrando as

experiências nascentes de peer production ou crowdsourcing).

Novos ambientes interativos surgidos com a Internet já estão mostrando

também a improdutividade (ou a inutilidade mesmo) de classificar o

conhecimento a partir de esquema classificatório construído de antemão.

Por exemplo, nos primeiros tempos do Gmail havia a recomendação: não

classifique, busque! Hoje continua lá, literalmente: “O foco do Google é a

pesquisa, e o Gmail não é exceção: você não precisa perder tempo

classificando seu e-mail, apenas procure uma mensagem quando precisar

e a encontraremos para você”.

É claro que as buscas atuais (na Internet, por exemplo) ainda são feitas em

mecanismos fechados que não permitem que o usuário redefina ou

modifique os algoritmos de acordo com suas percepções e necessidades.

Mas a tendência é que a busca seja cada vez mais programável e cada vez

mais semântica (3).

A busca semântica substituirá boa parte dos esforços feitos até agora para

“organizar” o conhecimento. Mas é o perfil da busca – bottom up – que

vai dizer qual o conhecimento que é relevante e não a decisão de um

centro de comando-e-controle que queira dizer às pessoas – top down – o

que elas devem conhecer.

Todos esses esforços por manter padrões verticais de um tipo de

sociedade que já está fenecendo vão ser implacavelmente punidos pelas

estruturas e pelas dinâmicas horizontais emergentes das novas sociosferas

que estão florescendo. Nesses mundos altamente conectados toda a

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gestão de organizações (inclusive a gestão do conhecimento) é regulada

por meio de outros processos em rede.

O autodidata é um buscador, mas quem busca é a pessoa. A pessoa é o

indivíduo conectado e que, portanto, não se constitui apenas como um

íon social vagando em um meio gelatinoso e exibindo orgulhosamente

suas características distintivas e sim também como um entroncamento de

fluxos, uma identidade que se forma a partir da interação com outros

indivíduos. A pessoa como continuum de experiências intransferíveis e, ao

mesmo tempo, como série de relacionamentos, aprende por estar imersa

(conectada) em um ambiente educativo entendido como ambiente de

aprendizagem.

Headhunters inteligentes não estão mais se impressionando tanto com a

coleção de diplomas apresentados por um candidato a ocupar uma vaga

em uma instituição qualquer. Querem saber o que a pessoa está fazendo.

Querem saber o que ela pode ser a partir do que pretende (do seu projeto

de futuro) e não o que ela é como continuidade do que foi (da repetição

do seu passado). Está certo: como se diz, o passado “já era”. O novo posto

pretendido não será ocupado no passado e sim no futuro. Então o que é

necessário avaliar é a linha de atuação ou de pensamento que está sendo

seguida pelo candidato.

Em breve, as avaliações de aprendizagem serão feitas diretamente pelos

interessados em se associar ou em contratar (lato sensu) uma pessoa.

Redes de especialistas de uma área ou setor continuarão avaliando os

especialistas da sua área ou setor. Mas essa avaliação será cada vez

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horizontal. E, além disso, pessoas avaliarão outras pessoas a partir do

exame das suas expressões de vida e conhecimento, pois que tudo isso

estará disponível, será de domínio público e não ficará mais guardado por

uma corporação que tem autorização exclusiva para acessar e licença

oficial para interpretar tais dados.

Cada pessoa poderá ter, por exemplo, a sua própria wikipedia. Ao invés de

aceitar apenas as oblíquas interpretações doutas, passaremos a verificar

diretamente a wikipedia de cada um – o arquivo-vivo que contém as

definições dos termos habituais, os pontos de vista, as referências, os

trabalhos e as conclusões sobre os assuntos da sua esfera de

conhecimento e de atuação. Quem gostar do que viu, que contrate ou se

associe ao autor daquela wikipedia. Ponto final.

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AAlltteerrddiiddaattiissmmoo,, nnããoo hheetteerrooddiiddaattiissmmoo

“Eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos”

DE CERTO PONTO DE VISTA, nos Highly Connected Worlds qualquer um vai

sozinho, desde que tenha aprendido o fundamental. O fundamental, como

vimos, é aprender a aprender. O fundamental não pode estar baseado na

transferência de conteúdos temáticos secundários e sim na

disponibilização de ferramentas de auto-aprendizagem e de comum-

aprendizagem. Os que se metem a organizar processos educativos para os

outros deveriam começar perguntando o que é necessário para que uma

pessoa e uma comunidade possam fazer o seu próprio itinerário de

aprendizagem.

Do ponto de vista do aprendizado – do sujeito aprendente e não do objeto

ensinado –, três condições caracterizam a inteligência tipicamente

humana (quer dizer, sintonizada com o emocionar humano): estabelecer

conexões; reconhecer padrões; e linguajear e conversar (no sentido que

Humberto Maturana confere a essas noções) (4).

A partir daí estamos falando de humanos (e é necessário fazer essa

ressalva porquanto máquinas também podem aprender) e podemos então

listar as ferramentas de autoaprendizagem ou “alfabetizações” (em um

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sentido ampliado): a alfabetização propriamente dita, na língua natal (ler e

escrever e interpretar o que leu); e as outras “alfabetizações”, como, por

exemplo, em uma segunda língua da globalização (pelo menos ler, em

inglês ou espanhol); matemática (dominar as operações matemáticas

elementares e aplicar esses conhecimentos básicos na vida cotidiana);

lógica (aprender a argumentar e identificar erros lógicos em argumentos

simples); digital (navegar e publicar na Internet e operar as ferramentas

digitais de inserção, articulação e animação de redes).

Estes – ao que parece – são os requisitos e as ferramentas

contemporâneas da inclusão educacional. Quem dispõe deles pode

caminhar sozinho; ou seja, de posse de tais instrumentos, cada um, em

função de suas opções pessoais, pode traçar seus próprios itinerários de

formação e compartilhá-los com suas redes de aprendizagem. Esses são os

requisitos para o autodidatismo.

No entanto, de outro ponto de vista – o do alterdidatismo – a rigor,

ninguém pode continuar caminhando sozinho. Aprender a aprender está

intimamente relacionado a aprender a interagir em rede. Mesmo que a

escola básica se dedicasse precipuamente a isso, mesmo assim não se

poderia abrir mão da educação em casa (a primeira rede social na qual o

ser humano se conecta), nem da educação comunitária (a expansão dessa

rede, envolvendo os vizinhos, os amigos e conhecidos mais próximos).

O aprender a conviver (com o meio natural e com o meio social) talvez

requeira outras “alfabetizações”: por exemplo, a alfabetização em

sustentabilidade (incluindo alfabetização ecológica e alfabetização para o

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empreendedorismo e para o desenvolvimento humano e social

sustentável local ou comunitário); e a alfabetização democrática (em um

sentido deweyano do termo: para a vida comunitária e para as formas de

relacionamento que ensejam a regulação social emergente; i. e., as redes

sociais distribuídas). Mas essas “alfabetizações” não são temas

curriculares ou disciplinas. São drives capazes de gerar agendas

compartilhadas de aprendizagem.

Não é por acaso que a educação para a sustentabilidade, quer dizer, para

a vida (em um sentido ampliado, envolvendo os ecossistemas, inclusive o

ecossistema planetário) e para convivência social, não compareçam nos

currículos escolares. Elas não são propriamente objetos de ensino e sim de

aprendizagem-na-ação compartilhada. Ninguém é capaz de aprender

essas coisas apenas tomando aulas ou lendo textos. É necessário vivê-las,

experimentá-las, ou melhor, convivê-las (e é por isso que são drives

geradores de agendas compartilhadas de aprendizagem).

É compartilhando essas agendas de aprendizagem que o educador se

torna um educando (um aprendente da interação educadora). Nesse

aprender-fazendo esvai-se a distinção entre professor e aluno: todos

passam a ser agentes comunitários de educação.

Portanto, quando se diz (do ponto de vista do autodidatismo) que

qualquer um vai sozinho, e quando se diz (do ponto de vista do

alterdidatismo) que, a rigor, ninguém pode caminhar sozinho, está-se

dizendo a mesma coisa: que o heterodidatismo no qual se baseiam os

sistemas de ensino é uma muleta que deve ser abandonada.

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Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos

condenados a nos tornar polinizadores cada vez mais interdependentes. É

assim que transitaremos do heterodidatismo para o alterdidatismo:

quando pudermos dizer: eu guardo o meu conhecimento nos meus

amigos.

A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A

escola é a rede. Nela, todos seremos alterdidatas. Um alterdidata é

alguém que aprendeu a conviver com o meio natural e com o meio social

em que vive.

Aprender a conviver com o meio natural e com o meio social é ensejar

oportunidades aos educadores de se tornaram educandos da interação

comunitária na nova sociedade em rede (desaprendendo ensinagem ao se

libertarem das muletas do heterodidatismo). O educador-polinizador será

alguém que desaprendeu a ensinar. Porque será um aprendente.

Dominar a leitura e a escrita, saber calcular e resolver problemas, ter

condições de compreender e atuar em seu entorno social, ter habilidade

para analisar fatos e situações e ter capacidade de acessar informações e

de trabalhar em grupo, são geralmente apresentados como objetivos do

processo educacional básico. No entanto, para além, muito além, de tudo

isso, os novos ambientes educativos em uma sociedade-rede tendem a

valorizar outras competências ou habilidades, como a de identificar

homologias entre configurações recorrentes de interação que

caracterizam clusters (e, consequentemente, reconhecer potenciais

sinergias e aproveitar oportunidades de simbiose), saber não apenas

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acessar, mas produzir e disseminar informações e conseguir não somente

trabalhar em grupo, mas fazer amigos e viver e atuar em comunidade.

De certo modo, tudo o que parece realmente necessário para a

convivência ou a vida em rede, como a educação para a democracia, a

educação para o empreendedorismo e para o desenvolvimento ou a

sustentabilidade, não comparece nos currículos das escolas. Não pode ser

por acaso. Isso talvez corrobore a constatação de que a escola é uma das

instituições que mais resistem ao surgimento da sociedade- rede.

Por quê? Ora, porque embora se declarem instituições laicas, as escolas

são, no fundo, igrejas; ou seja, ordens hierárquicas (sacerdotais) que

decidem o que as pessoas devem (saber) reproduzir. Graus de

aprendizagem (na verdade, de ensino) são ordenações: medem a sua

capacidade de replicar uma determinada ordem. Não é por acaso que a

educação a distância encontrou fortíssima resistência na academia. Pelos

mesmos motivos, processos e programas educacionais extraescolares são

duramente combatidos pelas corporações de professores, que

argumentam – sem se darem conta de que, com isso, estão apenas

revelando seu caráter sacerdotal – que não se pode deixar a educação nas

mãos de leigos...

No entanto, neste momento estão sendo elaboradas e testadas

metodologias compatíveis com processos de inteligência coletiva (“learn

from your neighbours” - Steve Johnson; “I store my knowledge in my

friends” - Karen Stephenson) baseadas na idéia de cidade educadora

reconceitualizada como cidade-rede de comunidades que aprendem.

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210

Novas práticas estão surgindo a partir de experiências voltadas ao

estímulo ao autodidatismo, adaptadas às novas formas de interação

educativa extraescolares, como o homeschooling e, sobretudo,

communityschooling, porém na linha do unschooling. Novas teorias da

aprendizagem, como o conectivismo, estão tentando mostrar como as

redes sociais devem constituir o padrão de organização das novas

comunidades de aprendizagem capazes de disseminar e empregar

ferramentas de autoaprendizagem e de comum-aprendizagem (5).

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NNããoo--eessccoollaass:: aa eessccoollaa éé aa rreeddee

Nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente (em rede)

NOS HIGHLY CONNECTED WORLDS a educação não pode ser mais nada

disso que andaram falando nos últimos quatro séculos do mundo único.

Simplesmente porque não haverá ‘a’ educação.

O conceito de educação – ao contrário do que parece – é um conceito

totalizante e regressivo. Não é a toa que tenha surgido juntamente com o

conceito de sociedade. Não pode existir ‘a’ educação, assim como não

pode existir ‘a’ sociedade. Não há uma educação e sim uma diversidade de

processos de aprendizagem. Não há uma sociedade e sim uma diversidade

de sociosferas.

O consenso que se generalizou sobre ‘a’ educação é paralisante. A crença

de que a educação vai resolver todos os problemas está tão generalizada

que as pessoas sequer percebem que, se isso fosse verdade, países como

a Bulgária ou Cuba seriam considerados desenvolvidos.

Quando os processos de aprendizagem forem libertados – ou quando a

geração de sociosferas (uma espécie de “lei do ventre livre” social) for

libertada: no fundo é a mesma coisa! – a educação na sociedade

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212

terminará.

A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A

escola é a rede. Nela, todos seremos autodidatas e alterdidatas: quando

pudermos dizer: nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente

(em rede).

Um autodidata-alterdidata é alguém que aprendeu a aprender-

convivendo. Como buscadores e polinizadores, não seremos ensinados

nem ensinadores. Porque todos seremos aprendentes.

Sociosferas em que as redes são as escolas serão aquelas “sociedades

desescolarizadas”, como queria o visionário Ivan Illich (6). A sociedade

sem escola de Illich poderia ser renomeada como a sociedade-escola,

desde que ficasse claro que se trata da sociedade- rede; ou seja, estamos

falando das comunidades educadoras que se formam na sociedade-rede.

Nesse sentido, não são os aparatos educativos hierárquicos, enquistados

na sociedade, que educam basicamente: na medida em que a sociedade

de massa vai dando lugar à sociedade em rede, são as próprias sociosferas

(glocais) que educam, por meio das comunidades (clusters) que

necessariamente se formam em seu seio.

Comunidades educadoras são, antes de qualquer coisa, comunidades de

aprendizagem, quer dizer, comunidades-que-aprendem. Isso vale para

tudo, não apenas para as escolas como aparatos da educação formal.

Também virarão não-escolas os centros de pesquisa e investigação, as

sociedades filosóficas e os grupos criativos que usinam novas ideias e

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213

inauguram novas maneiras de pensar (a escola na sua acepção de think

tank ou escola de pensamento).

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214

MMaattaarr aa eessccoollaa == mmaattaarr oo BBuuddaa

Quando o mestre está preparado, o discípulo desaparece

É DIFÍCIL ENTENDER A NATUREZA de uma não-escola. No mundo único as

pessoas buscavam um sistema produtor de respostas capazes de fazer

sentido global para elas. Eram atraídas por religiões, igrejas e seitas

(religiosas e laicas), sociedades filosóficas e escolas de pensamento

(mesmo aquelas que, baseadas na conversação, se intitulavam

comunidades). Elas forneciam a proteção contra a pergunta-disruptiva por

meio de uma meta-explicação coerente, a segurança de uma grande

narrativa totalizante ou de esquemas explicativos gerais que permitiam

que alguém se identificasse e comungasse com outros que palmilhavam o

mesmo caminho e tivesse, assim, uma justificativa ética para se fechar à

interação com o outro-imprevisível. Mas tudo isso é escola!

É muito difícil não construir um esquema organizador para as conversas

mantidas por qualquer grupo. Mas a tarefa em uma não-escola não é criar

uma espécie de wikipedia, nem mesmo uma contextopedia, com os

significados que foram sendo construídos via consenso-administrado a

partir do debate ou da conversação. Não há significados gerais universais.

Não há significados sempre válidos para os mesmos contextos (inclusive

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215

porque, a rigor, nunca se repetem "mesmos contextos"). Há significâncias

atribuídas por sujeitos em interação e válidas para os momentos de

interação em que tais sujeitos estão envolvidos. São significados-fluzz, que

mudam continuamente com o fluxo e o máximo que podemos fazer é

mapear as relações entre esses significados mutantes. Sim, reconheçamos

que não é fácil para nós aceitar o presente, não é fácil resistir à tentação

de arquivar o passado em caixinhas, sobretudo se as plataformas que

utilizamos são p-based (baseadas em participação) e não i-based

(baseadas em interação).

Mas já não se trata mais de sistematizar conteúdos ou de interpretar e

sintetizar respostas cognatas ou convergentes. Trata-se agora apenas de

linkar para facilitar a busca. Quem organiza o conhecimento é a busca.

Quem produz (novo) conhecimento (como relação sempre inédita, não

como conteúdo arquivável) não é a gestão, mas a interação.

Na configuração de novos ambientes interativos de produção de

conhecimento não deve haver "progresso", no sentido de constituição de

um corpo coerente, que vai se tornando cada vez mais redondo e polido

(até que a epistemologia consiga espelhar a ontologia). Não se trata de

construir um códex, uma doutrina, um ensinamento, uma teoria

explicativa de tudo, uma nova plataforma de visão de mundo. Isso é o que

diferencia as novas escolas-não-escolas dos mundos altamente

conectados, de uma escola, quer dizer, de uma igreja (7).

Sim, as escolas como centros de pensamento também são igrejas. Elas

surgem quando criamos programas de separação entre os de dentro e os

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216

de fora a partir de um conteúdo, de uma mensagem, de uma doutrina, de

um conjunto de ideias que alguns compartilham e outros não. Se fizermos

isso, erigiremos uma escola; quer dizer, uma igreja.

Se você junta os que compartilham qualquer corpo de ideias (mesmo que

sejam ideias tão heterodoxas e libertárias como estas que estão sendo

expostas aqui e agora) e, a partir daí, constrói um coletivo, você está

fazendo uma escola. Não importa o que você pense, valorize, fale ou

pregue: você ensina, quer dizer, escorre por um sulco já cavado pelo

ensinamento!

Há uma coerência interna e há completude em boa parte das escolas de

pensamento que floresceram nos milênios passados. É como um mundo

que foi construído (e ninguém se engane: há sabedoria nesse mundo; a

questão é que sabedoria não pode ser um critério aceitável para validar

sistemas hierárquicos). E ocorre que existem múltiplos mundos. Se você

exige que uma pessoa viva na coerência do mundo que você construiu

como condição para se deixar alterar por essa pessoa (ou seja, interagir

com ela), então você não está realmente aberto à interação (com o outro-

imprevisível): você quer participação dos outros no seu espaço, o que é

uma forma de exigir (sem aparentemente fazer qualquer exigência formal)

que os outros vivam na mesma coerência em que você vive. Mas essa é a

definição de seita, de escola.

Não é um problema de comunicação, de adaptar a linguagem ou adotar

uma postura tática para se fazer entender pelos "de fora". Nada disso. O

problema aqui é a rede (ou melhor, a falta dela)

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217

Esse comportamento em geral não é intencionalmente constituído e

reproduzido. Ele é uma decorrência do padrão de organização adotado.

Faça uma rede aberta de conversações e ele se esfuma; ou seja, a escola

desaparece para surgir em seu lugar uma rede de livre aprendizagem.

Assim como desaparecerá o codex, o corpo doutrinário referencial único:

ou seja, o legado fundante da escola de pensamento desaparecerá para

dar lugar a miríades de construções conceituais por ele inspiradas.

O problema é que toda ereção de um sistema implica uma armadilha.

Você fica rodando dentro dele. E para dialogar com as pessoas que vivem

nele, você também precisa também rodar dentro dele. A palavra "rodar",

aqui, é empregada no sentido contemporâneo de "rodar um programa"

(software). Sim, porque o sistema sobre o qual falamos, é um programa de

atribuições de significados e, mais do que isso, de construção dos

processos particulares pelos quais se atribui significados. Para interagir

com quem está dentro do sistema você precisa se plugar e "carregar" o

programa (em você). Ao carregar o programa, você carrega também sua

linguagem (script) e, além disso, seu linguajeado e, às vezes, até mesmo

seu gestual.

Pode-se retrucar que isso ocorre, em maior ou menor medida, com

qualquer construção conceitual que apresente os critérios

epistemológicos de coerência interna e completude. É verdade. Mas

quando o sistema valida seus argumentos internamente, estando os

critérios de validação tão implicados no que se quer validar e vice-versa

(ou seja, estando a epistemologia tão fundida à ontologia), a

verificabilidade fica subordinada (sub-ordenada) pela explicação auto-

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218

referente. É por isso que, em ciência, não se pode abrir mão do critério da

verificabilidade, que deve ter o mesmo status epistemológico dos critérios

da coerência interna e da completude (as quais, sozinhas, não bastam).

Assim, os resultados de uma explicação devem sempre poder ser

verificados por sujeitos que adotam outros esquemas explicativos.

Um bom exemplo de escola de pensamento é a escola freudiana nos seus

primórdios. Uma pessoa deve poder verificar os efeitos do que a

explicação freudiana atribui a determinado complexo sem ter que adotar

a explicação freudiana. Se sou obrigado a me tornar freudiano para

perceber os fenômenos psíquicos que poderiam ocorrer com quaisquer

seres humanos independentemente da explicação freudiana (e da

existência de Freud), então estou preso a um sistema incapaz de interagir

com outras explicações (externas às circularidades freudianas). E corro o

risco de recair no dogmatismo dos primeiros freudianos: uma pessoa deve

poder contestar a existência de um complexo sem ser acusada de estar

fazendo isso justamente por estar possuída por tal complexo. Em alguma

medida, isso ocorre com todos os sistemas autorreferentes, sobretudo na

sua "primeira-infância".

Eric Raymond (2001), no Hacker Howto (8) aconselhava o estudo do Zen

aos hackers, sem dúvida um formidável software de desconstituição de

certezas, compartilháveis por uma ou várias comunidades. Talvez seja o

caso, porém, de voltar ao Tao, para limar as aderências doutrinárias que o

Zen adquiriu: ao se fundir ao budismo foram introduzidos conteúdos...

Sim, continua sendo o Zen, mas só depois de você matar o Buda.

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Qualquer comunidade de pensamento precisa matar o seu fundador (que

é, inclusive, a melhor forma de amá-lo). Quando esse fundador é uma

pessoa, precisa se livrar das aderências de um modo-de-argumentar, de

uma autêntica maneira particular de pensar, falar e escrever que fazia

sentido para aquele ser humano unique que a fundou. E o passo seguinte

dessa ação de amar tão profundamente o fundador ao ponto de matá-lo é

não constituir um grupo proprietário em torno de suas ideias, de abrir

mão de erigir um corpo docente (uma escola) a partir de um corpo teórico

para propagar um ensinamento que possa ser diferencialmente

ministrado por "representantes autorizados", ainda que tudo isso seja – o

que será pior – chancelado pelo próprio fundador. Isso é uma condição de

contorno opaca quando precisamos de membranas.

Não afirmamos que se deva matar o fundador apenas no sentido de matar

a sua imagem idealizada e introjetada, tal como alguns interpretam o lema

killing the buddha (como disse a pessoa-zen Lin Chi: “Se o Buda cruzar seu

caminho, mate-o”). Trata-se de desabilitar um programa verticalizador

que roda na rede gerando instituições que congelam fluxos. Trata-se de

'matar a escola' (no caso, constituída sobre um legado de pensamento

transformado em ensinamento).

Não tem nada a ver com querer ver morto algum fundador por achar que

ele já está caduco ou ultrapassado. É o contrário. Quando se diz "matar o

Buda" isso significa uma admiração suprema pelo Buda, como

prefiguração do Buda que está-em-devir em cada um de nós e que só vai

despertar quando o Buda que está fora desaparecer como referência

(externa porém introjetada em uma espécie de falsa conniunctio). Mas,

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220

particularmente, no contexto desta discussão, significa matar a escola

como ordenação do ensinamento abrindo possibilidades de formação de

múltiplas comunidades de aprendizagem para além do círculo restrito dos

que se matriculam em um curso ou seguem um programa privando da

convivência de um grupo determinado.

Ocorre que com a acelerada emergência, agora, dos Highly Connected

Worlds, vida humana e convivência social tendem a se aproximar a ponto

de revelar ou deixar entrever um superorganismo humano. Isso nos obriga

a mudar nossas interpretações. E é um choque para as chamadas

tradições espirituais (todas estas são artifícios para administrar

espiritualidades conformes ao mundo patriarcal e não por acaso são

baseadas nas escolhas do indivíduo, são ministradas por escolas -

burocracias sacerdotais do ensinamento - e mantêm a relação mestre-

discípulo). Agora será preciso mostrar que quando o mestre está

preparado, o discípulo desaparece e, portanto, chegar à condição de

mestre é chegar à condição do aprendente: aquele que matou o mestre

não apenas quando matou a imagem idealizada do mestre dentro de si

(introjetada), mas quando matou a escola. E tudo isso para quê? Ora, para

que o Buda morto não renasça nas mãos dos que o mataram.

Em outras palavras, não há como construir a base ideológica (ou de

mundivisão) para uma grande narrativa em uma época em que não cabem

mais os esquemas totalizantes de apreensão do mundo e de interação

com o mundo. Não é mais possível a existência de uma (única) matriz ética

para a humanidade. Em uma época em as redes cobrem o planeta como

uma pele e em que, por um processo fractal, uma pluralidade de mentes

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globais está surgindo, não se trata mais de forjar um grupo para usinar um

modelo e espalhá-lo e sim de surfar nas ondas interativas que estão

fertilizando os diversos modelos que emergem de uma diversidade de

comunidades de prática, de aprendizagem e de projeto que estão

brotando e submetendo seus programas à esse tipo de polinização

complexa. Essa visão é chave para não irmos parar de volta em algum

lugar do passado: o processo é fractal! Não é possível salvar o mundo de

uma vez: só é possível salvá-lo um instante de cada vez... (9) Mesmo

porque não existe mais um mundo: os mundos já são – e serão, cada vez

mais – múltiplos.

Sim, não estamos mais na época do anúncio de uma nova proposta que,

se abraçada por muitos no seu refletir-agir, vai supostamente salvar o

planeta (harmonizar biosfera com antroposfera), redimir a humanidade ou

nos levar para um porvir radiante. Não sabemos qual é o futuro.

Sobretudo porque esse futuro (um futuro), felizmente, morreu. Não

podemos pretender levar ninguém para lugar algum. A época em que

vivemos é a época da desistência (10). A hora que vivemos é, portanto, a

hora de abrir mão dessas pretensões de conduzir povos, orientar nações,

mobilizar pessoas em torno de um objetivo comum para transformar a

sociedade (e ‘a’ sociedade, como vimos, é uma abstração regressiva).

Fomos contaminados por um padrão transformacional de mudança e

queremos então transformar a sociedade. Mas... transformar para chegar

aonde? E transformar o quê? E transformar em quê? E transformar por

quê?

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222

Atravessados por essa pulsão transformacionista, legiões de militantes

que continuam habitando os séculos passados vivem querendo fazer

mudanças (que eles não podem, honestamente, saber quais são) em

nome de uma causa. Mas é inútil. As mudanças em sistemas complexos (e

as sociedades humanas são sistemas complexos) ocorrem, em boa parte,

espontaneamente (se entendermos por isso que ocorrem em virtude de

fluições que não alcançamos compreender e determinar). Estamos

lidando com uma ordem de fenômenos que não podemos manejar (e é

bom para a liberdade – para a livre aprendizagem humana – que não

possamos fazer isso). A livre aprendizagem humana só pode ocorrer em

redes de aprendizagem, quando nos libertarmos das escolas.

Se quisermos uma rede de aprendizagem – i. e., uma não-escola – não

podemos constituir um grupo que saia pelo mundo propagando um

legado baseado nas ideias de algum fundador. Para ser uma rede, o

legado tem que ser open, para poder ser desenvolvido, alterado,

modificado, sem necessidade de ordenação ou chancela. Para poder ser

rede a membrana deve deixar entrar e sair outros conteúdos dentro do

escopo estabelecido (posto que se será uma rede voluntariamente

construída haverá um escopo delimitado e algumas regras ou acordos de

convivência, mas isso nada tem a ver com a adesão a um conteúdo

substantivo). Sempre sem exigências, é claro. Mas sabendo que sem

interagir com o outro imprevisível, com aquele que não planejamos

interagir, não pode haver rede (social distribuída).

Em suma, uma escola deve ser uma não-escola para ser rede. Não basta

fluir na sintonia interna dos que acolhem o outro que reconhecem como

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desejoso de conservar o que querem conservar, do lugar onde estão,

desde que esse conservar seja referente a um compartilhar um

determinado conteúdo. Dizendo a mesma coisa de outra forma, não é o

desejo (dos sujeitos) de conservar determinado corpo teórico, nem

mesmo o desejo de conservar um modo de convivência explicitável e

explicável (pelos sujeitos) que constitui a comunidade humana (ou a rede).

A rede acontece quando você interage. Tudo que podemos fazer para

ensejar a interação é evitar a produção artificial de escassez (é mais um

não-fazer). Não adianta sistematizar conteúdos e esperar que,

sintonizando-se com tais conteúdos, as pessoas passarão a conviver em

rede. Isso ainda está no terreno do proselitismo (uma dimensão de

ensino, de propagação de ensinamento, não de aprendizagem). As regras

ou acordos de convivência estabelecidos por uma rede voluntariamente

construída não são o mesmo que a adesão a um conteúdo substantivo (e,

portanto, ninguém pode ser expulso de uma não-escola por estar em

desacordo ou dessintonia com um conteúdo e ninguém terá como

condição para ser admitido estar de acordo com tal conteúdo, como

fazem as religiões, as seitas iniciáticas e as escolas de pensamento,

inclusive as escolas budistas que aconselham matar o Buda).

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NNoottaass ee rreeffeerrêênncciiaass

(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início

de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor

observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,

argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (i-based

e não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em participação).

Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na ocasião mais

como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de Buzz+fluxo.

Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe Fluzz: vida humana e

convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro

milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o programa

malsucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito complexo,

sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem: “Tudo que

flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não pode ser

aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da

rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se

expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado

de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não

há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É

de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos...

Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são

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muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,

dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que

se constelam e se desfazem, intermitentemente”.

(**) Este texto foi originalmente escrito em 2010 e publicado em 2011

como capítulo 7 do livro Fluzz: vida humana e convivência social nos novos

mundos altamente conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de

Redes, 2011.

(1) BARROS, Manoel (1986). Livro sobre Nada in Poesia Completa. São

Paulo: Leya, 2010.

(2) O termo ‘aprendente’, conquanto seja uma tentativa de escapar de

categorias mais problemáticas como docente/discente,

educando/educador, mestre/aprendiz, que introduzem relações

dicotômicas e não expressam adequadamente relações sociais envolvidas

em aprendizagem, também não é muito adequado. São sempre pessoas

aprendendo na interação. Essas observações forem feitas por Nilton Lessa,

à quarta versão do texto “Buscadores e Polinizadores”. Cf. FRANCO,

Augusto (2010). Buscadores & Polinizadores. Slideshare [2.865 views em

23/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/buscadores-polinizadores-

4a-verso>

(3) Cf. Observações de Nilton Lessa à FRANCO, Augusto (2010).

Buscadores & Polinizadores: ed. cit.

(4) Cf. FRANCO, Augusto (2001). Uma teoria da cooperação baseada em

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Maturana. Aminoácidos 4. Brasília: AED, 2002.

(5) Cf. e. g., a Biblioteca do Conectivismo da Escola-de-Redes:

<http://escoladeredes.ning.com/group/bibliotecadoconectivismo>

(6) ILLICH, Ivan (1970). Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1985.

(Na verdade o título dessa tradução, para ser fiel ao original, deveria ser

“Desescolarizando a sociedade”)

(7) Este parágrafo e vários dos seguintes da mesma seção (“Mata a escola

= matar o Buda”) foram elaborados originalmente durante uma polêmica

conversação, ocorrida entre 27 de abril e 24 de maio de 2010, na Escola-

de-Redes, com Ignácio Munõz Cristi e outros interlocutores sobre “redes

sociais entendidas como redes fechadas de conversações no espaço

social”. Para conhecer a íntegra da discussão acesse:

<http://escoladeredes.ning.com/group/biologiacultural/forum/topics/red

es-sociais-entendidas-como>

(8) RAYMOND, Eric (2001). How To Become A Hacker. Disponível em:

<http://www.catb.org/~esr/faqs/hacker-howto.html>

(9) BRABO, Paulo (2007). “Microsalvamentos: como salvar o mundo um

instante de cada vez” in <http://www.baciadasalmas.com>

(10) Cf. as conversações do grupo da Escola-de-Redes intitulado “A

desistência como ativismo”:

<http://escoladeredes.ning.com/group/desista>

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OO rr ee ff ll oo rr ee ss cc ii mm ee nn tt oo dd aa ee ss pp ii rr ii tt uu aa ll ii dd aa dd ee nnoo ss nnoo vvoo ss mmuunn ddoo ss aall ttaa mm eenntt ee ccoo nnee cc ttaaddooss ddoo tt eerrcc eeii rr oo mmii llêênnii oo

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SEM RELIGIÃO E SEM IGREJA

Augusto de Franco, 2012.

Versão Beta, sem revisão.

A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada

com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.

Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta

obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser

reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por

quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –

na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e

distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser

omitida a autoria da versão original.

FRANCO, Augusto de

SEM RELIGIÃO E SEM IGREJA / Augusto de Franco – São Paulo: 2012.

44 p. A4 – (Escola de Redes; 12)

1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.

Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e

à criação e transferência de tecnologias de netweaving.

http://escoladeredes.net

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SSuummáárriioo

Introdução | 9

Espiritualidade, não religião | 11

Os deuses não existem | 16

Ecclesias, não ordens sacerdotais | 26

Não há uma ordem preexistente | 30

Não existe mais caminho | 36

Notas e referências | 39

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Page 235: FLUZZ SÉRIE COMPLETA

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IInnttrroodduuççããoo

FASCINANTE! Escolas, igrejas, partidos, Estados, empresas hierárquicas:

construímos tais instituições – que continuam reproduzindo o velho

mundo; sim, são elas que fazem isso – como artifícios para escapar da

interação, para ficar do “lado de fora” do abismo, para nos proteger do

caos...

As escolas (e o ensino) tentam nos proteger da experiência da livre

aprendizagem. As igrejas (e as religiões) tentam nos proteger da

experiência de deus. Os partidos (e as corporações) tentam nos proteger

das experiências da política (pública) feitas pelas pessoas no seu cotidiano.

Os Estados tentam nos proteger das experiências glocais (de localismo

cosmopolita). E as empresas (hierárquicas) tentam nos proteger da

experiência de empreender.

Por isso que escolas são igrejas, igrejas são partidos, partidos são

corporações que geram Estados, que também são corporações, que viram

religiões, que reproduzem igrejas, que se comportam como partidos...

Porque, no fundo, é tudo a mesma coisa: artifícios para proteger as

pessoas da experiência de fluzz (*). (Não é a toa que todas essas

instituições hierárquicas exigem “monogamia” dos que querem manter

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capturados, como se dissessem: “- Você é meu! Nada de transar com

estranhos”).

Uma vez desconstituídos tais arranjos feitos para conter, contorcer e

aprisionar fluxos, disciplinando a interação, uma vez corrompidos os

scripts dos programas verticalizadores que rodam nessas máquinas (e que,

na verdade, as constituem), o velho mundo único se esboroa.

Isso está acontecendo. Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não-

Estados-nações e não-empresas-hierárquicas começam a florescer. Com

tal florescimento, a estrutura e a dinâmica das sociosferas estão sendo

radicalmente alteradas neste momento, mas não por formidáveis

revoluções épicas e grandes reformas conduzidas por extraordinários

líderes heroicos, senão por pequenas experiências, singelas, líricas, vividas

por pessoas comuns! Aquelas mesmas experiências de interação das quais

fomos poupados. É como se tudo tivesse sido feito para que não

experimentássemos padrões de interação diferentes dos que deveriam ser

replicados. Mas nós começamos a experimentar. E “aqui estamos – como

escreveu Hakim Bey (1984) em Caos – engatinhando pelas frestas entre as

paredes da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monólitos

paranoicos”.

Neste texto vamos examinar as religiões e igrejas para contemplar as

possibilidades de reflorescimento da espiritualidade nos novos mundos

altamente conectados do terceiro milênio (**).

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EEssppiirriittuuaall iiddaaddee,, nnããoo rreelliiggiiããoo

Formas pós-religiosas de espiritualidade, livres das ordenações das

burocracias sacerdotais

NOS NOVOS MUNDOS ALTAMENTE CONECTADOS que estão emergindo,

formas pós-religiosas de espiritualidade vão florescer. Elas serão mais-

fluzz, quer dizer, mais expressões do curso que flui nas relações entre os

humanos e dos humanos com o seu habitat do que tentativas de sintonia

com um todo cósmico extra-humano. Elas serão espiritualidades

consumáveis na interatividade ("terrestres" no sentido de serem

realizáveis sem produzir anisotropias no espaço-tempo dos fluxos).

Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que religião, prá que igreja?

Humberto Maturana (1993) reinterpretou a origem das crenças místicas

que estão na base das experiências que dão significado à vida humana a

partir da hipótese de que havia (ou poderia e, então, poderá novamente

haver) uma "espiritualidade" inerentemente terrestre (como a que

apresentavam supostamente as sociedades agricultoras-coletoras

incidentes na Europa pré-patriarcal) (1).

O relevante nesse esforço de modificação do passado (quer dizer, de

modificação do passado que só não-passou porque continua dentro da

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238

nossa mente, ou melhor, continua se propagando através da cultura, dos

programas que "rodam" na rede social e por isso se replicam) é que essa

"espiritualidade" ou experiência mística não gerou propriamente religiões.

A visão de Maturana sobre o que chamamos de religião é precisa: "uma

religião é um sistema fechado de crenças místicas, definido pelos crentes

como o único correto e plenamente verdadeiro" (2).

Com efeito, para ele,

"No processo de defender o seu viver místico, os patriarcas indo-

europeus criaram uma fronteira de negação de todas as

conversações místicas diferentes das suas. E estabeleceram, de fato,

uma distinção entre o que passou a ser legítimo e ilegítimo, crenças

verdadeiras e falsas. No âmbito espiritual, realizaram a praxis de

exclusão e negação que, operacionalmente, constitui as religiões

como domínios culturais de apropriação das mentes e almas dos

membros de uma comunidade pelos defensores da verdade ou das

"crenças" verdadeiras... [Quando se forma uma comunidade de

crentes] o corpo de crenças adotadas pelos novos crentes - qualquer

que seja sua complexidade e riqueza - não constitui uma religião.

Isso só ocorre se os membros dessa comunidade afirmarem que suas

crenças revelam ou envolvem alguma verdade universal, da qual

eles se apropriaram por meio da negação de outras crenças... A

apropriação de uma verdade mística ou espiritual que se sustenta

como verdade universal constitui o ponto de partida ou de

nascimento de uma religião" (3).

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239

Se Maturana pode imaginar uma matriz assim, projetando-a no passado,

também podemos fazer o mesmo, projetando-a no futuro. No mundo que

criou, Maturana está absolutamente certo do ponto de vista dos novos

mundos que quisermos cocriar.

A dimensão mística (ou espiritual) faz parte de qualquer cultura que se

possa chamar propriamente de humana. Como bem define Maturana, "a

experiência mística - repito: a experiência na qual uma pessoa vive a si

mesma como componente integral de um domínio mais amplo de relações

de existência... depende da rede de conversações em que ela está imersa,

e na qual vive a pessoa que tem essa experiência" (4).

Não há, portanto, qualquer problema com a espiritualidade. O problema é

com a religião. Não precisamos para nada de uma pós-espiritualidade e

sim de novas formas (pós-religiosas) de espiritualidade.

Podemos erigir igrejas, em um sentido amplo do termo (tão amplo que

abarque até mesmo as escolas), sem ter religião (e podemos, ainda,

codificar religiões laicas). Mas igreja, stricto sensu, só surge realmente

quando erigimos um corpo separado de intérpretes, ou seja, uma

burocracia sacerdotal que, por algum motivo, seja ordenada para fazer

alguma intermediação entre o leigo (o não ordenado) e a revelação ou a

fonte prístina da doutrina codificada (como nas religiões baseadas em

escrituras).

Todas as chamadas tradições espirituais que surgiram na civilização

patriarcal são míticas-sacerdotais-hierárquicas-autocráticas. E não é a toa

que se possa falar de uma tradição: há um fundo comum a todas elas.

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Todas - não apenas as templárias - replicam anisotropias no espaço-tempo

dos fluxos (privilegiando, de alguma forma, a direção vertical).

As doutrinas da tradição verticalizaram o mundo "povoando” todo o

universo simbólico - ou aquilo que foi chamado de "mundo da psique" -

com formas que não concorrem para o estabelecimento de um cosmos

social que mantenha as mesmas propriedades em todas as direções, mas,

pelo contrário, que privilegiam a direção vertical. Não é por outro motivo

que achamos que deus está em cima e que o céu está em cima; o caminho

evolutivo é sempre pensado como uma subida e o regressivo como uma

descida. São camadas e camadas de interpretações simbólicas,

depositadas uma sobre a outra, milênio após milênio.

Basta entrar em um templo de qualquer ordem espiritual tradicional para

se perceber com que profundidade o universo simbólico está marcado

pela direção vertical. Nessas construções – sobretudo da tradição

ocidental, herdeira do simbolismo templário babilônico, i. e., sumério – o

caminho que nos conduz para deus, representado em geral por um

triângulo, passa entre as duas colunas que se elevam do piso plano. E

então encontramos o triângulo com o vértice para cima, sobre o

quadrado, o pentagrama verticalmente orientado e muitas outras

"orientações" que "norteiam" o desenvolvimento dos rituais e das práticas

mágicas. O conteúdo ideológico que esses símbolos encarnam está

inegavelmente associado à idéia de um poder vertical, do qual a pirâmide

é o mais expressivo exemplo. E há ainda as escadas, muitas escadas,

introduzidas por primeiro pelos templos sumérios - os zigurates: pirâmides

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feitas de escadas, com degraus representando graus de subida; ou de

descida.

Se houver uma mística (ou espiritualidade) não-patriarcal (nem matriarcal,

é óbvio) ela será terrestre (horizontal, ou melhor, multidirecional). Toma-

se aqui "terrestre" como isotrópico (nada de privilegiar a direção vertical:

as fluições devem manter as mesmas propriedades em todas as direções).

Ora, isso casa perfeitamente com a idéia de “formas pós-religiosas de

espiritualidade” (uma feliz expressão de William Irwin Thompson) (5).

Essas formas também não podem ser codificadas como doutrinas e nem

servir de base para a ereção de igrejas (de qualquer tipo, stricto ou lato

sensu). É a espiritualidade da vida cotidiana, da pessoa comum, do

conectado a uma rede de conversações, do livre-interagente (não

exatamente do participante) com o outro-imprevisível (e, portanto, aberta

ao compartilhamento fortuito e não fechada no cluster dos que professam

a mesma fé).

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242

OOss ddeeuusseess nnããoo eexxiisstteemm??

Os deuses das religiões foram problemáticos porque foram hierárquicos

e autocráticos como as religiões que os construíram

OS PROBLEMAS COM AS IGREJAS (e religiões) erigidas no contra-fluzz não

têm nada a ver com os deuses. Têm a ver, isto sim, com os deuses das

igrejas (e das religiões). Deuses existem desde que existe sociedade

humana, muito antes de erigirmos igrejas e constituirmos religiões. E

igrejas e religiões seriam – e foram, e são, e serão – sempre problemas

(para a rede-mãe), mesmo sem quaisquer deuses.

“Quem mandou dizer ao povo que os deuses não existem?” A pergunta

teria sido feita – em tom de reprimenda – por Robespierre aos seus

correligionários. Mas se isso não for uma lenda, se ele fez realmente tal

pergunta, foi movido por maus motivos: não lançar desesperança sobre as

massas... Faz parte da mentalidade de comando-e-controle. Agora, porém,

podemos refazer a pergunta de outra forma: quem disse que os deuses

não existem?

Quanto mais investigamos as redes, mais evidências surgem de que os

deuses existem. Se não existissem, como explicar que tantas pessoas, ao

longo da história (e inclusive na pré-história), tenham pautado seus

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comportamentos em sintonia ou obediência ao que acreditavam ser a

natureza, a essência ou os ditames divinos? Eles existem, sim, como

modelos mentais, quer dizer, sociais (6).

Os deuses, se já não se pode acreditar que sejam criadores do cosmos

natural, sem dúvida são criadores de cosmos sociais. Eles são matrizes de

programas que rodam na rede social. Congregam modelos do que será

constelado no espaço-tempo dos fluxos e do que virará fenômeno social e,

até, do que se codificará como norma, do que se congelará como

instituição e do que se materializará como cidade, rua, praça. Sim, Zeus

Agoraios estava de fato presente naquela praça do mercado da velha

Atenas chamada Ágora. Mas o que significa dizer isso?

Até a democracia nascente – laica por essência – tinha lá os seus deuses:

por exemplo, o Zeus Agoraios e a deusa Peitho. Mas quando os gregos do

século de Péricles invocam Zeus Agoraios eles conferem às conversações

entre os homens livres na praça do mercado (o espaço público nascente) o

caráter de algo digno de ser abençoado e protegido por um deus, abrindo

uma brecha na tradição centralizadora (hierarquizante) segundo a qual os

deuses tratavam desigualmente os humanos, ungindo os hierarcas e seus

representantes (reis e sacerdotes) para conferir-lhes a autorização (divina)

de exercer o poder sobre os demais e guiá-los por algum caminho.

Quando os gregos invocam Peitho, a persuasão deificada, eles confrontam

a idéia autocrática de que a política era uma continuação da guerra por

outros meios. Como escreveu Hannah Arendt (c. 1950) (7):

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“No que dizia respeito à guerra, a polis grega trilhou um outro

caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em

torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens

livres, e com isso centrou a verdadeira coisa política’ — ou seja,

aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos

negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não-livres — em

torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o

conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como símbolo

de um peitho divino, uma força convincente e persuasiva que, sem

violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia. Em

contrapartida, a guerra e a força a ela ligada foram eliminadas por

completo da verdadeira coisa política, que surgia e [era] válida entre

os membros de uma polis; a polis se comportava, como um todo,

com violência em relação a outros Estados ou cidades-Estados, mas,

com isso, segundo sua própria opinião, comportava-se de maneira ‘a

política’. Por conseguinte, nesse agir guerreiro, também era abolida

necessariamente a igualdade de princípio dos cidadãos, entre os

quais não devia haver nenhum reinante e nenhum vassalo.

Justamente porque o agir guerreiro não pode dar-se sem ordem e

obediência e ser impossível deixar-se as decisões por conta da

persuasão, um âmbito não-político fazia parte do pensamento

grego”.

Os deuses da democracia grega eram deuses da conversação, quer dizer,

deuses-fluzz, deuses da interação. É claro que havia um âmbito a-político

e não democrático na Grécia e, assim, havia também outros deuses

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hierárquicos e autocráticos (por exemplo, todos os deuses associados à

guerra e à jornada do herói, aos vaticínios e ao destino).

Mas como? Se a democracia é laica, por que teria ela seus deuses? Pois é.

Laico não quer dizer propriamente ateu (sem deus) e sim sem religião

(institucionalizada); ou seja, ser laico significa não fazer parte da

burocracia sacerdotal instituída para intermediar a relação do homem

com a divindade, isto é: para separar o ser humano da divindade; ou,

como disse Jung, para proteger o homem da experiência de deus, abrindo

sulcos para fazer escorrer por eles as coisas que ainda virão; ou ainda – o

que é a mesma coisa – pavimentando com a crença um caminho para o

futuro (e consequentemente, eliminando outros caminhos, reduzindo

nosso estoque de futuros possíveis, exterminando mundos).

Não, não há nenhum problema com os deuses. Os deuses das religiões

foram problemáticos porque foram hierárquicos e autocráticos como as

religiões que os adotaram (na verdade, que os construíram para seus

propósitos). A questão relevante agora não é a de saber se existem ou não

existem deuses (uma controvérsia tola), mas a de saber em que medida

algum deus (um programa capaz de rodar na rede-mãe e de ensejar algum

tipo de experiência mística ou espiritual, permitindo que uma pessoa viva

a si mesmo como componente integral de um domínio mais amplo de

relações de existência) favorece a reprodução de uma sociedade

hierárquica ou a emersão de uma sociedade-em-rede.

Os deuses pré-patriarcais foram naturais e não geraram religiões. Os

deuses patriarcais foram sobrenaturais e geraram, estes sim, instituições

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hierárquicas: escolas (e ensino), igrejas (e religiões) e, sobretudo, Estados.

(Quem sabe os deuses pós-patriarcais serão sociais e não gerarão nenhum

desses tipos de deformações na rede-mãe – o que não significa, como

veremos adiante, que não possam inspirar novas formas mais interativas

de espiritualidade).

Não é por acaso que as primeiras formas de Estado erigidas nas cidades

antigas – as cidades-Estados da velha Mesopotâmia – tinham seus deuses.

Cada uma tinha lá o seu deus ou a sua deusa. Um eco empalidecido dessa

tradição são os nossos santos e santas padroeiros de cidades. Na

Antiguidade, porém, as cidades não eram apenas consagradas ou

dedicadas ao um deus ou deusa, senão que pertenciam aos deuses. Uruk e

Ur eram de Innana, Nippur e Lagash de Ninurta

A cidade-Estado-Templo sumeriana era uma habitação para um deus. Os

seres humanos viviam nelas de favor. E para trabalhar para os deuses,

para ser seus escravos (os feitores, é claro, eram os sacerdotes). Adorar

(ter uma devoção) era a mesma coisa – inclusive etimologicamente – que

trabalhar (a palavra hebraica ‘avod’, que pode ser traduzida por devoção,

adoração e também por trabalho, ecoa esse perverso sentido ancestral).

Os deuses em questão não eram os seres espiritualizados que foram

idealizados depois. Eram apenas os superiores. Sobre-humanos sim,

porém belicosos, intrigantes, genocidas, carnívoros... Está claro que eram

– ou se manifestavam como – programas verticalizadores do cosmos

social. Não eram sobre-humanos no sentido de serem mais perfeitos do

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que os humanos e sim no sentido de que não eram humanos, sua

“presença” não era humanizante.

Depois, por algum motivo, eles se hospedaram no subsolo de nossa

consciência social (?), naquela região misteriosa que foi chamada de

inconsciente coletivo (!). Eles eram mais ou menos assim como os vírus

que hoje tentam invadir nossos websites. É curioso que alguns sistemas de

segurança anti-spam, lançando mão de um Teste de Turing reverso –

Completely Automated Public Turing test to tell Computers and Humans

Apart (CAPTCHA) – sugestivamente perguntam: “Você é humano?” e

então mandam a gente copiar algumas letras com formatação desfigurada

(coisa que, por enquanto, os robôs virtuais ainda não conseguem fazer, só

os humanos). Nenhuma organização hierárquica passaria nesse teste!

Deuses sobre-humanos (ou não humanizados) levam necessariamente a

sistemas de dominação. Todo relacionamento vertical recorrente

(estrutura centralizada) materializa um sistema de dominação. Osho

acertou em cheio o coração do problema quando disse: “não tenho

nenhum Deus; desse modo, não tenho nenhum programa para você no

qual você possa ser transformado em um escravo”. Ele decifrou o enigma

quando identificou os deuses das religiões com um programa, um

programa verticalizador.

Portanto, o problema não são os deuses e sim esses deuses criados à

imagem e semelhança dos hierarcas, que talvez os tenham criado assim ao

não aceitarem o fluxo transformador da vida, para tentar evitar a morte; e

ao não aceitarem fluzz – o fluxo transformador da convivência social –,

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para tentar perenizar os mundos que construíram em detrimento de

outros mundos possíveis.

Sim, o problema são os deuses autocráticos, feitos à imagem e

semelhança dos sistemas de dominação. Esses deuses serão hierárquicos,

por certo, mas, do ponto de vista das redes distribuídas, não haveria

nenhum problema com deuses humanizados que não exigissem culto,

obediência ou subordinação (como Jesus de Nazareh, por exemplo, aquele

judeu marginal que humanizou IHVH, desde que não se tivesse tentado

instrumentalizar suas experiências de vida e convivência social para

codificar doutrinas, constituir religiões e erigir igrejas). Mas, como?

Atribuir a uma pessoa, com exclusividade, um caráter divino, como

fizeram, por alguma razão, seus primeiros discípulos, não seria um

contrassenso nos mundos altamente conectados em que cada pessoa é

uma singularidade em um mesmo tecido (social), possuidora, portanto, do

mesmo status (humano) de todas as outras? Ora, William Blake, um poeta

– porque os poetas são pessoas-fluzz – já resolveu essa questão para nós

quando escreveu: “Jesus é o único Deus. Assim como eu, assim como

você”.

Desse mesmo ponto de vista, não haveria nenhum problema com deuses

pós-patriarcais que fossem sociais (como o que foi chamado de Espírito

Santo e que a comunidade dos amantes celebra dizendo: “Ele está no

meio de nós”) – para seguirmos a numinosa compreensão, manifestada

algures por Leo Jozef (Cardeal) Suenens, quando escreveu: “É precisam

que sejam muitos para ser Deus”.

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Deuses divididos? Osíris foi – em uma de suas “não-vidas” – um deus

dividido, acorde às necessidades de descentralização da teocracia

faraônica. Deuses pós-religiosos serão fractalizados, acorde às

contingências de distribuição dos Highly Connected Worlds. Sim, os deuses

se modificam quando modificamos o hardware. E consequentemente

muda também o que chamamos de espiritualidade.

Em um mundo distribuído não pode haver culto organizado

centralizadamente (por igrejas). Libertada do culto (e das suas ordenações

religiosas), a espiritualidade também se distribui por todas as pessoas,

cada qual podendo livremente vivê-la de acordo com suas conexões. Cada

pessoa (que quiser) pode experimentá-la nas contingências do seu fluir,

em sintonia com as redes sociais em que está imersa; i. e., convivendo-a.

No mundo único as pessoas viveram oprimidas por ideias totalizantes e

uniformizantes, fossem, por um lado, provenientes da crença religiosa em

um deus único (e incognoscível), fossem – pelo lado oposto –

provenientes da crença tola de que deus não existe, ditada por uma

ciência promovida a pansofia. Isso gerou um sem número de problemas,

sobretudo psicológicos, quando as pessoas passaram a reprimir sua

espiritualidade por medo do vexame e da reprovação dos bem-pensantes.

Tal “verdade” supostamente libertadora, revelada por uma ciência

deslizada do seu escopo, baseada em uma espécie de religião laica

iluminista, era, na verdade, opressiva. Libertadas desse bom-senso ateísta

as pessoas podem ter sua própria experiência de deus (ou de qualquer

ente ou processo que queiram escolher para representar ou simbolizar um

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domínio mais amplo de relações de existência no qual se sintam inseridas

e possam viver tal inserção), interagindo.

Tal inserção, é claro, também pode ser vivida sem conotação mística.

Como disse Ilya Prigogine (1986) em entrevista a Renée Weber, em

Diálogos com cientistas e sábios: “Pessoalmente, sinto que chegamos hoje

à percepção de estarmos entranhados no mundo como um todo. Estamos

descobrindo um vínculo sem recorrer a nenhum misticismo externo,

estranho” (8). O que diminuirá, nos Highly Connected Worlds, são as

chances de vivermos esse vínculo permanecendo do “lado de fora” do

abismo, precavidos contra o caos ou protegidos da interação.

Deuses interativos, porém, não estarão no futuro, como aquele da

tradição hebraica que não podia ser nomeado a não ser pela expressão

Ehie Asher Ehie – traduzível por “Eu serei o que serei” (o hebraico aceita)

posto que estava no futuro. Esse deus da utopia (e da profecia), do não-

lugar (porque o lugar do seu tempo nunca chega) – e refletindo sobre o

qual o marxista heterodoxo, materialista e ateu, Ernst Bloch (1968) em O

ateísmo no cristianismo, usinou a pérola: “Deus não existe, porém existirá”

(9) – não pode interagir com as pessoas e, assim, não pode ser um deus-

fluzz; ou, o que é a mesma coisa, não pode ensejar uma experiência

mística ou espiritual fluzz.

Formas pós-religiosas de espiritualidade serão predominantemente i-

based e, portanto, tenderão a ser vividas no presente (o que significa que

não nos jogarão naquela corrente alucinante da utopia e da profecia que

tudo arrasta para o futuro, alienando-nos do presente).

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Tudo indica, porém, que as religiões (e as igrejas ou as ordens sacerdotais)

remanescerão por muito tempo ainda. Mas a despeito de continuarem

rodando na rede social, esses programas podem agora ser hackeados

pelos novos hereges que já estão no meio de nós. Sim, como disse Bloch,

“o melhor da religião é que ela produz hereges” (10).

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EEcccclleessiiaass,, nnããoo oorrddeennss ssaacceerrddoottaaiiss

Seus irmãos e irmãs estão espalhados em múltiplos mundos. Para achá-

los você tem que remover o firewall e expor-se à interação

MAS O QUE COLOCAREMOS NO LUGAR das igrejas (e das religiões)? Ora,

nada. O velho mundo único já colocou muitas instituições para fazer as

vezes de igrejas: as escolas (e o ensino), os partidos (e as corporações), o

Estado-nação (e seus aparatos). Mutatis mutandis, todas essas funcionam

mais ou menos da mesma maneira, como ordens sacerdotais. E todas elas

vão continuar existindo, com uma estrutura e uma dinâmica parecidas

com as que têm hoje, para quem não entrar nos Highly Connected Worlds.

Mas quem assumir a condição de nômade, viajante dos interworlds, pode

– se quiser – fundar sua própria igreja-não-igreja. Nos mundos altamente

conectados ninguém pode impedir, nem conseguirá dissuadir, que as

pessoas fundem suas próprias não-igrejas. Elas não serão ordens

sacerdotais, por certo, mas poderão ser ecclesias, no sentido de

aglomerados dos que querem conviver sua espiritualidade, ou seja, dos

que querem compartilhar as formas semelhantes como vivem um domínio

mais amplo de relações de existência celebrando suas afinidades e

amorosidades mutuas. O número dessas novas igrejas-não-igrejas tende a

aumentar. Simplesmente porque – nos mundos em que se constituírem –

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também não haverá tantas restrições de ordem moral e cultural para sua

existência.

Ecclesias como assembleias de amantes, como redes (abertas) de

buscadores que se dispõem a polinizar mutuamente os modos pelos quais

vivem sua mística ou sua espiritualidade, vão proliferar no lugar de igrejas

como ordens sacerdotais (fechadas) que se proclamam o único caminho, a

única porta, a única esperança de salvação e que disputam entre si o

tempo todo oferecendo-nos um formidável (e deplorável) contraexemplo

de fraternidade. As velhas igrejas – essas armadilhas construídas para

arrebanhar ovelhas e apascentá-las – continuarão existindo, é claro, mas

perderão relevância.

Na medida em que um superorganismo humano começa a se manifestar

nos mundos altamente conectados e que novos fenômenos – como o

clustering, o swarming, o cloning, o crunching e tantos outros que estão

implicados no que chamamos de inteligência coletiva (e, quem sabe, no

que ainda vamos chamar de emoção coletiva) – começam a irromper,

haverá um motivo adicional para compartilhar. Você pode preferir o olhar

do investigador que analisa tais fenômenos tentando manter os

protocolos científicos de isenção e objetividade. Mas você também pode

simplesmente viver e celebrar seu vínculo com essas novas ‘Entidades’

sociais – a palavra, assim com maiúscula, foi usada por Jane Jacobs em

1961 (11) – que se formam em uma dimensão mística. Se você buscava

um domínio mais amplo de relações de existência para dar sentido à sua

vida e vivê-la em sintonia com essa realidade (avaliada por você, não

importa, como transcendente ou imanente), ei-lo: o simbionte social!

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O fundamental aqui é que não haja fechamento. Nos múltiplos mundos

interconectados estão outras pessoas que se sentem (e sentem a

transcendência ou a imanência) como você e podem se sintonizar com

você. Seus irmãos e irmãs estão espalhados em múltiplos mundos. Para

achá-los você tem que remover o firewall e expor-se à interação. Bem, ao

fazer isso é possível que mais cedo ou mais tarde você perceba que tudo

foi apenas um não-caminho. E descubra que seus irmãos e irmãs são todas

as pessoas que estão em todos os mundos.

Se você quiser fazer isso agora, possivelmente será encarado como

herege. Aos olhos do mundo único será um herege, assim como são

hereges os que abandonaram a escola, rejeitaram o ensino, rasgaram seus

diplomas e títulos e se transformaram em catalisadores de processos de

aprendizagem em comunidades livres de buscadores e polinizadores,

estruturadas em rede. Assim como são hereges os que, desistindo dos

partidos, não desistiram de fazer política (pública) nas suas localidades, na

base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos. Assim como são hereges

os que renunciaram ao Estado-nação (e às suas pompas, e às suas glórias),

refugando também as noções regressivas de patriotismo e nacionalismo, e

viraram cidadãos transnacionais de suas glocalidades...

Os anunciadores de uma nova ordem não são hereges no sentido em que

a palavra está sendo usada aqui (quase aquele sentido em que Ernst Bloch

empregou-a ao dizer que “o melhor da religião é que ela produz hereges”).

São replicadores ou trancadores. No último meio século tivemos ondas e

ondas de supostos hereges vaticinando um mundo novo. No fundo, o

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porvir radiante que anunciavam não era mais do que a revivescência de

uma ordem ancestral hierárquica.

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NNããoo hháá uummaa oorrddeemm pprreeeexxiisstteennttee

A ordem está sempre sendo criada no presente da interação

O REFLORESCIMENTO DAS IDÉIAS ESPIRITUALISTAS que ocorreu na New

Age provocou uma bateria de ondas que continuam até hoje quebrando

nas praias dos buscadores de todos os matizes, mais de quarenta anos

depois (se bem que, agora, já com intensidade bastante reduzida). As

pessoas que, nas mais diversas situações, procuravam um sentido para

suas vidas, tanto em experiências meditativas de recolhimento individual,

quanto em ensaios coletivos de novos padrões de convivência social,

queriam, no fundo, viver sua espiritualidade em uma época ainda pré-

fluzz, mas que já anunciava tempos vertiginosos, de alta interatividade. E

saíam então para todo lado em busca de novos caminhos, guias e mestres.

Grande parte desses exploradores, porém, não empreendia livremente ou

sem pré-conceitos suas buscas. Estavam impregnados das ideias –

assopradas e reforçadas pelos gurus que se apresentavam em profusão –

de “um novo reino de velhos magos”. Na base das mais diversas

doutrinas, seitas, sociedades e ordens espiritualistas e ocultistas que

ofereciam naquele mercado seus produtos e serviços, havia, entretanto,

uma mesma visão básica, a qual aderiam tanto físicos e biólogos de

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vanguarda interessados no diálogo entre ciência e religião quanto

roqueiros, quase todos sem prestar muita atenção aos seus pressupostos:

a idéia de que havia uma ordem implícita (ou implicada) pré-existente em

alguma esfera da realidade, oculta ou não acessível imediatamente.

Eles queriam então ter acesso a essa ordem pura, queriam estabelecer

uma sintonia com esse modelo não-manifestado, queriam atingir estados

superiores de consciência para contemplar essa espécie de Unimatrix One

e, para tanto, lançavam mão dos mais variados exercícios reflexivos,

técnicas meditativas, rituais teúrgicos, práticas mágicas e processos de

iniciação.

Ainda vivemos nas bordas dessas vagas, embora a New Age não tenha

acontecido segundo o que foi previsto. O mundo único não se reencantou

com o reflorescimento de espiritualidades ancestrais. Ainda bem. Porque

o que está acontecendo nos múltiplos mundos altamente conectados é

muito, muito mais profundo, mais abrangente e mais surpreendente do

que tudo que anunciaram os gurus da nova era.

Depois dos gurus, vieram alguns hereges dizendo: não há uma ordem; se

há, foi inventada por alguém e não quero me subordinar a ela. Os

pioneiros da Internet e os visionários do ciberespaço dos anos 90 foram

impelidos por esse vento libertário, em parte sob a influência de obras

disruptivas como TAZ – Zona Autônoma Temporária (12) e CAOS – Os

panfletos do Anarquismo Ontológico (13), dois escritos seminais de Hakim

Bey (1984-85) e dos romances de ficção científica Neuromancer (14) de

William Gibson (1984) e Ilhas na Rede (15) de Bruce Sterling (1988) que,

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entre outros, deram origem aos cyberpunks. Talvez pouca gente suspeite

disso, mas essa influência foi decisiva para a criação das ferramentas

interativas que existem hoje (inclusive para a Internet e a World Wide

Web), conquanto não se possa dizer que ela tenha durado muito. Tais

pioneiros e visionários, em boa parte, logo entraram no contra-fluzz ao

fecharem suas descobertas (construindo programas proprietários e

escondendo seus algoritmos) para acumular suas fabulosas fortunas ou ao

se deixarem contaminar pelas ideias contraliberais que impulsionaram os

movimentos antiglobalização no dealbar dos anos 2000 sob a bandeira de

que “um outro mundo é possível”. Se um herege inventa a sua própria

ordem e quer que as pessoas passem a segui-la – quer transformando-as

em usuários cativos de seus produtos, quer arrebanhando-as em seus

movimentos supostamente transformadores – aí já deixa de ser herege e

passa a ser um sacerdote, um burocrata a serviço da reprodução do

sistema que criou.

No entanto, a despeito dessas ondas regressivas que apenas revelavam a

resiliência do velho mundo único, de suas estruturas e de suas dinâmicas,

o vento continuou a soprar.

É claro que a maioria dos replicadores dos padrões ancestrais de

espiritualidade hierárquica não ouviu Jiddu Krishnamurti que, a pedido de

sua biógrafa Mary Lutyens, comentou, em 1980, a sua famosa declaração

de 1929: “A verdade é uma terra sem caminhos”:

"A Verdade é uma terra sem caminho. O homem não chegará a ela

através de organização alguma, de qualquer crença, de nenhum

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dogma, de nenhum sacerdote ou mesmo um ritual, e nem através

do conhecimento filosófico ou da técnica psicológica. Ele tem que

descobri-la através do espelho das relações, por meio de

compreensão do conteúdo da sua própria mente, mediante a

observação, e não pela análise ou dissecação introspectiva” (16).

Talvez àquela altura Krishnamurti ainda não pudesse conceber a mente

como uma nuvem social, nem perceber que o fundamental não é o

conteúdo e sim o processo interativo, distinguindo os programas que

rodam na rede da topologia dos emaranhados onde estamos (e somos).

Ainda assim, começaram a aparecer os que, rejeitando os títulos de

mestre ou guru, recomendavam simplesmente não-fazer nada. Já eram

estes os precursores dos novos mundos-fluzz. Porque quando se espia “do

outro lado”, não se vê ordem alguma – somente o nada, o abismo, fluzz.

Fluzz significa que não há uma ordem preexistente em algum mundo

invisível (da emanação, da criação ou da formação). A ordem está sempre

sendo criada no presente da interação. É mais ou menos assim como

imaginou Ilya Prigogine (1984), destoando inclusive de outros cientistas

envolvidos com tais especulações (de David Bohn a Paul Davies, passando

por Fritjof Capra): o universo é criativo e “se cria à medida que avança”

(17).

Novamente é o caso de dizer: bem, isso muda tudo.

Jack Kerouac e seus beatniks dos anos 50-60, Swami Satchidananda em

Woodstock, os hippies dos anos 70 e os “hippies” tardios dos 80, talvez

tenham pressentido isso, mas não podiam ter um entendimento do que

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260

estava vindo. O próprio Peter Lamborn Wilson (Hakim Bey) e os

cyberpunks talvez tenham apenas sentido o sopro, sem chegarem a ver de

onde (e para onde) ele soprava. Pierre Levy (2000), em uma corajosa

jornada introspectiva, cujas notas estão no diário de bordo O fogo

liberador (18) (uma obra de inspiração heraclítica), empreendeu

explorações em antigas tradições espirituais (como o budismo e a cabala)

para tentar captar-lhe o sentido. Mas não havia sentido: “o vento sopra

onde quer; você o escuta, mas não pode dizer de onde vem, nem para

onde vai” (Jo 3: 8).

Pessoas como Paul Baran (On distributed communications), Vinton Cerf

(TCP/IP), Tim Berners-Lee (WWW), Linus Torvalds (Linux) e Rob McColl

(Apache), embora aparentemente nunca tenham feito tais explorações,

contribuíram objetivamente para que hoje pudéssemos reconfigurar a

busca (e talvez tenham causado um impacto mais profundo do que

aqueles provocados pelos empreendimentos proprietários fechados dos

Gates, dos Jobs, dos Pages, dos Stones e dos Zuckerbergs e de muitos

outros trancadores de códigos que vieram ou ainda virão).

Sim, reconfigurar a busca. Em mundos altamente conectados a busca não

existe sem a polinização. Não há um mainframe (como se fosse um

diretório de registros akashikos) onde você possa buscar respostas para

suas perguntas. Se houver, tais respostas não lhe servirão. Serão respostas

do passado que foi arquivado. Revelarão ordens pregressas.

Conhecimento morto. A busca, qualquer busca, inclusive a busca

espiritual, é sempre uma interação. Nos Highly Connected Worlds toda

busca é P2P: no seu mundo e nos interworlds pelos quais você está

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261

navegando. A mesma busca, quando repetida, fornece respostas

necessariamente diferentes. E deixa o rastro da pergunta. De sorte que as

respostas são, no limite, combinações das perguntas que estão sendo

feitas. Perguntas interagindo e se polinizando mutuamente para criar

ordens inéditas.

O buscador é um polinizador. É um criador de mundos. O buscador-

polinizador é uma pessoa-fluzz. Uma pessoa-fluzz é mais ou menos o que

deveria ser uma pessoa-zen nas condições de um mundo de alta

interatividade. Mas enquanto víamos a pessoa-zen como um indivíduo-no-

caminho (conquanto ela não fosse isso realmente, posto que a

descoberta-zen é a descoberta do ‘não-caminho’), a pessoa-fluzz não pode

ser vista assim: ela é enxame. O enxame muda continuamente sua

configuração, o que significa que os caminhos também mudam

continuamente com a interação: o que era caminho em um momento já

não é mais no momento seguinte. A pessoa, como disse Protágoras (c. 430

a. E. C.) – ou a ele se atribui – “é a medida de todas as coisas, das coisas

que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”. Assim

seja (ou não-seja). Let it be (ou not to be – o que é a mesma coisa).

Os hereges nômades que já experimentam esses novos padrões de

interação viajando pelos interworlds e “audaciosamente indo onde

ninguém jamais esteve” começam a gritar para os que teimam em juntar e

colar os cacos de céu velho que estão despregando para prorrogar a

vigência do mundo único: “– Parem com isso! Não existem mestres. Não

existem guias. Não existe caminho”.

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NNããoo eexxiissttee mmaaiiss ccaammiinnhhoo

O objetivo é ser pessoa, nada além disso

FLUZZ TAMBÉM É: TUDO ESTÁ CONECTADO. E se tudo está conectado por

que os seres humanos não estariam?

É como se todo o mundo percebido e sentido fosse internalizado por essa

interface (individual) com a mente (social) que chamamos de cérebro.

Assim também a rede social. A máxima de Novalis (1798) “cada ser

humano é uma pequena sociedade” (19) pode significar, por um lado, que

os humanos importam a estrutura da rede social a que estão conectados.

Algo se passa como se a rede fosse espelhada dentro da pessoa em

interação. As personalidades das pessoas conectadas são como que

simuladas internamente por um sujeito que, não raro, conversa com elas.

Essa imagem espelhada é atualizada toda vez que há interação. E há

espelhamento, é claro, porque há separação.

Eis, talvez, o motivo pelo qual nunca estamos realmente sozinhos. Há um

burburinho de fundo, permanentemente presente. Como borgs ouvimos,

o tempo todo, as “vozes da Coletividade”. Mas, diferentemente de um

Borg, como “ghola social”, cada pessoa internaliza de um modo diferente,

unique. Sem essa imagem peculiar dos outros dentro de nós não podemos

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ser pessoas, quer dizer, não podemos ser humanos. As imagens da

“mesma” rede são tantas quanto os seus nodos. Imagens de imagens,

redes dentro de redes. E o que se chama de ‘eu’ ou ‘você’ também são

vários. Chegar a um só (aquela individuação junguiana) é final de percurso,

não condição de partida.

Todavia nos novos mundos altamente conectados, o caminho da

individuação (não só aquele sobre o qual escreveu Jung, mas o caminho

da iluminação de todas as tradições espirituais hierárquicas) não pode

mais ser percorrido como uma jornada interior (no sentido psicológico-

espiritual individual). ‘Pessoa já é rede’ significa que eu e você

compartilhamos o mesmo indivíduo-social. Eu e você são variações de um

mesmo substrato: singularidades em um tecido. Mas significa também,

paradoxalmente, que ‘eu sou um outro’, qualquer-outro, não apenas

como complexo psicológico (como representação interiorizada), mas na

rede, como realidade social.

Nos mundos pouco conectados dos milênios pretéritos, trabalhava-se com

os materiais alquímicos das representações introjetadas, percorrendo-se

interiormente nebulosas estações arquetípicas em direção à totalidade. A

vida humana (do buscador) era, de certo modo, apartada da sua vida

social (do polinizador). O caminho era “pessoal” no sentido de individual e

exigia consciência, confirmação intermitente de que eu vi o que vi, senti o

que senti, pensei o que pensei, sei o que sei, passei o que passei, vivi o

que vivi... até me iluminar (ou não)! Mas isso só ocorre enquanto

prevalece a separação entre eu e o outro.

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Entretanto, quando vida humana e convivência social se aproximam,

novos caminhos se abrem, continuamente. Aquele pelo qual

procurávamos no meio de nós (no sentido de no nosso interior) passa a

estar entre nós. Uma nova topologia distribuída dos caminhos espirituais

elimina os caminhos únicos (mesmo quando únicos para cada pessoa). Os

caminhos são múltiplos, inclusive para a mesma pessoa. O que significa

dizer que não existe mais caminho. Como captou o poeta: "Todos os

caminhos, nenhum caminho. Muitos caminhos, nenhum caminho. Nenhum

caminho, a maldição dos poetas" (20).

E não só os poetas percebem, mas também outras inquiring minds, de

exploradores heterodoxos, como a do físico David Bohm (1970-1992),

dedicado, nos últimos anos de sua vida, a compreender e promover a

interação que chamava de diálogo: ele chegou à conclusão de que “não

existe um ‘caminho’... no dialogo compartilhamos todas as trilhas e, por

fim, percebemos que nenhuma delas é fundamental. Percebemos o

significado de todos os caminhos e, portanto, chegamos ao ‘não-caminho’.

No fundo, todos os caminhos são os mesmos...” (21).

Se o objetivo é ser pessoa, nada além disso, qualquer relação humana é

caminho. A espiritualidade-fluzz não é percorrer uma trilha, completar um

percurso, mas deixar-se-ir ao encontro dos demais, abrindo as próprias

fronteiras ao outro-imprevisível. Ora, isso significa que você não precisa

mais de uma igreja – como cluster fechado dos que professam a mesma fé

(a fé de que estão no mesmo caminho) – quer dizer, de um partido.

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NNoottaass ee rreeffeerrêênncciiaass

(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início

de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor

observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,

argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (i-

based e não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em

participação). Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na

ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de

Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe Fluzz: vida

humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do

terceiro milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o programa

malsucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito complexo,

sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem: “Tudo que

flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não pode ser

aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da

rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se

expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado

de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não

há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É

de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos...

Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são

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muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,

dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que

se constelam e se desfazem, intermitentemente”.

(**) Este texto foi originalmente escrito em 2010 e publicado em 2011

como capítulo 7 do livro Fluzz: vida humana e convivência social nos novos

mundos altamente conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de

Redes, 2011.

(1) MATURANA, Humberto (1993). Amar e brincar: fundamentos

esquecido do humano. São Paulo: Palas Athena, 2004.

(2) Idem.

(3) Idem-idem.

(4) Idem-ibidem.

(5) THOMPSON, William (2001). Transforming History: a curriculum for

cultural evolution. Ma: Lindisfarne Books, 2001.

(6) Cf. FRANCO, Augusto (2009). Modelos mentais são sociais. Slideshare

[1.022 views em 23/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/modelos-mentais-so-

sociais>

(7) ARENDT, Hannah (1959). “A questão da guerra” in O que é política?

(Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz).

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

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(8) Cf. WEBER, Renée (1986). Diálogos com cientistas e sábios. São Paulo:

Cultrix, 1991 [cf. a entrevista com Ilya Prigogine no capítulo intitulado “O

reencantamento da natureza”].

(9) BLOCH, Ernst (1968). El ateísmo en el cristianismo: la religión del éxodo

y del Reino. Madrid: Taurus, 1983.

(10) Idem.

(11) JACOBS, Jane (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo:

Martins Fontes, 2009.

(12) BEY, Hakim (1985-1991). BEY, Hakim (Peter Lamborn Wilson) (1984-

1990). TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Coletivo Sabotagem:

Contra-Cultura, s/d.

(13) BEY, Hakim (1985). CAOS: Terrorismo poético e outros crimes

exemplares. São Paulo: Conrad, 2003.

(14) GIBSON, William (1984). Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2008.

(15) STERLING, Bruce (1988). Piratas de dados [Péssima tradução do título

Islands in the Net]. São Paulo: Aleph, 1990.

(16) Cf.: <http://www.jkrishnamurti.org/pt/about-krishnamurti/the-core-

of-the-teachings.php>

(17) Cf. a entrevista concedida em 1984 por Ilya Prigogine à Renée Weber

em WEBER: Op.cit.

(18) LÉVY, Pierre (2000). O Fogo Liberador. São Paulo: Iluminuras, 2001.

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(19) NOVALIS (George Friedrich Philipp, Freyherr (Barão) von Hardenberg)

(1798). Pólen. Fragmentos, diálogos, monólogos. São Paulo: Iluminuras,

2011.

(20) BARROS, Manoel (2010). Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.

(21) BOHM, David (1996). Diálogo: comunicação e redes de convivência.

São Paulo: Palas Athena, 2005.

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AA pp uu bb ll ii cc ii zz aa çç ãã oo dd aa pp oo ll íí tt ii cc aa nnooss nnoovvooss mmuunnddooss aallttaammeennttee ccoonneeccttaaddooss ddoo tteerrcceeiirroo mmii llêênniioo

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A NOVA POLÍTICA

Augusto de Franco, 2012.

Versão Beta, sem revisão.

A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada

com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.

Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta

obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser

reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por

quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –

na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e

distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser

omitida a autoria da versão original.

FRANCO, Augusto de

A NOVA POLÍTICA / Augusto de Franco – São Paulo: 2012.

66 p. A4 – (Escola de Redes; 13)

1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.

Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e

à criação e transferência de tecnologias de netweaving.

http://escoladeredes.net

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SSuummáárriioo

Introdução | 9

Máquinas para privatizar a política | 11

Autocratizando a democracia | 16

Não-partidos | 20

Estado | 24

A nação como comunidade imaginária | 27

A falência da forma Estado-nação | 36

O reflorescimento das cidades | 40

As cidades na glocalização | 43

Comunitarização | 50

Cidades Inovadoras | 55

Notas e referências | 59

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IInnttrroodduuççããoo

FASCINANTE! Escolas, igrejas, partidos, Estados, empresas hierárquicas:

construímos tais instituições – que continuam reproduzindo o velho

mundo; sim, são elas que fazem isso – como artifícios para escapar da

interação, para ficar do “lado de fora” do abismo, para nos proteger do

caos...

As escolas (e o ensino) tentam nos proteger da experiência da livre

aprendizagem. As igrejas (e as religiões) tentam nos proteger da

experiência de deus. Os partidos (e as corporações) tentam nos proteger

das experiências da política (pública) feitas pelas pessoas no seu cotidiano.

Os Estados tentam nos proteger das experiências glocais (de localismo

cosmopolita). E as empresas (hierárquicas) tentam nos proteger da

experiência de empreender.

Por isso que escolas são igrejas, igrejas são partidos, partidos são

corporações que geram Estados, que também são corporações, que viram

religiões, que reproduzem igrejas, que se comportam como partidos...

Porque, no fundo, é tudo a mesma coisa: artifícios para proteger as

pessoas da experiência de fluzz (*). (Não é a toa que todas essas

instituições hierárquicas exigem “monogamia” dos que querem manter

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capturados, como se dissessem: “- Você é meu! Nada de transar com

estranhos”).

Uma vez desconstituídos tais arranjos feitos para conter, contorcer e

aprisionar fluxos, disciplinando a interação, uma vez corrompidos os

scripts dos programas verticalizadores que rodam nessas máquinas (e que,

na verdade, as constituem), o velho mundo único se esboroa.

Isso está acontecendo. Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não-

Estados-nações e não-empresas-hierárquicas começam a florescer. Com

tal florescimento, a estrutura e a dinâmica das sociosferas estão sendo

radicalmente alteradas neste momento, mas não por formidáveis

revoluções épicas e grandes reformas conduzidas por extraordinários

líderes heroicos, senão por pequenas experiências, singelas, líricas, vividas

por pessoas comuns! Aquelas mesmas experiências de interação das quais

fomos poupados. É como se tudo tivesse sido feito para que não

experimentássemos padrões de interação diferentes dos que deveriam ser

replicados. Mas nós começamos a experimentar. E “aqui estamos – como

escreveu Hakim Bey (1984) em Caos – engatinhando pelas frestas entre as

paredes da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monólitos

paranoicos”.

Neste texto vamos examinar os partidos e o Estado-nação para

contemplar as possibilidades do surgimento de uma nova política nos

novos mundos altamente conectados do terceiro milênio (**).

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MMááqquuiinnaass ppaarraa pprriivvaattiizzaarr aa ppooll ííttiiccaa

Os partidos são artifícios para nos proteger da experiência de política

pública

NO VELHO MUNDO FRACAMENTE CONECTADO as pessoas erigiam

corporações – grupos privados hierarquizados – para fazer valer seus

interesses. Simplesmente parecia ser a coisa “lógica” a ser feita em um

mundo regido pela “lógica” da escassez. Assim também surgiram os

partidos como um tipo especial de corporação: eles foram constituídos

para fazer prevalecer os interesses de um grupo sobre os interesses de

outros grupos e pessoas com base em (ou tomando como pretexto) um

programa, um conjunto de ideias a partir das quais fosse possível

conquistar e reter o poder para tornar legítimo o exercício (ilegítimo do

ponto de vista social, quer dizer, do ponto de vista das redes sociais

distribuídas) de comandar e controlar os outros.

Partidos são organizações pro-estatais. Não é a toa que decalcam o

padrão de organização piramidal do Estado. Mas, ao contrário do que se

pensa, os partidos vieram antes do Estado e nesse sentido são também

organizações proto-estatais. Os primeiros partidos foram religiosos: as

castas sacerdotais que erigiram o Estado.

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280

Sim, o Estado é, geneticamente, um ente privado. Estado como esfera

pública só surgiu (isso deveria ser uma obviedade, conquanto não soe

como tal) quando se constituiu uma esfera pública, com a invenção da

democracia. Antes disso – por três milênios ou mais – os Estados foram o

resultado da privatização dos assuntos comuns das cidades pelos

autocratas. E depois disso, por quase dois milênios, os Estados

continuaram sendo organizações privadas (só nos últimos dois ou três

séculos eles se constituíram, aqui e ali e, mesmo assim, em parte, como

instâncias públicas, mais ou menos democratizadas; embora

continuassem infestados por enclaves autocráticos privatizantes).

Os partidos são artifícios para nos proteger da experiência de política

pública. São um modo político de nos proteger da experiência de fluzz.

Para tanto – em um regime de monopólio (nas ditaduras) ou de oligopólio

(nas democracias formais) – eles privatizam a política pública. Sua

existência legal indica que as pessoas, como tais, não precisam fazer

política pública no seu cotidiano e na base da sociedade (nas suas

comunidades): alguém fará tal política por elas! Mesmo nas democracias

dos modernos entende-se que as pessoas não devem fazer política

pública, a menos que entrem em um partido: uma espécie de agência de

empregos estatais, uma organização privada autorizada a disputar com

outras organizações privadas congêneres o acesso às instituições estatais

reconhecidas legalmente como públicas e, portanto, encarregada com

exclusividade de fazer política pública. Enxugando de toda literatura

legitimatória as teorias liberais sobre o papel dos partidos na democracia,

o que sobra é mais ou menos isso aí.

Page 281: FLUZZ SÉRIE COMPLETA

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Ora, por mais esforço que se faça para justificar esse acesso diferencial ao

exercício da política pública, parece óbvio que o sistema de partidos

privatiza a política. Ao se conferir aos partidos – com exclusividade – o

condão de transformar politics em policy, as pessoas viram

automaticamente clientela do sistema.

As teorias liberais da democracia, é claro, não concordam com isso. Mas

as teorias liberais da democracia são próprias de um mundo de baixa

conectividade social, em que somente eram concebíveis as formas

políticas representativas de regulação de conflitos. Para os defensores

dessas teorias, só existem, basicamente, os indivíduos. E a democracia é,

via de regra, baseada em uma teoria das elites (mais Platão, menos

Protágoras). Sua análise é coerente com que eles pensam. E eles pensam

mais ou menos assim: é melhor o Estado-nação com todos seus enclaves

autocráticos – e, inclusive, é melhor o império – garantindo a ordem, do

que a barbárie da anarquia. No fundo essa é mais uma variação, em linha

direta, da visão hobbesiana. Abandonados à nossa própria sorte, sem

sermos domesticados por um poder acima de nós, nos engalfinharíamos

em uma guerra de todos contra todos. Então o Estado tem, para eles, um

papel civilizador (assim como, para alguns, também tem esse papel a

religião: pois se não houver um deus – dizem – tudo é permitido, tudo

seria possível em termos morais). O que se requer, apenas, é que esse

Estado seja legitimado pelos cidadãos em eleições limpas e periódicas e

que os governos eleitos respeitem as regras do direito (interpretadas

também, é claro, pelas tais “elites civilizadoras”).

Page 282: FLUZZ SÉRIE COMPLETA

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Essa é a visão da democracia dos modernos na sua versão liberal, baseada

no indivíduo. Mas tal visão não está mais adequada aos mundos

altamente conectados que estão emergindo. Por muitas razões (dentre as

quais a principal é que o indivíduo é uma abstração) a democracia não

pode ser o resultado de um pacto feito e refeito continuamente pelos

indivíduos que se ilustraram e que se comprometeram a manter uma

ordem capaz de garantir aos (e exigir dos) demais indivíduos que eles

continuem a conformar sua liberdade aos limites impostos pelos sistemas

de poder que formalmente permanecerem legitimados por eleições e

respeitarem as leis. Isso, é claro, deve ser garantido, mas não para ser

reproduzido indefinidamente como é e sim para possibilitar que os

cidadãos continuem - com liberdade - inventando novas formas de regular

seus conflitos.

Em mundos altamente conectados essa forma representativo-político-

formal da democracia (a democracia no sentido "fraco" do conceito: como

sistema de governo ou modo político de administração do Estado) deverá

dar lugar a novas formas mais substantivas e interativas (a democracia no

sentido "forte" do conceito, das pessoas que se associam para conviver

em suas comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem ou de

projeto).

A democracia no sentido “forte” do conceito é uma democracia

+democratizada, que recupera a linha da "tradição" democrática – uma

imaginária linhagem-fluzz – que começa com o “think tank” de Péricles –

do qual “participava”, entre vários outros, Protágoras –, passa por

Althusius (1603), por Spinoza (1670-1677) e pelos reinventores da

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democracia dos modernos, por Rousseau (1754-1762), por Jefferson

(1776) e por aquela “network da Filadélfia” que conectava os redatores

americanos da Declaração de Independência dos Estados Unidos e pelos

Federalistas (1787-1788), pelos autores europeus (desconhecidos) da

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), por Paine (1791),

por Tocqueville (1835-1856), por Thoreau (1849) e por Stuart Mill (1859-

1861), até chegar às formas radicais antecipadas pela primeira vez por

Dewey (1927-1939): a democracia na base da sociedade e no cotidiano do

cidadão, a democracia como expressão da vida comunitária (1). Esta

última será uma espécie de metabolismo das redes mais distribuídas do

que centralizadas, algo assim como uma pluriarquia.

É claro que os chamados cientistas políticos, em boa parte, não acreditam

nisso. O que não significa nada, de vez que não existe uma ciência política.

Se existisse uma ciência política, em qualquer medida para além de uma

ciência do estudo da política, não poderia haver democracia (pois neste

caso os governantes deveriam ser os cientistas e decairíamos na república

platônica dos sábios: uma autocracia). A despeito do que pensam os que

foram ordenados nas academias da modernidade para legitimar a política

realmente existente, há um argumento fatal contra suas (des)crenças: se a

democracia não pudesse ser reinventada novamente (pois ela já o foi uma

vez, pelos modernos) ela também não poderia ter sido inventada (pela

primeira vez, pelos atenienses).

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AAuuttooccrraattiizzaannddoo aa ddeemmooccrraacciiaa

É um absurdo pactuar que o acesso ao público só se dê a partir da guerra

entre organizações privadas

A DEMOCRACIA FOI A MAIS FORMIDÁVEL antecipação de uma época-fluzz

que já ocorreu nos seis milênios considerados de “civilização”. Foi uma

invenção fortuita e gratuita de pessoas que logrou abrir uma fenda no

firewall erigido para nos proteger do caos, para que não caíssemos no

abismo.

Na verdade as pessoas que inventaram a democracia não tinham a menor

consciência das implicações e consequências do que estavam fazendo.

Talvez tivessem motivos estéticos. Ou talvez quisessem, simplesmente,

abrir uma janela para poder respirar melhor. Em consequência, abriram

uma janela para o simbionte social poder respirar, sufocado que estava,

há milênios, em sociedades de predadores (e de senhores). Não é por

acaso que no primeiro escrito onde aparece a democracia (dos

atenienses) – em Os Persas, de Ésquilo (427 a. E. C.) – ela tenha sido

apresentada como uma realidade oposta à daqueles povos que têm um

senhor.

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285

Era tão improvável que isso acontecesse, na época que aconteceu, como

foi o surgimento e a continuidade da vida neste planeta, perigosamente

instável em virtude da composição atmosférica tão improvável que

alcançou. Com efeito, um gás instável (comburente), corrosivo e

extremamente venenoso como o oxigênio, que chegou a alcançar a

impressionante concentração de 20%, é uma loucura em qualquer

planeta: mas foi assim que o simbionte natural – essa surpreendente capa

biosférica que envolve a Terra – conseguiu respirar.

Do ponto de vista social, a democracia é um erro no script da Matrix. Não

se explica de outra maneira. Não era necessária. Nem foi o resultado de

qualquer “evolução” social. Não surgiu dos interesses privatizantes de

qualquer corporação. Surgiu em uma cidade no mesmo momento em que

nela se conformou um espaço público.

Isso significa que, geneticamente, a democracia é um projeto local e não

nacional. O grupo de Péricles (às vezes chamado indevidamente de

“partido democrático”) não foi constituído para tentar converter os

espartanos ou qualquer outro povo da liga ateniense à democracia (e nem

para empalmar e reter indefinidamente o poder em suas mãos, como

grupo privado) e sim para realizar a democracia na cidade, na base da

sociedade e no cotidiano do cidadão enquanto integrante da comunidade

(koinonia) política.

Foram os modernos que tentaram transformar a democracia em um

projeto inter-nacional (ou seja, válido para um conjunto de nações-

Estado). Mas ela só pode se materializar plenamente – como percebeu

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com toda a clareza John Dewey (1927) – no local: é um projeto vicinal,

comunitário, que tem a ver com um modo-de-vida compartilhado (2). E é

mais o “metabolismo” de uma comunidade de projeto do que o projeto

de alguns interessados em conduzir uma comunidade para algum lugar

segundo seus pontos de vista particulares ou para satisfazer seus

interesses (outra definição de partido).

A democracia surgiu como uma experiência de redes de conversações em

um espaço público, quer dizer, não privatizado pelo Estado (no caso,

representado pelos autocratas que governaram Atenas). Não teria surgido

sem a formação de uma rede local distribuída em Atenas e em outras

cidades que experimentaram a democracia. Quando surge, a democracia

já surge como movimento de desconstituição de autocracia e não como

modelo de sociedade ideal. As instituições democráticas foram criadas –

casuisticamente mesmo – para afastar qualquer risco de retorno ao poder

do tirano Psístrato e seus filhos a partir da experimentação de redes de

conversações em um espaço (que se tornou) público (3). Sim, público não

é um dado, não é uma condição inicial que possa ser estabelecida ou

decretada por alguma instância a partir ‘de cima’ (como uma norma

exarada ex ante pelo Estado-nação). Público é o resultado de um

processo. Só é público o que foi publicizado. Depois, é claro, pode-se

pactuar politicamente o resultado que se estabeleceu a partir do processo

social, gerando uma norma, sempre transitória, válida para o âmbito da

instância de governança vigente.

Mas não se pode pactuar que o acesso ao público só se dê a partir da

guerra (ou da política como continuação da guerra por outros meios – o

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287

que é mesma coisa) entre organizações privadas. Um pacto absurdo como

esse – baseado na perversa fórmule inversa de Clausewitz-Lenin (4) – é

contraditório nos seus termos e investe contra o próprio sentido de

público. Por isso, diga-se o que se quiser dizer, do ponto de vista da

democracia (uma realidade coeva à da esfera pública), partidos são

instituições contra-fluzz, regressivas na medida em que concorrem para

autocratizar a democracia.

Não é necessário argumentar muito para mostrar como tudo isso está no

contra-fluzz. Esse tipo de organização partidária e de regime

partidocrático a ela associado não tem muito a ver com a construção de

uma governança democrática e sim com a manutenção de uma

governabilidade autocrática, quer dizer, com a capacidade de manter as

regras de uma luta, de um combate permanente entre grupos privados,

assegurando que o vencedor tenha o direito de privatizar a esfera pública

de modo a prorrogar o seu poder sobre a sociedade (no fundo há sempre

uma disputa pelo butim, na base do spoil system). Tal como o Estado-

nação, partidos são instituições guerreiras: ainda quando não se

dediquem ao conflito violento, operam a política como arte da guerra,

como uma continuação da guerra por outros meios. Nesta exata medida,

são organizações antidemocráticas. Só pessoas tontas – e pelo visto destas

há muitas – podem acreditar que o resultado desse embate constante,

dessa interação adversarial permanente, conseguirá constituir um sentido

público (5).

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NNããoo--ppaarrttiiddooss

Redes de interação política (pública) exercitando a democracia local na

base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos

NADA DEVE IMPEDIR QUE PESSOAS se associem livremente para fazer

política pública. Se houver algo impedindo isso, então estamos em uma

autocracia ou em uma democracia formal de baixa intensidade,

fortemente perturbada pela presença de instituições hierárquicas que

deformam o campo social. Partidos são, obviamente, uma dessas

instituições, conquanto não consigam – na vigência de regimes

democráticos formais – impedir totalmente que as pessoas exerçam a

política; não, pelo menos, nos âmbitos de suas redes de relacionamento,

nos círculos com graus de separação mais baixos.

Dentro de certos limites – impostos pelo grau de autocratização das

democracias realmente existentes na atualidade – é possível democratizar

a política na base da sociedade, inventando e experimentando novas

formas de interação política realmente inovadoras. Nas autocracias isso

não é possível, razão pela qual as democracias formais – com suas

conhecidas mazelas e limitações – são infinitamente preferíveis a todas as

formas de regimes autoritários, por mais que se lhes tentem louvar as

supostas virtudes sociais. Essa nova política possível, entretanto, será

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necessariamente uma política pública, não de grupos privados de

interesses – ou não será de fato nova. Se tentarmos reeditar a disputa

adversarial de interesses de grupos privados, decairemos fatalmente na

velha política (6).

O simples fato de algumas pessoas já terem desistido dos partidos e

arregaçado as mangas para fazer o que acham que deve ser feito em suas

localidades – articulando redes de interação política (pública) e

exercitando a democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos

cidadãos – já é um sinal de que a dinâmica da sociosfera (em que

convivem) está sendo alterada.

Nos Highly Connected Worlds as pessoas (que quiserem) poderão

constituir não-partidos, comunidades políticas para tratar dos seus

assuntos comuns, regulando seus conflitos de modo cada vez mais

democrático ou pluriarquico. Isso significa que evitarão modos de

regulação de conflitos que produzam artificialmente escassez (como a

votação, a construção administrada de consenso, o rodízio e, até mesmo,

o sorteio), guiando-se – cada vez mais – pela “lógica da abundância”. É

claro que isso só se aplica em redes mais distribuídas do que centralizadas

e na medida do grau de distribuição e conectividade (quer dizer, de

interatividade) dessas redes.

Dizendo a mesma coisa de outra maneira: se você não produz

artificialmente escassez quando se põe a regular qualquer conflito, produz

rede (distribuída); do contrário, produz hierarquia (centralização).

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Os problemas que se estabelecem a partir de divergências de opinião são

– em grande parte – introduzidos artificialmente pelo modo-de-regulação.

E somente em estruturas hierárquicas tais problemas costumam se

agigantar a ponto de gerar conflitos realmente graves, capazes de

ameaçar a convivência. Porque nessas estruturas o que está em jogo não

é a funcionalidade do organismo coletivo e sim o poder de mandar nos

outros, quer dizer, a capacidade de exigir obediência ou de comandar e

controlar os semelhantes.

Quanto mais distribuída for uma rede, mais a regulação que nela se

estabelece pode ser pluriarquica. Uma pessoa propõe uma coisa. Ótimo.

Aderirão a essa proposta os que concordarem com ela. E os que não

concordarem? Ora, os que não concordarem não devem aderir. E sempre

podem propor outra coisa. Os que concordarem com essa outra coisa

aderirão a ela. E assim por diante.

Em redes distribuídas nunca se admite a votação como método de regular

majoritariamente qualquer dilema da ação coletiva. E quando houver

discordâncias de opiniões, como faremos? Ora, não faremos nada! Por

que deveríamos fazer alguma coisa? Viva a diversidade! Se você

estabelece a prevalência de qualquer coisa a partir da votação (ou de

outros mecanismos semelhantes de regulação de conflitos), cai em uma

armadilha centralizadora ou hierarquizante. Produz “de graça” escassez

onde não havia.

Vamos imaginar que exista alguém que não esteja muito contente com a

maneira como as coisas estão acontecendo em uma comunidade. O que

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essa pessoa pode fazer, além de externar sua opinião e colocá-la em

debate? Ora, no limite, essa pessoa descontente pode configurar uma

nova rede, se inserir em outra comunidade, ir conviver em outro mundo.

Como os mundos são múltiplos, ela não está mais aprisionada e não

precisa ficar constrangida a permanecer no mesmo emaranhado onde não

se sente confortável.

Evidentemente a pluriarquia não pode ser adotada em organizações

centralizadas, erigidas no contra-fluzz, como as escolas, as igrejas, os

partidos e as corporações. Com mais razão ainda não pode vigir nos

Estados e seus aparatos, que – mais do que organizações hierárquicas –

são troncos geradores de programas centralizadores.

A despeito disso, porém, não-partidos tendem a florescer nos mundos

altamente conectados que estão emergindo. Ignorando solenemente as

restritivas disposições estatais e as crenças religiosas (sim, religiosas,

mesmo quando travestidas de científicas) em uma suposta

competitividade inerente ao ser humano, difundidas pelas escolas e

academias, pessoas vão se conectando voluntariamente com pessoas para

tratar cooperativamente de seus assuntos comuns em todos os lugares,

sobretudo nas vizinhanças – conjuntos habitacionais, ruas, bairros – e nas

comunidades de prática, de aprendizagem e de projeto que se formam

nas cidades inovadoras que não querem mais permanecer eternamente

na condição de instâncias subordinadas ao Estado-nação.

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EEssttaaddoo

Um delírio de raiz belicista

AS PREFERÊNCIAS QUE LEVAM ALGUÉM a querer morar ou trabalhar em

Barcelona, São Francisco, Curitiba, Milão ou Genebra, não são, em geral,

relacionadas às características das nações que abrigam essas cidades e sim

à dinâmica singular que cada uma delas apresenta. Quem optou por

Barcelona, certamente não optaria genericamente pela Espanha. Quem

gosta de viver em São Francisco, frequentemente tem motivos muito

claros para não querer morar em outros lugares dos Estados Unidos.

Não é assim? Tanto faz morar em Curitiba ou Pernambuco, só porque

ambas estão no Brasil? Tanto faz morar em Milão ou Consenza, só porque

ambas estão na Itália? Tanto faz morar em Genebra ou Berna, só porque

ambas estão na Suíça? É claro que não! Há uma diferença de capital social

(ou seja, uma diferença de topologia e de conectividade, na estrutura e na

dinâmica, de suas redes sociais) entre essas cidades, que faz toda a

diferença em termos de condições e estilo de vida e convivência social.

O fato é que vivemos em cidades, moramos, estudamos, trabalhamos e

nos divertimos em localidades. Ninguém convive no país. A nação não é

uma comunidade concreta. É uma comunidade imaginária, de certo modo

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inventada e patrocinada pelo Estado e seus aparatos, inclusive pela

publicidade massiva das empresas estatais (que se enrolam nas bandeiras

nacionais para tentar estabelecer uma vantagem competitiva bypassando

o mercado ou para fazer propaganda dos governantes que nomearam

seus dirigentes). E a pátria (e o patriotismo), ou é a remanescência de um

delírio de raiz belicista (aquele mesmo que acompanhou a instalação

desse fruto da guerra chamado Estado-nação moderno) ou – para lembrar

a já batida sentença de Samuel Johnson (1709-1784) – é um refúgio de

canalhas (7) que se escondem por trás do nacionalismo para proteger

seus interesses ou levar vantagem sobre os concorrentes, em geral no

campo econômico, por certo, mas também no político.

Mas as profundas mudanças sociais que estão ocorrendo nas últimas

décadas estão criando condições favoráveis à independência das cidades

do ponto de vista do desenvolvimento local. Fala-se aqui – entenda-se

bem – das cidades como redes de múltiplas comunidades, e não

propriamente das instâncias locais do Estado (central ou regional), das

prefeituras e das outras instituições privatizadoras da política que querem

“representá-las” ou comandá-las.

O mundo humano-social, ao contrário do que pensam os governantes, não

é um conjunto de Estados, nações ou países. É uma configuração móvel e

complexa de infinidades de fluxos entre pessoas e grupos de pessoas,

agregadas, por sua vez, em múltiplos arranjos locais e setoriais: famílias,

vizinhanças, comunidades, cidades, regiões, organizações (dentre as quais,

algumas poucas – que não chegam a duas centenas – são Estados).

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Depois que se generalizou a forma Estado-nação, as cidades passaram a

ser localidades de um país (devendo-se entender por isso que elas

passaram a ser instâncias subnacionais). Para todos os efeitos, são

encaradas, pelos aparatos estatais que comandam os países, como

instâncias subordinadas (ordenadas a partir de cima). E conquanto

tenham alguma autonomia formal, figurando como sujeitos de pactos

federativos em muitas Constituições modernas, as cidades são realmente

subordinadas do ponto de vista político, jurídico, fiscal, energético,

econômico etc. Seu funcionamento depende, em grande parte, de

decisões tomadas sem a sua participação. Normas, repasses de recursos e

investimentos, são determinados por outras instâncias, de cima e de fora.

E na medida em que tudo isso gera dependência, não interdependência,

são construções contra-fluzz.

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AA nnaaççããoo ccoommoo ccoommuunniiddaaddee iimmaaggiinnáárriiaa

A nação não é uma comunidade concreta. É uma comunidade

imaginária, de certo modo inventada pelo Estado e seus aparatos

AS NAÇÕES SÃO APRESENTADAS como grandes comunidades, no sentido

alemão seiscentista do termo, ou naquele sentido, que lhe atribuía

Althusius (1603), da grande comunidade territorial de herança (8) e não

no sentido que lhe atribuímos hoje, da pequena comunidade como

cluster, de escolha de uma (“porção” da) rede social para conformar um

campo de convivência, em uma atividade compartilhada, de prática, de

aprendizagem ou de projeto. Dewey (1927) em “O público e seus

problemas”, faz uma correta distinção entre a grande comunidade e a

pequena comunidade do ponto de vista da democracia (substantiva) como

modo de vida comunitário. Não é na grande comunidade (nação) que essa

democracia pode se materializar plenamente e sim na pequena

comunidade local; para usar suas próprias palavras: “a democracia há de

começar em casa, e sua casa é a comunidade vicinal” (9).

Essas grandes comunidades-nacionais são, é claro, instituições

imaginárias. Como tal são abstratas. Ninguém convive ou interage

concretamente com a população de um país. Ser brasileiro, italiano ou

argentino não é, stricto sensu, pertencer a uma comunidade concreta,

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porquanto, para os nossos ‘compatriotas’ (e essa palavra já é horrível),

não estamos incluídos, como pessoas, no seu modo-de-vida, quer dizer,

não fomos voluntariamente aceitos e acolhidos por eles no seu campo de

convivência. Who cares? Somente comunidades humanas podem incluir

seres humanos, mas quem é incluído é sempre a pessoa com suas

peculiaridades e não o indivíduo como um número em uma estatística ou

uma variável censitária.

No entanto, para fazer parte da grande “comunidade” nacional basta

nascer naquele território delimitado como seu (a partir da conquista ou da

guerra) e, em geral, manter “laços de sangue” ou hereditários com os

nacionais (ou seja, trata-se do reconhecimento de uma herança genética,

condição a partir da qual – acredita-se, e não sem razão – a transmissão

não-genética de comportamentos que chamamos de cultura pode ser

viabilizada, inoculando-se tal cultura (como quem “carrega” um programa)

nos novos membros (descendentes dos nacionais), a partir da família e,

em seguida, da vizinhança, da escola, da igreja, das organizações sociais,

das empresas e das instituições nacionais estatais e não-estatais). Note-se

que essa identidade abstrata nacional é construída a partir de uma visão

de passado: origem comum (em geral forjada), raça (uma identificação

inconsistente do ponto de vista científico), língua, costumes, credos,

cultura enfim e história (escrita sempre da frente para trás) (10).

Percebe-se que não há aqui qualquer escolha humana. Não há

acolhimento (quer dizer, inclusão). Funciona mais ou menos assim como

na propriedade de um rebanho animal: as crias do gado pertencem

automaticamente ao dono da boiada, aumentam o número de cabeças do

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seu patrimônio. Pois bem. No caso do pertencimento à grande

“comunidade” nacional quem faz às vezes do dono é o Estado-nação.

É o Estado que interpreta o que é a nação. É o Estado que delimita quem

pode ou não pode ser incluído na nação e estabelece condições de

pertencimento ou inclusão. Mas o Estado não é uma comunidade e sim

um sistema de organizações que gera programas verticalizadores (ou,

talvez melhor, do ponto de vista da rede social, o inverso: uma matriz de

programas verticalizadores que gera um sistema de instituições), cuja

função precípua é obstruir, separar e excluir. A partir do monopólio

legalizado da violência, é o Estado que diz: isso você não pode fazer; por

tal ou qual caminho você não pode trafegar sem autorização; aqui você

não pode entrar ou daqui você deve sair. Ponha-se na rua, quer dizer, fora

do meu território!

Não importa se, por exemplo, uma comunidade concreta de espanhóis

queira acolher um africano, incluindo-o no seu campo de convivência para

a realização de um projeto comum. Se o africano em questão não atender

a certas condições e não preencher certos requisitos ditados pelo Estado,

nada feito. E mesmo que cumpra todas as exigências, ele sempre será, aos

olhos do Estado-nação espanhol, um estrangeiro, ou seja, um estranho,

alguém que deve ser impedido de circular livremente, separado dos

“verdadeiros” espanhóis e excluído de certos direitos – o principal dos

quais o de pertencer plenamente à comunidade política que define os

destinos coletivos dos espanhóis. Sim, será um excluído político porque

será – aos olhos da autocrática realpolitik estatal – sempre alguém cujo

modo-de-ser ameaça, independentemente do que faz ou venha a fazer,

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simplesmente por ser diferente, por ser um outro, o modo-de-ser

estabelecido como desejável pelo imaginário nacional historicamente

construído pelo mega-programa Estado e que é reinterpretado de tempos

em tempos pelos condomínios privados de agentes políticos – estes sim,

bem concretos – que assumem as funções de governo.

De certo ponto de vista, o que chamamos de Estado como fonte ou

geratriz de programas verticalizadores que “rodam” na rede social, faz

parte da ideologia dos governos. No que tange a função de legitimação

dessa ideologia, foi necessário promover uma fusão entre o Estado e a

nação. Sem isso o aparato hierárquico estatal não conseguiria infundir na

grande “comunidade” nacional as noções abstratas de identidade que

alimentam o aparato, para as quais o drive principal foi, invariavelmente, a

guerra (que permite a formação de identidade a partir do inimigo). Sim, os

Estados – qualquer Estado, inclusive a forma atual Estado-nação – são

frutos da guerra e se alimentam (internamente) do “estado de guerra” ou

(na fórmule inversa de Clausewitz-Lenin) da prática da política como uma

continuação da guerra por outros meios. São produtos, portanto, não da

cooperação (ou da amizade política) que supostamente aglutinaria a

nação – e de todo aquele blá-blá-blá da “vontade de viver juntos” – e sim

da competição (ou da inimizade política).

Por isso que todo Estado é hobbesiano. Todo Estado é fruto do realismo

político. Todo Estado é autocrático (inclusive naqueles que denominamos

de “Estados democráticos e de direito” os enclaves autocráticos são tão

onipresentes que a estrutura e a dinâmica da entidade como um todo não

podem acompanhar o comportamento democrático das sociedades que

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dominam). Ao criarmos a identidade imaginária “Atenas” para colocá-la

no lugar da identidade concreta “os atenienses”, já não estamos mais no

campo da democracia e sim no da autocracia. E os próprios gregos do

século de Péricles fizeram isso, quando se comportaram de modo a-

político no enfrentamento violento com outras cidades-Estado da região.

Não é a toa que os governantes vivem apelando para um sentimento

nacional. Falam da França, da América ou do Brasil como se essas

“entidades” existissem e tivessem vontade própria, a fim de extrair o

combustível do “fervor patriótico” para se manter no poder, para

reproduzir o sistema de instituições estatais que quer impor sua

legitimidade à sociedade com o fito de torná-la seu dominium (ao modo

feudal mesmo) e para continuar produzindo inimizade no mundo.

Ora, você pode dizer: eu não quero “viver junto” com quem eu não quero,

apenas pelo fato de ser brasileiro, na medida em que isso signifique “não-

querer viver junto” com um inglês pelo fato de ele ser inglês (e não

brasileiro). Por que deveria? Quem disse que somos inimigos? A quem

interessa manter esse tipo de rivalidade subjetiva? Do ponto de vista

genético – a ciência biológica já mostrou – somos mesmo, todos nós, uma

única grande família. Do ponto de vista cultural parece claro, a não ser

que nos deixemos intoxicar pela estiolante ideologia multiculturalista, que

culturas que não se polinizam mutuamente – por meio de saudável

miscigenação – tendem a apodrecer.

Não existe um Brasil, mas milhares, talvez milhões. Stricto sensu a “nação

brasileira” não é, nem nunca será, uma comunidade e sim uma interação

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de miríades de comunidades que falam a mesma língua (com vários

sotaques e regionalismos), têm alguns costumes parecidos (e muitos

costumes locais bem diferentes), várias histórias reais (e não apenas uma

única narrativa, como aquela que é ensinada nas escolas). A nação só é

una do ponto de vista das instituições estatais (por meio das quais se

materializam os poderes da República, as forças armadas, a moeda) e

daquilo que antigamente se chamava, de um jeito meio sem-jeito, de

“aparelhos ideológicos de Estado”. Além, é claro, do governo central, que

precisa espichar essa unidade para além da herança cultural.

Mas há uma idéia e, mais do que isso, uma prática de bando na raiz dessa

unidade. Como no surgimento da noção de cidadania (que nada tinha de

universal, pelo contrário), trata-se de proteger “os de dentro” contra “os

de fora”, impedir que eles – os outros – venham vender na nossa feira,

que concorram conosco em igualdade de condições, que adquiram nossas

terras, que roubem nossas riquezas naturais (que certamente o próprio

Deus nos concedeu, lavrando a escritura no cartório do céu: em nome do

Estado, é claro), que tomem nossos empregos, que exerçam plenamente a

cidadania política (disputando conosco o poder associado à

representação). Sim, é um sentimento de bando que se manifesta aqui,

justificado pelo pressuposto antropológico de que o ser humano, por

inerentemente competitivo, é hostil por natureza e que, portanto, os

seres humanos, deixados a si mesmos, como escreveu Hobbes (1651),

engalfinhar-se-iam em uma guerra de todos contra todos. Ah... A menos

que haja um Estado para impedir, entenda-se bem, não o conflito em si e

a guerra, mas o conflito no interior do próprio bando e a guerra entre “os

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de dentro”. Tudo isso, é claro, para poder promover o conflito e a guerra

com “os de fora”. Foi assim que nasceu o Estado, e inclusive, como já foi

assinalado, a forma atual Estado-nação e a ordem internacional do

equilíbrio competitivo.

Então, quando alguém fala do Brasil, ou em nome do Brasil, podemos

procurar que certamente vamos achar os interesses particularistas, bem

concretos, que se escondem sob essa “nacionalização” abstrata do

discurso. É alguém tentando se proteger do mercado. É alguém tentando

proteger a sua indústria ou o seu negócio. É alguém tentando se proteger

da concorrência comercial ou política. É alguém tentando proteger o seu

emprego. É alguém tentando proteger suas condições de vida. É alguém

tentando desqualificar os oponentes para ficar no poder. É alguém

tentando manter nas mãos do seu bando as instituições estatais que

aparelhou. É sempre alguém no contra-fluzz, tentando se proteger do

outro.

“O Brasil” é um construct. Se somos brasileiros, na maior parte do tempo,

nos nossos trabalhos, nos nossos estudos e pesquisas, nos nossos

relacionamentos, “o Brasil” não gera preferências significativas (11).

Na aceitação da legitimidade do outro e na sua incorporação em nosso

espaço de vida, não deveríamos dar a mínima se uma pessoa é brasileira,

italiana, argentina, francesa ou norte-americana. Qualquer preferência,

baseada nesses critérios, para acolher ou rejeitar uma pessoa em uma

comunidade, é uma canalhice. Sim, nunca é demais repetir o dito de

Johnson: “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. Uma pessoa

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decente não deveria se deixar drogar com esse tipo de ideologia que

obstrui, separa a exclui para atender a exigências hierárquicas que, ao fim

e ao cabo, são desumanizantes.

Nos últimos séculos o fervor patriótico que alimentava as “comunidades”

nacionais foi sendo obrigado a dividir espaço com o consumismo, apátrida

por natureza, internacionalizante, sim, mas não glocalizante. E não

necessariamente mais humanizante. Ocorre que o processo de

globalização (ou de planetarização) começou a quebrar as fronteiras

nacionais (aquelas que são vigiadas pelo Estado nacional) em todos os

campos, ensejando que culturas não-nacionais pudessem emergir das

múltiplas interações cruzadas de pessoas de diferentes nacionalidades.

Praticamente nenhum Estado-nação, nem mesmo o mais autocrático

deles, consegue mais fechar suas fronteiras, em termos culturais, isolando

seu “rebanho” do resto do mundo. A telefonia móvel e a Internet (a

despeito daquele vergonhoso acordo do Google com os ditadores

chineses, que não deve ser esquecido, conquanto o próprio Google tenha

sido levado a revê-lo, muitos anos depois) aceleraram esse processo. De

sorte que existe hoje um contingente crescente de pessoas que não estão

nem aí para identidades nacionais e que estão se inserindo em múltiplas

comunidades transnacionais, compostas por pessoas de várias

nacionalidades, a partir de suas próprias escolhas.

No segundo capítulo do seu excelente Transforming History intitulado

“Cultural History and Complex Dynamical Systems”, William Irwin

Thompson (2001), escreveu que “toda nossa matriz de identidade

baseada em uma cultura de desejo de compra econômica e fervor

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patriótico está mudando para uma nova cultura planetária...”. Mas em

seguida adverte que “explosões reacionárias [atuando “como a Inquisição

e a Contra-Reforma, que procuraram travar e reverter as forças

modernizadoras da Renascença e da Reforma”] podem prejudicar muito e

atrasar a transformação cultural por séculos a fio” (12).

Pois é precisamente neste ponto de bifurcação que nos encontramos hoje.

Todavia, para além, talvez, do que avalia Thompson, não são apenas “o

fundamentalismo religioso e as reações terroristas nacionalistas da direita

à planetização” (13) que estão tentando enfrear a emergência de uma

nova identidade transcultural. Hoje o próprio conceito de nação,

interpretado e materializado por uma forma já decadente de Estado – o

Estado-nação e as ideologias nacionalistas nele inspiradas ou por ele

infundidas na sociedade – constitui um obstáculo à transição histórica

atualmente em curso (cujo sentido é a glocalização).

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AA ffaallêênncciiaa ddaa ffoorrmmaa EEssttaaddoo--nnaaççããoo

A maior parte dos Estados-nações não deu certo

DO PONTO DE VISTA DO ‘DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE’ – para

usar a feliz expressão de Amartya Sen (2000) –, é forçoso reconhecer que

a imensa maioria dos Estados-nações do mundo não deu muito certo (14).

O chamado mundo desenvolvido restringe-se a uma lista que não chega a

três dezenas de países: quer se considere o desenvolvimento humano

medido pelo IDH – Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD, quer se

considere o desenvolvimento econômico, medido pelo CGI – Índice de

Competitividade Global do Fórum Econômico Mundial, quer se considere

o desenvolvimento tecnológico e a sintonia com as inovações

contemporâneas, medido pelo IG – Índice de Globalização, da AT

Kearney/Foreign Policy. Desenvolvidos (nesses três sentidos) são os países

que apresentam IDH igual ou superior a 0,9, CGI maior ou igual a 4,6 e que

figuram nos primeiros vinte ou trinta lugares da lista do IG, daqueles que

têm ambientes mais favoráveis à inovação.

Um cruzamento desses três índices revela a lista – aborrecidamente

previsível – dos países que deram certo. Pasmem, mas são menos de 30!

Em ordem alfabética (em dados do final da década passada): Alemanha,

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Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Coréia do Sul, Dinamarca, Espanha,

Estados Unidos, Finlândia, França, Holanda, Hong Kong, Irlanda, Islândia,

Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino

Unido, Cingapura, Suécia e Suíça. (A essa lista poder-se-ia, com boa

vontade, acrescentar mais alguns, como, por exemplo – e entre outros –, a

República Checa, a Estônia, a Eslovênia e, na América Latina, o único

candidato de sempre: o Chile).

Significativamente, a imensa maioria dos países dessa lista dos mais

desenvolvidos tem regimes democráticos. Significativamente, também,

não figuram nessa lista dos mais desenvolvidos: i) países com regimes

ditatoriais, ainda que apresentem altos índices de crescimento econômico

(como China ou Angola); ii) protoditaduras (como Rússia ou Venezuela); e,

nem mesmo, iii) democracias formais parasitadas por regimes

neopopulistas manipuladores (como Argentina e outros países da América

Latina).

Em outras palavras, do ponto de vista do ‘desenvolvimento como

liberdade’, os Estados-nações existentes no mundo atual, em sua maioria,

não são instâncias benéficas.

Os números são assustadores. Em dados de 2011: entre 51% (Democracy

Index 2011 Economist Intelligence Unit) e 57% (Freedom in the World

2012) da população mundial (quase 4 bilhões de pessoas) não vivem em

regimes free. O que é mais assustador? Esta porcentagem já foi menor!

(15).

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Quase quatro milhões de seres humanos (a maioria da humanidade) não

têm plena liberdade para criar, para inventar, para inovar, para se

desenvolver e para promover, com alguma autonomia, o desenvolvimento

das localidades onde vivem e trabalham. E não há qualquer processo

“natural”, de “evolução”, sempre ‘para frente e para o alto’, como

imaginam alguns crédulos. Em 1975, 30 nações tinham governos eleitos

pela população. Em 2005, esse número tinha subido para 119 (16). Mas

nos últimos anos o crescimento da democracia e da liberdade política está

sofrendo forte desaceleração e isso não tem a ver somente com o

requisito democrático da eletividade, mas, sobretudo, com o da

rotatividade (ou alternância), para não falar dos outros princípios (como a

liberdade, a publicidade, a legalidade e a institucionalidade e, como

consequência de todos esses, a legitimidade).

Bem mais da metade dessas pessoas vivem em cidades que poderiam “dar

certo”, não fosse pelo fato de estarem subordinadas a Estados-nações que

sufocam seu desenvolvimento. Sim, 87% dos Estados-nações do globo não

podem ser considerados desenvolvidos dos pontos de vista humano,

social e científico-tecnológico. No entanto, nesses 168 países “atrasados”

(por assim dizer) e com poucas chances de se inserir adequadamente na

contemporaneidade, existem milhares de cidades promissoras, que

caminhariam celeremente para alcançar ótimas posições nos rankings da

inovação e da sustentabilidade, bastando para tanto, apenas, que

lograssem se libertar do jugo dos países – das estruturas centralizadoras

dos governos centrais e dos outros aparatos de controle e dominação dos

Estados-nações – que as estrangulam.

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307

O fato é que o Estado-nação não é boa instância – e não é uma boa

fórmula política – do ponto de vista do desenvolvimento.

As cidades, pelo contrário, sempre o foram, pelo menos até agora. E não

há nenhuma razão pela qual as cidades devam continuar mantendo uma

atitude genuflexória em relação ao Estado-nação, a não ser a

concentração de poder nas instâncias nacionais, inclusive o poder de

retaliação dos governos e legislativos centrais. Os prefeitos, como se diz,

andam de “pires na mão” e ajoelham-se perante os executivos nacionais,

em parte porque dependem de recursos que foram centralizados pelas

instâncias nacionais e, em parte, porque têm medo de serem

discriminados e perseguidos – o que, convenha-se, é um motivo odioso e

antidemocrático. Mas isso acontece porquanto suas cidades não estão

preparadas para enfrentar os desafios de caminhar com as próprias

pernas.

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308

OO rreefflloorreesscciimmeennttoo ddaass cciiddaaddeess

Cidades transnacionais, cidades-pólo tecnológicas, redes de cidades e

cidades-redes

NÃO É POR ACASO QUE AS CIDADES sempre estiveram na ponta da

inovação, seja no aspecto social e político, como a Atenas no século de

Péricles (ou, mais amplamente, no período considerado democrático: 509-

322 antes da Era Comum), seja no aspecto econômico e científico-

tecnológico, como Bruges (no final do século 12), pólo da nascente ordem

comercial moderna, logo seguida por Veneza, que foi, talvez, o primeiro

centro globalizado da Europa (do final do século 14 até o ano de 1500), ou

Antuérpia (na primeira metade do século 16) e depois Gênova (na

segunda metade), que se tornaram centros financeiros, seguidas por

Amsterdã (na passagem do século 17 para o 18), ou por Londres, que se

transformou na primeira democracia de mercado e onde o valor agregado

industrial, impulsionado pelo vapor, ultrapassou, pela primeira vez na

história, o da agricultura, ou por Boston (no início do século 20), com a

fabricação de máquinas, passando a Nova Iorque que predominou

durante quase todo o século passado, com o uso generalizado da

eletricidade e chegando, afinal, à Califórnia atual, com Los Angeles e às

cidades do Vale do Silício.

Page 309: FLUZZ SÉRIE COMPLETA

309

Hoje o dinamismo das cidades inovadoras já se vê por toda parte.

Frequentemente não são mais os países (Estados-nações) que constituem

referências para o desenvolvimento e sim as cidades, sejam cidades

transnacionais (Barcelona, Milão, Lion, Roterdã), sejam cidades-pólo

tecnológicas (Omaha, Tulsa, Dublin e, talvez, Bangalore e Hyderabad, no

chamado terceiro mundo), sejam, por último, as coligações de numerosas

cidades em extensas regiões do planeta, que começam a adotar uma

lógica própria e diferente daquela do Estado-nação.

Na verdade, cidades que se afirmaram como unidades econômicas – não

necessariamente políticas – relativamente autônomas, já vêm surgindo ao

longo dos últimos séculos (como Veneza e outros centros mais ao norte da

Europa: e. g., Riga, Tallin e Danzig). São prefigurações do que Kenichi

Ohmae (2005) chamou de ‘Estado-região’, que constitui hoje o palco

privilegiado da economia global e que está levando a “um inevitável

enfraquecimento do Estado-nação em favor das regiões” (17).

Algumas dessas regiões, que tendem a substituir o Estado-nação, são

coligações de cidades (como a área metropolitana de Shutoken, formada

por Tóquio, Kanagawa, Chiba e Saitama, com um PNB de 1,5 trilhão de

dólares; ou a área de Osaka, com 770 bilhões, em dados de 2005). Parece

óbvio que essas regiões, que representam unidades econômicas mais

pujantes do que a imensa maioria das nações do mundo, figurando então

(2005) em terceiro e o sétimo lugares, respectivamente, no ranking

mundial, mais cedo ou mais tarde, entrarão em choque com o

centralizado sistema político do velho Estado-nação japonês, que não lhes

permite uma dose de autonomia correspondente ao seu peso econômico.

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310

Ainda que algumas dessas regiões emergentes coincidam com pequenos

países (como Irlanda, Finlândia, Dinamarca, Suécia, Noruega e Cingapura),

em geral elas se formarão a partir do protagonismo de cidades e

desenharão uma nova configuração geopolítica do mundo. Ou seja, ao

que tudo indica, a estrutura e a dinâmica do Estado-nação não serão

preservadas, a não ser em alguns casos.

Mas quer falemos de Bangalore e Hyderabad, quer falemos de Dalian ou

da ilha de Hainan na China, ou, quem sabe, de Vancouver e da British

Columbia, da Grande São Paulo ou de Kyushu no Japão – mesmo em um

sentido predominantemente econômico quantitativo, como o empregado

por Ohmae – ainda estamos falando de cidades (ou de arranjos de

cidades).

Sim, continuamos falando de cidades. E é por isso que, nos exemplos

colhidos na história e nas nossas tentativas de projeção para as próximas

décadas, não aparecem, em maioria, as capitais dos países, as localidades-

sedes dos seus governos centrais. Falamos de Milão e não da Itália (ou

Roma). Falamos de Bangalore e não da Índia (ou Nova Delhi). Os que

falam da Índia (e do Brasil e da Rússia e da China – repetindo a ilusória

hipótese dos BRICs, inventada por Jim O’Neill) são aqueles autores,

professores, consultores e policymarkers intoxicados de ideologia

econômica e siderados pelo crescimento (ou expansão, mudança

quantitativa) e não pelo desenvolvimento (mudança qualitativa). Com

frequência são também pessoas que não se dão muito bem com a idéia de

democracia.

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311

AAss cciiddaaddeess nnaa ggllooccaalliizzaaççããoo

Estados são artifícios para proteger as pessoas da experiência do

localismo cosmopolita

O REFLORESCIMENTO DAS CIDADES – na verdade, das localidades em

geral – é uma das consequências do processo de glocalização atualmente

em curso. O mundo não está apenas se globalizando, mas também se

localizando cada vez mais. Isso quer dizer, em outras palavras, que o

mundo único está desparecendo para dar surgimento a muitos mundos.

E está havendo uma mudança social que favorece o florescimento das

localidades em geral – e das cidades em particular – como protagonistas

do desenvolvimento. Essa mudança, que está ocorrendo simultaneamente

na dimensão global e na dimensão local, está tornando inadequada,

insuficiente e impotente, a forma Estado-nação. O tão citado juízo do

sociólogo americano Daniel Bell parece ser definitivo: o velho Estado-

nação tornou-se não só pequeno demais para resolver os grandes

problemas, como também grande demais para resolver os pequenos.

Em outras palavras, as inovações (sociais, políticas, culturais e

tecnológicas) introduzidas com o atual processo de glocalização, têm

surgido simultaneamente na dimensão global (como resultado de

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312

mudanças sociais macroculturais) e na dimensão local (como resultado de

mudanças sociais na estrutura e na dinâmica de comunidades).

Entretanto, o Estado-nação tornou-se uma instância intermediária

resistente a tais mudanças. Ou seja, a mudança que tem ocorrido nas duas

pontas – no global e no local – ainda não atingiu plenamente o meio, a

forma Estado-nação, que, sentindo-se ameaçada, está resistindo

ferozmente para não ser desabilitada como fulcro do sistema de

governança. A primeira década do terceiro milênio pode ser caracterizada

como uma década de crise do Estado-nação e de consequente

recrudescimento do estatismo.

Os Estados-nações criarão, por certo, muitos obstáculos à emergência das

cidades como sujeitos autônomos do seu próprio desenvolvimento. Mas

não conseguirão resistir por muito tempo à convergência de múltiplos

fatores que estão preparando o seu declínio. Como previu Castells (1999),

“as estratégias do Estado-nação para aumentar a sua operacionalidade

(através da cooperação internacional) e para recuperar sua legitimidade

(através da descentralização local e regional) aprofundam sua crise, ao

fazê-lo perder poder, atribuições e autonomia em benefício dos níveis

supranacional e subnacional” (18).

Nenhum Estado hoje consegue mais se livrar dos conflitos com seus níveis

subnacionais, diante das exigências crescentes de mais autonomia local.

Mas a despeito de todos os conflitos políticos e fiscais entre diferentes

níveis de governo dentro de um mesmo Estado, que só tendem a se

aprofundar e generalizar nos próximos anos, nunca é demais repetir que

se fala aqui das cidades como redes de múltiplas comunidades

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313

interdependentes e não da réplica Estatal montada nas cidades, da

instância municipal do Estado ou do governo local.

Os que preconizam o declínio do Estado-nação diante dos novos arranjos

locais ou regionais que emergem no mundo globalizado, fazem-no quase

sempre de um ponto de vista estrita ou predominantemente econômico.

É o caso, por exemplo, de Ohmae (entre outros). Mas é preciso ver que o

fenômeno da glocalização é mais abrangente e não pode ser plenamente

captado pelo olhar econômico. Estamos diante de mudança sociais mais

profundas, que dizem respeito aos padrões de vida e de convivência social

e não apenas diante de alterações na estrutura e na dinâmica do capital e

do capitalismo. O que está mudando não é somente o modo de produzir e

consumir e sim o modo de ser coletivamente. ‘Uma sociedade-rede está

emergindo’ – muitos repetem o dito, mas parecem não extrair dele todas

as consequências e essa surpreendente afirmação vai se tornando banal.

O problema com a visão econômica é que ela é reducionista. Imagina que

a configuração do mundo depende do modo de produção e, assim, se

esforça para antecipar a nova forma do capitalismo que virá (ou

sobrevirá), mas se esquece de perguntar sobre a nova forma de sociedade

que emergirá. Isso talvez seja uma evidência da resiliência da crença

economicista de que existe alguma coisa como uma “estrutura”

econômica que determina, em alguma medida ou instância, uma suposta

“superestrutura” da sociedade.

Mas mercados não vêm de Marte. Constituem um tipo de agenciamento

operado por seres humanos, terráqueos mesmo, cujo comportamento

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314

depende das interações que efetivam com outros seres humanos; ou seja,

tudo isso depende do “corpo” e do “metabolismo” da sociedade (i. e., de

sociosferas), vale dizer, da rede social.

Não é nas novas formas econômicas que vamos encontrar o “mapa” das

novas cidades. Esse “mapa” não poderá ser outra coisa senão as novas

configurações das redes que configuram a cidade-rede. Tivemos até agora

vários tipos de “mapas”, dos quais podemos citar alguns exemplos: as

cidades-assentamento “horizontais” que se formaram após o final do

período neolítico na Europa Antiga e no Oriente Médio (como Jericó, a

partir, talvez, do 6º milênio a. E. C.); as cidades-Estado da antiguidade (as

cidades monárquicas, muradas e fortificadas, que surgiram na

Mesopotâmia a partir do 4º milênio, como Uruk, Ur, Lagash etc., e que se

replicaram no período considerado civilizado); as cidades – burgos –

organizadas em torno do comércio nos períodos feudais; uma grande

variedade de cidades correspondentes aos Estados principescos e reais;

até chegar às cidades como instâncias subnacionais (ou domínios do

Estado-nação). E tivemos também algumas exceções, como Atenas – a

polis do período democrático – e outras poleis na Ática. São exceções

porque a polis grega democrática não era propriamente uma cidade-

Estado semelhante às suas contemporâneas e sim uma comunidade

(koinonia) política. Por último, ao que parece, teremos agora, no ocaso do

Estado-nação, novos tipos de cidades: as cidades-redes (e as redes de

cidades configurando novas regiões).

Ao que parece, não é muito útil tentar pegar no passado um modelo como

prefiguração para explicar o fenômeno atual da emergência da cidade-

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315

rede. Assim como a globalização da época das navegações não diz muita

coisa sobre a globalização atual, também não teremos um novo

venezianismo (por exemplo, não tivemos um novo brugesismo – de

Bruges – a não ser o próprio venezianismo, o original, dos séculos 14 e 15).

Não teremos novas “ligas hanseáticas”, nem um neo-antuerpismo ou um

neogenovismo; assim como nenhum país ou região poderá cumprir no

mundo atual o papel que foi desempenhado, em suas épocas, por

Amsterdã, Londres, Boston, Nova Iorque ou Los Angeles e adjacências.

Por quê? As explicações são várias: porque a ordem comercial

contemporânea não tem mais mono-pólos (como foram Bruges e Veneza),

de vez que a globalização hoje é policêntrica; porque o capital financeiro

transnacional não exige mais centros fixos (como a Antuérpia ou a Gênova

do século 16); porque as chamadas democracias de mercado não

precisam estar mais ancoradas em impérios militares (como a Inglaterra

dos séculos 18 e 19); porque as “máquinas que fabricam máquinas” da

nova indústria do conhecimento não requerem mais uma infra-estrutura

tão pesada que só possa ser reunida em uma localidade com alta

capacidade hard instalada (como Boston, nos Estados Unidos no início do

século 20); porque o acesso à eletricidade é praticamente universal (e a

conexão banda larga segue o mesmo caminho) e a energia e a inteligência

não precisam estar mais espacialmente tão concentradas (como estiveram

em Nova Iorque ou em Los Angeles e nas cidades do Vale do Silício

durante o século 20).

Não é o mercado que determina. Não é o Estado que decide. São os

fenômenos que ocorrem na intimidade da sociedade e que têm a ver com

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316

o grau de conectividade e de distribuição da rede social que acarretam a

estrutura e a dinâmica dos novos agrupamentos humanos que se

estabelecem sobre o território e, inclusive, daqueles que não estão

estabelecidos sobre um território (como os agrupamentos virtuais). É claro

que o mercado pode induzir e o Estado pode restringir (em geral

colocando obstruções) as fluições que configuram a forma e o

funcionamento das sociedades. Mas nenhum desses tipos de

agenciamento pode determinar o que acontece.

O problema do Estado – dos pontos de vista da democracia e do

desenvolvimento (ou da sustentabilidade) – não é que ele se assenta

territorialmente e sim que ele se constitui como um mainframe de

programas verticalizadores. A Matrix como mainframe, do filme dos

irmãos Wachowski, não precisava se assentar em um território

determinado para executar o seu papel verticalizador. Aliás, no filme, o

centro de vida alternativa e de resistência ao poder vertical – Zion – era

territorialmente (e mais do que isso, subterraneamente) situada,

enquanto que a Matrix era virtual, ou melhor, virtualizante...

O territorial não leva necessariamente à verticalização (ou centralização),

nem o virtual nos salva da dominação do poder vertical. Porque as

disposições que configuram o que se manifestará no mundo físico ou no

mundo virtual estão no espaço-tempo dos fluxos e não no espaço-tempo

físico ou no chamado mundo digital (19). Mas o agarramento ao território,

esse agrilhoamento tamásico contra-fluzz – posto que estabelecido para

tentar impedir a vida nômade das coisas – tem sido fonte, em grande

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317

parte, do poder de separar os seres humanos: uma tentativa de matar no

embrião o simbionte social.

Os Estados foram erigidos para nos proteger da experiência do localismo

cosmopolita, uma experiência glocal. Sob seu domínio, uma pessoa não

pode ser cidadã do seu próprio mundo e não pode interagir livremente

com outros mundos. Não, ela deve ser aprisionada no mundo único que

foi territorialmente repartido por organizações erigidas em função da

guerra e separadas por fronteiras, fechadas e burras. Em geral não pode

atravessar essas fronteiras sem a permissão do poder estatal. Em uma

parte dos casos, o poder estatal não concede tal licença a seus súditos,

trancafiando-os no próprio território-penitenciária, como se tivessem sido

condenados por algum crime gravíssimo. Em outra parte dos casos, não

deixa entrar (ou cria toda sorte de empecilhos para a entrada) em seus

territórios de certas categorias de estrangeiros.

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CCoommuunniittaarriizzaaççããoo

As novas Atenas serão zilhões de comunidades

ECOANDO O OPERATING MANUAL FOR SPACESHIP EARTH de Buckminster

Fuller (1968), McLuhan (1974) afirmou que “a espaçonave Terra não tem

passageiros, só tripulação” (20). Como poderíamos considerar alguém

“estrangeiro” se pertencemos todos à mesma família (em termos

genéticos, praticamente toda a população da Terra é prima em um grau

inferior ao 50º), habitando um planeta tão minúsculo, no qual somos

todos tripulantes (quer dizer, todos nós somos o pessoal necessário para o

bom funcionamento da nave)?

Na modernidade, em um padrão descentralizado, 193 Estados-nações

impõem modelos autocráticos de governança baseados no equilíbrio

competitivo. A ilusão (e a impostura) de que sete bilhões de pessoas

possam ser administradas por menos de duzentas unidades centralizadas

– e, em grande parte (a maior parte) autocratizadas – é aceita como se

fosse normal. Como se fosse possível disciplinar toda a diversidade da

interação ensejada por bilhões de interworlds em duas centenas de

organizações, em sua ampla maioria, capengas, autoritárias e corruptas,

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319

controladas por grupos privados que satisfazem seus interesses à custa do

público, quando não por sociopatas, ladrões e facínoras de todo tipo.

Tudo indica que não poderemos mais ser arrebanhados e aprisionados ou

dominados por 193 organizações hierárquicas, eivadas de enclaves

autocráticos resilientes – constituídos como barreiras, para tentar obstruir

fluzz –, como são os Estados nações da atualidade. Nem por algumas

dezenas ou centenas de milhares de Estados-locais (ou instâncias locais de

um Estado central) chamados de cidades (indevidamente, posto que a

cidade são sempre redes de comunidades). As novas Atenas serão zilhões

de comunidades.

Comunitarização é a nova palavra de des(ordem), quer dizer, de uma nova

ordem emergente, bottom up. O reflorescimento das cidades é um

sintoma do fortalecimento das comunidades que as constituem. São essas

comunidades que comporão outras unidades celulares da nova

arquitetura de governança do mundo glocalizado. É por isso que as

cidades (e as coligações de cidades em novas regiões econômicas e

geopolíticas) – e não mais, em geral, os Estados-nações – são hoje

instâncias intermediárias nessa transição para outra etapa do sistema

global, no rumo da efetivação de uma verdadeira ecumene planetária.

Mas – repetindo o mantra – o modelo é fractal e não unitário. Isso

significa duas coisas. No plano global, uma ecumene planetária não poderá

ser uma réplica global do Estado-nação; nada assim tão monstruoso como

um governo mundial ou um parlamento mundial, que apenas transferiria,

para o seu interior, o modelo perverso de equilíbrio competitivo ainda

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320

reinante no cenário internacional. Tal ecumene, não será uma

administração, um sistema executivo de comando-e-controle, nem

mesmo uma grande instância de representação baseada na alienação da

autonomia das localidades ou comunidades que a constituem. Ela se

formará por emergência, tal como ocorre na regulação da capa biosférica

que envolve o planeta (o simbionte natural). E, no plano local, a

identidade da cidade-rede também se forma por emergência, na sinergia

de múltiplas identidades que, ao se identificarem entre si, também se

identificam com ela (ou parte dela) por herança ou projeto compartilhado

a posteriori, e não por uma decisão consciente (e a priori) de algum centro

diretor ou coordenador.

Cada cidade tem muitas comunidades (ou seja, em princípio, cada cidade

pode ter múltiplas identidades). Cada comunidade se desdobra, por sua

vez, em muitas outras comunidades (aumentando ainda mais a

diversidade das identidades). Isso poderia ser um problema, porque, a

rigor, uma comunidade nuclear de convivência cotidiana com grau

máximo de distribuição e conectividade, capaz de ensejar pleno

relacionamento entre todos os seus membros (e, consequentemente,

usinar uma identidade inequívoca) é uma rede muito pequena, não

chegando, talvez, a duas centenas de pessoas. Só não estamos diante de

um problema insolúvel porquanto há também muita superposição. Uma

pessoa participa ao mesmo tempo de várias comunidades desse tipo

(familiar, funcional, de prática, de aprendizagem, de projeto etc.) e não

está condenada a conviver em um único círculo restrito de

relacionamentos. Assim, o padrão de interação é complexo, dando

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margem à formação de circularidades inerentes que – se compartilhadas

por múltiplas redes urbanas – podem configurar a cidade-rede.

Ademais, as cidades já existem, para além de eventos sócio-territoriais,

geograficamente localizados, como “regiões” do espaço-tempo dos fluxos.

Não se trata de fabricar novas cidades, seguindo um projeto, uma planta,

uma maquete. Toda vez que se tenta fazer isso, aliás, os resultados são

péssimos: criam-se arquiteturas verticalizadoras e dinâmicas

autocratizantes (como é o caso das chamadas “cidades-planejadas”, seja a

nova capital do Egito criada por Amenófis IV para o deus Aton ou Brasília),

para não falar do dispêndio desnecessário de recursos. Verdadeiras

cidades só passarão a existir (em termos sociológicos, por assim dizer),

várias décadas depois da instalação dessas experiências arquitetônicas e

de planejamento urbano de eternos “aprendizes de feiticeiros”, que

retornam de tempos em tempos. Padrões de comportamento social

peculiares já se reproduzem nas cidades por efeito de herança cultural, às

vezes milenar e isso não pode ser substituído por iniciativas conscientes

de um número limitado de planejadores urbanos, mesmo quando estão

imbuídos das melhores intenções.

Assim como não se trata de planejar novas cidades (como complexos

urbanos instalados ex ante à dinâmica social), também não se trata – na

recusa à verticalização do mundo imposta pelo Estado e à chamada

“sociedade de controle” – de urdir novas comunidades a partir de um

plano de um grupo privado. Grupos marginais, muitas vezes com forte

potencial transformador – pois que a inovação, na razão direta do grau de

conectividade e distribuição das redes sociais, costuma partir da periferia

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do sistema e não do centro – surgem mesmo nos momentos de crise dos

velhos padrões de ordem.

Mas o que não se pode pretender é constituir comunidades desse tipo

como proposta política para estabelecer um caminho de mudança,

forjando estudadamente uma identidade e buscando ganhar almas por

meio do proselitismo ou da aplicação de outros programas proprietários.

Comunidades se formam a partir de identidades, é certo. Mas identidades

também são programas que “rodam” em redes sociais. Ora, programas

que podem favorecer a emergência das cidades como protagonistas do

desenvolvimento são programas de capital social. E capital social é um

bem público.

Em uma sociedade em rede não é privatizando capital social que vamos

conseguir contribuir para a emersão de uma nova esfera pública (social)

nas cidades ou localidades, capaz de substituir a limitada esfera pública

atual, contraída pela invasão dos programas proprietários do Estado-

nação (que, ao contrário do que se afirma, são privatizantes e quase

sempre desestimulam ao invés de induzir o desenvolvimento).

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CCiiddaaddeess iinnoovvaaddoorraass

Cidades inovadoras – como redes de comunidades – em rota de

autonomia crescente em relação aos governos centrais que as tinham

por seus domínios

NAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES MOLECULARES – aquelas que têm

consequências duradouras – o velho é substituído pelo novo não porque

foi destruído, mas porque se tornou obsoleto. Os velhos padrões nunca

são eliminados de uma vez ou para sempre, mas continuam existindo,

como remanescências, vestigialmente. Ao que tudo indica, os Estados-

nações continuarão existindo por muito tempo, assim como ainda existem

hoje algumas comunidades de herança (do tempo medieval) e velhas

tribos indígenas primitivas (da era paleolítica). Ao contrário do que

previram os críticos da globalização, apavorados ante a perspectiva de

uma uniformização ou homogeneização que seria imposta ao mundo

inteiro, o cenário da glocalização é o de um conjunto de mundos variados,

que estarão não apenas em locais diversos, mas também em tempos

diferentes. Mas nessa nova configuração os Estados-nações não terão

mais o protagonismo, hoje quase único e exclusivo, da governança do

desenvolvimento, baseado nos monopólios da regulação e da violência

que ainda se esforçam por deter em suas mãos. Sim, os Estados-nações

continuarão existindo, mas já terão perdido o monopólio da governança

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do desenvolvimento, pelo simples fato de que não conseguirão mais

impedir a emergência da inovação.

Na verdade, em uma sociedade em rede é muito difícil construir

monopólios de um novo fator cada vez mais decisivo nos processos de

produção e de regulação: o conhecimento. O conhecimento é um bem

intangível que, se for aprisionado (estocado, protegido, separado),

decresce e perde valor e, inversamente, se for compartilhado (submetido

à polinização ou à fertilização cruzada com outros conhecimentos) cresce,

gera novos conhecimentos e aumenta de valor (aliás, é isso, precisamente,

o que se chama de inovação). Os Estados e as empresas tradicionais

(sempre associados nessa coligação que formou o capitalismo que

conhecemos) continuarão tentando aprisionar o conhecimento ou regulá-

lo top dow a partir das leis de patentes, do domínio privado sobre

produtos do conhecimento (como o direito autoral), do segredo e da falta

de transparência (ou accountability) e dos sistemas de ensino (as

burocracias escolares e as hierarquias sacerdotais que constituem as

academias). Mas não poderão mais evitar que novos conhecimentos se

formem à margem das instituições que regulam e à sua revelia. E, o que é

mais importante, não poderão mais competir com a produção em larga

escala de conhecimentos e, inclusive (uma consequência), de produtos

comerciais – como os chamados peer production e crowdsourcing – e com

as outras formas não-mercantis de inovação, como as que serão acionadas

na emergência das novas cidades.

Ainda que se constitua como instância autorizada de fabricação,

interpretação e aplicação das leis e ainda que continue detendo os

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325

monopólios da regulação macro-econômica, da emissão de moeda e do

uso da violência, o velho Estado-nação ficará falando sozinho enquanto as

cidades inventam novas instituições e novos procedimentos adequados à

governança do seu próprio desenvolvimento. E isso ocorrerá não porque o

Estado-nação não queira mais barrar tais avanços e sim porque não terá

os meios para fazê-lo.

O próprio sistema político baseado na verticalização do Estado-nação já

está sentindo a mudança. Já é mais importante, hoje, ser prefeito de São

Paulo do que governador da grande maioria dos estados brasileiros. Seria

mais importante ser administrador de Shutoken do que chefe de governo

do Japão. E amanhã, em tudo o que disser respeito ao desenvolvimento,

os governantes mais importantes não serão mais os chefes do governo ou

do Estado (nacional) e sim os administradores de cidades inovadoras e de

regiões formadas por coligações de cidades. Quem sabe na futura China

(ou no que ela vier a se transformar), os participantes do sistema de

governança de Dalian terão mais importância do que têm hoje os seus

ditadores (em um cenário, é claro, em que não houver mais ditadores).

De qualquer modo, as cidades serão independentes na razão direta da sua

capacidade de inovação. O processo de independência das cidades é um

processo de inovação. As cidades que quiserem ser independentes estão

condenadas a inovar permanentemente.

Não há uma definição de cidade inovadora a não ser aquela, quase

tautológica, de que é uma cidade que inova ao criar ambientes favoráveis

à inovação (e não uma cidade em que o governo local quer pegar a

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326

bandeira da inovação com objetivos de marketing político). São esses

ambientes que caracterizam a cidade inovadora como uma cidade aberta,

conectada para dentro e para fora, ágil na regulamentação (sobretudo,

mas não apenas, no que tange aos empreendimentos empresariais e

sociais) e educadora. Para tanto, é necessário que as cidades que queiram

ser inovadoras construam sistemas locais de governança que favoreçam

ao invés de dificultar a regulação emergente, a partir da comunitarização.

O mercado nos forneceu um modelo relativamente eficaz de regulação

emergente, tão sedutor que muitas pessoas deixaram-se intoxicar por

uma visão mercadocêntrica do mundo, que poderia ser resumida na

pergunta: ora, se deu certo para as unidades econômicas, por que não

daria também para as unidades políticas e sociais? Foi assim que os

modernos avacalharam o conceito de público. E a rigor também

desaproveitaram o que havia de tão revelador na autorregulação

mercantil: o próprio mecanismo da autorregulação ou o processo da

emergência. Por medo do risco, da incerteza no tocante aos seus

investimentos, em vez de constituírem empresas-fluzz e de articularem

seus negócios em rede, erigiram empresas monárquicas, às quais logo

associaram ao Estado hobbesiano gerando o capitalismo que conhecemos.

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327

NNoottaass ee rreeffeerrêênncciiaass

(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início

de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor

observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,

argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (i-

based e não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em

participação). Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na

ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de

Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe Fluzz: vida

humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do

terceiro milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o programa

malsucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito complexo,

sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem: “Tudo que

flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não pode ser

aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da

rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se

expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado

de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não

há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É

de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos...

Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são

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328

muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,

dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que

se constelam e se desfazem, intermitentemente”.

(**) Este texto foi originalmente escrito em 2010 e publicado em 2011

como capítulo 7 do livro Fluzz: vida humana e convivência social nos novos

mundos altamente conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de

Redes, 2011.

(1) Para uma explicação abrangente dessa imaginária linhagem-fluzz da

“tradição” democrática confira FRANCO, Augusto (2007-2010).

Democracia: um programa autodidático de aprendizagem. Slideshare

[1022 views em 29/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/democracia-um-programa-

autodidatico-de-aprendizagem>

(2) Cf. DEWEY, John (1927). O público e seus problemas in (excertos)

FRANCO, Augusto & POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia

cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre:

CMDC / EdiPUCRS, 2008.

(3) Cf. FRANCO, Augusto (2007-2010). Democracia: um programa

autodidático de aprendizagem. Op. cit. Cf. também MATURANA,

Humberto (1993). La democracia es una obra de arte: Ed. cit.

(4) Chama-se de formule inversa de Clausewitz-Lenin (com base nas

anotações marginais de leitura do segundo ao tratado Da Guerra, do

primeiro) à inversão do postulado clausewitziano “a guerra é uma

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329

continuação da política por outros meios”. Como, para Lenin, a luta de

classes era uma espécie de guerra permanentemente presente, então ele

avaliou que se poderia afirmar que, inclusive em tempos de paz, “a

política é uma continuação da guerra por outros meios”.

(5) De um ponto de vista político, não há problema com a competição

entre grupos privados quando seus objetivos são privados. O problema

surge quando se quer gerar um sentido público por meio da competição

entre grupos privados (como os partidos). Foi assim que, decalcando a

racionalidade do mercado, os modernos cometeram uma confusão brutal

entre tipos diferentes de agenciamento que levou à irresponsável

identificação entre democracia e capitalismo (e tão perdidos ficaram em

sua confusão que agora não sabem nem explicar direito a onda de

capitalismo autoritário que nos atinge nos últimos anos, sobretudo a

partir da China). Para acompanhar uma discussão inovadora sobre a

questão do público cf. o tópico “Sobre a questão do publico”:

<http://escoladeredes.ning.com/group/redesnapoltica/forum/topics/sobr

e-a-questao-do-publico>

(6) É por isso que têm se revelado vãs todas as tentativas de fundar um

novo partido para reformar a política, a partir de novas ideias e,

supostamente, da inauguração de novas práticas. Em pouquíssimo tempo

esse novo partido será capturado pelo oligopólio dos velhos partidos e se

comportará como eles. Quando não há má intenção (e tudo então não

passa de pretexto para construir uma nova caciquia ou para legalizar uma

Page 330: FLUZZ SÉRIE COMPLETA

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nova quadrilha para assaltar o público), parece evidente que há falta de

inteligência mesmo nos que vivem insistindo em percorrer essa via.

(7) "Patriotism is the last refuge of a scoundrel" ("O patriotismo é o último

refúgio dos canalhas”). Cf. BOSWELL, James & CROKER, John (1791). The

life of Samuel Johnson, LL. D. New York: George Dearborn Publisher, 1833.

Disponível em Google Books:

<http://books.google.com/books?id=TmShu9cK3IUC&pg=PP1#v=onepage

&q&f=false>

(8) Cf. ALTHUSIUS, Johannes (1603). Política. Liberty Fund (2003). Rio de

Janeiro: Topbooks, s/d.

(9) DEWEY, John (1927). O público e seus problemas: Ed. cit.

(10) Dentre todos, talvez a língua continue sendo a obstrução mais efetiva

à interação entre diferentes povos, mas tudo indica que esse “muro”

também está com seus dias contados. Os avanços, verificados nos últimos

anos, no desenvolvimento de programas de tradução e a construção de

sistemas simultâneos de tradução de idiomas, compostos por softwares

aplicativos, suportados por hardwares e conectados a dispositivos de

reconhecimento de voz em computadores e aparelhos telefônicos, logo

anulará essa desculpa da Babel para o viver separado do diferente. Como

observou Humberto Maturana, lembrado por Carlos Boyle em um recente

post no site da Escola-de-Redes, Babel não fracassou em virtude das

diferentes línguas que falavam seus construtores e sim porque eles não se

entendiam entre si (ou seja, o que faltou foi cooperação, de vez que o

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linguagear pode se exercer mesmo entre duas pessoas que falam línguas

diferentes, que acabarão, de um modo ou de outro, se entendendo).

(11) A não ser quando a seleção brasileira de futebol joga com a da

Argentina. Aí, em uma caricatura degenerada de primitivos seres tribais,

nos pintamos de verde-amarelo, nos enrolamos na bandeira e gritamos

irracionalmente a plenos pulmões que o legítimo gol feito pelo genro de

Maradona não valeu, pois que ele estava impedido e acusamos de ladrão

o juiz. E os argentinos fazem a mesma coisa. Sim, é do jogo, pode-se dizer.

Mas em geral esquece-se de perguntar: de que jogo (o esporte

competitivo como “uma guerra sem mortes” como bem o definiu George

Orwell)? De que vale esse tipo de polarização que passa por cima de

qualquer senso de urbanidade e justiça? E o quê de bom poderá advir

dessa patriotice?

(12) THOMPSON, William (2001). Transforming History: a curriculum for

cultural evolution. Ma: Lindisfarne books, 2001.

(13) Idem.

(14) SEN, Amartya (1999). Desenvolvimento como liberdade. São Paulo:

Companhia das Letras, 1999.

(15) Segundo o Democracy index 2011: a report from the Economist

Intelligence Unit, temos: 25 full democracies - 15% dos países - 11,3% da

população mundial; 53 flawed democracies - 31,7% dos países - 37,1% da

população mundial; 37 hybrid regimes - 22,2% dos países - 14,0% da

população mundial; 52 authoritarian regimes - 31,1% dos países - 37,6%

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da população mundial. Segundo o Freedom in the World 2012 da

Freedom House, temos: 87 Free Countries - 45% dos países; 60 Partly Free

Countries - 31% dos países; 48 Not Free Countries - 24% dos países. Os

critérios são diferentes, mas os resultados são semelhantes. O mais

assustador é que se observa um declínio da democracia. Segundo dados

da Freedom House, comparando 2006 com 2011 temos: Países Livres:

2006 = 90 - 47% / 2011 = 87 - 45%. Países Parcialmente Livres: 2006 = 58 -

30% / 2011 = 60 - 31%; Países Não Livres: 2006 = 45 - 23% / 2011 = 48 -

24%; Democracias Eleitorais: 2006 = 123 - 64% / 2011 = 117 - 60%.

Segundo dados da Economist Intelligence Unit , comparando 2008 com

2011 temos (para o mesmo total de 167 países e, assim, as porcentagens

são as mesmas): Full Democracies: 2008 = 30 / 2011 = 25 - 15% dos países

- 11,3% da população mundial; Flawed Democracies: 2008 = 50 / 2011 =

53 - 31,7% dos países - 37,1% (Idem); Hybrid Regimes: 2008 = 36 / 2011 =

37 - 22,2% - 14,0%; Authoritarian Regimes: 2008 = 51 / 2011 = 52 - 31,1%

- 37,6%. O fato é que - em 2011 - segundo dados da Economist

Intelligence Unit, 51% da população mundial não vive em democracias

(nem full, nem flawed); e segundo dados da Freedom House 57% da

população mundial não vive em regimes free (o que perfaz um total de

3,95 bilhões de pessoas). Os dados da Freedom House para 2008 (universo

de 193 países) mostram também a queda (comparada com 2011): Free

Countries = 89 - 46% / Partly Free Countries = 62 - 32%; Not Free Countries

= 42 - 22%.

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(16) Cf. Democracy índex 2011. Democracy under stress. A report from

The Economist Intelligence Unit < http://goo.gl/11FjX>. Cf. também

Freedom in the World 2012. Freedom House < http://goo.gl/Pd4MY>

(17) OHMAE, Kenichi (2005). O novo palco da economia global: desafios e

oportunidades em um mundo sem fronteiras. Porto Alegre: Bookman,

2006.

(18) CASTELLS, Manuel (1999). Para o Estado-rede: globalização

econômica e instituições políticas na era da informação” in BRESSER

PEREIRA, L. C., WILHEIM, J. e SOLA, L. Sociedade e Estado em

transformação. Brasília: ENAP, 1999.

(19) FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Novas visões sobre a

sociedade, o desenvolvimento, a internet, a política e o mundo

glocalizado. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008.

(20) Cf. FULLER, Buckminster (1968). Manual de Operação da Espaçonave

Terra. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1983 e MCLUHAN,

Marshall (1974) in McLUHAN, Stephanie & STAINES, David (2003): Op. cit.

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OS MANTENEDORES DO VELHO MUNDO

Augusto de Franco, 2012.

Versão Beta, sem revisão.

A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada

com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.

Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta

obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser

reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por

quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –

na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e

distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser

omitida a autoria da versão original.

FRANCO, Augusto de

OS MANTENEDORES DO VELHO MUNDO / Augusto de Franco – São Paulo:

2012.

46 p. A4 – (Escola de Redes; 14)

1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.

Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e

à criação e transferência de tecnologias de netweaving.

http://escoladeredes.net

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SSuummáárriioo

Introdução | 9

Ensinadores | 12

Mestres e gurus | 19

Codificadores de doutrinas | 23

Aprisionadores de corpos | 25

Construtores de pirâmides | 28

Fabricantes de guerras | 32

Condutores de rebanhos | 34

Notas e referências | 38

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IInnttrroodduuççããoo

A Força era um conceito complexo e difícil.

A Força estava enraizada no equilíbrio de todas as coisas,

E todo movimento dentro de seu fluxo

arriscava um desequilíbrio nessa harmonia.

Terry Brooks em Star Wars Episódio I: A Ameaça Fantasma (1999)

A força (Te) não é (um querer) induzir alguém

(ou alguma coisa) a seguir um caminho prefigurado

e sim (um deixar) fluir com o curso (Tao).

O autor em Desobedeça (2010)

CONHECIMENTO ATESTADO POR TÍTULOS, fama, riqueza e poder são

indicadores de sucesso adequados às sociedades hierárquicas. São coisas

que só alguns podem ter, não todos. São coisas que alguns podem ter em

detrimento dos outros. Assim o sábio se destaca dos ignorantes (ou o

titulado do não titulado, até na cadeia), o famoso não se mistura com o

zé-ninguém, o rico vive entre os ricos para ficar mais rico e não se

relaciona com o pobre (que – como sabemos – só continua pobre porque

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seus amigos são pobres) e o poderoso só consegue exercer seu poder

porque os que (acham que) não têm poder lhe prestam obediência. Os

critérios de sucesso competitivo são, na verdade, mais do que indicadores:

são ordenações da sociedade hierárquica.

O fato é que, os que tiveram sucesso ou venceram no mundo do

comando-e-controle, em grande parte, venceram aplicando esquemas de

comando-e-controle. Venceram – e foram reconhecidos como vencedores

– porque aplicaram esquemas de comando-e-controle; ou seja, porque

replicaram um determinado padrão de ordem (e, para tanto, é como se

tivessem recebido uma ordenação).

Dentre os que fazem sucesso na sociedade hierárquica e de massa

encontram-se, é claro, pessoas esforçadas, criativas ou inovadoras,

talentos extraordinários e gênios incontestes. Mas estão lá também – em

número tão grande para derrubar o mito de que o sucesso é um prêmio

pelo talento – os agentes reprodutores desse tipo de sociedade, como,

por exemplo, os colecionadores de diplomas, os vendedores de ilusões, os

marqueteiros de si mesmos, os aprisionadores de corpos, os ensinadores

ou burocratas sacerdotais do conhecimento, os codificadores de

doutrinas, os aprisionadores de corpos, os construtores de pirâmides, os

fabricantes de guerras e os condutores de rebanhos.

Não se trata de inculpar esses tipos por todo mal que assola a

humanidade. Eles são apenas agentes inconscientes da reprodução do

sistema. Eles não existem propriamente como indivíduos. Não adianta

para nada tentar nomeá-los: eles são legião (Mc 5: 9), entidades

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inumeráveis configuradas nas redes sociais, quando campos perturbados

pela presença da hierarquia aglomeram e enxameiam no contra-fluzz (*).

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EEnnssiinnaaddoorreess

Os primeiros ensinadores – os sacerdotes – ensinavam para reproduzir

(ou multiplicar os agentes capazes de manter) seu próprio estamento

ENSINADORES SÃO OS QUE COMPÕEM a burocracia privatizadora do

conhecimento: aquela casta sacerdotal que constitui as escolas e

academias.

Os ensinadores surgiram naquela noite dos tempos que o matemático

Ralph Abraham (1992) chamou de “precedente sumeriano” (1).

É surpreendente constatar, como fizeram Joseph Campbell, Samuel Noah

Kramer e outros renomados sumeriologistas, que os elementos centrais

da nossa cultura, dita civilizada, compareciam em uma espécie de modelo

ou protótipo ensaiado em complexos do tipo cidade-templo-Estado como

Eridu, Nippur, Uruk, Kish, Acad, Lagash, Ur, Larsa e Babilônia. Esse modelo

já estava em pleno funcionamento, segundo interpretações de relatos que

não puderam ser contestadas, a partir do quarto milênio. Em particular a

obra de Kramer (1956): “A história começa na Suméria”, revela as raízes

sumerianas do atual padrão civilizatório (2).

Joseph Campbell (1959), em “As Máscaras de Deus”, redigiu uma espécie

de termo de referência para esta investigação (3):

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“Um importante desenvolvimento, repleto de significado e

promessas para a história da humanidade nas civilizações por vir,

ocorreu... [por volta] (de 4.000 a. C.), quando algumas aldeias

camponesas começaram a assumir o tamanho e a função de cidades

mercantis e houve uma expansão da área cultural... pelas planícies

lodosas da Mesopotâmia ribeirinha. Esse é o período em que a

misteriosa raça dos sumérios apareceu pela primeira vez em cena,

para estabelecer-se nos terrenos das planícies tórridas do delta do

Tigre e do Eufrates, que se tornariam em breve as cidades reais de

Ur, Kish, Lagash, Eridu, Sipar, Shuruppak, Nipur e Erech... E então, de

súbito... surge naquela pequena região lodosa suméria – como se as

flores de suas minúsculas cidades subitamente vicejassem – toda a

síndrome cultural que a partir de então constituiu a unidade

germinal de todas as civilizações avançadas do mundo. E não

podemos atribuir esse evento a qualquer conquista da mentalidade

de simples camponeses. Tampouco foi a consequência mecânica de

um mero acúmulo de artefatos materiais, economicamente

determinados. Foi a criação factual e claramente consciente (isto

pode ser afirmado com total certeza) da mente e ciência de uma

nova ordem de humanidade que jamais havia surgido na história da

espécie humana: o profissional de tempo integral, iniciado e

estritamente arregimentado, sacerdote de templo”.

Respeitados estudiosos confessam até hoje sua perplexidade diante da

constelação desse ‘precedente sumeriano’ (para insistir na feliz expressão

do matemático Ralph Abraham). É o caso, por exemplo, da antropóloga e

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assirióloga Gwendolyn Leick, que leciona em Richmond (Londres). No seu

“Mesopotâmia: a invenção da cidade” (2001), ela declara que “muito se

tem escrito sobre o “súbito” aparecimento dos sumérios na Mesopotâmia

e suas possíveis origens... [mas] a questão da origem dos sumérios

continua aguardando solução, e tudo o que podemos dizer é que, no início

do Primeiro Dinástico, sua língua foi escolhida para ser vertida em escrita.

Talvez os sumérios se tivessem tornado politicamente dominantes e

exercido o controle dos centros de formação de escribas nas primeiras

cidades” (5).

Essa casta ou estamento – composta pela burocracia sacerdotal que

administrava as nascentes cidades-templo-Estado sumerianas –

configurou o primeiro padrão de transmissão de ensinamento. Ensinavam

como um imperativo para reproduzir seu próprio ensinamento; quer dizer,

ensinavam para reproduzir (ou multiplicar os agentes capazes de manter)

seu próprio estamento.

Por quê? Ora, porque o livre aprendizado na rede social de então não

seria capaz de cumprir tal função, que nada tinha a ver com sua

sobrevivência ou com sua convivência. Não se tem notícia de escola,

ensino ou professores em sociedades de parceria. Quando a rede social foi

subitamente centralizada pela configuração particular que se constelou

com o surgimento do complexo cidade-templo-Estado, os programas

verticalizadores que começaram a rodar nessa rede eram replicados em

outras regiões do espaço e do tempo pela transmissão-recepção de seus

códigos – e já havia programas elaborados, como os que os sumérios

denominavam ‘me’ (6) – aos membros do mesmo grupo social.

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Ou seja: já havia um ensinamento (secreto, por certo, acessível somente

aos membros do estamento). Já havia ensinantes (os primeiros

professores, membros da casta sacerdotal) e ensinados (os futuros

administradores em formação).

Essa hipótese é fortalecida pela investigação das origens da Kabbalah. O

símbolo central desse sistema de sabedoria – a chamada “Árvore da Vida”

– foi, sem dúvida, herdado do simbolismo templário do complexo Templo-

Estado sumeriano, o qual deve ter passado ao judaísmo posterior por

intermédio da Golah – a organização dos cativos (sequestrados nas elites

de Jerusalém) na Babilônia sob o reinado de Nabucodonozor e seu

sucessor.

Não se sabe a origem da 'árvore da vida', mas ela aparece nas imagens da

tamareira gravadas nas mais antigas tabuinhas sumerianas encontradas

pelos escavadores. E aparece também – com o mesmo esquema, que

depois foi transmitido pela tradição (cabalística) – na forma de uma nave,

ladeada por dois seres alados (com cabeças de águia). Uma nave – talvez

como as naves dos templos, até hoje – que não sai do lugar, mas por meio

da qual se pode “viajar” para os céus caso se tenha acesso ao

“combustível” adequado: ao “fruto da vida” e à “água da vida”...

O mesmo schema básico da árvore da vida, representada em vários

mundos que se interceptam (os da emanação, da criação, da formação e

do produzir) compõe o que foi chamado de “Escada de Jacó”, uma escada

pela qual os mensageiros – ou as mensagens – podem subir e descer

estabelecendo os fluxos entre o céu e a terra. Isto é anisotropia: o céu, é

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claro, fica em cima; a transmissão, é claro, é top down. E o esquema é

mais centralizado que distribuído (7).

Essa ideologia de raiz babilônica (suméria) que, quase dois milênios

depois, foi se chamar de Kabbalah (cabala), na Idade Média europeia, fez

uma operação tremenda de “engenharia memética” no símbolo original,

ressignificando a árvore da vida como uma “árvore do conhecimento”,

quer dizer, tomando a vida pelo conhecimento da vida e do que com ela

foi feito... Isso significa obstruir o acesso à vida, facultando-o somente aos

que possuem o conhecimento (aquilo que a cabala chamou de

“ensinamento” e que é transmitido então em uma cadeia, tida por

ininterrupta, que começa com o arquimensageiro Raziel, passa para Enoc

– o escriba, não por acaso – e daí para os patriarcas e para os sacerdotes).

Kabbalah vai designar, então, essa tradição sacerdotal: condução

(transmissão-recepção) do ensinamento original por parte daqueles que

são capazes de reproduzir esse mesmo padrão de ordem sagrada, isto é,

separada do vulgo, do profano, daquele que não foi ordenado.

Isso tudo não somente fez, mas faz ainda, parte de uma experiência

fundante de verticalização do mundo, que prossegue enquanto a tradição

permanece ou se refunda toda vez que o meme é replicado. Do ponto de

vista da memegonia, aqui pode estar a origem da relação mestre-discípulo

ou professor-aluno.

Não foi a toa que uma mente arguta como a de Harold Bloom (1975) –

ecoando, aliás, o que dizia o erudito Gershom Scholem – percebeu que

Kabbalah era uma ideologia de professores. Na origem de tudo está... uma

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Instrução: “o Ein-Sof instrui a Si mesmo através da concentração... Deus

ensina a Si mesmo o Seu próprio Nome, e, dessa forma, começa a criação”

(8).

Nessa memegonia, Deus é o primeiro professor e o ato de ensinar está na

raiz do ato de criar o mundo. O conhecimento (via ensinamento) – e não a

existência e a vida – é o objetivo: a origem e o alvo. Deus cria o mundo

para se conhecer. Mas para se conhecer ele ensina, não aprende. Logo,

seus “delegados”, ou intermediários (os sacerdotes), também ensinam.

Todo corpus sacerdotal é docente.

É por isso que há uma enorme dificuldade de conciliar visões próprias de

sistemas tradicionais de sabedoria com a visão-fluzz das redes de

aprendizagem. A tradição - dita espiritual - com raras exceções (como o

Tao, mas não o taoismo; como o Zen - esse formidável sistema de

desconstituição de certezas -, mas não o budismo) em geral replicou

atitudes míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas. Maturana

levantou a hipótese da "brecha" (na civilização patriarcal e guerreira) para

mostrar como pôde ter surgido a democracia (9).

Mas, na verdade, não foi só a democracia que penetrou pela "brecha":

vertentes utópicas, proféticas, autônomas e democráticas floresceram ao

longo da história e continuam florescendo - intermitentemente - toda vez

que comunidades conseguem estabelecer uma interface para conversar

com a rede-mãe (10). Essas duas vertentes permaneceram e ainda

permanecem em permanente tensão.

Page 352: FLUZZ SÉRIE COMPLETA

352

O professor como transmissor de ensinamento e a escola como aparato

separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram, inegavelmente,

como instrumentos de reprodução de programas centralizadores que

foram instalados para verticalizar a rede-mãe.

De certo modo, os deuses do panteão patriarcal e guerreiro foram os

primeiros programas meméticos centralizadores (11). O tardio IHVH

bíblico – ensinador – encarna uma rotina desses programas (e é

representado por uma das sefirot – um evento – na 'árvore da vida'

ressignificada, no mundo da emanação).

Como os deuses do panteão patriarcal e guerreiro da Mesopotâmia do

período Uruk (c. 4000-3200) – período sucedido, logo em seguida, não por

acaso, pela escrita (no Primeiro Dinástico I: c. 3000-2750) – foram criados

à imagem e semelhança dos homens que começaram a se organizar

segundo padrões hierárquicos, tudo isso é muito relevante para

entendermos que a transmissão do ensinamento já foi fundada, de certo

modo, em contraposição ao livre aprendizado humano na rede social

muito menos centralizada (ou até, quem sabe, distribuída) dos períodos

pré-históricos anteriores (desde, pelo menos, o Neolítico).

Para essas sociedades de dominação, nada de aprender (inventar). Era

preciso ensinar (para replicar). E por isso ensinadores são mantenedores

do velho mundo.

Page 353: FLUZZ SÉRIE COMPLETA

353

MMeessttrreess ee gguurruuss

Todos são mestres uns dos outros enquanto se polinizam mutuamente

HÁ TAMBÉM OS QUE – por fora dos sistemas formais de ensino – ainda se

intitulam (ou são por alguém intitulados de) mestres ou gurus. Alguns são

ordenados para tanto, quer dizer, têm reconhecida, sempre por uma

organização hierárquica, sua capacidade de reproduzir uma determinada

ordem top down. E querem então imprimi-lo, emprenhá-lo, ou seja,

enxertar suas ideias-implante em você, para que você se torne também

um transmissor desse “vírus”.

É claro que existem outras interpretações do papel do mestre. Osho, por

exemplo, tentando explicar a correta intolerância de Krishnamurti com os

que se anunciam ou eram anunciados como mestres ou gurus coloca

outra perspectiva ao dizer que “um mestre não o ensina, ele simplesmente

torna o seu ser disponível para você e espera que você também faça o

mesmo”.

E aí vem a justificativa: “A menos que algum raio do além entre em seu

ser, a menos que você prove algo do transcendental, até mesmo o desejo

de ser liberado não aparecerá em você. Um mestre não lhe dá a liberação,

Page 354: FLUZZ SÉRIE COMPLETA

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ele cria um desejo apaixonado pela liberação”. A justificativa é que “será

muito difícil, quase impossível, fazer isso por conta própria” (12).

Mas quem disse que isso teria que ser feito “por contra própria”? Ao

tentar justificar sua crítica a Krishnamurti, Osho enveredou por um viés

psicológico individual. Ele não teria se curado do trauma de ter sido

“educado por pessoas muito autoritárias... professores, talvez, mas não

mestres”. Então Osho afirma que tudo isso “foi demais [para Krishnamurti]

e ele não pode esquecê-los e não pôde perdoá-los” (13).

No fundo, tudo isso soa mais como uma tentativa de salvar uma função

pretérita, resgatar um papel arcaico que, em alguma época, funcionou de

fato assim como ele, Osho, diz, porém em mundos de baixa conectividade

social.

Já foi dito aqui que na medida em que vida humana e convivência social se

aproximam (nos mundos altamente conectados) somos obrigados a

mudar nossas interpretações. E que isso entra em choque com as

tradições espirituais que diziam que quando o discípulo está preparado o

mestre aparece. De certo modo é justo o contrário: o discípulo desaparece

quando desaparece a escola (quer dizer o ensinamento) e com ele vai-se

também o mestre.

Isso – para alguns – é um escândalo. Nos Highly Connected Worlds quem

lhe reconhece é o simbionte social, se você se sintonizar suficientemente

com a rede-mãe. Não é um representante da tradição, não é um membro

de uma casta sacerdotal ou de alguma hierarquia docente, nem mesmo

um indivíduo que despertou antes de você – a não ser que essa pessoa

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(uma pessoa) seja a porta para que você possa entrar em outros mundos.

Mas neste caso essa pessoa – eis o ponto! – pode ser qualquer pessoa que

esteja conectada a esses mundos onde você quer entrar.

Se alguém pudesse recuar antes (e o que seria antes?) daquela noite dos

tempos em que a rede-mãe começou a rodar programas verticalizadores e

pudesse dizer como uma comunidade conseguia entrar em sintonia com o

simbionte natural (que talvez se confundisse – em sociedades de parceria,

pré-patriarcais, quem sabe em algum momento do Neolítico – com a rede-

mãe: síntese simbolizada na figura da grande mãe ou da deusa), talvez

pudesse nos sugerir algum processo para reinventarmos tal sintonia com o

simbionte social (o superorganismo humano). Mas, fosse qual fosse, sua

resposta seria enxame (múltiplos caminhos em efervescência) e não

indivíduo no caminho em busca da unidade perdida ou da sua origem

celeste.

Não vale fazer recuar a noite dos tempos em que surgiram os sistemas

míticos-sacerdotais-hierárquicos-autocráticos para colocá-los na origem

de tudo com o fito de transformar a origem terrestre do humano em uma

origem celeste. Essa operação ideológica, urdida por esses mesmos

sistemas, legitima o mestre como um veículo, um emissário, um

representante da suposta origem celeste (ainda quando existam mestres

que reneguem tudo isso).

No enxame você já é um mestre, todos são mestres uns dos outros

enquanto não apenas buscam, mas se polinizam mutuamente e isso quer

dizer que não existe um, não existe aquele mestre.

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Mestres – como ensinadores – são mantenedores do velho mundo.

Mesmo quando recusam tal papel, eles abrem caminho para os

codificadores de doutrinas, aqueles cavadores de sulcos para fazer

escorrer por eles as coisas que ainda virão.

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CCooddiiff iiccaaddoorreess ddee ddoouuttrriinnaass

Eles produzem narrativas para que você veja o mundo a partir da sua

ótica, quer dizer, para que você não veja os múltiplos mundos existentes

CODIFICADORES DE DOUTRINAS são todos aqueles que querem

pavimentar, com as suas crenças religiosas (e sempre o são, mesmo

quando se declaram laicas), uma estrada para o futuro. Eles produzem

narrativas ideológicas totalizantes para que você veja o mundo a partir da

sua ótica, quer dizer, para que você não veja os múltiplos mundos

existentes, mas apenas um mundo (o mundo arquitetado e administrado

por eles: uma prisão para a sua imaginação).

Quando são (explicitamente) religiosos, os codificadores de doutrinas

fornecem a justificativa para a ereção de igrejas e seitas. Quando são

políticos, urdem a base conceitual para a formação de correntes e grupos

de opinião onde a (livre) opinião propriamente dita não conta para quase

nada: o que conta é a ortodoxia de uma opinião oficial ou canônica, a qual

tentam autenticar apelando para a revelação ou para a ciência. Em todos

os casos são engenheiros meméticos, manipuladores de ideias que

inventam passado para legitimar certos caminhos (e deslegitimar outros)

para o futuro. Fazem isso para controlar o seu futuro, para levá-lo (a sua

alma ou o seu corpo) para algum lugar supostamente melhor, para um

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paraíso no céu ou na terra, quando, eles mesmos, não podem conhecer tal

caminho (simplesmente porque não existe um caminho).

Codificadores de doutrinas abrem espaço para a ereção de igrejas, muitas

vezes em contraposição à experiência fundante ou à suposta revelação

que tomam como referência. É assim que os franciscanos, hoje “puxando

dinheiro com rodo” (como dizia Frei Mateus Rocha, nos idos de 1970) (14),

executam exatamente o contrário do que pregava il poverello d’Assisi

(1182-1226). Tanto faz se tais igrejas são religiosas ou laicas: Paulo de

Tarso (com o cristianismo) e Inácio de Antioquia (com a igreja católica)

cumprem funções análogas às de Lenin (com o materialismo dialético e o

materialismo histórico) e Stalin (com o PCUS) ou Trotski (com a Quarta

Internacional).

Os codificadores de doutrinas também são ensinadores e, de certo modo,

gurus (no sentido em que a palavra é empregada atualmente). São os

abastecedores dos ensinadores que, em geral, transmitem ensinamentos

que já foram codificados por eles. São, portanto, os verdadeiros

fundadores de escolas, conquanto frequentemente dizendo-se a serviço

de um fundador já desaparecido (ou nunca aparecido).

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AApprriissiioonnaaddoorreess ddee ccoorrppooss

O fundamental para os aprisionadores de corpos é manter seus

trabalhadores fora do caos criativo

APRISIONADORES DE CORPOS são aqueles que, não contentes em usar,

comprar ou alugar, sua inteligência humana (que não tem preço), querem

também mantê-lo cativo, fisicamente, nos seus prédios ou cercados. São

feitores: antes usavam o chicote; hoje usam o relógio ou o livro de ponto,

o crachá magnético ou o banco de horas. Nas empresas ou organizações

hierárquicas, sejam privadas ou públicas, sequestram seu corpo para

manter você por perto, para poder vigiá-lo, para terem certeza de que

você está de fato trabalhando para eles (que coisa, heim?). Não

precisavam fazer isso se o seu objetivo fosse o de articular um trabalho

coletivo compartilhado. Mas o objetivo deles não é, na verdade,

compartilhar nada com outros seres humanos e sim controlá-los-e-

comandá-los, em certo sentido desumanizá-los, embotando sua

inteligência, castrando sua criatividade, alquebrando sua vontade, para

poder usá-los como objetos, para terem-nos disponíveis, sempre à mão,

tantas horas por dia: querem um rebanho de servos de prontidão para

lhes fazer as vontades. Se quisessem que as pessoas trabalhassem com-

eles e não para-eles não seria necessário – na imensa maioria dos casos –

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aprisionar os seus corpos: bastaria estabelecer uma agenda conjunta, com

tarefas e prazos.

Mais de 90% dos empregadores são aprisionadores de corpos. Chefes de

repartições governamentais, administradores de empresas e “donos” de

ONGs costumam ser aprisionadores de corpos. Se as pessoas não tivessem

que dormir e as leis permitissem, gostariam que elas ficassem à sua

disposição o tempo todo: – 24 horas: tum, tum, tum...

Ainda quando dizem o contrário, eles não querem que você empreenda,

seja criativo, construa produtos ou processos inovadores e realize coisas

maravilhosas e sim que você trabalhe. Querem trabalho = repetição e

execução de ordens. Se quisessem criação, inovação, não lhe imporiam

agendas estranhas (que você não teve oportunidade de coconstruir), não

lhe retalhariam o tempo em unidades controláveis, com horários rígidos

de entrada e saída em algum espaço murado. Dariam a seus

colaboradores (a todos) as melhores condições para inovar (alugariam,

quem sabe, uma casa em uma ilha paradisíaca, em uma chácara aprazível

ou mesmo em um bosque urbano, um horto, cultivariam jardins... em

suma, não organizariam e decorariam seus locais – de trabalho – de modo

tão horrendo, sem cores, sem arte, tudo cinza, quadrado, como uma

prisão mesmo, ou um convento) e, sobretudo, não reduziriam sua

mobilidade: uma dimensão essencial da sua liberdade para criar.

O fundamental para os aprisionadores de corpos é manter seus

trabalhadores fora do caos criativo, protegê-los do seu próprio espírito

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empreendedor. Então, para esterilizá-lo, colocam você na pirâmide. Sim,

aprisionadores de corpos são também construtores de pirâmides.

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CCoonnssttrruuttoorreess ddee ppiirrââmmiiddeess

O indivíduo não é o átomo social; para ser social é preciso ser molécula

OS CONSTRUTORES DE PIRÂMIDES também surgiram naquela noite dos

tempos em que a rede-mãe passou a rodar programas verticalizadores.

Talvez os primeiros construtores de pirâmides tenham sido mesmo os...

construtores de pirâmides, não apenas as do Egito, mas também os

zigurates mesopotâmicos. Mas todas as pirâmides que vêm sendo

construídas ao longo do chamado período civilizado evocam o mesmo

padrão vertical surgido pela perturbação do campo social introduzida pela

hierarquia. Não são, entretanto, apenas arquitetos, engenheiros e mestres

de obra que projetam, comandam e controlam o trabalho de erigir

construções físicas. Construtores de pirâmides são os que erigem

organizações hierárquicas de todo tipo para mandar nos outros e obrigá-

los a fazer (ou deixar de fazer) coisas contra a sua vontade ou sem o seu

assentimento ou consentimento ativo.

São os chefes de instituições hierárquicas. São organizadores de pessoas

como se pessoas fossem coisas. Toda organização hierárquica é uma

arquitetura com pessoas, uma construção forçada, coisificante, onde as

pessoas são tratadas como tijolos ou outro material qualquer: – Então

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colocamos uma aqui, outra em cima dessa, outra abaixo, bem ali; ôpa!

Cuidado, não está encaixando bem; então quebra um pedaço aqui,

desbasta ali, martela com força que entra...

Replicadores e trancadores são construtores de pirâmides. Replicadores

são todos os que se dedicam a repetir uma ordem pretérita. São,

portanto, ensinadores (“estações repetidoras” do que foi forjado, em

geral, pelos codificadores de doutrinas). Para exercer tal papel,

entretanto, eles constroem, invariavelmente, estruturas centralizadas ou

verticalizadas – sejam escolas, sociedades, maçonarias e assemelhadas,

partidos ou corporações ou qualquer outra burocracia que viva da

repetição e da inculcação de um conjunto de ideias ou visões de mundo

urdidas para prorrogar passado – e, nesse sentido, são construtores de

pirâmides.

Trancadores são os que privatizam bens que poderiam ser comuns (ou

que não poderiam ser trancados, como o conhecimento). Trancadores de

conhecimento são, por exemplo, os que defendem o domínio privado

sobre o conhecimento, como as leis de patentes e o famigerado copyright.

Um dos tipos contemporâneos de trancadores – relevante pelo efeito

devastador que sua atividade provoca na antessala de uma época-fluzz –

são os trancadores de códigos, que estão entre os mais bem-sucedidos

inventores de softwares proprietários da atualidade Ao construírem

caixas-pretas para esconder seus algoritmos (como fazem os donos do

Google ou do Twitter) ou para montar seus alçapões de dados (como faz o

dono do Facebook), eles acabam tendo que construir pirâmides para

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proteger suas operações centralizadoras da rede social. Não é por acaso

que as plataformas que desenham a partir de uma instância proprietária

tentem disciplinar a interação. Essa é a razão pela qual as plataformas

ditas interativas de que dispomos não são suficientemente interativas (i-

based), posto que baseadas na adesão e, no máximo, na participação

(envolvendo sempre algum tipo de escolha de preferências geradora de

escassez) e no arquivamento de passado (para aumentar o repositório ao

qual, a rigor, só os proprietários dessas plataformas têm pleno acesso na

medida em que só eles podem programá-las sem restrições).

E essa é também a razão pela qual tais plataformas deseducam (se se

pode falar assim) seus usuários (a palavra – ‘usuário’ – já é horrível do

ponto de vista da interação) para as redes distribuídas. Então uma pessoa

entra em alguma dessas plataformas e tende a achar que a sua página é o

seu espaço proprietário a partir do qual ela vai interagir. Em vez de entrar

em um fluxo, ela se aboleta no seu bunker (às vezes chamado de ‘Minha

Página’) e é induzida a achar que ali pode colocar todos os seus vídeos,

suas fotos, seus eventos e seus posts, independentemente do que está

rolando na rede que usa tal plataforma como ferramenta de netweaving

e, não raro, sente-se até ofendida quando alguém lhe lembra de que o

concurso de Miss Universo não tem muito a ver com astrofísica.

A solução para tal problema não é “fugir para trás”, voltando aos blogs,

como sonham alguns. Ainda que a blogosfera seja de fato, no seu

conjunto, uma rede distribuída, os blogs, em si, não se estruturam de

modo distribuído. Em geral são organizações fechadas, que não admitem

interação a não ser com aprovação prévia dos seus donos (por meio da

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chamada “mediação de comentários”). Mesmo quando são abertos a

qualquer comentário, os blogs são piramidezinhas, espécies de reinados

do eu-sozinho. Não são bons instrumentos de netweaving de redes sociais

distribuídas na medida em que não são, eles próprios, redes distribuídas.

Não existem tecnologias de netweaving capazes de colocar um conjunto

de blogs em um meio eficaz de interação. Ademais, a mentalidade dos

bloggers não acompanhou a inovação que, objetivamente, sua atividade

representa. E muitos daqueles que fazem o proselitismo das redes

distribuídas nos seus blogs, organizam, lá no seu quadrado, suas igrejinhas

hiper-centralizadas, algumas vezes quase-monárquicas (15). Ou seja, são

também construtores de pirâmides.

O que está por trás disso tudo é a idéia de que o indivíduo é o átomo

social, quando, na verdade, para ser social, é preciso ser molécula. Pessoas

são produtos de interação e não unidades anteriores à interação.

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FFaabbrriiccaanntteess ddee gguueerrrraass

O único inimigo que existe é o fazedor de inimigos

FABRICANTES DE GUERRAS são, stricto sensu, os chefes militares e, lato

sensu, os que pervertem a política como arte da guerra e os que se

entregam à competição adversarial tendo como objetivo destruir seus

concorrentes. São, todos, predadores. O predador (humano) é uma

máquina de converter o semelhante em inimigo. Mas é preciso considerar

que não existem inimigos naturais ou permanentes: toda inimizade é

circunstancial e pode ser desconstituída pela aceitação do outro no

próprio espaço de vida, pelo acolhimento, pelo diálogo, pela cooperação.

Assim, o (único) inimigo que existe mesmo é o fazedor de inimigos.

Na civilização patriarcal e guerreira viramos seres cindidos interiormente.

O predador é um produto dessa quebra da unidade sinérgica do simbionte

(que poderemos ser no futuro, se anteciparmos esse futuro). Preda

porque quer recuperar, devorando, suas contrapartes, em um ritual

antropofágico em busca da unidade perdida (aquela origem que é o alvo,

para usar a expressão de Karl Kraus). É por isso que nos apegamos tanto à

guerra do bem contra o mal. Mas o problema, como disse Schmookler, é

que “o recurso da guerra é em si o mal” (16).

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Toda vez que você quer triunfar sobre o mal, combater o bom combate,

derrotar o “lado negro da Força”, você fabrica guerra. Estatistas,

hegemonistas, conquistadores, vencedores são – todos – fabricantes de

guerras. Toda vez que você olha o mundo como um terreno inóspito,

como uma ameaça, como algo a enfrentar, você fabrica guerra.

Estrategistas de qualquer tipo, sejam ou não justificáveis seus esforços –

chamem-se Winston Churchill ou Michel Porter –, são fabricantes de

guerras. Boa parte dos incensados consultores de empresas da atualidade

são fabricantes de guerras: apenas deslizam conceitos da arte da guerra

para as estratégias empresariais que transformam o concorrente em

inimigo.

É claro que tudo isso revela uma não-aceitação da democracia. A guerra é

sempre um modo autocrático de regulação de conflitos, seja a guerra

declarada ou aberta, seja a guerra fria, seja a política praticada como arte

da guerra, seja a concorrência empresarial adversarial que trata o outro

como inimigo.

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CCoonndduuttoorreess ddee rreebbaannhhooss

O modo intransitivo de fluição que gera o fenômeno da popularidade do

líder de massas é uma sociopatia

CONDUTORES DE REBANHOS são, em geral, os líderes que alcançaram

popularidade pelo broadcasting para guiar as massas. Algumas vezes esses

líderes são carismáticos e se dedicam a mesmerizar multidões em

comícios, reuniões e manifestações. Ou pela TV e pelo rádio. Quase

sempre são pessoas “pesadas”, que usam sua gravitatem em benefício

próprio ou de um grupo, para reter em suas mãos o poder pelo maior

tempo que for possível, transformando os outros em seus satélites. E

odeiam os princípios de rotatividade ou alternância democrática.

Considere-se que, do ponto de vista social (ou coletivo, da rede), o modo

intransitivo de fluição que gera o fenômeno da popularidade do líder de

massas é uma sociopatia.

O liderancismo é uma praga que vem contaminando as organizações de

todos os setores: segundo tal ideologia, a liderança só é boa se não puder

ser exercida por todos, só por alguns. Assim, não se deve estimular a

multi-liderança, senão afirmar a precedência da mono-liderança, do líder

providencial e permanente, a prevalência do mesmo líder em todos os

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assuntos e atividades, como se essa – a liderança – fosse uma qualidade

rara, de origem genética ou fruto de uma unção extra-humana.

Condutores de rebanhos se dirigem sempre às massas – não às pessoas –

com o objetivo de comandá-las e controlá-las, sejam ditadores ou

manipuladores. São marqueteiros de si-mesmos e, como tais, vendedores

de ilusões (diga-se o que se quiser dizer, o marketing é uma atividade

muito problemática, que não visa formar novas identidades a partir da

construção de pactos com os stakeholders de uma determinada iniciativa

e sim disseminar, via de regra por broadcasting, alguma ilusão).

Sacerdotes (stricto sensu), pastores e políticos profissionais são também

vendedores de ilusões assim como todos os que prometem e não

cumprem, no sentido de que vendem e não-entregam (o que vendem).

Mas reserva-se a categoria de condutores de rebanhos para os que

pretendem liderar massas, comovê-las e mobilizá-las para que lhes sigam.

Na coletânea Histórias do Sr. Keuner, que reúne textos de Bertold Brecht

escritos entre 1926 e 1956, encontra-se a deliciosa parábola “Se os

Tubarões Fossem Homens” (17):

“Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes

caixas do mar para os peixes pequenos... A aula principal seria

naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam

ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício

alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos

tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro

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dos peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria

garantido se aprendessem a obediência...

Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra

entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos

estrangeiros. Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos

inimigos da outra língua... seria condecorado com uma pequena

ordem das algas e receberia o título de herói...

Também haveria uma religião ali. Se os tubarões fossem homens,

eles ensinariam essa religião. De que só na barriga dos tubarões é

que começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões

fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre

os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima

dos outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam

inclusive comer os menores... E os peixinhos maiores que deteriam

os cargos velariam pela ordem entre os peixinhos para que estes

chegassem a ser professores, oficiais, engenheiros de construção de

caixas e assim por diante. Curto e grosso, só então haveria

civilização no mar, se os tubarões fossem homens”.

Não poderia haver um fecho melhor para a reflexão deste texto. Brecht,

provavelmente, criou a metáfora entre tubarões e peixinhos no contexto

da luta de classes entre patrões e trabalhadores. No entanto, ela é tomada

aqui para fazer referência aos mantenedores do velho mundo único que

surgem em configurações deformadas do campo social. Que tipos de

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configurações ensejam a reprodução de tubarões em vez de, por exemplo,

golfinhos?

Como já foi dito, frequentemente as características das funções

agenciadoras do velho mundo se misturam, incidindo, em maior ou menor

grau, em uma mesma configuração de pessoas. É assim que ensinadores

replicam ensinamentos forjados por codificadores de doutrinas que, por

sua vez, constroem pirâmides para aprisionar corpos e tudo isso é feito

em nome da necessidade de derrotar um inimigo que ameaça alguma

identidade imaginária que foi artificialmente construída, não raro exigindo

que grandes contingentes de pessoas fossem arrebanhadas (e

despersonalizadas) por condutores de rebanhos para enfrentar tal

inimigo, ele próprio construído sempre para justificar alguma hierarquia

que foi erigida. Tudo isso é usar a Força para enfrear e represar fluzz.

Conquanto resilientes, essas velhas funções do mundo único exercidas,

invariavelmente, para exterminar outros mundos, não têm conseguido

barrar os novos papéis-sociais-fluzz que começam a emergir.

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NNoottaass ee rreeffeerrêênncciiaass

(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início

de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor

observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,

argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (i-

based e não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em

participação). Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na

ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de

Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe Fluzz: vida

humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do

terceiro milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o programa

malsucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito complexo,

sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem: “Tudo que

flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não pode ser

aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da

rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se

expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado

de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não

há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É

de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos...

Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são

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muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,

dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que

se constelam e se desfazem, intermitentemente”.

Este texto foi originalmente escrito e publicado em 2011 no livro Fluzz:

vida humana e convivência social nos novos mundos altamente

conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de Redes, 2011.

(1) ABRAHAM, Ralph (1992) in ABRAHAM, Ralph, McKENNA, Terence &

SHELDRAKE, Rupert (1992). Caos, criatividade e retorno do sagrado:

triálogos nas fronteiras do Ocidente, São Paulo: Cultrix, 1994.

(2) KRAMER, Samuel (1956). A história começa na Suméria. Lisboa:

Europa-América, 1977.

(4) CAMPBELL, Joseph (1959): As máscaras de Deus (Volume I). São Paulo:

Palas Athena, 1998.

(3) ABRAHAM. Ralph, McKENNA, Terence & SHELDRAKE, Rupert (1992).

Caos, criatividade e o retorno do sagrado: triálogos nas fronteiras do

Ocidente. São Paulo: Cultrix, 1994.

(5) LEICK, Gwendolyn (2001): Mesopotâmia: a invenção da cidade. Rio de

Janeiro: Imago, 2003.

(6) Os ‘me’ continuam sendo um enigma para os historiadores. A

antropóloga e assirióloga Gwendolyn Leick (2001), no seu livro

“Mesopotâmia: a invenção da cidade” (ed. cit.), escreve: “Eridu, como a

manifestação primária do Apsu, também era considerada o lugar do

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conhecimento, a fonte da sabedoria, sob o controle de Enki. Numerosas

narrativas foram elaboradas em torno desse conceito. Eridu, como

respositório de decretos divinos é descrita em uma narrativa suméria

chamada “Enki e Inanna”. Enki, escondido no Apsu, está na posse de todos

os ‘me’, termo sumeriano que abrange todas aquelas instituições, leis,

formas de comportamento social, emoções e símbolos de carga que, em

sua totalidade, eram vistos como indispensáveis ao funcionamento regular

do mundo. Esses ‘me’ pertenciam a Eridu e a Enki. Entretanto, Inanna,

deusa da cidade de Uruque, deseja obter os ‘me’ para si própria e levá-los

para Uruque. Com esse fim, ela desfralda velas para chegar a Eridu de

barco, sempre o caminho mais fácil para ir de uma cidade da

Mesopotâmia a outra. Enki toma conhecimento da chegada de Inanna e

preocupa-se com as intenções dela. Instrui o seu vizir para a receber com

todas as honras e preparar um banquete, no qual ambas as deidades

bebem muita cerveja. Enki não tarda em adormecer, deixando o caminho

livre para Inanna carregar os preciosos ‘me’ em seu barco, um por um, e

zarpar. Quando Enki desperta da ébria sonolência e dá-se conta do que

aconteceu, procura usar sua magia em uma tentativa de recuperar os

‘me’. Inanna consegue rechaçar os demônios perseguidores e chegar sã e

salva a Uruque. O desfecho da história não é claro, pois nenhuma das

versões existentes do texto está suficientemente preservada, mas parece

que uma terceira deidade logra a reconciliação entre Inanna e Enki. Esta é,

obviamente, uma típica história de Uruque, concentrando-se nas deusas

locais e em seu poder superior. Ao libertar os ‘me’ das profundezas do

Apsu, Inanna podia não só ampliar seus próprios poderes, mas também

fazer valer os seus decretos entre os humanos. A lista dos ‘me’ inclui a

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realiza, as funções sacerdotais, os ofícios e a música, assim como as

relações sexuais, a prostituição, a velhice, a justiça, a paz, o silêncio, a

calúnia, o perjúrio, as artes dos escribas e a inteligência, entre muitos

outros”.

Muitos anos antes, o famoso sumeriologista Samuel Noah Kramer (1956),

em From the Tablets of Sumer (ed. cit.) já havia observado:

“Finalmente chegamos aos ‘me’, as leis divinas, normas e regras que,

segundo os filósofos sumérios, governam o universo desde os dias da sua

criação e o mantêm em funcionamento. Neste domínio possuímos

considerável documentação direta, particularmente em relação ao ‘me’

que governam o homem e a sua cultura. Um dos antigos poetas sumérios,

ao compor ou redigir um dos seus mitos, julgou que vinha a propósito dar

uma lista dos ‘me’ relacionados com a cultura. Divide a civilização,

segundo o conhecimento que dela tinha, em uma centena de elementos.

No estado atual do texto são apenas inteligíveis cerca de sessenta e alguns

são palavras mutiladas que, sem contexto explicativo, apenas nos dão

uma vaga idéia do seu real sentido. Mas ainda subsistem os suficientes

para nos mostrar o caráter e a importância da primeira tentativa

registrada de análise da cultura, que resultou em uma lista considerável de

o que é hoje geralmente designado por “elementos e complexos culturais”.

Estes compõem-se de várias instituições, certas funções de hierarquia

sacerdotal, instrumentos de culto, comportamentos intelectuais e afetivos

e diferentes crenças e dogmas. Eis a lista das partes mais inteligíveis e

seguindo a própria ordem escolhida pelo antigo escritor sumério: 1 –

Soberania; 2 – Divindade; 3 - A sublime e permanente coroa; 4 - O trono

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real; 5 - O sublime cetro; 6 - As insígnias reais; 7 - O sublime santuário; 8 -

O pastoreio; 9 - A realeza; 10 - A durável senhoria; 11 - A “divina senhora”

(dignidade sacerdotal); 12 – O ishib (dignidade sacerdotal); 13 – O lumah

(dignidade sacerdotal); 14 – O gutug (dignidade sacerdotal)…” [A lista

segue até o número 67].

Essas “fórmulas divinas” (os ‘me’) reforçam a idéia da existência de uma

espécie de protótipo. Os ‘me’ parecem ser códigos replicativos para criar e

reproduzir um determinado tipo de civilização (ou padrão societário). A

existência material ou ideal dos ‘me’ como conhecimentos armazenáveis

em objetos que podiam ser transportados, evidencia que os sumérios não

apenas desenvolveram historicamente o que chamamos de civilização.

Eles também sistematizaram teoricamente um modelo dessa civilização

para ser replicado em outros locais.

Mas o mais relevante é a ordem em que aparecem tais “elementos

culturais”. Os seres humanos e suas características próprias e qualidades

distintivas só vão surgir lá pelo quadragésimo lugar. O schema é mítico,

sacerdotal, hierárquico e autocrático. Aliás, pode-se dizer que essas

“fórmulas divinas” são fórmulas da autocracia em “estado puro”.

E havia um ensinamento organizado sobre tudo isso. Pois bem. Tal

ensinamento a ser replicado foi o motivo de haver um ensino. Para mais

informações pode-se ler os textos indicados por LEICK (2001) e por

KRAMER (1956). Ou pode-se tentar decifrar o material disponível:

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377

Inana and Enki: cuneiform source translation at ETCSL (The Electronic Text

Corpus of Sumerian Literature, University of Oxford, England) in ETCSL

translation:

http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.1.3.1#

Cf. ainda: “What are ‘me’ anyway?” in Sumerian Mythology FAQ:

http://home.comcast.net/~chris.s/sumer-faq.html#A1.5

(7) Existem outras maneiras não verticais de representar essa árvore das

Sefirot. Cf. o blogpost “Sobre Kabbalah e redes: um abstruso paralelo

heurístico”:

http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/sobre-kabbalah-e-redes-um

(8) BLOOM, Harold (1975). Cabala e crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

(9) MATURANA, Humberto & VERDEN-ZÖLLER, Gerda (1993). Amor y

Juego: fundamentos olvidados de lo humano – desde el Patriarcado a la

Democracia. Santiago: Editorial Instituto de Terapia Cognitiva, 1997.

(Existe tradução brasileira: Amar e brincar: fundamentos esquecidos do

humano. São Paulo: Palas Athena, 2004).

(10) FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Novas visões sobre a

sociedade, o desenvolvimento, a internet, a política e o mundo

glocalizado. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008.

(11) FRANCO, Augusto (2008): O Olho de Hórus. Disponível em

http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/o-olho-de-horus

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378

(12) OSHO (Bhagwan Shree Rajneesh) (1978). A revolução: conversas

sobre Kabir. São Paulo: Academia de Inteligência, 2008.

(13) Idem.

(14) Comunicação pessoal ao autor de José Rocha: Frei Mateus Rocha

(1923-1985). Para saber quem foi José Rocha cf. POLETTO, Ivo (org.)

(2003). Frei Mateus Rocha: um homem apaixonado pelo absoluto. São

Paulo: Loyola, 2003.

(15) Agregadores de blogs que foram inventados com base em RSS não

resolvem o problema. O fato de se ter vários blogs em uma mesma

página, atualizando automaticamente as primeiras palavras das postagens

mais recentes de cada blog, não garante, nem favorece muito, qualquer

tipo de interação mais efetiva. Esses softwares produzem apenas índices

ilustrados dos blogs que foram agregados por iniciativa única e exclusiva

do administrador da página. Caso haja reciprocidade, ou seja, se todos os

agregados por um blog também agregarem os demais nos seus blogs,

essas ferramentas são boas para formar um grupo seleto (e

necessariamente pequeno, por motivos óbvios) de pessoas que se leem.

Também podem ser bastante úteis no caso de uma corporação (onde,

porém, o acesso à página agregada é, via de regra, fechado, pois, afinal,

uma corporação precisa se proteger da concorrência...) ou de uma

comunidade já existente. Mas, em geral, não são ferramentas eficazes de

netweaving, pois ninguém fica sabendo – a não ser que abra

seguidamente, várias vezes por dia, todos os blogs – o que cada um está

dizendo, no seu próprio blog, sobre o que outros postaram, nos deles.

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379

Ademais, não são viáveis para organizar o compartilhamento de agendas

(a única coisa que pode realmente “produzir” comunidade). As velhas

listas de e-mails com seus fóruns derivados são mais eficazes para esse

propósito.

(16) SCHMOOKLER, Andrew (1991): “O reconhecimento de nossa cisão

interior” in ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah (orgs.). Ao Encontro da

Sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São

Paulo: Cultrix, 1994.

(17) BRECHT, Bertold (1926-1956). Histórias do Sr. Keuner. São Paulo:

Editora 34, 2006.

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Como se tornar um netweaver

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Como se tornar um netweaver

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Como se tornar um netweaver

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NETWEAVER HOWTO

Augusto de Franco, 2012.

Versão Beta, sem revisão.

A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada

com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.

Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta

obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser

reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por

quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –

na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e

distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser

omitida a autoria da versão original.

FRANCO, Augusto de

NETWEAVER HOWTO / Augusto de Franco – São Paulo: 2012.

64 p. A4 – (Escola de Redes; 15)

1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.

Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e

à criação e transferência de tecnologias de netweaving.

http://escoladeredes.net

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387

SSuummáárriioo

Introdução | 9

Mentiras pregadas em nome da ciência | 11

Os indicadores de sucesso | 20

Hubs | 25

Inovadores | 28

Netweavers | 32

Netweaver howto | 34

Eles já estão entre nós | 46

Notas e referências | 54

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389

IInnttrroodduuççããoo

Sem dúvida, bebidas alcoólicas, tabaco etc.

são coisas que um santo deve evitar,

mas santidade também é algo que os seres humanos devem evitar.

George Orwell em Reflexões sobre Gandhi (1948)

A resiliência das velhas funções, agenciadoras de um tipo de mundo

(erigido para exterminar outros mundos) que teima em não desaparecer,

não está conseguindo impedir o surgimento de novos papéis sociais que

antecipam uma nova época.

Caminhando fora dos trilhos estabelecidos, emergem a cada dia novos

atores do mundo glocalizado. Sim, eles já estão entre nós. Não são

conhecidos porquanto não são pessoas que ficaram famosas segundo o

que até então era considerado indicador de sucesso: pelo seu poder, pela

sua riqueza ou pelo seu conhecimento atestado por títulos. Quem são?

Ora são os múltiplos anônimos conectados, habitantes de uma

diversidade incrível de Highly Connected Worlds, que não foram

produzidos por broadcasting. São como aquele personagem do romance

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“Distraction” de Bruce Sterling (1988) que, para se identificar, afirmou:

“Não temos raízes. Somos pessoas da rede. Temos antenas”.

Tais papéis inéditos que estão sendo produzidos pela (ou em) rede são

também múltiplos. Por enquanto só conseguimos divisar alguns. Três

exemplos marcantes são os hubs, os inovadores e os netweavers. Esses

novos papéis sociais são funções-fluzz (*)

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MMeennttiirraass pprreeggaaddaass eemm nnoommee ddaa cciiêênncciiaa

Os sobreviventes não são selecionados por seu sucesso evolutivo

OS PRINCIPAIS INDICADORES DE SUCESSO do mundo hierárquico, no

dealbar do século 21, ainda são a fama, o conhecimento atestado por

títulos, a riqueza e o poder.

A fama parece ser o principal indicador. Quem colecionou muitos

diplomas, acumulou riqueza ou conseguiu deter em suas mãos algum

poder de mandar nos outros, não se sentirá plenamente bem-sucedido se

não for conhecido por muita gente ou, pelo menos, por uma parcela

ponderável de seus pares.

Como critério de sucesso, a fama é inquestionável, indiscutível mesmo. Se

você virou uma celebridade, é sinal de que progrediu na vida. Deixou de

ser qualquer um. Destacou-se e continuará sendo destacado. Merecerá

tratamento especial aonde for. Não entrará na fila. Não receberá senhas.

O maitre logo lhe arranjará uma mesa, mesmo que o restaurante esteja

lotado. Não ficará aguardando atendimento nos bancos das repartições

públicas ou nos sofás das antessalas das organizações. E todos o

observarão com admiração, alguns deixarão escapar suspiros à sua

passagem, muitos o cumprimentarão como se o conhecessem de longa

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data; outros, mais afoitos, lhe pedirão autógrafos ou implorarão sua

licença para tirar uma foto ao seu lado.

Mas a fama não é necessariamente um prêmio pelo talento e sim o

resultado direto da exposição em algum meio de comunicação

centralizado, do tipo broadcasting (de mão única, um-para-muitos).

Qualquer pessoa que aparece regularmente na televisão (não importa se

apresentando um noticiário ou um programa de auditório ou atuando em

uma novela) fica famosa. Qualquer pessoa que atua com certo

protagonismo em um filme fica famosa. Qualquer pessoa que escreve

durante algum tempo em um grande jornal ou revista fica famosa.

Artistas, desportistas e até cientistas só ficam famosos porque são

transmitidos por broadcasting (do contrário ninguém os reconheceria na

rua). Mesmo os grandes teatros, estádios e auditórios de conferências,

nos quais um é visto por muitos, já são uma forma de “broadcasting”

(conquanto não permitam uma visualização tão massiva).

O mesmo ocorre com quem acumulou riqueza ou detém algum cargo de

poder. Mesmo estes fazem certo esforço financeiro para sair na revista

Caras ou nas chamadas colunas sociais. Por quê? Ora, porque estão

fazendo sucesso, estão seguindo os conselhos da mamãe para se destacar

dos demais. Encaram isso como um investimento, pois aprenderam desde

pequenos que só é possível fazer negócios – comerciais ou políticos – a

partir de relacionamentos (é isso que a ridícula literatura empresarial mais

recente chama de networking). Aprenderam que é preciso ser conhecido

como alguém que se destacou dos demais para ser incluído nos círculos de

Page 393: FLUZZ SÉRIE COMPLETA

393

relacionamentos daqueles que se destacaram dos demais (porque têm

fama, riqueza ou poder). Estão apenas pagando a joia, o preço para entrar

no clube. E a partir daí podem até ostentar alguns distintivos dos bem-

sucedidos, como fumar charutos e jogar golfe.

Quando questionadas, as pessoas que acreditam nesse tipo de coisa – e

são muitas – costumam dizer que a vida é assim mesmo. É uma luta. E que

é preciso vencer na vida: bah! A expressão, convenhamos, é muito

escrota: vencer quem? Por acaso estamos em uma guerra?

O problema é que estamos. E aí, como se diz, tudo é sacrificado em nome

da vitória, a começar pela verdade.

Para difundir a ideia de que a vida é uma guerra permanente recorre-se à

mentira. Para legitimar essa mentira alguns dizem que não somente a vida

humana é assim, mas a vida em geral. E aí dão os exemplos mais furados,

supostamente embasados na biologia da evolução, de que sempre vence

o mais forte ou o mais esperto e que a natureza seleciona os

sobreviventes por seu sucesso. Essa crença, entretanto, nada tem de

científica. Como escreveu a notável bióloga Lynn Margulis (1998), não é

que “os sobreviventes sejam selecionados por seu sucesso, mas sim que os

seres que não conseguem reproduzir-se antes de morrer são excluídos por

seleção” (1). Simples assim. Quase (tauto)lógico. Ou seja, a natureza não

premia apenas alguns, os mais destacados. E não há nada como uma “luta

pela vida” nos cinco reinos de organismos vivos – nem no reino das

bactérias, nem no dos protoctistas (como as amebas e conchas), nem no

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dos fungos (como os cogumelos), nem no das plantas, nem no dos animais

– com uma única exceção: os humanos.

O problema com essas leituras ideológicas do darwinismo (e com o

próprio darwinismo) é que, em algum momento do passado, projetamos

sobre a natureza a competição que observamos nos mercados (e na

política autocrática a eles associada) na antessala do nascente capitalismo

concorrencial europeu (sobretudo o inglês). Já se disse sobre isso que

selvagem não era bem a selva, mas a concorrência nesse capitalismo

inaugural (que, aliás, foi chamado, não por acaso, de “capitalismo

selvagem”) e que a “lei da selva” não saiu propriamente da selva para a

sociedade sob o influxo desse mercado nada-livre, mas, ao contrário, da

segunda para a primeira.

Capitalismo, ao contrário do que se pensa, não é livre mercado. Na sua

origem e em grande parte do seu desenvolvimento, ele foi – como já

dissemos e repetimos aqui – uma espécie de conúbio entre empresas

monárquicas e Estado autocrático hobbesiano (de lá para cá, o Estado se

democratizou um pouco, porém as empresas – em sua maioria –

continuaram monárquicas, mas isso não vem ao caso agora). O fato é que,

independentemente das atuais leituras do darwinismo urdidas para

legitimar a idéia de sucesso competitivo-excludente, o darwinismo foi

capturado por uma corrente de pensamento hobbesiana e transformado,

desde o princípio, em “darwinismo social”.

Como percebeu com argúcia Matt Ridley (1996), “Thomas Hobbes foi o

antepassado intelectual de Charles Darwin em linha direta” (2). Segundo

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Hobbes (que tantos citam e poucos leem) na falta de um poder que

domestique ou apazigue os homens, “não há sociedade; e o que é pior do

que tudo, [há] um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do

homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta” (3). E isso ocorre,

segundo ele, não por razões culturais, que emanassem da forma como a

sociedade se organiza, mas intrínsecas: uma espécie de inclinação

“genética” – e Hobbes (1651) só não disse isso porquanto Mendel (1864)

ainda não havia nascido. Sim, foi exatamente o que ele escreveu, sem

meias-palavras, no famoso capítulo XIII do “Leviatã”: “Na natureza do

homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a

competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” (4). Para ele o

egoísmo e seus bad feelings acompanhantes (como a desconfiança) não

eram culturais, mas tinham sua origem na própria natureza humana (seja

lá o que isso for).

Muito tempo depois surgiu toda uma linhagem de tarados individualistas

mais intelectualizados (como Ayn Rand e Ludwig von Mises) construindo

suas ortodoxias com base nesse pressuposto metafísico, segundo o qual o

homem é inerentemente competitivo, que o egoísmo é a força motriz da

criatividade e que a cooperação e o altruísmo são um atraso de vida.

Trata-se, é claro, de uma impostura antropológica que não pode ser

justificada pela ciência. Mas muitos – com estruturas mentais um pouco

mais simples do que Rand e von Mises – ainda tentam embasá-la com

hipóteses científicas para aumentar-lhe a verossimilhança. Dizem então

que basta olhar o comportamento dos outros seres vivos para perceber

que essa é “a ordem natural das coisas”.

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396

E citam exemplos. As abelhas têm sua rainha. Os formigueiros têm seus

chefes. Os pássaros que voam em bando seguem sempre o seu líder. Ou

seja, por toda parte que se olhe, sempre há os que dirigem e os que são

dirigidos. E os que dirigem foram os que conseguiram se destacar dos

demais, por serem mais bem-dotados (!), mais capazes de desenvolver

suas próprias potencialidades como indivíduos e, sobretudo, mais aptos a

enfrentar a luta pela vida saindo-se vitoriosos. Um leão protege o seu

território (e suas fêmeas) afugentando os outros leões na base de rugidos,

patadas e mordidas. Em várias espécies animais o macho-alfa impõe seu

domínio pela força, pela destreza ou pela esperteza, batendo a

concorrência. E o mais forte vence, fere, mata ou devora o mais fraco.

Sim, é “a natureza, vermelha em dentes e em garras” (5) como cantou o

poeta Tennyson (1849) no poema In Memorian A. H. H.

De sorte que se disseminou a crença segundo a qual no mundo humano,

semelhantemente ao que ocorre no mundo animal (e nos outros reinos de

organismos vivos), ter sucesso é sempre se destacar dos demais, vencê-

los, sobretudo em contextos em que há escassez – tudo isso baseado no

egoísmo.

Ora, se ter sucesso em condições de escassez (e dependendo do modo de

olhar sempre encontraremos escassez de algum recurso em toda parte) é

se destacar dos demais, isso significa que há uma economia política do

sucesso, ou seja, a escassez precisa ser administrada. Se todos tivessem

sucesso, cada qual naquilo que realiza de uma maneira peculiar (e que só

ele pode realizar daquela maneira), o sucesso não seria um prêmio pela

vitória. Vitória é o triunfo em uma luta, aquele triunfo que recebiam os

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generais romanos, atributo da sua glória, conquanto a glória (escoimada

da ideologia que a acompanhava) não passasse de uma metáfora para a

fama possível naquela época: não havia TV e os caras precisavam desfilar

em carro aberto com a coroa de louros nas praças e estádios para serem

vistos (e isso não deixava de ser uma difusão por broadcasting, pois que

um era visto por muitos).

Mas essa escassez – segundo a qual no pódio só cabem alguns – é gerada

artificialmente pela construção de um pódio em que só cabem alguns. Eis

o ponto! Não precisava ser assim. Da mesma forma, não há nenhuma lei

natural segundo a qual os jogos precisem ser, quase todos, baseados no

padrão perde-ganha; ou, como observou George Orwell (1945), como uma

espécie de “guerra sem mortes” (6). A invenção da escassez replica um

padrão piramidal de organização: poucos em cima e muitos na base. Com

aqueles degrauzinhos dispostos em diferentes níveis, os pódios são

pirâmides.

Se as mentes simples que gostam de sacar exemplos do mundo natural se

esforçassem um pouco mais para acompanhar as descobertas científicas,

veriam que não há pódios nos reinos de organismos vivos (com exceção

do humano). E não há porque não é necessário. Há quatro bilhões de anos

a vida vem trabalhando com redundância (e, portanto, com abundância):

mesmo quando os recursos sobrevivenciais se esgotam para uma

população, a evolução compensa essa (aparente) escassez desenvolvendo

novas habilidades na espécie atingida, novas sinergias entre várias

espécies e simbioses entre espécies diferentes gerando novas espécies

adaptadas às condições mutantes.

Page 398: FLUZZ SÉRIE COMPLETA

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O padrão jamais é o da luta, tal como nós, os humanos, a concebemos. O

padrão jamais é de competição, como a praticamos. Não há nenhum

triunfo e os indivíduos de qualquer espécie não-humana, por mais que

tenham conseguido superar grandes dificuldades para sobreviver ou se

reproduzir, não desfilam em carro aberto como os generais romanos.

Maturana já nos mostrou que animais não-humanos não competem por

alimentos, simplesmente seguem seu impulso de se alimentar, não

importando para nada se outro exemplar da espécie ficou sem alimento;

ou seja, não é constitutiva da sua ação (nem da sua emoção, no caso dos

mamíferos), a diretiva de vencer o outro (não sendo essencial para quem

come o fato de que o outro deixe de comer) (7).

Da mesma forma, não há liderança nos reinos de organismos (com

exceção dos humanos, no reino animal). A abelha rainha não lidera as

outras abelhas. As colônias de formigas não têm chefe (nem coordenador,

nem facilitador). Como escreveu a cientista Deborah Gordon (1999) –

professora de ciências biológicas em Stanford, que pesquisou durante 17

anos colônias de formigas no Arizona –, “o mistério básico que cerca as

colônias é que nelas não há administração... Não há nenhum controle

central. Nenhum inseto dá ordens a outro ou o instrui a fazer coisas de

determinada maneira... De fato, não há entre elas líderes de qualquer

espécie”. E não há, ademais, qualquer programação genética capaz de

determinar um tipo de comportamento especializado em relação aos

demais indivíduos da espécie: “as formigas não nascem para executar

certa tarefa; a função de cada uma delas muda juntamente com as

condições que encontra, incluindo as atividades de outras formigas” (8).

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Outra hipótese perversa, supostamente científica – que também tem sido

instrumentalizada para legitimar a idéia de sucesso competitivo-

excludente – é a de que existe uma escala evolutiva segundo a qual alguns

seres vivos seriam mais “evoluídos” do que outros. E assim como o

homem seria mais evoluído do que o macaco ou do que uma fischerella

(uma cyanobactéria), assim também, entre os próprios seres humanos,

alguns seriam mais “evoluídos” do que outros: ou seja, a evolução natural

se espelharia ou teria uma espécie de continuidade em uma evolução

cultural (frequentemente chamada de “espiritual”) baseada em fatores

naturais diferenciados (daí as perversões que levaram alguns a justificar a

superioridade do “macho branco no comando”: os caucasianos seriam

superiores aos negros, amarelos e pardos, os machos seriam superiores às

fêmeas, os arianos seriam superiores às demais “raças” humanas e outras

barbaridades).

Nada disso! Novamente aqui é Lynn Margulis (1998) que vem puxar a

orelha dos impostores:

“Todas as espécies existentes são igualmente evoluídas. Todos os

seres vivos, desde a minúscula bactéria até o membro de um comitê

do Congresso, evoluíram do antigo ancestral comum que

desenvolveu a autopoese e que, com isso, tornou-se a primeira

célula viva. A própria realidade da sobrevivência prova a

“superioridade”, já que todos descendemos de uma mesma forma

originária metabolizadora. A delicada explosão da vida, em uma

sinuosa trajetória de quatro bilhões de anos até o presente,

produziu-nos a todos” (9).

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OOss iinnddiiccaaddoorreess ddee ssuucceessssoo

Destacar-se dos demais, triunfar, vencer na vida, subir ao pódio onde

cabem apenas alguns poucos

MALCOLM GLADWELL (2008) escreveu um livro de quase trezentas

páginas, intitulado Outliers, para chegar à conclusão que “o outlier, no fim

das contas, não está tão a margem assim”. Ou seja, os bem-sucedidos são

frutos de uma constelação particularíssima e imprevisível de fatores,

alguns conhecidos, outros desconhecidos. Como ele próprio escreve,

“advogados celebridades, prodígios da matemática e empresários de

software parecem, à primeira vista, estar fora da experiência comum. Mas

não estão. Eles são produtos da história, da comunidade, das

oportunidades e dos legados. Seu sucesso não é excepcional nem

misterioso. Baseia-se em uma rede de vantagens e heranças, algumas

merecidas; outras, não; algumas conquistadas, outras obtidas por pura

sorte – todas, porém, cruciais para torná-los o que são” (10).

Sim, ele tem razão: nem excepcional, nem misterioso. No entanto, a

combinação ideal, a “fórmula” do sucesso é desconhecida e varia de

acordo com as condições de trajetória, tempo e lugar para cada indivíduo.

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401

“Os mitos dos melhores e mais brilhantes e do self-made man

afirmam que, para obtermos o máximo em potencial humano, basta

identificarmos as pessoas mais promissoras. Olhamos para Bill

Gates e dizemos, em um espírito de autocongratulação: “Nosso

mundo permitiu que aquele adolescente de 13 anos se tornasse um

empresário tremendamente bem-sucedido”. Mas essa é a lição

errada. O mundo só deixou que uma pessoa de 13 anos tivesse

acesso a um terminal de tempo compartilhado em 1968. Se um

milhão de adolescentes tivesse recebido uma oportunidade idêntica,

quantas outras Microsofts existiriam hoje? Quando compreendemos

mal ou ignoramos as verdadeiras lições do sucesso, desperdiçamos

talentos... Agora multiplique esse potencial perdido por cada campo

e profissão. O mundo poderia ser bem mais rico do que este em que

nos acomodamos” (11).

No segundo capítulo do livro, Gladwell conta a história de Bill Gates,

sublinhando o fato de que ele foi matriculado em uma escola particular

que criou um clube de informática. Essa escola especial investiu, em 1968,

três mil dólares na compra de um terminal de tempo compartilhado ligado

a um mainframe no centro de Seattle. Assim, Gates, quando ainda estava

na oitava série, passou a viver em uma sala de computador (20 a 30 horas

por semana). De sorte que, “quando deixou Harvard após o segundo para

criar sua própria empresa de software, Gates vinha programando sem

parar por sete anos consecutivos... Quantos adolescentes tiveram esse

mesmo tipo de experiência?” É o próprio Bill Gates que responde: “Se

existiram 50 em todo mundo, eu me espantaria. Houve a C-Cubed e o

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trabalho para a ISI com a folha de pagamento. Depois a TRW. Tudo isso

veio junto. Acredito que meu envolvimento com a criação de softwares

durante a juventude foi maior do que o de qualquer outra pessoa naquele

período, e tudo graças a uma série incrivelmente favorável de eventos”

(12).

Todos os outliers que Gladwell analisou no livro “foram favorecidos por

alguma oportunidade incomum [como, no caso de Gates, estar na escola

Lakeside em 1968]. Golpes de sorte não costumam ser exceção entre

bilionários de software, celebridades de rock e astros dos esportes. Pelo

contrário, parecem constituir a regra” (13).

Responsabilizar a sorte não acrescenta muito conhecimento sobre o

fenômeno. Se continuarmos focalizando o indivíduo, a equação não terá

solução. Ou melhor, não conseguiremos nem equacionar o problema (já

que solução mesmo dificilmente haverá), o que poderia acrescentar, aí

sim, algum conhecimento novo. Mas Gladwell erra um pouco o alvo. Não

é que tudo se baseia – como ele diz, falando metaforicamente – “em uma

rede de vantagens e heranças” e sim que tudo depende (muito mais do

que pensamos) de uma rede mesmo, de uma rede social propriamente

dita. Quando ele afirma que o sucesso dos bem-sucedidos não foi criado

só por eles, mas “foi o produto do mundo onde cresceram”, deixa de ver

que esse mundo não é o mundo físico, nem ‘o mundo’ como noção

abstrata usada para designar a totalidade da existência e sim o mundo

social, quer dizer, a rede social a que estão conectados seus outliers. Eis o

erro: ver o indivíduo e não ver a rede; ver a árvore, mas não ver a floresta

(e sobretudo não ver a incrível rede miceliana, o clone fúngico que está

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por baixo da floresta e sem a qual ela não poderia existir); ver o organismo

vivo, mas não ver o ecossistema em que ele está inserido. É a estrutura e o

metabolismo da rede social que podem revelar as condições para o papel

mais ou menos relevante assumido, em cada tempo e lugar (ou seja, em

cada cluster), pelos seus nodos.

Em uma sociedade cuja topologia e dinâmica se aproximam, cada vez

mais, das de uma rede distribuída – a chamada sociedade em rede,

emergente nas últimas décadas – isso ficará cada vez mais evidente. Os

critérios de sucesso nesse tipo de sociedade tendem a deixar de ser

baseados em características puramente individuais e em noções

competitivo-excludentes (se destacar dos demais, triunfar, vencer na vida,

subir ao pódio onde cabem apenas alguns poucos) para passar a ser

função de um corpo e de um metabolismo coletivos: a própria rede.

Não se trata de coletivos indiferenciados, segundo uma velha perspectiva

coletivista, própria dos condutores de rebanhos (sejam ditadores ou

manipuladores de massas, de direita ou de esquerda, contra os quais os

individualistas têm razão nas críticas que fazem) e sim de arranjos de

pessoas. A pessoa é o indivíduo conectado e que, portanto, não se

constitui apenas como um íon social vagando em um meio gelatinoso e

exibindo orgulhosamente suas características distintivas e sim também

como um entroncamento de fluxos, uma identidade que se forma a partir

da interação com outros indivíduos.

É por isso que o tipo de educação que recebemos para nos destacar dos

semelhantes é terrivelmente prejudicial em uma sociedade em rede, na

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qual estão abertas infinitas possibilidades de polinização mútua e de

fertilização cruzada que impulsionam a inovação e o desenvolvimento

pessoal e coletivo.

Essa idéia é desastrosa, porquanto, sob sua influência, desperdiçamos as

potencialidades criativas e inovadoras das múltiplas parcerias e sinergias

que o relacionamento horizontal entre as pessoas proporciona. Guiados

por ela, perdemos talentos, bloqueamos a dinamização de inusitadas

capacidades coletivas, matamos no embrião futuros gênios e

exterminamos o mais precioso recurso para o desenvolvimento de

pessoas e comunidades: o capital social (que é uma metáfora, construída

do ponto de vista dos recursos necessários ao desenvolvimento, para

designar nada mais do que a própria rede social).

Assim, antes de qualquer coisa, tanto a idéia quanto a própria palavra

‘sucesso’ deverão ser abolidas. Trata-se agora, outrossim, de reconhecer

papeis relevantes.

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405

HHuubbss

Qualquer iniciativa na rede social que não conte com seus principais

hubs encontrará mais dificuldades para “conversar” com a rede-mãe

DENTRE OS NOVOS PAPÉIS relevantes em uma sociedade em rede o mais

evidente é o hub. Todas as pessoas são hubs ou têm uma porção-hub. Sem

tal característica não poderíamos ser humanos, quer dizer, não seríamos

pessoas porque não poderíamos interagir com outras pessoas. No

entanto, se olharmos o aglomerado da rede social em que estão

conectadas, algumas pessoas – nem sempre as mesmas em todas as

situações – desempenham o papel social de hubs stricto sensu.

Os hubs – como a palavra está dizendo – são os conectores, os nodos da

rede social muito conectados, são os entroncamentos de fluxos. Um hub

não é necessariamente alguém com grande popularidade ou notoriedade

e sim alguém com muitas relações, que pode acessar — e ser acessado

por — outros nodos com baixo grau de separação. Quando uma pessoa

perde sua porção-hub, provavelmente alguma patologia psíquica nela vai

se manifestar, como – veremos mais adiante – soe acontecer com os

muito famosos.

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406

Não é a fama que faz um hub. Pessoas famosas, celebridades, costumam

ser, em geral, inacessíveis. Não são, portanto, conectores. Qualquer

iniciativa na rede social que não conte com seus principais hubs

encontrará mais dificuldades para “conversar” com a rede-mãe (que é

uma metáfora para designar o acesso ao mundo social, sempre oculto, já

que não aparece como objeto porquanto fractalizado e em fluição, quer

dizer, sendo criado a cada instante).

Também não é o conhecimento que faz um hub, a não ser que se queira

relacioná-lo ao conhecimento das pessoas, quer dizer, aos contatos de

confiança. Às vezes um hub é o chaveiro do bairro, em quem as pessoas

confiam que sua segurança residencial não será colocada em risco — e

aqui é evocada uma imagem do filme The Matrix: aquele “O Chaveiro”,

interpretado pelo ator Randall Duk Kim, era um programa confiável; um

hub, de certo modo, também é um programa que “roda” na rede. Tocou-

se agora em um ponto importante da dinâmica das redes: confiança. Para

que um hub possa cumprir sua função é necessário que as pessoas

confiem nele.

Em vez de conhecimento individual, um hub precisa do reconhecimento

social. Trata-se de um reconhecimento diferente daquele que se

manifesta em relação a uma celebridade: não é um reconhecimento das

massas, do grande público, das multidões e sim o reconhecimento

realizado um a um, molecular. Assim, pode-se dizer que o hub é

“produzido” socialmente pela rede.

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407

Em mundos altamente conectados um hub tende a cumprir um papel

socialmente mais relevante do que os que colecionaram muitos títulos

acadêmicos, acumularam muita riqueza ou conquistaram muito poder.

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IInnoovvaaddoorreess

Em mundos altamente conectados um inovador tende a cumprir um

papel social mais relevante do que o dos colecionadores de diplomas

A RIGOR – E EM UM SENTIDO GERAL – todas as pessoas são inovadoras.

Se não fossem, se não tivessem a capacidade de modificar passado, de

introduzir uma nova rotina ou uma nova dinâmica que rompe com a

repetição de passado, não poderiam ter (novas) ideias: estariam

psicologicamente mortas.

Chama-se, porém, de inovadores, stricto sensu, àqueles que cumprem o

papel social de introduzir inovações que modificam a maneira como uma

rede se configura, provocando desequilíbrios que alteram os ritmos e os

caminhos das fluições.

Inovadores são muito diferentes dos hubs. Em geral não são conhecidos —

e não conhecem — muita gente, nem são, na maior parte dos casos,

muito conectados. Às vezes, são até bastante isolados. Podem vir a ser

amplamente reconhecidos, mas isso depende de fatores, via de regra,

fortuitos. A característica principal do inovador é emitir mensagens na

rede que acabam produzindo mudanças de comportamento dos agentes

(considerando a rede social como um sistema de agentes).

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409

Quando esse processo ocorre, o inovador não sabe bem nem por quê nem

o quê aconteceu. Formaram-se laços de realimentação de reforço

(feedback positivo) e a mensagem emitida pelo inovador acabou sendo

reforçada e amplificada, adquirindo condições de se disseminar pela rede.

Tais mensagens podem ser ideias, modos de fazer ou estilos (como a

moda, por exemplo), atitudes que contenham novos padrões. Sim, não

custa repetir: um padrão é uma mensagem e pode ser transmitido como

tal, como já dizia, há tanto tempo, Norbert Wiener (1950) (14).

O inovador — tal como o hub — também é “produzido” socialmente pela

rede. Ninguém vira inovador apresentando sua inovação na TV, nos

jornais ou anunciando-a em um evento massivo. A inovação é uma

perturbação no tecido social que vai se espalhando molecularmente,

ponto a ponto. Pequenas perturbações, mesmo que partam da periferia

do sistema (quer dizer, de regiões pouco clusterizadas da rede social), são

capazes de se disseminar se conseguirem atingir uma espécie de tipping

point (a coisa parece funcionar da mesma forma que a propagação

epidemiológica), mas para cada configuração de rede e, a rigor, para cada

tipo de mensagem, pode-se ter um “ponto de desequilíbrio” diferente, a

partir do qual a mensagem passa a se disseminar exponencialmente.

Nem sempre, porém, os inovadores veem os resultados de sua inovação.

Muitas vezes, eles desencadeiam mudanças de comportamento que só

vão aparecer muito tempo depois, quando não se pode mais atribuir a um

inovador particular a paternidade da inovação, pois é próprio da dinâmica

da rede social que muitas mensagens se misturem, combinem-se e se

transformem em outras mensagens.

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410

Uma longa jornada ainda será percorrida antes de se assumir mais

amplamente esses novos paradigmas, o que não significa que eles já não

estejam vigendo. Quem já está nos novos Highly Connected Worlds se

comporta mais ou menos assim. Basta ver o que começa a ocorrer nos

meios científicos: no passado, um pesquisador, para ser reconhecido,

precisava se submeter ao conselho editorial de uma publicação autorizada

pelas instituições acadêmicas e esperar alguns meses (às vezes muitos)

para ter seu trabalho publicado (ou rejeitado). Hoje, boa parte desse

pessoal publica, em seus próprios blogs, as descobertas que vai fazendo,

imediatamente e sem pedir licença a ninguém. Há que se convir que essa

é uma mudança é tanto!

Acontecerá com os inovadores o que já acontece com algumas atividades

intelectuais ou exercidas livremente na área do conhecimento; por

exemplo, com os escritores.

Escritor é quem escreve. O escritor é reconhecido pelos que leem o que

ele publica e não em virtude de ter obtido um título acadêmico ou uma

licença de uma corporação de escribas para escrever ou, ainda, um

atestado concedido por uma burocracia qualquer. Assim, em mundos

altamente conectados um inovador também tende a cumprir um papel

social mais relevante do que o dos que colecionaram muitos títulos

acadêmicos.

A rede é uma ótima oportunidade para se quebrar o poder das

burocracias do conhecimento. Na verdade, para quebrar o poder de

qualquer burocracia.

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“Quebrar” (to crack) é a primeira medida para desobstruir o que foi

entupido. Quanto mais ocorrem eventos de desobstrução, mais a

sociedade vai se comportando como uma entidade que aprende, pois o

que é chamado de aprendizagem é sempre a abertura de novos caminhos.

E mais, a sociedade vai se desenvolvendo, pois o que chamamos de

desenvolvimento é a mesmíssima coisa: a abertura de novas

oportunidades de conexão (15).

Este, porém, é o papel dos netweavers.

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NNeettwweeaavveerrss

Todas as pessoas têm uma porção-netweaver. Se não fosse assim, não

poderiam ser seres políticos

NETWEAVERS SÃO OS “TECELÕES” (para aproveitar o que poderia ter sido

uma feliz expressão de Platão, no diálogo O político, se ele não estivesse

se referindo a um sujeito autocrático), e os animadores de redes

voluntariamente construídas. Na verdade, eles constroem interfaces para

conversar com a rede-mãe. Os netweavers não são necessariamente os

estudiosos das redes, os especialistas em Social Network Analysis ou os

que pesquisam ou constroem conhecimento organizado sobre a

morfologia e a dinâmica da sociedade-rede. Os netweavers, em geral, são

políticos, não sociólogos. E políticos no sentido prático do termo, quer

dizer, articuladores políticos, empreendedores políticos e não cientistas

ou analistas políticos.

Os políticos tradicionais, entretanto, não são netweavers e sim,

exatamente, o contrário disso: eles hierarquizam o tecido social,

verticalizam as relações, introduzem centralizações, obstruem os

caminhos, destroem conexões, derrubam pontes ou fecham os atalhos

que ligam um cluster a outros clusters, separando uma “região” da rede de

outras “regiões”, excluem nodos; enfim, introduzem toda sorte de

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anisotropias no espaço-tempo dos fluxos. Fazem tudo isso porque o tipo

de poder com o qual lidam — o poder, em suma, de mandar alguém fazer

alguma coisa contra sua vontade — é sempre o poder de obstruir, separar

e excluir. E é o poder de introduzir intermediações ampliando o

comprimento da corrente, dilatando a extensão característica de caminho

da rede social ou aumentando seus graus de separação, ou seja,

diminuindo a conectividade (e a interatividade). Não é por outro motivo

que os políticos tradicionais funcionam, via de regra, como despachantes

de recursos públicos, privatizando continuamente o capital social. Pode-se

dizer que, nesse sentido, os políticos tradicionais são os anti-netweavers,

visto que contribuem para tornar a rede social menos distribuída e mais

centralizada ou descentralizada, isto é, multicentralizada. Também não é à

toa que todas as organizações políticas — mesmo no interior de regimes

formalmente democráticos — têm topologia mais centralizada do que

distribuída. Essa também é uma maneira de descrever, pelo avesso, o

papel dos netweavers.

Todas as pessoas têm uma porção-netweaver. Se não fosse assim, não

poderiam ser seres políticos (e a democracia jamais poderia ter sido

inventada e reinventada).

Mas em sentido estrito, chamamos de netweavers aqueles que se

dedicam a tecer redes. Esse talvez seja o papel social mais relevante em

mundos altamente conectados. O que significa que, em um mundo

hierárquico, o netweaver é necessariamente um hacker (embora não seja

apenas isso).

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NNeettwweeaavveerr hhoowwttoo

Há dez anos Eric Raymond concluiu a última versão do seu H4ck3r

Howto. Entrando em uma época-fluzz, vamos precisar de um N3tw34v3r

Howto

EM “COMO SE TORNAR UM HACKER” (texto que ficou conhecido em

alguns meios como Hacker Howto), Eric Raymond (1996-2001) escreveu

uma espécie de manual autodidático de aprendizagem sobre hacking.

Para ele, o “hacking é uma atitude e uma habilidade na qual você tem que

basicamente ser autodidata. Você verá que, embora hackers de verdade

queiram lhe ajudar, eles não o respeitarão se você pedir "mastigado" tudo

que eles sabem. Aprenda algumas coisas primeiro. Mostre que você está

tentando, que você é capaz de aprender sozinho. Depois faça perguntas

aos hackers que encontrar” (16).

Raymond afirma que o termo “hacker” tem a ver “com aptidão técnica e

um prazer em resolver problemas e superar limites”. Para ele, se você quer

saber como se tornar um hacker, o relevante é o seguinte:

“Existe uma comunidade, uma cultura compartilhada, de

programadores experts e gurus de rede cuja história remonta a

decadas atrás, desde os primeiros minicomputadores de tempo

compartilhado e os primeiros experimentos na ARPAnet. Os

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membros dessa cultura deram origem ao termo "hacker". Hackers

construíram a Internet. Hackers fizeram do sistema operacional Unix

o que ele é hoje. Hackers mantém a Usenet. Hackers fazem a World

Wide Web funcionar. Se você é parte desta cultura, se você

contribuiu a ela e outras pessoas o chamam de hacker, você é um

hacker.

A mentalidade hacker não é confinada a esta cultura do hacker-de-

software. Há pessoas que aplicam a atitude hacker em outras

coisas, como eletrônica ou música – na verdade, você pode

encontrá-la nos níveis mais altos de qualquer ciência ou arte.

Hackers de software reconhecem esses espíritos aparentados de

outros lugares e podem chamá-los de "hackers" também – e alguns

alegam que a natureza hacker é realmente independente da mídia

particular em que o hacker trabalha. Mas no restante deste

documento, nos concentraremos nas habilidades e dos hackers de

software, e nas tradições da cultura compartilhada que deu origem

ao termo ‘hacker'” (17).

É claro que a maioria dessas habilidades e atividades que caracterizam o

“hacker-de-software” hoje não se colocariam mais assim. A comunidade

restrita dos programadores que cultivavam a cultura hacker explodiu para

além dos limites de uma igrejinha. Essas habilidades e atividades estão

agora distribuídas praticamente por todas as redes que usam a Internet.

No entanto, o mais relevante é que Raymond considerava que hacker é

todo aquele que pratica uma “arte criativa” e, assim, não se reduz ao que

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faz o hacker-de-software, mas está baseada em quatro coisas: uma

atitude geral, um conjunto de habilidades, uma cultura e uma

mentalidade hacker.

Segundo Raymond, a atitude hacker poderia ser assim resumida:

“Hackers resolvem problemas e constroem coisas, e acreditam na

liberdade e na ajuda mútua voluntária. Para ser aceito como um

hacker, você tem que se comportar de acordo com essa atitude. E

para se comportar de acordo com essa atitude, você tem que

realmente acreditar nessa atitude... Assim como em todas as artes

criativas, o modo mais efetivo para se tornar um mestre é imitar a

mentalidade dos mestres – não só intelectualmente como

emocionalmente também” (18).

É significativo que Raymond tenha insistido nesse ponto, aduzindo à

explicação acima o moderno poema zen: “To follow the path: look to the

master, follow the master, walk with the master, see through the master,

become the master” (Para seguir o caminho: olhe para o mestre, siga o

mestre, ande com o mestre, veja através do mestre, torne-se o mestre)

(19).

“Então - recomenda Raymond – se você quer ser um hacker, repita as

seguintes coisas até que você acredite nelas”. E aí elenca cinco crenças

básicas que, segundo seu ponto de vista, são acordes à atitude hacker: o

mundo está repleto de problemas fascinantes esperando para serem

resolvidos (20); não se deve resolver o mesmo problema duas vezes (21);

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tédio e trabalho repetitivo são nocivos (22); liberdade é uma coisa boa

(23); e atitude não substitui competência (24).

No seu conjunto essas crenças configuram um bom libelo contra o

trabalho (que ele chama de trabalho repetitivo: “tédio e trabalho

repetitivo não são apenas desagradáveis, mas nocivos também”) e a favor

da diversão (sem negar a necessidade do esforço e da concentração: “o

trabalho duro e a dedicação se tornará uma espécie de um intenso jogo,

ao invés de trabalho repetitivo”); um estímulo à criatividade; uma aposta

no auto-aprendizado; um certo desprezo em relação ao desejo de obter

aprovação social ou buscar a fama; um elogio à capacidade de viver com o

necessário e de compartilhar gratuitamente (segundo Raymond, “é quase

um dever moral compartilhar informação, resolver problemas e depois dar

as soluções”); e – o mais importante – uma valorização da liberdade.

Sobre isso ele escreveu:

“Liberdade é uma coisa boa. Hackers são naturalmente anti-

autoritários. Qualquer pessoa que lhe dê ordens pode impedi-lo de

resolver qualquer que seja o problema pelo qual você está fascinado

– e, dado o modo em que a mente autoritária funciona, geralmente

arranjará alguma desculpa espantosamente idiota para fazer isso.

Então, a atitude autoritária deve ser combatida onde quer que você

a encontre, para que não sufoque a você e a outros hackers...

Pessoas autoritárias prosperam na censura e no segredo. E

desconfiam de cooperação voluntária e compartilhamento de

informação – só gostam de "cooperação" que eles possam controlar.

Então, para se comportar como um hacker, você tem que

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desenvolver uma hostilidade instintiva à censura, ao segredo, e ao

uso da força ou mentira para compelir adultos responsáveis. E você

tem que estar disposto a agir de acordo com esta crença” (25).

Raymond lista em seguida as três habilidades básicas do hacker-de-

software: aprender a programar, aprender a mexer com Unix e aprender a

usar a World Wide Web e escrever em HTML.

Sobre a cultura hacker, Eric Raymond observa:

“Como a maioria das culturas sem economia monetária, a do hacker

se baseia em reputação. Você está tentando resolver problemas

interessantes, mas quão interessantes eles são, e se suas soluções

são realmente boas, é algo que somente seus iguais ou superiores

tecnicamente são normalmente capazes de julgar.

Consequentemente, quando você joga o jogo do hacker, você

aprende a marcar pontos principalmente pelo que outros hackers

pensam da sua habilidade (por isso você não é hacker até que outros

hackers lhe chamem assim). Esse fato é obscurecido pela imagem

solitária que se faz do trabalho do hacker; e também por um tabu

hacker-cultural que é contra admitir que o ego ou a aprovação

externa estão envolvidas na motivação de alguém. Especificamente,

a cultura hacker é o que os antropólogos chamam de cultura de

doação. Você ganha status e reputação não por dominar outras

pessoas, nem por ser bonito, nem por ter coisas que as pessoas

querem, mas sim por doar coisas. Especificamente, por doar seu

tempo, sua criatividade, e os resultados de sua habilidade” (26).

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Para Raymond existem basicamente “cinco coisas que você pode fazer

para ser respeitado por hackers”: escrever open-source software, ajudar a

testar e depurar open-source software, publicar informação útil, ajudar a

manter a infraestrutura funcionando e servir à cultura hacker em si.

Sobre esse último ponto, vale a pena ler o que ele escreveu:

“Você pode servir e propagar a cultura em si (por exemplo,

escrevendo um apurado manual sobre como se tornar um hacker).

Você só terá condição de fazer isso depois de ter estado por aí por

um certo tempo, e ter se tornado conhecido por uma das primeiras

quatro coisas. A cultura hacker não têm líderes, mas têm seus heróis

culturais, "chefes tribais", historiadores e porta-vozes. Depois de ter

passado tempo suficiente nas trincheiras, você pode ser tornar um

desses. Cuidado: hackers desconfiam de egos espalhafatosos em

seus "chefes tribais", então procurar visivelmente por esse tipo de

fama é perigoso. Ao invés de se esforçar pela fama, você tem que de

certo modo se posicionar de modo que ela "caia" em você, e então

ser modesto e cortês sobre seu status” (27).

Por último, sobre a mentalidade hacker, Raymond diz que, para entrar

nessa mentalidade “há algumas coisas que você pode fazer quando não

estiver na frente de um computador e que podem ajudar... [coisas que]

estão ligadas de uma maneira básica com a essência do hacking”: ler

ficção científica, estudar o Zen ou fazer artes marciais, desenvolver um

ouvido analítico para música, desenvolver sua apreciação por trocadilhos

e jogo de palavras e aprender a escrever bem em sua língua nativa (28).

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Raymond nos deu algumas preciosas dicas – embora tenha, aqui e ali,

corretamente, extrapolado isso – para que pudéssemos programar em

ambientes digitais ou virtuais. A ele certamente ocorreu, mas disso

aparentemente não tirou muitas consequências, que hackers não são

programadores; são, mais, desprogramadores. Você pode hackear uma

escola, uma igreja, um partido, uma organização estatal, uma empresa,

sem nunca ter encostado em um computador ou em um dispositivo móvel

de navegação. A rigor, você pode (e deveria, se quisesse mesmo viver em

outro mundo) hackear sua família.

Não se trata, portanto, apenas de elaborar e modificar softwares e

hardwares de computadores, desenvolvendo funcionalidades novas ou

adaptando as antigas à revelia (ou não) dos seus proprietários. Nem se

trata de invadir para bagunçar, violar, roubar senhas, tirar do ar, como se

diz que fazem os hackers sem ética, ou sem a ética-hacker, os dark-side

hackers como os crackers.

Há dez anos Eric Raymond concluiu a última versão do seu H4ck3r Howto.

Mas agora, entrando em uma época-fluzz, vamos precisar de um

N3tw34v3r Howto.

Se você quiser se dedicar ao netweaving, comece esquecendo toda essa

bullshit sobre ética como conjunto de normas sobre o que fazer ou não-

fazer válidas para qualquer interação e estabelecidas antes da interação.

O que caracteriza o netweaver é o que ele faz e não um conjunto de

crenças ou valores, por mais excelsos, solidários ou do-bem que possam

ser estimados.

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Todo netweaver é um hacker no sentido ampliado do termo (para além do

“hacker-de-software”). Mas nem todo hacker é netweaver. O netweaver é

um hacker-fluzz. Para se tornar um netweaver, não é necessário seguir o

caminho (mesmo porque não existe o caminho), mas jogar-se no não-

caminho: naquele sentido poético do “perder-se também é caminho” de

Clarice Lispector (1969) (29); nem, muito menos, é o caso de olhar o

mestre, seguir o mestre, andar com o mestre, ver através do mestre e

tornar-se o mestre, como sugere o poema Zen reproduzido por Raymond;

senão de fazer exatamente o contrário: matar o mestre!

O netweaver não é um indivíduo excepcional, destacando-se dos demais

no velho mundo único por seu espírito criativo e por sua dedicação

concentrada em inovar: ele é uma função social dos mundos altamente

conectados. Nos Highly Connected Worlds não se trata mais de constituir

uma tribo dos diferentes (diferentes dos outros, dos que não-são) ou uma

comunidade dos iguais (que se reconheçam mutuamente: como disse

Raymond, “você não é hacker até que outros hackers lhe chamem assim”).

Não há uma atitude geral fundante, um conjunto de habilidades certas,

uma cultura adequada comum e uma mentalidade distinta baseada em

um sistema de crenças. São muitas comunidades, muitas tribos, com as

mais variadas atitudes e habilidades, miscigenando suas culturas

enquanto seus agentes nômades viajam pelos interworlds. E pouco

importa as crenças de cada uma das pessoas ou aglomerados de pessoas

que se dedicam ao netweaving. Para orientar e multiplicar os hackers, de

certo modo, Eric Raymond quis fazer uma escola (ainda que baseada na

autoaprendizagem e no reconhecimento mútuo). Para ensejar o

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florescimento do novo papel social do netweaver, trata-se, pelo contrário,

de apostar que sua livre interação enxameie não-escolas.

Não pode haver, portanto, um receituário procedimental elencando

habilidades técnicas para alguém se tornar netweaver. Você não precisa

saber programar. Você não precisa só usar o Linux (nem entrar na igreja

do software livre, que – convenhamos – em alguns países da América

Latina está mais para partido). Você não precisa saber escrever em

HTML5. Para fazer hacking (no sentido ampliado do termo) – como uma

das dimensões do netweaving – você precisa estar disposto a

desprogramar hierarquias (hackeando aquelas instituições erigidas no

contra-fluzz, como, por exemplo, escolas, igrejas, partidos, Estados e

empresas-hierárquicas). E para fazer netweaving não há nenhum

conteúdo substantivo (filosófico, científico ou técnico) que você tenha que

adquirir: basta desobedecer, inovar e tecer redes. Isto sim, você vai ter

que aprender: a tecer redes – da única maneira possível de se aprender

isso: interagindo com outras pessoas sem erigir hierarquias (sem mandar

nos outros e sem obedecer a alguém). Isto é netweaving!

Não é algum conteúdo que determina seu comportamento. Para se tornar

netweaver não se trata de saber, mas de ser. Se você é um hacker – tão

convicto e habilidoso como o próprio Raymond, ou Torvalds, ou Stallman,

ou Cox, ou Tanenbaum – mas constrói suas patotas e igrejinhas, ou monta

empresas-hierárquicas, ou, ainda, erige quaisquer outras organizações

centralizadas e nelas convive com as outras pessoas o tempo todo, então

você não poderá ser um netweaver, mas não por motivos éticos ou

morais, por estar sendo incoerente com suas crenças e sim porque, nestas

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condições, você dificilmente conseguirá aprender a articular e animar

redes (distribuídas).

Enfatizando, não é porque você violou princípios ou não observou valores.

Não é porque você não compartilhou o que sabe, nem porque transgrediu

a “cultura da doação” para ganhar mais dinheiro. Aliás, como disse o

próprio Raymond “não é inconsistente usar suas habilidades de hacker

para... ficar rico, contanto que você não esqueça que é um hacker”. Um

netweaver também pode ser – ou ficar – rico. Esse não é o ponto. O que

um netweaver não pode é não ser um netweaver; ou seja, o que faz o

netweaver não é um conjunto de conhecimentos adquiridos (ou de

opiniões proferidas, habilidades técnicas exercitadas, capacidades

cognitivas desenvolvidas) ou valores abraçados e sim o que o netweaver

faz. Se não faz rede, não é netweaver (ainda que, pelo visto, possa ser

hacker).

A parte hacking do netweaving é aquela que desprograma, que corta (to

hack) ou quebra (to crack) as cadeias de scripts dos programas

verticalizadores que perturbam o campo social centralizando a rede-mãe e

gerando aglomeramentos no contra-fluz (que aparecem então como

instituições hierárquicas). Hackeando tais instituições pode-se introduzir

funcionalidades diferentes das originais como, por exemplo: a

experimentação da livre aprendizagem em vez da transmissão do

ensinamento (essa é uma espécie de “virus” não-escola, poderíamos

chamar assim tais experiências, em termos metafóricos); o

compartilhamento da espiritualidade espontânea em vez do seu

enquadramento e cerceamento por meio das práticas religiosas e dos

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rituais das igrejas (“virus” não-igreja); o exercício voluntário e cooperativo

da política pública e da democracia comunitária em vez da disciplina e da

fidelidade partidárias (“virus” não-partido); a vivência do localismo

cosmopolíta em vez do refúgio no nacionalismo e no patriotismo

insuflados pelo Estado (“virus” não-Estado-nação); a associação de

empreendedores para polinizarem mutuamente seus sonhos em vez da

montagem de estruturas para arrebanhar trabalhadores e subjugá-los em

prol da realização do sonho único de alguém (“virus” não-empresa-

hierárquica).

Todo resto pode ser abandonado. Nada de religião: para o netweaving

você pode fazer todas essas coisas usando o Linux, mas também o

Microsoft Windows ou o Mac OS ou o Chrome OS; ou, mesmo, não usar

nada disso. Você pode empregar uma das dezenas de plataformas p-based

disponíveis, como o Elgg e também o Ning, o Grouply, o Grou.ps (ou,

melhor ainda, pode ajudar a desenvolver uma plataforma i-based) ou

pode tentar se virar com sites de relacionamento como Orkut ou

Facebook. Você pode usar o identi.ca ou ir se arranjando com o Twitter.

Ou então você pode sair do mundo virtual ou digital e promover

atividades presenciais de netweaving, como rodas de conversação,

desconferências ou Open Spaces, World Cafés etc. Para os “netweavers-

de-software” (por assim dizer) o principal desafio é desenvolver

tecnologias interativas (i-based) de netweaving: ferramentas digitais

adequadas à articulação e animação de redes sociais. E há muitos outros

desafios tecnológico-sociais que estão colocados para todos os

netweavers (e não apenas os que mexem com softwares) para intensificar

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a interatividade. Mas nenhuma ferramenta, nenhuma técnica ou

metodologia e nenhuma dinâmica é realmente essencial. O essencial é

articular e animar redes distribuídas de pessoas. Ou seja, o grande desafio

é social mesmo.

Enfatizando, mais uma vez: de nada adianta você só usar free software e

as mais avançadas técnicas dialógicas de conversação se você continua se

organizando hierarquicamente, se sua organização é centralizada ou

fechada (e, portanto não-free) e se você privatiza o conhecimento que

poderia ser comum, vedando o acesso público (e, dessarte, seu conteúdo

também será não-free).

Desprogramar sociosferas – a parte hacker do netweaver – não basta: é

necessário reprogramá-las, construindo seus próprios mundos. Eis porque,

por meio do netweaving, mundos-bebês estão agora em gestação.

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EElleess jjáá eessttããoo eennttrree nnóóss

Nos Highly Connected Worlds o que vale são suas antenas

NETWEAVING É CRIAÇÃO DE NOVOS MUNDOS. Não é uma tribo especial –

a décima-terceira tribo (dos hackers) de Israel ou dos sionistas digitais –

que pode fazer netweaving, não é um cluster de gênios, uma fraternidade

de seres notáveis, dotados de faculdades e qualidades excepcionais,

super-humanas. É você! Se você não fizer, nada se modificará em seu

mundo (ou melhor, você não poderá sair do mundo que lhe impuseram e

no qual você está aprisionado). Para tanto, você não precisa ser mais do

que você é. Você só precisa ser o que você pode ser como revelação ou

descoberta do que você é.

Quando foi a Oslo, receber o Prêmio Nobel da Paz, Albert Schweitzer

(1952) disse em seu discurso que “nos tornamos tanto mais desumanos

quanto mais nos convertemos em super-homens”. É isso. Trata-se de ser

mais humano, não mais-do-que-humano.

Durante milênios fomos contaminados com a idéia perversa de que não

devemos ser o que somos. Tudo que nos diziam é que devíamos nos

superar, nos destacar dos semelhantes, separarmo-nos da plebe que

habita a planície ou chafurda no pântano e subir aos píncaros da glória

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para ter sucesso na vida. Quem ficasse para trás era um looser. Ou alguém

que não desenvolveu suas potencialidades, que bloqueou sua “evolução”

mental ou espiritual ou que não foi capaz de se transformar ou de se

aperfeiçoar.

Mas você não tem que se transformar no que você não é. Não há nada

errado com você. Você não veio com defeito de fábrica, que precise ser

consertado por alguma instituição hierárquica. Você não precisa ser

reformado pelo Estado e seus aparatos, como querem os autocratas de

todos os matizes. Você não precisa ser educado – quer dizer, ensinado,

adestrado, domado – para aplacar uma suposta besta-fera que existe no

seu interior. Não há nada no seu interior humano além da composição

fractal de todos os outros humanos que fazem com que você seja uma

pessoa. O humano é um maravilhoso encontro fortuito do simbionte

natural (em evolução) com o simbionte social (em prefiguração).

Ser humano é algo muito, mas muito mais importante do que qualquer

coisa, mais importante do que um deus (e conta-se que teve até um deus

que, percebendo isso, quis se tornar humano), um santo ou um herói;

mais importante do que qualquer título, propriedade, cargo ou índice de

popularidade: nada disso importa se você não conseguir formar sua alma

humana, quer dizer, se não conseguir tornar-se pessoa.

Tornar-se pessoa. Pessoa comum. Não santo. Pois há também o caminho

excepcional dos santos (que são pessoas incomuns). George Orwell (1948)

nas suas inquietantes Reflexões sobre Gandhi elaborou, talvez, a mais

profunda (e corajosa) crítica à disciplina religiosa tomando como exemplo

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428

a “disciplina que Gandhi impôs a si mesmo e que – embora ele possa não

insistir com seus seguidores que observem cada detalhe – acreditava ser

indispensável se quiséssemos servir a Deus ou à humanidade. Em primeiro

lugar, não comer carne e, se possível, nenhum alimento animal sob

qualquer forma... Nada de bebida alcoólica ou tabaco, nenhum tempero

ou condimento, mesmo do tipo vegetal... Em segundo lugar, se possível,

nada de relação sexual... E, por fim – este o ponto principal –, para quem

busca a bondade não deve haver quaisquer amizades íntimas e amores

exclusivos” (30). Então vem a crítica cortante de Orwell:

“O essencial no fato de sermos humanos é que não buscamos a

perfeição, é que às vezes estamos propensos a cometer pecados em

nome da lealdade, é que não assumimos o ascetismo a ponto de

tornar impossível uma amizade, é que no fim estamos preparados

para ser derrotados e fragmentados pela vida, que é o preço

inevitável de fixarmos nosso amor em outros indivíduos humanos.

Sem dúvida, bebidas alcoólicas, tabaco etc. são coisas que um santo

deve evitar, mas santidade também é algo que os seres humanos

devem evitar. Para isso há uma réplica óbvia, porém temos de ser

cautelosos em fazê-la. Nesta época dominada por iogues, supõe-se

com demasiada pressa não só que o “desapego” é melhor do que a

aceitação total da vida terrena como também que o homem comum

só a rejeita porque ela é muito difícil: em outras palavras, que o ser

humano mediano é um santo fracassado. É duvidoso que isso seja

verdade. Muitas pessoas não desejam sinceramente ser santas, e é

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429

provável que as que alcancem a santidade, ou que a ela aspirem,

jamais tenham sentido muita tentação de ser seres humanos” (31).

Ter percebido que esse “homem comum”, esse “ser humano mediano”

não é “um santo fracassado” foi a grande sacada de Orwell,

desmascarando o que nos impuseram as igrejas ao colocarem como ideal

a superação do humano, o seu aperfeiçoamento, a sua “espiritualização”,

como se houvesse alguma coisa errada com os que vivem sua vida e sua

convivência sem se submeterem a alguma disciplina religiosa, ascética,

mesmo quando voltada ao bem da humanidade (como os santos, os

bodisatvas e os mahatmas – que, talvez, não tenham conseguido chegar a

ser pessoas comuns).

Sim, tornar-se pessoa. Pessoa comum. Não herói. Herói também é uma

pessoa incomum. É outra escapada da humanidade. É alguém que

supostamente “superou” sua condição humana. Toda cultura hierárquica

é construída a partir do mito do herói, um Hércules que vence desafios

insuperáveis (pelas pessoas comuns) e realiza missões impossíveis (para as

pessoas comuns). Não é por acaso que, frequentemente, o herói é um

guerreiro que demonstrou bravura em batalha e foi agraciado pelos seus

superiores (fabricantes de guerras) com medalhas (um reconhecimento da

organização montada pelos construtores de pirâmides). Depois tal cultura

apenas se deslocou para as outras pirâmides e apareceram os heróis

empresariais (como muitos capitães de indústria, badalados nas revistas

de negócios), os heróis políticos (como os condutores de rebanhos,

glorificados pelos seus índices de popularidade), até chegar aos heróis da

filantropia (que também são premiados pelo volume da caridade que

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430

praticam). E há ainda os heróis revolucionários, aqueles “guias geniais dos

povos” (muitos deles genocidas como Stalin ou Mao – este último, aliás, o

campeão em número de mortes infligidas a outros seres humanos em

toda história e pré-história humana). Até Julian Assange do Wikileaks é

heroificado: positivamente (pela sua luta contra a opacidade dos Estados-

nações) ou negativamente (pelo seu irresponsável anarquismo, capaz de

colocar em risco a moral de quadrilha e o pacto de silêncio entre os

Estados-nações chamado de “ordem internacional”).

Sob esse influxo verticalizante as pessoas tendem a achar que não podem

fazer nada de muito significativo, pois são apenas... pessoas comuns, não

heróis. Elas são induzidas a achar que são heróis fracassados, que não são

boas o suficiente para realizar grandes feitos, promover magníficas

transformações. Nesse modelo épico são levadas a acreditar que somente

formidáveis revoluções e mega-reformas conduzidas por extraordinários

líderes heroicos são capazes de fazer a diferença, desprezando aquelas

seminais experiências líricas vividas por pessoas comuns.

Como já sabiam as pessoas-zen, não é fácil ser uma pessoa comum, ao

contrário do que parece. No mundo único fomos induzidos a conquistar

algum diferencial para nos destacarmos das pessoas comuns. Quando

interagimos com alguém em qualquer ambiente hierárquico somos

avaliados por esses diferenciais e começamos então a cultivá-los. Como

reflexo dos fluxos verticais que passamos a valorizar, nossa vida também

se verticaliza. É como se importássemos a anisotropia gerada na rede-mãe

pela hierarquia. Nessa ânsia de subir, começamos a imitar os de cima e a

desprezar os de baixo.

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431

O caso limite é a chamada celebridade (e os psicólogos, psicanalistas e

psiquiatras que tratam das patologias incidentes em quem se mantém

nessa condição têm muito a contar sobre a perturbação da personalidade

que pode levar, em determinadas circunstâncias, quando combinada com

outros fatores, ao surgimento de pulsões autodestrutivas, às drogas e à

violência). Mesmo que tais consequências extremas não aconteçam, há

sempre um isolamento (aquele cruel isolamento de que reclamam todos

os grandes líderes hierárquicos e os condutores de rebanhos), causado

pelo represamento de fluzz.

Em certa medida, em sociedades e organizações hierárquicas viramos

(todos nós, não apenas as celebridades) seres da aparência, deformados

pelo broadcasting, usando nossas antenas quase que somente para

difundir as características de nossa persona (como queremos que os

outros nos vejam) e não para captar outros padrões de convivência. É

assim que não desenvolvemos nossas características-hub e, em

consequência, perdemos interatividade, sobretudo porque não queremos

nos manter abertos à interação com o outro imprevisível por medo de nos

confundirmos com qualquer um, com seres de menor importância do que

nós (porque têm menos títulos, menos riqueza, menos poder ou menos

popularidade do que nós). Para nos protegermos da livre interação

passamos a conviver apenas com aqueles que se parecem conosco e

ficamos cada vez mais parecidos com eles, por um mecanismo que já foi

explicado pelo físico Mark Buchanan (2007) em O átomo social (32). Como

resultado, ficamos cada vez mais aprisionados em nosso submundo do

mundo único: ainda que morando em uma megalópole de dez milhões de

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432

habitantes, frequentamos os mesmos clubes, moramos nos mesmos

bairros, gozamos nossas férias nas mesmas localidades e fazemos os

mesmos roteiros de viagem, jogamos os mesmos jogos, usamos as

mesmas roupas e conversamos as mesmas conversas.

É claro que, nessas circunstâncias, temos muitas dificuldades de ser

pessoas-fluzz. Ficamos cada vez mais opacos, duros e quebradiços, porque

não queremos ser membrana, não queremos que o fluxo nos atravesse.

Como consequência, perdemos caminhos para outros mundos. E isso

significa que não fazemos novas conexões (reduzindo nosso número de

amigos), mas significa também que não conseguimos nem “ver” as

conexões (perdemos nossas antenas porque ficamos concentrados em

cavucar nossas raízes, até sermos enterrados junto com elas).

Quando se coloca em processo de fluzz uma pessoa deixa de lutar para

subir, para ter sucesso, para se igualar ou imitar os ricos, os poderosos, os

muito titulados e os famosos. Libertando-se da exigência de ser uma VIP

(very important person), ela começa a revalorizar seus relacionamentos

horizontais. Nessa jornada terapêutica, vai se curando das sociopatias

associadas às perturbações no campo social introduzidas pela hierarquia e

vai caminhando, no seu próprio passo e do seu próprio jeito, em direção

ao supremo objetivo de virar uma pessoa comum.

O vento continua soprando... e a cada dia surgem miríades de pessoas

desconhecidas que, simplesmente, já não ligam para nada disso, para

nenhum desses indicadores de sucesso da sociedade hierárquica, sejam

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433

materiais ou espirituais. Elas não têm medo de entrar na orgia fúngica,

lançando suas hifas para todo lado (e não apenas para cima).

Essas pessoas desobedecem. Não dão a mínima para os que querem

avaliá-las pelas suas raízes, pela sua descendência (seu patrimônio

genético ou seu “sangue”) e pelo ambiente em que nasceram e foram

criadas na primeira infância (o seu “berço”), pelos seus certificados,

diplomas e títulos (conferidos por alguma burocracia sacerdotal

trancadora de conhecimento) ou pelos seus graus (conferidos por algum

mestre ou confraria), pela sua riqueza acumulada, pelo seu poder

conquistado ou pela sua popularidade. Elas sabem que nos Highly

Connected Worlds o que vale são suas antenas.

Essas pessoas comuns antenadas, esses múltiplos anônimos conectados,

criadores de uma diversidade incrível de mundos, estão aí do seu lado.

Sim, eles já estão entre nós.

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434

NNoottaass ee rreeffeerrêênncciiaass

(*) NETWEAVER HOWTO é originalmente parte do livro-mãe Fluzz: vida

humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do

terceiro milênio (2011). O livro Fluzz nasceu a partir de reflexões

intermitentes do autor durante a última década. Talvez tenha surgido do

espanto com a palavra ‘Entidade’, tal como foi usada – com maiúscula –

por Jane Jacobs (1961), em Morte e Vida das Grandes Cidades

Americanas: “As inter-relações que permitem o funcionamento de um

distrito como uma Entidade não são nem vagas nem misteriosas.

Consistem em relacionamentos vivos entre pessoas...” Difícil saber agora,

quase cinco anos após sua morte, tudo que ela queria realmente dizer

com ‘Entidade’ (com maiúscula) e ‘relacionamentos vivos’ (que parece ser

diferente de relacionamento ‘entre vivos’). De qualquer modo, isso foi

interpretado aqui como ‘viver a convivência’. Quando vivemos nossa

convivência (social) produzimos um novo tipo de vida (humana). Esta é a

idéia básica.

A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início de

2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor observava

que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,

argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (i-based

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435

e não p-based). Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na

ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de

Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida e recebeu outros

significados, que não têm muito a ver com o programa malsucedido do

Google, como se pode ver neste livro.

O livro original, publicado em formato digital no início de 2011, foi

fragmentado em várias partes autônomas, no estilo shortbook ou booklet

(contendo em média, 20 mil palavras). Este é o oitavo volume da série,

intitulado Netweaver Howto: como se tornar um netweaver.

(1) MARGULIS, Lynn & SAGAN, Dorian (1998). O que é vida? Rio de Janeiro:

Zahar, 2022.

(2) O caso de Hobbes é notável, pois além de esse pensador ter lançado os

fundamentos para uma justificação filosoficamente elaborada da

autocracia, também derruiu os pressupostos cooperativos de qualquer

idéia democrática, tendo influência marcante sobre grande parte dos

pensadores de outras disciplinas científicas que surgiram ulteriormente –

como a biologia da evolução e a economia – até, praticamente, o final do

século 19. A esse respeito vale a pena ler a brilhante passagem de Matt

Ridley (1996) no livro As origens da virtude: “Thomas Hobbes foi o

antepassado intelectual de Charles Darwin em linha direta. Hobbes (1651)

gerou David Hume (1739), que gerou Adam Smith (1776), que gerou

Thomas Robert Malthus (1798), que gerou Charles Darwin (1859). Foi

depois de ler Malthus que Darwin deixou de pensar sobre competição

entre grupos e passou a pensar sobre competição entre indivíduos,

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mudança que Smith fizera um século antes. O diagnóstico hobbesiano –

embora não a receita – ainda está no centro tanto da economia quanto da

biologia evolutiva moderna (Smith gerou Friedman; Darwin gerou

Dawkins). Na raiz das duas disciplinas está a noção de que, se o equilíbrio

da natureza não foi projetado de cima, mas surgiu de baixo, não há motivo

para pensar que se trata de um todo harmonioso. Mais tarde, John

Maynard Keynes diria que “A Origem das Espécies” é “simples economia

ricardiana expressa em linguagem científica”. E Stephen Jay Gould disse

que a seleção natural “era essencialmente a economia de Adam Smith

vista na natureza”. Karl Marx fez mais ou menos a mesma observação: “É

notável”, escreveu ele a Friedrich Engels, em junho de 1862, “como Darwin

reconhece, entre os animais e as plantas, a própria sociedade inglesa à

qual pertence, com sua divisão de trabalho, competição, abertura de

novos mercados, ‘invenções’ e a luta malthusiana pela existência. É a

‘bellum omnium contra omnes de Hobbes’”. Cf. RIDLEY, Matt (1996). As

origens da virtude: um estudo biológico da solidariedade. Rio de Janeiro:

Record, 2000.

(3) HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

(4) Idem.

(5) TENNYSON, Alfred (Lord) (1849). In Memorian A. H. H. Canto 56: “Who

trusted God was love indeed / And love Creation's final law / Tho' Nature,

red in tooth and claw / With ravine, shriek'd against his creed”. Cf. o link

abaixo:

<http://en.wikipedia.org/wiki/In_Memoriam_A.H.H.>

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437

(6) Literalmente: “It is war minus the shooting”. Cf. ORWELL, George

(1945). The Sporting Spirit. London: Tribune, December 1945. Disponível

em:

<http://orwell.ru/library/articles/spirit/english/e_spirit>

(7) MATURANA, Humberto (1993). La democracia es una obra de arte

(alocução em uma mesa redonda organizada pelo Instituto para o

Desenvolvimento da Democracia Luis Carlos Galan, Colômbia). Bogotá:

Editorial Magistério, 1993.

(8) GORDON, Deborah (1999). Formigas em ação: como se organiza uma

sociedade de insetos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

(9) MARGULIS, L. & SAGAN, D.: Op. cit.

(10) GLADWELL, Malcolm (2008). Fora de série (Outliers). Rio de Janeiro:

Sextante, 2008.

(11) Idem.

(12) Idem-idem.

(13) Idem-ibidem.

(14) WIENER, Norbert (1951). Cibernética e sociedade: o uso humano de

seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1993.

(15) Cf. FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Nova visões sobre a

sociedade, o desenvolvimento, a internet, a política e o mundo

glocalizado. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008.

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(16) RAYMOND, Eric (1996-2001). Como se tornar um hacker. Disponível

em:

<http://www.linux.ime.usp.br/~rcaetano/docs/hacker-howto-pt.html>

(17) Idem.

(18) Idem-idem.

(19) RAYMOND, Eric (2001). How to become a hacker. Disponível em:

<http://www.catb.org/~esr/faqs/hacker-howto.html>

(20) “O mundo está repleto de problemas fascinantes esperando para

serem resolvidos. Ser hacker é muito divertido, mas é um tipo de diversão

que necessita de muito esforço. Para haver esforço é necessário

motivação. Atletas de sucesso retiram sua motivação de uma espécie de

prazer físico em trabalhar seus corpos, em tentar ultrapassar seus próprios

limites físicos. Analogamente, para ser um hacker você precisa ter uma

emoção básica em resolver problemas, afiar suas habilidades e exercitar

sua inteligência. Se você não é o tipo de pessoa que se sente assim

naturalmente, você precisará se tornar uma para ser um hacker. Senão,

você verá sua energia para "hackear" sendo esvaída por distrações como

sexo, dinheiro e aprovação social. (Você também tem que desenvolver

uma espécie de fé na sua própria capacidade de aprendizado – crer que,

mesmo que você não saiba tudo o que precisa para resolver um problema,

se souber uma parte e aprender a partir disso, conseguirá aprender o

suficiente para resolver a próxima parte – e assim por diante, até que você

termine)”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.

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439

(21) “Não se deve resolver o mesmo problema duas vezes. Mentes

criativas são um recurso valioso e limitado. Não devem ser desperdiçadas

reinventando a roda quando há tantos problemas novos e fascinantes por

aí. Para se comportar como um hacker, você tem que acreditar que o

tempo de pensamento dos outros hackers é precioso – tanto que é quase

um dever moral compartilhar informação, resolver problemas e depois dar

as soluções, para que outros hackers possam resolver novos problemas ao

invés de ter que se preocupar com os antigos indefinidamente. (Você não

tem que acreditar que é obrigado a dar toda a sua produção criativa,

ainda que hackers que o fazem sejam os mais respeitados pelos outros

hackers. Não é inconsistente com os valores do hacker vender o suficiente

da sua produção para mantê-lo alimentado e pagar o aluguel e

computadores. Não é inconsistente usar suas habilidades de hacker para

sustentar a família ou mesmo ficar rico, contanto que você não esqueça

que é um hacker)”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.

(22) “Tédio e trabalho repetitivo são nocivos. Hackers (e pessoas criativas

em geral) não podem ficar entediadas ou ter que fazer trabalho repetitivo,

porque quando isso acontece significa que eles não estão fazendo o que

apenas eles podem fazer – resolver novos problemas. Esse desperdício

prejudica a todos. Portanto, tédio e trabalho repetitivo não são apenas

desagradáveis, mas nocivos também. Para se comportar como um hacker,

você tem que acreditar nisso de modo a automatizar as partes chatas

tanto quanto possível, não apenas para você como para as outras pessoas

(principalmente outros hackers). (Há uma exceção aparente a isso. Às

vezes, hackers fazem coisas que podem parecer repetitivas ou tediosas

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para um observador, como um exercício de "limpeza mental", ou para

adquirir uma habilidade ou ter uma espécie particular de experiência que

não seria possível de outro modo. Mas isso é por opção -- ninguém que

consiga pensar deve ser forçado ao tédio”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.

(23) “Liberdade é uma coisa boa. Hackers são naturalmente anti-

autoritários. Qualquer pessoa que lhe dê ordens pode impedi-lo de resolver

qualquer que seja o problema pelo qual você está fascinado – e, dado o

modo em que a mente autoritária funciona, geralmente arranjará alguma

desculpa espantosamente idiota isso. Então, a atitude autoritária deve ser

combatida onde quer que você a encontre, para que não sufoque a você e

a outros hackers. (Isso não é a mesma coisa que combater toda e qualquer

autoridade. Crianças precisam ser orientadas, e criminosos, detidos. Um

hacker pode aceitar alguns tipos de autoridade a fim de obter algo que ele

quer mais que o tempo que ele gasta seguindo ordens. Mas isso é uma

barganha restrita e consciente; não é o tipo de sujeição pessoal que os

autoritários querem). Pessoas autoritárias prosperam na censura e no

segredo. E desconfiam de cooperação voluntária e compartilhamento de

informação – só gostam de "cooperação" que eles possam controlar.

Então, para se comportar como um hacker, você tem que desenvolver uma

hostilidade instintiva à censura, ao segredo, e ao uso da força ou mentira

para compelir adultos responsáveis. E você tem que estar disposto a agir

de acordo com esta crença”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.

(24) “Atitude não substitui competência. Para ser um hacker, você tem que

desenvolver algumas dessas atitudes. Mas apenas ter uma atitude não

fará de você um hacker, assim como não o fará um atleta campeão ou

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uma estrela de rock. Para se tornar um hacker é necessário inteligência,

prática, dedicação, e trabalho duro. Portanto, você tem que aprender a

desconfiar de atitude e respeitar todo tipo de competência. Hackers não

deixam posers gastar seu tempo, mas eles idolatram competência –

especialmente competência em "hackear", mas competência em qualquer

coisa é boa. A competência em habilidades que poucos conseguem

dominar é especialmente boa, e competência em habilidades que

envolvem agudeza mental, perícia e concentração é a melhor. Se você

reverenciar competência, gostará de desenvolvê-la em si mesmo – o

trabalho duro e dedicação se tornará uma espécie de um intenso jogo, ao

invés de trabalho repetitivo. E isso é vital para se tornar um hacker”. Cf.

RAYMOND, Eric: Op. cit.

(25) Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.

(26) Idem.

(27) Idem-idem.

(28) Idem-ibidem.

(29) LISPECTOR, Clarice (1969). Uma aprendizagem ou O livro dos

prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

(30) ORWELL, George (1948). Reflexões sobre Gandhi in ORWELL, George

(1984). Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das

Letras, 2005.

(31) Idem.

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(32) BUCHANAN, Mark (2007). O átomo social. São Paulo: Leopardo, 2010.

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BEM-VINDOS AOS NOVOS MUNDOS-FLUZZ

Augusto de Franco, 2012.

Versão Beta, sem revisão.

A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada

com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.

Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta

obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser

reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por

quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –

na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e

distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser

omitida a autoria da versão original.

FRANCO, Augusto de

BEM-VINDOS AOS NOVOS MUNDOS-FLUZZ / Augusto de Franco – São Paulo:

2012.

44 p. A4 – (Escola de Redes; 16)

1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.

Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e

à criação e transferência de tecnologias de netweaving.

http://escoladeredes.net

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SSuummáárriioo

Introdução | 9

Os novos mundos-fluzz | 11

Quebrando as cadeias | 15

Clustering | 18

Swarming | 21

Cloning | 24

Crunching | 28

Conversando com a rede-mãe | 31

Pulando no abismo | 34

Ah!... Os poetas, essas pessoas-fluzz | 37

Notas e referências | 39

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IInnttrroodduuççããoo

O Pó de Flu (Floo Powder) é um modo de viajar e se comunicar

no mundo mágico, que pode ser usado por crianças...

Inventado por Ignatia Wildsmith,

é utilizado por muitos bruxos e bruxas

para se transportar para (e através de) todos os lugares

que estiverem ligados à Rede do Flu (Floo Network).

Da série Harry Potter de J. K. Rowling (1997-2007)

Perder-se também é caminho.

Clarice Lispector em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969)

Livre, livre é quem não tem rumo.

Manoel de Barros em Menino do Mato (2010)

Bem-vindos aos novos mundos-fluzz (*). Esqueçam suas velhas ideias e

práticas de comando e controle. Abram mão de suas noções-século-20 de

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452

participação. E se livrem da compulsão de gerir o conhecimento ou

organizar conteúdos para os outros (ou juntamente com eles). Preparem-

se para entrar no multiverso das interações.

Nos mundos-fluzz não é o conteúdo do que flui pelas conexões da rede a

variável fundamental para explicar o que acontece(rá) e sim o modo-de-

interagir e suas características, como a frequência, as reverberações, os

loopings, as configurações de fluxos que se constelam a cada instante, os

espalhamentos e aglomeramentos (clustering), os enxameamentos

(swarming) que irrompem, as curvas de distribuição das variações

aleatórias introduzidas pela imitação (cloning) que produzem ordem

emergente (a partir da interação), as contrações na extensão

característica de caminho (crunch) dentro de cada cluster...

Em vez de tentarem organizar a auto-organização, construam interfaces

para conversar com a rede-mãe, aquela que existe independentemente de

nossos esforços conectivos voluntários e que, para usar uma imagem do

Tao, é como o espírito do vale, suave e multífluo, [como] a mulher

misteriosa que age sem esforço ao se deixar varrer pelo sopro, ao ser

permeável ao fluxo que não pode ser aprisionado por qualquer

mainframe: fluzz.

Oh!, sim, redes são fluições. Este texto é sobre redes (**).

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453

OOss nnoovvooss mmuunnddooss--fflluuzzzz

OS NOVOS MUNDOS ALTAMENTE CONECTADOS do terceiro milênio são

aqueles mundos glocais em que fluzz vai sendo desobstruído. Fluzz é

obstruído pela centralização das comunicações (e inclusive pela Internet

descentralizada), mas também por todas as separações que reduzem a

interação, desde aquelas impostas pela barreira da língua, passando por

aquelas que separam quem busca de quem gera conhecimento e pelas

que separam os dispositivos tecnológicos interativos do corpo humano até

chegar às que separam pessoas de não-pessoas.

Bem-vindos então aos novos mundos-fluzz. Seu dispositivo móvel de

interação já se comunica diretamente com outros dispositivos móveis. Seu

computador – agora um transceptor, alimentado por baterias

recarregáveis por luz ou força mecânica – gera sua própria onda

eletromagnética e “fala” diretamente com os outros computadores do seu

mundo. Nada de provedores, roteadores, protocolos únicos. No lugar da

internet multicentralizada, redes distribuídas. Redes P2P (peer-to-peer).

Redes Mesh, ampliadas por replicação em cascata, interconectadas.

Seu foursquare não está mais montado sobre a planta urbana, mas sobre

mapas de caminhos no espaço-tempo dos fluxos. Ele passou a ser i-based.

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454

Com a ajuda de telas (e tudo pode ser tela), óculos especiais, projeções

holográficas ou implantes bioeletrônicos e cibernéticos, você “vê” o fluxo.

Como um precog você antevê o desfecho de configurações em formação,

que ainda não se materializaram... E como um novo John Anderton (o

protagonista de Minority Report, interpretado por Tom Cruise, mas agora

livre e não-perseguido) interage com as coisas: os artefatos, os

equipamentos, os prédios, as ruas.

Mas com você não ocorre nada parecido com o que se passa na sociedade

de controle de Minority Report, o filme de Spielberg (2002) baseado no

conto homônimo de Philip K. Dick (1956). Você será mais como aquele

Leto, o filho de Paul Atreides, em Os Filhos de Duna, de Frank Herbert

(1976) (1). Não há um mainframe. Não há um Arquiteto (o personagem de

Matrix Reloaded magistralmente interpretado por Helmut Bakaitis).

Acorda! Você não está mais na Matrix.

Agora você dispõe de programas i-based de navegação inteligente, da

busca (semântica) à polinização (criativa, ensejadora de múltiplos

significados). Cada um tem sua própria wikipedia, cada busca P2P é feita

em miríades de wikipedias e não em apenas uma (única) instalada em um

mainframe. Cada busca revela um resultado diferente porque, na verdade,

não existe a busca unilateral: toda busca é uma interação, quer dizer, uma

geração de conhecimento-vivo (ou não revela nada além de

conhecimento-morto). Cada busca, portanto, deixa um rastro, o rastro

daquela particular fluição que se agrega ao resultado da busca análoga

seguinte para os que estão trafegando pelo mesmo interworld.

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455

Nos Highly Connected Worlds todo buscador é um polinizador. Esse

interagente é um viajante, um peregrino de mundos e um semeador de

mundos, um nômade que não depende mais de workstations instaladas

em equipamentos que obstruem fluxos. Dispositivos móveis de navegação

e comunicação, objetos interativos nômades ficaram vez mais portáteis e

mais decisivos na geração de small-worlds e de interworlds.

Os dispositivos tecnológicos deixaram de estar separados do corpo. Eles

estão cada vez mais próximos, como certos games que, no passado,

começaram a substituir o joystick pelo próprio corpo humano (2); e assim

também ocorre com processadores, navegadores e comunicadores que

são instalados em relógios de pulso, óculos, pulseiras, anéis, colares,

bonés e outros acessórios. Alguns desses artefatos são tradutores-

transdutores que funcionam em tempo real permitindo a conversação

entre pessoas que falam línguas diferentes. E muito além disso: agora

temos dispositivos inseridos – integrados, assimilados ou combinados por

simbiose – ao corpo humano. Tornou-se irrelevante a velha discussão

sobre aquelas faculdades polêmicas, parapsicológicas, como a telepatia,

porque já é irrelevante tê-las na medida em que podemos realizar a

interação sem distância ou em tempo real com outros seres humanos e

não-humanos, animados ou inanimados, sempre que quisermos.

Podemos inserir em nossos corpos outros dispositivos capazes de ampliar

e acelerar a comunicação. Estamos descobrindo em seres não-humanos

parceiros simbióticos – semelhantes à psilocibina, na visão de Terence

McKenna (1992) (3) ou como as imaginárias “midi-chlorians” da série Star

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Wars (4) – capazes de nos dotar de mais “percepção” de fluzz ou de

ensejar melhores condições de interação.

Mas esses avanços tecnológicos, em si, não são nada diante das inovações

sociais que surgiram com o auxílio de tecnologias i-based (aliás, tais

tecnologias só foram desenvolvidas porque já havia a possibilidade social

para o seu surgimento). Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não-

Estados-nações, não-empresas-hierárquicas germinaram e floresceram,

dando nascimento a novas variedades de instituições-fluzz baseadas na

vida comum e na convivência das pessoas comuns ressignificadas como

expressões diretas do multiverso criativo (aquele que cria a si mesmo à

medida que se desenvolve). Não é um novo céu e uma nova terra (como

expectou Isaias 65: 17): é que o novo céu passou a ser a nova terra; enfim

a terre des hommes!

Todas as novas possibilidades sociais que permitem a emergência de

Highly Connected Worlds estão ligadas à fenomenologia das redes sociais

distribuídas. Não foi propriamente a descoberta desses novos fenômenos

que quebrou as cadeias que nos aprisionavam ao velho mundo e sim a

nossa disposição social de deixarmos eles acontecerem.

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QQuueebbrraannddoo aass ccaaddeeiiaass

Mundos sociais criam-se a si mesmos à medida que se desenvolvem =

fluzz

É INCRÍVEL COMO FICÁVAMOS – no mundo único – presos aos conteúdos.

Achávamos que eram os conteúdos que podiam fazer a diferença. Foi uma

consequência trágica de seis milênios de ensino (quer dizer, da

programação das mentes efetuada por alguma organização hierárquica –

e todas elas, como vimos, são escolas): o conteúdo é um ensinamento.

Do conteúdo para a consciência foi um pulo, ou melhor, um deslizamento

(epistemológico). A consciência que queríamos que os outros tivessem

deveria surgir quando eles entrassem em contato com determinados

conteúdos (que às vezes chamávamos de “conhecimento”). E aí nos

esforçávamos para construir, organizar e transferir conhecimentos para os

outros. Assim nos tornamos programadores (replicadores) do velho

mundo. Fomos programados para ser replicadores: enfiadores de

conteúdos na cabeça dos outros.

Da consciência para a ética ocorreu outro deslizamento. A ética que

queríamos que os outros tivessem era, no fundo, conquanto muitos se

esforçassem por negar tal evidência, um conjunto de valores (conteúdos)

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que viravam normas para direcionar comportamentos. Mas valor – do

jeito que foi tomado, de modo genérico – virou uma palavra tola. Valor é o

que é valorizado por alguém e compartilhado pelos que estão em

interação com esse alguém. Não pode existir um valor acima, ou antes, da

interação de alguns, que deva valer para todos. E essas ideias que

chamávamos de valores não podiam mudar comportamentos: como se,

inoculados por elas, passássemos a agir de modo correto ou mais

“consciente”. Consciência (entendida nesse sentido deslizado, como

conhecimento de um conteúdo ou mesmo, em termos mais sofisticados,

como localização da reflexividade no sujeito que sabe que sabe) não pode

mudar comportamentos. Somente comportamentos mudam

comportamentos.

Quase tudo no velho mundo hierárquico girava em torno de conteúdos.

Mas a grande descoberta que acompanhou a geração dos Highly

Connected Worlds foi que o comportamento das redes sociais não

depende de conteúdos. Sua fenomenologia é interativa. E todas as formas

de interação que foram descobertas pela nova ciência das redes

revelaram a mesma coisa: nada a ver com conteúdos. Clustering,

swarming, cloning, crunching – nenhuma dessas coisas tem a ver com

conteúdo. Não têm a ver com ensinamento (replicação) e sim com

aprendizagem (criação). Aprendizagem coletiva que reflete o metabolismo

pelo qual os mundos sociais criam-se a si mesmos à medida que se

desenvolvem = fluzz.

Quando, a partir dessas descobertas, começamos a quebrar as cadeias,

deixando as forças do aglomeramento livres para atuar, deixando o

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enxameamento agir, a imitação exercer o seu papel e os mundos se

contraírem, os novos mundos altamente conectados começaram a vir à

luz.

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CClluusstteerriinngg

Deixando livres para atuar as forças do aglomeramento

A PRIMEIRA GRANDE DESCOBERTA: tudo que interage clusteriza,

independentemente do conteúdo, em função dos graus de distribuição e

conectividade (ou interatividade) da rede social. Há muito já se pode

mostrar teoricamente que quanto maior o grau de distribuição de uma

rede social, mais provável será que duas pessoas que você conheça

também se conheçam (essa é a raiz do fenômeno chamado clustering).

Em geral não se conhece todas as variáveis que estão presentes em cada

processo particular, mas é observável que se formam clusters

(aglomerados) em quaisquer redes, não apenas nas redes sociais. Insetos

se aglomeram, doenças se aglomeram (e não apenas as contagiosas),

empreendedores de um mesmo ramo de negócios tendem a se aglomerar

(não é por acaso que encontramos lojas de tecidos, roupas, luminárias ou

oficinas mecânicas concentradas em uma mesma rua ou quadra). E isso

não depende, como ocorre em certas cidades planejadas (como Brasília)

da localização forçada ou top down de setores (setor hospitalar, setor

hoteleiro, setor automotivo etc.). É assim que, como mostrou Steven

Johnson (2001), os vendedores de seda se clusterizam, há séculos, em

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determinada localidade de Florença. E voltam sempre para o mesmo lugar

após as tão seguidas quanto inúteis tentativas de deslocá-los para outras

regiões da cidade (5).

Os planejadores normativos – como construtores de pirâmides que são –

não têm paciência para esperar a clusterização. Na verdade, como seu

objetivo é construir organizações hierárquicas, eles não podem esperar a

clusterização. A hierarquia exige desatalhamento, quer dizer, a supressão

de atalhos entre clusters: só alguns caminhos podem ser válidos (e, por

isso, só alguns são validados). Isso dificilmente ocorreria se a clusterização

brotasse da dinâmica da rede. Essa é a razão pela qual os planejadores

urbanos nunca construiriam uma Florença, tendo que se contentar em

erigir suas capitais para algum deus hierárquico (como fez Amenófis IV

para o deus Aton) ou arquitetar suas cidades-sede para o Estado, não para

a sociedade (como aquela Brasília que foi inaugurada antes da convivência

social dos brasilenses; depois estes últimos começaram a conformar a

verdadeira Brasília modificando os estranhos caminhos traçados pelos

planejadores). A diferença entre o zigurate de Uruk e o assentamento

temporário do festival Burning Man revela quase tudo: poucos caminhos x

múltiplos caminhos.

Ao articular uma organização em rede distribuída não é necessário pré-

determinar quais serão os departamentos, aquelas caixinhas desenhadas

nos organogramas. Estando claro, para os interagentes, qual é o propósito

da iniciativa, basta deixar as forças do aglomeramento atuarem. Em pouco

tempo (a depender da interatividade da rede), surgirão clusters agregando

pessoas que se dedicarão às funções necessárias à realização daquele

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propósito: alguns se juntarão para cuidar da criação, outros para cuidar

dos relacionamentos com os stakeholders, outros, ainda, da produção ou

do delivery etc.

Até certos eventos planejados autonomamente por pessoas diferentes

(que não se conhecem entre si) se aglomeram e isso é revelador de um

metabolismo da rede, de uma dinâmica invisível que ocorre no espaço-

tempo dos fluxos.

Nada a ver com conteúdo. A partir do clustering outros fenômenos

surpreendentes ocorrem em uma rede, como o swarming.

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SSwwaarrmmiinngg

Deixando o enxameamento agir

A SEGUNDA GRANDE DESCOBERTA: tudo que interage pode enxamear.

Swarming (ou swarm behavior) e suas variantes como herding e shoaling,

não acontecem somente com insetos, formigas, abelhas, pássaros,

quadrúpedes e peixes. Em termos genéricos esses movimentos coletivos

(também chamados de flocking) ocorrem quando um grande número de

entidades self-propelled interagem. Algum tipo de inteligência coletiva

(swarm intelligence) está sempre envolvida nestes movimentos. Já se sabe

que isso também ocorre com humanos, quando multidões se aglomeram

(clustering) e “evoluem” sincronizadamente sem qualquer condução

exercida por algum líder; ou quando muitas pessoas enxameiam e

provocam grandes mobilizações sem convocação ou coordenação

centralizada, a partir de estímulos que se propagam P2P, por contágio

viral.

E não ocorre apenas como uma forma de conflito, como ficamos

acostumados a pensar depois que Arquilla e Ronsfeld (2000) produziram

para a Rand Corporation seu famoso paper “Swarming and the future of

conflict” (6). Um exemplo conhecido dos efeitos surpreendentes do

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swarming – no caso, civil – foi a reação da sociedade espanhola aos

atentados terroristas cometidos pela Al-Qaida em 11 de Março de 2004

(7). Escrevendo sobre isso, ainda preso as visões do swarming como

netwar, David de Ugarte (2007), em O poder das redes, acerta porém

quando diz:

“Como organizar, pois, ações em um mundo de redes distribuídas?

Como se chega a um swarming civil? Em primeiro lugar,

renunciando a organizar. Os movimentos surgem por auto-

agregação espontânea, de tal forma que planificar o que se vai

fazer, quem e quando o fará, não tem nenhum sentido, porque não

saberemos o quê, até que o quem tenha atuado” (8).

O swarming (enxameamento) é uma forma de interação. Deixar o

enxameamento agir significa ‘renunciar a organizar’, quer dizer, a

disciplinar a interação.

O fenômeno acontece com mais rapidez em função direta dos graus de

conectividade e de distribuição da rede. Em mundos altamente

conectados tais movimentos tendem a irromper com mais frequência. E é

por isso que eles surgem por emergência, não supervêm a partir de

qualquer instância centralizada. Assim, do que se trata é de deixar mesmo.

As tentativas de provocar artificialmente swarmings, instrumentalizando o

processo para derrotar um adversário, destruir um inimigo, disputar uma

posição, vencer uma eleição ou vender mais produtos batendo a

concorrência, em geral não têm dado certo. Todas elas acabam,

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contraditoriamente, fazendo aquilo que negam: tentando organizar a

auto-organização.

E ainda bem que tais tentativas fracassam: do contrário viveríamos em

mundos altamente centralizados por aqueles que possuíssem o segredo

de como desencadear swarmings. De posse desse conhecimento (que logo

seria trancado), um partido poderia eleger seus candidatos (e mantê-los

no poder indefinidamente) ou uma empresa poderia reinar sozinha no seu

ramo de negócio.

Nada a ver com conteúdo. Na sua intimidade, o processo de swarming

pressupõe clustering e se propaga por meio de cloning.

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CClloonniinngg

Deixando a imitação exercer seu papel

A TERCEIRA GRANDE DESCOBERTA: a imitação também é uma das formas

da interação e, desse ponto de vista, a imitação é uma clonagem. Poucos

perceberam isso. Como pessoas – gholas sociais – todos somos clones, na

medida em que somos culturalmente formados como réplicas variantes

(embora únicas) de configurações das redes sociais onde estamos

emaranhados.

O termo clone deriva da palavra grega klónos, usada para designar

"tronco” ou “ramo", referindo-se ao processo pelo qual uma nova planta

pode ser criada a partir de um galho. Mas é isso mesmo. A nova planta

imita a velha. A vida imita a vida. A convivência imita a convivência. A

pessoa imita o social.

Sem imitação não poderia haver ordem emergente nas sociedades

humanas ou em qualquer coletivo de seres capazes de interagir. Sem

imitação os cupins não conseguiriam construir seus cupinzeiros. Sem

imitação, os pássaros não voariam em bando, configurando formas

geométricas tão surpreendentes e fazendo aquelas evoluções fantásticas.

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A imitação não é algo ruim, como começamos a pensar depois que

surgiram os sistemas de trancamento do conhecimento (como, por

exemplo, as leis de patentes e o direito autoral). A preocupação deslocou-

se então da criação para a fraude, passando a ser um caso de polícia.

Mas não há aprendizagem sem imitação. Learn from your neighbours é a

diretiva geral de auto-organização dos sistemas complexos e, portanto, de

qualquer sistema capaz de aprender.

Quando imitamos, introduzimos variações. Nunca reproduzimos nada

fielmente (isso seria impossível em qualquer mundo em que as condições

são mutáveis e os imitadores são diferentes dos imitados). A propagação

dessas variações se distribui de uma maneira estranha.

Você não imita uma-a-um ou um de cada vez. O que você imitou (e variou)

vai ser imitado por outro (e ser também variado). Além disso, você imita

vários ao mesmo tempo, combina e recombina modelos a ser imitados e

essas recombinações também se propagam gerando novos padrões de

adaptação emergentes. Isso é o que chamamos aqui de cloning. Foi assim

que nasceu a vida (o simbionte natural). É assim que está nascendo a

convivência social “orgânica” (ou o simbionte social) nos Highly Connected

Worlds.

Ao contrário do que se acreditou por tanto tempo, não há inovação sem

imitação. E quanto mais imitação, mais inovação. Imitação não é

propriamente repetição, reprodução assistida. Imitação é uma função dos

emaranhados em que as coisas – inclusive os humanos – sempre estão.

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Na verdade, nossos esforços educativos, ao querermos preparar as

pessoas e orientá-las para que cumpram adequadamente uma função (em

geral uma função que queremos que elas cumpram), são, em grande

parte, tentativas de condicioná-las (ao que queremos que elas façam) e

administrá-las (para que elas façam o que queremos do jeito que

queremos). Se não estamos preocupados com comando-e-controle, tal

esforço é quase sempre inútil. Bastaria deixar que elas aprendessem.

Deixar-aprender é a solução-fluzz para a educação (que, como tal – como

‘a’ educação – é então abolida). E é também, sob certo ponto de vista,

uma definição de democracia (no sentido “forte” do conceito).

Como naquelas experiências promovidas por Sugata Mitra com crianças

de localidades pobres da Índia, que nunca haviam visto um computador e

que aprenderam, elas mesmas, em grupo, não somente a usar a máquina

e a rede, mas aprenderam a aprender em rede por meio da máquina, é

preciso deixar as pessoas aprenderem na interação. Mitra não ensinava

nada, simplesmente entregava computadores conectados às crianças e

dizia: “ – Vejam aí o que vocês podem fazer, voltarei daqui a um mês”. Ao

voltar verificava que elas haviam feito prodígios. Nessas experiências a

aprendizagem fundamental era sempre a da interação (no grupo dos

aprendentes) (9). Mas isso vale para qualquer aprendizagem. A imitação

não deve ser apenas tolerada senão estimulada (e se os chamados

educadores soubessem disso incentivariam a cola nas suas provas ao invés

de montar sistemas para vigiar e punir os transgressores: argh!).

Quando tentamos orientar as pessoas sobre o quê – e como, e quando, e

onde – elas devem aprender, nós é que estamos, na verdade, tentando

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replicar, reproduzir borgs: queremos seres que repetem. Quando

deixamos as pessoas imitarem umas as outras, não replicamos; pelo

contrário, ensejamos a formação de gholas sociais. Como seres humanos

– frutos de cloning – somos seres imitadores.

Nada a ver com conteúdo. Nos mundos altamente conectados o cloning

tende a auto-organizar boa parte das coisas que nos esforçamos por

organizar inventando complicados processos e métodos de gestão.

Mesmo porque tudo isso vira lixo na medida em que os mundos começam

a se contrair sob efeito de crunching.

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CCrruunncchhiinngg

Deixando os mundos se contraírem

A QUARTA GRANDE DESCOBERTA: small is powerful. Essa talvez seja a

mais surpreendente descoberta-fluzz de todos os tempos. Em outras

palavras, isso quer dizer que o social reinventa o poder. No lugar do poder

de mandar nos outros, surge o poder de encorajá-los (e encorajar-se):

empowerment!

Sim, fluzz é empowerfulness. Quando aumenta a interatividade é porque

os graus de conectividade e distribuição da rede social aumentaram; ou,

dizendo de outro modo, é porque os graus de separação diminuíram: o

mundo social se contraiu (crunch). Steven Strogatz observou em 2008 que

os graus de separação não estavam apenas diminuindo: eles estavam

despencando (10). De uma perspectiva-fluzz, podemos afirmar que – sob

o efeito desse amassamento (Small-World Phenomenon) – somos nós que

estamos despencando... no abismo!

Nada a ver com conteúdo. Tudo que interage tende a se emaranhar mais e

a se aproximar, diminuindo o tamanho social do mundo. Quanto menores

os graus de separação do emaranhado em você vive como pessoa, mais

empoderado por ele (por esse emaranhado) você será. Mais alternativas

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de futuro terá à sua disposição. Mais parcerias e simbioses poderá fazer

para realizar qualquer coisa. Mais rico (de conexões) e mais poderoso (de

empoderamento) você será, porque terá mais recursos (meios) e mais

capacidade (potencialidade) de alterar disposições no espaço-tempo dos

fluxos.

É o caso de dizer: bem, isso muda tudo.

Nos Highly Connected Worlds a contração (crunching) é acelerada. Em

pouco tempo sua timeline fica tão caudalosa que você é arrastado pela

correnteza. Não adianta mais erigir muros para tentar se proteger da

interação: como se sabe, a enxurrada, quando vem, leva tudo. Então você

vai ter que aprender a viver em fluxo. Isso muda tudo porque muda a

natureza do que chamávamos de normas e instituições, processos e

rotinas, planos e agendas e, inclusive, propriedades (incluindo

propriedades imobiliárias, como nossas casas – nossos refúgios contra as

intempéries e nosso espaço privado, separado dos outros e protegido da

interação com o outro-imprevisível). Uma vida em fluxo é uma vida

nômade.

No passado temia-se que isso nos colocasse na dependência de

dispositivos interativos móveis – e-readers e tablets – mochilas e naves.

Quá! Tudo isso já é passado. Os dispositivos separados do corpo vão

sendo substituídos por implantes conectores, as máquinas de ler livros e

os computadores-comprimidos vão virando objetos tão jurássicos como

aqueles velhos computadores-armários que rodavam fitas magnéticas e

liam cartões perfurados. As mochilas vão ficando cada vez menores na

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medida em que não há muito para carregar (e carregar para onde?). As

naves, entretanto, permanecem, mas são outra coisa.

Em um mundo contraído você precisa mesmo é da nuvem. Não de se

conectar à alguma nuvem (criada por algum mainframe) para armazenar e

acessar seus arquivos (quer dizer, o passado). Agora você é a nuvem.

Agora você é a nave: como nas velhas catedrais góticas (pelo menos nas

intenções dos pedreiros-livres que as construíram), você viaja sem sair do

lugar (porque o lugar também passa a ser outra coisa). A nuvem é o

emaranhado que viaja pelos interworlds junto com você. E esse

emaranhado é o seu lugar. O seu lugar não é você (arrumando um jeito de

ficar prevenido) contra o outro: o seu lugar é o outro.

Deixe os mundos se contraírem para ver só o que acontece.

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CCoonnvveerrssaannddoo ccoomm aa rreeddee--mmããee

Você só precisa construir interfaces

A QUINTA GRANDE DESCOBERTA: é possível conversar com a rede-mãe e é

possível programá-la.

Se você é um netweaver, seu papel não é construir conteúdos, mas

interfaces para conversar com a rede-mãe. É ser um nômade, um viajante

dos interworlds. As interfaces são os interworlds.

Interworlds são os meios pelos quais o que foi separado pode se

reconectar. Todas as coisas sociais (esses emaranhados que chamamos de

pessoas) se reconectam quando são devolvidas à rede-mãe. Quando são

livres para fazer isso: amagi. Para tanto, porém, é necessário remover o

que está impedindo essa volta, não fazer discursos. Você não precisa

convencer os outros dessas coisas (o que é sempre sinal de que você não

está realmente convencido). Não precisa fazer proselitismo de uma nova

visão de mundo, de uma nova ideologia, de uma nova filosofia, de uma

nova religião. As pessoas já querem se comunicar com a rede-mãe, não é

necessário induzi-las, compeli-las, conduzi-las.

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Dançar, brincar e jogar foram as formas de tentar conversar com a rede-

mãe que conseguiram sobreviver sob a civilização hierárquica.

Quando, por exemplo, você vê uma jovem querendo ser dançarina,

cantora, é fluzz que está ali naqueles desejos muitas vezes inexplicáveis.

Ela não quer fazer sucesso, se destacar dos semelhantes. Isso pode vir

depois, quando for capturada por uma organização ou por uma cultura

hierárquica. No início ela quer apenas vibrar no mesmo ritmo da

intermitente criação, acompanhar a vida nômade das coisas, respirar com

elas, reconhecer e ser reconhecida por outras pessoas capazes de se

deixar empatizar...

A dança, a música... são movimentos-fluzz de sintonização. Depois vem

alguma fraternidade disciplinando tudo, ensinando você a ser dervixe. Em

algum lugar perdido da Ásia Central, entre o Cazaquistão, o Uzbequistão, o

Turcomenistão, o Arzebaijão, sabe-se lá, eles vão treiná-lo até que você

repita exatamente os mesmos movimentos sincronizados, execute as

mesmas evoluções com perfeição. Não é que não haja conhecimento ali

(deve haver, e muito). No entanto, não é mais de conhecimento que se

trata. Os pássaros e os peixes fazem isso, apenas aglomerando,

enxameando, imitando (clonando), enfim, interagindo com os

semelhantes em seus mundos pequenos (amassados). E a forma como

eles expressam suas interações – por flocking ou shoaling – revela o

metabolismo do simbionte natural: apenas deixando acontecer. Trata-se

agora de fazer alguma coisa correspondente em relação à segunda criação

do mundo: o simbionte social. Como? Não se sabe. Você vai ter que

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perguntar à rede-mãe. Para conversar com ela, você só precisa construir

interfaces. Ou melhor: você – a nuvem – só precisa ser interface.

A brincadeira e o jogo vão adquirindo outro status nos mundos altamente

conectados. Tudo vai virando jogo. Com a abolição do trabalho (repetitivo)

a atividade produtiva (inovadora) vai se exercendo como creative game e

vai materializando aquele sonho de Bob Black (1985) quando disse: “O que

eu gostaria realmente de ver acontecer é a transformação do trabalho em

jogo”. Social games vão substituindo os programas ditos sociais ou de

desenvolvimento. Ao contrário do que se pensou, social games não são

games virtuais coletivos – que pressupõem colaboração entre pessoas –

para serem jogados no mundo virtual, por meio de computadores ou

outros dispositivos interativos digitais. Social games são jogos instalados

na rede social, que "rodam" na própria rede social e que permitem

programá-la (ainda que possam ter um espelhamento no mundo virtual e

ser operados, em parte, por meio de computadores ou outros dispositivos

interativos digitais).

Sim, se você está disposto a ser um netweaver, você pode agora

programar na rede-mãe através da interface que construiu.

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PPuullaannddoo nnoo aabbiissmmoo

Não existe o escolhido. Todos nós somos escolhidos quando colhidos por

fluzz

ESTE É UM TEXTO PARA NETWEAVERS. Ele contém uma espécie de

“linguagem de máquina”. Se você aprender essa linguagem poderá

programar na própria rede-mãe. Mas... atenção: nessa plataforma você só

pode programar com sua vida.

Para tanto, é justo o contrário do que lhe disseram na sociedade

hierárquica. Do que se trata é de perder sua vida, não de preservá-la, de

administrá-la, de programá-la, pré-traçando um caminho e monitorando

seu progresso nesse caminho rumo ao sucesso. É claro que você, se

quiser, pode fazer isso. Mas depois não reclame que não conseguiu

perder-se: e perder-se é o único modo de encontrar-se, aquele poético

“perder-se também é caminho” de Clarice Lispector é o caminho-fluzz,

quer dizer, o caminho-não-caminho (11). Ou na síntese tão perfeita de

Manoel de Barros (2010): “Livre, livre é quem não tem rumo” (12). E

depois não reclame que não acontece nada de interessante em sua vida: o

interessante é sempre o inesperado, não o programado (e, como dizia

Heráclito, “espere o inesperado ou você não o encontrará”) (13).

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Ter essa atitude-fluzz é algo assim como usar aquele “Pó de Flu” – da série

Harry Potter de J. K. Rowling (1997-2007) – para se transportar para todos

os lugares que estiverem ligados à Floo Network; ou seja: ligar a

imaginação que voa. Para se comprometer com aves, como escreveu um

daqueles poetas que sabem tudo de redes (sim, fluzz se revela aos

poetas): “Os adejos mais raros se escondem nos emaranhos” (14).

Nos emaranhos, como diz um bom lema (recentemente capturado pelos

publicitários), você é o que você compartilha, ao se deixar varrer pelo

sopro, ao ser permeável ao fluxo.

Se você está esperando algum momento especial para que isso aconteça

na sua vida, fique sabendo que tal momento não existe. Você não precisa

aguardar a abertura de uma janela de oportunidade. Você não precisa se

preparar. Você não precisa galgar os degraus de um processo iniciático,

percorrer uma trilha oculta, aguardando pacientemente que alguma

burocracia espiritual lhe reconheça ou lhe escolha. Se lhe oferecerem esta

via, agradeça penhorado, mas diga que você está ocupado no momento

com uma coisa mais importante: ser uma pessoa comum.

Ao contrário do que Morpheus diz para Neo (15) em The Matrix (1999)

não há uma última chance. Enquanto você respirar, a chance estará

presente. E não existe o escolhido. Todos nós somos escolhidos quando

colhidos por fluzz. Independe do que você acredita ou queira acreditar.

Tanto faz. Não acredite em Morpheus, não acredite em nada – nem

mesmo no que você leu neste texto –, mas cante como Lennon &

McCartney Let it be e… pule no abismo. Seja um Meher Baba, assobie com

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Bobby McFerrin Don’t worry, be happy e... salte na correnteza. Fale como

Yoda: Não tente, faça e... entregue-se ao nada (sim, ouça agora Morihei

Ueshiba, fundador do Aikido: “Aqueles que são possuídos pelo nada

possuem tudo”). Ou, como disse algures o Bhagwan Shree Rajneesh (mais

conhecido como Osho), “deixe de lado todas as ideologias, todas as

filosofias, todas as religiões, todos os sistemas de pensamento e penetre

no vazio”.

E agora? Você vai tomar a pílula azul ou a vermelha? Ora, talvez você não

precise escolher nenhuma das duas. Já não se trata bem de fazer escolhas.

Você pode se atirar no rio e... simplesmente deixar.

Mas como? – Depois de ler isso tudo ainda não sei bem o que é fluzz. Pois

é... Você ainda não entendeu que tem que pular no abismo?

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AAhh!!...... OOss ppooeettaass,, eessssaass ppeessssooaass--ff lluuzzzz

Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber

passar silenciosamente... Fernando Pessoa (como Ricardo Reis, em

12/06/1914).

Você, o indivíduo, é a massa, o resultado da massa. Em nós, como você

descobrirá se entrar nisso profundamente, estão os muitos e o particular. É

como uma correnteza que está constantemente fluindo, deixando

pequenos rodamoinhos e esses rodamoinhos chamamos de

individualidade, mas eles são resultado deste constante fluxo de água.

Jiddu Krishnamurti em Ojai 1st Public Talk (1944).

Ser como o rio que deflui silencioso dentro da noite. Manoel Bandeira no

poema Rio, em Belo Belo (1948).

Não passamos de remoinhos num rio de água sempre a correr. Norbert

Wiener em Cibernética e sociedade (1950).

Somos o rio e também aquele grego que se olha no rio. Jorge Luis Borges

em São os rios, Os Conjurados (1985).

Deixe-me ser o que sou, o que sempre fui, um rio que vai fluindo. Mario

Quintana em Água: os últimos textos (2001).

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Eu me atirei num rio... [e] simplesmente deixei. Mojud, personagem da

história sufi (s/d) “O homem cuja história era inexplicável”.

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NNoottaass ee rreeffeerrêênncciiaass

(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início

de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor

observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,

argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (i-based

e não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em participação).

Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na ocasião mais

como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de Buzz+fluxo.

Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe Fluzz: vida humana e

convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro

milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o programa

malsucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito complexo,

sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem: “Tudo que

flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não pode ser

aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da

rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se

expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado

de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não

há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É

de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos...

Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são

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muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,

dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que

se constelam e se desfazem, intermitentemente”.

(**) Este texto foi originalmente escrito e publicado em 2011 no livro

Fluzz: vida humana e convivência social nos novos mundos altamente

conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de Redes, 2011.

(1) HERBERT, Frank (1976). Os Filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1985.

(2) Como o Kinect, um dos maiores lançamentos da Microsoft em 2010.

(3) A psilocibina é um alcalóide encontrado em alguns cogumelos, de

estrutura molecular análoga à serotonina, e merece continuar sendo

estudada (assim como várias outras substâncias que alteram de alguma

forma a percepção ou aquilo que se chama de consciência, como as que

são misturadas para o preparo do chá ayahuasca). Cf. McKENNA, Terence

(1992). O alimento dos deuses. São Paulo: Nova Era, 1996.

(4) Os “midi-chlorians”, organismos microscópicos existentes nas células

dos seres vivos que facilitam a interação com a Força, introduzidos

tardiamente na série de George Lucas, no Episódio 1 (1999): “A Ameaça

Fantasma” (cf. BROOKS, Terry (1999). Star Wars – Episódio I: A Ameaça

Fantasma. São Paulo: Meia Sete Editora, 1999) talvez sejam uma evocação

conceitualmente menos adequada. Pois fluzz não é a força (Te). Fluzz é o

curso (Tao).

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(5) JOHNSON, Steven (2001). Emergência: a vida integrada de formigas,

cérebros, cidades e softwares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

(6) ARQUILLA, John e RONSFELD, David (2000). Swarming and the Future

of Conflict. USA: Rand Corporation, Office of the Secretary of Defense,

2000.

(7) O paper de John Arquilla e David Ronsfeld sobre swarming entre

humanos, infelizmente, estava mais voltado para a análise das suas

implicações na guerra. Quatro anos depois, em 11M: Redes para ganar

uma guerra, analisando a reação da sociedade espanhola aos atentados

terroristas cometidos pela Al-Qaida em 11 de Março de 2004, David de

Ugarte (2004) aventou a possibilidade de um swarming civil, mas ainda

nos marcos de um conflito (a netwar). Cf. UGARTE, David (2004). 11M.

Redes para ganar uma guerra. Barcelona: Icaria, 2006. Três anos depois,

em O Poder das Redes (2007), ele iria definir o swarming como “um novo

tipo de conflito multi-agente e multicanal, onde as relações entre os atores

parecem descrever a topologia de uma rede distribuída. O swarming é a

forma específica do conflito na sociedade-rede: distintos grupos e

tendências, não coordenados explicitamente entre si e apenas

centralizados um pouco além de uma mínima doutrina comum dentro das

fileiras de cada um deles, vão aumentando o alcance e a virulência de suas

ações, até isolar e encurralar as posições contrárias sem deixar-lhes

possibilidade real de resposta”.

(8) UGARTE, David (2007). O poder das redes. Porto Alegre: EdiPUCRS,

2008.

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(9) Cf. Sugatra Mitra: “The child-driven education” no TED Global 2010 no

link abaixo:

<http://www.ted.com/talks/lang/eng/sugata_mitra_the_child_driven_ed

ucation.html>

(10) Cf. depoimento de Steven Strogatz no filme Connected: the Power of

Six Degrees, dirigido por Annamaria Talas. BBC – TV ABC / Discovery

Science Channel, 2008. Disponível – com legendas em português – no link:

<http://escoladeredes.ning.com/video/o-poder-dos-seis-graus-1>

(11) LISPECTOR, Clarice (1969): Op. cit.

(12) BARROS, Manoel (2010). “Caderno de Aprendiz” in Menino do Mato:

Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.

(13) Cf. von OECH, Roger (2001). Espere o inesperado ou você não o

encontrará. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

(14) BARROS, Manoel (2010). Poesia Completa: Ed. cit.

(15) Morpheus in The Matrix (1999): “This is your last chance [Neo]. After

this, there is no turning back. You take the blue pill - the story ends, you

wake up in your bed and believe whatever you want to believe. You take

the red pill - you stay in Wonderland and I show you how deep the rabbit-

hole goes”.

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Augusto de Franco é escritor, palestrante e consultor. É o criador e um

dos netweavers da Escola-de-Redes – uma rede de pessoas dedicadas à

investigação sobre redes sociais e à criação e transferência de tecnologias

de netweaving. É autor de mais de duas dezenas de livros sobre

desenvolvimento local, capital social, democracia e redes sociais.