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Nicole Mazzoleni Facchini FUNÇÃO SOCIAL DO JUIZ Porto Alegre 2006 1

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Nicole Mazzoleni Facchini

FUNÇÃO SOCIAL DO JUIZ

Porto Alegre

2006

1

RESUMO

O presente trabalho objetou investigar a temática relacionada à função social do juiz na sociedade contemporânea. Inicialmente procurou-se retratar o fenômeno da substituição do juiz concebido como mero aplicador “mecânico” de leis e condutor passivo do instrumento processual, próprio do Estado liberal, pelo juiz “resolutor de conflitos”, tão caro à democracia hodierna. Após delinear o perfil desse novo modelo de magistrado, pretendeu-se equacionar as diversas críticas atualmente versadas sobre o sistema judicial, estabelecendo-se, a partir de então, pressupostos mínimos para uma tentativa de superação desse delicado contexto. Tomando como ponto de partida as alterações advindas da emenda constitucional n. 45, ressalvando-se a insuficiência de uma reforma operada exclusivamente no âmbito legislativo, abordou-se o significado e as dimensões assumidas por uma outra reforma, realizada “silenciosamente” por magistrados e tribunais brasileiros inquietados essencialmente com a democratização do Judiciário e com a efetividade das decisões judiciais. Perpassando por algumas experiências pioneiras conduzidas ao longo do país com a participação desses juízes, visou-se ilustrar o alcance da função social do juiz na atual conjuntura brasileira e os reflexos que esse fenômeno apresenta no imaginário social e na efetividade da atuação jurisdicional. Para tanto, restou indispensável identificar situações em que a perspectiva do juiz “resolutor de conflitos” vislumbra-se insatisfatória, o que demanda uma postura mais ativa e participativa de alguns magistrados, não só na condução do processo judicial, mas igualmente na coordenação de práticas inovadoras de caráter extrajurisdicional, imprescindíveis para que se possa alcançar efetividade às decisões judiciais e contribuir para a melhora do sistema judicial.

Palavras-chave: sistema judicial – efetividade – democratização – experiências pioneiras – função social.

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RIASSUNTO

Il presente studio ha cercato di investigare il tema della funzione sociale del giudice nella società contemporanea. In primo luogo si ha tentato ritrattare il fenomeno della sostituzione del giudice visto come un mero applicatore meccanico delle leggi e conduttore passivo dello strumento processuale, proprio dello Stato liberale, con il giudice “risolutore di conflitti”, così caro alla democrazia odierna. Dopo haver delineato le caratteristiche di questo nuovo magistrato, si ha preteso analizzare le diverse critiche oggi versate sul sistema giudiziale, e, allora, si ha stabilito i pressuposti minimi per una tentativa de superazione di questo delicato contesto. Assumendo come punto di partenza le alterazioni provocate dall’amendamento costituzionale n. 45, considerando però l’insuficenza di una riforma operata esclusivamente nell’ambito legislativo, si ha mostrato il significato e le dimensione assunte da un’altra riforma, realizata “silenziosamente” da magistrati e tribunali brasiliani preoccupati principalmente con la democratizzazione del Giudiziario e con l’effettività delle decisioni giudiziali. Percorrendo alcuni esperienze pioniere condotte nel paese con la partecipazione di questi giudici, si ha cercato di illustrare la portata della funzione sociale del giudice nell’attuale contexto brasiliano e i riflessi che questo fenomeno apresenta nell’immaginario sociale e nell’effettività dell’attuazione giurisdizionale . Per tanto, si è visto come indispensabile identificare le situazioni nelle quali la perspettiva del giudice “risolutore di conflitti” appare insatisfatoria, cosa che demanda un atteggiamento più attivo e partecipativo di alcuni magistrati, non solo nella conduzione del processo giudiziale, ma anche nella coordenazione di pratiche pioniere di carattere estragiurisdizionale, imprescindibili per assicurare effettività alle decisioni giudiziali e per contribuire per il miglioramento del sistema giudiziale.

Parole-chiave: sistema giudiziale – effettivitá – democratizzazione – esperienze pioniere – funzione sociale

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O meu sincero agradecimento ao meu orientador, Professor Mestre João Ricardo dos Santos Costa, pela valiosa orientação nesse trabalho. Também gostaria de agradecer o Professor Leoberto Brancher e a Professora Mestre Edith Nepomuceno, pelas relevantes sugestões e indicações bibliográficas. E, finalmente, registro minha sensível gratidão aos meus pais, Ligia e Eugênio, pela sensível contribuição prestada a esse trabalho, e por serem exemplos de educadores e seres humanos.

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“Mudanças não se fazem com heroísmo ou ações pontuais. São construídas no cotidiano, por pessoas comuns, organizadas em instituições sérias, unidas por propósitos compartilhados que buscam agir de forma conseqüente, articulada e enérgica, simultaneamente sobre os resultados não desejados e sobre causas que não raro são frutos de sistemas consolidados, com nuances cruéis, que passam despercebidos pela mesma sociedade que anseia por essas mudanças”

José Bernardo Toro Arango

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 9

1 O juiz resolutor de conflitos..........................................................................................12

1.1 Introdução..............................................................................................................12

1.2 A evolução das funções do juiz ao longo da história.......................................... 15

1.3 Juiz resolutor de conflitos: primeira abordagem............................................... 19

1.4 Juiz resolutor de conflitos: segunda abordagem................................................ 28

1.5 A visão prospectiva do direito e a função social do juiz na sociedade pós-

moderna...............................................................................................................................33

2 A crise do sistema judicial..............................................................................................4

2.1 Introdução.............................................................................................................47

2.2 Análise da denominada “crise da justiça”......................................................... 53

2.3 Pressupostos para uma tentativa de superação da crise...................................57

2.4 Tentativas de superação da crise: a reforma do judiciário e a “reforma

silenciosa da justiça”.......................................................................................................... 60

3 Um panorama sobre alguns dos novos papéis do juiz na sociedade contemporânea

2

3.1 Introdução..............................................................................................................70

3.2 Justiça eficiente e democrática: breves comentários..........................................72

6

3.3 Acesso do povo à justiça........................................................................................85

3.4 Acesso da justiça ao povo .....................................................................................85

3.5 Prêmio Innovare: algumas práticas propulsoras de uma justiça mais

democrática e eficiente.......................................................................................................90

3.5.1 Justiça itinerante............................................................................................... 86

3.5.2 Juizado volante ambiental................................................................................ 88

3.5.3 Centro de justiça terapêutica............................................................................ 86

3.5.4 Práticas de conciliação..................................................................................... 88

3.5.5 O programa “Justiça Cidadã”........................................................................... 86

3.6 As Promotoras Legais Populares e a democratização do acesso à justiça....... 47

3.7 Projeto “Justiça sem papel”................................................................................. 47

3.8 A justiça sob o prisma do Estatuto da Criança e do Adolescente: noções

preliminares................................................................................................................. 53

3.8.1 O papel do juiz dentro do paradigma do ECA: a luta pela municipalização das

medidas sócio-educativas de meio aberto............................................................................ 86

3.8.2 O papel do juiz dentro do paradigma do ECA: a idealização do Cededica......88

3.8.3 O papel do juiz dentro do paradigma do ECA: outros exemplos.....................86

3.8.4 O papel do juiz dentro de um novo paradigma de justiça................................ 88

3.8.4.1 O paradigma da justiça restaurativa........................................................... 88

3.9 Alargamento do conceito de função social do juiz..............................................47

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................97

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................... 97

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INTRODUÇÃO

Não há democracia sem uma magistratura fortalecida. Não há democracia

sem um poder que, por atribuição constitucional, desempenhe a importante função de

garantidor dos direitos fundamentais. Além desse perfil eminentemente político, ao

judiciário também se delega o exercício de um serviço público de caráter indispensável em

qualquer Estado que se qualifique “democrático de direito”: a prestação jurisdicional.

Se o período liberal comportou um nítido predomínio do Legislativo,

relegando a uma posição subalterna o Executivo e o Judiciário – já que meros executores

das normas ditadas pelo primeiro –, com o advento do Estado Social, verifica-se um

agigantamento da Administração Pública, que absorve parcelas de competências

normativas tradicionalmente conferidas ao Parlamento.1 O Estado Democrático de Direito,

por sua vez, reequilibra a balança, realçando a independência e a autonomia do judiciário,

outorgando-lhe maiores poderes na direção do processo e no controle do Legislativo e do

Executivo.

1 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 39.

8

O primeiro capítulo dessa monografia procura retratar o fenômeno da

substituição do juiz bouche de la loi – mero aplicador “mecânico” de leis e condutor

passivo do instrumento processual, próprio da era liberal – pelo juiz “resolutor de

conflitos”, tão caro à democracia contemporânea. Um juiz que não mais assiste apático ao

desenrolar das demandas postas à sua apreciação, mas privilegia o diálogo com as partes,

exercendo poderes instrutórios durante o iter processual e esforçando-se por construir a

solução mais adequada para a composição do conflito, fundamentando-a à luz da

principiologia consagrada na Constituição Federal.

O segundo capítulo, por sua vez, tomando como ponto de partida o

equacionamento das inúmeras críticas atualmente vertidas sobre o sistema judicial, busca

estabelecer alguns pressupostos para um tentativa de superação dessa crise, focando, ao

final, o advento da emenda constitucional n. 45.

Considerada a insuficiência de uma reforma operada exclusivamente no

campo legislativo, o terceiro capítulo centra-se na elucidação do significado e do alcance de

uma outra reforma, desenvolvida “silenciosamente”2 por vários magistrados e tribunais

preocupados sobretudo com a democratização do Judiciário e com a efetividade das

decisões judiciais. Perpassando por algumas experiências pioneiras conduzidas ao longo do

país sob a coordenação de juízes, esse último capítulo debruça-se sobre um novo modelo de

magistrado, mais ativo e participativo, consciente não só dos limites mas igualmente das

potencialidades proporcionadas pelo cargo que ocupa e pela autoridade que lhe é inerente.

Visa-se, dentro dessa perspectiva, ilustrar de que forma é possível ampliar o conceito de

função social do juiz e quais os reflexos que esse fenômeno apresenta no imaginário social

e na efetividade da atuação jurisdicional.

2 Expressão utilizada por Joaquim Falcão.

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1 O JUIZ RESOLUTOR DE CONFLITOS

1.1 Introdução

O homem é um ser social. Constatação bastante singela, mas rica em significado.

Desde os primórdios da humanidade, o ser humano percebeu a imprescindibilidade da vida

em grupo, precipuamente por duas razões. A primeira delas, de ordem material, consiste na

dependência recíproca para a satisfação das exigências mínimas determinadas pelo instinto

de sobrevivência, tais como alimentação, vestuário e saúde. Cada membro da comunidade

exerce uma determinada atividade e compartilha seus frutos com os demais. Embora, hoje,

essa dinâmica apresente-se em termos notadamente mais complexos, a divisão dos papéis

sociais permanece ocupando o eixo da estrutura funcional de toda e qualquer sociedade. O

segundo motivo, de natureza a que se poderia qualificar de “espiritual”, refere-se à

necessidade ínsita a todo ser humano de compartilhar idéias, sentimentos e emoções.

Dentro dessa perspectiva, sobressai a noção de sociabilidade humana como algo natural e

imanente ao ser humano.

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1.2 A evolução das funções do juiz ao longo da história

Paralelamente, o homem também compreendeu que o convívio com o semelhante é

fonte geradora de conflitos, os quais demandam uma justa composição com vistas ao

restabelecimento do equilíbrio rompido. Nas sociedade primitivas, onde inexistia qualquer

aparato estatal, atribuía-se o equacionamento das controvérsias, em regra, aos chefes ou ao

conselho de anciãos. Algumas práticas de justiça de então, mesmo no âmbito criminal,

eram “estabelecidas consensualmente nas comunidades e operavam-se através de processos

e mediação e negociação, ao invés da imposição pura e simples de regras abstratas”.3

Os primeiros “juízes”, assim, – concebidos aqui como tertius incumbidos da

resolução de conflitos decorrentes da convivência social – colocavam-se na posição de

mediadores, tentando aproximar os interesses das partes inclusive através da proposição de

sugestões – que poderiam, ou não, serem acatadas pelos contraditores – para a solução do

conflito. Avançando no tempo, surgem os juízes-árbitros, que se diferenciam dos primeiros

em razão do caráter vinculativo de que se revestem suas decisões, necessariamente

reconhecidas pelas partes a ela submetidas. Tais juízes buscavam

3 ROLIM, Marcos. Justiça Restaurativa: para além da punição. In: Justiça Restaurativa: um caminho para os direitos humanos? Porto Alegre: Instituto de Acesso à Justiça, 2004, p. 11. O autor refere que tais práticas, durante um largo período da história da civilização, conviveram com as conhecidas práticas de vingança pessoal e imposição de medidas violentas e arbitrária. John Gilissen, nesse mesmo sentido, afirma que nos países coloniais, ao final do século XIX até os meados do século XX, existiam geralemente dois sistemas jurídicos: um do tipo europeu e outro do tipo arcaico para as populações autóctones, sendo que esse sistema de pluralismo jurídico não desapareceu completamente na seqüência da descolonização (Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 34).

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diretamente na sociedade os critérios parra a solução do caso controverso. Para tanto, procurava[m] saber quais os usos e costumes daquela sociedade, qual a tradição jurídica (que se confundia muitas vezes com as tradições religiosas) de uma particular nação, podendo, inclusive, invocar noções de moral vigente, de senso comum. Esse é o modelo próprio das sociedades antigas, bem como dos povos com ordenamento jurídico de base consuetudinária (como algumas nações africanas ainda hoje, relativamente a certas áreas de sua cultura jurídica – família, sucessões, estatuto pessoal, regime de apropriação da terra, etc.). Nesse modelo, o Juiz é como o oráculo do Direito, aquele que expressa o Direito existente na sociedade. Esse modelo, como facilmente se pode perceber, repousa sobre a idéia de Direito como fator de conservação do existente – e o Juiz, naturalmente, exerce também uma função conservadora. 4

Os juízes-profissionais, por sua vez, apresentam-se como integrantes do aparelho

estatal, jungidos à resolução de controvérsias não porque previamente escolhidos pelos

litigantes para o desempenho de tal missão – como nos modelos precedentes –, mas em

razão de normas preexistentes, de natureza estatal, que lhes atribuem dita incumbência.5

Esse arquétipo, desenvolvido a partir das idéias iluministas e encontrando seu ápice no

século XIX, suplanta o estereótipo anterior do “juiz-descobridor”, centrando-se em torno da

figura do “juiz-aplicador” do direito. Tomando como plano de fundo a crença no mito do

legislador racional e onisciente, a esse juiz competia tão-somente aplicar as leis

4 FACCHINI NETO, Eugênio. Premissas para uma análise da contribuição do juiz para a efetivação dos direitos da criança e do adolescente. In: Juizado da Infância e da Juventude. Porto Alegre: Departamento de Artes Gráficas do TJRS, n. 2, mar. 2004, p. 10.5 Sobre esse ponto, consultar Carlo Guarnieri e Patrizia Pederzoli, La democrazia giudiziaria, Bolona: Il Mulino, 1997, pp. 118-119. Vale referir também as palavras de José Nalini (O magistrado do terceiro milênio. In: O Direito no terceiro milênio, RODRIGUES, Horácio Wanderlei (org.). Canoas: Ulbra, 2000, p. 131), quando aborda a figura do juiz no passado: “o juiz foi o primeiro dos operadores jurídicos. Precedeu, historicamente, ao legislador. Ele se encarregou, longevamente, de aplicar o direito. E o direito existe por causa dos homens, é obra do homem e está a serviço do homem (...) O juiz, no passado, era a figura emblemática, ungida a dizer o certo e o errado, capaz de transformar em quadrado o círculo, objeto do respeito e da veneração comunitária”. Interessante também os comentários tecidos por Maria Teresa Sadek, em resposta à indagação por ela mesma formulada acerca do significado da “Justiça”: “a justiça, enquanto valor, é um bem praticamente universal, sendo difícil datá-lo historicamente. Não há povos que, de uma forma ou de outra, não tenham se defrontado com uma concepção de justiça. Pode-se, pois, sustentar que, desde tempos imemoriais, sempre se elaborou uma idéia de justiça. Na sua concepção moderna, contudo, tal como entendemos hoje, a justiça e sua distribuição constituem um tema do Estado Moderno, um problema que nasce com os direitos individuais. Efetivamente, apenas quando se começou a acreditar que os direitos do homem constituíam uma qualidade intrínseca ao próprio homem e que, como tal, nada se devia à sociedade nem às autoridades constituídas, a questão da justiça começou a ser enquadrada em outro paradigma” (in: Reforma do Judiciário. Porto Alegre: Instituto de Acesso à Justiça, 2004, p. 26).

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abstratamente elaboradas pelo Legislativo. Para tanto, valia-se do método silogístico,

segundo o qual a premissa maior era representada pela regra jurídica e a premissa menor

pelo fato concreto posto à apreciação. A solução, pois, consistia no captar do sistema a

norma genérica adequada para o caso singular em exame.

Evidentemente, tal modus operandi afastava do aplicador do direito qualquer

preocupação social ou ética frente às deliberações por ele tomadas. Os valores e as

necessidades da sociedade eram elementos a serem filtrados somente pelo legislador no

momento da elaboração das normas, refugindo completamente do foco de atenção do juiz

que somente pronunciava as palavras da lei.6

No âmbito processual, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira aponta para o significativo

poder conferido às partes dentro dessa sistemática. Com sustentação no princípio da inércia

da jurisdição, da inalterabilidade da demanda e no princípio dispositivo, cabia às mesmas

acionar a justiça, delimitar o objeto da ação e indicar as provas a serem produzidas relativas

aos fatos constitutivos do direito do autor, ou aos elementos extintivos, modificativos ou

impeditivos a serem aportados pelo réu. 7 O magistrado, dentro desse contexto, “quedava-

se inerte na condução do processo, que seguia seu rumo segundo as regras legalmente

estabelecidas”, desaguando num provimento judicial fundado na verdade processual,

eventualmente dissociada da verdade real.8

É sobre a análise de um terceiro modelo de juiz, todavia, que se concentrará o

presente estudo. Um modelo que encontra terreno fértil para o seu desabrochamento sob as

bases do Estado Democrático de Direito, e que retrata o magistrado como agente “resolutor

de conflitos”9. Quanto a essa denominação, poder-se-ia questionar qual a novidade por ela 6 A respeito do assunto, v. também DALLARI, Dalmo de Abreu. A hora do judiciário. In: Revista da Escola Nacional da Magistratura. Brasília, ano I, n° 1, 2006, p. 10.7 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo. In: Revista da Ajuris, v. 90, junho de 2003. Porto Alegre: Ajuris, 2003, p. 57.8 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo, op. cit., p. 57.9 A autoria dessa expressão deve ser tributada a Eugênio Facchini Neto, Premissas para uma análise da contribuição do juiz para a efetivação dos direitos da criança e do adolescente. In: Juizado da Infância e da Juventude. Porto Alegre: Departamento de Artes Gráficas do TJRS, n. 2, mar. 2004, p. 12.

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introduzida, uma vez que a figura do magistrado foi concebida, desde a sua origem, para

compor situações litigiosas. Na verdade, o que se pretende nesse momento é revisitar o

significado, o alcance e a forma de exercício dessa incumbência de suma relevância social,

tradicionalmente atribuída aos magistrados.

1.3 Juiz resolutor de conflitos: primeira abordagem

Traçando um paralelo com o modelo anterior, o “juiz-resolutor” de conflitos ora

mencionado é também um agente estatal, constitucionalmente legitimado para exercer a

função judicante, de maneira ética e responsável. Essa nova missão que lhe assiste

encontra seu alicerce na percepção de que a aplicação apriorística da lei abstrata ao caso

concreto não é o único meio de resolução de qualquer controvérsia, independentemente da

condição das partes, da natureza e das particularidades da lide. Ao contrário, dependendo

da hipótese vertida nos autos, (essa nova missão) demanda do juiz a construção da solução

mais adequada para o conflito.

Em realidade, na maior parte das situações judicializadas, o justo equacionamento a

ser dado à espécie pode ser obtido mediante um processo de aplicação da regra jurídica ao

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caso concreto10. Todavia, nos chamados hard cases11, em que o método silogístico mostra-

se claramente insuficiente para embasar uma resposta consentânea em termos de justiça e

eqüidade, o juiz é chamado a apelar a outras fontes de direito. Refere-se, aqui, aos

princípios12, aos valores, às cláusulas gerais e aos conceitos indeterminados, os quais,

paralelamente às regras, também compõem o ordenamento jurídico nacional.

Relativamente aos princípios, considerando a sua intrínseca plasticidade, estes

conferem ao magistrado uma significativa flexibilidade no manuseá-los e no invocá-los em 10 A bem da verdade, a própria idéia tradicional de que o juízo processual utiliza o método dedutivo-silogístico para compor os litígios revela-se falha. Como observa Francisco Rosito, apoiando-se nas obras de Baldassare Pastore (Giudizio, prova, ragion pratica: un approccio ermeneutico. Milano: Giuffrè, 1996, p. 77) e de Chaïm Perelman (Logica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 214) “a atividade de averiguação pelo juiz raramente pode contar com regras axiomáticas, não sendo possível afirmar uma conseqüência certa decorrente de uma regra geral a um caso particular, o que afasta a identificação do método dedutivo. De fato, é da essência do processo a existência de conflito de interesses (controvérsias), de posições divergentes e de incertezas. Daí entender-se que não é suficiente, para motivar uma decisão, apresentar o silogismo judiciário que abrange a regra aplicada, a constatação dos fatos subsumidos sobre a regra e a conclusão decorrente. Evidentemente, havendo litígio, um ou vários desses elementos são contestados, o que exige do julgador não apenas a execução de um procedimento de lógica formal, senão indicar as razões que o guiaram nas opções julgadas preferíveis”(A aplicação das máximas de experiência no processo civil de conhecimento. Dissertação de Mestrado, apresentada no curso de Pós-Graduação em Direito Processual Civil, UFRGS, 2004, p. 17). Citando Guido Calogero (La logica del giudice e il suo controllo in cassazione.Padova: CEDAM, 1937, p. 51), o autor aponta que “a grande obra do juiz não está em extrair das premissas a conclusão, mas propriamente no encontrar e formular as premissas”(op. cit., p. 18). 11 A expressão hard cases foi cunhada por Herbert Hart, autor citado na obra de Daniel Sarmento como a mais importante expressão do juspositivismo no universo anglo-saxão do século XX e responsável pela elaboração da teoria sobre a “textura aberta” das normas jurídicas. Tal abertura, segundo Hart (O Conceito de Direito. Trad. A.Ribeiro Mendes. Lisboa: Caloouste Gulbenkian, 1996, p. 137 e ss.) “confere ao aplicador do direito uma discricionariedade na escolha da solução para cada caso. Com freqüência, a resposta para o problema concreto não oferece maiores dificuldades, reduzindo-se a aplicação mecânica da norma, mas, em certas hipótese, que ele chama de ‘casos difíceis’ (hard cases), o que realmente vai decidir é a vontade do juiz.”(Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 80).12 Segundo Ronald Dworkin, tanto os princípios como as regras jurídicas orientam o processo de convencimento judicial. Todavia, as regras conformam-se com a perspectiva do “tudo-ou-nada”; já os princípios não indicam conseqüências jurídicas necessárias quando estejam presentes os seus pressupostos. Havendo colisão de princípios, mostra-se necessário considerar o peso relativo exercido por cada um deles (I Diritti Presi Sul Serio. Bologna: Il Mulino, p. 93-95). Gomes Canotilho, por sua vez, também fixa alguns critérios para diferenciar as regras dos princípios, quais sejam: o grau de abstração,o grau de determinabilidade na aplicação ao caso concreto, o caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito, a proximidade da idéia de direito e a natureza normogenética (Direito Constitucional e Teoria Da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1.034-1035). Consoante o entendimento de Robert Alexy, “los principios son normas que ordenam que algo sea realizado en la mayor medida possible, dentro de las possibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de otimización [frisei], que está caracterizados por el hecho de que puedam ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las possibilidades reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las possibilidades es determinado por los principios e y regras opuestos”(Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Costitucionales, 1993, p. 86). A expressão mandado de otimização conquista profundo realce na obra de de Ingo Sarlet (A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006), sobretudo quando o autor aborda a problemática relativa ao art.

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suas decisões. Afinal, tais fontes de direito, diferentemente das regras, apresentam baixo

grau de densidade normativa, permitindo que o hermeneuta, ao empregá-los, os enriqueça

de significado, moldando-os de forma a alcançar um perfeito encaixe com o caso concreto

posto à apreciação.13

Os princípios, ainda, desempenham a função de “molas” propulsoras de uma

constante evolução do direito. A sociedade, como se tem preconizado, assume patamares de

complexidade em grau crescente numa velocidade estonteante, ao que não correspondem,

em termos de rapidez, modificações legislativas capazes de regulamentar essa nova

realidade. O próprio Legislativo, nesse norte, foi forçado a lançar mão de outras técnicas

legislativas, tais como a introdução na legislação infraconstitucional de princípios,

cláusulas gerais14 e conceitos indeterminados15 – esses últimos malháveis e de baixa

5°, § 1° da Constituição Federal. Segundo o jurista, o dispositivo configura um verdadeiro mandado de otimização, de cunho inequivocamente principiológico, estabelecendo aos órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais (op. cit., p. 282). 13 O professor norte-americano Owen Fiss acrescenta, ainda, a importância da atuação judicial como oportunidade de atribuição de sentido aos valores consagrados em normas de natureza constitucional (e principiológica), o que se infere do seguinte trecho de sua obra: “essa concepção da função judicial, a qual considera o juiz responsável por dotar os valores constitucionais de significado, espera muito dos juízes – até demais. A expectativa não reside na crença em suas faculdades morais ou na negação de sua condição humana. Os juízes são, em grande parte, pessoas seguras. São juristas, mas em termos de características pessoais não são diferentes de políticos ou de homens de negócios bem-sucedidos. A capacidade que possuem de dar uma contribuição especial para a vida social não decorre de qualquer conhecimento ou traço pessoal, mas da definição da atividade na qual se encontram e pela qual exercem o poder. Essa atividade é estruturada por fatores institucionais e ideológicos que permitem e, talvez, forcem o juiz a ser objetivo – não para expressar suas preferências ou crenças pessoais acerca do que é certo ou justo, ou as preferências populares, mas para o constante empenho na busca do verdadeiro significado dos valores constitucionais”(in:Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. Coordenação da tradução Carlos Alberto de Salles; tradução Daniel Porto Godinho da Silva, Melina de Medeiros Rós. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 41).14 Judith-Martins-Costa assim as define: “as cláusulas gerais constituem o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico, de princípios valorativos, expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento (...) [essa técnica legislativa se vale de] normas cujo enunciado, ao invés de traçar puncualmente a hipótese e as suas conseqüências, é intencionalmente desenhado como uma vaga moldura, permitindo, pela abrangência de sua formulação, a incorporação de valores, princípios e máximas de conduta originalmente estrangeiros ao corpus codificado, bem como a constante formulação de novas normas ”(A boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 274/286).

15 Também segundo Martins Judith-Costa, são “conceitos cujos termos têm significados intencionalmente imprecisos e abertos” (A boa-fé no Direito Privado, op.cit., p. 286). Todavia, enquanto as cláusulas exigiriam do juiz uma operação intelectiva e criativa mais complexa, remetendo-o a instâncias valorativas, o conteúdo semântico dos conceitos indeterminados poderia ser precisado com base em máximas de experiência (op. cit., p. 325-326).

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densidade normativa jurídica, como os princípios –, como forma de minimizar o

descompasso entre a lei e o contexto para o qual foi criada. A lei, como se sabe, embora

genérica, ostenta, como regra, conteúdo bastante específico, não comportando maiores

digressões acerca do seu teor. Os princípios, as cláusulas gerais e os conceitos

indeterminados, em contraposição, apresentam – como a denominação já aponta – uma

amplitude semântica bastante extensa16, cuja preenchimento do significado admite

mudanças à segunda do contexto físico e/ou temporal em que esse preenchimento ocorre.

Ditas “válvulas abertas”, para além de viabilizar a modernização do direito, realçam as

potencialidades do juiz, que se vê dotado da liberdade necessária para encontrar a solução

mais consentânea para a lide sob análise, especialmente para aquela qualificada como hard

case17.

Importa aqui referir que dita solução deve se impor sustentável social e

juridicamente, o que resta possível quando estiver fundada em argumentação racional, que

a torne harmônica e compatível com o ordenamento jurídico. Ou seja, o conjunto de

argumentos esgrimidos pelo juiz deve revelar que a decisão lançada nos autos não é só

fruto da sua razão e do seu livre convencimento, mas encontra apoio no sistema jurídico-

constitucional. Ademais, essa mesma decisão deve ser capaz de gerar consenso de que,

efetivamente, corresponde ao que todos esperavam em termos de justiça.18

16 Há quem refute o emprego dessas fontes legislativas em razão da insegurança jurídica que implicam, justamente pela amplitude semântica que comportam. A isso se opõe o papel exemplar dos doutrinadores que, ao analisarem as várias decisões jurisprudenciais fundadas em princípios e cláusulas gerais, procuram condensar em conceitos as idéias evocadas nessas decisões. Isso facilita uma operacionabilidade mais segura e uniforme dessas fontes de direito, abertas e indeterminadas de maneira intencional pelo legislador, por fornecer ao intérprete critérios objetivos para sua aplicação, limitando, por conseqüência, o arbítrio judicial.17 Insta aqui observar a necessária correlação entre poder e responsabilidade. Nesse sentido, Mauro Cappelletti (Giudici irresponsabili? Studio comparativo sulla responsabilitá dei giudice. Milano: Giuffrè, 1988, p. 06): “não há dúvidas de que num sistema de governo liberal-democrático é somente aquele em que existir uma razoável relação de proporcionalidade entre poder público e pública responsabilidade, de tal modo que ao aumento do poder corresponda um aumento dos controles sobre o exercício de tal poder. Esta correlação é inerente a aquilo que usa chamar de sistema de pesos e contrapesos, checks and balances (...); [Deve-se frisar que] o problema da responsabilidade judicial está assumindo na nossa época uma peculiar conotação e uma relevância particularmente acentuada, tendo como causa justamente o crescimento sem precedentes do poder judiciário nas sociedades modernas” (tradução livre).18 FACCHINI NETO, Eugênio. Premissas para uma análise da contribuição do juiz para a efetivação dos direitos da criança e do adolescente, op. cit., p. 13-15.

17

1.4 Juiz resolutor de conflitos: segunda abordagem

Esse novo delinear da função judicante tem merecido por parte de alguma doutrina

uma outra abordagem, que não se opõe, mas complementa as idéias até aqui expendidas.

Trata-se da tônica do processo sob uma ótica cooperativa. O Prof. Carlos Alberto Alvaro de

Oliveira – de cuja obra, aliás, importou-se a referida expressão – enfatiza a exigência da

“recuperação do valor essencial do diálogo judicial na formação do juízo, que há de

frutificar pela cooperação das partes com o órgão judicial e deste com as partes, segundo as

regras formais do processo”, de modo que a sentença final resulte do “trabalho conjunto de

todos os sujeitos do processo”19. Deve-se despir as partes da condição de meros “objetos

de pronunciamento judicial” para fazê-las endossar o papel de sujeitos ativos, partícipes do

processo que lhes trouxe aos tribunais. Evidentemente, essa renovada visão sobre a

dinâmica processual impõe, como correlação lógica, uma nova perspectiva também sobre o

atuar do magistrado. Mais uma vez, vale citar Carlos Alberto, ao precisar que

a idéia de cooperação além de implicar, sim, um juiz ativo, colocado no centro da controvérsia, importará senão o restabelecimento do caráter isonômico do processo pelo menos a busca de um ponto de equilíbrio. Esse objetivo impõe-se alcançado pelo fortalecimento dos poderes das partes, por sua participação mais ativa e leal no processo de formação da decisão, em consonância com uma visão não autoritária do papel do juiz e mais contemporânea quanto á divisão do trabalho entre o órgão judicial e as partes (...) Em vez do juiz ditador, dono de um processo inquisitório e autoritário, ou de um processo totalmente dominado pelas partes, como anteparo ao arbítrio estatal (...), importa fundamentalmente o exercício da cidadania dentro do processo, índice de colaboração das partes com o juiz, igualmente ativo, na investigação da verdade e da justiça.20

19 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo, op. cit., p. 62.20 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo, op. cit., p. 62-64. Essa visão cooperativa a informar o desenvolvimento processual é também sustentada de maneira mais aprofundada na obra Do formalismo no processo civil, da mesma autoria (São Paulo: Saraiva, 2003). Importante mencionar o magistério de Owen Fiss, no tocante à contraposição por ele focada entre dois modelos de adjudicação que convivem no ordenamento jurídico processual norte-americano: o modelo da “solução de controvérsias” e o modelo do “processo judicial estrutural” (por adjudicação entenda-se a forma usual na literatura de língua inglesa para designar a atividade realizada pelo Judiciário na solução de conflitos). O primeiro modelo está associado ao conflito entre interesses de ordem exclusivamente privada, em que a solução pretendida reside na restauração do status quo ante, a ser tomada por um “estranho” – o juiz

18

Essa pretensão por uma maior atividade do juiz durante o curso processual coloca-

se como outra considerável diferença com o modelo anterior. Conquanto ainda vigentes no

seio do ordenamento processual pátrio os princípios dispositivo e da congruência entre o

pedido e a sentença, tais princípios apresentam-se hoje um tanto quanto mitigados.

Ao magistrado cabe, nesse norte, por expressa disposição legal, determinar de ofício

ou a requerimento as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências

inúteis ou meramente protelatórias21 e reprimindo a litigância de má-fé. Em se tratando de

direitos indisponíveis, a busca por aquilo que se convencionou denominar de verdade real

revela-se ainda mais acentuada. O juiz também se encontra autorizado a inverter o ônus da

prova em matéria de consumo, possibilitando, com isso, um equilíbrio das forças postas em

confronto22.

–, sendo que essa decisão contém o dom de por fim definitivamente ao litígio. Nisso, esgotar-se-ia a função social do juiz. O outro modelo, por sua vez, parte do pressuposto de que nem sempre a situação anterior à controvérsia pode ser tida como justa. Aliás, não é raro o emprego do processo judicial como instrumento de batalha entre as partes, cuja origem (do embate) remonta a outros eventos muito mais complexos do que aquele posto à apreciação do juiz. Eventual julgamento que declare os direitos das partes, nessas circunstâncias, pode significar o término da ação em que a decisão foi prolatada, mas, igualmente, pode marcar o início de um novo choque entre os contraditores. Eis a importância do diálogo entre as mesmas, ao longo do curso processual, de modo a viabilizar uma verdadeira composição dos conflitos (in: Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. Coordenação da tradução Carlos Alberto de Salles; tradução Daniel Porto Godinho da Silv, Melina de Medeiros Rós. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 105-145)21 Art. 130 do Código de Processo Civil. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira enfatiza que o ativismo judicial encontra-se atrelado também à concepção contemporânea de que o instrumento processual não serve apenas para satisfação de interesses de ordem exclusivamente privada, porquanto hoje se lhe reconhece uma importante função de caráter público, consubstanciada, por exemplo, na realização da justiça, na segurança jurídica e na pacificação social.(Do formalismo no processo civil, op. cit., p. 67, 75 e 135.). O atingimento desses valores como um dos escopos da jurisdição também é apontado por Cândido Dinamarco (A instrumentalidade do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 206-309). Ainda no que tange à defesa de uma postura mais ativa do magistrado na direção processual, vale reportar as palavras de Carlos Alberto no sentido de que tudo “recomenda a quebra do monopólio das partes na instrução da causa, mesmo em se tratando de interesses puramente privados (...) Insustentável continuar-se tolerando o juiz inerte, de braços cruzados, e que encarava o processo como coisa exclusiva das partes”(op. cit., p. 151).22 Existem também outras técnicas que procuram garantir um equilíbrio entre as partes no jogo processual em que se encontram envolvidas, redistribuindo, por exemplo, o ônus probatório. É o caso da teoria da carga dinâmica da prova, preocupada em “distribuir o encargo de provar àquele que se encontra em condições mais favoráveis em subministrar o material probatório”(DALL’AGNOL JUNIOR, Antonio. Distribuição dinâmica dos ônus probatórios. In: Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez, ano 48, fev./01, n. 280, p. 16.). Tal teoria permite um abrandamento da visão estática da repartição do encargo probatório, além de viabilizar a aplicação do princípio da boa-fé na relação processual.

19

Para além disso, importa mencionar as modificações legislativas que viabilizaram a

antecipação de tutela em qualquer tipo de demanda e que romperam com o princípio da

tipicidade das medidas executivas e as concentraram já no processo de conhecimento23.

Evidentemente, o propósito dessas reformas introduzidas no sistema processual brasileiro

centrou-se na necessidade de se conferir maior poder ao juiz para a efetiva tutela dos

direitos. Nessa linha de raciocínio, não se poderia deixar de mencionar a doutrina de Luiz

Marinoni, segundo a qual “a obrigação de compreender as normas processuais a partir do

direito fundamental à tutela jurisdicional e, assim, considerando as várias necessidades de

direito substancial, dá ao juiz o poder-dever de encontrar a técnica processual idônea à

proteção (ou à tutela) do direito material”.24

1.5 A visão prospectiva do direito e a função social do juiz na sociedade pós-moderna

Nesse norte, importante referir também que o direito, nesse modelo fulcrado na

figura do “juiz-resolutor” de conflitos, assume um caráter prospectivo, em contraposição à

feição retrospectiva que caracterizava os paradigmas pretéritos. Um direito que, segundo as

lições de Eugênio Facchini Neto, “não busca apenas espelhar o passado (e seus valores),

mas pretende também estabelecer os marcos, limites e direção da transformação social”25.

Um direito edificado sobre as bases de uma Constituição dirigente e vinculante que, já no

23 A exemplo da lei 8.952/94 que deu nova redação ao art. 273 e ao art. 461, acrescentando ou alterando o teor dos parágrafos desses dispositivos e da lei 10.444/02 que acrescentou o art. 461-A. Vale referir ainda as recentes reformas operadas no diploma processual brasileiro, voltadas sobretudo a conferir celeridade e eficiência à tramitação dos feitos (lei 11.187/05, lei 11.232/05, lei 11.276/06, lei 11.277/06, lei 11.280/06).24 Marinoni, Luiz Guilherme. A legitimidade da atuação do juiz a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. In: Revista da Escola Nacional da Magistratura. Brasília, ano I, n. 01, 2006. Consultar também, do mesmo autor, dentre outras, a obra Técnica Processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.25 FACCHINI NETO, Eugênio. Premissas para uma análise da contribuição do juiz para a efetivação dos direitos da criança e do adolescente, op. cit., p. 15.

20

seu preâmbulo, sinaliza a instituição de um Estado Democrático que visa assegurar o

exercício dos direitos individuais e sociais, além de indicar como objetivos da República,

dentre outros, a construção de uma sociedade livre, justa e igualitária (art. 3°, inc. I). Uma

Constituição, outrossim, que consagra, logo no seu átrio, um catálogo de direitos

fundamentais traduzidos em normas de aplicação imediata (art. 5°, § 1°). Uma

Constituição, em síntese, que – nas palavras de Konrad Hesse – não se limita a

corresponder apenas à “expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa

mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência”.26

Tal visão prospectiva do direito ganha significativo relevo na sociedade pós-

moderna. Nesse cenário, à medida em que a sociedade evolui, novos direitos passam a ser

reivindicados; vários conflitos, antes solucionáveis, ou não, no âmbito extrajudicial,

procuram resposta pela via judicial27. Ademais, os litígios vestem-se de um caráter cada vez

mais global, envolvendo uma série indeterminada de sujeitos, do que decorre a própria

reconceituação da natureza do processo, dos seus limites e potencialidades. Novos

instrumentos brotam nos códigos processuais, desabrochando a possibilidade da

judicialização de lides coletivas, em que vários interesses e uma multiplicidade de

indivíduos encontram-se – direta ou indiretamente – envolvidos. Conflitos, esses, que não

requerem tão-somente uma postura mecanicista do magistrado, mas uma posição ativa, um

26 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 15. Daniel Sarmento (in: Direitos Fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 76), ao esboçar a teoria de K. Hesse, expõe que: “a Constituição tem uma pretensão de eficácia, pois aspira ordenar o fato social e a influir sobre ele. Ela não se contenta em ser um mero espelho das relações de poder. Mas, para que a Constituição tenha como desencadear a sua força normativa, ela não pode se desvincular dos seus condicionamentos materiais, nem ignorar as leis espirituais, sociais e econômicas da sua época, senão não logrará efetivar-se. Além disso, o ingrediente essencial para a força normativa é o que Hesse chamou de ‘vontade de Constituição’. Deve haver o anseio de realização concreta da Constituição, e é importante que a sociedade se mobilize neste sentido. Quanto maior a vontade da Constituição, menores serão os limites que a realidade social poderá lhe impor”. 27 Sobre o assunto, Alessandro Pizzorno afirma que, nas últimas décadas, cresceu a demanda pela atuação judicial em campos em que, tradicionalmente, eram resolvidos pelas várias “autoridades locais”. O autor refere-se aos chefes de família, aos professores, aos dirigentes de organizações produtivas e militares – dentre outros – que ditavam as regras e as faziam respeitar, aplicando inclusive as sanções em caso de descumprimento. As pessoas submetidas ao poder dessas várias autoridades, assim, na medida em que se sentem lesadas pelas suas decisões, passam a recorrer ao Judiciário. É o caso do filho que não consente as punições físicas do pai, do aluno que não aceita os regulamentos escolásticos, etc (Il potere dei giudici: Stato democratico e controllo della virtù. Bari: Laterza, 1998, p. 41).

21

raciocínio pautado na ponderação de princípios e valores, além de uma atuação

comprometida e consciente dos efeitos que a decisão judicial acarretará na esfera social28.

Efetivamente, percebe-se que

o processo civil opera também como instrumento de solução de conflitos sociais e econômicos, e de redistribuição de riquezas e de vantagens de variada natureza. Muda, destarte, o problema da ‘justiciabilidade’ das situações substanciais: ao catálogo clássico dos direitos subjetivos individuais são acrescidos novas situações de vantagem que dificilmente entram no esquema habitual daqueles direitos, ou porque não são traduzíveis em um equivalente econômico, ou porque não são reconduzíveis á titularidade individual, ou, de qualquer sorte, porque traduzem conflitos sociais e econômicos de amplas dimensões, que não suportam a redução ao esquema do confronto individual bilateral. O problema da justiça civil é, portanto, um problema social não somente porque a tutela é garantida a todos em condições de igualdade efetiva, mas sobretudo porque agora é dominante a tendência de ver no processo civil um instrumento de solução ou mediação dos conflitos sociais. Deste ponto de vista, a reforma do procedimento civil ordinário é necessária mas não suficiente: é preciso, também, a atuação efetiva das garantias constitucionais e sobretudo é preciso um juiz que desempenhe adequada e responsavelmente o papel de operador social que de fato lhe compete29.

Essa função social que reveste inexoravelmente o atuar do magistrado concilia-se

perfeitamente com o olhar “prospectivo” acima referido. Os juízes, nesse sentido, não

devem decidir voltando-se tão-somente ao passado, na tentativa de recompor o status quo

ante. Urge que lhes seja transferida a “responsabilidade de considerar as possíveis soluções

28 Nesse mesmo sentido, Carmen Lúcia Antunes Rocha: “ao lado da função tradicional de solução de conflitos particulares e dos litígios havidos entre cidadãos e entidades públicas (mas sempre unipessoais ou litisconsorciais), no desempenho da qual o juiz é ‘escravo da lei’ e seu mero aplicador, vê-se impor, neste final de século, uma função jurisdicional voltada à prevenção de litígios, à solução de conflitos plurais e não mais meramente singulares e à aplicação do Direito recomposto e recriado, diuturnamente, numa gestação permanente da sociedade. A função social do juiz e os fins sociais do Direito libertam a lei de seu texto fincado no momento de sua feitura ou de sua promulgação. A democratização do Direito passa pela efervescência judicial e pela ampliação funcional do Judiciário” (A Reforma do Poder Judiciário. Revista de Informação Legislativa. Brasília, a.35 n.137 jan./mar. 1998, p. 245).29 TARUFFO, Michele. La giustizia civile in Italia dal ‘700 a oggi. Bologna: il Mulino, 1980, p. 363-364.

22

alternativas, de imaginar as suas respectivas conseqüências, de avaliá-las e, ao final, de

tomar uma decisão com o olhar constantemente voltado ao futuro.”30

Em se tratando de lides de natureza coletiva e tom político, que vêm crescendo em

número e importância nessa sociedade pós-moderna, torna-se inviável olvidar esse discurso

em torno da nova função (social) a ser exercida pelo Judiciário. Não mais incumbe tão-

somente aos Poderes Legislativo e Executivo analisar o presente para enfrentar situações

futuras. O Poder Judiciário, igualmente, ao debruçar-se sobre questões complexas,

mormente aquelas envolvendo políticas públicas, não está sendo demandado para recompor

o passado – o que sói ocorrer em litígios de caráter individual – mas sim, exigi-se-lhe que

examine a realidade fática e perquira – sob o ângulo de uma visão prospectiva – a

possibilidade e a melhor forma de “transformar” essa realidade.31

30 GUARNIERI, Carlo e PEDERZOLI, Patrizia. La democrazia giudiziaria. Bologna: il Mulino, 1997, p. 13.31 Vale ressaltar, nessa linha, o magistério de Maria Celina Bodin de Moraes: “A primazia da ordem jurídica consubstancia-se na primazia das decisões políticas em face da natureza das coisas, cabendo ao legislador não apenas se esforçar por refletir a realidade, mas também, conscientemente, buscar a sua transformação. O Direito é justamente isto, uma força ‘civilizatória’, reconhecida através de uma intrínseca função promocional, ao lado da tradicional função repressiva, mantenedora do status quo.”(MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 71).

23

2 A CRISE DO SISTEMA JUDICIAL

2.1 Introdução

A digressão acerca das funções a que o juiz foi chamado a exercer ao longo da

história, culminando na figura do “juiz-resolutor” de conflitos, empresta-se ao propósito de

introduzir a abordagem que se pretende empreender a partir de agora e que encontrará seu

ápice ao final do terceiro capítulo.

Antes de mais nada, é preciso admitir a atualidade e a pertinência do debate acerca

tanto do cenário sob o qual se desenha a atuação do Judiciário32, já iniciado nas páginas

32 Aliás, não apenas do Judiciário. Consoante Carmen Lúcia Antunes Rocha: “no turbilhão de idéias e experiências que se amalgamam neste final de década, final de século, final de milênio, que correspondem, paralelamente, ao início de outra década, de outro século e de outro milênio, logo, início de outra sociedade, o questionamento sobre as instituições, especialmente as estatais, tem um relevo incontestável” (A Reforma do Poder Judiciário, op. cit., p. 240).

24

anteriores, bem como sobre a própria atividade judicial. Como percebe Ruy Rosado de

Aguiar Júnior:

o desempenho da função jurisdicional atua diretamente sobre a expectativa dessa verdadeira multidão, que volta seus olhos para o juiz. Nenhum dos demais poderes do Estado fica assim debaixo de tanta pressão, no aguardo de uma providência que diretamente interfere na vida particular do cidadão: com o Parlamento e o Executivo temos uma relação política, de expectativa genérica quanto à elaboração de leis e cumprimento dos projetos da administração pública, mas que não toca diretamente às pessoas salvo no que diz com a qualidade do atendimento. Do Judiciário, a parte espera a ‘sua’ decisão, para resolver o problema pessoal que enfrenta. Com isso quero evidenciar o quanto é importante para a sociedade o desempenho da atividade judicial, seja do ponto de vista social e humano, seja pelo que influi na vida econômica dos agentes empresariais. 33

O Judiciário, em razão da sua capilaridade34, que vem sendo reforçada pela

paulatina ampliação do acesso à justiça35, permite a canalização de demandas sociais que 33 TORRES, Jasson Ayres. Acesso à Justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. O trecho citado compõe o prefácio à obra de Jasson Torres.34 Vale referir o pensamento de José Renato Nalini, quanto a esse aspecto: “Fala-se na dificuldade de acesso à Justiça. Mas o indivíduo sabe que difícil, mesmo, é o acesso aos demais poderes. Qual o indivíduo que tem facilidade para avistar-se com qualquer chefe do Executivo? É simples ser ouvido por um parlamentar em qualquer dos três níveis da Federação? Já o juiz realiza as audiências. Todas as pessoas têm direito a um advogado dativo, credenciado a exercer a capacidade postulatória perante os tribunais. Uma das experiências rotineiras do homem contemporâneo é o contato direto com o juiz. Só quem não quer é que permanece sem o seu day in Court. O juiz não pode escusar-se a realizar uma audiência, a despachar uma petição, a ouvir um reclamo de sua competência. Ao se compenetrar disso, o indivíduo experimenta um salto qualitativo no seu grau de cidadania”(in: A democratização da administração dos tribunais. In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004. BOTTINI, Pierpaolo, RENAULT, Sérgio Rabello Tamm (coord.). São Paulo: Saraiva, 2005, p. 173.)35 Sobre o acesso à justiça, cada vez mais vasta a literatura jurídica que vem versando suas atenções sobre essa matéria. Importante referir a obra de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, em que os autores introduzem os mais eloqüentes obstáculos ao acesso à justiça, a que correspondem algumas soluções de ordem prática. A primeira delas – a primeira “onda”, como a denominam – consiste na criação da assistência judiciária gratuita; a segunda diz com reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses difusos; a terceira, mais recente, supera as estratégias anteriores porquanto “centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas. Nós o denominamos ‘o enfoque do acesso à justiça’ por sua abrangência. Seu método não consiste em abandonar as técnicas ds duas primeiras ondas de reforma, mas em tratá-las como apenas algumas de uma série de possibilidades para melhorar ao acesso” (Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Segio Antonio Fabris, 1988, p. 67/68). Os famosos “ADR” norte-americanos (alternative dispute resolution), que, em uma das classificações propostas, distinguem-se em modelos conciliativos e de arbitragem, extra ou endoprocessuais, revelam-se ilustrações de movimentos incluídos nessa terceira onda de ampliação do acesso à justiça. Os meios

25

não encontraram assento em outras sedes (em particular, no Executivo e no Legislativo), ou

que nelas obtiveram respostas negativas.36 Por outro lado, na mesma proporção em que

aumenta a procura pela tutela jurisdicional, na esperança da solução para problemas de

natureza privada ou coletiva, surpreendentemente crescem as críticas ao Judiciário, o que,

nas palavras de Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, “é uma contradição instigante,

mas, lógica e praticamente, quase inexplicável”37.

Em realidade, é possível vislumbrar algumas explicações para esse aparente

paradoxo. O Judiciário, como já referido, por estar ao alcance de todo e qualquer cidadão –

pelas razões acima expostas e, igualmente, por ser o acesso à justiça qualificado como

direito fundamental (art. 5°, XXXVI, da Constituição) –, apresenta-se como alvo das

inúmeras críticas que lhe vem sendo constantemente dirigidas. De certa forma, a lógica

sugere que, quanto maior a sua exposição ao público, tanto maior será a abertura para

atitudes que visam desabonar sua imagem.

Se é certo que, além dos obstáculos de ordem material ao acesso à justiça, colocam-

se os de natureza social e cultural, representados especialmente pela dificuldade

alternativos ao modelo judicial tradicional de resolução de conflito também vêm encontrando difusão em vários países (inclusive no Brasil), como revela Eugênio Facchini Neto, em sua tese de doutorado, intitulada “Ordinamenti giudiziari comparati. Stati Uniti, Francia e Italia”, desenvolvida junto à Universidade de Florença (Itália), p. 138 e 263-264 (obra não publicada). Tais movimentos traduzem a crescente “fuga da jurisdição” , sinalizando que a expressão “acesso à justiça” é mais abrangente do que “acesso ao judiciário”, porquanto a composição de litígios ou o reconhecimento de direitos não deve advir, necessariamente, a partir de uma decisão judicial. De qualquer forma, embora importantes, esses meios ainda “ortodoxos” de solução de controvérsias não substituem, mas complementam o modelo tradicional. Nesse sentido também se posiciona Mauro Cappelletti ao sublinhar que, “embora a atenção dos modernos reformadores se concentre mais em alternativas ao sistema judiciário regular, que nos próprios sistemas judiciários, é importante lembrar que muitos conflitos básicos envolvendo os direitos de indivíduos ou grupos, necessariamente continuarão a ser submetidos aos tribunais regulares” (op. cit., p. 76). Preocupadas com essa constatação, diversas nações vêm implementando reformas direcionadas ao melhoramento e modernização dos tribunais e de seus procedimentos, a iniciar pelo reforço dos poderes instrutórios do juiz. O autor evoca também o chamado “modelo de Sttugart” e a criação de “tribunais especializados”, a exemplo dos juizados especiais para pequenas causas e dos “tribunais de vizinhança” desenvolvidos nos Estados Unidos, dentre outros (op. cit., p. 76-142). No caso brasileiro, cite-se também as experiências relacionadas à justiça itinerante, que será descrita com maiores detalhes no próximo capítulo. 36 GUARNIERI, Carlo e PEDERZOLI, Patrizia. La democrazia giudiziaria, op. cit., p. 80.37 SOUZA, Antonio Fernando Barros e Silva de. A visão do Ministério Público. In: Revista de estudos judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília, n. 13, p. 139, jan./abr. 2001, p. 139.

26

experimentada pelas classes menos favorecidas no reconhecimento da existência e da

judiciabilidade de seus direitos38, também é provável que surtam certos efeitos

contraproducentes de projetos tencionados à difusão da existência de direitos entre as

populações mais carentes. Em outras palavras, os trabalhos que vêm sendo conduzidos com

vistas a alargar o conhecimento do patrimônio jurídico de que todo e qualquer cidadão é

titular carregam consigo o risco de suscitar nesses mesmos cidadãos uma idéia equivocada

sobre aquilo a que tem direito, ou não. Dentro desse panorama, não são raras as pessoas que

comparecem aos juizados especiais, por exemplo, acreditando-se detentoras de certos

interesses quando, na verdade, verifica-se de plano – ou após breve análise probatória – que

nenhum direito lhes assiste. Percebe-se, nesses casos, a freqüência com que a irresignação

diante da sentença de improcedência se traduz em descrédito no sistema de justiça.39

Fenômeno semelhante apura-se quando a parte desfavorecida pela decisão judicial atribui o

seu prejuízo a falhas ou injustiças perpetradas, ao seu ver, pelo Judiciário.

A par disso, não se poderia deixar de mencionar que o propalado descrédito no

sistema judicial, repetido a cada momento nos editoriais de jornais, redigidos, ao que

transparece, por pessoas que jamais passaram pela porta de algum tribunal, nem sempre

reflete a real percepção da sociedade no tocante ao Judiciário. Calha perfeitamente à

hipótese a conclusão de José Carlos Barbosa Moreira, quando se refere à opinião pública, a

que prefere denominar de “opinião publicada, que com aquela ingenuamente somos levados

a confundir”.40

38 Sobre os obstáculos econômicos, sociais e culturais do acesso à justiça, consultar, dentre outras obras que também abordam essa problemática, Francisco das Chagas Lima Filho, Acesso à justiça e os mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 160-166.39 Dentro dessa mesma perspectiva, observa José Maria Rosa Tesheiner que “o acesso fácil e gratuito não fará senão multiplicar as demandas. Funciona aqui uma lei: a de que um serviço público eficiente e gratuito aumenta a procura, até que se torne ineficiente. O número de ações, que já é imenso, não é maior exatamente porque a justiça é relativamente cara e ineficiente. É também por esse motivo que a maioria das ações são propostas por autores que têm razão ou, pelo menos, convencidos de que a têm. Uma justiça gratuita e célere inverterá essa proporção. Autores proporão ações em busca de um ganho sem risco. No máximo, perderão a causa, ficando na mesma situação em que se encontravam ao tempo da demanda”(Reforma do Judiciário. Disponível no site www.tex.pro.br. Acesso em 09.09.06).40 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O futuro da Justiça: alguns mitos. In: Cidadania e Justiça. Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros. Rio de Janeiro, ano 4, n. 8, 1° semestre/2000, p. 09.

27

É evidente que falhas existem e estão a demandar profundas reformas no sistema

jurídico brasileiro. Nesse sentido, assiste razão a José Eduardo Faria quando precisa que, se

as “críticas parecem excessivamente severas e até mesmo injustas, todavia, isso não quer

dizer que a maioria delas não seja procedente ou não tenha algum fundo de verdade, o que

alimenta a mais variadas indagações sobre o futuro da instituição”,41 especialmente numa

conjuntura marcada por densas desigualdades sociais e culturais.

Mas, diante desse contexto de insatisfação generalizada, deve-se questionar quais as

mudanças que se pretende e de quem se pretende.

Ora, a reforma que se almeja, como bem manifestado por Joaquim Falcão, “não é

mais do Judiciário, mas do sistema judicial, em toda a sua extensão de atores e

participantes”. A referência feita pelo autor à modernização do “sistema judicial”, em

detrimento da expressão “reforma do Poder Judiciário”, para além de consistir um mero

jogo semântico, traduz a necessária cooperação e empenho para implementar mudanças por

parte de todos aqueles que, conquanto não pertençam aos quadros do Judiciário, interferem

decisivamente no seu funcionamento. Falcão, a propósito, cita os policiais, as delegacias, os

defensores públicos, procuradores, câmaras de vereadores, governos, empresas e até mesmo

os consumidores.42

Nesse mesmo norte posiciona-se Pier Paolo Bottini, na condição de representante da

Secretaria de Reforma do Poder Judiciário do Ministério da Justiça:

41 FARIA, José Eduardo. A crise do Judiciário no Brasil: notas para discussão. In: Jurisdição e direitos fundamentais: anuário 2004/2005/ Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul - Ajuris. SARLET, Ingo Wolfgang (org). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.16.42 FALCÃO, Joaquim. Estratégias para a Reforma do Judiciário. In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004. BOTTINI, Pierpaolo e RENAULT, Sérgio Rabello Tamm (coord.). São Paulo: Saraiva, 2005, p. 27. Na verdade, a expressão “sistema judicial”, empregada por Joaquim Falcão, foi tomada por empréstimo da Ministra Ellen Gracie, como referido pelo próprio autor.

28

trata-se de reformar o Sistema Judicial Brasileiro, mais do que o Poder Judiciário (isto implica levar em conta Ministério Público, Defensorias, Procuradorias, Advocacia, Poder Legislativo, Poder Executivo), [não podendo ser desconsiderado, ainda,] a importância do papel da sociedade civil organizada no sentido de promover o acesso a justiça – especialmente na politização e mobilização da sociedade. 43

Postas tais premissas, é hora de perquirir quais são as falhas que assolam o sistema

judicial, e, como corolário, o próprio Judiciário, haja vista a sua inserção no seio desse

sistema. É preciso reconhecer, nesse sentido, seguindo as lições de Maria Teresa Sadek,

que “uma coisa é este sentimento difuso de que existe uma crise, outra muito diferente, é a

capacidade de fazer um diagnóstico preciso do Poder Judiciário.” 44 Para este diagnóstico, 43 BOTTINI, Pier Paolo. Relatório da Reforma do Judiciário. Porto Alegre: Instituto de Acesso à Justiça, 2004, p. 12.44 SADEK, Maria Teresa. Relatório da Reforma do Judiciário. Porto Alegre: Instituto de Acesso à Justiça, 2004, p. 36. Em palestra proferida durante curso para atualização de magistrados promovido pela AJURIS, em 11 de novembro de 2005, intitulada “Avaliação do Judiciário: uma tarefa difícil”, Sadek refere que analisa a estrutura e o funcionamento Poder Judiciário brasileiro desde 1993, tendo encontrado inúmeras dificuldades no desenvolvimento suas pesquisas, mormente diante da insuficiência de dados sobre a instituição. Ademais, sublinha que, dentre as parcas informações obtidas, apresentam-se contestáveis as conclusões que delas se extraem, a exemplo da alegada identidade do resultado da equação entre o número de juízes e o contingente populacional, caso esse cálculo seja realizado comparando-se o Estado brasileiro com países desenvolvidos (Administração judiciária. Biblioteca da Escola Superior da Magistratura – AJURIS. Porto Alegre: Video Versa, DVD n° 07). A respeito do assunto, consultar texto da autoria de Maria Sadek em parceria com Fernão Dias de Lima e José Renato de Campos Araújo, O Judiciário e a prestação de justiça (In: Acesso à justiça. SADEK, Maria Teresa (org). São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, p. 13-42). A indispensabilidade da produção de estatísticas sobre o funcionamento do Judiciário brasileiro também é referida por Joaquim Falcão, no prefácio da obra A reforma silenciosa da justiça (Centro de Justiça e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2006). Segundo o jurista, sem elas, “a reforma passa a ser muito mais uma disputa abstrata entre visões ideologicamente antagônicas sobre o dever-ser do Judiciário do que um exercício plausível de controle e mudança da realidade. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal tem liderado um importante processo de produção, sistematização e organização de dados indicadores para servirem de guia – guia com os pés no chão – para a sociedade forjar o Poder Judiciário de que a democracia precisa”. Vale mencionar, nesse discorrer, o trabalho que vem sendo efetuado pelo Ministério da Justiça no coletar dados sobre o sistema judicial brasileiro. Em 2005, por exemplo, publicou-se estudo sobre o sistema penitenciário no Brasil, cujos dados estatísticos foram obtidos a partir de gestões junto às Unidades da Federação, Distrito Federal e organismos internacionais. A necessidade de se traçar um panorama da estrutura e da funcionalidade das várias “justiças” brasileiras também inspirou o legislador constituinte a criar o Conselho Nacional da Magistratura. Uma das suas atribuições consiste na elaboração semestral de relatórios estatísticos sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade de Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário (art. 103-B, VI, da CF/88). A par disso, compete-lhe também a formulação de relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias sobre a situação do Poder Judiciário (art. 103-B, VII). Consoante a doutrina de Sérgio Renault e Pierpaolo Bottini, a competência exclusiva de cada um dos Estados-membros quanto à organização judiciária estadual acaba, muitas vezes, por impedir ações de cooperação conjunta, que facilitem a prestação jurisdicional em âmbito nacional. Nesse

29

não bastam modelos teóricos – embora esses também sejam importantes –, fulcrados numa

concepção abstrata da magistratura, mas é imprescindível também conhecê-la a fundo,

analisando seus pontos positivos e negativos, e conferindo o que existe de veraz naquilo

que comumente lhe é imputado pelo senso comum.

2.2 Análise da denominada “crise da justiça”

Qualificações do Poder Judiciário como moroso, ineficiente, corporativista,

burocrático, formalista e falho na gestão administrativa compõem o imaginário popular

produzido, alardeado e reforçado, em parte, pela mídia.45

Tendo em vista o enfoque técnico-jurídico pretendido por esse estudo, procurar-se-á

analisar a crise que afeta o sistema judicial brasileiro a partir de constatações formuladas

pelos seus analistas, estudiosos e integrantes.

norte, “a criação do Conselho Nacional de Justiça possibilita a coordenação e a padronização dos trabalhos administrativos do sistema judicial, a racionalização dos procedimentos e o desenvolvimento de projetos de solução com bases em estudos precisos e diagnósticos seguros” (RENAULT e BOTTINI. Primeiro Passo. In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004. BOTTINI, Pierpaolo e RENAULT, Sérgio Rabello Tamm (coord.). São Paulo: Saraiva, 2005, p. 6-7).45 Naturalmente, há de se realçar também os aspectos positivos ligados diretamente à divulgação de informações pela mídia e pelos demais meios de comunicação. Mauro Cappelletti e Bryant Garth, in Acesso à justiça (op. cit., p. 121-122), por exemplo, assinalam o que denominam de “solução pela imprensa” para qualificar uma reforma de iniciativa particular relacionada aos direitos dos consumidores, a partir da qual “muitas estações de rádio e de televisão e alguns jornais em lugares como o Canadá, a Inglaterra e os Estados Unidos recebem queixas dos consumidores, encaminham-nas a outras agências, investigam diretamente algumas e tentam utilizar a arma da publicidade adversa para obter resultados em favor de consumidores que tenham sido prejudicados.” Apesar dos notáveis êxitos alçados com esse método, os autores apontam algumas limitações óbvias, consubstanciadas no perigo de que esses programas venham a abordar exclusivamente questões de interesse jornalístico, negligenciando um grande número de queixas que realmente sejam de interesse dos consumidores. Sobre o papel dos meio de comunicação na ampliação do acesso à justiça, v. também artigo de Suely M. Grissanti (Os meios de comunicação e o acesso à justiça. In: Acesso à justiça. SADEK, Maria Teresa (org). São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, p. 219-240)

30

Nesse norte, segundo José Luis Bolzan de Morais46, as crises referentes à justiça

nacional podem ser vistas sob quatro perspectivas. A primeira delas, de ordem estrutural,

diz respeito ao seu financiamento (infra-estrutura de instalações, pessoal, equipamentos,

custos, remuneração etc.). A segunda, de feição a que o jurista denomina objetiva ou

pragmática, relaciona-se à burocracia e morosidade dos procedimentos judiciais, além do

acúmulo de demandas que assolam o judiciário. A terceira, a seu turno, de caráter subjetivo

ou tecnológico, diz com a incapacidade dos operadores jurídicos de lidarem com novas

realidades fáticas. Por fim, evoca a crise paradigmática, correlacionada com os métodos e

conteúdos utilizados pelo direito com vistas a solucionar os conflitos. Nesse âmbito, o

autor interroga acerca da

[in]adequação de o modelo jurisdicional atender às necessidades sociais do final do século – e do milênio – em razão do conteúdo das demandas, dos sujeitos envolvidos, ou, ainda, diante do instrumental jurídico que se pretende utilizar – direito do Estado, direito social, ‘lex mercatoria’, costumes, eqüidade, etc.”47

José Eduardo Faria, a seu turno, ao tratar de idêntico tema, enuncia que o Poder

Judiciário, sob o olhar da opinião pública e da imprensa, transparece como um poder

anacrônico, moroso, além de inepto prestador de um serviço público essencial. Perante o

Executivo, é concebido como um órgão de baixa eficiência gerencial, altamente perdulário

por empregar seu orçamento em obras de discutível utilidade e/ou funcionalidade, o que

vem somado à sua insensibilidade diante do equilíbrio das finanças públicas. O

46 MORAES, José Luis Bolzan de. As crises do judiciário e o acesso à justiça. In: Comentários à reforma do poder judiciário. AGRA, Walber de Moura (coord).Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 4-5.47 MORAES, José Luis Bolzan de. As crises do judiciário e o acesso à justiça, op. cit., p. 5. O autor também procede a uma análise de dois modelos de jurisdição, um de ordem conflitual e outro fundado em mecanismos consensuais. O primeiro, que vem sendo tradicionalmente aplicado, “se assenta na fórmula clássica, como dito, da oposição de interesses entre indivíduos iguais em direitos, para os quais é indispensável que se sobreponha o Estado como ente autônomo e externo, neutro e imparcial, do qual provenha uma decisão cogente, impositiva, elaborada com base em textos normativos de conhecimento público, previamente elaborados”. A solução consensual de litígios, por sua vez, para o qual pende o jurista, “pode ser caracterizada como desjudicialização do conflito, retirando-o do âmbito da função jurisdicional do Estado e afastando-o, até mesmo, das técnicas judiciárias de conciliação, colocadas á disposição do julgador tradicional, ou seja, a mediação judiciária”(p. 7-8).

31

Legislativo, por fim, o acusa de judicializar a política, bloqueando a execução dos planos e

estratégias governamentais formulados pelos órgãos representativos democraticamente

eleitos.48 Consoante a percepção do próprio jurista,

numa primeira aproximação, a assim chamada ‘crise da Justiça’ se traduz pela crescente ineficiência com que o Judiciário, em quase todos os ramos, setores e instâncias, tem desempenhado suas três funções básicas: a instrumental, a política e a simbólica. Pela primeira, o Judiciário é o principal locus de resolução dos conflitos. Pela segunda, ele exerce um papel decisivo como mecanismo de controle social, fazendo cumprir direitos e obrigações contratuais, reforçando as estruturas vigentes de poder e assegurando a integração da sociedade. Pela terceira, dissemina um sentido de eqüidade e justiça na vida social, socializa as expectativas dos atores na interpretação da ordem jurídica, e, por fim, calibra os padrões vigentes de legitimidade na vida política49.

Quanto às razões da ineficiência, José Eduardo Faria elenca, em rol exemplificativo,

a burocratização dos procedimentos e a incompatibilidade entre a estrutura judiciária

clássica e a realidade sócio-econômica sobre a qual tem de atuar. Para além disso,

menciona a concepção tradicional de função jurisdicional, que ainda permanece nos dias de

hoje, segundo a qual a jurisdição resume-se à resolução de conflitos individuais, em que os

interesses das partes colocam-se em planos diametralmente opostos. A litigância judicial,

nesse contexto, assume contornos eminentemente retrospectivos, reservando-se ao juiz a

análise de eventos passados. Acrescido a isso, persiste ainda a exacerbação do princípio do

dispositivo e da inércia do magistrado na condução do feito. Finaliza o jurista sustentando a

incongruência entre esse modelo de Judiciário e a realidade brasileira, caracterizada por

enormes desigualdades sociais, regionais e sociais, traduzidas, como regra, em formas de

violência urbana. 50

48 FARIA, José Eduardo. A crise do Judiciário no Brasil: notas para discussão. In: Jurisdição e direitos fundamentais: anuário 2004/2005/ Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul - Ajuris. Sarlet, Ingo Wolfgang (org). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 15-16.49 FARIA, José Eduardo. A crise do Judiciário no Brasil: notas para discussão, op. cit., p. 17.50 FARIA, José Eduardo. A crise do Judiciário no Brasil: notas para discussão, op. cit., p. 17

32

Dalmo de Abreu Dallari sinaliza a conotação negativa que se vem conferindo ao

alargamento das atribuições judiciais, forjada na concepção de que os juízes encontrar-se-

iam despreparados para a assunção das novas responsabilidades decorrentes do aumento

dos seus poderes. Ademais, o jurista adere à compreensão da existência de incontestes e

sérias inadequações na organização e nos procedimentos dos órgãos judiciários, em parte

correlacionadas com os sistemas processuais, mas “em grande parte devidos à secular

acomodação da magistratura, que se ajustou ao formalismo, valorizou demasiadamente as

aparências, aceitou a submissão ao Legislativo e ao Executivo e distanciou-se do povo” 51.

Nessa mesma linha coloca-se o comentário tecido por Lara Cristina de Alencar

Selem, ao abordar uma das prováveis explicações para a chamada crise do justiça: “o

Judiciário tem sido concebido como o Poder que tem por responsabilidade a aplicação das

leis, sugerindo uma atitude conservadora e avessa às mudanças”.52

Joaquim Falcão, por sua vez, reputa ser sistêmica a crise da justiça, cujos sintomas

mais evidentes concentram-se na sua ineficiência e lentidão, consubstanciadas na

“defasagem entre, de um lado, a quantidade de conflitos sociais que, transformados em

ações judiciais, chegam ao sistema (Poder Judiciário) e, de outro, a oferta de decisões

(sentenças e acórdãos) que buscam equacionar esses conflitos”.53

O descrédito na justiça lenta e ineficiente também foi tema defrontado pelo Ministro

Nelson Jobim54, que enfatizou o gritante volume de processos que tramitam nos diversos

foros do país, em grande parte relacionados a conflitos de massa. Outrossim, alertou para

os problemas de natureza processual e de gestão administrativa.51 DALLARI, Dalmo de Abreu. A hora do Judiciário, op. cit., p. 13-14. À percepção negativa que recai sobre a possibilidade da assunção de um novo papel político e social mais ativo, decorrente da ampliação das atribuições judiciais, Dallari opõe os seus efeitos benéficos, que podem advir caso haja uma adaptação dos juízes às novas circunstâncias (p. 16). 52 SELEM, Lara Cristina de Alencar. Gestão judiciária estratégica:o Judiciário em busca da eficiência. Natal: Esmarn, 2004, p. 15.53 FALCÃO, Joaquim. Estratégias para a Reforma do Judiciário. In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004, op. cit., p. 16.54 A fala refere-se à entrevista no Bom Dia Brasil, divulgada no site www.justicasempapel.org.br, acessada em 15 mai. 2006.

33

Em abrangente discussão sobre a reforma do Poder Judiciário, promovida pelo

Instituto de Acesso à Justiça55, Cláudio Baldino Maciel56 registrou que a crise é de

funcionalidade, determinada por vários fatores, dentre os quais a legislação abundante e

anárquica, a burocracia da estrutura de funcionamento, o exagerado formalismo processual

e a morosidade da justiça57. Para além disso, asseverou a persistência de juízes “fora do

mundo real” e a preocupação vertida por esses em desenvolver julgamentos bem

formulados, o que é louvável, mas que demanda tempo e não necessariamente corresponde

imediatamente às exigências sociais. Acrescentou também a necessidade de qualificar a

capacidade administrativa dos juízes e a premência por um sistema concentrado de

planejamento e de monitoramento administrativo do Poder Judiciário.

Maria Teresa Sadek, que igualmente tomou parte nesse debate, considera que o

problema central do Judiciário brasileiro não é a falta de acesso – até porque, segundo a ela,

“existe acesso demais” . A tônica da questão está em definir a forma e a dinâmica desse

acesso. Acena, nesse discorrer, que a legislação não só facilita como também propicia o

prolongamento da jornada processual, em benefício de um dos litigantes 58. Além disso,

argumenta a dificuldade da compreensão da linguagem jurídica por parte daqueles que

procuram o sistema, o que é inadmissível, mormente quando tal ocorre no âmbito dos

Juizados Especiais. Conquanto a própria jurista concorde com a ampliação do acesso à

justiça promovida pela lei n° 9.099/95, questiona o destino que tem sido forjado a essas

55 O debate sobre a reforma do Judiciário, em especial sobre o tema do acesso à justiça, foi realizado no Seminário Reforma do Judiciário: a sociedade Civil discute a sua Justiça, ocorrido nos dias 24 e 25 de novembro de 2003, no Hotel Embaixador, em Porto Alegre, RS. A publicação Relatório: Reforma do Judiciário, publicada pelo Instituto de Acesso à Justiça, registra os painéis e discussões travadas durante o Seminário.56 MACIEL, Cláudio Baldino. Relatório: Reforma do Judiciário. Porto Alegre: Instituto de Acesso à Justiça, 2004, p. 10-11.57 Quanto à morosidade, o autor ventilou não poder ser olvidado que há interesses na demora do processo. Tal circunstância deve ser muito bem equacionada quando do enfrentamento dessa questão.58 A palestrante inclusive cita pesquisa do Idesp, junto a empresários brasileiros, elaborada para aquilatar a avaliação desse setor da elite nacional sobre o Judiciário. Analisando os resultados, Maria Teresa constata que “um percentual significativo de empresários reconhece que o fato da Justiça ser lenta traz benefícios. Esses benefícios eram maiores quando vivíamos num período com altas taxa de inflação, já que naquelas condições era mais vantajoso não pagar, não saldar a dívida, uma vez que qualquer aplicação financeira traria mais benefícios do que cumprir com as obrigações. Observe-se que um significativo percentual de entrevistados – 59% - reconheceu que os benefícios de se recorrer à Justiça superam os custos”(in: Relatório: Reforma do Judiciário. Porto Alegre: Instituto de Acesso à Justiça, 2004, p. 36)

34

cortes de justiça, cada vez mais distantes dos princípios que orientaram sua criação.

Aponta, nesse contexto, a ausência de preparo dos conciliadores – que não conciliam – e a

presença quase que obrigatória de advogados.59 Em outra oportunidade60, a jurista

questionou práticas evidenciadas em alguns Estados brasileiros, em que os tribunais

costumam alocar para os juizados magistrados suspeitos de corrupção ou sem vocação

intelectual para a profissão, o que revela a concepção fortemente equivocada de que esses

espaços institucionais seriam nada mais do que uma justiça “de segunda classe”.

2.3 Pressupostos para uma tentativa de superação da crise

Assim delineada a questão, depreende-se que, dentre as críticas mais noticiadas,

colocam-se a morosidade, o acúmulo de demandas, o déficit gerencial, o formalismo, o

distanciamento do povo e a incapacidade dos magistrados de fazer frente à nova realidade

que se lhes descortina.

Em realidade, percebe-se uma certa dificuldade na tarefa de precisar o que são

causas, e quais são os caracteres que compõem a crise em que se insere o Judiciário. A

sobrecarga de trabalho, por exemplo, é uma possível fonte da morosidade. Sob um outro

viés, a interminável jornada que acompanha inúmeros processos que tramitam nos diversos

foros decorre, em parte, da intenção de uma das partes de retardar o máximo possível o

arquivamento dos autos. Em outras palavras, aqui o acúmulo de demandas apresenta-se

como conseqüência do interesse pela morosidade da justiça.

Nesse mesmo raciocínio, pode-se afirmar que o fechamento dos magistrados em um

mundo aparte resulta da manutenção de uma postura mecanicista no exercício da

59 SADEK, Maria Teresa. Relatório: Reforma do Judiciário, op. cit., p. 36-37. 60 Em palestra proferida por ocasião de curso de atualização para magistrados do Estado do Rio Grande do Sul, em 11 de novembro de 2005 (Administração judiciária, op. cit.)

35

jurisdição, consubstanciada no aplicar pura e simplesmente a lei ao caso concreto, sem

procurar enxergar os prováveis reflexos da decisão judicial. Tal distanciamento, por sua

vez, também redunda na dificuldade dos magistrados em operarem com os novos conflitos,

sobretudo os de natureza coletiva, que lhe são submetidos a julgamento. Mais uma vez,

causas e conseqüências permeiam-se numa roda viva sem precedentes e que precisa

urgentemente ser desmantelada.

Dito isso, é fácil intuir a complexidade do assunto “crise do Judiciário”. Ao que se

extrai das considerações já expostas, causas e efeitos dessa crise convivem e confundem-se,

compondo as peças de um processo que se retroalimenta.

A toda crise61, em contrapartida, corresponde uma tentativa de superação a partir do

diagnóstico da situação presente e da projeção das mudanças a serem implementadas.

Evidentemente, em razão da referida complexidade da matéria, não há de se falar em um

único remédio capaz de debelar todos os males. Inexiste a suposta panacéia. Nesse ponto,

merece transcrição a lição de José Carlos Barbosa Moreira, ao tratar dos mitos que vem

sendo divulgados a respeito do programa que se há de adotar para aperfeiçoar a justiça:

a verdade é que simplesmente não existe fórmula de validade universal para resolver por inteiro a equação. Temos de combinar estratégias e táticas, pondo de lado o receio de parecermos incoerentes se, para enfermidades de diferente diagnóstico, experimentarmos remédios também diferenciados. O simplismo das palavras de ordem, já indesejável, na política, revela-se aqui funesto.62

61 A propósito, o vocábulo “crise”, em chinês, é composto de dois símbolos: um deles significa “perigo”, e o segundo “oportunidade”. Contextualizando essa antiga lição dos sábios orientais no âmbito jurídico-político brasileiro, dela se pode extrair a esperança de que, à crise da justiça, contraponham-se ações exitosas que provoquem melhorias no sistema judicial.62 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O futuro da Justiça: alguns mitos, op. cit., p. 11..

36

Essa idéia vem reforçada por Joaquim Falcão que, justamente por conferir forma

sistêmica à crise, deixa claro que não existe apenas uma única maneira de enfrentá-la63.

Flávio Dino, igualmente, ao expor sugestões para uma reforma cultural no judiciário,

destaca que

reformar o sistema judicial é um processo eternamente inconcluso, à vista da natureza dialética da história. Daí porque escrever sobre a Reforma do Judiciário é sempre atual e instigante. Nesse momento, gostaria de destacar um aspecto às vezes esquecido, ou não explicitado: tal Reforma não é tarefa que se possa restringir ao terreno normativo. Mudanças constitucionais e legais (estas sobretudo no tocante ao sistema processual) devem implicar e ser reforçadas por transformações culturais na instituição judicial, traduzidas em novas práticas gerenciais e posturas hermenêuticas não dogmáticas.64

Segundo pressuposto para a análise que ora se impõe vem exposta pelo Ministro

Nelson Jobim, segundo o qual “não cabe mais aos juízes dar explicações, ou seja, encontrar

culpados. Precisamos dar solução, evitar que o culpado é fulano ou beltrano (...) Nós temos

um problema a resolver e temos que enfrentá-lo como tal”.65

63 FALCÃO, Joaquim. Estratégias para a Reforma do Judiciário. In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004, op. cit., p. 16. Segundo o autor: “ao perceber o Poder Judiciário como um sistema, identificamos pelo menos quatro frentes da reforma, cada uma com participantes e lideranças plurais, a exigir táticas e estratégias diferenciadas: 1) a frente legislativa, cujo locus privilegiado é o Congresso Nacional e cujos atores principais são os deputados ou senadores; 2) a frente administrativa, que tem como locus principal o Poder Judiciário e, como protagonistas, juízes, serventuários e tribunais; 3) a frente do passivo contencioso da Administração Pública, cujo locus privilegiado é o Poder Executivo e tem com atores principais os procuradores (sobretudo do INSS e da Receita Federal) e advogados da União; 4) finalmente, a frente da crescente demanda social, que tem seu locus preferencial nos interesses sociais em conflito – empresariais, individuais, trabalhistas e comunitários, por exemplo – cujos representantes legais – advogados, procuradores, peritos etc. – são também protagonistas da reforma”(p. 17-18). 64 DINO, Flávio. Superar limites no controle jurisdicional das políticas públicas: sugestões para uma reforma cultural no judiciário. Disponível em www.premioinnovare.org.br. Acesso em 15 mai.2006. 65 Em entrevista no Bom Dia Brasil, veiculada no site www.justicasempapel.org.br, acessada em 15 mai. 2006.

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Uma terceira pressuposição, apontada por Joaquim Falcão, diz com o fato de que “a

reforma não mais se dissocia do cotidiano profissional de juízes e tribunais. Não está

restrita às lideranças judiciais. Não é externa à atuação profissional do juiz. Ela está

presente em cada acórdão, em cada sentença.”66

O quarto pressuposto, já acenado em momento anterior, situa a crise num espectro

mais abrangente, não a limitando apenas ao Poder Judiciário, mas alargando-a ao sistema

judicial como um todo. Disso deflui o indispensável apoio e colaboração daqueles que,

mesmo não compondo dito sistema, interferem decisivamente em seu funcionamento.

Insta referir também que a decantada crise do Judiciário não é um fenômeno

nacional, mas sim uma realidade mundial. Aliás, em qualquer Estado constitucional de

direito experimentam-se dificuldades na aplicação de uma justiça rápida, efetiva e, ao

mesmo tempo, segura.67

Digno de nota, ainda como preliminar, a referência a alguns dos mitos relacionados

aos problemas que corroem a justiça, traçados e combatidos, em linhas bastante didáticas,

pelo Prof. José Carlos Barbosa Moreira.

66 FALCÃO, Joaquim. Estratégias para a Reforma do Judiciário. In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004, op. cit., p. 26.67 ROSA, Alexandre Morais da. Aspectos destacados do Poder Judiciário norte-americano. In: Cidadania e Justiça. Revista da Associação dos magistrados brasileiros, ano 4, n. 8, 1° semestre 2000, p. 113. O autor faz essa breve introdução para reportar, após, noções da justiça norte-americana, uma vez que, no seu entender (com o que concordamos), “é preciso apreender as lições dos outros sistemas e, em processo dialético, aplicar à nossa realidade o que for útil e compatível”. Mauro Cappelletti e Bryant Garth também referem que a tentativa de melhorar e modernizar os tribunais e seus procedimentos, contribuindo para tornar processo civil simples, rápido, barato e acessível aos pobres, remonta ao início do século XX. Desde então, vislumbram-se no continente europeu movimentos de incentivo à oralidade, à concentração do procedimento, ao contato imediato entre juízes, partes e testemunhas, à colocação das partes em pé de igualdade, à outorga de maiores poderes instrutórios ao magistrado etc. Cappelletti e Garth fazem menção ainda ao famoso discurso de Roscoe Pound, em 1906, sobre as causas da insatisfação popular em relação à administração da justiça. A par disso, sublinham a série de práticas, reformas e inovações que têm sido conduzidas em vários países no tocante ao sistema processual (CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à justiça, op. cit., p. 76-161). Para fins de complementação, a reforma legislativa que teve a glória da primazia de retirar o juiz da posição passiva durante o iter processual, intensificando seus poderes de investigação probatório, consiste no projeto do Code de Procédure Civile, do cantão de Genebra, lei sancionada em 20 de setembro de 1819. A mais conhecida, todavia, foi conduzida por Franz Klein na Áustria, ao final do século XIX (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do formalismo no processo civil, op. cit., p. 149).

38

Segundo o autor, é falsa a idéia de que “quanto mais célere o processo, melhor é”.

Primeiramente, nem todos os jurisdicionados clamam por rapidez na solução dos litígios.

No mínimo, um dos litigantes pretende que o feito se prolongue indefinitivamente. A par

disso, há uma demora fisiológica, inerente ao sistema processual moderno informado pelo

princípio do devido processo legal. E mais, vislumbra-se um verdadeiro

hiperdimensionamento da malignidade da lentidão: rapidez é um dos valores, mas não o

único, nem mesmo o valor por excelência. Nessa perspectiva:

se uma justiça lenta demais é decerto uma Justiça má, daí não se segue que uma Justiça muito rápida seja necessariamente uma Justiça boa. O que todos devemos querer é que a prestação jurisdicional venha a ser melhor do que é. Se para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito bem. Mas não a qualquer preço.68

Barbosa Moreira salienta, igualmente, o mito da onipotência da norma, enunciando

que, embora importantes, as reformas legislativas não solucionam todo o problema.69

Postas tais considerações iniciais, é hora de equacionar o conjunto de formulações

que vem sendo gestadas, a partir das críticas já referidas, com vistas a enfrentar a

insatisfação generalizada com a atuação da justiça brasileira.

2.4 Tentativas de superação da crise: a reforma do judiciário e a “reforma silenciosa

da justiça”

Em se tratando da problemática do sistema judicial contemporâneo, não se poderia

deixar de mencionar o projeto de reforma do Judiciário que, após praticamente treze anos

68 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O futuro da Justiça: alguns mitos, op. cit., p. 10.69 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O futuro da Justiça: alguns mitos, op. cit., p. 13. Apenas para fins de informação, o autor elenca ainda alguns outros mitos, que, todavia, não serão objeto de exame nesse estudo.

39

de tramitação no Congresso Nacional, restou promulgado no dia 8 de dezembro de 2004. O

que deveria simbolizar o início da construção de uma nova base institucional para o sistema

judicial brasileiro, com ênfase na democratização da magistratura, em realidade, não

promoveu significativas mudanças. O tema, evidentemente, apresenta-se largamente

polêmico, comportando comentários favoráveis70 e desfavoráveis71 à Emenda

Constitucional n. 45. De toda sorte, independentemente da análise que se faça da referida

reforma – o que, sinale-se, não é objeto a ser enfrentado nesse estudo – vale trazer à tona a

lição de Joaquim Falcão acerca da matéria:

o Pacto Nacional por um Judiciário mais ágil e republicano, celebrado por representantes dos três Poderes da República em dezembro de 2004 deixou claro que determinados desafios estão acima das divergências políticas e ideológicas. Mais do que questões de governo ou de partidos, são questões de

70 José Nalini, por exemplo, aponta a reforma do judiciário como alavanca de democratização, haja vista a introdução no sistema constitucional de instrumentos de inspiração democrática, tais como: eleição de metade do órgão especial, justiça itinerante, Conselho Nacional da Justiça, autonomia das Defensorias Públicas, razoável duração do processo, ouvidorias, publicidade das decisões administrativas tomadas pelo Tribunal (inclusive as de caráter disciplinar), além da criação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. Finaliza o seu artigo argumentando que a previsão desses mecanismos em nível constitucional não basta para a devida efetivação do processo de aprimoramento da democracia. A sua efetividade, continua, “está condicionada à consciência dos juízes que precisam ser preparados para um desempenho compatível com as expectativas de uma sociedade em crescente aspiração por um Judiciário mais democrático”(NALINI, José Renato. A democratização da Administração dos Tribunais. In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004, op. cit., p. 159-184). Sérgio Rabello Tamm Renault e Pierpaolo Bottini, a seu turno, prestigiando a reforma operada pela Emenda Constitucional n. 45, sinalizam os quatro grandes grupos de temas nela tratados, quais sejam: “a) a democratização do Poder Judiciário; b) a criação de mecanismos que concedam celeridade à prestação jurisdicional; c) o fortalecimento das carreiras jurídicas; e d) a solidificação da proteção aos direitos fundamentais” (RENAULT e BOTTINI. Primeiro Passo. In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004, op. cit., p. 5). 71 Claúdio Baldino Maciel critica a verticalização do Judiciário levada a efeito pela reforma, o que se extrai, por exemplo, da previsão das súmulas vinculantes, das medidas avocatórias, do controle externo e da escola oficial de magistratura com staff centralizado (O juiz independente no Estado Democrático. Revista Cidadania e justiça. Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros. Rio de Janeiro, ano 4, n. 8, 1° semestre 2000, p. 71). Nesse mesmo sentido posiciona-se João Sady: “(...) podemos ver com clareza que a questão da Reforma do Judiciário tomou rumos que somente satisfazem aos interesses dos tribunais superiores. A proposta de emenda constitucional que está em marcha não introduz melhorias no acesso à Justiça, nem sequer arranha o problema da morosidade do aparato judicial, não contribui para democratizar o poder jurisdicional e não colabora para a solução do problema da falta de efetivação dos direitos constitucionalmente estipulados” (SADY, João José. Comentários à reforma do Judiciário. Barueri: Manole, 2004, p. 117). José Renato Nalini, conquanto visualize pontos positivos operados pela Emenda, como já exposto na nota de roda-pé anterior, também constata que: “a Reforma do Judiciário resultante da Emenda Constitucional n° 45/2004 não foi a profunda reforma estrutural da Justiça Brasileira. Não atendeu a todas as expectativas. Desalentou aqueles que nutriam enorme esperança de que a Justiça seria completamente outra a partir de sua promulgação”(Nalini, José Renato. A formação do juiz após a emenda à constituição nº 45/04. In: Revista da Escola Nacional da Magistratura. Brasília, ano I, n. 1, 2006, p. 17).

40

Estado – de Estado e de sociedade como um todo. O Pacto mostra um país agora focado na solução partilhada, deixando para trás o clima negativo, problemático e separatista que até então prevalecia. Os poderes estão convergentes. Os canais para o diálogo estão abertos. Qual o próximo passo? O que fazer? Existe um consenso de que a emenda é necessária, mas insuficiente para forjar um Judiciário politicamente mais legítimo, administrativamente mais eficiente e socialmente mais justo. Como continuar a reforma infraconstitucional?72

Em outra oportunidade73, o mesmo autor, ao discorrer acerca do que denomina

“reforma silenciosa da justiça”, acentua a necessidade do reconhecimento por parte dos

outros poderes e da própria sociedade da parcela de responsabilidade que lhes acomete e da

possível contribuição que deles se espera para com a implementação de uma justiça melhor.

Mesmo assim, ainda consoante o seu magistério, a convergência de esforços não exime os

magistrados de “continuarem percorrendo os caminhos que, diariamente construídos em

varas, juizados e tribunais, independem em larga medida dos outros atores envolvidos na

Reforma”74. Cuida-se de desafio a ser desenvolvido em três frentes distintas, a saber:

diagnóstico do problema, capacitação dos juízes para tarefas gerenciais e estratégicas e a

implementação efetiva de uma reforma gerencial, que inclua a informatização. O jurista

encerra sua exposição evidenciando que existem “dois” poderes judiciários: um

conservador, avesso à mudança e arraigado nos hábitos; e outro, talvez ainda minoritário e

pouco percebido, “que busca em tudo inovar, até nos menores – mas fundamentais –

detalhes”. Uma reforma no sistema judicial que se pretenda efetiva está nas mãos,

certamente, desse segundo modelo de judiciário.

72 FALCÃO, Joaquim. Estratégias para a reforma do Judiciário. . In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004, op. cit., p. 14.73 FALCÃO, Joaquim. Prefácio da obra A reforma silenciosa da justiça, op. cit.74 FALCÃO, Joaquim. Prefácio da obra A reforma silenciosa da justiça, op. cit.

41

3 UM PANORAMA SOBRE NOVOS PAPÉIS DO JUIZ NA

SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

3.1 Introdução

Eis o cenário que se descortina perante os magistrados do terceiro milênio. De um

lado, um judiciário que, como bem sintetiza José Renato Nalini, “padece de excesso de

saúde” e permanece sendo repositório da confiança da comunidade, o que se traduz no

excessivo volume de processos tramitando nos tribunais75. De outro, uma sociedade

complexa e propícia à germinação de conflitos de índole coletiva.

Uma sociedade, outrossim, que prima pela realização de uma justiça vista como

valor fundante do ordenamento jurídico, e não necessariamente como sinônimo de texto

75 NALINI, José Renato. A democratização da Administração dos Tribunais. In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004, op. cit., p. 172.

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de lei76. Uma sociedade interessada na democratização do Judiciário, na ampliação do

acesso à justiça e na assunção, por parte dos juízes, de uma postura mais permeável à

percepção dos anseios sociais. Uma sociedade que demanda dos juízes a

operacionalização do direito não como instrumento hábil para apenas recompor situações

passadas, mas, igualmente, como mecanismo de transformação social. Uma sociedade

ansiosa, por fim, por uma justiça mais rápida e efetiva.

Na esteira do que se vem defendendo, poder-se-ia resumir a razão da existência do

Poder Judiciário invocando aquilo que já se encontra consagrado no Plano de Gestão pela

Qualidade do Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul77:

o Poder Judiciário tem a missão de, perante a sociedade, prestar a tutela jurisdicional a todos e a cada um, indistintamente, conforme garantido na Constituição e nas leis, distribuindo justiça de modo útil e a tempo (...) A visão do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul é tornar-se um Poder cuja grandeza seja representada por altos índices de satisfação da sociedade; cuja força seja legitimada pela competência e celeridade com que distribui justiça; cuja riqueza seja expressa pela simplicidade dos processos produtivos, pelo desapego a burocracias e por desperdícios nulos. Ou seja, uma instituição moderna e eficiente no cumprimento do seu dever.

No mesmo trilhar, o posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de

Janeiro acerca da função social do Judiciário: “resolver conflitos de interesses que lhe

sejam levados pela população, garantindo as liberdades, assegurando os direitos e 76 Vale trazer à colação o comentário de Jacques Távora Alfonsin em debate sobre a Reforma do Judiciário proposto pelo Instituto de Acesso à Justiça: “a vítima vai ao juiz em busca de um valor, a Justiça. Ela nem sabe o que é a lei e o que a lei diz a respeito dela, por isso não é em busca do cumprimento da lei que ela vai a juízo. Ela vai a juízo em busca da Justiça, valor que permeia todo o ordenamento jurídico. A lei existe em função dos valores.”(Relatório: Reforma do Judiciário. Porto Alegre: Instituto de Acesso à Justiça, 2004, p. 53.) 77 Aprovado pelo Egrégio Tribunal Pleno do Estado do Rio Grande do Sul, por unanimidade, em 27.03.95. Dito plano traduz a proposta de responder às expectativas e necessidades de justiça da sociedade, por meio da busca constante da melhoria contínua, bem como de buscar a satisfação de todos os integrantes do Poder Judiciário.

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promovendo a paz social”78. Para o Tribunal de Minas Gerais, por sua vez, a missão da

magistratura consiste em “garantir, no âmbito de sua competência, a prestação

jurisdicional com qualidade, eficiência e presteza, de forma a atender aos anseios da

sociedade e constituir-se em instrumento efetivo de justiça, eqüidade e de promoção da

paz social.”79

3.2 Justiça eficiente e democrática: breves comentários

Ora, por tudo que já foi até aqui exposto, depreende-se a pretensão generalizada por

uma justiça eficiente e democrática. Se essas palavras não revelam nada de inusitado – até

em razão do processo de banalização a que se encontram submetidas – nem por isso se

pode ignorar o conteúdo profundo por elas carregado e as conseqüências de ordem

pragmática que delas devem ser extraídas. O que se pretende salientar é que há sim uma

vontade declarada por mudanças paradigmáticas no sistema judicial brasileiro. O

questionamento reside em o que se pretende alterar e como implementar essas alterações.

Em um primeiro momento, urge definir, mesmo se em breves parágrafos, o

significado de eficiência e democracia.

Ora, uma justiça eficiente não é apenas aquela acessível a quem dela necessita e

pautada pelo princípio do devido processo legal. É notadamente aquela que resolve

efetivamente os problemas do jurisdicionado em tempo razoável80. De nada vale, nesse

78 Apud SELEM, Lara Cristina de Alencar. Gestão judiciária estratégica, op.cit., p. 23.79 Apud SELEM, Lara Cristina de Alencar. Gestão judiciária estratégica, op.cit., p. 23.80 Importa mencionar, na esteira da argumentação sustentada por Luiz Guilherme Marinoni (O direito à tutela jurisdicional efetiva na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais. Disponível no site www.jus.com.br. Acesso em 22.08.2006), que a problemática da efetividade da tutela jurisdicional também está diretamente

44

sentido, uma sentença que, apesar de por termo à controvérsia deduzida nos autos, sinaliza o

início de novas contendas entre as partes.81

A par disso, de nada serve uma previsão legislativa ou um pronunciamento do

Judiciário que não alcance aplicação social. As penas alternativas, por exemplo, incluídas

no ordenamento jurídico pátrio desde 1984, eram pouco aplicadas devido à dificuldade

experimentada pelos magistrados na fiscalização do seu cumprimento, o que acarretava uma

alta probabilidade de frustração da resposta punitiva do Estado.82 Da mesma forma, pouco

resultado prático advém de uma decisão que estabelece medida sócio-educativa de meio

relacionada à espécie de provimento jurisdicional exarado pelo magistrado. Incapaz se afigura a sentença condenatória, por exemplo, para prestar a tutela inibitória ou a tutela de remoção do ilícito. Louvável, nesse sentido, a redação do art. 84 do CDC e a do art. 461 e 461-A do CPC. Um desenvolvimento mais amplo dessa temática, todavia, foge aos objetivos desse trabalho.81 Esse é um dos motivos sublinhados pelos defensores da difusão das medidas alternativas de resolução de conflitos no território nacional, pois essas adotam mecanismos consensuais de composição de litígios, contrapondo-se, assim, ao modelo conflitual de jurisdição. Em particular, a mediação procura investigar o histórico da controvérsia posta em discussão, sobretudo os interesses e necessidades – evidentes ou obscuros – dos mediados, formando as bases para a criação de opções que efetivamente sinalizem a superação do conflito. O modelo conflitual de jurisdição é definido por Jose Luis Bolzan de Morais: “caracterizado pela oposição de interesses entre as partes, geralmente identificadas como indivíduos isolados, e a atribuição de um ganhador e um perdedor, onde um terceiro neutro e imparcial, representado pelo Estado, é chamado a dizer a quem pertence o Direito”. Já os mecanismos consensuais, ao invés da delegação do poder de resposta, implicam uma “apropriação pelos envolvidos do poder de geri-los, caracterizando-se pela proximidade, oralidade, ausência/diminuição de custos, rapidez e negociação (...), onde na discussão do conflito são trazidos à luz todos os aspectos que envolvem o mesmo, não se restringindo apenas àqueles dados deduzidos na petição inicial e na resposta de uma ação judicial cujo conteúdo vem pré-definido pelo direito positivo”(Crise(s) da jurisdição e acesso à justiça. In: Estudos sobre Mediação e Arbitragem. SALES, Lilia Maia (org.).Rio-São Paulo – Fortaleza: ABC, 2003, p. 79-81). Consultar também Adolfo Braga Neto. Alguns aspectos relevantes sobre a mediação de conflitos. In: Estudos sobre Mediação e Arbitragem. SALES, Lilia Maia (org.).Rio-São Paulo – Fortaleza: ABC, 2003, p. 19-32.82 Manual de monitoramento das penas e medidas alternativas. Brasília: Secretaria Nacional de Justiça, Central Nacional de Apoio e Acompanhamento às penas e medidas alternativas, 2002. A lei 9.714/98 ampliou o rol dessas penas, cuja aplicação também foi sensivelmente incentivada pela lei dos Juizados Especiais. De nada adianta, todavia, uma legislação avançada se não é colocada em prática. Assim, em 2000, o Ministério da Justiça instituiu um órgão próprio para a execução do Programa Nacional de Apoio às penas alternativas, a CENAPA - Central Nacional de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas. A partir disso, celebraram-se convênios com os Estados para o estabelecimento de Centrais de Apoio, junto às respetivas Secretarias de Estado e Tribunais de Justiça. Os recursos provenientes do Ministério da Justiça, em razão de tais convênios, viabilizaram a constituição de mínima estrutura física e da contratação de pessoal técnico especializado para acompanhamento e fiscalização do cumprimento da execução das penas e medidas alternativas. Em 2001, a CENAPA constituiu a Comissão Nacional de Apoio, formada pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público e por técnicos em matéria de execução, para fins de construção de política pública eficaz na área das penas alternativas.

45

aberto se não existem entidades vinculadas ao Judiciário onde tais medidas possam ser

cumpridas em conformidade com o que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Em similar sentido, nada resolve o pronunciamento judicial lançado em demanda

possessória movida em face daqueles que se convencionou denominar “sem-teto” ou “sem-

terra” que simplesmente ordene a reintegração de posse, em estrito cumprimento às

diretivas legais, sem qualquer tentativa de mediação e/ou conciliação que inclua a

participação de órgãos públicos envolvidos com a matéria.83 Talvez mais preocupante ainda

seja o entendimento jurisprudencial segundo o qual o juiz não deve se imiscuir em questões

de políticas públicas – dentre as quais encaixam-se as lides fundiárias acima referidas –

cabendo-lhe tão-somente devolver a tensão à sociedade, impondo às partes o aguardo por

eventual atuação do Executivo.84

Relativamente à noção de justiça democrática, considerando a amplitude semântica

da expressão, vários são os contornos que lhe se pode conferir. José Nalini, como já referido

anteriormente, ao apontar a reforma do judiciário como alavanca de democratização,

enuncia os seguintes instrumentos de inspiração democrática trazidos ao corpo

constitucional pela Emenda n. 45: a eleição de metade do órgão especial, a justiça itinerante, 83 Digno de nota, quanto a esse ponto, a mediação conduzida pelo magistrado Alexandre Kreutz, nos autos do processo de reintegração de posse na Fazenda Coqueiros, por ocasião de invasão pelo MST ocorrida em abril de 2004. Previamente à análise da concessão ou não da liminar postulada, restou designada audiência de conciliação em que, após duas horas de diálogo com as partes, com o Secretário da Reforma Agrária e do Cooperativismo e com o Superintendente do INCRA, aviou-se um acordo parcial, comprometendo-se o INCRA a exibir em trinta dias área concreta destinada ao assentamento das famílias; os requeridos, a não ampliar a área de ocupação; e os requerentes, a aguardar o referido prazo (processo n° 009/1.04.0001238-8, 1ª Vara Cível da Comarca de Carazinho).84 Em sentido contrário ao posicionamento judicial mencionado, releva mencionar decisão interlocutória proferida nos autos de interdito proibitório ajuizada em face dos assim qualificados “sem-teto”, em que restou indeferido o pleito liminar. Dentre os argumentos esgrimidos pelo juiz João Ricardo dos Santos Costa, vale trazer à colação, pela sua consistência e sintonia à perspectiva sustentada nesse texto, o seguinte trecho da decisão: “o argumento contido na inicial de que a liminar traria tranqüilidade social, não somente à autora, mas para os juízes, policiais e serventuários da justiça, é fictício. A decisão descompromissada com a noção prospectiva do Estado, constante no art. 3°, inciso III da Constituição Federal, não traz tranqüilidade a ninguém, ao contrário perpetua a miséria já estrutural que abala nossos tempos. A justiça e os juízes somente lograrão tranqüilidade quando exararem a decisão que tirar o último homem da miséria, enquanto tal não ocorre todos estaremos acuados e intranqüilos, inclusive nós, os juízes, que por vontade do nosso povo gozamos de prerrogativas que nos garantem decidir com independência, exatamente para mudar o que anda muito mal”(SENTENÇAS E DECISÕES DE PRIMEIRO GRAU. Porto Alegre: Departamento de Artes Gráficas do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul, n. 13, 2005, p. 170-171).

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o Conselho Nacional da Justiça, a autonomia das Defensorias Públicas, a razoável duração

do processo, as ouvidorias, a publicidade das decisões administrativas tomadas pelo

Tribunal (inclusive as de caráter disciplinar), além da criação da Escola Nacional de

Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados.85

Boaventura de Souza Santos, por sua vez, ao discorrer sobre a democratização da

administração da justiça, reconhece que essa democratização apresenta duas vertentes. A

primeira inclui uma série de orientações, tais como o maior envolvimento dos cidadãos –

individualmente ou em grupos organizados86 – na administração da justiça; a simplificação

dos atos processuais; o incentivo à conciliação dos litigantes; a ampliação dos poderes dos

magistrados; e um maior dimensionamento dos conceitos de legitimidade das partes e do

interesse de agir. No que tange à segunda vertente, o autor português enfatiza a necessidade

de criação de um serviço de prestação de serviço de assistência jurídica que garanta a

igualdade decesso à justiça das partes dos distintos estratos sociais.87

3.3 Acesso do povo à justiça

Em termos bastante singelos, quando se perquire sobre como tornar a justiça mais

democrática, associa-se a essa indagação as idéias de acesso do povo à justiça e acesso da

85 NALINI, José Renato. A democratização da Administração dos Tribunais. In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004, op. cit., p. 159-184. 86 A própria ação civil pública revela-se como instrumento processual adequado para a participação de indivíduos organizados em associações (que cumpram com os requisitos do art. 5° da lei 7.347/85) na defesa de interesses coletivos. Aliás, como acertadamente sustenta Gilberto Schäefer, a ação civil pública revela-se um importante instrumental de acesso à justiça, permitindo que as partes ingressem coletivamente em juízo na proteção de interesses difusos e coletivos, ao invés de buscarem a tutela de seus direitos de maneira individualizada. Isso lhes permite redução de custos com perícia, por exemplo, os isenta do pagamento de custas processuais e honorários advocatícios (devidos apenas em caso de má-fé), afastando outrossim entraves psicológicos e garantindo maior paridade entre os litigantes (Ação civil pública e controle de constitucionalidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 26).87 SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução à sociologia da administração da justiça. In: Revista de Processo, n. 37, ano 10. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan./mar. 1995, p. 132. O tema também é abordado por Cappelletti na obra Acesso à justiça, op. cit.

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justiça (aqui personificada na figura do magistrado) ao povo. Maria Teresa Sadek, a

propósito da primeira idéia, sustenta que

não haveria justificativas aceitáveis para que todo e qualquer tipo de conflito tivesse que necessariamente adentrar as portas da Justiça estatal. Dessa forma, acesso à justiça tem um significado mais amplo do que acesso ao Judiciário. Acesso à justiça significa a possibilidade de reconhecer direitos, de procurar canais civilizados para a solução pacífica de ameaças ou de impedimento a direitos e alta probabilidade de aceitar a decisão. Assim, tem-se que considerar uma variada gama de instituições que se dedicam de forma exclusiva ou dentre suas atribuições a ofertar serviços de justiça. É claro que a ampliação do conceito acesso à justiça implica reconhecer a legitimidade de canais não judiciais como também a legitimidade de distintas naturezas de soluções ofertadas.88

Ainda segundo o magistério da pesquisadora, os canais não judiciais de resolução de

controvérsias, que vêm paulatinamente ganhando terreno no cenário mundial89, conservam

um imenso espaço de atuação a ser preenchido pelo Ministério Público, pelas Defensorias

88 SADEK, Maria Teresa. Efetividade de direitos e acesso à justiça. In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004. Pierpaolo Bottini e Sérgio Rabello (coord.). São Paulo: Saraiva, 2005, p. 280. Vale assinalar a percepção de Francisco das Chagas Lima Filho ao abordar o tema dos diversos planos de estudo do acesso à justiça, em que aponta que essa temática terá “tantas e variadas conotações, conforme venha ser feito por um leigo, um jurista dogmático, um sociólogo, um filósofo ou um político”(Acesso à justiça e os mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos, op. cit., p. 150).89 A questão já foi brevemente abordada no capítulo anterior. As soluções não judiciais de resolução de controvérsias, na verdade, segundo Christopher Moore, têm “uma história longa e variada em quase todas as culturas do mundo. Culturas judaicas, cristãs, islâmicas, hinduístas, budistas, confucionistas e muitas culturas indígenas têm longa e efetiva tradição na prática da mediação” (O processo de mediação: estratégias práticas para a resolução de conflitos. Tradução de Magda França Lopes. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 1998, p. 32). Ainda segundo o autor, somente a partir da virada do século XX a mediação tornou-se formalmente institucionalizada (op. cit., p. 34.). O fenômeno conquistou realce a partir do advento dos “ADR” (alternative dispute resolution) nos Estados Unidos. A difusão desse novo modelo naquele país deve ser vista sob a perspectiva das peculiaridades do sistema judicial norte-americano. Meios alternativos de solução de conflitos, paralelos ao sistema tradicional, todavia, também já vêm sendo experimentados – embora ainda não com idêntico êxito ao vislumbrado nos Estados Unidos - em vários países, como revela Eugênio Facchini Neto, em sua tese de doutorado (“Ordinamenti giudiziari comparati. Stati Uniti, Francia e Italia”, op. cit., p. 138 e 263). O autor alude também a possíveis razões que determinaram (e determinam) a “fuga da jurisdição”, contrapondo os fatores que ainda dificultam o ingresso dos ADR na cultura européia.

48

Públicas90, pela Ordem dos Advogados do Brasil, pelos Centros Acadêmicos ligados a

Faculdades de Direito, pelos serviços de atendimento da cidadania – de responsabilidade

direta do executivo –, e pelas organizações não governamentais. Nesse aspecto, refere que

as práticas voltadas à busca de soluções pacíficas em âmbito extrajudicial que se espera

dessas instituições, contribuirão, em maior ou menor medida, para a pacificação das

relações sociais, além de fortalecer as lideranças locais e propiciar a criação de espaços

públicos estatais e não estatais para a resolução de conflitos.91

É certo que, por vezes, a iniciativa de aproximação do cidadão à justiça parte da

própria comunidade, que se empenha em criar seus próprios mecanismos de composição de

litígios. O Programa Balcão de Direitos, por exemplo, instituído há oito anos nas favelas do

Rio de Janeiro pela organização não governamental Viva Rio, conta já com mais de 70.000

atendimentos realizados, dentre os quais a grande maioria relacionados a problemas de

convivência social e familiar.92 Outrossim, digno de nota o trabalho que vem sendo

desenvolvido pela THEMIS em três importantes programas, quais sejam: Promotoras

Legais Populares – PLPs –, Advocacia Feminista e Estudos e Publicações.93 Há ainda de se

90 Sadek cita, como exemplo, a atuação dos promotores fora do gabinete, com ênfase “para as soluções a partir de acordos entre as partes em litígio, para os procedimentos administrativos, para a requisição de providências aos órgãos públicos e privados e para os demais instrumentos extrajudiciais”. No caso dos defensores públicos, sugere que “(...) tal como acontece em relação ao Judiciário e ao Ministério Público, os integrantes das Defensorias Públicas muitas vezes vão além de suas atribuições formais. Assim, esclarecem sobre direitos, resolvem questões sem a necessidade de iniciar um processo judicial, orientam sobre os mais variados temas relacionados à legalidade.” (Efetividade de direitos e acesso à justiça, op. cit., p. 283).91 SADEK, Maria Teresa. Efetividade de direitos e acesso à justiça. In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004. Pierpaolo Bottini e Sérgio Rabello (coord.). São Paulo: Saraiva, 2005, p. 287.92 FALCÃO, Joaquim. Balcão de Direitos. Disponível em <www.espacovital.com.br>. Consulta em 01.06.06. O autor menciona ainda que o Programa disponibiliza cursos de capacitação de “agentes de direito” (valendo-se de um paralelismo com os “agentes da saúde”), encarregados estes de “trazer o mundo dos direitos para dentro do mundo das favelas”. Mais do que conhecimento jurídico, para a solução dos conflitos o autor enfatiza que basta “um pouco de bom senso, técnica de negociação, atenção para a eqüidade, disposição para ouvir e certamente muita paciência”. São esses alguns dos componentes citados por Christopher Moore – mediador norte-americano mundialmente conhecido, planejador de sistemas de administração de disputas, instrutor e autor no campo do manejo de conflitos – como necessários a um “bom mediador”. Segundo o autor – apoiado na SPIDR Commission on Qualifications, não há necessidade de diplomas acadêmicos formais; recomenda-se, isso sim, qualificações baseadas no próprio desempenho do aspirante à função (O Processo de Mediação: estratégias práticas para a resolução de conflitos. 2.ed. Tradução de Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 1998, p. 307-308). 93 Informações obtidas na parte relativa à “Apresentação” do primeiro caderno THEMIS Gênero e Direto, intitulado “Crimes Sexuais”, publicado em março de 2000 (Porto Alegre, Sulina, 2000).O primeiro programa

49

mencionar – em rol meramente exemplificativo – os esforços empenhados pela organização

não governamental Instituto de Acesso à Justiça – IAJ – na efetivação de direitos sociais e

promoção de cidadania.94.

Cuida-se de práticas que contam com a parceria de órgãos públicos e privados e

eventualmente com recursos de origem governamental, e que vem obtendo significativo

êxito nas propostas firmadas. Contudo, na esteira do magistério de Joaquim Falcão, tais

atuações não tem o condão de eximir o Judiciário da sua parcela de responsabilidade em

implementar mudanças tendentes a facilitar o acesso da justiça ao povo.

3.4 Acesso da justiça ao povo

A necessidade de se ampliar o acesso da justiça ao povo ganha relevância e

consistência principalmente quando se percebe a dificuldade experimentada por integrantes

da sociedade civil em, de forma autônoma, tomar a iniciativa de promover ações que

contribuam para a realização da justiça. Existem organizações que vêm desempenhando

louváveis atuações no campo jurídico-social – como já referido supra –, mas são ações

pontuais e, em regra, pouco abrangentes.

– como será detalhado mais adiante – objetiva capacitar mulheres, líderes comunitárias, para defenderem seus direitos; o segundo deles visa sensibilizar os operadores do direito para questões ligadas à violência contra a mulher; o último busca organizar seminários, cursos e palestras como palco de discussão de temas referência na luta pelos direitos do público feminino. 94 Vale referir o Projeto-Efetividade de Políticas de Atenção à Criança e ao Adolescente: interfaces, limites e possibilidades, desenvolvido no período de janeiro de 2004 a fevereiro de 2005, cuja experiência restou socializada na obra Defesa Transdisciplinar de Jovens em Conflito com a Lei: relato de uma experiência. Instituto de Acesso à Justiça. Adriano Martins da Silva et al (org.) Porto Alegre: Nova Prata, 2005.

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É nesse contexto que se passa a defender a premência por um envolvimento mais

ativo dos magistrados com a comunidade para a qual servem e na qual se encontram

inseridos. Um envolvimento que lhes imprime maior legitimação democrática quando do

exercício da atividade jurisdicional, além de acarretar conseqüências diretas na própria

efetividade das decisões judiciais, como adiante se ilustrará. Um envolvimento, ainda, que

lhes permite o cumprimento da responsabilidade cidadã em que estão investidos,

paralelamente à responsabilidade jurisdicional inerente às suas funções. Essa dupla

responsabilidade é enfatizada por Joaquim Falcão ao tratar do sistema “Poder Judiciário”

que, segundo ele, revela-se inserido dentre de um sistema maior, qual seja, o sistema social.

Ainda consoante o seu magistério, essa dupla obrigação os impele a participar da reforma

do sistema judicial, até porque “muitas vezes, a atuação inovadora dos juízes não apenas

prescinde da mudança na legislação, como também a antecipa [grifei].”95

Nessa perspectiva, cumpre não olvidar que o Judiciário integra o aparato estatal. É

um dos três poderes, a quem foi consignado o exercício da jurisdição. Encontra-se

submetido aos ditames constitucionais, assim como os demais órgãos estatais, os quais lhe

servem como parâmetro e como guia para a criação da solução mais adequada aos litígios

que lhe são postos à apreciação.

Para viabilizar o exercício de suas funções jurisdicionais com independência e

autonomia em relação aos demais poderes e aos membros da própria organização judiciária,

o constituinte assegurou-lhe três garantias fundamentais: vitaliciedade, inamovibilidade e

irredutibilidade de subsídios. O juiz, ao contrário do legislador e do executivo, encontra a

95 FALCÃO, Joaquim. Estratégias para a reforma do Judiciário. In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004, op. cit., p. 25. Como ilustração das mudanças antecipadas pela jurisprudência, cite-se a introdução das cláusulas gerais da boa-fé objetiva e do abuso de direito no novo diploma civil, a incorporação nesse mesmo Código da responsabilidade civil objetiva, do instituto da lesão e da teoria da imprevisão. Eugênio Zaffaroni, sobre o ponto, elenca algumas criações jurisprudenciais com posterior recepção legal no ordenamento argentino, a saber: “a ação de mandado de segurança, o recurso extraordinário em face de sentença arbitrária e gravidade institucional, o abuso de direito, a imprevisão, a lesão, a responsabilidade das pessoas jurídicas por ato ilícito, a atualização por depreciação monetária, a ‘desindexação’, o poder de polícia, as nulidades administrativas e a executoriedade de sentenças contra a União”(Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. Tradução de Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 25).

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fonte de sua legitimação diretamente na constituição. Trata-se de uma legitimação técnica,

auferida através de concurso público acessível a qualquer bacharel em direito; e de uma

legitimação substancial, qual seja, a de ser ele o guardião da Constituição, zelando para que

o horizonte ali traçado seja fielmente observado por todos os poderes.

O magistrado não se submete, pois, ao processo eleitoral. Inobstante também possa

ser considerado um ator político, encontra-se afastado das disputas traçadas nos palanques

eleitorais com o objetivo preciso de obtenção de um número de votos tal que assegure aos

candidatos um mandato eletivo. O juiz, nesse sentido, ocupa uma posição avantajada em

relação aos legisladores e administradores. Por não necessitar do voto dos cidadãos para o

exercício de suas funções, goza de uma notável liberdade na tomada de decisões,

legitimadas pela sua fundamentação e não pelo maior ou menor apoio popular.

O magistrado é imparcial por natureza. Ocupa uma posição de extrema relevância

no Estado Democrático de Direito por garantir o exercício dos direitos fundamentais aos

cidadãos que acedem ao Judiciário. Mas não só. Ninguém discute o poder do cargo em que

se encontra constitucionalmente investido. Um poder que lhe permite, tradicionalmente,

ditar a solução para as controvérsias que lhe são submetidas, vinculando as partes à sua

decisão. Esse mesmo poder, todavia, também pode – e deve – ser direcionado para outras

atividades de caráter não propriamente jurisdicional, mas que estão intimamente ligadas à

idéia de uma justiça mais célere e próxima do cidadão.

O que se pretende, em uma síntese apertada, é sustentar a tese de que, para enfrentar

a crise em que se coloca o Judiciário – cujas faces foram traçadas no capítulo anterior – faz-

se premente uma atitude mais ativa por parte daqueles que compõem os quadros desse

poder. Atitude essa que supera o bom desempenho de uma atividade jurisdicional

informada por tudo aquilo que restou externado a respeito do juiz “resolutor de conflitos”.

Ou seja, se a fase do juiz “aplicador da lei” mostra-se irremediavelmente suplantada, nem

por isso a situação encontra-se devidamente equacionada com a assunção do novo modelo

52

de magistrado. É preciso algo mais; é necessário que seja dado um outro passo, mais

ousado, mais complexo, mais difícil, cuja iniciativa pertence ao Judiciário.

Dentro desse espírito, parece-me pertinente a série de metáforas veiculadas por

Horácio Rodrigues96 para definir o perfil adequado do magistrado do terceiro milênio: um

magistrado alpinista, navegador, viajante, empreendedor e malabarista. “Alpinista” pois

deve avaliar riscos, alternativas e condições ambientais; lida com a equação custo/benefício

e trabalha em equipe, com a equipe e para a equipe. “Navegador” haja vista a necessidade

de se atualizar do ponto de vista tecnológico, manter sempre o norte, dominar os

instrumentos de navegação disponíveis, definir rotas alternativas e estabelecer quando é

melhor parar ou continuar navegando, comunicando com clareza sua posição. “Viajante”

por se encontrar aberto a novas culturas, novos hábitos e costumes, aproveitando cada

viagem como um aprendizado. “Malabarista” pela flexibilidade e agilidade que devem ser

empregadas no desenvolvimento de atividades simultâneas, sem que isso acarrete a perda

da noção a prioridade. Por fim, exige-se dos novos magistrados competência em gerir,

motivar, unir e trabalhar com pessoas, além de ter de decidir com variáveis não dominadas,

o que é próprio do empreendedor. O autor finaliza o seu artigo sustentando que

o juiz do futuro deverá ser flexível, para bem transitar no mundo em ebulição. Suscetível de se adaptar a tais transformações, sabendo distinguir entre o permanente e o efêmero. Capaz de identificar os modismos sazonais e de saber vencê-los. Provido de condições para planejar, mas também para saber improvisar. Atento à realidade circundante, num país de extrema heterogeneidade e marcado por uma iníqua distribuição de renda. Num país que também dele, juiz, reclama empenho em construir uma sociedade justa, fraterna e pluralista, com eliminação dos preconceitos e das desigualdades. Um projeto pessoal de educação permanente poderá transformar o juiz brasileiro nesse agente de redenção de seu semelhante. Nesse fator de resgate de seus irmãos. Um projeto pessoal, por ele meditado e assumido. Os homens, como as instituições, se não tiverem um projeto próprio, estarão contidos em projeto alheio. E neste, poderão perder a atuação protagônica, para uma figura subalterna e esmaecida. 97

96Nalini, José Renato. O magistrado do terceiro milênio. In: O Direito no terceiro milênio. Rodrigues, Horácio Wanderlei (org.). Canoas: Ulbra, 2000, p. 137-140.97Nalini, José Renato. O magistrado do terceiro milênio, op. cit., p. 140.

53

Essa assunção do papel de protagonista num cenário em que se pretende uma justiça

eficiente e democrática demanda um novo comportamento do magistrado, mais ativo e

participativo, que, além de prescindir ou antecipar reformas legislativas, corrobora,

outrossim, para o sucesso das mudanças já implementadas pelo Legislativo. Nesse sentido,

insta reproduzir as palavras de Pierpaolo Bottini, ao comentar sobre a insuficiência de um

sistema legal excelente se não houver, paralelamente, um empenho dos magistrados em

participar efetivamente da reforma do Judiciário:

de nada adianta um sistema legal excelente se não pudermos modernizar a administração da justiça e a gestão dos processos, aplicando-se inovações tecnológicas e sistemas de informática que otimizem os atos judiciais. A concretização da reforma do Judiciário está na mudança do dia a dia, do cotidiano dos cartórios, das varas, dos ofícios e dos tribunais. E esta reforma já acontece, mas silenciosamente. Juízes, membros do Ministério Público e outros operadores do direito, muitas vezes com a colaboração da sociedade civil, desenvolvem projetos importantes de racionalização e expansão dos serviços judiciais, com impacto significativo na eficiência da prestação jurisdicional.98

O jurista encerra a sua colocação fazendo menção ao Prêmio Innovare, criado para

identificar, premiar, sistematizar e multiplicar experiências pioneiras e bem-sucedidas de

gestão do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, que contribuam

para a modernização e melhoria da qualidade e da eficiência dos serviços da Justiça. Os

critérios para a escolha do vencedor baseiam-se na eficiência, qualidade, criatividade,

exportabilidade, satisfação do usuário, alcance social e desburocratização do projeto

desenvolvido. Ainda consoante o magistério do autor, conhecer e disseminar são os

98 O trecho encontra-se escrito sob o título “Parceiros Institucionais”, na obra A reforma silenciosa da justiça. Centro de Justiça e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2006.

54

conceitos sobre os quais o Prêmio desenvolve suas atividades, buscando fomentar uma

reformulação na atividade administrativa e gerencial da Justiça.

3.5 Prêmio Innovare: algumas práticas propulsoras de uma justiça mais democrática e

eficiente

As práticas premiadas pelo projeto Prêmio Innovare encontram-se descritas em livro

recentemente publicado99, classificadas sob as categorias de juiz, juiz coletivo, tribunais e

juizados especiais. Um olhar mais profundo sobre a dinâmica desse conjunto de

experiências revela que todas elas sustentam-se sobre algumas noções fundamentais para o

êxito da atividade desenvolvida.

Primeiramente, enfatiza-se a importância do trabalho em grupo, envolvendo a

participação de representantes das mais diversas instituições, dentre as quais a Defensoria

Pública, o Ministério Público, órgãos dos Poderes Executivo e Legislativo e as organizações

não-governamentais. A par disso, aponta-se como indispensável o desenho do diagnóstico

da situação a ser enfrentada com vistas à busca de alternativas sustentáveis e eficientes para

superar ou ao menos minimizar os problemas identificados. Para tanto, sinaliza-se como

fator essencial nesse processo a atuação inovadora e criativa dos magistrados (e/ou também

das entidades acima referidas), que passam a exercer um papel de liderança e coordenação

dos vários agentes envolvidos com o desafio proposto. Outro aspecto salientado centra-se

na necessária institucionalização dos projetos que alcançaram, mesmo se parcialmente, o

propósito almejado de forma a garantir-lhes independência em relação à alternância de

99 A reforma silenciosa da justiça, op. cit.

55

forças políticas e continuidade que resista ao afastamento inevitável dos seus idealizadores

com o passar do tempo.

3.5.1 Justiça itinerante

Naturalmente, dependendo do contexto geográfico em que se concentram as

atenções, diferem-se os problemas a serem primordialmente atacados. No Estado do

Amapá, por exemplo, assumem relevância práticas itinerantes em que a justiça desloca-se

de carro, barco de passageiros ou balsa, para efetuar atendimento in loco, em localidades de

difícil acesso e prestação jurisdicional deficitária. Em tais espaços públicos improvisados

não só se resolvem conflitos jurídicos, mas também encontram-se disponibilizados outras

espécies de serviços, desde consultas médicas ou odontológicas até atividades de ordem

cultural e educacional, além da expedição de certidões de nascimento, casamento,

documentos de identidade ou carteiras profissionais.100 Tal prática só é possível em virtude

das parcerias da Justiça do Amapá com vários órgãos que confiam na potencialidade do

projeto. Até maio de 2004, havia mais de 20 entidades parceiras, eventuais ou permanentes,

dentro os quais situam-se o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Departamento de

Identificação Civil, a Justiça Eleitora, o Exército, a Secretaria de Saúde do Município, a

Secretaria de Saúde do Estado, a Pastoral da Criança, a Companhia de Água e Esgoto, a

Secretaria de Educação, o INSS, o SESC, o SENAC e algumas faculdades.101

As práticas itinerantes também já vem sendo desenvolvidas pelo Tribunal Regional

Federal da 1ª Região e pelos Tribunais de Justiça dos Estados da Bahia, do Rio Grande do

Norte, do Rio de Janeiro, do Mato Grosso do Sul, do Pará, dentre outros Estados que 100 A reforma silenciosa da justiça, op. cit., p. 147. 101 A reforma silenciosa da justiça, op. cit., p. 149.

56

implementaram a experiência.102. Em São Paulo, por exemplo, desde 1998 encontra-se em

funcionamento o Juizado Itinerante, que opera dentro de um trailer, percorrendo a periferia

da cidade.103 Segundo aponta Viviane Ruffeil Pereira, o surgimento da justiça itinerante está

umbilicalmente ligado aos Juizados Especiais. Com efeito, afirma que

na grande maioria dos projetos em prática no País, a competência da justiça itinerante se confunde com a competência dos Juizados Especiais (...) Há, no entanto, histórico de tribunais que alargaram a competência da justiça itinerante, extrapolando as matérias afetas ao Juizado Especial. Exemplo disso é o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, que prevê a atuação da justiça itinerante também nas causas referentes a alimentos, divórcio e separação judicial, registro civil de adultos, infância e juventude, casamentos, retificação de registro, alvará e guarda, interdição e adoção, antecedendo, desse modo, o modelo posteriormente implementado pela EC n. 45.104

Percebe-se, assim, que a reforma do Judiciário105 consagrou um modelo de prestação

judicial já implementado em vários pontos do país. Ainda conforme o entendimento da

referida autora, louvável a iniciativa na medida em que obriga todos os tribunais a instituir a

justiça itinerante e a colocá-la em prática. É de se questionar, inobstante, a

operacionabilidade do mandamento constitucional em todas as localidades do Brasil,

mormente quando (esse mandamento é) conjugado à outra diretriz – de idêntica hierarquia –

que prima pela eficiência da administração pública e dos serviços públicos por ela

102 PEREIRA, Viviane Ruffeil Teixeira. Justiça itinerante. In: Reforma do Judiciário comentada. VELOSO, Zeno e SALGADO, Gustavo Vaz (coord.).São Paulo: Saraiva, 2005, p. 248.103 LIMA FILHO, Francisco das Chagas. Acesso à justiça e os mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos, op. cit., p. 261-262.104 PEREIRA, Viviane Ruffeil Teixeira. Justiça itinerante, op. cit., p. 248-249. Sobre a justiça itinerante, consultar também Jasson Ayres Torres, O acesso à justiça e soluções alternativas.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 81-85.105 A Emenda Constitucional n° 45 obriga os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho e os Tribunais de Justiça a instalarem justiça itinerante com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos comunitários. Qualquer um desses tribunais também poderá funcionar descentralizadamente, constituindo Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo.

57

prestados. Em Estados que integram a região sul do país, por exemplo, caracterizados por

um contexto geográfico em tudo dessemelhante àquele vislumbrado na região norte – um

dos locais onde a justiça itinerante ostenta grande utilidade –, assume maior plausibilidade

ações voltadas à criação de novas comarcas ou de foros regionais – como ocorreu na capital

gaúcha – ou de incentivo a programas de formação de “agentes do direito”, a exemplo da

experiência já citada desenvolvida pelo “Balcão de direitos”, no Rio de Janeiro. Tendo em

vista essas considerações de ordem prática, não impressionará se o dispositivo

constitucional que determina a instalação da justiça itinerante sofra o mesmo destino (ou

seja, permaneça “letra morta”) do art. 126 do mesmo diploma106.

3.5.2 Juizado volante ambiental

No Mato Grosso, a seu turno, em razão da vasta extensão territorial que abrange três

ecossistemas – o pantaneiro, o amazônico e os cerrados – sobreleva a questão ambiental,

mormente porque esse Estado também se constitui fronteira agrícola e vem apresentando

grande crescimento da população, o que coloca em risco o patrimônio hídrico e natural.

Tais peculiaridades impeliram o Tribunal de Justiça do Estado a criar a Vara Especializada

do Meio Ambiente e o Juizado Volante Ambiental, o qual se desloca ao longo do território

para processar e julgar feitos cíveis e criminais relacionados à matéria ambiental

considerada de menor complexidade. Nesse sentido,

106 O art. 126, caput, conservava a seguinte redação: “para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça designará juízes de entrância especial, com competência exclusiva para questões agrárias”. A partir da EC n. 45, a leitura passa a ser da seguinte forma: “para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça proporá a criação de varas especializadas, com competência exclusiva para questões agrárias”. Somente o tempo para revelar a operacionabilidade do dispositivo constitucional em todo o território brasileiro. Provavelmente, as varas especializadas continuarão a ser instituídas somente naqueles Estados conhecidos por seus conflitos de terra, como o Estado do Pará, que já conta com varas instaladas (Reforma do Judiciário Comentada, op. cit, p. 257).

58

aparelhado com moderna estrutura de transporte, comunicação e informática o Juizado Volante chega facilmente ao local da ocorrência ambiental, demonstrando ostensivamente a presença do Judiciário e disponibilizando rapidamente a prestação jurisdicional. Com essa dinâmica, o juizado transmite a sensação de tranqüilidade, confiança e dignidade aos cidadãos da localidade, o que já torna suficiente sua existência. Sua mobilidade permite ainda a constatação in loco da degradação ambiental, seja ela antiga ou nova, viabilizando a adoção imediata de medidas preventivas e repressivas. 107

Importante referir que a atividade móvel desenvolvida pela JUVAM não se presta

somente à constatação de atividades ou comportamentos lesivos ao meio ambiente, mas

opera igualmente para estreitar as distâncias entre o cidadão e a Justiça, difundindo a

legislação ambiental.

3.5.3 Centro de justiça terapêutica

Outra experiência divulgada pelo Prêmio Innovare é o Centro de Justiça

Terapêutica108, implantado em abril de 2001 pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco após

estudos realizados com o Ministério da Justiça, com a Secretaria Nacional de Justiça e com

a Secretaria Anti-Drogas, vinculada esta ao Gabinete Institucional da Presidência da

107 A reforma silenciosa da justiça, op. cit., p. 43. A equipe da JUVAM é formada por um conciliador, um oficial de justiça, um escrevente, um perito ambiental e um representante da Curadoria de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público Estadual.108 A reforma silenciosa da justiça, op. cit., p. 157-177.

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República. Essa estrutura dedica-se a infratores que tenham praticado delitos de menor

potencial ofensivo por estarem sob a influência de substância entorpecente ou para sustentar

seu vício. Tais infratores são encaminhados pelas varas e juizados criminais da região

metropolitana de Recife a esse Centro, onde lhes é disponibilizado tratamento

antidrogadição substitutivo ao encarceramento. O Centro estabelece contatos e parcerias

com reconhecidos centros de tratamento governamentais e não-governamentais, possuindo

também equipes multidisciplinares encarregadas da avaliação, acompanhamento, sugestão

do tratamento e assistência ambulatorial dos pacientes encaminhados pelas diversas

unidades judiciárias.

Pertinente referir que a implantação desse novo paradigma consubstanciado na idéia

de uma justiça terapêutica não demanda a adoção de legislação específica – embora fosse

interessante a sua previsão –, tampouco a criação de varas especializadas na matéria. O

próprio sistema jurídico brasileiro já fornece sustentação legal para a imposição de

tratamento compulsório109, o que pode ser realizado por qualquer juizado que vislumbre a

necessidade de sua aplicação. O importante é a capacitação dos operadores do sistema que

os torne multiplicadores desse novo paradigma, o que deve vir acompanhado de esforços

direcionados à criação de uma rede de provedores de tratamento e de um sistema de

avaliação e de controle das medidas terapêuticas estabelecidas.

Essa exigência alicerçou a criação pela Corregedoria-Geral de Justiça do Rio Grande

do Sul, do Centro Interdisciplinar de Apoio para Encaminhamento à Rede Biopsicossocial

(CIARB). Essa instituição – que, em termos de campo de atuação, supera a experiência

supramencionada110 – passou a funcionar como centro de triagem e encaminhamento para as 109 Essa possibilidade de aplicação de tratamento contra drogadição é permitida pela lei nas seguintes hipóteses: como medida sócio-educativa com base no art. 112, VII c/c art. 101, V, da lei 8.069/90; como condição imposta por ocasião da suspensão condicional do processo ou da transação penal previstas na lei 9.099/95; como condição para a concessão do sursis do art. 71 do Código Penal; como pena restritiva de direito, especificadamente a limitação de fim de semana, do art. 44 do diploma penal (In: Justiça Terapêutica: perguntas e respostas. Disponível em www.anjt.org.br. Acesso em 12 mar.04). Ver também a lei recém editada de n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários dependentes de drogas, dentre outras providências.110 As vítimas, por exemplo, também podem ser encaminhadas ao CIARB.

60

entidades conveniadas, públicas e privadas111 de pessoas provenientes das varas de família,

dos juizados especiais criminais, da vara criminal e do juizado da infância e juventude,

envolvidas com drogas lícitas ou ilícitas, ou com violência doméstica ou social. Isso ocorre

quando o juiz que preside o processo, ao verificar a importância da aplicação de uma

medida biopsicossocial112, direciona o sujeito ao CIARB, podendo inclusive, em razão disso,

deixar de imprimir tramitação normal ao feito. Ao final do período de atendimento, ao juiz é

facultado arquivar os autos, com a concordância do órgão ministerial, ou retomar o curso do

processo. Segundo a juíza-corregedora do Estado do Rio Grande do Sul – Vera Lúcia Feijó,

a Justiça Terapêutica tem como meta atender casos, de forma útil, cuja solução passa por uma intervenção biopsicossocial e não meramente jurídica. Tais casos aparecem nas Varas de Família, nas Varas da Infância, nos Juizados Especiais Criminais e nas Varas Criminais e até nas Varas Cíveis. Exemplos de situações em que se mostra útil a intervenção biopsicossocial: relacionamentos familiares conflitivos entre cônjuges, entre pais e filhos; delitos praticados sob efeitos de álcool ou outras drogas; porte de entorpecentes; lesões corporais nas relações familiares (...) Empiricamente, considerando o número de casos que encaminhei ao CIARB, considero que os resultados foram muito bons, a maioria apresentou uma boa mudança no comportamento e presencie cenas de extrema gratificação ao ouvir de pais que se diziam agradecidos ao Poder Judiciário pela oportunidade dada aos filhos. Vi homens e mulheres recuperar a auto-estima e reencontrar forças para tocar a vida para frente.113

Insta referir que esse modelo foi importado dos Estados Unidos, onde surgiram, na

década de 90, as denominadas “Juizados de Tóxicos” (tradução não literal de Drug Courts),

responsáveis por submeter a tratamento antidrogadição, em substituição ao encarceramento,

pessoas acusadas do cometimento de crimes graves em razão da dependência química. A

experiência foi primeiramente conduzida na cidade de Miami como tentativa de fazer frente 111 Dentre as parcerias institucionais, colocam-se os Narcóticos Anônimos, Alcoólicos Anônimos, Amor Exigente, Domus, CAIF e Cruz Vermelha. 112 A exemplo dos tratamentos contra drogadição, participação em grupos de auto-ajuda etc.113 Justiça Terapêutica: uma nova forma de solucionar conflitos (JORNAL DA AJURIS, ano XII, n. 235, 5ª semana, mar.2006, p. 12. )

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às evidências apontadas pelas estatísticas criminais no sentido de que o problema social

ligado ao uso e consumo de drogas crescia na medida em que vinha enfrentado

exclusivamente mediante uma abordagem repressivo-prisional. Para confrontar essa

situação, promotores e juízes romperam com o entendimento tradicional segundo o qual

qualquer tratamento médico somente produz resultados caso haja adesão voluntária do

paciente. Aliás, segundo o presidente da Associação Nacional de Justiça Terapêutica114, as

modernas técnicas psiquiátricas demonstram que, em se tratando de dependência de drogas,

lícitas ou ilícitas, algum tratamento sempre é melhor do que nenhum tratamento, sendo que

o primeiro pode ser compulsório porque se está afastando alguém de uma fonte de prazer 115.

É essa, pois, a idéia subjacente à lógica da justiça terapêutica.

3.5.4 Práticas de conciliação

Práticas direcionadas à redução dos acervos processuais e à agilização da prestação

jurisdicional mediante a realização de sessões prévias de conciliação entre as partes, em

processos de direitos transacionáveis e nos feitos de família, também foram destacadas pelo

Prêmio.116 Dentre elas, fez-se menção ao “Projeto Conciliação”, criado pelo Tribunal de

114 A Associação Nacional de Justiça Terapêutica é uma organização não governamental que reúne promotores de justiça, juízes de direito, defensores públicos, advogados, policiais civis e militares e profissionais da área da saúde, como psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais do Brasil inteiro, todos preocupados com o problema das drogas.115 SILVA, Ricardo de Oliveira. Justiça terapêutica: um programa judicial de atenção ao infrator usuário e ao dependente químico. Disponível em: www.antj.org.br. Acesso em 12 mar.04. O autor menciona também que essa nova forma de abordagem do problema produziu resultados fantásticos, tendo já sido adotada em outros países, como Inglaterra, Irlanda, Canadá, Austrália, África do Sul e Bermudas. Em relação ao CIARB, só são encaminhados aqueles que aderem voluntariamente à iniciativa.116 A reforma silenciosa da justiça, op. cit., p. 29. O livro relata apenas algumas experiências, em rol meramente exemplificativo. Várias outras práticas similares vem sendo implantadas em outras regiões do país.

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Justiça de Minas Gerais para atuar nas Varas de Família, ao Serviço de Mediação Familiar

do Tribunal de Santa Catarina e ao “Expressinho” instituído no Rio de Janeiro. 117.

O “Projeto Conciliação” surgiu com o propósito de emprestar celeridade e eficiência

aos feitos relacionados a direito de família. Teve seu início em 2002 e hoje conta com

centrais de conciliação expandidas em várias comarcas do Estado. Os processos são

distribuídos a conciliadores e, havendo acordo aprovado pelo Ministério Público, são

imediatamente encerrados; caso contrário, voltam à sua tramitação normal, sob a direção do

magistrado para o qual o processo tenha sido inicialmente distribuído. Nos conflitos mais

conturbados, conta-se com a participação, nas audiências, de psicólogos judiciais e também

do juiz-orientador caso seja necessária a sua presença para fins de facilitação a composição

amigável.

Importa mencionar que o “Projeto Conciliação” também é aplicado nas varas de

família de Porto Alegre118, com a diferença de que aqui o conciliador é o próprio

magistrado. Na experiência conduzida no Estado de Minas Gerais, o conciliador é um

estudante de direito ou de psicologia previamente capacitado para a atribuição assumida.

Talvez nesse aspecto residam as principais críticas ao projeto mineiro. Os conflitos

familiares judicializados, consolidados em demandas de divórcio, fixação de alimentos,

regulamentação de visitas, dentre outras, ocultam – como a experiência demonstra –

variados focos de tensão originários da época de convivência ou desabrochados quando do

rompimento dos laços afetivos, cuja administração reclama a participação de profissionais

117 A reforma silenciosa da justiça, op. cit., p. 29-40, 274-287 e 262-273, respectivamente. 118 O Projeto “Conciliação Família” foi criado em 1994 com o objetivo de desafogar o trabalho nas varas de família e sucessões. Atualmente abrange todos os juizados de família da capital, com exceção da 5ª Vara. Composto de um juiz substituto de entrância final e da respectiva estrutura cartorária, onde atuam também um defensor público e um promotor com atribuições específicas. Para esse projeto são encaminhadas as lides recém ajuizadas. Não havendo conciliação, o processo é devolvido à vara de origem para regular tramitação. Havendo acordo, este é homologado e remetido à vara de origem para providências de encerramento do feito. O índice mensal de conciliações oscila entre 55 e 70 % das ações remetidas ao projeto (disponível em www.tj.rs.gov.br. Acesso em 09.09.06).

63

capacitados para práticas de mediação e/ou conciliação, inclusive com experiência de vida,

coisa que um acadêmico de direito normalmente ainda não possui.119

O Serviço de Mediação Familiar catarinense, desenvolvido em várias comarcas do

Estado, procura satisfazer os interesses dos envolvidos em conflitos familiares, evitando

conceitos como os de perdedor e vencedor. Trabalha com mediação extrajudicial

(preventiva) e judicial nos feitos já distribuídos, contando com a participação de equipe 119 Segundo Cristopher W. Moore (O Processo de Mediação: estratégias práticas para a resolução de conflitos. 2.ed. Tradução de Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 1998), programas institucionalizados de mediação nas mais diversas áreas – “interpessoal, familiar, comunitário, educacional, ocupacional, médico, local, urbano, regional, nacional, étnico, internacional e ambiental” (op. cit.,p. 321) – vêm sendo desenvolvidos em diversos países do globo. Embora haja consenso de que os mediadores devam ser capacitados para o exercício dessa função, ainda recaem controvérsias sobretudo acerca da duração dos programas de treinamento em mediação de conflitos familiares. Segundo o autor, a Academy of Family Mediators (Estados Unidos) tem defendido um mínimo de 40 horas, sendo que a metodologia de ensino deveria incluir – não só para mediação em conflitos familiares – conferências sobre vários tópicos, simulações de negociação para ensinar a dinâmica e os procedimentos de defesa, apresentação de estudo de casos, problemas de decisão rápida etc (op. cit., p. 311-312). Informa ainda que o U.S. Federal Mediation and Conciliation Service “tem contado quase que exclusivamente com programas de supervisão para treinar novos mediadores [não só no âmbito familiar]. Neste modelo de treinamento, um novato trabalha junto com um intermediário experiente lado a lado com ele durante um ano ou mais ou até o momento em que o profissional mais experiente acredite que o aprendiz está pronto parra trabalhar independentemente”(op. cit.,p. 313-314). De qualquer forma, Moore enfatiza que desde 1980, no território americano, discute-se sobre a necessidade de educação anterior ou treinamento profissional como critérios a serem usados para ingresso na prática de mediador, questão que ganha relevo considerando que “outras profissões e profissionais que se consideram como solucionadores de conflitos têm procurado impedir a perda dos seus clientes para os profissionais da mediação, limitar a sua entrada no campo da mediação ou captar para si a profissão de mediação. Infelizmente, alguns Estados começam a restringir a prática da mediação àqueles com qualificações profissionais que têm pouca relação com o conhecimento ou com a especialização na prática da mediação”(op. cit., p. 308). A polêmica também se instalou no Brasil, em que legisladores e variadas instituições discutem o projeto de lei sobre a mediação e outros meios de pacificação. Segundo o projeto, a mediação seria prévia (sempre facultativa) ou incidental (de tentativa obrigatória), judicial ou extrajudicial. Enfatiza-se a capacitação para mediação, cujos atores restringir-se-iam a advogados com três anos de experiência profissional mínima, auxiliados necessariamente por psiquiatras, psicólogos ou assistentes sociais no caso de controvérsias atinentes a direito de família. Veja-se que em nenhum momento o projeto autoriza a participação de estudantes de direito no papel de mediadores ou conciliadores. Vale referir, por outro lado, algumas experiências bem sucedidas de que participam alunos na condição de facilitadores do processo de mediação, como por exemplo o “Programa de Mediação de Conflitos” instalado desde 2004 na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). A este programa são enviadas as pessoas que procuram o Núcleo de Assistência Judiciária Gratuita e o Programa de Promoção e Atenção à Saúde (PIPAS). Caso obtido acordo entre as partes, este vem formalizado em uma petição que será distribuída para fins de homologação judicial. Também são atendidos alguns casos encaminhados pelos juízes da Vara de Família da Comarca de São Leopoldo. Embora o processo de mediação seja facilitado por estudantes universitários – um da faculdade de psicologia e o outro da faculdade de direito –, a experiência vem obtendo sensível êxito, o que se extrai, por exemplo, do altíssimo número de acordos traçados e da satisfação expressada pelos próprias partes, que vislumbram nesse sistema um espaço propício ao diálogo e à comunicação. Importa mencionar ainda que os processos de mediação são supervisionados por professores da instituição universitária, com os quais os alunos reúnem-se semanalmente para troca de informações e opiniões.

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multidisciplinar. Essa prática vem contribuindo para a difusão gradativa de um modelo não

judicial de solução de conflitos surgidos no âmbito do seio familiar, o que repercute na

redução do número de demandas judicializadas e/ou julgadas pelo juízo.

O “Expressinho”, a seu turno, disponibiliza ao jurisdicionado a opção de celebrar

acordo diretamente com a concessionária de serviço público em audiência presidida por um

conciliador, evitando-se o ingresso de ação judicial. A elaboração do projeto partiu da

constatação da necessidade de se criarem mecanismos de resolução ágil daquelas inúmeras

demandas propostas sempre em face das mesmas empresas pela precariedade do serviço

prestado. O projeto-piloto contou com a parceria da concessionária Telemar, que, em 2002,

figurava no pólo passivo de mais de mil processos ajuizados mensalmente. Mediante um

convênio celebrado entre o tribunal carioca e a concessionária

é disponibilizado um preposto da empresa, o qual permanece durante todo o horário de atendimento do juizado para participar das audiências conciliatórias. Assim, este preposto formula a proposta de conciliação, com vistas à celebração do acordo, se valendo para tanto de terminal de computador ligado ao sistema da concessionária, no qual colhe as informações acerca da reclamação formulada pelo consumidor. Nesse sistema, em aproximadamente 20 minutos, evita-se o ajuizamento de mais uma demanda, desafogando o Judiciário e reduzindo o passivo judicial da concessionária. Em linhas gerais pode-se dizer que o Expressinho é uma ferramenta que reduz o iter processual, já que a concessionária se dá por citada, tem plenas condições de defesa e, com a celebração do acordo judicial homologado, evita mais uma ação [somente em não havendo acordo o jurisdicionado retorna à triagem para formulação oficial da petição inicial]. Esta ação, se levada ao Judiciário, poderia se estender por pelo menos seis meses, nos quais seriam necessários citação, audiência conciliatória e audiência de instrução e julgamento, só então alcançando-se o mesmo desiderato.120

120 A reforma silenciosa da justiça, op. cit., p. 265. Modelo similar também foi implantado no Foro Central da Comarca de Porto Alegre-RS, por ocasião de convênio celebrado entre o Tribunal de Justiça gaúcho e a Brasil Telecom. O Tribunal disponibilizou uma sala para que o preposto da empresa negociasse as propostas de conciliação, o que foi duramente combatido pela OAB/RS.

65

O maior problema assinalado pelos coordenadores do projeto consiste na dificuldade

de gerenciar a inconstância das empresas na realização ou não dos acordos, que ora

autorizam seus prepostos a celebrá-los, ora criam entraves ao propósito de evitar o ingresso

de novas demandas. De qualquer forma, apontam o êxito do programa, que inclusive os

incentiva a estendê-lo a outras empresas, sobretudo as de cartão de crédito e energia elétrica,

responsáveis, juntamente com as de telefonia, pelo significativo número de reclamações por

parte dos usuários.121

Insta destacar que essa prática não impõe ônus para o Tribunal, na medida em que a

infra-estrutura é fornecida pela empresa interessada e o espaço institucional já existe. Nessa

conjuntura, poder-se-ia indagar se, embora o sucesso do programa, o Judiciário não estaria

funcionando como um “departamento da empresa”, o que induz à percepção de que a

sistemática adotada no juizado deveria funcionar, na verdade, nas próprias dependências da

empresa. Essa dedução afirma-se ainda de forma mais contundente considerando a

precariedade e/ou insuficiência de estrutura física com que se deparam inúmeros foros ao

longo desse país.122

121 Dentro dessa perspectiva, vale mencionar que o próprio Estado também é responsável por um altíssimo número de demandas judicializadas em razão da sua conduta em dificultar e adiar o cumprimento de suas obrigações com os cidadãos. Joaquim Falcão cita, como caso emblemático do uso abusivo do Judiciário pela Administração Pública, a correção do FGTS em 1989. O Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito dos trabalhadores à correção de 42,72% sobre o saldo do FGTS em dezembro de 1988. Como não havia recursos financeiros para saldar a dívida, o governo propôs aos trabalhadores que aceitassem receber a médio prazo menos do que o Supremo lhes havia garantido, ou teriam de ingressar na Justiça (FALCÃO, Joaquim. Estratégias para a reforma do Judiciário. In: Reforma do Judiciário: comentários à Emenda Constitucional n. 45/2004, op. cit., p. 18). Nas varas da fazenda no Rio Grande do Sul, por sua vez, tem-se notícia de que 50% das demandas tramitando envolvem reajustes salariais que não foram percebidos pelos servidores, embora concedidos explicitamente por norma legal.122 Ainda no âmbito da conciliação, há de se registrar a experiência comandada na cidade de Maringá-PR nas audiências de conciliação em processos do Sistema Financeiro de Habitação, que contou com a parceria estabelecida entre a Justiça Federal de Maringá, a Caixa Econômica Federal, a Empresa Gestora de Ativos – EMGEA e os advogados dos mutuários, estes últimos inconformados com a grande diferença existente entre o valor de mercado do imóvel e o saldo devedor do financiamento. Apesar das dificuldades, a experiência foi bem-sucedida no âmbito da 4ª Região em razão dos preparativos para as audiências, dos contatos institucionais e da vontade de adequar-se à estrutura da CEF e da EMGEA. Essa experiência foi detalhada por Erivaldo Ribeiro dos Santos (A conciliação nas causas do sistema financeiro da habitação. In: Administração da Justiça. Revista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, ano VIII, n. 24, mar. 2004, p. 9-11). Joaquim Falcão também evoca o exemplo de uma grande empresa nacional, demandada em milhares de ações na justiça brasileira, que estabeleceu a estratégia de que seguiriam tramitando apenas aqueles processos em que se defendesse teses jurídicas de fundamental interesse da sociedade empresarial, suprimindo-se os demais, seja pela negociação ou pela desistência pura e simples

66

3.5.5 O programa “Justiça Cidadã”

Conquistam realce no cenário brasileiro experiências que buscam a capacitação de

moradores das comunidades periféricas como agentes multiplicadores de informações

básicas sobre direito, justiça e cidadania. Além disso, tais agentes vestem a importante

missão de incentivar a resolução pacífica dos conflitos, atuando diretamente como

facilitadores em programas de mediação e conciliação.

Dentro desse contexto, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em

parceria com a organização não-governamental “Ação da Cidadania” e com o apoio da

Escola de Administração de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, desenvolveu o Programa

“Justiça Cidadã”123 visando o patrocínio de cursos regulares dirigidos a lideranças de

comunidades economicamente carentes e/ou em situações sociais consideradas de risco. O

tribunal encarregou-se da prestação de assistência técnico-jurídica, dirimindo dúvidas sobre

aspectos legais e sobre a condução do processo de mediação, além do acompanhamento,

supervisionamento e orientação das atividades desenvolvidas pelas lideranças. As ações de

capacitação couberam à Escola de Administração; a aferição e controle dos resultados ao

Núcleo de Acompanhamento de Qualidade dos Serviços Judiciais; e à Ação da Cidadania

delegou-se a seleção dos interessados nos cursos de capacitação e a disponibilização de

espaço físico para reuniões de acompanhamento e aperfeiçoamento dos capacitados, dentre

outras atribuições.124

(FALCÃO, Joaquim. Estratégias para a Reforma do Judiciário, op. cit., p.21).123 A reforma silenciosa da justiça, op. cit., 2006, p. 238-261.124 Enfatizou-se também a adequada divulgação do programa, a ser realizada pelo Tribunal de Justiça, pela Ação de Cidadania e pelas lideranças capacitadas.

67

Dentre os benefícios alcançados pelo programa, enumera-se a maior segurança e

confiança em recorrer ao Poder Judiciário para reivindicar direitos ou para compor litígios

que dependam de intervenção judicial, o aumento da auto-estima das lideranças e dos

moradores da comunidade e a oportunidade de fazê-los conhecer a estrutura e o

funcionamento do Poder Judiciário. Além disso, estabeleceu-se um canal de comunicação

entre o Estado e a população carente, o que se traduziu em termos de ampliação do acesso à

justiça e democratização da magistratura.

3.6 As Promotoras Legais Populares e a democratização do acesso à justiça125

Não se poderia deixar de retomar, dentro dessa perspectiva, a experiência levada a

efeito por mulheres líderes comunitárias – as Promotoras Legais Populares – voltada à

democratização do acesso à justiça e à promoção dos direitos humanos com enfoque nas

questões de gênero, raça/etnia e desigualdades sócio econômicas. Essas agentes receberam

capacitação legal através de um projeto promovido pela Themis126, em Porto Alegre, que

125 O trabalho desenvolvido pelas Promotoras Legais Populares não se encontra descrito dentre as práticas abordadas pelo Premio Innovare. Todavia, vale mencionar que esse projeto recebeu o prêmio Santo Dias de Direitos Humanos 2001, concedido pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo, juntamente com a Revista Sem Fronteiras que, por sinal, foi a primeira a falar desse projeto social promovido desde 1994 pelo Instituto Brasileiro de Advocacia Pública-IBAP em parceria com a União de Mulheres de São Paulo, capacitando lideranças para a defesa dos direitos humanos. 126 Importante sublinhar que a Themis foi criada por jovens feministas de carreira jurídica que optaram por associar à militância política o conhecimento jurídico-profissional. Segundo Virgínia Feix, advogada e coordenadora executiva da Themis, “a estratégia escolhida foi a utilização do Direito como instrumento de transformação da realidade de exclusão das mulheres e enfrentamento de todas as formas de discriminação derivadas de uma das diferenças fundantes de nossa sociedade, a diferença de gênero.”(Em frente da lei tem um guarda. In: Acesso à justiça. Cadernos Themis: gênero e direito. Porto Alegre, ano II, n. 2, p. 22, set.2001). Importante referir que o Projeto Promotoras Legais Populares também foi desenvolvido em São Paulo, por uma parceria entre o IBAP- Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – e a União de Mulheres de São Paulo, e em São José dos Campos e Taubaté. O projeto iniciou em maio de 1992 quando a União de Mulheres de São Paulo e a Themis participaram de um seminário sobre direitos da mulher promovido pelo CLADEM (Comitê Latino Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos da Mulher), oportunidade em que tiveram conhecimento de cursos dos capacitação que já vinham sendo realizados há pelo menos uma década em países da América Latina (KREMPEL, Letícia Massula. O acesso das mulheres à justiça. In: Acesso à justiça. Cadernos Themis: gênero e direito. Porto Alegre, ano II, n. 2, p. 89/90, set.2001.)

68

teve início em 1993 e contou com o apoio da UNIFEM (Fundo das Nações Unidas para o

Desenvolvimento da Mulher) e da Fundação Ford, tendo ao longo da sua trajetória

angariado outros patrocínios.

A proposta de formação das Promotoras Populares, segundo a coordenadora

executiva do Instituto Themis – Virgínia Feix –, partiu de dois pressupostos. O primeiro diz

com a constatação de que a ignorância sobre a existência de direitos inviabiliza a

apropriação de um sentimento de cidadania, o que dificulta a participação na vida social e

política. O segundo enfoca a necessidade de uma revisitação da estrutura e do

funcionamento do Judiciário e dos mitos da neutralidade do juiz e da igualdade de todos

perante a lei.127

O projeto, dessa forma, procura suprir esse déficit em cidadania através da promoção

de cursos de capacitação de mulheres, preferencialmente lideranças, para que conheçam

seus direitos e, com base no aprendizado teórico-prático adquirido128, comprometam-se a

mobilizar outras mulheres para a ação em defesa de seus direitos, bem como a atuar junto à

instâncias policiais e judiciárias para buscar soluções concretas. Um dos principais

resultados da experiência foi a criação dos Serviços de Informação à Mulher (SIMs), que

funcionam em imóvel cedido em algum equipamento social (escola, posto policial, centro

comunitário etc), e servem como ambiente propício ao repasse à comunidade do saber

apropriado durante os cursos de capacitação. A par disso, nesses locais as novas

protagonistas colhem e encaminham as denúncias relativas a violação dos direitos das

mulheres.

127 FEIX, Virgínia. Em frente da lei tem um guarda, op. cit., p. 29.128 Os cursos operam com uma abordagem multidisciplinar do direito, introduzindo matérias de outras áreas de conhecimento, como saúde, doenças sexualmente transmissíveis, saúde no trabalho, violência contra a mulher, literatura e poesia, utilização da internet, informações sobre como constituir uma ONG, dentre outras. A metodologia utilizada compõe-se de oficinas de construção e troca de conhecimentos, visitas e estágios em ONGs e serviços públicos, trabalhos em grupo, palestras e debates.

69

O êxito da iniciativa garantiu visibilidade ao projeto129, tendo sido inclusive

solicitado, em 1998, pelo Ministério da Justiça, que a entidade desenvolvesse um projeto de

multiplicação nacional da metodologia de capacitação legal não só de mulheres líderes

comunitárias, mas também de outros segmentos sociais discriminados, como crianças e

adolescentes, homossexuais e negros.

Paralelamente a esse processo, Virgínia Feix menciona que o ano de 1999 trouxe a

possibilidade de construção de uma riquíssima parceria com setores do Judiciário gaúcho,

parceria essa que teve seus primeiros contornos delineados em Termo de Cooperação

firmado com a Associação de Juízes do Rio Grande do Sul e com a Defensoria Pública,

objetivando a instituição da figura do Agente Comunitário de Justiça. Assim,

através desse Termo de Cooperação, será elaborado convênio entre a Themis e os fóruns distritais interessados no projeto piloto, par que, onde existam SIMs na região, as Promotoras Legais Populares passem a atuar em preparação, durante a instrução e após a sentença em processos junto às Varas de Família e Juizados Especiais Criminais. Nas fases preparatória e de instrução, as PLPs poderão atuar como orientadoras das mulheres no sentido da elaboração e definição do objeto da demanda a ser levada ao Poder Judiciário, orientando a organização e levantamento de provas, bem como realizando acompanhamento das audiências. Na fase posterior à sentença, deverão atuar no acompanhamento da decisão judicial, garantindo a retroalimentação do Poder Judiciário, pelo diagnóstico de eficácia da prestação jurisdicional, até hoje desprovida de instrumentos de monitoramento. Enquanto alguns poucos representantes da sociedade brasileira discutem a reforma do Poder Judiciário no Congresso Nacional, totalmente distantes da realidade de frustração entre a expectativa e a realização de justiça para milhares de brasileiros, essa proposta vem ao encontro de diversas outras

129 Evidentemente, existem alguns importantes desafios a serem superados para que o projeto realmente alcance o seu propósito, a citar: a insuficiência de recursos humanos e financeiros para a manutenção dos SIMs, haja vista que o trabalho das Promotoras Populares é voluntário e que o financiamento obtido para a execução do projeto geralmente beneficia somente os cursos de capacitação. Além disso, há a complexidade dos casos que chegam aos SIMs, trazendo consigo questões que, segundo Alinne Bonetti, transcendem a mera consciência dos direitos e que demandam uma solução imediata, o que torna o trabalho com a tensão entre a oferta da informação e a demanda por coisas mais concretas um dos maiores desafios posto diante das agentes populares. BONETTI, Alinne (Entre feministas e mulheristas – uma etnografia sobre promotoras legais populares e novas configurações da participação política feminina em Porto Alegre. Programa de Pós Graduação em Antropologia Social (Dissertação de Mestrado), Universidade Federal de Santa Catarina, 2000).

70

iniciativas de construção de um projeto político para uma profunda democratização do acesso à justiça.130

Nos trabalhos de capacitação das Promotoras Legais Populares participaram e

continuam participando diversos magistrados sensibilizados com a importância do programa

para fins de democratizar o acesso ao Judiciário e potencializar a própria eficácia dos

provimentos jurisdicionais, como bem referido pela coordenadora executiva da Themis.

3.7 O projeto “Justiça sem papel”

Merece também breves comentários a experiência conduzida junto ao Juizado

Especial Federal da 3ª Região, direcionada à implementação de uma mudança cultural

dentro do judiciário, mudança essa cujo êxito se refletisse na própria forma como a justiça é

vista pela população. Esse projeto é conhecido como “Justiça sem papel”, cuja iniciativa é

atribuída a uma parceria entre a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio

Vargas e o Ministério da Justiça, contanto com o apoio financeiro da empresa Souza Cruz.

Dentre as medidas incorporadas pelo projeto, alinha-se a adoção de mesas

redondas, de vidros transparentes e cores claras no juizado, quebrando com a assimetria de

poderes entre as partes e o magistrado e o clima tenso próprio dos foros judiciais. Também

vale a menção ao desenvolvimento de um sistema próprio de gestão dos processos em 130 FEIX, Virgínia. Em frente da lei tem um guarda, op. cit., p. 33. Exemplo de garantia da eficácia da prestação jurisdicional prestada, de certa forma, pelas Promotoras Populares consiste no seu envolvimento por ocasião do cumprimento de mandado judicial de afastamento do lar do cônjuge. Caso tenham ciência do descumprimento, as agentes comunitárias entram em contato com a polícia que prontamente intervém no caso.

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massa, que passaram a ser digitalizados na sua integralidade (inclusive os documentos,

cujos dados são repassados ao computador) de maneira a evitar o uso do papel, racionalizar

procedimentos e a utilização de informações jurisdicionais e otimizar o uso de recursos

públicos131. Esse projeto, contudo, hoje encontra-se suspenso em razão de decisão

judicial.132

3.8 A justiça sob o prisma do Estatuto da Criança e do Adolescente: noções

preliminares

Não se poderia deixar de tecer considerações acerca dos significativos avanços em

termos de realização de justiça e democratização do judiciário promovidos nas varas da

infância e juventude. Aliás, é nesses espaços que o modelo de juiz preconizado nesse

estudo pode conquistar significativo papel de destaque em virtude do largo campo de

131 Importa mencionar que o Rio Grande do Sul também já conta com exemplos de juizados especiais virtuais desenvolvidos em algumas localidades do Estado. A tendência à informatização do sistema judicial como um todo representa uma realidade no Estado contemporâneo, e provavelmente figurará como um dos meios mais eficientes para a agilização da justiça. Tem-se notícia inclusive de que a estrutura física do novo prédio do Tribunal Superior do Trabalho não comporta o peso de processos, a exemplo dos demais tribunais erigidos há algum tempo, eis que foi construída para abrigar um sistema processual digitalizado. Oportuno referir ainda que o Conselho Nacional de Justiça reuniu na capital gaúcha, no dia 15.05.06, representates do STF, STJ, TST, CNJ e dos Tribunais do RS, SP, MG, RO, PE e NE, com o propósito de discutir a possibilidade de desenvolvimento de um modelo único de processo virtual para toda a justiça brasileira, tomando como base as iniciativas já existentes em algum desses órgãos, bem como o Projeto de Lei n° 5.828/01, já apreciado pelo Senado, e atualmente tramitando na Câmara de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados (TESHEINER, José Maria Rosa (coord.) Nova sistemática processual civil. 2. Ed. Caxias do Sul: Plenum, 2006, p. 30) Importa mencionar também as inovações legislativas no campo da informática, a citar o art. 2° da lei 11.280/06, que alterou a redação do art. 154 do Código de Processo Civil.132 O projeto Justiça sem Papel foi suspenso pelo desembargador federal Antônio Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, sob a alegação de inconstitucionalidade no financiamento de projetos da justiça com recursos do setor privado. Na decisão de primeiro grau, o juiz Cleberson José Rocha entendeu pela continuidade do programa já que “o Judiciário será beneficiário dos resultados do programa mediante parceria e que tais recursos serão de domínio público”. A decisão, todavia, foi revertida por maioria no Tribunal, o que suspendeu a execução do projeto. Em razão disso, hoje não é mais possível buscar informações no site www.justicasempapel.org.br.

72

atuação extrajurisdicional que dele se espera a partir da nova sistemática introduzida pelo

Estatuto da Criança e do Adolescente.

Esse Estatuto promoveu o que se qualifica uma verdadeira “revolução copernicana”

na área da infância e juventude na medida em que consagrou uma principiologia

diferenciada e adequada à efetiva proteção dos direitos da criança e do adolescente,

concebendo-os como sujeitos de direito e não mais como objeto de proteção do Estado.

Ademais, diferentemente do Código de Menores de 1979, que centrava no judiciário a

tomada de qualquer providência em relação às crianças e adolescentes, a nova lei realça a

idéia de rede133 como instrumento indispensável à eficaz proteção daqueles que são

considerados, pela própria constituição, como pessoas em desenvolvimento e merecedores

de proteção especial. Algumas das dificuldades que nesses dezesseis anos de vigência da

lei 8.069/90 ainda se vislumbram no cenário nacional colocam-se justamente em torno da

questão da organização e implementação dessa rede.

Para superar esse inevitável óbice, faz-se necessário, por primeiro, a aceitação pelos

próprios membros do judiciário da configuração dessa nova política de atendimento e

abordagem aos interesses das crianças e adolescentes acima evocada, o que implica, por

conseqüência, uma postura de compartilhamento de poderes e atribuições com os demais

integrantes da rede. Mas não só. Além dessa predisposição à nova sistemática, revela-se

primordial a participação efetiva dos magistrados – mormente daqueles que jurisdicionam

nas varas da infância e juventude – na condição de coordenadores do processo de

implementação da lei 8.069/90 na prática cotidiana da jurisdição e do cumprimento das

133 Essa noção de “rede” transparece claramente do texto legal em diversas ocasiões. No art. 86, por exemplo, positiva-se que “a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais”. No art. 88 elenca-se como diretrizes da política de atendimento, dentre outras, a criação de conselhos municipais, estaduais e nacionais dos direitos da criança e do adolescente, a integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social e a mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade. A partir do art. 90, o Estatuto regulamenta a participação de entidades públicas ou privadas no atendimento às crianças e adolescentes mediante o desenvolvimento de programas de abrigo, internação e outros. O Conselho Tutelar também conquista um papel de destaque dentro da nova sistemática, passando a assumir atribuições específicas, privativas e obrigatórias, estabelecidas no art. 136.

73

decisões judiciais. Nas palavras de Leoberto Narciso Brancher, juiz da 3° Vara da Infância

e Juventude de Porto Alegre,

os Juizados da Infância e da Juventude passaram, com a nova lei, a constituir-se no foco precursor capaz de ditar maior ou menor avanço das mudanças, conforme tenham se mostrado mais ou menos abertos às inovações, permitindo, conforme a orientação da respectiva liderança, maior ou menor liberdade aos demais atores do Sistema em avançar com o progresso nas respectivas áreas. 134

De nada adianta, dentro desse panorama, a adoção de uma legislação de vanguarda,

como vem sendo considerada a lei 8.069/90, se o contexto institucional em que deve operar

permanece inalterável e refratário a alterações. A concretização do ideário expresso no

Estatuto exige, pois, uma verdadeira quebra de paradigma, preenchendo o judiciário uma

posição-chave na realização dessa incumbência.

3.8.1 O papel do judiciário dentro do paradigma do ECA: a luta pela

municipalização das medidas sócio-educativas de meio aberto

Como já referido, um dos grandes desafios em aberto consiste na mudança do

modelo organizacional e gerencial como pressuposto para a implementação do sistema de

garantias consagrado no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Em relação a esse ponto, vale reportar, mesmo se em breves linhas, experiência

conduzida pela 3ª Vara da Infância e da Juventude da capital gaúcha que, a partir de 1998,

134 BRANCHER, Leoberto Narciso. Organização e gestão do sistema da infância e juventude. In: KONZEN, Afonso Armando et al.(org.). Pela justiça na educação. Brasília: Mec. Fundescola, 2000.

74

introduziu nas suas atividades diárias importantes alterações de caráter técnico,

administrativo e gerencial através da incorporação dos princípios da Gestão pela Qualidade

Total135.

Iniciou-se sob a coordenação do magistrado Leoberto Brancher um processo de

reordenamento interno do próprio ambiente cartorário, abrangendo desde a reestruturação

do espaço físico e a sensibilização e integração das equipes envolvidas até a sistematização

experimental de uma nova rotina de tramitação para as medidas de meio aberto junto ao

sistema público municipal. Aliado a essa remodelação, situa-se o esforço pela

descentralização das atividades sócio-educativas travado junto à Prefeitura Municipal136,

como forma de romper com as práticas que ainda dominavam o cenário político-jurídico até

então.

Nessa linha, insta expor que até a metade da década de 90 não existiam políticas

públicas de atendimento de meio aberto, o que reforçava a identificação nos órgãos 135 A Gestão pela Qualidade Total ou TQC (Total Quality Control) é uma moderna forma de gerenciamento que substitui o conceito ultrapassado de repartição de esforços para implementar a visão de melhoramento contínuo por meio da integração de esforços, do trabalho em equipe e da gerência participativa. A idéia foi desenvolvida ao final da segunda Guerra Mundial por um estatístico norte-americano (Deming), preocupado com a elaboração de técnicas voltadas ao aumento da qualidade e redução de custos. Segundo o profissional, a análise da qualidade deve ser feita pelos próprios funcionários, em cada uma das etapas do processo produtivo. Hoje essa metodologia vem sendo adotada no âmbito da atividade privada e, paulatinamente, vem sendo incorporada pela seara pública como instrumento garantidor de eficiência e de ganhos em qualidade de vida por parte das pessoas que atuam ou que se servem dos serviços prestados pelas instituições. Os poderes judiciários de vários Estados também vêm elaborando planos de gestão pela qualidade como proposta de responder às expectativas e necessidades de justiça da sociedade, por meio da busca constante da melhoria contínua, bem como de buscar a satisfação de todos os integrantes do Poder Judiciário. Sobre o assunto, consultar o Plano de Gestão pela Qualidade do Judiciário: metodologia da qualidade, elaborado pelo Escritório da Qualidade do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relativamente à experiência conduzida pela 3ª Vara da Infância, a adoção dos princípios da Qualidade Total viabilizou a racionalização dos processos técnico-administrativos e a otimização do uso dos recursos públicos. Buscou-se também a sistematização dos dados relativos a reinserção social dos adolescentes atendidos, sobre sua situação familiar antes e após o atendimento, sobre índices de reincidência, dentre outros. Outra prática fundamental adotada foi a unificação das medidas em um só processo, com o atendimento do adolescente por um único orientador – o que antes não ocorria – o que fortaleceu os vínculos entre o orientador e o adolescente, com resultados positivos sobre o êxito da medida (Histórico da reorganização da 3ª Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude de Porto Alegre. Disponível em: www.tj.rs.gov.br. Acesso em 02.mai.06.)136 Esse esforço restou materializado no documento “Desjudicialização do Atendimento na Execução das Medidas Sócio-Educativas de Meio Aberto”, apresentado à Prefeitura Municipal de Porto Alegre em agosto de 1999, dando continuidade aos esforços empregados junto à administração local iniciados na gestão anterior pelo então titular Eduardo João de Lima Costa.

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judiciais da competência também para tarefas de ordem administrativa (atendimento nas

áreas assistencial, psicológica, pedagógica, entre outras intervenções profissionais

necessárias). Os programas de execução das medidas sócio-educativas de meio aberto, por

exemplo, ficam a cargo do juiz titular e dos fiscais destacados do próprio quadro de

funcionários do judiciário.

A luta pela municipalização do atendimento prevista como uma das diretrizes do

Estatuto137 continua sendo objeto de variadas críticas e discussões, sendo que

no âmbito do Poder Judiciário, há resistência de se abrir a porta da municipalização sob o pretexto de controle. No Poder Executivo, por sua vez, existe o temor da falta de recursos para desempenhar o novo papel de forma eficiente. Em termos gerais, enquanto os juizados e as instituições públicas prestadoras de atendimento não se atualizarem e sintonizarem nesse aspecto, dificilmente conseguirão assumir a estrutura organizacional necessária para uma atuação integrada em rede.138

No Rio Grande do Sul, vislumbra-se já há alguns anos uma tendência de abertura da

magistratura para o diálogo com as administrações locais relativamente à execução das

medidas sócio-educativas de meio aberto. Em alguns municípios139 convênios vêm sendo

celebrados entre os Juizados da Infância e da Juventude e as prefeituras, objetivando-se, por

meio desses, a municipalização do atendimento a jovens em conflito com a lei. A própria

Corregedoria de Justiça já firmou seu posicionamento no sentido de apoiar oficialmente a

137 A municipalização da execução das medidas sócio-educativas em meio aberto está prevista no art. 88, I, da lei 8.069/90. Encontra previsão também na resolução n. 145 do Conselho Nacional de Assistência Social, de outubro de 2004, e no Sistema Nacional de Execução de Medidas Sócio-Educativas – SINASE -, aprovado em julho de 2006. O projeto de lei sobre execução de medidas sócio-educativas, discutido por profissionais especializados há oito anos e prestes a ser encaminhado ao Congresso Nacional também conterá um artigo reafirmando essa obrigação.138 Histórico da reorganização da 3ª Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude de Porto Alegre (in: www.tj.rs.gov.br Acesso em 02.mai.06)139 Como ilustração, cite-se os município de Ijuí e Sapucaia do Sul.

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criação de programas municipais – governamentais ou com financiamento público – de

medidas sócio-educativas de meio aberto. Nessa ordem de idéias, vale reportar os termos de

manifestação desse órgão, documentada em junho de 2002, por ocasião de expediente

instaurado relativo à celebração de convênio na cidade de Ijuí:

(...) parece-nos inevitável a conclusão de que, na ausência de iniciativa institucionalmente articulada, os ônus da inexistência dos serviços municipais continuarão sendo carreados aos adolescentes infratores e suas famílias, à sociedade e, no aqui também interessa, ao próprio Poder Judiciário.

É certo que a iniciativa de implantação desses serviços é competência administrativa, na esfera dos Executivos Municipais, e assim sujeita aos critérios de oportunidade e conveniência segundo a conveniência dos respectivos administradores.

Ao Poder Judiciário, em atuação jurisdicional, estaria em tese reservada apenas a oportunidade de manifestar-se em sede de eventual ação civil pública ajuizada por quem legitimado a reclamar a criação do serviço ( ECA, art. 208 ), ou, quando em condução mais pró-ativa, provocando a iniciativa do Ministério Público para tal fim ( ECA, art. 221 ).

A proposta em tela não cogita, entretanto, do exercício de competências jurisdicionais, mas residem no âmbito daquelas de ordem igualmente administrativa que restam carreadas ao magistrado-administrador sempre e quando inexistem meios para prestar a jurisdição e resulta por protagonizar as providências necessárias a que suas sentenças não percam efetividade na fase executória.

Trata-se, pois, de iniciativa afeta à esfera política, e não jurisdicional, do Poder Judiciário como instituição.

Diferencia-se a hipótese, por exemplo, de sugestão que cogitasse da iniciativa institucional, para incentivar a criação de instituições de abrigo, ou de programas para atendimento de vítimas de maus-tratos.

Por mais que louváveis e ocasionamente imprescindíveis, iniciativas como tais não se inscreveriam com a mesma qualidade da iniciativa em apreço, em que não se trata de ato de voluntarismo mas de exigência a bem do interesse da administração pública em sentido amplo, visto que se trata de fazer complementar-se um processo de reordenamento de competências projetado abstratamente na lei e de cuja materialização no cotidiano do serviço ainda ressente-se a realidade.

Havendo que promover-se tal migração de competência entre dois órgãos, ou, no caso, entre duas esferas de Poder, mais do que natural é desejável esperar-se que a iniciativa seja tomada por uma das partes em exercício legítimo de suas atribuições administrativas.

O que se cogita, portanto, é que, como administrador, o Poder Judiciário rompa o imobilismo ( que, se é virtude na jurisdição, pode ser vicioso na administração ) e faça uma tomada de consciência a respeito desse encargo do qual hoje, ainda que não declaradamente, se desincumbe na maioria das Comarcas; faça um balanço do cenário daí conseqüente; discuta alternativas para sua superação e as proponha

77

para quem de direito – não descuidando, nesse processo, de bem orientar por intermédio da Eg. Corregedoria os magistrados com jurisdição especializada.140

Inobstante os notáveis avanços alcançados, o caminho a percorrer ainda é longo. De

acordo com dados recentes fornecidos pela Corregedoria-Geral da Justiça, apenas em 37%

das 162 Comarcas do Estado gaúcho a tarefa é assumida pelas Prefeituras. Em outras 8%, o

trabalho é feito por organizações não governamentais. Nos 55% restante, o serviço

encontra-se a cargo do Poder Judiciário que, como regra, adota soluções improvisadas e

paliativas141. Naturalmente, isso prejudica os efeitos práticos das medidas na reversão da

trajetória delitiva, agravando os indicadores de segurança pública, o descrédito no sistema

judiciário e o reclamo pela redução da idade de responsabilização penal.

Por conta dessa conjuntura, a ampliação dos esforços pela conquista da

municipalização do atendimento é um dos objetivos lançados pelo Conselho de Supervisão

da Infância e Juventude – CONSIJ –, dentro da “Campanha Estadual pela Prevenção da

Violência e Criminalidade Juvenil”, idealizada pelo magistrado Leoberto Brancher.

Integrando essa Campanha, situa-se o “Fórum Intersetorial de Prevenção à

Violência e Criminalidade Juvenil” de Porto Alegre, instalado em ato público realizado no

Tribunal de Justiça em 24.07.06, e que contou com a presença de magistrados, autoridades

municipais e representantes de diversas instituições da região metropolitana. O Fórum

objetiva articular uma rede de atores sociais capazes de promover a inclusão, reintegração

social e responsabilização como estratégia de prevenção e enfrentamento da violência e

criminalidade na Capital. A par disso, almeja a discussão construtiva entre as diversas

140 O texto original foi elaborado pelo juiz Leoberto Brancher. Disponível em: www.tj.rs.gov.br Acesso em 02.mai.06.141 Disponível em: www.tj.rs.gov.br. Acesso em 02.mai.06.

78

entidades, empresas e comunidades sobre as alterações necessárias nos procedimentos da

rede de atendimento ao jovem em conflito com a lei.142

Eventos como esses mobilizam magistrados ainda desconhecedores do enorme

potencial inovador e promissor articulado pela lei 8.069/90, incentivando-os a exercer um

papel ativo dentro dos respectivos municípios, cobrando das prefeituras a assunção do

compromisso de implementar programas de execução de medidas sócio-educativas de meio

aberto.143

3.8.2 O papel do judiciário dentro do paradigma do ECA: a idealização do Cededica

O Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente – CEDEDICA –,

fundado em 1998, é uma organização não governamental cuja idealização contou com a

participação do magistrado João Batista Costa Saraiva, colocando-se como mais um

exemplo de atuação inovadora do judiciário na concretização do projeto esculpido na lei

8.069/90.

142 Em razão da campanha, várias audiências públicas foram realizadas em municípios de diversas regiões: Pedro Osório, Campo Bom, Antônio Prado, Soledade, Osório, Alegrete, Santa Maria e Santo Ângelo, Pelotas, Cerro Largo, Sobradinho, Quaraí, dentre outras (JORNAL DA AJURIS, ano XII, n. 238, jul.06, contracapa). 143 As medidas sócio-educativas de meio aberto estão previstas no art. 112, inc. II, III e IV da lei 8.069/90 (obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida). Dentre essas, a liberdade assistida, se adequadamente implementada, é a mais articulada e promissora em termos de ressocialização e (re)educação dos adolescentes em conflito com a lei. Caso aplicada, a autoridade judicial designará um orientador responsável pelo acompanhamento, auxílio e orientação do menor e pela tentativa de reforçar os seus vínculos com a família, com a escola e com o ambiente de trabalho. Segundo dados da Secretaria do Governo Federal divulgados no II Simpósio sobre Juventude, Violência, Educação e Justiça (ocorrido na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul nos três primeiros dias do mês de agosto de 2006), ainda 2/3 (dois terços) da verba orçamentária destinada a políticas públicas na área das medidas sócio-educativas são investidas em programas de internação, sobrando, assim, parcos recursos para as medidas de meio aberto. Essa situação tende a mudar sobretudo em razão da visível falência do método punitivo-prisional.

79

A iniciativa embrionária partiu de um grupo de profissionais provenientes das mais

diversas áreas e ligados a um programa inicialmente coordenado pelo Juizado da Infância e

Juventude e pela Curadoria de Defesa Comunitária, Infância e Juventude de Santo Ângelo,

incumbidos por designação judicial para atuar como orientadores judiciários dos infratores

submetidos a medida de liberdade assistida. O objetivo era acompanhar os adolescentes em

conflito com a lei desde o momento da aplicação da medida sócio-educativa, orientando-os

de maneira individualizada e pelo tempo necessário ou determinado pelo juízo.

Na medida em que o trabalho realizado pelo grupo foi evoluindo e se consolidando,

este passou a deliberar com mais autonomia acerca também da seleção de entidades para

cumprimento das medidas de prestação de serviços à comunidade. Com a transformação da

associação informal de voluntários em pessoa jurídica, esta assumiu a tarefa de deliberar

sobre seleção de pessoas dispostas a orientar, aconselhar, assistir psicologicamente e

acompanhar a vida do adolescente infrator, procurando, com isso, facilitar o seu reingresso

na sociedade.144 Em virtude do sucesso alcançado, hoje o CEDEDICA está presente em

outras localidades, como Santa Maria, São Borja, Júlio de Castilhos, Três Passos e Vacaria.

A significativa contribuição dessa entidade para com o sistema judicial, para além

de outros projetos implementados145 e da prevenção da violência juvenil viabilizada pelo

144 Esses orientadores funcionam como referência para os jovens “orientandos” e como elo permanente e sincero entre estes e a sociedade. Procuram conhecer o contexto social e familiar em que vivem os meninos de modo a facilitar-lhes a melhor orientação possível. Hoje, o CEDEDICA conta com 23 orientadores e 40 parcerias com outras instituições para prestação de serviço à comunidade. Extremamente louvável esse trabalho sério e responsável que vem sendo desenvolvido, mormente considerando que, na imensa maioria dos casos, os orientadores não recebem capacitação, sendo designados aleatoriamente pelos autoridades competentes para exercer uma tarefa para a qual não estão técnica nem emocionalmente preparados para desempenhar. Essa realidade, que afeta inclusive o Estado gaúcho, foi revelada no II Simpósio sobre Justiça, Violência, Educação e Justiça.145 CEDEDICA, para atender adolescentes que cumprem medidas sócio-educativas em meio aberto ou egressos do sistema privativo de liberdade. Esse projeto visa capacitar os jovens no ramo da floricultura e jardinagem – garantindo-lhes inclusive a percepção de renda pelos trabalhos desenvolvidos à comunidade – além de proporcionar atividades de desenvolvimento pessoal, como esporte, música e palestras. Há também o projeto Escola de Passagem que atende adolescentes em medidas sócio-educativas em meio aberto fora da escola formal e em defasagem de idade e de série, visando reinseri-los na escola regular. Por fim, vale citar a criação da “Cooperativa de Mães” dos adolescentes infratores, espaço em que se busca incentivar essas mães a acompanhar os filhos no cumprimento da medida judicial, desenvolver habilidades e resgatar a auto-estima dessas mães, através da valorização de si e do trabalho. Sobre o assunto, consultar www.cededica.org.br.

80

trabalho bem sucedido de acompanhamento e direcionamento dos jovens infratores,

consiste na transferência ao CEDEDICA de atribuições de caráter administrativo antes

exercidas pelo próprio Juizado da Infância e Juventude. Evidentemente, a ausência de

instituições como essas, aliada ao descompromisso de muitos municípios para com a

assunção da execução das medidas sócio-educativas de meio aberto, acaba por relegar

inevitavelmente ao próprio judiciário o desempenho também dessas incumbências, pena de

inefetividade das decisões proferidas. Essa conjuntura revela o interesse dos magistrados

na criação e multiplicação de outros centros de defesa dos direitos das crianças e

adolescentes e sinaliza que a formação desses espaços demanda um impulso inicial a

cargo, por vezes, desses mesmos magistrados.

3.8.3 O papel do judiciário dentro do paradigma do ECA: outros exemplos

Ainda no tocante a essa problemática, vale mencionar, a título de ilustração, prática

descrita pelo Prêmio Innovare, da autoria do Tribunal de Justiça de Pernambuco, consistente

no desenvolvimento de projetos objetivando a reeducação e ressocialização de adolescentes

infratores bem como a capacitação de policiais militares sobre como abordar adolescentes

em conflito com a lei. Tais projetos obtiveram a adesão do Ministério Público, da Prefeitura

de Olinda, do Conselho Municipal de Assistência Social, do Conselho de Direitos da

Criança e do Adolescente, do Conselho Tutelar municipal, de organizações não

governamentais e de entidades comunitárias.146

146 A reforma silenciosa da justiça, op. cit., p. 231-237. Embora seguramente experiências como essas retratadas pelo Premmio Innovare também possivelmente venham sendo implementadas em outras localidades do país, importa refletir sobre algumas informações repassadas durante o II Simpósio sobre juventude, violência, educação e justiça, havido em Porto Alegre nos três primeiros dias do mês de agosto do presente ano e promovido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nessa ocasião, a presidente da FASE/RS, Dra. Jane Aline Kühn, evidenciou que imagens de jovens internados expostos a práticas de desnudamento ou a situações de clara violação a direitos fundamentais ainda são bastante presentes em inúmeros Estados brasileiros. Tal depoimento teve como base as várias visitas realizadas pela presidente às mais diversas instituições de internação do nosso país.

81

O Prêmio fez referência também ao Centro Sócio-Educativo Homero de Souza Cruz

Filho, criado em Boa Vista e vinculado ao Poder Executivo estadual, encarregado de

proporcionar aos jovens em conflito com a lei um conjunto de atividades e serviços

multidisciplinares com vistas a assegurar-lhes o desenvolvimento pessoal e social. Conta

com uma equipe formada por médicos, dentistas, psicólogos, pedagogos, advogados,

assistentes sociais, profissionais e educadores, além da participação direta das Secretarias de

Educação e Saúde, da Polícia Militar e de instituições privadas como o Sesi, Sesc e

Senai.147.

3.8.4 O papel do judiciário dentro de um novo paradigma de justiça

Naturalmente, as ações inovadoras implementadas no âmbito do atendimento sócio-

educativo148 supra mencionadas contribuem para imprimir efetividade ao sistema de

garantias dos direitos da infância e da juventude esculpido na lei 8.069/90. Cuida-se de

práticas que superam a concepção tradicional de que apenas singelas (ou mesmo profundas)

modificações operadas em sede legislativa ou reformas institucionais limitadas à seara da

gestão e da organização judiciária bastam para o enfrentamento da questão ligada à

criminalidade juvenil.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, “forte e impositivo em sua materialidade,

mas adaptável e aberto em seu desenvolvimento histórico”149, permite a experimentação

desse conjunto de abordagens realizadas mediante o engajamento funcional e comunitário

147 A reforma silenciosa da justiça, op. cit., p. 191-230.148 Vale precisar que o atendimento sócio-educativo, juntamente às políticas públicas básicas asseguradas pelo art. 4° da lei 8.069/90 e aos programas de atendimento protetivo previstos nos art. 101 desse mesmo diploma legal, integram o que se convencionou denominar “Sistema de Garantias dos Direitos da Infância e da Juventude”. 149 BRANCHER, Leoberto Narciso. Organização e gestão do sistema de garantias de direitos da infância e da juventude. In: KONZEN, Afonso Armando et al. (org). Pela Justiça na Educação. Brasília: Mec.Fundescola, 2000, p. 135.

82

de profissionais das mais diversas áreas e de instituições comprometidas com a causa dos

direitos infanto-juvenis.

Essa abertura ditada pelo propósito transformador e garantidor da proteção integral

à criança e ao adolescente, expresso no texto constituinte, autoriza que outras formas de

concepção e de realização de justiça sejam também testadas no âmbito dos Juizados da

Infância e Juventude. É o caso das práticas restaurativas.

3.8.4.1 O paradigma da justiça restaurativa

A justiça restaurativa, expressão de um novo modelo de resolução de conflitos,

coloca-se como uma espécie de “terceira via entre as tradicionais respostas penais, que são

os castigos, de um lado, e os tratamentos de outros”150. Ao invés de uma abordagem

meramente punitiva ou terapêutica, busca desenvolver estratégias que respeitem a

autonomia do sujeito e da comunidade, ocupando-se primordialmente não com a violação

da norma legal em si, mas com as conseqüências provocados pela infração a essa norma. O

enfoque forjado por esse novo paradigma de justiça consiste na busca de alternativas de

responsabilização efetiva dos agentes de condutas infracionais com vistas a não só recompor

o status quo ante, mas modificar os comportamentos subjacentes às práticas violentas.

Brevemente, poder-se-ia desenhá-la da seguinte maneira:

150 BRANCHER, Leoberto. Disponível no site www.justica21.org.br. Acesso em 09.08.06.

83

enquanto modelo para a resolução de conflitos, é tanto concepção como método, e que nasceu parra humanizar e conter um processo criminalizante e punitivo cada vez mais crescente, onde não há lugar para os protagonistas do conflito, desviados das suas faces humanas e das suas responsabilidades para com o todo. Nesse sentido, a justiça restaurativa parece ir além do estado de paz anterior ao conflito para reconstruir a concepção ampliada de justiça; para fazer valer o contexto significativo da inclusão social como elemento indissociável de democracia, e para enfatizar o valor da responsabilidade como padrão ético individual e coletivo insubstituível.151

Sob uma perspectiva histórica, contemporaneamente reconhece-se que as práticas

restaurativas remontam às tradições de alguns povos antigos orientais e ocidentais, estando

ainda presentes, por exemplo, no Japão, em populações aborígenes do Canadá e entre o

povo Maori, na Nova Zelândia. Os programas específicos de Justiça Restaurativa, todavia,

são bastante recentes, tendo ganhado seu principal impulso152 na Nova Zelândia em 1989,

numa tentativa de redução das taxas de reincidência entre jovens criminosos mediante a

adoção de um sistema paralelo, alicerçado em princípios contrapostos àqueles que

permeiam o procedimento formal-punitivo. 153 Importante explicitar que essas práticas não

visam substituir, mas somente complementar o sistema tradicional. Aliás, o novo modelo

somente tem aplicação se presentes condições peculiares, tais como admissão pelo

transgressor quanto à verdade dos fatos e concordância de todos os interessados na solução

do problema pela via restaurativa.

151 Trata-se da apresentação escrita por João Abílio de Carvalho Rosa à obra Justiça Restaurativa: um caminho para os direitos humanos?(Porto Alegre: Instituto de Acesso à Justiça, 2004).152 Sinale-se, a propósito, que o programa desenvolvido na Nova Zelândia foi antecedido por experiências de mediação promovidas por movimentos de assistência religiosa em presídios dos Estados Unidos, a partir dos anos 70. A novidade da experiência está na reformulação do conceito de crime e de justiça. Maiores informações poderão ser encontradas no site www.justica21.org.br (acesso em 09.08.06).153 ROLIM, Marcos. Justiça Restaurativa: para além da punição. In: Justiça Restaurativa: um caminho para os direitos humanos? Porto Alegre: Instituto de Acesso à Justiça, 2004, p. 7-31. O autor também faz referência às práticas restaurativas observadas nas sociedades pré-coloniais africanas. No Japão, essas operam ao lado do sistema formal e hierárquico. Em relação à experiência que vem sendo desenvolvida na Nova Zelândia, ainda não há estatística precisa e concludente que revele a obtenção ou não dos resultados esperados, embora se possa intuir o acerto do programa com os dados já disponibilizados. Sobre os princípios norteadores da Justiça Restaurativa e o quadro comparativo com o modelo tradicional, vide site www.justica21.org.br (acesso em 08.08.06)

84

Alguns autores vêm inclusive apresentando a justiça restaurativa como forma de

democracia participativa aplicada ao sistema judiciário, em que os “agentes de justiça” não

são funcionários do Estado, mas a ele estão ligados por um vínculo formal, acrescentando

que

os programas restaurativos são práticas de micro-justiça que complementam o sistema de justiça formal e são implementados freqüentemente por órgãos estatais. Estas práticas são manifestações concretas de justiça alternativa legal: eles constituem (micro)sistemas de justiça paralelos que existem fora do aparato judicial formal mas dentro dos limites legais, e que fornecem justiça por canais que não são monopolizados pelo sistema de justiça formal mas são legitimados por uma forma de consenso da sociedade. As práticas restaurativas não são feitas para substituir o sistema de justiça tradicional, mas sim para complementar instituições legais existentes e melhorar o resultado do processo de justiça (...) A micro-justiça pode ter um efeito positivo intrínseco para o processo e o resultado de justiça por reduzir o volume de casos para os tribunais, melhorar a imagem do sistema de justiça formal (...), dotar poder aos cidadãos e às comunidades através da participação ativa no processo de justiça, favorecer a reparação e a reabilitação ao invés da retribuição, ter por base os consensos ao invés da coerção.154

O que importa consignar é que não há forma “correta” de aplicação das práticas

restaurativas. Segundo Alisson Mores155, os círculos decisórios, a mediação infrator-vítima,

encontros restaurativos, painéis comunitários de restauração e encontros com grupos

familiares são locais propícios para o desenvolvimento de práticas restaurativas. A essência

desse modelo está no empoderamento dos infratores e das vítimas e na capacidade de lhes

oferecer sentimentos de inclusão e de satisfação. A justiça restaurativa, enfim, é um sistema

de valores radicado nos princípios da inclusão e co-responsabilidade de todos os envolvidos

na infração. Muito embora venha usualmente associada ao campo criminal, pode ser

154 OXHORN, Philip e SLAKMON, Catherine. Micro-justiça, desigualdade e cidadania democrática: a construção da sociedade civil através da justiça restaurativa no Brasil. In: www.justica21.org.br. Os autores citam como exemplo dos mencionados “agentes de justiça” os facilitadores de justiça restaurativa no Brasil.155 Ver nome do texto. Pedro Scuro Neto, além dessas práticas, acrescenta os programas de assistência a vítimas e a ex-infratores, programas de restituição e de prestação de serviço à comunidade (Fazer justiça restaurativa: padrões e práticas. In: www.tj.rs.gov.br. Acesso em 08.08.06)

85

aplicada a outras áreas, como a seara trabalhista, os conflitos agrários, nas questões de

trabalho infantil ou escravo e, principalmente, no ambiente escolar.156

Na Austrália, em 2001, desenvolveu-se um projeto piloto de encontros restaurativos

por encaminhamento judicial, os quais geravam um relatório dirigido ao juiz que, diante do

eventual acordo obtido nesses encontros, podia homologar total ou parcialmente o ajuste de

vontades, ou suspender o processo até que o cumprimento integral do pactuado.157

No Brasil, o projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça

Brasileiro”, promovido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD

– e pelo Ministério da Justiça, implementou, a partir de 2005, três pólos de aplicação

experimental da Justiça Restaurativa: em Porto Alegre e em São Caetano do Sul, nas Varas

da Infância e Juventude, e no Distrito Federal, no âmbito do juizado especial criminal.

Essas instituições também vêm apoiando o projeto “Justiça para o Século 21”,

lançado em agosto de 2005 numa tentativa de divulgação e aplicação das práticas

restaurativas na rede de proteção à infância e à juventude da capital, bem como no sistema

de ensino de Porto Alegre, como inovadora estratégia de abordagem ao problema da

violência infanto-juvenil. A Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS – e sua

Escola Superior da Magistratura forneceram a retaguarda institucional desse projeto, cuja

implementação encontra-se ancorada à 3ª Vara do Juizado da Infância e Juventude da

capital gaúcha, competente para executar as medidas sócio-educativas aplicadas a

adolescentes infratores.158

156 Nesse sentido, importa mencionar a inauguração em 20 de maio de 2006 da “Sala do Bem Querer", implementada na Escola Estadual de Ensino Fundamental Rafael Pinto Bandeira, em Porto Alegre, como local dedicado à realização dos círculos restaurativos. Essa escola participa do projeto Justiça para o Século 21 e foi a pioneira na adoção de um espaço próprio para a aplicação das práticas restaurativas (in: www.justica21.org.br. Acesso em 08.08.06)157 Consultar site www.justica21.org.br.158 O projeto conta com o engajamento operacional da promotoria de justiça e da defensoria pública em atuação na 3ª Vara e também com a parceria travada com a FASE – Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (antiga Febem), que executa as medidas sócio-educativas privativas da liberdade; a FASC – Fundação de Assistência Social e Cidadania, órgão da assistência social municipal responsável pela execução

86

Dentre as várias atividades desenvolvidas159, destaca-se – para os fins deste estudo –

a Central de Práticas Restaurativas, coordenada pela 3ª Vara do Juizado e planejada como

espaço apropriado para a promoção de círculos restaurativos prévios, concomitantes ou

posteriores ao processo judicial de apuração do ato infracional. A origem dos

encaminhamentos é variada, sendo que, a maioria deles tem

ocorrido nos processos de conhecimento, provindos da audiência inicial de apresentação (equivalente ao interrogatório do processo criminal). Nesse momento o juiz pode suspender a audiência e encaminhar o caso ao círculo restaurativo, cujo acordo poderá subsidiar a aplicação da medida em prosseguimento, ou desde logo ajustar genericamente a medida, encaminhando ao círculo para, já sob a competência do juízo do processo de execução, serem melhor especificados os compromissos a serem abrangidos no cumprimento da medida. Também na audiência de instrução poderá tornar-se oportuno o encaminhamento, especialmente porque este será o momento do contato do juiz com a vítima. Especialmente nos fatos de maior impacto psicológico, como por exemplo em roubos, esse momento, que em regra sucede algumas semanas após a ocorrência, pode se afigurar emocionalmente mais propício para abordagem da vítima – preferencialmente depois da sua oitiva pelo juiz, até então, nesses casos,

das medidas sócio-educativas de meio aberto; a Secretaria Estadual de Educação; a Secretaria Municipal de Educação; a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana, através da Guarda Municipal; e outras instituições relacionadas à área da infância e da juventude, todas firmatárias de um protocolo formal em que se comprometem a empregar suas estruturas institucionais, bem como seus recursos humanos, “na consecução dos objetivos do projeto, que se propõe, genericamente, a implantar práticas restaurativas para resolver situações de violência envolvendo crianças e jovens em Porto Alegre.”(BRACHER, Leoberto. BRANCHER, Leoberto. Justiça, responsabilidade e coesão social: reflexões sobre a implementação da Justiça Restaurativa na Justiça da Infância e da Juventude em Porto Alegre. Disponível in: www.justica21.org.br. Acesso em 08.08.06).159 Outros avanços conquistados também merecem destaque: a criação do grupo de trabalho denominado “G11”; a realização do “Curso de Práticas Restaurativas”; a implantação dessas práticas no âmbito do atendimento técnico das medidas sócio-educativas (FASE e FASC); a formação de um colegiado de coordenação interinstitucional, a formação de um “grupo de referência”, denominado G60 e integrado pelos multiplicadores participantes do Curso de Formação em Práticas Restaurativas; a formalização de um Protocolo de Intenções abrangendo o compromisso de 18 instituições engajadas na promoção de práticas restaurativas; a criação do site do projeto (www.justica21.org.br), destinado à difusão de conteúdos e interação entre o pessoal envolvido; a criação de grupos de trabalho interno em cada instituição parceira para promoção dos objetivos do projeto (FASE, FASC, SE e SMED); e o compromisso institucional com a criação de grupos de estudos em cada um dos citados 28 espaços institucionais de implementação experimental das práticas restaurativas (BRACHER, Leoberto. BRANCHER, Leoberto. Justiça, responsabilidade e coesão social: reflexões sobre a implementação da Justiça Restaurativa na Justiça da Infância e da Juventude em Porto Alegre, op. cit.). Importante mencionar a relevância que hoje vem se atribuindo à avaliação externa de projetos experimentais. Nesse sentido, o Ministério da Justiça abriu concurso para avaliador externo dos pilotos de Justiça Restaurativa no Brasil (informação disponível no site www.justica21.org.br, acesso em 30.05.2006).

87

mantendo-se os moldes do processo convencional. Também nos processos de execução de medidas sócio-educativas são originados casos para atendimento em círculos restaurativos, em regra nos casos de adolescentes privados da liberdade e em razão da identificação de peculiaridades que o tornam propício para o procedimento, o que se verifica nas audiências de revisão (semestrais) da medida. Além destes, alguns outros casos, ainda poucos é verdade, também já têm sido encaminhados para os círculos diretamente pela promotoria, mediante exclusão do processo. 160

A “doutrina da proteção integral”, consagrada no Estatuto da Criança e do

Adolescente, para além de inspirar políticas públicas na seara infanto-juvenil e informar a

atividade legisferante e jurisdicional, sugere uma forte capacidade de combinação com os

ideais da Justiça Restaurativa enquanto mecanismos propulsores e revigorantes da própria

proposta embasadora dessa mesma doutrina. Segundo o magistério de Leoberto Brancher,

os Juizados da Infância e Juventude revelam-se como laboratórios privilegiados para o

desenvolvimento e difusão de práticas restaurativas161; práticas essas que, ao conferir uma

nova perspectiva sobre o modo de realização de justiça, guardam em si a possibilidade de

infundir soluções ainda inusitadas para a ausência de efetividade do sistema de justiça penal

juvenil.

Esse quadro de inefetividade do modelo tradicional de justiça encontra-se estampado

nos índices indicadores do agravamento da violência juvenil, no descrédito público no

sistema judiciário – concebido como o principal responsável pela tão propalada

“impunidade” – e no apelo generalizado pela redução da idade da responsabilização penal.

Para reverter essa lastimável conjuntura, a realidade demonstrou, por diversas vezes162, que

160 BRANCHER, Leoberto. Justiça, responsabilidade e coesão social: reflexões sobre a implementação da Justiça Restaurativa na Justiça da Infância e da Juventude em Porto Alegre, op. cit.161 BRANCHER, Leoberto. Justiça, responsabilidade e coesão social: reflexões sobre a implementação da Justiça Restaurativa na Justiça da Infância e da Juventude em Porto Alegre, op. cit.162 O magistrado Leoberto Brancher relata um caso que serve de ilustração: uma briga inicial entre dois cachorros da vizinhança ensejou uma série de ameaças e agressões de um vizinho em relação ao outro o qual, diante da insuportabilidade da situação e da ineficácia do sistema judicial, lhe desfere tiros, causando-lhe a morte. De nada adiantaram as ocorrências policiais registradas contra a vítima, tampouco a audiência no Juizado Especial Criminal, realizada inclusive em tempo razoável (BRANCHER, Leoberto. Justiça, responsabilidade e coesão social: reflexões sobre a implementação da Justiça Restaurativa na Justiça da Infância e da Juventude em Porto Alegre, op. cit.)

88

não bastam apenas normas rígidas ou flexíveis, agindo em um ambiente institucional

estruturado e aplicadas a procedimentos judiciais processados em tempo razoável. Se isso

serve como sinônimo de eficiência, nem por isso também se traduz, necessariamente, em

termos de eficácia e efetividade do sistema.163Aliás, um modelo eficaz e efetivo somente se

alcança na medida em que os conflitos que batem às portas do judiciário ali estancam a sua

jornada, ao invés de ali encontrarem justificativa para continuarem reproduzindo-se no

contexto jurídico-social por tempo indefinido.

3.9 Alargamento do conceito de função social do juiz

Considerando o desenho político-institucional acima delineado, os seguidores do

novo paradigma aportado pela justiça restaurativa enfatizam largamente a possibilidade de

se construir, a partir da sua metodologia, patamares mais sólidos sobre os quais seja possível

erigir soluções jurídicas eficazes e efetivas. É natural que isso interesse diretamente aos

juízes, preocupados com o sucesso e com a repercussão social da sua atividade judicante.

Não é sem explicação, pois, que os partidários do modelo aqui esboçado identifiquem-se,

por exemplo, com a figura do próprio integrante da magistratura, voltado à busca incessante

por instrumentos que potencializem o exercício da função jurisdicional e que garantam, por

conseqüência e na medida do possível, uma melhor imagem do judiciário junto à

comunidade.

Não surpreende, nessa mesma linha, que todo o projeto de implementação de

práticas restaurativas na rede de proteção aos direitos da criança e do adolescente em Porto

Alegre encontre seu impulso inicial, seu alicerce de desenvolvimento e seu ponto de

referência no âmbito do Juizado da Infância e da Juventude. Certamente, considerada a

idéia de integração e de cooperação subjacente à doutrina da proteção integral e ao modelo

163 BRANCHER, Leoberto. Justiça, responsabilidade e coesão social: reflexões sobre a implementação da Justiça Restaurativa na Justiça da Infância e da Juventude em Porto Alegre, op. cit.

89

da justiça restaurativa, esse centro referencial vem paulatinamente reunindo os esforços dos

demais protagonistas da rede de amparo aos interesses infanto-juvenis, tais como Conselhos

de Direito, Conselhos Tutelares, Ministério Público, Defensoria Pública e instituições

governamentais e não governamentais.

O que se pretende enfocar, nesse contexto, é que o quotidiano da implementação dos

projetos “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro” e “Justiça

para o Século 21” vem demonstrando que a tão esperada rede não se forma de uma hora

para outra; tampouco da noite para o dia incutem-se nas pessoas envolvidas nessas

experiências novas concepções hábeis a desencadear uma série de comportamentos com os

quais ainda não estão familiarizadas. Ao contrário, as peças dessa engrenagem e a difusão

de uma nova cultura compõem os elementos e o norte, respectivamente, de um processo

lento e gradual de construção.

O importante é que seja dado início a esse processo. E dessa tarefa muitos

magistrados vem se desincumbindo a contento, como se procurou desvelar ao longo dessa

monografia. Seja na seara da infância e juventude ou dos juizados especiais criminais164,

onde estão sendo conduzidos projetos pilotos de implementação de práticas restaurativas,

seja em outros campos de atuação jurisdicional, experiências inovadoras vem sendo

coordenadas por magistrados e tribunais numa tentativa de concretizar aquilo que Joaquim

Falcão denominou de “reforma silenciosa da justiça”. Uma reforma que supera as

superficiais ou mesmo sensíveis adequações de ordem legislativa para adentrar no dia-a-dia

de cada juizado, de cada vara, introduzindo dinâmicas inusitadas fulcradas no propósito de

se obter uma justiça mais eficaz e mais democrática.

Uma reforma, por fim, que reclama dos magistrados mais do que o já árduo e

precioso exercício da função judicante. Ou seja, embora de extrema relevância o enfoque

164 Como já referido supra, a implementação de práticas restaurativas também vendo sendo realizada em caráter experimental no Distrito Federal, no âmbito do Juizado Especial Criminal do Núcleo Bandeirantes, cidade satélite de Brasília.

90

no juiz resolutor de conflitos sobre o qual se debruçou o primeiro capítulo desse estudo, essa

perspectiva não resolve toda a problemática que aponta em algumas áreas da atuação

jurisdicional. Refere-se aqui àqueles juizados que se encontram adstritos a lidar com

matérias consideradas peculiares em razão da natureza dos conflitos ou das pessoas neles

envolvidas – a exemplo das varas de infância e juventude, de família, das especializadas em

meio ambiente ou em conflitos agrários e dos juizados especiais criminais - ou, ainda, que

operam em contextos sócio-geográficos bastante particulares – pense-se, a propósito, à

vastidão e à dificuldade de locomoção no norte do Brasil.

As práticas selecionadas ao longo do terceiro capítulo desvelam que algo já vem

sendo realizado – ainda que, na maior parte das vezes, em caráter experimental – por

iniciativa de magistrados que atuam exatamente nas condições especiais acima assinaladas.

Importa frisar que tais experiências, de natureza extrajudicial, não substituem, mas

complementam e se agregam às funções típicas desempenhadas, com repercussão direta na

própria efetividade das decisões judiciais, em nítida observância ao cumprimento da função

social afeta ao Poder Judiciário.

Acerca desse último tema, sustentou Michele Taruffo – ao conceber o processo civil

como instrumento de solução também de conflitos sociais e econômicos e de redistribuição

de riquezas e vantagens – a necessidade sobretudo de “um juiz que desempenhe adequada e

responsavelmente o papel de operador social que de fato lhe compete”165. Mauro

Cappelletti, da mesma forma, ressalta que os estudos comparativos por ele realizados

demonstram uma tendência evolutiva nas sociedades modernas no sentido da adoção de um

sistema de responsabilidade que se poderia denominar de “social”. Afirma, assim, que o

Direito e a Justiça não mais se enquadram [tão-só] dentro da moldura tecida por aqueles que

criam o direito, que governam, que julgam e administram. O Direito e a Justiça pertencem a

um quadro muito mais democrático: o quadro dos “consumidores” do direito.166 A

responsabilidade judicial, dessa forma, 165 TARUFFO, Michele. La giustizia civile in Italia dal ‘700 a oggi. Bologna: il Mulino, 1980, p. 363-364.166 CAPPELLETTI, Mauro. Giudici irresponsabili? Studio comparativo sulla responsabilità dei giudici. Milano: Giuffrè, 1998, p. 90.

91

deve ser vista não em função do prestígio ou da independência da magistratura em quanto tal, nem em função do poder de uma abstrata entidade, como o Estado ou o soberano, seja esse indivíduo ou coletividade. Ela deve ser vista, ao contrário, em função dos usuários e, assim, como elemento de um sistema de justiça que conjugue a imparcialidade (...) com razoável grau de abertura e de sensibilidade à sociedade e aos indivíduos que a compõe, a cujo serviço exclusivo deve o sistema judiciário operar.167

Imperioso, pois, que o juiz exerça o seu papel de agente político e social,

incorporando, como diria Paulo Bonavides, “em seu juízo ou aparelho de reflexão e

entendimento uma vasta e sólida pré-compreensão das questões sociais”.168

Norteados (talvez) por essas constatações, muitos são os doutrinadores e juristas que

vêm aderindo à concepção da função promocional do ordenamento jurídico e, como natural

conseqüência, propugnam a assunção de um papel modificador e criador por parte dos

magistrados. Fora-se o tempo do juiz “boca da lei”, aplicador mecânico de um conjunto de

regras elaboradas com o fito de disciplinar a vida em sociedade. Além dessa função

sancionadora e negativa, o Direito exerce um papel de repercussão social muito mais amplo.

Como diria Cappelletti, a concepção tradicional do Direito e da Justiça que os

“enclausurava” dentro de um quadro tecido por aqueles que criam o direito, que governam,

que julgam e administram, vem sendo substituída pela idéia de que o Direito e a Justiça

devem estar funcionalizados à perspectiva dos usuários, dos consumidores desse Direito e

dessa Justiça.169

O panorama desenhado ao longo dessas páginas sugere que a função social que

espera aos magistrados perpassa não só a atividade desempenhada pelo juiz bouche de la

167 CAPPELLETTI, Giudici irresponsabili?, op. cit., p. 90.168 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 540. 169 Evidentemente, deve-se estar atento para não radicalizar essa visão, transformando o cidadão em mero usuário ou consumidor da justiça. Essa perspectiva, como percebe Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, “corre o risco de coisificá-lo, atribuindo desmedido significado aos valores custo e eficiência, em detrimento de outros aspectos axiológicos também importantes. Não se trata de ‘consumir’ a justiça, visão amoral e mercantilista, mas de distribuí-la adequadamente”(Do formalismo no processo civil, op. cit., p. 69).

92

loi, mas, em certos casos, a do próprio juiz resolutor de conflitos. Se a tônica hoje recai na

necessária inserção do magistrado em um ambiente sócio-político em que o direito é

concebido como um instrumento promocional de direitos dos cidadãos – tema do primeiro

capítulo –, parece-me possível ampliar esse enfoque para nele enquadrar também um outro

modelo de juiz, mais ativo e participativo, consciente não só dos limites mas igualmente das

potencialidades proporcionadas pelo cargo que ocupa e pela autoridade que lhe é inerente.

Esse capítulo empenhou-se justamente no ilustrar atuações concretas desse “novo” juiz,

mais coerente com a perspectiva de uma justiça democrática e efetiva.

Não se mostra demasiado sustentar que as experiências aqui apresentadas implicam,

em certa medida, uma “quebra paradigmática”. Apesar da expressão destacada colocar-se

na ordem do dia, via de regra os fenômenos que a ela se reportam provocam resistência no

meio sócio-institucional em que se manifestam. Aliás, a recusa em enfrentar o

“desconhecido” e a tendência inercial à reprodução do antigo revelam-se uma constante na

história da humanidade. Nesses momentos angustiantes de transição, como percebe

Boaventura de Sousa Santos, o conhecimento até então dominante passa a ser um guia fraco

e precisa ser substituído por um novo, o que pode ser buscado no passado através da

revisitação de “tradições intelectuais e políticas banidas ou marginalizadas, cuja

autenticidade surge sob uma nova luz depois de se ‘desnaturalizar’ ou até de provar a

arbitrariedade desse banimento e marginalização.”170 O jurista enfatiza também que,

acima de tudo, o novo conhecimento assenta num des-pensar do velho conhecimento ainda hegemônico, do conhecimento que não admite a existência de uma crise paradigmática porque se recusa a ver que toda as soluções progressistas e auspiciosas por ele pensadas foram rejeitadas ou tornaram-se inexeqüíveis. Des-pensar é uma tarefa epistemologicamente complexa porque implica uma desconstrução total, mas não niilista, e uma reconstrução descontínua, mas não arbitrária. Além disso, por ser efectuada no encalço da ciência moderna, o momento destrutivo do processo de des-pensar tem de ser disciplinar (...), ao

170 SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 186.

93

passo que o seu momento construtivo deve ser indisciplinar: o processo de des-pensar equivale a uma nova síntese cultural.”171

Razoável intuir que é justamente o reconstruir descontínuo provocado pelas crises

paradigmáticas que as tornam tão temidas a ponto de serem criticadas, muitas vezes de

maneira um tanto infundada.172 Afinal, a substituição de normas precisas e sedimentadas

por comportamentos e regras criadas e alteradas em conformidade com o contexto em que

devem ser aplicadas seguramente reproduz uma sensação de insegurança, realçando de

forma ainda mais contundente atitudes tendentes à manutenção do status quo.

Para que essa ruptura com o passado se processe em condições tais que adquira

aceitação e adesão social é preciso sim que se fixem alguns parâmetros a serem seguidos.

Mas as doses de rigidez e de flexibilidade que se deve vislumbrar concomitantemente

nesses parâmetros devem ser tais que, de um lado, permitam identificar os princípios

informadores e os resultados que se pretende alcançar e, de outro, admitam as inevitáveis

adequações de ordem prática a serem adotadas durante o desenrolar do processo de

mudança.

Sirva de exemplo a experiência de implementação de práticas restaurativas no

Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre. Partiu-se de uma idéia-base, norteada

pelas proposições e estratégias inovadoras subjacentes ao modelo de justiça restaurativa,

mas vários obstáculos apontaram ao longo da execução da experiência, a que se seguiram

significativos ajustes, provavelmente não calculados ao início do projeto. Certamente as

171 SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, op. cit., p. 186.172 Aliás, não necessariamente mudanças paradigmáticas dão ensejo à formulação de uma série de críticas a seu respeito. Qualquer reforma, independentemente da sua intensidade ou do impacto jurídico-social por ela acarretado, suscita controvérsias acerca do seu conteúdo. Basta pensar às recentes reformas no Código de Processo Civil brasileiro, voltadas a imprimir racionalidade e celeridade ao instrumento processual, que não passaram incólumes à censura de muitos doutrinadores e operadores jurídicos, apesar de não terem introduzido alterações realmente profundas ao sistema.

94

demais práticas ilustradas ao longo desse capítulo também incorreram em dificuldades

quando da implementação dos respectivos planos de ação, o que sem dúvida demandou

ajustamentos criativos por parte de seus idealizadores, somado ao apoio da rede de

colaboradores.

Nesse ponto, poder-se-ia questionar qual a razão de tanto esforço por parte de alguns

magistrados para levar a efeito mudanças – qualificáveis em maior ou menor medida como

“paradigmáticas” –, mesmo cientes dos mais versáteis empecilhos que se instalarão

inevitavelmente durante a empreitada. É bem provável que, como perspicazmente aponta

Boaventura de Souza Santos, o desconforto, o inconformismo ou a indignação perante o que

existe – fenômeno ressentido naturalmente também pelos integrantes do Judiciário – suscita

impulso para teorizar sua superação.173 É evidente que essa hipótese não responde

integralmente à indagação proposta. Outras variáveis hão de ser equacionadas para que se

logre alcançar uma resposta razoavelmente satisfatória.

Em primeiro lugar, é necessário retomar o discurso apresentado por Luis Bolzan de

Morais a respeito da crise a que denomina de “paradigmática” 174, circunscrita aos métodos e

conteúdos utilizados pelo direito para a busca de uma solução pacífica aos litígios. O

Judiciário tradicionalmente tem-se valido de um modelo conflitual de jurisdição, pautado na

condução do processo pelo órgão jurisdicional a partir de uma visão dicotômica dos

interesses em jogo e de uma perspectiva que reduz a atividade jurisdicional ao

preenchimento em concreto da equação “ganhador-perdedor”175. À evidência que esse

modo de agir conserva pouco ou nenhum espaço à conciliação, uma vez que não se

preocupa com as necessidades subjacentes que induziram a parte a procurar o foro judicial;

necessidades essas que, caso supridas, implicam larga probabilidade de efetivamente se

173 SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, op. cit., p.23.174 MORAIS, Jose Luis Bolzan de. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 100.175 A própria metodologia de ensino adotada nas faculdades de direito, ainda pautada na incorporação pelos alunos do teor de códigos e leis esparsas, cuja aprendizagem é necessária para o devido enquadramento legal das controvérsias posta em exame, contribui para essa visão dicotômica do processo. Disciplinas e práticas com enfoque na conciliação e mediação são relegadas a um segundo plano.

95

colocar termo à controvérsia, sem a exigência da interposição de recurso ou do ajuizamento

de demandas ulteriores indiretamente relacionadas à ação inicial.176 O modelo conflitual, ao

invés de analisar esses anseios ocultos, inquieta-se com a questão posta formalmente em

juízo, a que se estabelecerá se merece ou não acolhimento pelo sistema.177

Em razão desse contexto, o jurista propõe o incentivo a mecanismos consensuais de

resolução de litígios, “onde na discussão do conflito são trazidos à luz todos os aspectos que

envolvem o mesmo, não se restringindo apenas àqueles dados deduzidos na petição inicial e

na resposta de uma ação judicial”178. Essa abordagem assume condições de ser aplicada

inclusive em juízo – notadamente na audiência de conciliação – mediante a utilização de

algumas técnicas próprias do instituto da mediação179, centradas na investigação das

posições, interesses e necessidades dos contraditores para que, com base nos dados

colhidos, se possa construir um acordo que atenda aos reais interesses de ambas as partes. É 176 Pense-se aos pleitos que adentram as portas dos Juizados Especiais Cíveis, articulados muitas vezes de maneira imprecisa – sobretudo quando redigidos “em balcão” – em que o provimento jurisdicional postulado não condiz com o real anseio da parte. Um breve diálogo com os contraditores, não apoiado na premissa do “ganhador-perdedor”, não raro é capaz de fixar os verdadeiros pontos controvertidos – mesmo se não expressos no pedido inicial – e, com base nisso, revela-se viável construir uma solução justa e eficaz.177 Esse modus operandi mostra-se inadequado principalmente quando a demanda posta em discussão refere-se a direito de família. Nessas circunstâncias, seria recomendável que o magistrado experiente, vislumbrando hipótese de acordo, procurasse suscitar e resolver em conjunto com as partes aquelas questões que, embora não deduzidas expressamente no processo, certamente virão à tona em momento ulterior, o que estará a exigir nova ação judicial. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira informa ainda que algumas legislações estrangeiras possibilitam a alteração do pedido e/ou da causa de pedir, mesmo sem o consentimento da parte adversária, caso preenchidos os requisitos legais. No caso da experiência alemã, a jurisprudência vem entendendo que é possível a modificação da demanda quando houver interesse público no rápido desenvolvimento do processo ou em razão das exigências da economia do juízo (Efetividade do processo de conhecimento. In: Do formalismo no processo civil, op. cit., p. 248-249). A legislação brasileira, todavia, somente permite a modificação do pedido ou da causa de pedir, com o consentimento do réu, até o saneamento do processo (art. 264 do CPC). Somente em caso de acordo é possível ampliar ou modificar o objeto da demanda. 178 MORAIS, José Bolzan de. Crise da jurisdição e acesso à justiça: uma questão recorrente. In: Estudos sobre mediação e arbitragem, op. cit., p. 81.179 Segundo Adolfo Braga Neto, a mediação se desdobra em sete etapas que devem ser percorridas pelas partes em conjunto com o mediador. O processo inicia com a apresentação do procedimento, seguindo-se a investigação das posições e sobretudo dos interesses e necessidades dos mediados, mediante a formulação de perguntas e adoção da técnica adequada, além de uma escuta ativa. Após, cabe a estimulação dos contraditores a refletir sobre as opções apontadas por eles próprios e pelo interventor e, em seguida, a escolha da opção mais apropriada para a resolução da controvérsia, culminando o processo com a firmatura do termo final retratando todos os compromissos assumidos na superação do conflito (Estudos sobre mediação e arbitragem, op. cit., p. 24-27). Evidentemente, a mediação demanda mais tempo do que a conciliação para que se alcance a solução pretendida. Isso não impede, todavia, que as etapas acima assinaladas também sejam percorridas, mesmo se brevemente, também pelos magistrados quando da audiência de tentativa de conciliação.

96

o âmbito extrajudicial, todavia, que reserva um terreno fértil para o desenvolvimento das

medidas alternativas de resolução de conflitos – consubstanciadas em síntese nas técnicas de

mediação e arbitragem – cujo sucesso refletir-se-á diretamente no aparelho estatal em razão

da redução de número de demandas judicializadas.

Não impressiona que o próprio Judiciário esteja envolvido no processo de

disseminação do conhecimento jurídico e na criação de “agentes do direito” que assumam a

função de incentivar a adoção dessas medidas alternativas de resolução pacífica de

conflitos, atuando diretamente como facilitadores em programas de mediação e conciliação.

Aliás, na esteira trilhada por Jasson Ayres Torres, ao Judiciário impõe-se abraçar toda

iniciativa que vise uma solução mais ágil do litígio e que atue de maneira efetiva para que o

direito seja aplicado, a paz social restabelecida e o acesso à justiça ampliado180. Ainda

segundo o posicionamento do autor,

não se pode pretender a exclusão do Poder Judiciário, mas sim pensar na colaboração de profissionais habilitados a cooperar, decisivamente, na agilização dos processos. Não é criando uma Justiça privada substituindo a estatal que se vai encontrar um caminho balizador para os problemas que entravam um melhor atendimento da população. Pensamos na organização de mecanismos de solução rápida dos litígios, com implantação de instrumentos de conciliação e mediação, como alternativas supervisionadas [grifei] pelo Judiciário, que tem a experiência na realização da Justiça.181

A tônica recai, pois, na necessária colaboração do Judiciário mediante a sua

colocação como coordenador e/ou ponto de referência nesse processo de alargamento do

acesso à justiça. A própria estrutura e confiabilidade imprimida a esse Poder, aliadas à

autoridade que emana de seus agentes, justifica a relevância dessa atividade de coordenação

e supervisionamento. O programa “Balcão de Direitos” e “Justiça Cidadã”, instituídos no 180 TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas, op. cit., p. 156-157.181 TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas, op. cit., p. 156.

97

Rio de Janeiro, e a experiência desenvolvida pelas Promotoras Legais Populares (PLPs),

tanto em São Paulo como no Rio Grande do Sul, são exemplos da participação ativa de

integrantes do Judiciário, como já referido oportunamente Essas experiências beneficiam

diretamente a instituição, o que se mostra ainda mais evidente no caso das PLPs que, como

já visto, atuam tanto na fase preparatória e instrutória do processo judicial bem como na

execução da sentença, assegurando eficácia à prestação jurisdicional, até hoje desprovida de

instrumentos de monitoramento. 182

Aliás, é viável afirmar que é justamente a questão da efetividade da atividade

judicial que aviva entre os magistrados a inquietude pela renovação do sistema judicial.

Uma sensação de impotência pode advir diante de uma solução incapaz de estancar o

processo de reverberação de controvérsias envolvendo a(s) mesma(s) parte (s) que, ao fim e

ao cabo, guardam a mesma essência ou os mesmos focos de tensão. Mas não só. Em

realidade, a problemática da efetividade se põe em termos notadamente mais complexos,

perpassando as repercussões de ordem (substancialmente) privada para alcançar um quadro

bem mais extenso, envolvendo outras instituições e a própria imagem do judiciário perante a

comunidade.

Esse trabalho pretendeu ilustrar algumas situações em que essa questão restou

evidenciada. É o caso das medidas sócio-educativas de meio aberto que dependem, para a

sua satisfatória execução, da intervenção da administração municipal e de convênios com

um conjunto de entidades parceiras para onde os adolescentes possam ser devidamente

encaminhados para desenvolver atividades ou serviços que respeitem a proposta pedagógica

do Estatuto da Criança e do Adolescente. É também o exemplo de algumas das penas

restritivas de direito substitutivas das penas privativas de liberdade, cujo êxito – com reflexo

nos índices de criminalidade e reincidência – demanda igualmente a constituição de

parcerias com instituições variadas que viabilizem, por exemplo, a prestação de serviços à

comunidade imposta pelo juízo. O sucesso da “justiça terapêutica” e da “justiça

restaurativa”, da mesma forma, exige a instalação de uma rede de órgãos governamentais e 182 FEIX, Virgínia. In: Acesso à justiça, op. cit., p. 33.

98

não-governamentais para que logre alcançar os objetivos propostos, com repercussão direta

na reprodução do judiciário no imaginário social.

Tais experiências, idealizadas ou coordenadas em maior ou menor dimensão por

juízes, alargam o conceito de função social do juiz e revelam sinais de democratização da

magistratura, realçando a efetividade da justiça. Dentro dessas coordenadas, vale reportar

novamente o posicionamento da Corregedoria de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul na

parte em que esclarece a justificativa do empenho da magistratura em atividades de caráter

não jurisdicional. Conforme os termos do parecer, o exercício de competências

administrativas carreadas ao magistrado-administrador legitimam-se sempre quando

inexistem meios para prestar a jurisdição de forma efetiva, colocando-se como exigência a

bem do interesse da própria administração da justiça. Embora a referida orientação tenha

servido ao propósito de apoiar a criação de programas municipais de cumprimento de

medidas sócio-educativas de meio aberto, a idéia também pode ser estendida às demais

práticas apontadas nesse capítulo.

O tema aqui discorrido revela-se naturalmente complexo – sobretudo na sua

aplicação prática – e ainda pouco discutido no meio acadêmico. De qualquer forma, se essa

monografia tiver logrado provocar a reflexão sobre o assunto, terá alcançado o seu objetivo.

99

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No redemoinho de idéias e experiências que se combinam neste início de década,

início de século e início de milênio, o questionamento sobre as instituições, especialmente

as estatais, ganha um destaque incontestável.183

O alargamento dos papéis e dos poderes desempenhados pelo Judiciário no

exercício de suas atribuições constitucionais – fenômeno ressentido em todas as

democracias modernas184 - coloca a estrutura e o funcionamento dessa organização no palco

das mais versáteis discussões.

Em um primeiro plano, debate-se acerca da ineficiência, do formalismo e do

distanciamento que se opera entre a magistratura e o povo a quem presta seus serviços. Em

parte, esses dois últimos fenômenos são tributários da manutenção de uma postura

mecanicista no exercício da jurisdição, resumida à aplicação pura e simplesmente da lei ao

caso concreto e descomprometida com as possíveis repercussões de ordem prática oriundas

da decisão judicial proferida. Esse episódio, como é fácil intuir, produz efeitos nefastos no

tocante à eficiência dos provimentos jurisdicionais, mormente quando esses são publicados

183 É o que sustenta Carmen Lúcia Antunes Rocha (A Reforma do Poder Jjudiciário, op. cit., p. 240).184 PIZZORNO, Alessandro. Il potere del giudice: Stato democratico e controllo della virtù. Bari: Laterza, 1998, p. 6.

100

sem qualquer investigação a respeito das questões subjacentes à demanda, que permanecem

ocultas a um juízo atento exclusivamente aos fatos articulados expressamente pelas partes

em seus arrazoados e pronunciamentos. Saliente-se que tal modus operandi ajusta-se ao

modelo do juiz bouche de la loi, inerte na condução do processo e refratário à dinâmica

dialética do processo, além de se ater a uma visão antagônica dos interesses em jogo,

pautada na lógica do “perdedor-ganhador”. Esse comportamento, conforme já sublinhado

nesse estudo, muito pouco espaço relega à construção de um acordo pelas partes que atenda

aos interesses substanciais de ambas e que coloque efetivamente fim à controvérsia.

Para além desse espectro desenvolvido em nível individual, o estereótipo do “juiz-

aplicador” da lei desconsidera as repercussões de ordem social que emanam de decisões

tomadas especialmente em lides mais complexas e polêmicas envolvendo interesses de

natureza pública. Essa atitude corrobora com a intensificação da tensão social que não foi

adequadamente equacionada em juízo, o que bem demonstram as demandas possessórias

ajuizadas em face dos “sem-terra” quando destituídas de qualquer tentativa real voltada à

mediação do conflito entre as partes oponentes e os órgãos públicos envolvidos.

Entendimentos e práticas judiciais como essas, pautadas na concepção de que aos

magistrados não compete imiscuir-se em questões relacionadas a políticas públicas, mas

aplicar estrita e cegamente as diretivas legais, somente contorna, sem dissolver, o estado

latente de beligerância, que ressurgirá, ainda mais forte, em futuras demandas.

Evidentemente, esse quadro coloca em cheque a efetividade da decisão judicial, na medida

que se revela incapaz de preencher um dos principais objetivos do processo civil: a

pacificação social.

Em contrapartida, coloca-se a figura do “juiz-resolutor” de conflitos, mais ativo e

participativo no cenário jurídico processual, preocupado com a relevância do diálogo com

as partes e com a tomada de decisões orientadas pela principiologia constitucional e dotadas

de efetividade.

Ocorre que, em certas áreas da atuação jurisdicional, em razão da natureza dos

conflitos ou dos sujeitos neles envolvidos – a exemplo das varas de infância e juventude, de

101

família, das especializadas em meio ambiente ou em conflitos agrários e dos juizados

especiais criminais – ou porque operam em contextos sócio-geográficos especiais – como a

região norte brasileira – a perspectiva delineada no parágrafo supra mostra-se insuficiente.

Afinal, a efetividade da atividade desempenhada por magistrados que jurisdicionam em tais

condições peculiares não depende apenas de uma postura endoprocessual. A questão coloca-

se sob um plano largamente mais complexo, pois condicionada à análise de uma série de

variáveis que fogem à dinâmica exclusivamente processual.

Esse estudo objetivou revelar algumas situações em que esse fenômeno restou

evidenciado. É o caso das medidas sócio-educativas de meio aberto que dependem, para a

sua satisfatória execução, da intervenção da administração municipal e de convênios com

um conjunto de entidades parceiras que tenham aderido à proposta pedagógica do Estatuto

da Criança e do Adolescente. É também o exemplo de algumas das penas restritivas de

direito substitutivas das penas privativas de liberdade, cujo êxito – com reflexo nos índices

de criminalidade e reincidência – requer a constituição de parcerias com instituições

variadas que viabilizem, por exemplo, a prestação de serviços à comunidade imposta pelo

juízo. O sucesso da “justiça terapêutica” e da “justiça restaurativa”, da mesma forma, exige

a instalação de uma rede de órgãos governamentais e não-governamentais que

compartilhem com os princípios e a metodologia proposta.

Aqui reside a justificativa do empenho de tantos magistrados na idealização ou

coordenação de experiências pioneiras voltadas à instalação dessas “redes” de atores que, ao

fim e ao cabo, são indispensáveis para que se alcance efetividade às decisões judiciais por

eles proferidas. Mas não só. Isso é sinal também do processo de democratização ao qual

vem se submetendo o Poder Judiciário. Democratização traduzida em termos de ampliação

do acesso do povo à justiça – de que são ilustrações os trabalhos desenvolvidos pelos

“agentes de direito” no campo das soluções alternativas de conflitos – e do acesso da justiça

ao povo – a exemplo das práticas elencadas no último capítulo dessa monografia.

Por fim, importa frisar que as mencionadas experiências conduzidas em maior ou

menor dimensão por juízes certamente alargam o conceito de função social do juiz. Um juiz

102

que, para alcançar efetividade e legitimidade aos seus pronunciamentos, encontra-se

constitucionalmente investido na função jurisdicional – que deve estar pautada no modelo

do “juiz-resolutor” de conflitos – e em atividades de caráter administrativo, sempre quando

inexistirem meios para prestar a jurisdição de forma efetiva. Na esteira do consagrado no

Plano de Gestão pela Qualidade do Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul185, é nisso

que reside a razão da existência do Poder Judiciário: uma instituição cuja grandeza venha

representada por altos índices de satisfação da sociedade; cuja força seja legitimada pela

competência e celeridade com que se distribui justiça; e cuja riqueza expresse-se pela

simplicidade dos processos produtivos, pelo desapego a burocracias e por desperdícios

nulos. Ou seja, uma instituição moderna e eficiente no cumprimento do seu dever

constitucional de concretizar os valores da justiça, da paz social e da efetividade de suas

decisões.

185 Aprovado pelo Egrégio Tribunal Pleno do Estado do Rio Grande do Sul, por unanimidade, em 27.03.95. Dito plano traduz a proposta de responder às expectativas e necessidades de justiça da sociedade, por meio da busca constante da melhoria contínua, bem como de buscar a satisfação de todos os integrantes do Poder Judiciário.

103

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