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Fraturas do cotidiano: mutualismo e alternativas de vida popular no tempo da formação do Estado na Bahia (1821-1850). DOUGLAS GUIMARÃES LEITE 1 Para além de sobrevivências corporativas: sociabilidades em transição 1832 é um ano chave para a história do mutualismo na Bahia. Afinal, no intervalo de apenas três meses, são fundados os dois coletivos que se têm como precursores dessa prática associativa na cidade do Salvador. Ambos seriam os únicos do tipo até o início da década de 1850, quando, num contexto de afirmação do mutualismo, muitas outras associações abririam suas portas. Segundo Marcel Van der Linden, a época era mesmo propícia, uma vez que por todo o Ocidente, “a partir de inícios do Oitocentos, observamos um fenômeno muito comum: a abertura de sociedades de auxíliomútuo (...) Entre outros objetivos, elas eram formadas voluntariamente com o objetivo de promover auxílio financeiro a seus membros em caso de necessidade(VAN DER LINDEN, 1996: 13). A rigor, a prática do associativismo de auxílio mútuo não era nova no mundo de influência portuguesa. Pelo menos desde o século XV, e de formas diversas, na Europa ou no espaço ultramarino, instituições leigas se constituíram à sombra do poder religioso para congregar esforços de assistência e de promoção da caridade. Verdadeiros organismos sociais, essas associações traduziam a hierarquia das sociedades de Antigo Regime que as viam nascer e, nesses termos, atuavam também como espaços de conformação do poder de grupos e estamentos, a exemplo daquele que lhes garantia a posse dos altos cargos de uma prestigiosa Santa Casa de Misericórdia (RUSSEL- WOOD, 1981). Principal e mais difundido símbolo desse universo leigo da ajuda mútua, as irmandades despontaram, para além das suas finalidades primeiras, como instrumentos importantes de consolidação da política colonial portuguesa. Contribuíram para o povoamento do território mas, principalmente, ajudaram a assentar uma forma de governo político que se caracterizava pelo manejo de conflitos entre socialmente 1 Professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense. Mestre em História Social Pela Universidade Federal da Bahia e Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo.

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Fraturas do cotidiano: mutualismo e alternativas de vida popular no tempo da

formação do Estado na Bahia (1821-1850).

DOUGLAS GUIMARÃES LEITE1

Para além de sobrevivências corporativas: sociabilidades em transição

1832 é um ano chave para a história do mutualismo na Bahia. Afinal, no

intervalo de apenas três meses, são fundados os dois coletivos que se têm como

precursores dessa prática associativa na cidade do Salvador. Ambos seriam os únicos do

tipo até o início da década de 1850, quando, num contexto de afirmação do mutualismo,

muitas outras associações abririam suas portas. Segundo Marcel Van der Linden, a

época era mesmo propícia, uma vez que por todo o Ocidente, “a partir de inícios do

Oitocentos, observamos um fenômeno muito comum: a abertura de sociedades de

auxílio‐mútuo (...) Entre outros objetivos, elas eram formadas voluntariamente com o

objetivo de promover auxílio financeiro a seus membros em caso de necessidade”

(VAN DER LINDEN, 1996: 13).

A rigor, a prática do associativismo de auxílio mútuo não era nova no mundo de

influência portuguesa. Pelo menos desde o século XV, e de formas diversas, na Europa

ou no espaço ultramarino, instituições leigas se constituíram à sombra do poder

religioso para congregar esforços de assistência e de promoção da caridade. Verdadeiros

organismos sociais, essas associações traduziam a hierarquia das sociedades de Antigo

Regime que as viam nascer e, nesses termos, atuavam também como espaços de

conformação do poder de grupos e estamentos, a exemplo daquele que lhes garantia a

posse dos altos cargos de uma prestigiosa Santa Casa de Misericórdia (RUSSEL-

WOOD, 1981).

Principal e mais difundido símbolo desse universo leigo da ajuda mútua, as

irmandades despontaram, para além das suas finalidades primeiras, como instrumentos

importantes de consolidação da política colonial portuguesa. Contribuíram para o

povoamento do território mas, principalmente, ajudaram a assentar uma forma de

governo político que se caracterizava pelo manejo de conflitos entre socialmente

1 Professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense. Mestre em História Social

Pela Universidade Federal da Bahia e Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo.

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desiguais, dispostos de alto a baixo na estrutura de sua organização (BOSCHI, 1987;

REIS, 1997).

Assim se, tal como apresentada acima, a definição de Linden a respeito das

sociedades de auxílio-mútuo surgidas no Oitocentos pode também se aplicar às práticas

das irmandades religiosas coloniais na América Portuguesa – coletivos de ajuda mútua

que eram – há de se atentar, porém, para um fenômeno que marca especialmente o

período, e que dá sentido àquilo de que trata o autor. A dissolução das práticas de

Antigo Regime, com especificidades aqui e alhures, vinculou Velho e Novo mundos

num processo em que a história de suas associações leigas se fez sentir como o peso de

uma forte tradição. Por outro lado, a progressiva presença de novos atores sociais,

instaurando a cena moderna anunciada pela queda de tronos divinos e seculares,

marcava a crise de legitimidade e o esgotamento da linguagem e das respostas sociais

dadas por certas formas organizativas (KOSELLECK, 1999; JANCSÓ, 2005).

Esse processo a Carta Constitucional de1824, outorgada por Pedro I, teve por

bem traduzir pelo dispositivo que punha fim à regulamentação corporativa dos ofícios

mecânicos (art. 179, 25 da Constituição Política do Império do Brasil). Base material de

formação de muitas das irmandades americanas e europeias, as atividades mecânicas

eram com freqüência regidas pelas autoridades do ofício tanto quanto pelos

compromissos das confrarias. Mônica Martins notou que os elos entre irmandades e

corporações “foi de tal monta que se manteve como legado das sociedades fundadas a

partir dos anos 1830 em várias províncias do Império”. (MARTINS, 2014). Mas a partir

de 1824, corporações, irmandades de ofício e todo o conjunto institucional que lhes era

subjacente (procuradores, escrivães, juízes de ofício) não mais estariam autorizados a

protagonizar, por meio das cartas de exame e posturas municipais, o controle e a

disciplina das artes mecânicas. Juridicamente, era preciso reconhecer que o aparato das

corporações de ofício estava extinto (FLEXOR, 1974; MAC CORD, 2012).

É nesse contexto que, em setembro de 1832, é criada a Irmandade de Nossa

Senhora da Soledade Amparo dos Desvalidos. Composta por duas dezenas de africanos

libertos, e voltada à prática da ajuda mútua entre artesãos e trabalhadores do ganho –

seus principais integrantes – ela se estabelece como as demais irmandades sob os

auspícios da devoção católica. Sublinhando a marca racial, admite apenas indivíduos de

cor preta. Poucos dias adiante, na mesma cidade, iniciaria seus trabalhos a Sociedade

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dos Artífices. Laica, a Sociedade se instala, porém, nas dependências da Irmandade do

Rosário de João Pereira, de onde pretendia se firmar como um coletivo mutualista que

apoiasse, nas dificuldades, trabalhadores ocupados com ofícios artesanais. Além dessa

exigência, não opunha qualquer outra, de cor ou de origem (BRAGA, 1987;

OLIVEIRA, 2005; LEAL, 2011, CASTELUCCI, 2010).

Importa, portanto, observar que, poucos anos após a promulgação da

Constituição de 1824, o cenário social da fundação da Irmandade dos Desvalidos e da

Sociedade dos Artífices guardava correlações importantes com aquele contexto do

século XVIII, de que fala Lysie Reis, em que “no Brasil, assim como em Portugal, as

corporações de ofício e as confrarias religiosas, apesar de não serem a mesma coisa,

mantinham estreitos vínculos” (REIS, 2012; 54). A comparação interessa porque se tem

entendido que o processo de “substituição”2 das corporações de ofício no século XIX se

dá por meio da laicização das associações de ajuda mútua, que, organizando-se em

torno de identidades profissionais, reunirão num mesmo corpo associativo duas práticas

antes atribuídas a instituições que “mantinham estreitos vínculos, apesar de não serem a

mesma coisa”.3

Isso quer dizer que a defesa e o prestígio profissionais outrora garantidos pela

tradição da hierarquia corporativa passariam a ser investidos na forma das práticas de

uma associação livre que atuaria, ao mesmo tempo, como instância de socorro de seus

afiliados nas dificuldades enfrentadas ante à falta do ofício. Não estranha, portanto, que

na Bahia esse processo tenha se apresentado por meio de uma confraria religiosa com

forte acento secular e de uma associação civil de insofismável inspiração corporativa.

Ao menos é o que estado atual da pesquisa e da documentação parece sugerir, como se

discutirá adiante.

De saída, nessas condições, chama a atenção na história de fundação de ambos

os coletivos o fato de a alternativa às estruturas tradicionais de organização dos ofícios

ter se tecido debaixo da expressiva influência dessas mesmas estruturas. No rastro dessa

transição em que “sobrevivências corporativas” se manifestam nos mesmos gestos que

2 Na historiografia do trabalho, discute-se o cabimento da noção de “substituição” para explicar a

progressiva mudança nas formas organizativas de meados do século XIX, das instituições corporativas

para outras, pautadas sob critérios de livre associação profissional (BATALHA, 1999; LUCA, 1990). 3 Segundo Caio Boschi, “grande parte das confrarias teve origem nos ofícios, naqueles casos em que o

caráter devocional era mais marcante”. Por outro lado, “deve ficar claro, porém, que confraria não era

sinônimo de corporação. Quando muito, poderia ser a face religiosa desta última (...)” (Boschi, 1987:13).

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pretendem superá-las, “a construção e a difusão da Modernidade” é encenada por meio

da “aparição de novas formas de sociabilidade” (GUERRA, 1993: 87). Das tertúlias e

salões literários da Europa de fins da Idade Média, passando pelas Sociedades

econômicas e científicas, até, em todo o Ocidente, as associações de caráter

ostensivamente político (proibidas ou não, mas sempre vigiadas), o processo social mais

amplo dessas formas de reunião é o de uma progressiva adequação das práticas, dos

costumes e da linguagem em um mundo cuja lógica fundamental tenderá a se parecer

cada vez mais com aquela que faz nascer o indivíduo como elemento fundamental de

uma sociabilidade.

Na esteira dessa hipótese, Marcelo Mac Cord mobilizou a noção de

“sobrevivências corporativas” no estudo da Sociedade de Artes Mecânicas, associação

de artífices de Pernambuco criada em 1841 por integrantes da Irmandade de São José do

Ribamar. Ele afirmou que “por mais que a Constituição de 1824 tenha desmontado o

aparato legal que privilegiava as corporações de ofício, todos os seus costumes e

práticas culturais ainda estavam vivos nos corações e mentes daqueles mestres carpinas”

(MAC CORD, 2012a:1).

Como forma de os artífices se adaptarem aos novos desafios e circunstâncias, a

“ideia de constituir uma associação permitiu que eles reforçassem antigos laços comuns

e reelaborassem um repertório cultural há muito tempo consolidado e compartilhado por

eles na cidade de Recife” (MAC CORD, 2012: 50). Seus fundadores haviam dominado,

durante muitos anos, a hierarquia de ofícios na capital pernambucana.4 O aprendizado

prático de uma associação que pudesse lhes distinguir profissionalmente tanto quanto a

corporação que antes controlavam passaria a se dar na estreita convivência entre irmãos

e sócios, alguns deles de dupla filiação. Aliás foi também nas dependências da capela

que abrigava a Irmandade de São José que a Sociedade de Artes Mecânicas se instalou a

partir do segundo ano de funcionamento.

A história na Bahia, ao longo do Setecentos, segundo Maria das Graças de

Andrade Leal, contou também com confrarias que atuaram, “em grande medida, como

espaços de organização do trabalho, considerando a sua interlocução com as Câmaras

Municipais enquanto instâncias controladoras da produção interna e do mundo do

4 Diziam-se “embandeiradas” as irmandades organizadas em torno da prática e da disciplina de ofícios, e

que nessas condições ostentavam a “bandeira” representativa da sua atividade nas solenidades religiosas.

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trabalho” (LEAL, 2011:6). Lysie Reis discutiu a intrincada configuração de uma dessas

confrarias, da Bandeira do Glorioso São José, erguida na Sé Catedral da cidade do

Salvador. Regidos por um compromisso-regimento do ano de 1780, de cunho tanto

devocional quanto econômico, seus confrades se encontravam obrigados igualmente à

promoção do ofício e à expansão da irmandade, em nome de cujo padroeiro deveriam

desfilar bandeiras nas procissões da Câmara (REIS, 2012: 55).

Meio século depois, registre-se, os Desvalidos se constituíram ostensivamente

como uma irmandade, figura típica da vida colonial e de especial importância nos

arranjos de coexistência entre as diversidades étnicas, de fé e de status legal dos

habitantes da América Portuguesa. Irmandade tardia, poder-se-ia arriscar. Pois Júlio

Braga notou que nos dias que se seguiram à fundação da irmandade não houve menção

às obrigações confessionais, “o que seria de se esperar caso houvesse por parte de seus

fundadores uma preocupação maior em situá-la como irmandade estritamente religiosa”

(BRAGA, 1987).

Definindo o papel das irmandades, Caio Boschi ressalta como “um de seus

propósito fundamentais fomentar o crescimento do culto público”. Por outro lado, anota

também a dificuldade de se “estabelecer com precisão a linha divisória entre

mutualidade espiritual e as beneficências e auxílios mútuos temporais” (BOSCHI, 1987:

13). A se aceitar a opinião de Braga, é possível dizer que a experiência dos Desvalidos

já sinalizava para um passo além da linha divisória que equilibrava com a prática da

ajuda mútua a forte presença do discurso religioso na rotina da irmandade, o que a

aproximaria de um comportamento distintivo das chamadas sociabilidades modernas.

Entre os Artífices da Sociedade de 1832, por sua vez, adivinhavam-se não

menos “sobrevivências corporativas”. Além de ter atendido na sede da Irmandade do

Rosário de João Pereira ao longo dos seus dez primeiros anos de existência, a Sociedade

teria mantido o modelo de organização tradicional das confrarias. Ainda segundo Leal,

ele se fez sentir na prática de rituais e na forma dos cargos, que seriam correlatos aos

presentes na hierarquia das irmandades (LEAL, 2011: 8).

Ao se abrir o quadro de outras modalidades associativas do Brasil oitocentista, a

noção de sobrevivência corporativa mais se avulta. Alexandre Barata, estudioso da

maçonaria mineira, dirá que, “tal como aconteceu em outras partes do Brasil, Minas

Gerais viu surgir novos espaços de sociabilidade que conformavam um „espaço público

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moderno‟”. Apostando na transformação dos tipos de associação surgidos nesse

período, Barata não desconsidera, porém, a influência e a experiência aglutinadora das

irmandades. Citando Caio Boschi, afirma que, dada a sua elevada coesão associativa,

elas

serviram de sólida base para que se organizassem (...) outros tipos de

agremiações como, por exemplo, as lojas maçônicas. É admissível supor que

essas últimas não fizeram tábua rasa das irmandades. No mínimo, as

irmandades tinham criado e desenvolvido na gente mineira o hábito de se

congregar e se reunir para o auxílio recíproco (BARATA: 2009: 51).

Igualmente pesquisando modelos de sociabilidade no Brasil do século XIX,

especialmente na Corte, Marco Morel fala da “complexidade dos pertencimentos às

formas de sociabilidade”, para marcar o fato de que os mesmos indivíduos pertenciam a

tipos distintos de associações (abertas ou secretas, religiosas ou clubs libertários).

Sublinhando as diversas formas de cruzamento entre instituições “de tipo antigo” (como

as Irmandades e as Santas Casas) e outras, criadas na atmosfera liberal, ele frisa que

“nesta construção da modernidade política do Brasil do início do século XIX, pós-

independência, o passado não virara tabula rasa e os espaços públicos se caracterizaram

por tal hibridismo” (MOREL, 2005: 248).

O que essas tensões e o hibridismo do modelo indicam, portanto, é que, naquele

novo tempo de Constituição liberal, de Parlamento eleito e de nascentes vocabulários

políticos, as associações, se por um lado funcionavam como importantes suportes de

memória, também encontravam inspiração em inéditas conformações institucionais. Na

leitura que Leal e outros fazem desse quadro, a extinção legal das corporações de ofício

seria a contrapartida da liberdade de indústria e de trabalho prevista na Carta, também

manifestada no direito de associação. Do ponto de vista do Estado, ela diz, “as

sociedades particulares se constituiriam em espaço privilegiado de educação popular,

para se desenvolver moralmente o indivíduo” (LEAL, 2011: 6). Segundo Mac Cord, em

diálogo com princípios liberais e “experiências europeias, o governo central pretendia

criar processos escolarizantes de instrução das artes mecânicas e assumir o lugar das

velhas formas do ensino artesanal” (MAC CORD, 2012: 9).

Na história europeia das associações religiosas de leigos, as implicações entre os

interesses do Estado e a atuação das confrarias conheceu diferentes registros, mas, de

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um modo geral, as uniões pias, as ordens terceiras e as irmandades propriamente ditas

jamais deixaram a órbita de interesses das autoridades públicas. Ora servindo a

propósitos de expansão do poder real, ora sob a vigilância oficial de alarmados

ministros e seus receios de sedição, seu lugar na configuração do Império Português,

segundo Charles Boxer, era o de sustentação fundamental das colônias, ao lado das

Câmaras municipais (BOXER: 1977: 302). Do ponto de vista da política de

colonização, Minas Gerais é um grande exemplo de como o papel povoador se deve a

essas associações, que precederam as infraestruturas urbanas e ao mesmo tempo

fundaram e custearam as primeiras edificações religiosas. Por isso, a elas “o Estado

esteve sempre atento” (BOSCHI, 1987: 21).

Assim, se por um lado o Estado e os grupos de poder que o compunham tinham

um programa de recepção e disciplina das novas associações, por outro é natural que

seus próprios integrantes tivessem algo a dizer a respeito. Por isso interessa indagar a

perspectiva de trabalhadores urbanos pobres a respeito do impacto do esgotamento das

formas corporativas de associação na interpretação das alternativas que lhes estavam

postas para superarem coletivamente os estigmas da escravidão e ascenderem

socialmente. Ou seja, é crucial explorar as relações concretas e de mútua implicação

entre a decadência das corporações e a laicização das instituições de ajuda mútua na

Bahia, e apurar como artesãos e ganhadores libertos depositaram nesses coletivos a

expectativa de novas possibilidades de inserção social. Importa entender se e como

figuravam, a partir das estruturas que construíram, um caminho efetivamente distinto

daquele que as corporações e seus corolários uma vez tinham oferecido, e também

investigar como engendravam a partir de experiências horizontais de associação a

capacidade de enfrentar as práticas de hierarquização no pós-cativeiro, vigentes no bojo

de um clima social também favorável, formalmente, à afirmação de liberdades

individuais e de cidadania.

Nesse contexto, portanto, a noção de “sobrevivências corporativas” e a tensão

embutida na coexistência de modelos distintos de sociabilidade remetem ao caráter

eminentemente transicional dessas práticas associativas, de resto também sugerido pela

condição em muitos sentidos provisória e precária do cenário político mais amplo da

sociedade oitocentista brasileira, e de todo o Ocidente, entre os anos de 1830 e 1850

(KOSELLECK, 2006; ARENDT, 1990). Os anos em questão configuram um período

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de profundas transformações não só na configuração do Estado e da cultura política

avançada pelas inéditas experiências de ações diretas e representativas, mas

especialmente na tessitura social da América escravista. Nesse intervalo, o Brasil

aprofundou o padrão reprodutivo do tráfico de cativos, intensificando a um só tempo o

volume de internação de escravos e o da produção social de libertos, num expediente

que teria consequências diretas sobre o panorama de que aqui se ocupa.5 Os debates a

respeito do fim do comércio negreiro – incentivados pela edição de leis proibitivas em

1831 e 1850 – estiveram entrelaçados com as pautas da própria construção da nação, em

cujo teor a presença atual e futura da escravidão era decisiva (PARRON, 2011).

Resta dizer que os vinte anos então considerados são tratados pelos estudos que

até aqui se debruçaram sobre ambas as associações baianas como sua “fase de

estruturação”. Entende-se que o “hibridismo” de sua prática formal estaria relacionado

ao tempo de consolidação das próprias instituições no espaço social e político de sua

comunidade, num movimento descrito em meio ao cruzamento dos diversos contextos

sociais acima sublinhados. Ocorre que na documentação atualmente reunida para dar

conta dessa “fase de estruturação” a manifestação de “princípios liberais” não é

ostensiva. Seus primeiros compromissos e estatutos não sobreviveram, seus papéis

iniciais são esparsos e não seriados, o que, ao menos nesse corpus, restringe a pesquisa

a análises indiretas por meio das fontes remanescentes e à reflexão comparada,

sugerindo ainda que se procurem esses atores em uma nova documentação.

A Irmandade dos Desvalidos e a Sociedade dos Artífices: primeiros papéis

Os primeiros registros da Irmandade dos Desvalidos tratam de sua montagem

administrativa: confirmam o depósito das primeiras jóias, a eleição da Mesa, o destino

do cofre da instituição; fixam a disciplina das sessões, estabelecem multas para os

recalcitrantes, e também indicam que, um ano depois da fundação da irmandade, seguia

a deliberação sobre o seu Compromisso. De fato, na epígrafe de um comunicado de

5 Os dados geralmente citados a respeito da expansão do tráfico no período imediatamente posterior à sua

proibição pela Lei Feijó, de 1831, encontram-se em Eltis (1987) e Bethell (1976). Também em Verger

(1987). Nos dez anos seguintes à promulgação da lei, mas sobretudo a partir de 1835, o crescimento do

tráfico em todo o Brasil foi da ordem de 150%. Em 1851, um ano após a entrada em vigor da Lei Eusébio

de Queiroz, o número de escravos ingressos no país recuou para menos de 10% do total importado em

1849.

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março de 1833, pode-se ler a seguinte inscrição: “Cartas para reformas de Capítulo e §

do Compromisso, em 1833”. Termo de resolução do mês posterior noticia a efetiva

alteração promovida no Capítulo 2 do referido documento, mas nos mantém curiosos a

respeito de seu teor (ASPD). Tal como disposto, o conjunto das atas, termos e

documentação das sessões da irmandade permite cogitar, como o faz Xavier Guerra, a

racionalidade das decisões e o papel rigoroso emprestado aos ritos das votações como a

afirmação de um dos traços marcantes da rotina das novas sociabilidades modernas

(GUERRA, 1993: 97).

Mas é num texto de 29 de março de 1835, redigido por Manuel Vitor Serra,

principal autoridade da confraria, que se encontram alguns indícios elucidativos das

prováveis consequências que sobre os Desvalidos produziu o “diálogo com os

princípios liberais”. Pela leitura da ata daquela sessão somos informados da aprovação

unânime (provavelmente após nova reforma) do “Compromisso da Devoção” dos

“chiolos liver de cores pretas”.

O que, portanto, a sentença deixa clara é a restrição ao ingresso de escravos na

irmandade. E se a isso se soma, como indicado por Klebson Oliveira, a ausência de

indícios de que cativos, parentes de irmãos, tenham sido beneficiados com as retiradas

da confraria, podemos supor que as aspirações de cidadania alimentadas por um

coletivo fortemente marcado pela defesa de sua identidade racial não compreendiam a

convivência institucional com outros igualmente pretos que não fossem cidadãos.

Difícil não ver aí uma resposta às novas configurações sócio-políticas vigentes,

especialmente porque não era incomum que escravos e não escravos dividissem espaço

nas irmandades tradicionais (OLIVEIRA, 2005).

Veja-se, por exemplo, o caso da Irmandade de São José do Ribamar, em Recife,

de onde saíram muitos dos fundadores da Sociedade de Artes Mecânicas de 1841. As

mudanças promovidas em 1838 no seu Compromisso, em função da Constituição de

1824, importaram igual vedação à matrícula de escravos. O mesmo documento impunha

restrições aos cativos já ligados à irmandade, que a partir dali seriam alijados do

exercício de qualquer poder representativo na confraria dos carpinas (MAC CORD,

2012: 57).

Enxergando nessas respostas os “atritos entre passado e futuro”, Mac Cord fala

da tentativa de as corporações religiosas minimizarem as perdas impostas pela

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legislação de 1824, que, ao lado das lutas pela cidadania, abriria um quadro de forte

concorrência no mundo do trabalho. A Irmandade, ele diz, “parecia ter chegado ao

limite de todas as suas possibilidades de reforma”. A sociedade de artífices de 1841, por

sua vez, repetiria o dispositivo do Compromisso de 1838, não admitindo a associação

daqueles “sem uma conveniente personalidade jurídica”. Diz ainda o autor que, “em

meio à circulação de idéias sobre modernização e futuro”, a “criação de uma Sociedade

poderia fazer com que os pioneiros cerrassem filas entre os „civilizados‟ e os

„reorganizados para o futuro‟”. Escravos não constavam desses planos (MAC CORD,

2012: 72).

Embora os pioneiros da Irmandade dos Desvalidos não partissem da mesma

condição profissional qualificada que era a marca dos artífices pernambucanos, sua

dissociação da imagem de trabalhadores cativos, a rigor muitos deles colegas de ofício,

poderia produzir importante significado do ponto de vista dos seus pleitos de cidadania,

reconhecimento social e acesso ao mercado de trabalho. Afinal, como demonstrou

Maria Inês Côrtes de Oliveira, no espaço urbano o liberto tendia a manter o ofício que

praticava quando escravo. E ainda mais comum, de acordo com as disposições

testamentárias por ela consultadas, era que esses forros passassem a retirar a própria

subsistência da exploração do trabalho forçado (OLIVEIRA, 1988). Na já avançada

década de 1880, a documentação da SPD indica um ativo processo de “elitização”

manifestado na progressiva recusa em matricular indivíduos ocupados com trabalhos de

pouca ou nenhuma qualificação, como era o caso da grande maioria dos fundadores da

irmandade (ASPD).

Ao lado da identidade de uma confraria de “chiolos liver”, outro importante

elemento da prática dos Desvalidos era o fato de que seu papel material chave consistia

no funcionamento como uma junta de crédito. Esse papel central teria obscurecido

outros, caros à profissão estritamente religiosa de uma confraria, que nos primeiros

meses de funcionamento ter-se-ia limitado a definir “quais seriam os dias obrigatórios

de „se mandar celebrar a missa‟” (BRAGA, 1987: 29).

É importante frisar que essa mudança seguia uma orientação de laicização do

sistema assistencial, manifestada também nos testamentos de libertos escritos a partir do

final da primeira metade do século. É o que dizem sobre o assunto Kátia Mattoso e

Maria Inês Côrtes de Oliveira, para o caso da Bahia. Ambas as autoras encontraram

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nesses documentos um padrão de “mentalidade” e de comportamentos sociais que,

desde o final da década de 30, apontava para o crescente deslocamento do poder

assistencial das instituições religiosas – como as Irmandades – para outras de caráter

civil ou associativo. Essas últimas associações compareceram nos textos de última

vontade desse período como credoras, devedoras, depositárias, legatárias, mas, de

qualquer forma, definitivamente na vida daqueles libertos que tinham algum patrimônio

a transmitir. Ainda que fosse ele imaterial, porque, quanto às Irmandades, era mais

como destino das missas que seguiam sendo lembradas, disputando palmo a palmo a

preferência com as sociedades de culto africano (MATTOSO, 1979; OLIVEIRA, 1988).

Portanto, em que pese a dificuldade de, no estado atual da presente pesquisa,

pôr-se em questão a autenticidade dos propósitos confessionais dos Desvalidos como

instituição, é possível afirmar que a tensão entre “tradição” e “modernidade” sugerida

pela noção de sobrevivência corporativa encontraria em eventos de fins dos anos 40 e

início dos anos 50 um objeto privilegiado de tradução. Em 1848, a Irmandade, fundada

na Capela dos Quinze Mistérios, passaria a funcionar na sede da Igreja de Nossa

Senhora do Rosário dos Pretos das Portas do Carmo, de onde, após 20 anos e “algumas

desinteligências”, igualmente se retiraria, até finalmente ocupar imóvel próprio em

1887. É no curso do tempo passado com os irmãos pretos do Carmo, no ano de 1851,

que os Desvalidos abandonam a configuração de ordem religiosa e passam a atender

pelo nome de Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD). A coexistência física dos

irmãos com outros coletivos de caráter religioso parece, como em outros casos

similares, de especial importância, pois é no transcorrer desses anos que se dá uma das

principais alterações na sua organização social.

Estudioso do mundo dos libertos africanos na Bahia, e da SPD em especial,

Klebson Oliveira afirma a respeito da constituição da Sociedade dos Desvalidos que

“com a mudança de nome, não se sabe quais outras existiram no âmbito da SPD quando

deixou de ser irmandade e passou a ser sociedade”. Até onde alcançou o seu interesse na

questão, “a documentação parece indicar que, efetivamente, nenhuma reestruturação

relevante tenha existido (OLIVEIRA, 2005: 139). Essa leitura do problema o faz tratar

os Desvalidos, ao longo do século estudado, indistintamente como irmandade ou

associação civil, abstraindo as diferenças porventura existentes nessa história

institucional.

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Vale salientar, porém, que a questão relevante nessa matéria pode ser não tanto o

que a mudança do nome passa a permitir ou a alterar do ponto de vista estatutário na

“irmandade-sociedade”, como quer Oliveira, mas sim o processo que suscitou a

mudança, permitindo que ela se efetivasse. Ou seja, interessa menos o significado

estritamente regimental representado pela conversão em sociedade, e mais a

possibilidade de que, ao longo dos tempos de irmandade, o comportamento da

associação pudesse estar muito próximo do de uma sociedade laica que, ao mesmo

tempo, administrava o legado das confrarias religiosas.

Nesse ponto, então, pode residir uma interessante questão sobre a identidade dos

Desvalidos e sobre seu caráter precursor do mutualismo. Vale notar que Leal não os

reconhece como sociedade mutualista, pois, para ela, “na Bahia, reinou soberana a

Sociedade dos Artífices durante 20 anos”. Por outro lado, Oliveira, Reis e Castelucci a

têm como originária, mesmo antes de em 1851 os Desvalidos adotarem a forma de uma

sociedade civil (LEAL, 2011: 13; OLIVEIRA, 2005: 139; REIS, 2012: 203;

CASTELUCCI, 2010: 44). Diferentes formas de lidar com a questão, porém, não fazem

dela um problema suficientemente explorado, pois as diversas opiniões passam ao largo

do enfrentamento do significado desse caráter precursor, tomando pelo seu valor de

face, seja o título de irmandade, de 1832, seja o de sociedade, de 1851.

O que parece emergir de um primeiro cenário aberto a respeito dos Desvalidos é,

a rigor, a assunção de decisivas posições políticas por parte dos fundadores da

irmandade. Atitudes cujos significados dependem do melhor esclarecimento dos

contextos em que se desenrolaram, por exemplo, as ações que teriam combinado a

exclusão de escravos do espaço da confraria com a solidariedade típica entre libertos e

cativos, aproximados não só por vínculos profissionais mas também por laços de

parentesco e amizade. Igualmente importantes são os sentidos da distinção racial

assumida pelo coletivo, rechaçando a participação de pardos, cabras e mulatos num tipo

de instituição em que não eram raras as composições inter-étnicas. Interessa ainda

entender como uma dada configuração organizativa tradicional pôde facilitar a aceitação

social de práticas por ela “escudadas”, num expediente que a literatura vem atribuindo

aos grupos profissionais reunidos em torno de irmandades fundadas na primeira metade

do século XIX; ou ainda se, de fato, essa viria a ser uma forma comum de desembaraço

de certas sobrevivências dos modelos do passado. Não menos importante, enfim, é

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situar o conjunto de ações e de respostas promovidas institucionalmente pelas

associações em defesa de seus integrantes no cenário dos eventos políticos que tomaram

corpo no pós-independência, mobilizando debates em torno de uma nova agenda de

direitos e de cidadania, e em meio à intensa movimentação de controle e de reação

oficial aos movimentos políticos que tinham a rua como espaço privilegiado de

manifestação.

A mudança de 1851, portanto, faz olhar para trás com o interesse de investigar o

que pode ter posto, ao longo dos vinte anos antecedentes, a Irmandade dos Desvalidos

na trilha dos coletivos importantes para a prática do mutualismo após 1850 na Bahia.

Originariamente concebidos como uma confraria, os Desvalidos parecem ter respondido

às mudanças do tempo dando curso a um processo ao fim do qual se renovariam. Com

Guerra, lembremos que uma das notas distintivas das sociabilidades modernas é o fato

de que “la intensidade y la forma de los vínculos resultan del acto constitutivo mismo de

la asociación. Los associados la definen ellos mismos y pueden – por lo menos en teoría

– redefinirla en todo momento” (GUERRA, 1993: 89). Nesse sentido, os irmãos da

Soledade dos Desvalidos interessam pelo fato de serem o corpo de uma transição.

A história da Sociedade dos Artífices talvez seja ainda menos conhecida do que

a da SPD. Sobretudo o período que essa pesquisa privilegia. Os dois textos de Leal aqui

indicados, contudo, sugerem que a documentação dos Artífices é rica o suficiente tanto

para ser lida na perspectiva do seu legado e do seu “desembaraço” corporativo, como

também sob o influxo dos problemas sociais e propriamente políticos que envolveram

como protagonista a gente livre e pobre na movimentada capital da Província baiana.

Supondo a existência de nexos entre os ideais liberais associativistas professados

no processo de independência brasileiro e a prática de organização coletiva de

trabalhadores após a década de 30, Leal analisa como, em “30 anos de funcionamento, a

Sociedade desenvolveu estratégias para se consolidar como espaço de sociabilidades e

de exercício político em defesa dos interesses de classe”. As idéias liberais, segundo ela,

teriam sido abraçadas pelos fundadores desde a ocasião em que se tentara criar, sem

sucesso, uma associação mutualista no imediato pós-Independência (LEAL, 2011: 1).

Tempos mais tarde, porém, ainda segundo a autora, os anos iniciais das

atividades dos Artífices responderiam pela sua “eficácia associativa”. O período era de

intensa articulação não só com os trabalhadores – com vistas à ampliação dos quadros

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da associação – mas especialmente com as autoridades provinciais, processo por meio

do qual se emprestava ao coletivo o reconhecimento oficial de seu valor como instância

moralizadora dos costumes de trabalhadores livres e libertos (LEAL, 2011a).

Antecedida de intensa negociação, como confirmam as anotações presentes no

Livro de Atas da Sociedade, a fundação da Sociedade dos Artífices em 1832 seria

prestigiada dez anos depois com a outorga do título de Imperial Sociedade, conferida

pelo próprio monarca, que passaria ele mesmo a figurar como sócio-protetor, dali a

apenas dois anos (ASMPA). Essa aproximação da Sociedade dos Artífices com as

autoridades do Estado é digna de destaque, e, naturalmente, nem o eventual fervor

liberal dos Artífices os faria ignorantes da conveniência de angariarem, naquelas

circunstâncias e como um coletivo de “classe”, prestígio público junto às autoridades.

Apesar do uso presente da noção de “classe”, é preciso observar que,

diferentemente dos propósitos e da prática das típicas associações operárias nascentes

no final do século XIX no Brasil, as mutualistas tinham na relação com o Estado um

instrumento importante de confirmação do seu poder social, manifestado no

desenvolvimento de estratégias de proteção contra a concorrência. Por outro lado,

afastavam-se do elemento sindical também por estarem voltadas eminentemente para

finalidades securitárias, ou seja de assistência fora do trabalho e não de enfrentamento

na relação com o capital (LUCA, 1990).

Logo, é importante frisar que não seriam unicamente impalpáveis as vantagens

obtidas em razão da proteção do Imperador. No ano de 1844, no contexto da “inserção

sistemática de personalidades religiosas, políticas, intelectuais, econômicas, assumindo

o lugar de Sócios Protetores, depois Benfeitores ou Honorários”, discursaria o

Presidente da Província a respeito dos Artífices. Dizia esperar dedicação “ao

aperfeiçoamento das obras e descoberta de instrumentos ou máquinas, na medida em

que prometia serem preferidos nos Arsenais, e Administrações das obras públicas, e

merecedores „de alguns prêmios que forem decretados por esta Assembléia para os

inventores‟” (ASMPA).

O redator do relatório financeiro da Imperial Sociedade dos Artífices, do ano de

1853, por sua vez assinala:

Aqui concluo este meu amesquinhado trabalho participando-vos por fim, que

levado ao alto conhecimento do Exmo Sr. Presidente da Província a vossa

representação solicitando a proteção do governo em favor da classe dos

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15 artistas nacionais, afim (sic) de serem com preferência admitidos ao trabalho

dos Arsenais de Marinha e Guerra e das obras públicas, foi ela acolhida,

como era de esperar de um governo patriótico, sábio, justo e perspicaz, amigo

e pai do povo, e desejoso de seu bem e prosperidade (ASMPA).

A rigor, não seriam incomuns, século XIX afora, os expedientes de tutela

política de associações de classe, ou de ofício. Seus resultados poderiam aparecer na

forma de contratos, acordos preferenciais com o Estado ou de informações privilegiadas

sobre obras, numa espécie de reserva de mercado que atravessava a disputa por

“hegemonia” no campo profissional respectivo. A Sociedade das Artes Mecânicas de

Recife, criada num contexto muito assemelhado ao da congênere baiana, atuou como

um trunfo para que seus sócios enfrentassem o aumento da concorrência provocado pela

contratação de operários estrangeiros nas obras da cidade, e pelo aumento da força de

trabalho livre, resultante, em linhas gerais, da desagregação do escravismo. Também

eles, os mecânicos de Recife, viviam as “tensões entre monopólio e liberdade

profissional nos canteiros de obras da capital pernambucana”. Também eles não

hesitaram em recorrer às redes de patronato encabeçadas pelas autoridades públicas para

superarem fossem “defeitos mecânicos”, fossem “defeitos de cor” (MAC CORD, 2014:

200).

Três questões se destacam, portanto, nesse primeiro quadro dos Artífices. Entre

eles, comparados com os Desvalidos, parecia estar colocado mais forte e mais

precocemente o problema da associação civil como instância social morigeradora. Ali,

por consequência, eram mais evidentes a aproximação e as relações com uma rede de

autoridades públicas e sócios protetores. Em harmonia com esse desenho institucional, e

dessa vez em aproximação com os irmãos de 1832, a Sociedade também estava fechada

para os trabalhadores cativos. Nela, igualmente, a coexistência com a irmandade junto à

qual havia sido criada cessaria anos alguns depois da fundação. De fato, em 1843 a

Sociedade dos Artífices rompe com a Irmandade do Rosário de João Pereira e se retira

do espaço que até então ocupava por cessão da confraria (LEAL, 2011a: 7).

Interpretando esse episódio, Leal afirma que a ruptura não seria apenas física,

mas especialmente simbólica, pois se tratava de deixar para trás uma tradição

corporativa e eclesiástica, e desafiar “a composição de uma nova força social e política

de cunho civil, configurada na Sociedade” (LEAL: 2011a: 12). Trata-se de uma opinião

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forte, é verdade. Mas, ao menos no texto em questão, sem provas documentais do que

afirma com certa gravidade, a autora não nos permite concluir numa ou noutra direção.

Vale dizer, nem pela mais clara persistência de uma tradição corporativa no cotidiano de

uma associação pretensamente liberal, nem mesmo pela prática já antiga de uma política

distinta de condução dos negócios sociais debaixo de uma estrutura de cargos

formalmente corporativa. A bem da verdade, um importante esclarecimento viria a ser

aquele que pudesse dar conta das condições em que a autonomia em relação a práticas e

símbolos corporativos acabou por dar lugar a novas formas de dependência, dessa vez

oficialmente cunhadas.

Aquilo que de fato se sabe é que ambas as associações baianas descreveram o

movimento que descreveria, vinte anos após a sua fundação, a Sociedade dos Artífices

de Pernambuco. Os carpinas do Recife também romperiam com a Irmandade do

Ribamar, sendo expulsos do espaço físico uma vez compartilhado (MAC CORD, 2012:

40).

Examinar os meandros dessa política de prestígio e elitização praticada pelos

trabalhadores manuais, qualificados ou não, que compunham os quadros de ambas as

associações é então repor a discussão sobre os processos sociais pelos quais artesãos de

extração popular pretendiam se diferenciar dos demais trabalhadores pobres por meio de

estratégias fincadas na vida associativa. Por outro lado, nada obstante o festejado “clima

liberal” de renovação das práticas associativas, evidencia-se que o Estado joga um papel

decisivo no processo de “certificação de prestígio” das associações de trabalhadores,

processo que é ao mesmo tempo aquele pelo qual as autoridades se convencem da

capacidade de esses coletivos atuarem como instâncias de pedagogia cívica. O caminho

da “elitização” trilhado por tais coletivos pode ter tomado especialmente essa direção.

Fosse diretamente, através do recurso a favores e prebendas; fosse indiretamente,

incorporando mudanças voltadas à proteção contra a sanha repressiva oficial.

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