Fundamentos da Capoeira Angola o aprendizado · PDF fileanáloga à prática...

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  • Este trabalho corresponde a uma reflexo sobre o aprendizado de Capoeira Angola - Linha

    de Mestre Gato Preto no grupo Guerreiros de Senzala, sob a instruo do contra-mestre Pinguin.

    Fundamentos da Capoeira Angola

    o aprendizado performtico de uma linguagem corporal.

    Fbio Alex Ferreira da Silva

    USP

    Desde que Mestre Pastinha assumiu a voz da capoeira, tornando em letras os

    conhecimentos e sentimentos desta prtica, inaugurou-se um novo percurso na trajetria dos estudos

    sobre a capoeira. Se por um lado houve a tentativa de alguns intelectuais de capturar elementos

    dessa manifestao em registros de letras das msicas, elaborao de partituras, descries de seus

    rituais, fotografias, etc; a apreenso de aspectos imateriais relativos ao aprendizado da prtica da

    capoeira ainda era pouca.

    A partir desta contribuio do Mestre Pastinha, entre tantas, outros capoeiristas passaram a

    produzir essa modalidade de conhecimento; no eram mais informantes de um pesquisador de fora,

    ou at mesmo relativamente pertencente ao universo da capoeira, mas sem que esta se constitusse

    como sua prtica regular; passaram a ser autores, voz e corpo de um discurso, expressando pela

    escrita seus conhecimentos sobre capoeira.

    Esta dinmica marca a relao da capoeira com as universidades. Antigos mestres hoje

    recebem ttulos de doutores honoris causa; praticantes de capoeira encontram aberturas para

    pesquisas em reas de antropologia, dana, educao, esportes, etc; e no praticantes se interessam

    pelo tema e se aproximam da capoeira com a inteno de estud-la e tornam-se capoeiristas.

    So muitas as formas de aproximao entre as duas, mesmo porque elas variam de acordo

    com a experincia pessoal de cada um, no entanto, que o seu estudo terico passa

    imprescindivelmente pela sua prtica, o que para o antroplogo torna a pesquisa de campo peculiar,

    de modo que no h iseno do pesquisador na elaborao do texto, mas sim envolvimento, isto j

    se estabelece.

    Como praticante de capoeira, busco em elementos da mediao em arte provocar a

    percepo de uma experincia esttica, recompondo processos de aprendizagem dessa manifestao

    cultural em um procedimento do fazer artstico. A elaborao de um acrstico que interprete alguns

    fundamentos da capoeira angola, busca na associao forma/contedo uma expresso na escrita

  • anloga prtica da capoeira, pensando a dimenso do prprio corpo no espao e assimilando pelo

    discurso a noo de deslocamento espacial do corpreo.

    Nesta composio verbo-voco-visual o aprendizado de fundamentos da capoeira angola

    so investigados na chave arte/ritual, baseando-me nos estudos de Schechner, que analisa se existe

    alguma diferena real de significado entre os termos que as diferentes culturas tem criado para

    descrever o que os performers fazem?

    Assim, a prpria escrita pensada dentro desta relao, como performance e como ritual. As

    formas textuais possuem fora expressiva e grande possibilidade de repercusso social, surgindo,

    ento, como referncia em sua dimenso no espao dinmico (verbal e visual) gerando

    transformaes na escrita.

    Explorando conceitos da poesia contempornea e as suas transformaes no ato de leitura,

    busco experimentaes de uma nova (des)ordem a partir do estmulo criao de um discurso

    antropotico no qual os recursos expressivos encontram-se no limite da escrita com as artes

    performticas.

    Schechner (1985) ao estabelecer pontos de contato entre o pensamento antropolgico e

    outras prticas performticas questiona at que ponto os performers de rituais esto cientes de

    aspectos artsticos do seu trabalho sagrado e tambm analisa casos em que os eventos performativos

    no podem ser classificados facilmente como ritual, arte ou poltica.

    Quando olhamos para a capoeira, os contatos entre o pensamento antropolgico e a

    peformance se estabelecem em direes muito especficas, mas que se encaixam nessa perspectiva.

    Embora profana, a capoeira se desenvolve como um ritual, com seus preceitos e performances;

    ela tambm arte, dana maliciosa, que explora as habilidades do corpo em demonstrar

    determinados contedos e poltica, no sentido em que surgiu como prtica de resistncia ao sistema

    escravocrata e que por muitos anos se realizou sob a forma de enfrentamento com a lei, pois

    conforme o captulo 402 , intitulado Dos Vadios e capoeiras no Cdigo Penal de 1890 constitua

    crime:

    fazer nas ruas e praas pblicas exerccios agillidade e destreza corporal conhecidos pela

    denominao capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de

    produzir uma leso corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaando pessoa certa ou

    incerta, ou incutindo temor de algum mal.

    A partir dessas consideraes, inicio a anlise distribuindo alguns conceitos, que considero

    fundamentos da capoeira angola, entre os 6 pontos de contato apontados por Schechner. H perdas e

    ganhos nesta forma de classificao, no entanto, creio que esta abordagem se aproxima de

  • princpios da folksonomia1, situando critrios subjetivos de organizao da linguagem popular como

    pontos de irradiao da comunicao.

    As formas eminentemente narrativas da capoeira nasceram em culturas orais e muitas vezes no

    se utilizaram de instrumentos de fixao como a escrita, implicando um discurso caracterizado,

    principalmente, por uma comunicao epifnica no momento do ritual. Entretanto, essa

    caracterstica que permite ao discurso improvisaes e variaes e que se realiza no momento em

    que narrado, ao ser expressa numa forma de registo textual, pode ser recomposta a partir

    processos que visem conferir s palavras outras camadas de significao:

    I...

    CONSCINCIA

    AGILIDADE

    PERCEPO

    ORIGINALIDADE

    EXPRESSO

    INSPIRAO

    RESISTNCIA

    ARTE

    Transformao do ser e/ou da conscincia

    Na capoeira de angola h um ritual que precede o jogo: dispostos em semicrculo, os

    camarados iniciam o canto, ao som dos berimbaus, pandeiros e chocalhos, Agachados diante dos

    msicos, os dois jogadores, imveis, em respeitoso silncio. o preceito!2 Nesse momento o

    esprito da capoeira incorpora, os dois jogadores rolam para o centro da roda e o corpo preparado

    pelo treinamento conversa, transmite uma informao sob a forma de golpes que so respondidos

    pelo outro jogador, com outra pergunta, sequncias que caracterizam o jogo.

    Falar da CONSCINCIA na capoeira relacion-la ao conhecimento dos movimentos,

    adquirido atravs dos treinamentos; falar das tcnicas para se chegar l, a preparao o corpo

    para o ritual atravs da observao, a prtica, a imitao, a correo e a repetio.

    Dessa forma so organizadas as atividades de aprendizado dos movimentos e de seus nomes,

    por exemplo, a ginga, a negativa, o a, que expressam contedos atravs do corpo. Segundo

    1 Seu ponto forte sua construo a partir do linguajar natural da comunidade que a utiliza. Enquanto na taxonomia clssica primeiro so definidas as categorias do ndice para depois encaixar as informaes em uma delas (e em apenas uma), a folksonomia permite a cada usurio da informao a classificar com uma ou mais palavras-chaves.

    2 dison Carneiro. cf. Reis

  • Rodrigues, a ginga imprime no corpo uma capacidade plstica peculiar, caracterstica de uma

    linguagem (1997:78). Ela tem um contedo implcito, busca dissimular, enganar o adversrio

    atravs da mandinga, impedindo que ele perceba o golpe que ir surgir, assim, a inteno que j est

    no corpo do capoeirista no transparece.

    Eugnio Barba, utilizou o termo Sats para designar a qualidade corporal do momento no

    qual se est aponto de agir, o instante que precede a ao no espao, quando a energia est suspensa

    e compromete o corpo do ator. Durante a ginga, o capoeirista antecipa o movimento em sua

    conscincia e disfara-o atravs de floreios, esperando um buraco para entrar no adversrio.

    Esse modo de agir, movimentar-se, reflete um modo de pensar e ser, um fundamento da

    capoeira. A conscincia dos movimentos. O corpo deve se comunicar atravs de uma linguagem,

    pois, o capoeirista que durante os treinos executar o movimentos sem conscincia poder ferir-se e

    aquele que na roda execut-los de forma despropositada, sem conscincia, provavelmente tambm,

    pois a capoeira uma luta, ensinada e praticada como dana como disse mestre Pastinha, seus

    golpes podem ser desequilibrantes e traumatizantes.

    A linha de Mestre Gato Preto v no movimento dos animais a natureza da resistncia da luta,

    observar esse movimentos requer ateno; aprender o deslocamento de outros seres e incorpor-los,

    movimentar-se como um macaco, um gato, uma cobra, animais ttens, sem s-los.

    Decnio Filho descreve o transe capoeirano como um fundamento da capoeira: Sob a

    influncia do campo energtico desenvolvido pelo ritmo e pelo ritual da capoeira, seu praticante

    alcana um estado modificado de conscincia em que o SER se comporta como parte integrante do

    conjunto harmonioso em que se encontra inserido naquele momento.

    A realizao dos movimentos deve ser harmoniosa, mas preciso manter sua inteno. A

    observao dos instrumentos de trabalho, cuja ao ao ser imitada usando o corpo transforma-se em

    um golpe - o martelo batendo, a foice no corta capim. O capoeirista age como uma cobra que