Formação ou Reificação?

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Amarildo Luiz Tr - Doutor em Educação e professor associado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria

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  • Educao & SociedadeISSN: [email protected] de Estudos Educao e SociedadeBrasil

    TREVISAN, AMARILDO LUIZFORMAO OU REIFICAO? A EDUCAO ENTRE O MESMO E O OUTRO

    Educao & Sociedade, vol. 32, nm. 117, octubre-diciembre, 2011, pp. 1185-1200Centro de Estudos Educao e Sociedade

    Campinas, Brasil

    Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=87321425015

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    FORMAO OU REIFICAO? A EDUCAO ENTRE O MESMO E O OUTRO

    A L T

    RESUMO: O artigo prope discutir em que medida a categoria da rei cao pode auxiliar a educao na leitura dos processos de estetizao do mundo da vida. No giro da formao cultural, a dialtica colocara o indivduo, ou o em si, em contraposio com o mundo, num processo de alienao ou de estranhamento com o outro que conduzia progresso gradativa do esp-rito em direo a um reino de mais liberdade. Marx subverte a relao ao dizer que a rei cao ocorre no sentido contrrio, isto , na materialidade do trabalho alienado que transforma regressivamente o sujeito em algo sem-pre igual, em objeto, em coisa, isto , no mesmo. A educao, ao avaliar as contribuies da cultura visual, tambm cou dividida entre considerar se, de fato, ela representa a assuno do mesmo ou do outro, o vivo ou morto. Cabe analisar se a realizao de uma leitura dos processos de estetizao do ponto de vista desta categoria, compreendida no sentido hermenutico, possibilita ento uma sada deste impasse.

    Palavras-chave: Estetizao. Rei cao e formao.

    T ` E '

    ABSTRACT: This paper discusses to what extent rei cation can help educa-tion seize the aesthetization processes of the world of life. In the course of cultural training, dialectics has opposed the individual or self to the world. This process of alienation or estrangement from the other was leading to a gradual advance of the spirit towards a kingdom of greater freedom. Marx subverted this relation when he said rei cation occurred in the opposite direction, that is, the materiality of alienated labor regressively transformed the subject in something always equal, in an object, in a thing, in the same. When it evaluated the contributions of visual culture, education also got divided: does it in fact represents the assumption of the same or the other, the living or the dead. It is worth analyzing whether a reading of these aes-thetization processes from this category point of view, here understood in the hermeneutic sense, provides a way out of this dead-end.

    Key words: Aesthetization. Rei cation. Formation.

    * Doutor em Educao e professor associado do Programa de Ps-Graduao em Educao da Uni-versidade Federal de Santa Maria (). E-mail: [email protected]

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    F ` L }

    RSUM: Cet article propose de discuter dans quelle mesure la catgorie de la ri cation peut aider lducation dans la lecture des processus des-thtisation du monde de la vie. Au cours de la formation culturelle, la dia-lectique avait plac lindividu, ou le en soi, comme oppos au monde, en un processus dalination ou dtranget envers lautre qui conduisait la progression graduelle de lesprit vers un royaume de plus de libert. Marx a subverti ce rapport en disant que la ri cation prend place en sens contraire, soit que la matrialit du travail alin transforme rgressivement le sujet en quelque chose de toujours gal, en objet, en chose, cest--dire, en mme. Quand elle a valu les contributions de la culture visuelle, lducation sest galement vue divise entre la considration de savoir si en fait elle repr-sente lassomption du mme ou de lautre, du vivant ou du mort. Il convient danalyser si une lecture des processus desthtisation du point de vue de ce e catgorie, comprise au sens hermneutique, permet alors une sortie de ce e impasse.

    Mots-cls: Esthtisation. Ri cation. Formation.

    Consideraes iniciais

    O texto a seguir discute os processos de estetizao do mundo da vida a partir do ngulo de anlise do conceito de rei cao, notadamente para auxiliar nos procedimentos de leitura e decodi cao dessa cultura. O tratamento do assunto ocorre, de forma geral, contra o pano de fundo da dialtica da formao cultural (Bildung) hegeliana. Porm, assim como procede Gadamer (1996) com relao hermenutica do conceito de formao, ao romper com o absoluto hegeliano, paulatinamente tambm a ideia da rei cao vai se afastando dos seus vnculos de base, para se tornar um auxlio efetivo no entendimento dos processos de reproduo da cultura.

    A inteno do trabalho enfocar o tema, promovendo, inicialmente, uma breve exposio sobre o contexto da cultura atual para situar o diagnstico da rei cao. A seguir, retomada sucintamente a sua origem no marxismo, em contraposio ao movimento da formao cultural (Bildung) hegeliana. E, por ltimo, extraem-se algumas pistas deixadas no tratamento do assunto para re-pensar a interpretao da cultura. A nal, tambm a educao, ao avaliar as con-tribuies da cultura visual, cou dividida entre considerar se, de fato, ela re-presenta a assuno do mesmo ou do outro, o vivo ou o morto. Cabe avaliar se a realizao de uma leitura dos processos de estetizao do ponto de vista desta categoria, compreendida no sentido hermenutico, possibilita ento uma sada deste imbroglio.

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    A educao nos processos de estetizao

    No lme Escritores da liberdade (Freedom writers1) h um momento em que a professora, falando sobre a tradio clssica grega, cita Homero e imediatamente interpelada por um aluno se ela no estaria se referindo ao personagem Homer, de Os Simpsons. Mesmo com toda sua boa vontade de iniciante, a professora nega, num primeiro momento, existir qualquer correlao entre o clssico/erudito e a cultura de massa. Sem dvida, esta passagem do lme bem ilustrativa da difcil tarefa de realizar educao no contexto dos processos de estetizao do cotidiano, na medida em que a tendncia ver o outro da formao cultural como o mesmo da indstria cultural. Porm, em tese, a educao deveria ser um terreno propcio para estabelecer uma comunicao crtica entre ambos os contextos, uma vez que os alunos chegam escola contagiados pela cultura de massa divulgada cotidiana-mente pelos novos mdias. Esta situao leva a questionar o porqu de tal vnculo encontrar-se cindido na educao e qual o fundamento, em sua formao, que fez a professora negar de incio tal aproximao? Alm disso, como fazer ento a tran-sio do conhecimento elaborado para o cotidiano, se tal ambiente j se encontra completamente impregnado de meias informaes e verdades sobre todos os tipos de assunto? possvel que essa demanda no que restrita aos simples mecanis-mos de alfabetizao visual? En m, os processos de estetizao representam uma ameaa ou possibilidade de redeno do elemento formativo da cultura?

    Primeiramente, preciso esclarecer que uma das principais caractersticas dessa nova forma de conhecimento o fato de ela no estar presa na alta cultura, mas mesclada nos valores do cotidiano, os quais so intensi cados pelos meios de comunicao e difundidos nos produtos da publicidade. Essa intensi cao ou saturao vem preencher aquilo que, segundo Evangelista (2008, p. 12), estaria levando ao esvaziamento da razo humana:

    A capacidade de representao da razo humana estaria se esvaziando. Estaramos diante do predomnio de um princpio esvaziador que atuaria em todas as esferas do mundo e da sociedade moderna, envolvendo suas instituies e suas formas simblicas e imaginrias. Assim, por exemplo, estariam se processando a desreferencializao do real, a desmaterializao da economia, a desestetizao da arte, a desconstruo da lo-so a, a despolitizao da sociedade e a dessubstancializao do sujeito. Ou seja, tudo o que existe estaria marcado pela efemeridade, pela fragmentao, pelo descentramento, pela indeterminao, pela descontinuidade, pelo ecletismo das diferenas e pelo caos paradoxal.

    Entretanto, de acordo com Welsh (1995), a saturao do esttico ocorre com o objetivo de criar uma sociedade das emoes. Ele acredita que, em nome das emo-es, as sociedades industriais avanadas tentam criar um cenrio hiperesttico,

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    o qual altera a percepo sensorial do indivduo frente realidade. Se essa tentativa fosse bem sucedida, no limite: O mundo ento se transformaria num espao de emoes, e a sociedade numa sociedade de emoes (p. 8). Sendo assim, o diag-nstico gerado por esse estado de coisas de apagamento das fronteiras entre arte e vida e a transformao da realidade em imagens aponta para o fato de que vive-mos hoje um processo, para alguns de carter irrevogvel, de estetizao do mundo da vida ou do cotidiano (Welsch, 1995 e 2001).

    Um entendimento melhor dessa cultura passa pela classi cao efetuada por Featherstone (1995), na obra Cultura de consumo e ps-modernismo. Ele distingue trs formas espec cas de ocorrncia destes processos: o projeto das subculturas arts-ticas, produtor dos movimentos dadasta, surrealista e da vanguarda histrica; o projeto de transformao da vida numa obra de arte, que fascinou muitos aspirantes e os prprios artistas e intelectuais, como Oscar Wilde, Richard Rorty e Foucault; e, por ltimo, a preocupao com o uxo veloz de signos e imagens que produzem a saturao do cotidiano, seguindo a anlise da teoria do fetichismo da mercadoria de Marx, desenvolvida por Lukcs, a Escola de Frankfurt e Jameson, entre outros.

    De ora em diante, vou me concentrar neste terceiro momento de de nio de estetizao, dado que o fetichismo prepara, de certo modo, na obra de Marx, o sur-gimento da categoria da rei cao. Ambos os conceitos esto muito prximos, pois o fetichismo seria o ocultamento das relaes humanas numa relao entre coisas, ao passo que, de acordo com Bo omore (1988, p. 314), rei cao signi ca

    (...) a transformao dos seres humanos em seres semelhantes a coisas, que no se com-portam de forma humana, mas de acordo com as leis do mundo das coisas. A rei cao um caso especial de alienao, sua forma mais radical e generalizada, caracterstica da moderna sociedade capitalista.

    Em resumo, segundo as palavras do prprio Marx (1983, p. 71), trata-se de relaes coisais entre pessoas e relaes sociais entre coisas. Para trazer a lume mais alguns elementos analticos, com o intuito de auxiliar na compreenso dessa categoria, preciso traar um pequeno esboo histrico de sua origem no marxismo.

    A reiicao no panorama da formao cultural

    Embora Hegel fale em seus escritos de uma razo observadora (Bo omore, 1988, p. 314), o aparecimento do conceito de rei cao se deu mais precisamente a partir da inverso dialtica da fenomenologia do esprito por Karl Marx. Como sabido, em traos largos no giro da formao cultural (Bildung), a dialtica colo-ca o indivduo, ou o em si, em contraposio com o mundo, ou com o outro, num processo de alienao e estranhamento que resultava, ao m e ao cabo, no retorno

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    ao para si. Essa ascese conduz progresso gradativa do esprito em direo a um reino de mais liberdade. Porm, Marx subverte essa relao, dizendo que a dialtica em Hegel est de ponta-cabea e que seria necessrio, para dar conta da anlise do real, coloc-la novamente em p. Desse modo, enquanto na fenomenologia do esp-rito o sujeito se lana no real e, contrapondo-se objetividade, acaba recuperando a si mesmo nesse processo, na coisi cao quem tem o controle so as condies sociais objetivas que se impem subjetividade. A dialtica da formao ocorre no nvel progressivo, espiritual, de engrandecimento do esprito ou da conscincia, enquanto a rei cao acontece no sentido contrrio, isto , na materialidade do tra-balho alienado que transforma regressivamente o sujeito em objeto, isto , em coisa. Talvez por esse motivo, no Manifesto comunista, Marx e Engels mostram descon an-a com a formao cultural, ao comentar: A cultura (Bildung) cuja perda o burgus tanto lastima para a imensa maioria apenas um adestramento para agir como m-quina (1993, p. 83). Em sntese, embora nascida no seio da formao cultural alem, a teoria da rei cao se ope dialeticamente formao cultural alem, na famosa inverso produzida por Karl Marx no pensamento de Hegel. justamente essa in-verso, entre o elemento espiritual e o material, vivo e morto, que se torna chave para entender o sentido do conceito de coisi cao.

    Contudo, mesmo surgindo em contradio manifestao cultural do esp-rito, precisamente nesse terreno que, aos poucos, a categoria da rei cao vai-se fazendo valer como metodologia produtiva de anlise. Em Histria e conscincia de classe, Lukcs (2003, p. 222) estende essa lgica para a compreenso de algumas ma-nifestaes desse gnero, como a pro sso do jornalista:

    E o virtuose especialista, o vendedor de suas faculdades espirituais objetivas e coisi -cadas, no somente se torna um espectador do devir social (no possvel indicar aqui, mesmo que alusivamente, o quanto a administrao e a jurisprudncia modernas reves-tem, em oposio ao artesanato, os caracteres j evocados da fbrica), mas tambm as-sume uma atitude contemplativa em relao ao funcionamento de suas prprias facul-dades objetivadas e coisi cadas. Essa estrutura mostra-se em seus traos mais grotescos no jornalismo, em que justamente a prpria subjetividade, o saber, o temperamento e a faculdade de expresso tornam-se um mecanismo abstrato, independente tanto da personalidade do proprietrio como da essncia material e concreta dos objetos em questo, e que colocado em movimento segundo leis prprias. A ausncia de con-vico dos jornalistas, a prostituio de suas experincias e convices s pode ser compreendida como ponto culminante da rei cao capitalista.

    O jogo de linguagem das categorias mortas no casual nesta citao: ex-pectador, contemplativo, mecanismo abstrato, independente, ausncia de convic-o, coisi cadas, prostituio e rei cao querem traduzir o cotidiano massi cado ou morti cado de uma pro sso afeita produo cultural. evidente que aqui tambm se a rma, em certo sentido, a imagem de que essa situao contraria a ideia da formao cultural, como se o relgio da histria andasse de maneira invertida. O

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    jornalista paga uma dvida constante com o funcionamento da racionalidade domi-nante no sistema, ao abrir mo de suas convices e inclinaes pessoais, e tambm da in nita diversidade do real que descreve, repassando ao leitor uma viso padro-nizada ou uniformizada da sociedade e do mundo. Se a formao cultural eleva o esprito humano para transcender as suas limitaes, a coisi cao seria o movi-mento que o diminui, absorvendo-lhe a moeda de troca da mercadoria, que acaba degradando as suas qualidades. A coisi cao se impe de fora para dentro e mol-da o indivduo, inclusive as suas faculdades psquicas e sensoriais, limitando a sua compreenso do existente. como a rma Nobre (2008, p. 285), a partir de Lukcs: a rei cao justamente a maneira pela qual os agentes da produo capitalista expe-rimentam a imposio pelo sistema do papel de portadores. No caso do jornalismo, ela opera na imposio da espetacularizao do cotidiano com notcias seletivamen-te recortadas, dando nfase a assaltos, mortes, sequestros, e, ao estimular o grotesco, promove o embrutecimento e a regresso do esprito, no a sua emancipao.2

    Reiicao no estgio atual de discusso da cultura

    Comentando essa mesma passagem do livro de Lukcs, Adorno (1993) diz, no aforisma 147 do Mnima moralia, que a rei cao opera como perda progressiva da diferenciao. Para ele, a formao adquire um sentido mais amplo do que o puro giro do esprito sobre si mesmo, conforme previa o sistema hegeliano. Ela est cris-talizada numa formao social determinada que, para sua autoconservao, acaba se impondo sobre a vida, dani cando-a. Por isso, a autoconservao anula a vida na subjetividade, sendo possvel entender aqui os esforos de adaptao e con-formismo da psicologia social e da antropologia cultural como epifenmenos (p. 201). Mesmo o que se distingue da tcnica, e a prpria diferenciao psicolgica sur-gida com a especializao do trabalho, no consegue fugir dessa lgica, mas passa a lubri car e alimentar o modo de produo. E nesse quadro que ele entende a crtica de Lukcs aos jornalistas, concluindo este raciocnio ao dizer que a conser-vao de si perde seu si (ibid., p. 202). Em outras palavras, perder seu si signi ca que o caminho do conhecimento e da racionalidade que, em princpio, poderia cap-tar a realidade de maneira plural, rica de signi cados, acaba se perdendo em prol de uma viso voltada para aquilo que Chau (2006) classi ca de mercado da moda. Com a imposio da realidade social objetiva, a formao social acaba formando ou moldando a subjetividade, tornando o plano da racionalidade no mais uma ins-tncia con vel. A sada para Adorno, ento, estaria na arte, pois ela no simples conhecimento, identidade com a coisa, mas mmesis ou trans gurao do real. A mmesis evidencia que a motivao utpica no est suspensa, mesmo no predom-nio da universalizao dos valores de troca.

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    Em seu livro Rei cacin: un estudio en la Teora del Reconocimiento, Axel Honneth (2007) defende a tese de que Lukcs estaria, nesta citao, querendo minimamente dar um exemplo mais preciso de como est estruturada tal autorrei cao, isto , como autoconhecimento, visto na tentativa do jornalista de adaptar sua prpria sub-jetividade, temperamento e habilidade de expresso aos interesses do suposto leitor em cada caso. Nesse sentido, ele interpreta a tese da rei cao dentro da perspectiva intersubjetiva, a qual Lukcs teria deixado de lado logo de sada em sua obra. As relaes fraternas, intersubjetivas ou autnticas, isto , o terreno da prxis, foram pos-tergadas pelo terico marxista em prol das relaes imediatas, que esto acontecendo na rei cao cotidiana. Esse projeto abandonado por Lukcs serve para Honneth re-tomar a perspectiva da rei cao como ponto de partida interpretativo, portanto. Ele busca assim uma reatualizao do conceito a partir de Lukcs, constatando que tal categoria fora transformada pelo capitalismo numa segunda natureza (Honneth, 2007, p. 27). Alm disso, ela se caracterizaria por ser uma conduta simplesmente observadora, uma maneira indolente e desapaixonada com qualidade de coisa (idem, ibid., p. 30), en m uma atitude neutra frente vida em geral, o ser humano, o entorno e seus problemas. Juntamente com o tratamento dessa categoria, Honneth leva adiante tambm a ideia de reconhecimento do outro, presente embrionariamen-te na dialtica do senhor e do escravo, de Hegel. Busca ainda evidncias em diversos autores (o compromisso prtico, em Dewey, a ideia de cuidado, em Heidegger, e a implicao em Lukcs) e mesmo na prtica existencial, para mostrar que existem sadas para o comportamento alienado, pois a rei cao seria, na sua interpretao, nada mais do que o esquecimento do reconhecimento. o reconhecimento prvio, subjacente ao plano do conhecimento, que determina a implicao mtua. E, como procura deixar claro a partir de Heidegger, ela pode estar muito mais ao alcance da mo do que diante dos olhos (Honneth, op. cit., p. 45-46). Essa outra perspectiva contraria o esprito de vazio e pessimismo deixados no rastro do tratamento dessa ca-tegoria por diversos autores. Nesse sentido, como ele mesmo a rma, uma postura de reconhecimento expresso da valorao do signi cado qualitativo que possuem outras pessoas ou coisas para a realizao de nossa existncia (p. 55-56).

    Ao transportar tal ideia para o plano da relao do indivduo consigo mesmo, Honneth percebe que essa atitude no pode ser apenas a do conhecer, tampouco a relao consigo mesmo no pode se ater a estados mentais (op. cit., p. 115). Na dimenso da autorrei cao, conforme exposto no caso do jornalismo, teramos um tpico exemplo de esquecimento de si mesmo ou de desateno consigo prprio. Rei cao seria tambm uma atitude detetivesca ou construtivista consigo mesmo, na qual se substitui a atitude do reconhecimento por um conhecer objetivador. A crtica de Honneth a Lukcs que a categoria da rei cao ainda cou restrita di-menso econmica, presa, portanto, ao funcionamento das leis de mercado. No

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    foi percebida por ele uma srie de intentos de explicao do racismo ou da repre-sentao pornogr ca das mulheres em conformidade com um padro de este de-senho (ibid., p. 141). O formato do desenho sugerido por Honneth estaria situado no nvel no epistmico, no no plano do conhecimento, mas do reconhecimento, portanto no nvel ontolgico. En m, a abordagem que Lukcs oferece ao conceito de rei cao ainda se mantm prisioneira do paradigma economicista, fato este que o impede de ver o alcance prtico-social embutido neste conceito.

    Se, para Lukcs, o nvel mais elevado da rei cao se encontra no jornalismo, nessa mesma direo Jameson (1995) diz, no artigo Rei cao e utopia na cultura de massa, concordando tambm com Debord, que a imagem se tornou a forma ltima da mercadoria. Ele promove a uma anlise das manifestaes culturais rei cadas da sociedade capitalista em sua etapa multinacional. Nesse contexto, os indivduos se relacionam primeiro com o universo das imagens, o qual, para ele, o universo do cultural, para s depois tomarem contato propriamente com o produto. Esse re-lacionamento com a imagem o que prende o sujeito teia do consumo, tornando-o incapaz de transcender tal nvel de objetividade. Jameson compartilha assim com as anlises marxistas, inclusive as de Adorno, ao dizer que a rei cao ou a materiali-zao constituem um trao estrutural chave tanto do modernismo como da cultura de massa (1995, p. 17). A nal, o modernismo passa por essa mesma situao, na medida em que, ainda segundo sua leitura de Adorno, a rei cao adentrou a estru-tura da obra de arte, enquanto a cultura de massa j est, pela sua prpria dependn-cia absoluta do mercado, completamente administrada. Decifrar esse trao passa por uma tentativa de ler a materializao que est oculta ou adormecida nos produtos da cultura. Jameson conclui pela necessidade de no separar alta e baixa culturas, a nal: Tal aproximao exige que se leia a alta cultura e a cultura de massa interde-pendentes, como formas gmeas e inseparveis da sso da produo esttica sob o capitalismo (op. cit., p. 14). Para exempli car esta tese, ele analisa, nesse mesmo artigo, os lmes Tubaro, de Steven Spielberg (1975), e as duas partes de O poderoso chefo, de Francis Ford Coppola (1972 e 1974). Procura mostrar que, mesmo sendo produtos da cultura de massa, conseguem a suspenso das noes de tempo e espa-o, produzindo assim a sensao de utopia, algo que se julgava privilgio apenas da grande obra de arte.

    A partir destas breves consideraes, percebe-se que a rei cao no s aca-ba com as ideias de diferenciao ou de identidade prpria (Adorno), de ateno com respeito a si mesmo, de implicao ou reconhecimento do outro e do mundo circundante (Honneth), mas ela serve tambm de fonte privilegiada de leitura do cultural (Jameson). Nela encontram-se pistas para auxiliar, de certo modo, a leitura da alta e da baixa cultura como formas interligadas. A transformao da prpria mer-cadoria em imagem, no momento em que o dado espiritual se adapta aos impulsos

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    econmicos, paradoxalmente coloca em contato novamente as duas pontas da dia-ltica antes rompida com a crtica de Marx a Hegel. O giro da rei cao no in-compatvel, em princpio, com a leitura da formao hermenutica, mas talvez o seu avesso, como uma dialtica esquecida entre o mesmo e o outro. No prximo item, procurarei desenvolver melhor a tese de que a rei cao se aproxima das exigncias de uma investigao hermenutica e que, nesse sentido, elas podem vir a se comple-mentar. A retomada dessa discusso de maneira sinttica visa servir aos propsitos da re exo, procurando relacionar cada passo da formao hermenutica ideia de rei cao.

    Formao ou reiicao: duas pontas da mesma dialtica?

    Em Verdade e mtodo

    , mais precisamente no item Sobre o crculo da compre-enso, Gadamer (1994) fragmenta a dialtica hegeliana da formao do esprito na imanncia. Depois de se desfazer da ideia do absoluto hegeliano,3 ele situa a inter-pretao na dependncia do intrprete, na sua capacidade de fazer a costura entre cada um dos seus elementos constitutivos.

    Para Gadamer (op. cit.), toda interpretao hermenutica deve iniciar com a explicitao da expectativa de sentido: A antecipao de sentido, que envolve o todo, se faz compreenso explcita quando as partes que se de nem desde o todo acabam tambm de nindo esse mesmo todo (p. 63). Sendo assim, em linhas gerais a hermenutica procura, num primeiro momento, fazer a relao da parte com o todo, o que implica colocar o texto dentro do contexto e vice-versa. Evidenciada nesse ponto da re exo, a teoria da rei cao, como possibilidade de leitura dos processos de estetizao, demonstra a sua produtividade porque permite no apenas uma leitura instrucional das imagens. Embora possamos discordar de seu exame crtico do real, no se pode negar que ela atende expectativa ontolgica de tomada de posio frente ao mundo, isto , possibilita uma viso de conjunto ou de totalidade. Para ela, no basta a leitura de imagens simplesmente, mas necessria uma tomada de posio mais abrangente, isto , cultivar uma preocupao mais ampliada com os destinos do mundo comum, relacionando a parte com o todo. Caso contrrio, a re exo caria aprisiona ao nvel do conhecimento emprico, exposta obrigato-riedade de decifrar imagem por imagem, signo por signo, numa busca frentica de explicao dos processos de estetizao de maneira singularizada, sem referenciais mais profundos de anlise.

    A seguir, a hermenutica prope em sua abordagem encontrar um ponto mdio, ou seja, buscar um ponto desencadeador da interpretao. No caso da anlise da categoria de rei cao, creio que esse item ca explcito no momento em que Lukcs critica a linguagem utilizada no jornalismo. O ponto mdio pode ser percebido no

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    sentido de que o caminho do conhecimento ou da racionalidade cognitivo-instru-mental est fechado e de que necessrio buscar novas sadas, conforme demons-tram autores que analisaram posteriormente esta questo, como Adorno, Honneth e Jameson. O prximo elemento proposto pela hermenutica requer a reviso dos preconceitos. E isso quer dizer: avaliar as opinies prvias j consolidadas sobre o assunto, a m de torn-las explcitas, para no desvirtuar o processo interpretativo. preciso esclarecer que a hermenutica de Gadamer admite que o preconceito seja uma instncia pr-re exiva anterior ao plano racional, e que ele tambm determina em geral a nossa pr-compreenso das coisas. O que se pode fazer nesse caso dis-tinguir os preconceitos legtimos dos ilegtimos, colocando-os prova. O elemento rei cado se aproxima dos preconceitos ilegtimos, na medida em que se restringe ou se limita quilo que perdeu o vnculo com o uxo da vida. Como bem demonstrou Honneth (2007), essa poderia ser uma atitude observadora, neutra ou desapaixona-da frente ao real.

    O passo seguinte da interpretao hermenutica visa buscar o acordo na coi-sa, signi cando esta atitude confrontar a viso do que se tem a partir dos precon-ceitos com o que est posto no objeto interpretado. E isso pode ser relacionado ao prprio diagnstico da rei cao, se perguntando, por exemplo, at que ponto o intrprete se guia pela tica do consumo na anlise de um produto da publicidade, tomando a imagem como se fosse o objeto, como aduz Jameson. Por ltimo, a her-menutica procura expressar a ideia da necessidade de deixar que o texto diga algo, o que implica abdicar do que sabido para se colocar na posio de escuta ou de reconhecimento do sentido comunicado no saber do outro. A con rmao ou no da expectativa inicial de sentido se faz presente nessa ocasio, em que tudo deve con uir para compreender a fala do objeto analisado. claro que isso depende da apropriao dos pressupostos de base da abordagem utilizada, dos instrumentos ou tcnicas disponveis e da competncia terica do intrprete na sua utilizao. Nesse sentido, a interpretao hermenutica no con itante com a leitura proposta pela categoria da rei cao. De outra maneira, esse conceito pode servir, inclusive, de chave de leitura ou porta de entrada importante para a hermenutica de nir melhor o seu prprio campo de atuao. A nal, como abordagem metodolgica corretiva dos rumos da racionalidade moderna, a hermenutica guarda, em princpio, forte semelhana com a preocupao expressa nessa categoria, enquanto postura crtica do modo de produo dominante na modernidade. por isso que, segundo o tes-temunho de Richard Palmer (2006), algumas obras classi cam a loso a de Marx como uma hermenutica do social, como o caso do livro De linterpretation (1969), em que Paul Ricoeur situa Marx ao lado de Nietzsche e Freud como mestres da sus-peita e da desmiti cao. Ainda de acordo com Palmer (op. cit., p. 53): Cada um dos trs homens interpretou como falsa a superfcie da realidade e avanou com um

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    sistema de pensamento que destruiu essa realidade. (...); cada um defendeu uma transformao de pontos de vista, um novo sistema interpretativo do contedo ma-nifesto dos nossos mundos uma nova hermenutica. Existe ento uma dialtica entre rei cao e formao hermenutica, entre o mesmo e o outro, que convm ser retomada pela educao, caso ela queira se inserir produtivamente no universo dos processos de estetizao.

    Pretendo a seguir enunciar algumas pistas, baseando-me na discusso desen-volvida at aqui, que possam permitir esse dilogo entre ambas as categorias.

    A educao na dialtica do mesmo e do outro

    Apresentei at aqui alguns elementos re exivos emergentes da categoria de rei cao, aproximando-a da ideia de formao, para viabilizar uma leitura dos pro-cessos de estetizao do mundo da vida. Nesse contexto, a crtica de Lukcs aos jornalistas ganha sentido, porque exempli ca o ponto atingido pela materialidade na sociedade contempornea, na medida em que as prprias faculdades subjetivas do indivduo se tornaram idnticas realidade coisi cada. Se o caminho para o co-nhecimento est fechado pela rei cao, melhor ento perseguir as sadas propostas por diversos autores que pensam essa questo contemporaneamente. Para eles, no mais possvel buscar uma utopia da reconciliao das diferenas no mbito do puro conhecimento, restando uma investigao no campo da prxis (Honneth), da arte (Adorno) ou do consumo cultural (Jameson). H neles uma clara tentativa de fugir do tratamento do tema circunscrito ao universo de atuao da racionalidade cognitivista, pois a rei cao, na etapa de universalizao dos valores de troca da mercadoria, direcionou os padres culturais para produzir uma sociedade de con-sumidores.

    Para que a educao no recaia na repetncia do mesmo, isto , de algo que no despertou para o novo, situando-se fora do tempo e do espao histricos, pre-ciso reconhecer o outro como outro e no como objeto. Retomo neste ponto a ideia defendida por Honneth (2007) de que preciso se colocar frente coisi cao, caso for pleiteada a sua reverso, no de acordo com a atitude de conhecimento, mas de reconhecimento. Exemplos de negao de reconhecimento no faltam, como as es-tratgias publicitrias em geral, que desviam a ateno do sujeito para o objeto, do vivo para o morto, do outro para o mesmo. Esta inverso de perspectiva ocorre na medida em que, no mpeto do consumo, de administrao do mecanismo psquico ilusrio, o indivduo acaba tomando a coisa como se ela tivesse vida. Torna-se impe-rante perguntar que valores so disseminados a esse respeito nesse plano da comu-nicao? Que tipo de reconhecimento esquecido nesse mbito? E, ainda, possvel olhar um objeto fora da dimenso do consumo? Em consequncia, torna-se possvel

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    questionar, igualmente, o papel do homem/mulher e do prprio corpo exposto nas peas publicitrias: at que ponto so justamente estes os modelos disseminados na sociedade atual? Na verdade, o que est em questo em muitos desses casos um produto morti cado ou xado previamente em imagens padronizadas ou rei cadas, que se reduplicam rigidamente em formatos e medidas mnimas, independentes dos corpos vivos que as simbolizam ou as exempli cam, sendo este um comportamento tpico do contexto mercadolgico.

    J um exemplo positivo de reconhecimento do outro dado no prprio lme Escritores da liberdade. Para atingi-lo, a professora utiliza algumas estratgias e jogos intersubjetivos ao perceber que suas tcnicas de ensino tradicionais no estavam dando resultado. Ao se desencadear processos de reconhecimento, os alunos perce-beram que havia muito mais coisas a uni-los do que o contrrio e que a construo do conhecimento na escola poderia signi car tambm a possibilidade de compre-enso das vivncias e traado de perspectivas, en m, possibilidades de formao humana.

    Sendo assim, um caminho produtivo de anlise da avalanche dos processos de estetizao no passa, obviamente, pela adoo de uma leitura meramente neu-tra, de indiferena ou, ao contrrio, de simples crtica, porque tais iniciativas somen-te di cultam o dilogo entre culturas diferentes. E isso quer dizer que, por um lado, para o indivduo viver num mundo rei cado pela espetacularizao do cotidiano, ele no precisa cultivar relaes neutras, desapaixonadas ou de indiferena frente ao que est sendo veiculado. Por outro lado, o presente estado do campo cultural pode representar uma ameaa formao autntica, se ele for lido exclusivamente com os culos do conhecimento. Uma sada desse imbroglio, no qual a prpria educao, em certa medida, cou prisioneira, no est situada, portanto, na preocupao exclusiva com a ideia de formao ou de rei cao.

    Aspectos conclusivos

    O redirecionamento do comportamento morti cado pode ocorrer por inter-mdio do papel ativo de participantes que cabe a todos, reavivando assim a dialtica do mesmo e do outro. Desse modo, com Honneth (2007) pode se inferir que a reden-o das diferenas e da pluralidade se encontra no nvel da implicao mtua, isto , na atitude de reconhecimento (de um plano cultural pelo outro), que serve de base para gerar conhecimentos (menos preconceituosos e mais produtivos sobre o assun-to). nesse sentido que se pode compreender a ideia de que o outro esquecido pela rei cao no est diante dos olhos simplesmente, pois eles j esto dominados pelo consumo, mas quem sabe muito mais ao alcance da mo. Essa re exo pode inspirar uma educao para o uso do controle remoto ou do mouse, no restrita ao

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    simples treino de tcnicas e habilidades de manuseio, mas para fazer boas escolhas de produtos da publicidade ( lmes, livros, jogos, msicas, programas de computa-dor e de televiso, entre outros); e, ainda, prover a participao em cursos/eventos de formao pessoal/pro ssional e cultural. Certamente, agindo assim os sujeitos estaro se inserindo criativa e produtivamente no universo de expanso do cultural e de estetizao do mundo da vida.

    Jameson tambm auxilia a entender a necessidade de mudana dessa men-talidade, porque no se trata de car no contraponto de um formato e outro de ex-presso do campo cultural. A nal, estas culturas esto presas pelo mesmo trao da materializao que penetrou em profundidade em ambas as formas de expresso. Assim, uma teoria do cultural (Bildung) volta cena novamente, mas no para car aprisionada interpretao dos grandes clssicos humanistas, exclusivamente. Em outro sentido, a ideia da coisi cao, retomada na perspectiva hermenutica, oferece ainda uma vantagem, desde que essa categoria no seja tencionada fora dos seus limites, isto , como nica via de acesso ao real.4

    Em consequncia, embora admitindo os progressos da formao hermenuti-ca, frente aos processos de estetizao, atualmente no basta a defesa intransigente de uma postura elitista, conceitual, em prol da formao autntica. Menos ainda a virada populista da imagem, no sentido de contemplar somente os preceitos de industrializao da cultura, enquanto cultura popular, das celebridades ou de mas-sa, com a justi cativa de que esse fenmeno est disseminado em nosso cotidiano. Essas posies ainda permanecem no campo meramente epistmico, isto , na ideia de classi cao, separao ou contradio entre sujeito e objeto, alta e baixa culturas, conhecimento crtico ou alienado, rei cao ou formao o mesmo ou o outro. A via epistemolgica limitada para a compreenso dessas realidades, porque no pela via do conhecimento, mas do reconhecimento, que se permite ampliar o signi- cado e o alcance do conceito de rei cao, tomando-o como um complemento ne-cessrio ideia de formao no sentido hermenutico. Poder-se-ia dizer que, sem o conceito de rei cao no sentido ampliado, a ideia de formao corre o risco de car ingnua e inoperante do ponto de vista pedaggico. Ela permite que a formao no sentido hermenutico assuma uma dimenso crtica. At porque, no contexto ps-metafsico5 no h garantias absolutas do que representa avano ou retrocesso da humanidade, na medida em que essa viso ca ainda aprisionada a uma concepo linear de loso a da histria.

    Se no h seguranas objetivas, possvel diluir estas ambiguidades dizendo que a rei cao e a formao so dois lados da mesma moeda (no necessariamente de troca), ou melhor, elas esto particularmente imbricadas. H uma simbiose, por-tanto, entre um pensamento preocupado com a alteridade e as diferenas e outro, que chama a ateno para os perigos da repetio do mesmo e do sempre igual,

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    do rotineiro e do crculo vicioso. Assim, enquanto a formao hermenutica serve para recuperar a capacidade do dilogo, a rei cao pode advertir sobre os perigos do esquecimento do outro, especialmente quando for tornada impotente a fora do dilogo nas vivncias pedaggicas.

    Uma educao imersa na cultura visual no pode car refm dessas aporias, pois uma atitude pura estaria, portanto, fora de propsito, uma vez que no ocorre de-senvolvimento de potencialidades humanas sem alguma dose de alienao ou de obje-tivao do esprito, como Hegel (2008) adverte. Do mesmo modo, nenhum processo de rei cao absoluto, a ponto de cancelar a possibilidade de redeno ou utopia de uma sociedade liberada, conforme expe Adorno (1993), a partir da arte, e como bem de-monstra a re exo de Jameson (1995) nas anlises de lmes. Talvez esse caminho ajude a evitar o equvoco da recusa em assumir uma atitude (tica e esttica) de preocupao pelos destinos do mundo comum. Enquanto posicionada de forma distante do campo da formao cultural, ela pode ser indcio de in uncia da prpria rei cao.

    Notas

    1. Filme norte-americano lanado em 2007. Dirigido por Richard La Gravenese e produzido por Danny DeVito, Michael Shamberg e Stacey Scher.

    2. A necessidade de contemplar o elemento morto nos peridicos no se restringe obviamente s pginas do obiturio, ela se dirige para o conjunto da obra, em nome do que est sendo denominado de esttica da barbrie. Segundo Costa (2002, p. 6), A esttica da barbrie, exteriorizada nas man-chetes e nos ttulos bombsticos, na excluso de temas socialmente necessrios, na explorao do gro-tesco e do incomum, prprios da cobertura jornalstica, difunde-se imperceptivelmente nas tcnicas de produo da notcia, em sua conformao aos meios de comunicao e suas linguagens.

    3. Cf. o texto: Porm, reconhecer que a formao como um elemento do esprito no obriga a vincu-lar-se loso a hegeliana do esprito absoluto, do mesmo modo que a percepo da historicidade da conscincia no se vincula tampouco sua prpria loso a da histria do mundo (Gadamer, 1996, p. 44).

    4. O equvoco desta situao provavelmente foi originado a partir do prprio tratamento do assunto por Lukcs. De um ponto de vista hermenutico, seria mais aconselhvel falar em ideia, conceito ou categoria da rei cao, uma vez que o termo fenmeno traz um peso cienti cista muito forte, dando a impresso de que ele j est posto na realidade e no de que haja a uma interpretao de algo designado pelo conceito.

    5. Enquanto o pensamento metafsico busca explicar a identidade, a origem e a essncia de cada ser, atravs da restrio do mltiplo e da colocao das bases idealistas dos saberes transcendentais, o ps-metafsico indica a superao ou deslocamento do modelo metafsico para um pensamento mais alargado, porm falibilista, no sentido de permitir novas leituras e interpretaes de temas e contextos (cf. Habermas, 2002).

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    Recebido em 29 de dezembro de 2009.

    Aprovado em 11 de agosto de 2010.