Funk Carioca (Superinteressante)
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abril 2001 Comportamento
Segura o funk! O tchan e o axé já eram. Quem faz as meninas rebolar e os puritanos espumar agora é o ritmo que vem da periferia carioca. Antropólogos que estudam rituais de acasalamento nos ajudam a entender o porquê de tanto auê
por Mariana Mello e José Augusto Lemos
Não dá para ficar parado. O bumbo e o contrabaixo, ambos eletrônicos, marcam o
compasso com tanta força que os ossos das costelas vibram como se fossem de papel.
Até aí, nada de original: é a velha batida funk, há décadas apelidada de “bate-estaca”
por seus detratores, que a consideram o cúmulo da pobreza musical.
Já as letras das músicas – mais faladas que cantadas, no estilo dos rappers americanos
– trazem todas as novas gírias da temporada. Elas, sim, são um código à parte,
descrevendo personagens retratados como sátiros e centauros, mezzo humanos,
mezzo animais – homens “tigrões”, mulheres “cachorras” ou “potrancas” – e sem
esconder de ninguém que seu assunto e sua motivação são um só: sexo, sexo esexo.
Tanto erotismo não fica só nos versos: se escancara por todo o salão, em uma série de
coreografias simulando os diferentes gestos e atos do repertório sexual. É difícil
imaginar se os lendários bacanais greco-romanos eram tão desinibidos – e mais difícil
ainda entender o fenômeno social “funk carioca, versão 2001” sem cair no lugar-
comum, que até aqui tem sido sua condenação pura e simples por aqueles que se
enxergam como guardiães da moral e dos bons costumes.
Uma saída estratégica é pedir ajuda à antropologia, ciência especializada em analisar
as relações entre cultura e sociedade – mas sem emitir juízos de valor, respeitando o
modo como a moralidade varia de uma comunidade para outra, de uma época para
outra. Uma das maiores conquistas intelectuais do século XX ocorreu justamente
quando os antropólogos partiram para estudar o que chamam de “ritos de
acasalamento” em sociedades bem diferentes daquilo que consideramos “civilização”.
Com seu clássico A Vida Sexual dos Selvagens, o polonês Bronislaw Malinowski (1884-
1942) abriu um caminho desbravado a fundo por pesquisadores do calibre da
americana Margaret Mead (1901-1978). Como os funkeiros cariocas, essa respeitável
senhora chegou a ser acusada de perversão por dedicar sua carreira ao estudo
do comportamento sexual em livros igualmente fundamentais como Sexo e
Temperamento em Três Sociedades Primitivas.
Fora das universidades, pouca gente se lembra desses dois mestres, tão importantes
quanto Freud para esclarecer a obsessão humana pelo erotismo. Mas eles são leitura
básica para quem quer que se interesse pelo tema. Isso sem contar seu colega
brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987), cuja obra principal, Casa Grande e Senzala,
elabora uma visão panorâmica de como a interação entre portugueses e africanos foi
dar em um país regido pela sensualidade.
Está na cara que os bailes funk servem um banquete para antropólogos que curtem
decifrar jogos de sedução e rituais de acasalamento. Basta ficar alguns minutos de uma
noite de sexta ou de sábado plantado na porta do Castelo das Pedras, galpão na Zona
Oeste do Rio de Janeiro consagrado como epicentro do terremoto funk. A galera vai
chegando para a noitada com todos os atributos que identificam os sacerdotes e
sacerdotisas de uma das mais tradicionais religiões cariocas: o culto ao corpo. O
uniforme feminino se compõe de calças sufocantemente justas e de cintura baixa,
praticamente na linha do púbis; quase sempre brancas, em contraste que destaca a
pele bronzeada. As blusas se resumem a minúsculos bustiês, deixando a barriga
exposta, muitas vezes decorada compiercing no umbigo, purpurina colada na pele ou
pistas de uma e outra tatuagem. Os homens também usam calças agarradas, além de
camisetas regata sob medida para exibir bíceps esculpidos na academia.
“O corpo é o aspecto mais concreto da sociedade humana. Nós nos vemos e vemos os
outros pelo corpo, por isso ele sempre foi e sempre será cultuado. Muito antes da
Grécia Antiga celebrá-lo na escultura e nos esportes, tribos primitivas já pintavam e
adornavam o corpo, dando a ele um significado ritual”, afirma Mauro Cherobin,
antropólogo do Centro de Estudos e Pesquisa de Comportamento eSexualidade, em
São Paulo. Como índios que usam pinturas corporais específicas para ir à caça ou à
guerra, adolescentes do mundo todo adotaram as argolas, tatuagens e maquiagens
exóticas para definir a identidade de suas tribos. No caso do funk carioca, porém, o
foco parece ser mesmo 100% sexual. “Não há dúvida de que esses bailes são um típico
rito de acasalamento: tudo parece levar à transa, mesmo quando não passa de
brincadeira. Mas também aí não há nada de novo: a dança sempre esteve presente em
todos os rituais de acasalamento, em todos os tempos”, diz Mauro.
Outro traço tipicamente brasileiro do culto funk, e que também parece incomodar
muita gente, é a adoração, sobre todas as coisas, ao par de músculos chamado gluteus
maximus – o bumbum, ou “popozão”, no linguajar da tribo. Assim como sua prima e
precursora axé music, esta religião tem como deusa número um A Popozuda, cantada
em verso e prosa pelos funkeiros cariocas, além de enaltecida nas coreografias cujo
“passo” fundamental é empinar o traseiro. “O tamanho dos quadris é uma das
principais motivações inconscientes masculinas na escolha de uma parceira. As
mulheres de bumbum grande passam uma mensagem de que serão boas parideiras,
garantindo a transmissão dos genes do macho, como se dissessem ‘veja como eu
posso lhe dar filhos saudáveis’”, afirma a antropóloga paulista Mirela Berger,
especialista em estudos do corpo.
Se o baile funk não passa mesmo de apenas mais uma versão contemporânea dos ritos
de acasalamento ancestrais, há pelo menos duas coisas realmente inéditas e
surpreendentes nessa história toda. Contrariando o que tradicionalmente se espera do
homem e da mulher num jogo de sedução, os machos se exibem provocativamente –
usando roupas justas e rebolando na pista de dança tanto quanto as fêmeas; enquanto
elas, pelo menos nas letras das músicas, se colocam como sexualmente ativas – seja a
“cachorra”, que diz tomar a iniciativa de transar com quem quiser, quando quiser, e
até ter mais de um namorado; seja a “preparada”, que se apresenta como uma
verdadeira enciclopédia sexual. Ambos os comportamentos parecem contrariar
frontalmente uma das acusações mais comuns à tribo do funk, de que seria uma
manifestação cultural machista, tratando as pobres meninas, pela bilionésima vez,
como meros objetos sexuais.
“Dizer que as mulheres são usadas é uma visão ingênua e simplificadora. O raciocínio
delas é outro: ‘Eu vim aqui para me dar bem, para escolher e não ser escolhida’”,
afirma Glória Diógenes, antropóloga da Universidade Federal do Ceará que estuda o
cenário funk carioca há dez anos. A estudante Edileine da Silva, de 18 anos, flagrada
em total êxtase na pista de dança, confirma a mesma tese com outras palavras: “Eu
venho aqui para curtir, para dançar. E se rolar, rolou...”
“O baile funk é, acima de tudo, uma grande festa: o momento e o local de liberar a
agressividade, oerotismo e a adrenalina”, diz Glória, lembrando que a fixação erótica
da nova geração de funkeiros do Rio veio amenizar a violência entre gangues que
dominava os bailes há alguns anos e, volta e meia, os colocava como palco de
assassinatos no noticiário policial. “O fato é que essa agressividade chegou à beira do
insuportável. O que houve agora foi um desvio de energia para outro tipo de disputa,
o sexo. O foco continua sendo a disputa de território – mas esse território não é mais o
salão, ou o bairro, e sim o próprio corpo. O corpo é a arma na guerra do sexo”, afirma
Glória.
Mas esse ponto não é pacífico. Uma outra antropóloga especializada na tribo funk,
Fátima Cechetto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, enxerga alto teor
machista na classificação que os funkeiros fazem dos diferentes tipos femininos: de um
lado, as “cachorras”, “potrancas” e “preparadas”, feitas para serem levadas para a
cama e descartadas logo em seguida; do outro, as “tchutchucas”, princesinhas para
namorar sério e eventualmente casar. A novidade estaria, é claro, em moças como a
cantora Tati Quebra-Barraco se assumirem, com todo gosto e convicção, como
“cachorras” – ela mesma adotou como sobrenome uma expressão da tribo que
significa uma imbatível atleta sexual, a “preparada das preparadas”. As letras de Tati
são sexualmente mais explícitas que as de qualquer expoente masculino do funk
carioca.
Mas, para Fátima Cechetto, há também uma enorme distância entre o que se apregoa
nas letras e o modo como a moçada se comporta no salão – ou fora dele. “Já vi mais de
um tigrão chorando porque levou um fora de uma menina”, diz ela.
A classificação por animais – predadores (o tigre e a cachorra) e suas presas (potrancas
e tchutchucas) – não é difícil de interpretar. “Essa é a lógica da liberação: remete ao
que há de mais instintivo no ser humano”, afirma Fátima. Mas sua colega Glória
Diógenes prefere ver nos mesmos símbolos “arquétipos de jovens que, na verdade,
sofrem de baixa auto-estima, por conta da exclusão social. É uma compensação, cheia
de charme e energia, para quem vive onde quase não há família nem lei.”
Falta dizer que quem realmente manda na tribo – o cacique e o pajé, por assim dizer –
são outras figuras, identificadas por siglas que nada têm a ver com o mundo animal:
respectivamente, o MC (ou “Mestre de Cerimônias”), e o DJ (do inglês disc jockey, o
“piloto dos discos”). O primeiro é o dono da palavra: aquele que segura o microfone e,
além de declamar as letras, comanda em voz alta cada passo da coreografia executada
na pista. O segundo é o responsável pela trilha sonora dos bailes, ou pela base musical
das canções – na maioria das vezes, uma colagem de trechos de músicas alheias, em
vez de uma composição original. Inaugurando esse molde de dupla autosuficiente, o
rap americano aboliu cantores e acompanhantes instrumentistas à moda antiga. Foi
uma revolução sem precedentes na música pop, ainda que atacada por puristas e
tradicionalistas de todas as cores.
Como herdeiro dessa linha, o funk carioca sofre as mesmas acusações – que também
poderiam ser rebatidas com um argumento 100% antropológico, sempre lembrado
pelo músico inglês Brian Eno. Segundo ele, a visão de que o funk seria artisticamente
simplório só faz sentido segundo os padrões da música branca européia, rica em
melodia e harmonia, mas ritmicamente pobre em comparação à música de origem
africana. Ou seja: bate-estaca é a mãe!
Para saber mais Na livraria: O Mundo Funk Carioca, Hermano Vianna, Editora Jorge Zahar, 1997 Na Internet: www.furacao2000.com.br