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Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 47 • Setembro de 2009 Entrevista Há muito não se via uma reflexão abrangente e profunda a respeito do futuro da UFRJ. O debate em torno do Plano Diretor UFRJ 2020 – que será apreciado em breve pelo Conselho Universitário (Consuni) – tonificou a vida acadêmica da universidade. E talvez tenha sido o ápice de um lento processo de reconquista da capacidade da instituição pensar e definir o seu próprio modelo de organização. “Queríamos convergir para um projeto institucional que pudesse dar conta das novas necessidades e expectativas que a sociedade passou a ter diante da universidade”, afirma Carlos Levi da Conceição, pró-reitor de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3) da UFRJ e membro do Comitê Técnico do Plano Diretor UFRJ 2020, entrevistado desta edição do Jornal da UFRJ. 11a 14 15e 17 Carlos Levi da Conceição Repensar o futuro Zé Kéti, um homem de opinião Quando escreveu em 1956 “A voz do morro”, obra mais gravada do seu grande e variado repertório, aquele compositor que, por sua timidez na infância, recebera o apelido de “Zé Quietinho” estava dizendo definitivamente ao cenário musical brasileiro para o que veio. “Eu sou o Samba / a voz do morro sou eu mesmo sim senhor” anunciou o poeta. Modelo penal repressivo proposto pela ONU não pôs fim ao consumo de drogas ilegais nem impediu crescimento de cartéis internacionais do tráfico. A falácia de uma guerra perdida Uma inflexão necessária 6e 7 Marcado pela chegada da primavera, setembro também anuncia uma nova etapa para o Plano Diretor UFRJ 2020. Após inúmeros debates públicos, a versão final do documento está na iminência de ser votada pelo Conselho Universitário (Consuni). Os “heróis” da resistência A instauração da ditadura militar no Brasil, em 1964, inicia o esvazia- mento do debate político na gran- de imprensa. Com o AI-5, o Estado institucionaliza o controle sobre os meios de comunicação, legitiman- do o exercício censório. Nesse con- texto de restrição das liberdades, dentre elas a liberdade de expres- são, surgem os jornais da chamada da imprensa alternativa. 24 anos 89 u FRJ

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Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 47 • Setembro de 2009

Entrevista

Há muito não se via uma reflexão abrangente e profunda a respeito do futuro da UFRJ. O debate em torno do Plano Diretor UFRJ 2020 – que será apreciado em breve pelo Conselho Universitário (Consuni) – tonificou a vida acadêmica da universidade. E talvez tenha sido o ápice de um lento processo de reconquista da capacidade da instituição pensar e definir o seu próprio modelo de organização. “Queríamos convergir para um projeto institucional que pudesse dar conta das novas necessidades e expectativas que a sociedade passou a ter diante da universidade”, afirma Carlos Levi da Conceição, pró-reitor de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3) da UFRJ e membro do Comitê Técnico do Plano Diretor UFRJ 2020, entrevistado desta edição do Jornal da UFRJ.

11a 14

15e 17

Carlos Levi da Conceição

Repensaro futuro

Zé Kéti, um homem de opinião

Quando escreveu em 1956 “A voz do morro”, obra mais gravada do seu grande

e variado repertório, aquele compositor que, por sua timidez na infância, recebera

o apelido de “Zé Quietinho” estava dizendo definitivamente ao cenário musical brasileiro para o que veio. “Eu sou o

Samba / a voz do morro sou eu mesmo sim senhor” anunciou o poeta.

Modelo penal repressivo proposto pela ONU não pôs fim ao consumo de drogas ilegais nem impediu crescimento de cartéis internacionais do tráfico.

A falácia de uma guerra perdida

Uma inflexão necessária 6e 7Marcado pela chegada da primavera, setembro também anuncia uma nova etapa para o Plano Diretor UFRJ 2020. Após inúmeros debates públicos, a versão final do documento está na iminência de ser votada pelo Conselho Universitário (Consuni).

Os “heróis” da resistência

A instauração da ditadura militar no Brasil, em 1964, inicia o esvazia-mento do debate político na gran-de imprensa. Com o AI-5, o Estado

institucionaliza o controle sobre os meios de comunicação, legitiman-do o exercício censório. Nesse con-

texto de restrição das liberdades, dentre elas a liberdade de expres-

são, surgem os jornais da chamada da imprensa alternativa.

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Setembro 2009UFRJJornal da

2 Setembro 2009

Reitor Aloísio Teixeira

Vice-reitora Sylvia da Silveira Mello Vargas

Pró-reitoria de Graduação (PR-1) Belkis Valdman

Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (PR-2)

Ângela Maria Cohen Uller

Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3)

Carlos Antônio Levi da Conceição

Pró-reitoria de Pessoal (PR-4) Luiz Afonso Henriques Mariz

Pró-reitoria de Extensão (PR-5) Laura Tavares Ribeiro Soares

Superintendência Geral de Administração e Finanças

Milton Flores

Chefe de Gabinete João Eduardo Fonseca

Forum de Ciência e CulturaBeatriz Resende

Prefeito da Cidade UniversitáriaHélio de Mattos Alves

Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) Paula Maria Abrantes Cotta de Melo

Coordenadoria de Comunicação (CoordCom) Fortunato Mauro

Fotolito e impressão Esdeva Indústria Gráfica

25 mil exemplares

Av. Pedro Calmon, 550. Prédio da Reitoria – Gabinete do Reitor

Cidade Universitária CEP 21941-590

Rio de Janeiro – RJ Telefone: (21) 2598-1621

Fax: (21) 2598-1605 [email protected]

JORNAL DA UFRJ é UmA PUBlICAção mENSAl DA CooRDENADoRIA DE ComUNICAção DA UNIVERSIDADE FEDERAl Do RIo DE JANEIRo.

Supervisão editorial João Eduardo Fonseca

Jornalista responsável Fortunato mauro (Reg. 20732 mTE)

Edição e pautaAntônio Carlos moreira

e Fortunato mauro

Redação Bruno Franco,

Coryntho Baldez,márcio Castilho, Pedro Barreto,

Rodrigo Ricardo e Sidney Coutinho

Projeto gráfico Anna Carolina Bayer,

Jefferson Nepomuceno, Patrícia Pereze Rodrigo Ricardo

Diagramação Anna Carolina Bayer

Ilustração Atelier Universitário/FAU-UFRJ,

Jefferson Nepomuceno, Patrícia Perez e Vitor Vanes

FotosArquivo Geral da Cidade do Rio de janeiro, Bira Soares, Gabriela D’Araujo e marco Fernandes

Revisão mônica machado

Instituições interessadas em receber essa publicação devem entrar em

contato pelo e-mail [email protected]

o Jornal da UFRJ publica opiniões sobre o conteúdo de suas edições. Por restrições de espaço as cartas sofrerão uma seleção e poderão ser

resumidas.

Filosofia como política cultural

Richard Rorty foi um fruto especial da América para o mundo. Durante 30 anos ele ocupou o cenário filosófico mundial, mostrando que a cultura de esquerda dos Estados Unidos, mesmo tendo aco-lhido a Escola de Frankfurt, Foucault e Derrida, podia ainda contar com a sua própria tradição – o pragmatismo.

Conferencistas convidadosAlan Malachowski (University of East Anglia): Chirstopher Voparil (Union Institute & University): Charles Gui-gnon (University of South Florida): Gabriel Palumbo (Universidade de Buenos Aires); Kanavillil Rajagopalan (Unicamp); Luiz Eduardo Soares (UCAM); Michael Peters (University of Illinois at Urba-na-Champaign); Paulo Ghiraldelli Jr. (UFRRJ); Reuber Scofano (UFRJ).

Inscrições http://www.richardrorty.com.br/incr.htmAté 20 de setembro, para apresentação de trabalho.Até 16 de outubro, para ouvintes.

ProgramaçãoDia 20 de outubro - Terça-feiraManhã- Comunicações.Tarde - 15h - Entrega do material e credenciamento dos participantes.

1º Colóquio Internacional Richard Rorty

Local: UFRJ - Campus da Praia Vermelha, Botafogo - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, - Auditório Manoel Maurício - Rio de Janeiro - Brasil

20 a 23 de outubro de 2009

17h - Abertura do colóquio. Confe-rência de abertura: Alan Malachowski (University of East Anglia): “Making a difference in cultural politics: Rorty’s Interventions”.Coquetel de lançamento de Filosofia como política cultural, publicado pela Martins Fontes – O livro reúne os últi-mos ensaios de Richard Rorty, escritos entre 1997 e 2005, e publicados em di-versas coletâneas. Depois do Contingên-cia, ironia e solidariedade (1989), Rorty não mais escreveu grandes narrativas filosóficas, preferindo o estilo ensaístico. Este é o quarto e último volume da série Philosophical Papers editado pela Cam-bridge e traduzido para o público brasi-leiro pela Martins Fontes. Rorty faleceu alguns meses apóso lançamento nos EUA. O Colóquio Rorty é dedicado a sua memória.

21 de outubro - Quarta-feiraManhã - Comunicações.Tarde - 14h - Mesa com membros do GT: “Questões éticas contemporâneas”.16h - Conferências: Michel Peters (Uni-versity of Illinois at Urbana-Champaign): “Rorty’s Edification and the Limits of Philosophy-as-conversation”. Luiz Eduardo Soares (UCAM): “Rorty After Hour”. Chirstopher Voparil (Union

Institute & University): “Rortyan Inter-cultural Dialogue and the Problem of Speaking for Other”.

22 de outubro - Quinta-feiraManhã - Comunicações.Tarde - 14h - Mesa com membros do GT: “Pragmatismo clássico e o neo pragmatismo”. 16h - Conferências: Alan Malachowski: “Always Transitional: New Pragmatists and Public Policy”.Kanavillil Rajagopalan (Unicamp): “O recrudescimento de fundamentalismo no mundo e as lições de Richard Rorty”.Paulo Ghiraldelli Jr. (CEFA): “Richard Rorty, mais que o avesso do avesso do avesso”.

Dia 23 de outubro - Sexta-feiraManhã - Comunicações.Tarde - 14h - Mesa com membros do GT: “Cultura literária, virada lingüística e ilustração”. 16h - Conferências: Charles Guignon (University of South Florida): “Richard Rorty and the Philosophical Life”. Reuber Scofano (UFRJ): “Rorty, Paulo Freire e Rubem Alves: Conver-gências em Educação”. Gabriel Palum-bo (Universidade de Buenos Aires): “Ter atitude pragmática na Argentina ou como viver prazerosamente nas mar-gens da filosofia e da política”.

1920 2009 2020

Abertura8 de setembro

LocalMezanino do Prédio da Reitoria - Cidade Universitária

E x p o s i ç ã o

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Agenda

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Setembro 2009Setembro 2009 UFRJJornal da

3Setembro 2009 anos89uFRJ

Políticas Públicas

Coryntho Baldez

A primeira convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) para tra-

tar do controle de drogas, de 1961, estabeleceu a eliminação do consu-mo de ópio em 15 anos. Para abolir o uso da maconha e da cocaína no mundo, estipulou-se um prazo mais elástico: 25 anos. Tais metas, abso-lutamente irreais, seriam alcançadas por meio da criminalização crescente da produção e do comércio de dro-gas classificadas como ilegais. Não obstante o evidente fracasso das po-líticas de repressão policial-militar e de sanção penal levadas adiante por governos de todo o mundo, a terceira e última convenção da ONU, de 1998, prescreveu doses ainda mais fortes do mesmo remédio para a construção de “Um mundo sem drogas” – o slogan do programa que derivou daquele en-contro.

Com exceção de alguns países eu-ropeus, que preferiram focar as suas políticas na redução de danos físicos e mentais, predominou entre a maior parte dos signatários das convenções da ONU, como o Brasil, a concepção bélica de que é necessário promover uma guerra ininterrupta às drogas ilícitas. Essa estratégia, contudo, não

guerraModelo penal repressivo proposto pela ONU não pôs fim ao

consumo de drogas ilegais nem impediu crescimento de cartéis

internacionais do tráfico.

perdida

A falácia de uma

reduziu o consumo, estigmatizou os usuários e levou à criação de um mercado ilegal que movimenta, hoje, cerca de US$ 300 bilhões anuais, de acordo com o próprio Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).

O mesmo órgão reconhece que 208 milhões de pessoas no mundo usam algum tipo de droga ilícita pelo menos uma vez por ano e que, desse total, 15% são dependentes crônicos. Diante dos números, a descriminali-zação das drogas e o tratamento da dependência química como questão de saúde pública são propostas que, a cada dia, ganham novos adeptos.

Consumo aumenta na periferiaO Relatório Mundial sobre Dro-

gas 2009, divulgado pelo UNODC, em 24 de junho, é uma espécie de confissão envergonhada de culpa das Nações Unidas pelo fracasso evidente da política proibicionista. O levanta-mento mostra que o mercado global de cocaína, opiáceos (ópio, morfina e heroína) e de maconha continua está-vel, enquanto a produção e o uso de drogas sintéticas crescem nos chama-dos países em desenvolvimento.

Embora a Colômbia continue a produzir metade da cocaína no mun-do, observou-se naquele país uma re-dução de 18% no cultivo e de 28% na produção da droga, em comparação com 2007. Como houve o aumento do cultivo no Peru, na Bolívia e no

México, a conclusão é que os cartéis do tráfico que controlam esse lucrati-vo mercado estenderam a sua atuação para outros países.

Mesmo que se considere que a produção global de cocaína em 2008, estimada em 845 toneladas, foi a mais baixa em cinco anos, como aponta o relatório, o objetivo original de elimi-nação do consumo de drogas ilícitas revelou-se um engodo. No máximo, a estratégia repressiva pode celebrar a contenção momentânea nos níveis de produção de alguns entorpecentes, como a cocaína.

O documento da ONU revela, ainda, que o consumo da cocaína na América do Sul está em crescimento. Em 2007, foram verificados aumentos no uso da droga na Venezuela, Equa-dor, Brasil, Argentina, Uruguai, assim como em países da América Central e no Caribe. Também foi registrada, no Brasil, a ampliação do uso de ma-conha e de drogas sintéticas, como o ecstasy – 210 mil comprimidos foram apreendidos em 2007.

Encarceramento de primáriosNa esteira das recomendações fei-

tas pelas convenções da ONU, noto-riamente influenciadas pelo governo norte-americano, o modelo brasileiro de controle de drogas ilícitas foi cons-truído com base em aparatos policiais repressivos e sanções penais. O com-bate às grandes redes do tráfico por meio da crescente criminalização das drogas, no entanto, tem produzido resultados pífios. É o que comprova a pesquisa “Tráfico de Drogas e Consti-tuição no Brasil”, realizada pelo Gru-po de Pesquisa em Política de Drogas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com a Universidade de Brasí-lia (UnB), e financiada pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministé-rio da Justiça, no âmbito do Programa Pensando o Direito. O estudo analisou 730 sentenças no Rio de Janeiro e em Brasília, entre 7 de outubro de 2006 e 31 de maio de 2008.

O levantamento mostrou que, no Rio de Janeiro, 66,4% dos condenados por tráfico de drogas são primários, 65,4% respondem somente por tráfico (sem associação ou quadrilha), 60,8% foram presos sozinhos, 91,9% em fla-grante e apenas 14,1% estavam arma-dos. Segundo Luciana Boiteux, pro-fessora da Faculdade de Direito (FD) da UFRJ, e coordenadora da pesquisa, a análise demonstra que a atuação da Justiça Penal nos crimes de tráfico atinge os mais vulneráveis, ou seja, so-mente aqueles que serão rapidamente substituídos na estrutura das redes de produção e de comércio ilegal. “Os condenados são os pequenos trafican-tes, em sua maioria primários, presos sozinhos e com pequena quantidade de droga. Esse tipo de atuação não consegue impedir a manutenção do comércio e os altos lucros dos gran-des traficantes, que nunca são presos”, enfatiza a pesquisadora.

Agenda

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Setembro 2009UFRJJornal da

4 anos89uFRJSetembro 2009Políticas Públicas

Lei de Drogas: o que mudar?De acordo com Luciana Boi-

teux, embora a nova Lei de Drogas (11.343/06) tenha despenalizado o consumo de entorpecentes – “um pon-to positivo” – o artigo 33 não determina parâmetros seguros de diferenciação entre o usuário, o traficante-varejista e o pequeno, o médio e o grande trafi-cante. Outros problemas são as penas altas, entre cinco e 15 anos, e a tipi-ficação do delito pela primeira auto-ridade a entrar em contato com a si-tuação, ou seja, o policial. Na opinião da pesquisadora, a nova lei mantém um controle bastante severo para o delito de tráfico, equiparado a crime hediondo, com proibição da substi-tuição da pena por liberdade provisó-ria, graça ou indulto.

Luciana Boiteux defende mudan-ças significativas na atual Lei de Dro-gas. “Creio que é possível, sim, mu-dar a lei, especialmente para reduzir os danos sociais causados pelo excesso de punição

e privação da liberdade dos peque-nos traficantes, por meio da criação de escalas penais diferenciadas e pe-nas proporcionais para estes, além de penas alternativas, de forma a reduzir o impacto negativo da prisão nessas pessoas. No entanto, trata-se de me-dida ainda insuficiente, pois é preciso ir mais além e mudar o sistema como um todo”, enfatiza a professora, que é especialista em Direito Penal.

Seguindo o mesmo raciocínio, o secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Pedro Viei-ra Abramovay, destaca que o objeti-vo da pesquisa “Tráfico de Drogas e Constituição” foi exatamente, além de ampliar o espaço de debate demo-crático acerca do tema das drogas, co-letar subsídios para mudar a lei atual. “Atualmente, a legislação penal no Brasil é feita sob a pressão da

mídia, que alardeia casos de violência ligados ao tráfico”, salienta o advogado.

De acordo com Abramovay, 80 mil pessoas cumprem pena no Brasil por tráfico de drogas, o que repre-senta 20% da população carcerária. A maioria, como revelou a pesquisa, possui bons antecedentes. “Está na hora de abandonar os preconceitos que cercam o uso de drogas e elabo-rar leis sob a ótica dos direitos huma-nos”, completa o secretário.

Um general na “guerra”Para Luiz Paulo Guanabara, psi-

cólogo, diretor executivo da Organi-zação Não-Governamental Centro Brasileiro de Políticas de Drogas (Psi-cotropicus), a política proibicionista que vigorou nas últimas décadas in-

tensificou o poder do mercado ilícito, a violência e a corrupção na esfera pública. Ele destaca que não é papel do Estado vigiar o corpo das pessoas e qualifica como avanço a emergên-cia de um debate que, há apenas seis anos, era completamente marginal. No entanto, Luiz Paulo critica dura-mente o fato de um general, Paulo Miranda Uchoa, ainda ocupar a Se-cretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), vinculada ao Ga-binete de Segurança Institucional da Presidência. “É uma política de guerra. Fernando Henrique Cardoso defende hoje a descriminalização das drogas, mas adotou o modelo repres-sivo ao criar a Senad. Esperávamos que houvesse mudança na política nacional do setor, a partir de 2003,

mas isso não aconteceu”, con-dena o ativista.

Luiz Paulo Guanabara su-gere que o Senad saia da esfe-ra de influência de instituições de segurança pública e se vin-cule ao Ministério da Justiça, ao qual atribui posições mais avançadas na condução desse debate junto à sociedade e ao Legislativo.

Ouvido pelo Jornal da UFRJ, o deputado federal Paulo Teixeira (PT/SP), que está envolvido com a discussão do tema na Câmara

Federal, afirma que coexistem no Brasil duas tendências in-

ternacionais no modo de lidar com as drogas ilícitas. Uma

é a estratégia da “guerra às drogas”, elaborada e difun-dida durante a presença de

Bill Clinton e George Bush

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5Setembro 2009 anos89uFRJ

Políticas Públicas

no governo dos Estados Unidos. A outra é a vertente européia, que vem adotando experiências bem-sucedi-das de redução de danos e de despe-nalização do usuário. O parlamentar considera que a legislação brasileira se, por um lado, adota sanções pesa-das para o delito do tráfico, por outro, busca descriminalizar o consumo de drogas.

Quanto à liberação da comercia-lização de drogas leves, opina que o país ainda não reúne condições po-líticas para adotar a medida. “Nem a correlação de forças internas e nem o cenário internacional apontam para

esse tipo de mudança”, frisa o parla-mentar.

Paulo Teixeira sustenta a necessi-dade de avançar para uma nova le-gislação que incorpore três enfoques. Um deles é a ideia de seletividade, ou seja, a adoção de penas alternativas de acordo com critérios como a pri-mariedade, o tipo de droga e o uso da violência. O outro é a permissão para que pessoas em cumprimento de pena tenham acesso continuado a tratamento de saúde, a fim de cortar o vínculo do usuário com o tráfico. Por fim, Teixeira defende tratamento di-ferenciado para a maconha, citando a

experiência portuguesa como exem-plo. “Precisamos modificar a Lei de Drogas e tratar o tema como questão de saúde pública”, conclui o deputado.

Indo além na crítica à legislação brasileira, Luciana Boiteux realça que o movimento abolicionista penal deve-ria inspirar o fim do controle penal e a criação de um modelo não represssivo de regulamentação do comércio e da venda de drogas. “Esse movimento tem como um de seus artífices o holandês

Louk Hulsman, que em seu livro Penas perdidas – o sistema penal em questão (Luam Editora, 1993) defende a abo-lição do sistema penal. O argumento é que ele causa mais males do que impe-de, pois é uma estratégia que impõe dor e sofrimento, por meio da pena de pri-são, mas não resolve o conflito”, explica a pesquisadora.

A proposta desse movimento é a adoção de um sistema de mediação e reparação de danos, mais próximo da Justiça Cível. A professora da UFRJ acredita que o Brasil, de forma integra-da com outros países, especialmente os europeus, pode amplificar esse debate e buscar, no longo prazo, a superação do atual modelo penal.

É necessário abordar a produção e o consumo de drogas de maneira mais ampla e sistêmica. Não se pode tratar o problema sob um único aspecto, seja médico, jurídico ou de segurança pú-blica. A análise é de José Mauro Braz de Lima, neurologista, diretor do Hospital Escola São Francisco de Assis (Hesfa) e coordenador do Programa Acadêmico de Álcool e Droga do Centro de Ensi-no, Pesquisa e Referência de Alcoolo-gia e Adictologia (Cepral) da UFRJ.

Enquanto não se fizer um diagnós-tico profundo e adequado de como essa questão afeta a sociedade mo-derna, o fracasso da anunciada guer-ra contra as drogas empreendida por grande parte dos países será sempre o resultado mais plausível, avalia José Mauro. As consequências da estratégia de militarização do problema – afirma o especialista – são a continuidade dos

As drogas e o mal-estar do homemdanos à saúde pelo uso de drogas ilegais e o agravamento da criminalidade asso-ciada às atividades do tráfico em grandes centros urbanos. Ele também cita uma droga lícita, o álcool – “que, por ser li-berado, não ganha manchetes nem aflige o imaginário popular” – como fonte de graves riscos à saúde e fator de violência urbana.

De acordo com o neurologista a de-pendência química precisa ser vista como uma condição psicossocial, o que exige uma abordagem multidisciplinar. “O problema tem sido tratado quando a do-ença derivada do uso de drogas se encon-tra nos estágios mais avançados. O para-digma médico, focado na doença, deve ser substituído pelo paradigma da saúde”, defende o pesquisador e autor do livro Alcoologia: o alcoolismo na perspectiva da Saúde Pública (Medbook, 2008).

Com base em sua experiência profis-

sional e evidências empíricas, José Mau-ro Braz revela que 70% dos pacientes in-ternados em hospitais psiquiátricos têm problemas causados pelo uso de drogas. Por desinformação ou descaso dos agen-tes públicos, especialmente do Ministério da Saúde, a dependência química vem sendo tratada naquelas unidades como problema mental.

O diretor do Hesfa ressalta que “não há sociedade sem drogas, nunca houve e, provavelmente, nunca haverá”. Lembra que a bebida alcoólica aparece nos primórdios da civilização e que o uso do ópio, na Ásia, e depois na Europa, e da cocaína, na região andina, marca a história de muitas culturas até os dias atuais.

Para o professor, é indispensável elabo-rar o que chama de “genealogia das drogas”, ou seja, compreender a sua natureza e por que o homem sempre as utilizou ao longo da história. “Os avanços no campo das neuro-

ciências, aliados a um novo olhar sobre a natureza do uso, abuso e dependência das drogas, podem ajudar a entender por que o homem torna-se dependente ou encon-tra nas drogas uma saída efetiva para as suas angústias”, aponta José Mauro Braz. Segundo ele, todas as drogas possuem efeitos anestésicos sobre o cérebro e, não por acaso, alguns analgésicos são deriva-dos delas, como o éter, a morfina e a xi-locaína. “O nosso cérebro tem nas drogas uma excelente e acessível ferramenta para o alívio do nosso mal-estar, aliás, como já tinha sido descrito por Freud, no seu livro O mal-estar na civilização, de 1920”, afirma o neurologista.

José Mauro Braz considera indispen-sável levar em conta esses fatores biopsi-cossociais – e somá-los a estratégias de prevenção e educação – para enfrentar o problema das drogas na sociedade contemporânea.

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Setembro 2009UFRJJornal da

6 Setembro 2009Plano Diretor

Uma inflexãonecessária

Marcado pela chega-da da primavera, setembro também

anuncia uma nova etapa para o Plano Diretor UFRJ 2020. Após inúmeros debates públicos, a versão final do documento que aponta os caminhos a serem per-seguidos pela UFRJ, na próxima década está na iminência de ser votada pelo Conselho Universitá-rio (Consuni). Em meio aos ditos tempos pós-modernos de perpé-tuo presente, o trabalho ousa ao empenhar-se em um projeto de futuro, mesmo que vulnerável à possível descontinuidade de polí-ticas e de cortes orçamentários na educação pública, em especial, no Ensino Superior.

O próprio reitor Aloísio Teixeira reitera publicamente que “não há cer-tezas”, outra característica desta era; porém, frisa que o Plano Di-retor representa a oportunidade de um embate coletivo para que o acesso à instituição se torne, de fato, democrático. “Da maneira como está, a universidade não cumpre a sua principal finalidade social. Foi-se o tempo em que as universidades serviam apenas à elite econômica. O acesso à Uni-versidade pública tem que ser um direito universal para todos os jo-vens deste país”, defende Teixeira, ponderando que a perspectiva desta luta, talvez, seja uma con-quista a ser experimentada não

pelos atuais professores, alunos e servidores, mas pelas futuras gerações. “Para que dê certo, pre-cisamos estar juntos. Superando eventuais divergências internas, sere-mos uma considerável força política para exigir os investimentos necessá-rios para trans-formamos a uto-pia em realidade. Queremos, sim, uma institui-ção integrada consigo mes-ma, com sua cidade e capaz de enfrentar os desafios do atual momento histórico bra-sileiro”, exorta o reitor.

Desde abril, quando o Con-suni encami-nhou a propos-ta preliminar do Plano de De-s envolv imen-to da Cidade Un ive rs i t ár i a para conhecimento e discussão da comunidade, realizaram-se cerca de 12 encontros ao se con-tabilizar oficinas temáticas e as reuniões do Conselho Participa-tivo do PD UFRJ 2020. Segundo o pró-reitor de Planejamento e Desenvolvimento (PR3), Carlos

Antonio Levi, o Comitê Técnico do Plano Diretor (CTPD), com o qual se reúne todas as tardes de segundas, decidiu criar dois tipos de encontro devido à dimensão e aos múltiplos aspectos do traba-lho. “As oficinas, realizadas por

diversas unida-des da UFRJ, des-tinavam-se mais ao público inter-no. Por sua vez, o Conselho Partici-pativo, contando com a participa-ção de represen-tantes dos po-deres públicos e outros segmentos sociais, cria uma sinergia políti-ca em torno do PD”, afirma Levi, destacando que todos os eventos eram franquea-dos ao público e considera injus-tas as críticas de que o processo tenha transcorri-

do de modo verticalizado e como um pacote fechado de ideias. “Procuramos capilarizar e am-pliar ao máximo a participação da comunidade por meio destes fóruns. Houve espaço propício para quem quisesse se manifes-tar”, sintetiza o professor.

Câmaras técnicasAté 31 de agosto, o CTPD este-

ve com o prazo aberto para rece-ber emendas e outras contribui-ções. Assim fez Marylena Salazar, coordenadora de Aposentados e Pensionistas do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFRJ (Sintufrj), ao propor a Casa Retiro do Aposentado durante o evento do Conselho Participati-vo sobre habitação, alimentação e serviços de comércio. “Somos aproximadamente 4,6 mil apo-sentados e gostaríamos que os colegas que, porventura fiquem desamparados por suas famílias e sem lar, possam ser acolhidos. A nossa proposta é simbólica para atender 46 pessoas e inspira-se no Retiro dos Artistas, em Jaca-repaguá”, observa Marylena, pro-fessora aposentada do Instituto de Química (IQ) da UFRJ.

O último PD da UFRJ acon-teceu em 1972, em pleno regime militar. Ainda hoje é o instru-mento, ao menos formalmente, que por conceito orienta o desen-volvimento territorial, patrimo-nial, além de planejar a expansão e a destinação dos recursos na universidade. Pablo Benetti, pre-sidente do CTPD e professor da Faculdade de Arquitetura e Urba-nismo (FAU), expõe que o traba-lho não se esgota com a votação do plano. “Queremos criar câ-maras técnicas para acompanhar

Rodrigo Ricardo

“Para que dê certo,

precisamos estar

juntos. Superando

eventuais divergências

internas, seremos uma

considerável força

política para exigir

os investimentos

necessários para

transformamos a utopia

em realidade.”

anos89uFRJ

Comunidade acadêmica participa das oficinas temáticas do Plano Diretor UFRJ 2020.

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Plano Diretor

o desenvolvimento das diversas áreas (meio ambiente, transpor-tes, inovação e tecnologia) e a maior das expectativas é superar a fragmentação”, analisa Benetti, apostando nos chamados Centros de Convergência, na quebra do atual paradigma da universidade.Serão áreas dotadas de serviços de comércio e opções culturais aos seus moradores, que funcio-narão como bairros na futura Ci-dade Universitária. Presente ao Conselho participativo, a gerente de projetos da Secretaria Munici-pal de Habitação, Cristina Barre-to, pontuou que a iniciativa “tem uma visão holística da realidade, aproximando as residências dos locais de trabalho e além do me-nor tempo de deslocamento, pro-picia melhor qualidade de vida e aumenta a possibilidade das pessoas trocarem ideias acerca da universidade como um todo.”

O PD proposto ultrapassa o antigo conceito de alojamento e traça uma política residencial universitária. “Queremos estimu-lar a convivência, trazendo vida e diversidade urbana para a Cidade Universitária. Os apartamentos construídos serão regidos pela modalidade de locação social, um modelo inédito no país. Os imó-veis não são vendidos, mas aluga-dos a preços módicos”, frisa Be-netti, esclarecendo que a moradia será gratuita para estudantes de renda familiar até três salários mí-nimos. “Eles terão subsídio inte-gral. Queremos ter 10% da comu-nidade universitária morando em nosso campus. Para isso, previmos 3,5 mil moradias sociais; além de 4,5 mil unidades residenciais para estudantes na faixa entre 3 e 5 sa-lários mínimos; 1,6 mil para fun-cionários técnico-administrativos e 400 para docentes”, detalha o presidente do CTPD.

Década esportivaO Rio de Janeiro encontra-se

na rota dos grandes eventos es-portivos da próxima década. Os Jogos Mundiais Militares (2011), a Copa do Mundo (2014) e a ex-pectativa da cidade sediar os Jo-gos Olímpicos de 2016 (decisão que somente será conhecida em outubro), favorecem a captação de investimentos. “Esse horizon-te de eventos esportivos de gran-de porte abre a possibilidade para obter recursos para as obras do Complexo Integrado de Ativida-des Físicas (Ciaf )”, vislumbra Ar-mando de Oliveira, professor da Escola de Educação Física e Des-portos (EEFD). O Chamado Ciaf está previsto no Plano Diretor e reúne seis diferentes módulos (estádio de atletismo e futebol, parque aquático, ginásio polies-portivo, praia olímpica, ginásio

de atividades múltiplas e clube socioesportivo. Segundo Oliveira, “os módulos podem ser constru-ídos um de cada vez até chegar-mos ao Complexo, que ocuparia uma área total em torno de 169 mil m2.”

Para Waldyr Ramos, diretor da EEFD, a UFRJ nunca havia colo-cado em pauta a discussão sobre uma política de atividades físicas, esporte e lazer para sua comuni-dade e com a possibilidade de sua extensão para a população dos bairros mais próximos ao campus: “o fenômeno do esporte transfor-mou-se em área de intervenção fundamental quando se pensa em políticas públicas que objetivem a aplicação de programas de cunho social, no espaço do lazer e na prevenção das doenças causadas pelo sedentarismo e outros hábi-tos da vida moderna.”

Waldir Ramos, também mem-bro do CTPD, frisa que as pro-postas do PD preveem a cons-trução de áreas para a prática de esportes e atividades físicas por todos os espaços do cam-pus, localizadas nos Centros de Convergência, no Parque da Orla e demais espaços públicos ao redor das edificações. “O Ciaf, ao mesmo tempo, aten-de às necessidades de espaço adequado para o treinamento e competições das várias equipes esportivas existentes nas unida-des da UFRJ e de sediar eventos esportivos regionais ou nacio-nais, além de oferecer à popu-lação do entorno programas de iniciação esportiva e contribuir para a formação acadêmica dos profissionais que atuarão na área de esportes”, informa o di-retor da EEFD.

Vista geral simulada do Complexo Integrado de Atividades Físicas (Ciaf).

Detalhe do projeto do Complexo Integrado de Atividades Físicas (Ciaf).

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8 Setembro 2009Patrimônio

Preservar o passado, construir o futuro

Apenas dois arquitetos, dois estagiários, além de bolsistas de mestrado e

doutorado compõem atualmente a Divisão de Preservação de Imóveis Tombados (Diprit), que cuida de um patrimônio de cerca de 70 mil m2. “A UFRJ pode efetivamente contribuir, não apenas para a preservação de seu patrimônio, mas exercendo plena-mente sua atividade fim, através da concessão de maior número de bol-sas e pela qualificação dos recursos humanos, capacitando-os cultural e tecnicamente para exercer plenamen-te o papel de cidadão consciente de seus valores históricos”, afirma Paulo Bellinha, diretor da Diprit, ao comen-tar a falta de pessoal no setor.

Segundo Carlos Levi, pró-reitor de Planejamento e Desenvolvimen-to (PR-3), “as prioridades dos recur-sos aplicados nos prédios tombados acabam por ser definidas mais em função das eventuais e frequentes emergências e oportunidades

“Uma cidade sem seus edifícios é como um homem sem memória”. A frase, do historiador Leandro Silva Telles, serve de alerta. Proprietária de um patrimônio arquitetônico invejável, a UFRJ encontra dificuldades em manter seus doze prédios tombados. Sem a destinação de recursos específicos para a preservação, esses imóveis correm o risco da degradação.

de disponibilidade de fontes extra-orçamentárias”. Para Levi, “a UFRJ se mantém alerta e determina inter-venções técnicas urgentes e imedia-tas, quando necessárias, de modo a controlar processos de deterioração mais graves, sempre sob supervisão e subordinação das autoridades res-ponsáveis pela tutela do patrimônio histórico e artístico”.

Ao observarmos os dados forneci-dos por Levi, com detalhamento dos valores envolvidos nas intervenções dos prédios históricos, podemos citar algumas dessas intervenções: reforma geral do prédio da Escola de Música, orçada em cerca de R$ 12 milhões, será executada com recursos da Lei Rouanet e da Petrobras; reforma do prédio da Avenida Rui Bar-bosa, 762, orçada em

aproximadamente R$ 10 milhões para obras em seu conjunto arquite-tônico, com recursos da mesma fonte, e reforma do prédio da Faculdade de Direito, cerca de R$ 2,5 milhões, re-cursos oriundos do próprio orçamen-to da UFRJ.

Palácio UniversitárioPerto de completar 170 anos, o

Palácio Universitário é uma das jóias do patrimônio da UFRJ. O decreto de sua criação, assinado pelo jovem imperador D. Pedro II, então com 15 anos de idade, data de 1841. O mo-narca decidiu criar um local para abrigar os doentes mentais que vaga-vam sem rumo pelas ruas da capital do império. A autoria do projeto do

edifício neoclássico coube a alguns dos principais arquitetos do período: Domingos José Monteiro, Joaquim Cândido Guilhobel e José Maria Ja-cinto Rebelo. Em 1944, os pacientes foram transferidos e o prédio foi in-corporado ao patrimônio da então Universidade do Brasil, durante a gestão do reitor Pedro Calmon. Até hoje, no entanto, a memória parece manifestar-se. Os mais antigos juram ainda ouvir pelos corredores do pa-lácio o arrastar de correntes e gritos, resquícios dos maus tratos a que eram submetidos os chamados “alienados”.

Nos anos de chumbo da ditadura militar, o edifício foi palco de inten-sos debates que serviram como ali-cerce para a resistência estudan-

Pedro Barreto

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Patrimônio

til contra o regime. Em 1966 o então reitor Clementino Fraga Filho pre-sidiu a sessão histórica do Conselho Universitário, realizada no Teatro de Arena. O episódio tornou-se símbolo da participação democrática da co-munidade universitária, em contras-te ao ambiente repressivo no cenário nacional à época. Em 1972, o Palácio teve seu valor histórico reconhecido e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) decidiu pelo seu tombamento.

No primeiro semestre de 2009, o grupo de trabalho que estuda os usos e ocupações da Praia Vermelha, a partir das propostas do Plano Diretor UFRJ 2020, condenou a continuação das atividades de ensino no interior do prédio, “sobretudo devido à cres-cente demanda do número de inscri-tos nos cursos e à criação de novas habilitações dentro das unidades”, justifica Paulo Bellinha. A conclusão foi baseada em laudos do Iphan, que exigiu ainda a desativação da piscina e do estacionamento de automóveis a menos de 50m do edifício. Segundo Bellinha, a destinação mais adequada para as dependências do Palácio se-ria sua transformação em um Centro de convenções e de eventos culturais, conforme orientação do próprio gru-po de trabalho. Algumas intervenções foram realizadas recentemente pela atual administração da universidade. Entre elas, a recuperação do telhado e da fachada da Ala Central, que, de acordo com os dados da PR-3, custou cerca de R$ 1,6 milhão aos cofres da universidade.

Rui Barbosa, 762Situado à Avenida Rui Barbosa,

número 762, o antigo Hotel 7 de Se-tembro foi idealizado na década de 1920, quando surgiram também edi-ficações como o Copacabana Palace e o Hotel Glória. O prédio foi erguido em oito meses, com a proposta de receber turistas estrangeiros para os festejos do centenário da indepen-dência do Brasil, em 1922. O prefeito Carlos Sampaio tinha como inspi-ração os hotéis-balneários da Côte D’Azur, onde a elite européia e alguns figurões do high society carioca pas-savam férias.

Inspirado pelos ares da belle épo-que, o hotel seria inaugurado no dia 15 de julho de 1922, a tempo das co-memorações. Segundo afirma a pro-fessora Maria Helena da Fonseca Her-mes, em sua dissertação de Mestrado, publicada no livro “A Universidade do Brasil e os múltiplos olhares de si mesma” (organização de Antônio José Barbosa de Oliveira, UFRJ/FCC/SiBI, 2007), a edificação possuía 257 apartamentos, sete a mais que o Ho-tel Glória. Nos pouco mais de 5 mil metros quadrados de área – encrava-dos na rocha do Morro da Viúva, na então balneável Praia do Flamengo –foram edificados quatro blocos, que contemplavam acomodações para os

hóspedes e um restaurante. As águas da Guanabara, a 40 metros da entra-da principal, estavam acessíveis atra-vés de um cais anexo, em que foram construídas cabines de banho.

O prefeito e as demais autoridades municipais não contavam era com a ins-tabilidade política da época. A dez dias da inauguração do Hotel 7 de Setembro, eclodiu a Revolta dos 18 do Forte, movi-mento contrário ao candidato governis-ta à Presidência da República, Arthur Bernar-des. O levante foi debelado de ma-neira sangrenta. Dos 18 oficiais que resistiram e marcharam pela Avenida Atlân-tica para en-frentar os 3 mil homens do Exér-cito Republica-no, apenas dois sobreviveram. O conflito ganhou repercussão in-ternacional e a esperada migra-ção turística não aconteceu.

Com o fracasso de público, o Ho-tel foi desativado e o prédio doado, em 1926, a então Escola de Enfermei-ras que, anos mais tarde, passaria a se chamar Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN). Em 1937, a Escola foi

incorporada à Universidade do Bra-sil, atual UFRJ. Com a consolidação da Cidade Universitária da UFRJ, em 1972, as atividades da graduação da EEAN foram transferidas para o pré-dio do Centro de Ciências da Saúde (CCS), na Cidade Universitária, en-quanto a Direção e a Pós-graduação da Escola permaneceram no prédio neoclássico da rua Afonso Cavalcan-ti, 275, na Cidade Nova. No ano se-

guinte, o prédio da Rui Barbosa, 762, passou a abrigar a Casa do Estudan-te Universitário (CEU), com a fina-lidade alojar alunos de outras cidades que não tinham condições de arcar com custos de hos-pedagem no Rio de Janeiro.

Em 1995, a UFRJ reincorporou o prédio com a in-tenção de reformá-lo e instalar ali o Colégio Brasileiro de Altos Estudos.

Segundo Paulo Bellinha, após inter-venções, o prédio anexo “já conta com infraestrutura necessária para o seu funcionamento, inclusive mobi-liário, faltando apenas pequenos de-talhes de acabamento e paisagismo. E, após anos de luta para obtermos a

ligação elétrica definitiva, em breve poderemos finalmente contar com a utilização de elevador e plataforma de deficientes”, relata. Já para o prédio principal, estão previstas mais três etapas de restauração. O orçamento para a reforma completa é de R$ 10 milhões. “A conclusão só será possí-vel com a captação de recursos da ini-ciativa privada para cada etapa, que pode permitir seu funcionamento paulatino e inauguração em regime de soft-opening”, avalia, referindo-se ao início das atividades em caráter experimental.

HesfaO complexo do Hospital Escola

São Francisco de Assis (Hesfa) é con-siderado prioridade pelos arquitetos do Diprit. “Sua arquitetura é baseada no ‘panóptico de Bentham’, raro no mundo e único exemplar na América Latina”, afirma Bellinha, em referência ao modelo de prisão idealizado pelo filósofo Jeremy Bentham, em 1791. O início da construção do prédio data de 1876, e tinha como finalidade servir como hospedaria para a população de rua da cidade. Vinte anos mais tarde, o edifício passou a ser chamado de Asi-lo São Francisco de Assis e, em 1922, foi rebatizado de Hospital Escola São Francisco de Assis. Em 1937, houve a incorporação à Universidade do Brasil. O tombamento foi efetivado em 1983, após a identificação do valor arquite-tônico neoclássico do conjunto, hoje constituído por 13 prédios, que ocupa uma área de cerca de 7 mil m2.

Atualmente, quem passa pela Ave-nida Presidente Vargas, na altura do número 2.863, não imagina que ali funciona um hospital que presta as-sistência ambulatorial, atendimen-to a dependentes de álcool e drogas, prevenção de câncer ginecológico, além de ser referência na assistência especializada ao portador de AIDS. Logo na fachada, percebe-se o estado de deterioração do prédio que con-ta com um sem número de pixações gravadas nas paredes centenárias. Segundo informa o site institucional do Hesfa, no interior, parte do espaço está inutilizada “devido às condições estruturais precárias, como rachadu-ras, tijolos aparentes, limo e árvores enraizadas nas paredes externas”.

Segundo Maria Catarina Salvador da Motta, vice-diretora do Hesfa, o Iphan aprovou em 2004 o Plano Dire-tor da unidade, que prevê a demolição de dois anexos não originais e a cons-trução de outras duas novas edifica-ções. O novo complexo do Hesfa fi-caria então com 12 prédios, além da capela.

Para executar a reforma completa, serão necessários cerca de R$ 25 mi-lhões. A primeira etapa contemplará os prédios 5, 6, 7 e 7A do complexo e custará cerca de R$ 2,5 milhões. Este montante já foi prometido por parceiros da iniciativa privada atra-vés do Programa Nacional de Apoio

Vista aérea do Hospital Escola São Francisco de Assis (Hesfa), na Cidade Nova.

“Não podemos deixar que

se percam as marcas do

nosso passado, sob pena de

comprometermos também o nosso

futuro.”

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à Cultura (Pronac), vinculado à Lei Rouanet, via Ministério da Cultura (Minc), que prevê a isenção no Im-posto de Renda de até 100% do valor investido. No entanto, o Minc aguar-da o envio das certidões negativas da Fundação José Bonifácio (FUJB) para a assinatura. “Esperamos anunciar a qualquer momento a publicação do edital autorizando a captação desses recursos”, afirma Maria Catarina. A Diprit trabalha ainda na elaboração do caderno de diretrizes para a con-tratação da segunda etapa, que con-templará os prédios de 1 a 4.

Praça da República, 22Um dos imóveis que causa mais

controvérsia no meio da comunidade acadêmica é o prédio da Praça da Re-pública, 22. O prédio, que já foi sede da antiga Escola de Eletrotécnica e da Es-cola de Comunicação, até o final da dé-cada de 70, corre risco de desabamento e apenas um funcionário realiza a se-gurança contra possíveis invasões. Os números da PR-3 informam que foram investidos R$ 100 mil para obras emer-genciais na fachada, provenientes do orçamento da UFRJ. “Não posso deixar de registrar minha profunda conster-nação face ao estado do elegante pala-cete eclético, que merece uma completa restauração”, constata Bellinha.

Cabe ao grupo de trabalho que es-tuda os usos e ocupações das chamadas “unidades isoladas” prever uma desti-nação ao imóvel. Segundo o diretor do Diprit, “ainda não há uma definição a este respeito, sobretudo devido às al-tas somas envolvidas para sua perfeita restauração”, explica. Em sua opinião, “uma das possíveis saídas poderia ser a cessão de uso a terceiros”, como foi feito com o prédio construído no século XIX para sediar o Conservatório de Música, que também acolheu o Conservatório Dramático Brasileiro, e mais tarde in-corporado à Universidade do Brasil. Cedido à prefeitura do Rio de Janeiro, que restaurou o imóvel, hoje abriga o Centro de Artes Hélio Oiticica. Bellinha afirma ainda que já foi procurado por entidades públicas e privadas interessa-das no imóvel, mas que “até hoje as pro-postas não evoluíram concretamente a ponto de serem apresentadas ao Con-selho Universitário”. Em consonância a esta ideia, Carlos Levi afirma que o GT das Unidades Isoladas “está trabalhan-do com a proposta de cessão do prédio para algum órgão público interessado em assumir a sua preservação”.

IFCSLocal efervescente nos tempos da

ditadura e tema de atuais divergências quanto à sua ocupação, o prédio do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) é mais um imóvel tombado que necessita de reformas. O prédio abri-gou a Academia Real Militar, a Escola Politécnica e, depois, a Escola Nacional de Engenharia, sendo ocupado a partir de 1969 pelo Ifcs, após o desmembra-mento da antiga Faculdade Nacional

de Filosofia (FNFi), da Universidade do Brasil. No primeiro semestre deste ano, após acirrado debate quanto à transfe-rência das atividades acadêmicas para a Cidade universitária, a Congrega-ção decidiu pela continuação no atual prédio do Largo de São Francisco. No mesmo período, passados dois anos de estudos, o Iphan e o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) apro-varam o Plano Diretor da edificação. “Trata-se apenas da aprovação de uma carta de intenções do que se pretende para a edificação unicamente do pon-to de vista da preservação histórica. Falta ainda definir as áreas passíveis de restauração, através do desenvolvi-mento dos projetos executivos”, elucida Bellinha.

O diretor do Diprit explica que apenas intervenções emergenciais, para prevenção de acidentes ou para garantir a segurança estrutural es-tão autorizadas no momento. Para a realização de obras de restauração

será preciso aguardar a conclusão dos projetos executivos. Na opinião de Paulo Bellinha, tais intervenções são fundamentais para garantir não apenas o patrimônio, como tam-

bém a história da instituição. “Não podemos deixar que se percam as marcas do nosso passado, sob pena de comprometermos também o nos-so futuro”, conclui.

Prédio do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), no Largo de São Francisco.

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Entr

evis

taEntrevista

Carlos Levi da ConceiçãoHá muito não se via uma reflexão tão abrangente e

profunda a respeito do futuro da UFRJ. O debate em torno do Plano Diretor UFRJ 2020 – que será apreciado

em breve pelo Conselho Universitário (Consuni) – tonificou a vida acadêmica da universidade. E talvez

tenha sido o ápice de um lento processo de reconquista da capacidade da instituição pensar e definir o seu

próprio modelo de organização. “Queríamos convergir para um projeto institucional que pudesse dar conta

das novas necessidades e expectativas que a sociedade passou a ter diante da universidade”, afirma Carlos

Antônio Levi da Conceição, pró-reitor de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3) da UFRJ e membro do Comitê

Técnico do Plano Diretor UFRJ 2020.Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, o professor

associado da Escola Politécnica faz um amplo balanço do processo interno de discussões em oficinas

temáticas e reuniões do Conselho Participativo, muitas vezes polêmico, que envolveu “as forças vivas da

universidade”. No plano nacional, demonstra otimismo com os novos investimentos nas Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) e revela que os recursos para a implementação da primeira etapa do Plano Diretor UFRJ 2020 – de cerca de R$ 115 milhões – já estão

assegurados no Plano Plurianual do governo. Carlos Levi também faz críticas contundentes à cultura da

fragmentação e considera oportuno o atual momento de expansão para que se construa um modelo acadêmico integrado e à altura do avanço do conhecimento e das

demandas da sociedade brasileira.

Prédio do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), no Largo de São Francisco.

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12 Setembro 2009Entrevista

Repensar o futuroJornal da UFRJ: O processo de constru-ção do Plano Diretor da UFRJ pode ser considerado uma inflexão na história da instituição. Às vésperas da apreciação fi-nal pelo Conselho Universitário, que ba-lanço político o senhor faz desse processo?

Carlos Levi: Foi um período muito rico de debates, um processo que se cons-truiu no tempo. Uma conjunção de fa-tores ofereceu um ambiente propício para essa discussão. Não precisamos ir muito longe. Passamos por uma turbu-lência institucional em 1998. Foi a partir daquele ano que fomos recuperando, de modo consistente, um novo padrão de institucionalidade. E agora, na gestão do professor Aloísio Teixeira, é preciso reconhecer que se criou um clima favo-rável para um debate amplo, com espí-ritos desarmados, que envolveu todas as forças vivas da universidade.

Jornal da UFRJ: Fale um pouco a respei-to dessa experiência.

Carlos Levi: Conseguimos fazer uma reflexão profunda acerca dos destinos da instituição. Isso foi necessário para conferir maior organização institucio-nal à UFRJ e elaborar um planejamento de maneira mais integrada. Isso tinha como base a ideia consolidada sobre a necessidade de superarmos a fragmen-tação universitária. A proposta de se debater a fundo a instituição percorreu

todas as instâncias universitárias e as entidades representativas de alunos, técnico-administrativos e professores. Queríamos convergir para um projeto institucional que pudesse dar conta das novas necessidades e expectativas que a sociedade passou a ter diante da univer-sidade. E nesse particular, pelo seu porte, tradição e inserção regional e nacional, a UFRJ ainda tem muito a contribuir.

Jornal da UFRJ: A conjuntura nacional, de certa forma, também alimentou esse debate interno acerca do futuro da UFRJ?

Carlos Levi: É preciso lembrar que o governo federal, mais recentemente, identificou que a necessária expansão do Ensino Superior no país deveria pas-sar pelo fortalecimento das Instituições Federais de Ensino Superior. O modelo priorizado pelo governo Fernando Hen-rique Cardoso foi baseado na expansão do sistema privado. Esse modelo ficou saturado, uma vez que as condições fi-nanceiras da sociedade brasileira im-pediram o crescimento continuado do acesso a cursos pagos. O atual governo prioriza a expansão do sistema público federal de Ensino Superior. Foi a partir desse conceito que foi criado, por de-creto, o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Univer-sidades Federais (Reuni), com aporte de recursos significativos para expansão e para contratação de pessoal. Foi uma

boa coincidência que permitiu às uni-versidades federais organizarem pro-postas de expansão bastante ousadas.

Jornal da UFRJ: Como o senhor avalia o processo interno de discussão acerca da adesão ao Reuni?

Carlos Levi: Foi um processo longo, democrático e maduro de discussão, beneficiado pelas condições objetivas de podermos contar com recursos que dessem sustentação ao nosso Plano de Reestruturação e Expansão. Nesse ce-nário, uma das questões centrais que se impôs, no debate, foi a necessidade de garantir boas condições físicas para o funcionamento da universidade e de suas atividades. Isso exigia a atualização de seu Plano Diretor. Um dos eixos cen-trais do programa de reestruturação foi a ideia de integração acadêmica e admi-nistrativa, com a concentração das uni-dades no campus da Cidade Universitá-ria. Elaborou-se então a proposta de um Plano Diretor abrangente e profundo, que respondesse a essa necessidade de expandir e reorganizar a universidade. Houve uma participação ampla e aber-ta da comunidade acadêmica em torno dessa proposta. O trabalho da Coorde-nadoria de Comunicação, por exemplo, foi importante para difundir as propos-tas do Plano e repercutir o debate que se fez em torno dele. Hoje, nos aproxima-mos da fase de definição do nosso Plano

Diretor. Ele vai ser objeto de discussão e eventual aprovação pelo Conselho Universitário, provavelmente agora, em setembro.

Jornal da UFRJ: O Comitê Técnico do Plano Diretor vem trabalhando intensa-mente, realizando projetos, oficinas temá-ticas e reuniões do Conselho Participativo. Como o senhor avalia esse trabalho?

Carlos Levi: A primeira questão que me cabe destacar é a grata surpresa que tive em relação à resposta da universidade para a proposta de fazer uma discussão ampla e abrangente sobre o Plano Dire-tor. E acho que a instituição tem até um débito com os membros que participam diretamente do Comitê Técnico do Pla-no Diretor, especialmente com os pro-fessores Pablo Benetti e Carlos Vainer, que não pouparam esforços para tornar esse debate amplo e produtivo. Por ou-tro lado, com a organização do Conse-lho Participativo, foi possível trazer para a discussão interna a visão e a potencial contribuição de diversos segmentos externos à universidade. Para garan-tirmos a expansão da Cidade Univer-sitária, ficou clara a necessidade de ampliarmos as nossas conexões com a sociedade, com o poder público, com o Rio de Janeiro, as cidades da Bai-xada Fluminense, Niterói, São Gon-çalo, entre outros municípios. Grande parte da nossa comunidade acadêmica

Coryntho Baldez e Fortunato Mauro

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Entrevista

reside nessas regiões e há questões es-pecialmente ligadas ao transporte, que precisam ser enfrentadas. Esse seria um aspecto central para o sucesso de um plano de expansão. A ideia de instituir o nosso Conselho Participativo do Pla-no Diretor, portanto, foi muito impor-tante. A partir dele, criaram-se intera-ções e relações que vão contribuir para a consecução dos próprios objetivos do Plano Diretor, tendo em vista a vertente de integrar a universidade à cidade e à sociedade.

Jornal da UFRJ: A palavra de ordem pa-rece ser a de lançar a UFRJ em direção a um futuro de integração interna, com o campus, e também de integração com a cidade. Qual a sua análise e expec-tativa quanto à execução dos projetos propostos?

Carlos Levi: Foram realizadas reuniões, na forma de oficinas temáticas, a partir de assuntos mais diretamente relaciona-dos às necessidades da universidade. As oficinas tentaram cobrir as várias verten-tes em que se desdobraram as propostas do Plano Diretor. De início, partiu-se para uma discussão ampliada, com um horizonte de tempo de longo prazo. Daí ele denominar-se Plano Diretor UFRJ 2020. Apontamos para essa expectati-va, com etapas intermediárias, para que possamos ter a chance de implementar projetos concretos em 2012 e 2016. As metas de longo prazo são quase um so-nho hoje, mas nos permitiram trabalhar com objetivos definidos, dando eixos para organizarmos e planejarmos o fu-turo. Para o horizonte de 2016 há pro-jetos previstos que, embora difíceis, são viáveis. E em relação à primeira etapa, que vai até 2012, já definimos uma car-teira de projetos.

Jornal da UFRJ: E há recursos financei-ros suficientes para dar cabo dessa em-preitada?

Carlos Levi: Já temos recursos garan-tidos para grande parte dos projetos da primeira etapa, que se estenderá pelos próximos quatro anos. Esses recursos financeiros estão previstos no Plano Plurianual do governo. Embora os orça-mentos dos exercícios vindouros ainda não estejam elaborados, existe um ex-celente nível de comprometimento para esses projetos. E isso inclui também os recursos humanos com os quais conta-mos para a realização desse nosso Pro-grama de Reestruturação e Expansão.

Jornal da UFRJ: Hoje, que projetos estão em andamento?

Carlos Levi: Em alguns projetos, nos quais conseguimos um alto grau de con-senso, já avançamos bastante. Incluo, por exemplo, a construção de novos restaurantes universitários. Já implanta-mos o restaurante na Faculdade de Le-tras e estamos finalizando o Restaurante Central. Também já existe um projeto fechado que está sendo licitado para a

construção de um restaurante no Bloco A do Centro de Tecnologia (CT). Outro projeto prevê a construção de residên-cias e de um restaurante na quadra do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN). Esse mesmo centro, além da expansão do terceiro andar, terá um novo prédio para acomodar, de ma-neira mais adequada, as atividades do Instituto de Matemática (IM). Também está em fase final de desenvolvimento o projeto de construção da biblioteca do CT, no bloco A. Está em andamento, ainda, uma obra de expansão da Escola Politécnica e a expectativa é que ela este-ja terminada até março de 2010, quando haverá a necessidade de acomodar as novas turmas de Engenharia.

Jornal da UFRJ: Há outros projetos licita-dos ou em fase final de elaboração?

Carlos Levi: Temos o projeto que está sendo elaborado de um anexo da Escola de Belas Artes (EBA), que acomodará as suas atividades. Haverá também a expan-são do Bloco J do Centro de Ciências da Saúde (CCS), cujo projeto já está licitado, a fim de abrigar as novas demandas do cen-tro. Estamos tam-bém formatando o projeto básico para licitar as obras do complexo aca-dêmico que vai abrigar as ativida-des da Faculdade de Educação (FE), da Faculdade de Administração e Ciências Contá-beis (FACC) e do Núcleo de Estudos Internacionais, que serão transferidas para a Cidade Uni-versitária. Em rela-ção ao Colégio de Aplicação (CAp), já temos a localização física, mas ainda estamos por garan-tir os recursos para a realização das obras. Também vamos construir outro prédio para residências universitárias, acoplado ao restaurante da Faculdade de Letras (FL).

Jornal da UFRJ: E qual o conceito que está por trás dessas obras?

Carlos Levi: A ideia que estamos per-seguindo é adensar e aproximar, na medida do possível, as diversas verten-tes de atividades que compõem a vida acadêmica. Queremos trazer para junto dos prédios acadêmicos, as residências universitárias, as instalações dos restau-

rantes, os serviços de comércio, como padarias e farmácias, tudo isso para dar sustentação a uma vida de bairro acadê-mico no campus. Esse é o conceito que o Comitê Técnico do Plano adotou e que será materializado pela criação de centros de convergência distribuídos ao longo do território da Cidade Universi-tária. E no âmbito de cada centro será possível reunir um conjunto de ativida-des propriamente acadêmicas e também complementares, criando uma vida mais densa no espaço universitário.

Jornal da UFRJ: Há certo estigma em re-lação às condições de segurança na Cida-de Universitária. De fato, o campus é mais vulnerável à violência urbana do que outras áreas da cidade? Como, no Plano Diretor, enfrentar esse problema?

Carlos Levi: Primeiro, é preciso reco-nhecer que as condições de segurança

aqui na Cidade Universitária melhoraram sig-nificativamente nos últimos seis anos. Atraves-samos um pe-ríodo, de fato, complicado no que diz respei-to à segurança. Mas lembremos que a Cidade Universitária não está isolada do contexto da cidade e tam-bém é afetada por problemas ligados à inse-gurança urbana. De qualquer for-ma, as medidas adotadas foram eficientes e nem tão complicadas. Implementou-se, por exemplo, um sistema de vigilância os-tensiva, através da Divisão de Segurança (Di-seg) da Prefeitu-ra Universitária (PU). Esse siste-ma foi aparelha-do com veículos

e também houve o aumento do efetivo de vigilantes. A outra providência que transformou a qualidade da segurança no campus foi a instalação de câmeras e o maior controle do acesso. Os nossos portões são agora monitorados e fecham em determinados horários, reduzindo as rotas de entrada e saída. Acho que alcançamos um padrão de segurança na Cidade Universitária melhor do que em boa parte de outros bairros da cidade.

Jornal da UFRJ: E com a ocupação do campus essa tendência pode se consolidar?

Carlos Levi: Tenho a expectativa de que com as intervenções planejadas para garantir um maior uso de nossas insta-lações em diversos horários, a amplia-ção dos cursos noturnos, enfim, uma vida mais intensa no campus, o padrão de segurança vai melhorar ainda mais. Quando se começou a discutir o Plano Diretor, um dos aspectos de maior preo-cupação foi a segurança. Lembro que as alternativas eram ou transformar a Ci-dade Universitária em uma área de se-gurança máxima, com portões, guaritas e seguranças armados ou então adensar o uso do espaço físico. Felizmente, pre-valeceu essa última estratégia. Acredita-se que um número maior de atividades e de pessoas convivendo no campus tam-bém contribua para ampliar a sensação de segurança. Um ambiente ermo, iso-lado, com baixa utilização, gera, inevita-velmente, uma sensação maior de medo e insegurança.

Jornal da UFRJ: Como a ideia do novo campus da Cidade Universitária, prevista no Plano Diretor, se articula com a possi-bilidade de criação de um novo paradig-ma acadêmico?

Carlos Levi: Entendemos que predomi-na hoje o isolamento entre as unidades, a fragmentação acadêmica, muito evi-dente e disseminada em nossa cultura. A estrutura departamental, por exemplo, é problemática. Os departamentos se tornaram cada vez mais autocentrados, buscando a sua autonomia. Isso fecha as suas atividades em suas próprias frontei-ras. Afirmo com convicção porque tive a chance, na Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento, de ter uma observa-ção mais ampla. Como professor, estive o tempo todo vinculado a um departa-mento. E as minhas atividades e expec-tativas se definiam naquela fronteira. Eu queria que o meu fosse o melhor departamento da universidade, do país e do mundo. O meu campo de ação era definido a partir da lógica de fortalecer e ampliar as necessidades e atividades daquele meu departamento. Isso signi-ficava e significa disputar os recursos docentes e da área administrativa para priorizar o que seriam os interesses do departamento. Hoje, vejo claramente essa distorção e para onde nos levou esse tipo de organização.

Jornal da UFRJ: Que tipo de organização poderia substituir a departamental?

Carlos Levi: Um dos problemas presen-tes no modelo departamental é a mistura das atividades acadêmicas com as ativi-dades administrativas. No seu microu-niverso, o departamento é um modelo de poder burocrático institucionalizado, reconhecido e praticado. Essa confusão é um elemento forte de engessamento dessa estrutura. A primeira reflexão ne-cessária como seria é saber um modelo que separasse as atividades de cunho administrativo daquelas acadêmicas. As atividades administrativas talvez pos-sam se concentrar no nível das unidades

“A ideia que estamos perseguindo é adensar e

aproximar, na medida do possível, as diversas vertentes

de atividades que compõem a vida acadêmica. Queremos trazer para junto dos

prédios acadêmicos, as residências

universitárias, as instalações dos restaurantes, os serviços de

comércio, como padarias e farmácias,

tudo isso para dar sustentação a

uma vida de bairro acadêmico no

campus.”

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Setembro 2009UFRJJornal da

14 anos89uFRJSetembro 2009Entrevista

ou das decanias. As atividades do de-partamento poderiam, à semelhança do que acontece na pós-graduação, organi-zar programas, que são estruturas mais ágeis do ponto de vista acadêmico, com pouco ou nenhuma carga administrati-va convencional.

Jornal da UFRJ: Cite algumas vantagens desse caminho.

Carlos Levi: Primeiro, para garan-tir a nossa própria sobrevivência. Hoje, a ciência se organiza de uma ma-neira bastante diferente da lógica que imperava quando se montou essa estru-tura de departamentos. As demandas do próprio conhecimento exigem maior transversalidade. É necessário também assegurar uma maior racionalidade no uso de nossos recursos, já que o modelo fechado e de competição é bastante limi-tado e torna a universidade ineficiente. O ponto central dessa mudança passa pela noção de integração. Por isso, queremos criar instrumentos e mecanismos que a produzam. A concentração das ativida-des da UFRJ na Cidade Universitária, por exemplo, embora não seja condição suficiente, pode contribuir bastante para superar a fragmentação da universida-de. Se a proximidade física não garante, de antemão, a integração das atividades acadêmicas, eu diria que o distancia-mento é um inibidor forte para alcançar esse objetivo.

Jornal da UFRJ: Darcy Ribeiro afirmava, em “A Universidade Necessária”, de 1975, que a universidade brasileira estava em crise estrutural porque já não podia solu-cionar os seus problemas no quadro ins-titucional vigente. Esse diagnóstico ainda é atual?

Carlos Levi: Uma mente brilhante como a de Darcy Ribeiro deve sempre ser uma referência importante e suas profecias tendem a ser bastante duradouras. Tal-vez com outras características com rela-ção ao cenário em que Darcy fez aquele diagnóstico, mas hoje continuamos com alguns outros problemas. Acho que a universidade brasileira peca por um bai-xo padrão de autonomia e isso restringe as possibilidades de solução nos mais diferentes níveis. Por outro lado, já não tenho mais a ilusão de que isso vá se re-solver com muita simplicidade. As uni-versidades verdadeiramente autônomas foram fruto de conquistas históricas em sua trajetória. A autonomia brasileira foi sempre negociada e sujeita a certos limi-tes. Por si só, isso mostra certa contradi-ção. Mas não penso que se deva esperar um patamar considerável de autonomia para dar curso às soluções que conside-ramos necessárias. Ao contrário, con-sidero importante trabalhar no espaço que temos disponível e entendo que o nível de autonomia e de reconhecimento junto à sociedade vai depender do êxito dos nossos resultados.

Jornal da UFRJ: Diversas propostas e iniciativas fizeram a universidade públi-

ca brasileira entrar definitivamente na agenda nacional, embora tenham gerado controvérsias. Essa política teve início com o lançamento do Reuni, em abril de 2007, que alcançou a adesão de todas as Ifes. Que avaliação o senhor faz dessa política em seu conjunto e do Reuni, em especial na UFRJ, até o momento?

Carlos Levi: Fazendo um balanço de âmbito nacional, os reflexos do progra-ma começarão a ser sentidos no país de forma mais intensa daqui para frente. Ele vai produzir uma mudança radical no perfil da universidade brasileira. An-tes da expansão do sistema privado, a oferta de vagas nas universidades públi-cas era de cerca de 80% e nas instituições privadas esse percentual chegava aos 20%. Essa relação hoje está invertida. Certamente isso tem um reflexo muito forte na qualidade da formação superior porque o sistema privado se move por outra lógica, que é a mercantil. O Ensi-no Superior tende a estar num patamar inferior sem o apoio decisivo da Pesqui-sa, que perpassa o Ensino de gradua-ção e a própria Extensão Universitária, criando uma sinergia que dá qualidade substantiva à formação superior. O en-sino privado notoriamente não tem essa sustentação. O sistema público trabalha com essa lógica, que qualifica a gradu-ação. Com esse programa de expansão, pretende-se recuperar a formação em um nível de qualificação mais adequado. Haverá um estancamento da expansão do Ensino Superior via sistema privado e um reforço das instituições públicas fe-derais. Se isso não acontecesse, o sistema superior de ensino tenderia ao colapso e

deterioração progressiva.Jornal da UFRJ: E na UFRJ?

Carlos Levi: Na UFRJ, como já men-cionei, os resultados estão sendo muito importantes. E serão maiores em futuro próximo. Por coincidência, já vínhamos preocupados com a reestruturação da nossa organização acadêmica e adminis-trativa e acabamos premiados, de certa maneira, com recursos financeiros e hu-manos. Isso nos permitiu garantir uma revisão mais profunda e avançar em muitas propostas. A nossa expectativa interna é muito favorável porque hou-ve o encontro da proposta de um novo modelo acadêmico conceitual com as condições objetivas externas que podem sustentar o início dessa mudança.

Jornal da UFRJ: Qual a situação orça-mentária da UFRJ neste ano de intensa atividade voltada para a reestruturação e para a expansão?

Carlos Levi: Para se ter uma ideia da evolução dos números nos últimos anos, trabalhamos com um orçamento de custeio, em 2007, da ordem de R$ 90 milhões. Esse valor saltou para R$ 140 milhões no exercício de 2008. Em 2009, estamos atingindo a marca de R$ 180 milhões e no ano que vem deveremos chegar a R$ 200 milhões. A previsão para 2011 é de um orçamento de R$ 240 milhões. Em 2007, operamos com défi-cit orçamentário, já que a nossa despesa atingiu cerca de R$ 160 milhões. Esse é o valor, portanto, que nos permitiria, sem muita folga, trabalhar com um or-çamento equilibrado. Estamos falando

apenas de despesas correntes, não in-cluindo pessoal, que vem sofrendo ex-pansão significativa.

Jornal da UFRJ: E quais são os números em relação a pessoal?

Carlos Levi: Até o horizonte de 2011, vamos incorporar cerca de 700 novos docentes. Isso é bastante significativo, tendo em vista que o nosso quadro hoje é da ordem de 3.300 professores. Também teremos a possibilidade de recolocar automaticamente os nossos professores substitutos, tornando-os efetivos a partir de determinada rela-ção. Haverá ainda reposição automá-tica das vacâncias geradas por aposen-tadorias ou eventuais falecimentos. Isso nos permite ter um quadro de es-tabilidade do conjunto docente muito otimista. Em relação aos técnicos ad-ministrativos, deveremos incorporar cerca de 1.600 novos funcionários até 2011. Há também a possibilidade de resolução parcial de problema na área da assistência a saúde, outro gargalo sério no gerenciamento das nossas atividades. Por isso, as perspectivas no horizonte de médio e longo prazo são bastante alvissareiras.

Jornal da UFRJ: E no que toca aos in-vestimentos?

Carlos Levi: Em relação a investimen-tos, para dar sustentação às interven-ções e obras de ampliação das instala-ções físicas, os recursos inicialmente acordados para o repasse por meio do Reuni eram de R$ 115 milhões em um período de quatro anos. Agora, existem acenos de que eles poderão ser ampliados, o que nos permitirá avançar ainda mais na implementação das propostas consideradas no nosso Plano Diretor.

Jornal da UFRJ: Neste momento de maior investimento na UFRJ, é viável ampliar o acesso e, ao mesmo tempo, aprimorar a qualidade da graduação a partir de um modelo acadêmico renovado, orientado para a trans-versalidade do conhecimento?

Carlos Levi: Esse é o grande nor-te que definimos para o conjunto de nossas ações, do ponto de vista da expansão física e da reestruturação acadêmica. É inegável a necessidade de reavaliarmos o tipo de currículo que estamos adotando. Precisamos torná-lo mais ágil e contemporâneo. Os reflexos dessa estratégia já estão sendo observa-dos no conjunto de cursos novos que estão sendo formatados e oferecidos. E também nas próprias revisões curriculares feitas nos cursos ditos tradicionais, que também estão se oxigenando e procurando incorporar temas transversais, interdisciplinares, buscando maior ampliação da base de conhecimento. Esse movimento já começou e a tendência é que aumente o seu ritmo de desenvolvimento.

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Setembro 2009Setembro 2009 UFRJJornal da

15Setembro 2009 anos89uFRJ

Imprensa

Os “heróis” da resistência

instauração

da ditadura

militar no

Brasil, a partir de 1964,

inicia um processo de

esvaziamento do debate

político na grande

imprensa. Com a decretação

do Ato Institucional nº

5, em 13 de dezembro de

1968, o Estado autoritário

brasileiro institucionaliza o

controle sobre os meios de

comunicação, legitimando o

exercício censório. Muitos

jornalistas são presos

ou intimados a depor e

as redações de jornais,

invadidas por forças policiais

e militares. A censura prévia

e a autocensura faziam

parte de um conjunto de

estratégias da repressão

usadas para construção de

uma “sociedade harmoniosa

e livre de conflitos”,

contribuindo para uma

imagem positiva do governo.

A

Reprodução/ Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro

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Setembro 2009UFRJJornal da

16 anos89uFRJSetembro 2009Imprensa

Nesse contexto de restrição às liberdades democráticas, dentre elas a liberdade de

expressão, surge no cenário jornalís-tico brasileiro os jornais da chamada da imprensa alternativa. Apresentan-do matérias sobre violações de direi-tos humanos e fazendo oposição ao modelo econômico, coube a publica-ções como O Pasquim, Opinião e Mo-vimento ocupar o espaço de resistên-cia intelectual ao regime ditatorial. Os anos 1970 registraram a ascensão de centenas de publicações – muitas efêmeras quanto ao tempo em que efetivamente circularam, outras sem muita visibilidade, mas todas apre-sentando uma postura bem mais crí-tica ao governo em comparação aos diários tradicionais e conhecidos do grande público.

Márcio Castilho

Para a jornalista Karina Janz Woitowicz, professora da Uni-versidade Estadual de Ponta

Grossa (UEPG) no Paraná, além de se constituir espaço de crítica social, a mídia alternativa era usada como instrumento estratégico de mobiliza-ção. “Trata-se de um período em que diversos setores da sociedade – tra-balhadores, estudantes, intelectuais, mulheres, grupos políticos de es-querda, dentre outros – organizados em defesa de seus direitos e contra o regime político. Assim, cria-se uma espécie de ‘rede de solidariedade’, que agrega os interesses coletivos e tam-bém as reivindicações específicas des-ses diversos atores, organizados em movimentos de resistência política”, afirma a professora, que organizou, este ano, o livro Recortes da mídia al-

ternativa – histórias e memórias da co-municação no Brasil (Editora UEPG, 2009). A publicação reúne uma parte das pesquisas apresentadas na Rede Alfredo de Carvalho (Alcar) pelo grupo de História da Mídia Alterna-tiva, coordenado por Karina no perí-odo 2005-2008.

Marx e contracultura

Em seu livro Jornalistas e revo-lucionários – nos tempos da imprensa alternativa (Edusp,

1999), Bernardo Kucinski, jornalis-ta, professor da Universidade de São Paulo (USP), divide esse tipo de jor-nalismo em dois grupos principais: muitos são criados tendo como viés um ideário marxista, mas outros se destacam por introduzirem em seu discurso questões existenciais e com-portamentais, fazendo uma crítica dos costumes e do moralismo da clas-

se média, influenciados pelos movi-mentos de contracultura nos Estados Unidos. No entanto, segundo o autor, mesmo os jornais que defendiam, em sua linha editorial, a bandeira da rup-tura cultural atuavam, em última ins-tância, no plano político.

O caráter multifacetado desses jornais na forma e na lingua-gem e seu caráter de experi-

mentação constituem uma das maio-res riquezas da imprensa alternativa, na avaliação da historiadora Beatriz Kushnir, professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Segundo ela, não é possível defini-los como um bloco homogêneo. “Existiram vários tipos de alternativos. Pasquim, Movimento e Opinião tinham grande influência e

contavam com boa estrutura. Outros, como Flor do Mal, que saía encartado no Pasquim, eram pequenos. É muito difícil aprisioná-los em determinadas definições. Existiram também aque-les que se situavam entre a grande imprensa e a mídia alternativa, como o Ex e o Coojornal. Houve tanta di-versidade e acho que essa era a gran-de riqueza dessa imprensa. Houve também muita experimentação. Os jornalistas não se limitavam aos pou-cos recursos”, analisa Beatriz, autora do livro Cães de guarda – jornalistas e censores (Boitempo Editorial, 2004).Beatriz Kushnir dirige o Arquivo Ge-ral da Cidade do Rio de Janeiro, que concentra um dos maiores acervos de imprensa alternativa no país. A ins-tituição reúne títulos dirigidos para os movimentos negro, feminista e universitário dentre outros. Uma das raridades é o alternativo Lampião da

Esquina, voltado para o público ho-mossexual. O acervo, contendo tam-bém folhetos, cartazes e recortes, foi doado em 1992 ao Arquivo da Cidade pela Fundação Rioarte. Grande par-te dos exemplares havia sido reunida por iniciativa de Maria Amélia Mello, então coordenadora do Centro de Cultura Alternativa. O catálogo está aberto para consulta pública median-te agendamento na página eletrônica do Arquivo Geral da Cidade (http://www.rio.rj.gov.br/arquivo). Um dos desafios da instituição é disponibili-zar o conjunto documental pela In-ternet. “Estamos compondo um dos módulos do projeto Memórias Reve-ladas, coordenado pelo Arquivo Na-cional, que incentiva a digitalização e a microfilmagem dos acervos da dita-dura”, afirma a diretora.

Humor como arma política

O Pasquim foi um dos mais po-pulares, chegando a alcançar uma tiragem de 225 mil exem-

plares. As críticas ao poder misturavam-se ao estilo bem-humorado da narrati-va e às charges políticas. Reunindo em épocas diferentes importantes profis-sionais de imprensa – dentre eles Mil-lôr Fernandes, Jaguar, Ivan Lessa, Ziral-do e Henfil – a publicação, criada em 1969, costumava ridicularizar slogans conhecidos do Governo Médici, como “Brasil, ame-o ou deixe-o” e “Ninguém segura este país”. Em 1º de novembro de 1970, a redação foi invadida e seus principais redatores detidos durante dois meses na Vila Militar, Zona Oeste do Rio de Janeiro.

Outros importantes jornais alternativos, como Opinião, Movimento e O São Paulo,

foram alvo de censura prévia. O se-manário Opinião, criado em 1972, tinha mais da metade dos seus textos proibida pelos censores. Resistiu até 1977, quando os jornalistas suspen-deram a sua circulação em protesto contra a pressão do Governo Gei-sel. Movimento, identificado com as idéias da esquerda radical, adotava uma linha progressista, produzindo um noticiário em defesa da democra-cia e das liberdades individuais. Teve uma edição especial sobre o “Esqua-drão da Morte” interditada pela cen-sura. A reportagem, contudo, já havia sido publicada com o mesmo con-teúdo em outros jornais da grande imprensa. Já O São Paulo, semanário da Arquidiocese de São Paulo, tinha como foco os interesses populares, as condições de vida e de trabalho nas

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Setembro 2009Setembro 2009 UFRJJornal da

17Setembro 2009 anos89uFRJ

Imprensa

periferias das cidades e a defesa dos direitos humanos.

Os alternativos contavam em seus quadros com intelec-tuais e ex-militantes da luta

armada. Muitos jornalistas de veícu-los formadores de opinião também migraram para os jornais considera-dos “nanicos”, que não contavam com apoio econômico. Segundo Karina Woitowicz, o caráter contra-hege-mônico era uma característica im-portante dessas publicações, fazendo circular pautas que não encontravam espaço nos meios de comunicação convencionais.

Foi com o objetivo de dar voz aos que não tinham e contribuir para a organização das lutas

populares e operárias que um grupo de militantes políticos e de movimen-

tos sociais decidiu lançar, em dezem-bro de 1978, a publicação mensal al-ternativa O Berro. Identificado como um “jornal popular e independente”, o veículo abordava o dia-a-dia da po-pulação simples nas fábricas e nas co-munidades, como explica o jornalista Nilo Sérgio Gomes, fundador e editor de O Berro. “Cobríamos tudo relativo à mobilização operária e popular, nas fábricas, empresas ou nos bairros. E essa era a principal diferença, pois a ‘grande imprensa’ ou mídia hegemô-nica não se interessava por esses pro-blemas. Como costuma ser até hoje, em sua esmagadora maioria, um bu-raco em uma via importante da Zona Sul obtém mais atenção editorial des-sa mídia do que uma vala a céu aberto em bairro da Baixada. Os pobres são notícias apenas quando protagoni-

zam tragédias”, avalia o jornalista, doutorando da Escola de Comunica-ção (ECO) da UFRJ, autor do artigo “O Berro: memórias de um jornal po-pular independente” na obra Recortes da mídia alternativa.

Grande parte dos repórteres “informais”, que eram os próprios militantes, estava

vinculada ao Movimento de Eman-cipação do Proletariado (MEP), uma organização política de esquerda que se propunha a realizar trabalho de base nos movimentos populares. A publicação, com sede no Rio, deu grande destaque, em 1979, à cobertu-ra das greves de trabalhadores de uma montadora, em Xerém, de motoristas e trocadores de ônibus, de professores públicos e de metalúrgicos de Niterói e Volta Redonda. Foram 11 jornais mensais e duas edições extras lança-

das até dezembro de 1979. O Berro, que tinha uma tiragem em torno de cinco mil exemplares, foi extinto por decisão da direção do MEP.

No final de 1979, decidimos dar uma ‘parada técnica’ para rever o projeto e me-

lhorar sua sustentação financeira. Porém, ao mesmo tempo, com a libertação dos militantes do MEP que estavam na prisão desde 1977, a direção da organização retomou o comando das ações políticas e decidiu lançar um jornal nacional, denominado Companheiro”, explica Nilo, transferido em seguida para Volta Redonda pela cúpula do MEP com o objetivo de organizar uma frente de luta na Cidade do Aço e entorno.

Bernardo Kucinski observa, em seu trabalho “Jornalistas e re-volucionários”, que o triênio

1975-1977 marcou o apogeu da expe-riência alternativa na imprensa brasi-leira, com oito publicações somando uma circulação de até 160 mil exem-plares: O Pasquim (RJ), Crítica (RJ), EX (SP), Opinião (RJ), Movimento (SP), Brasil Mulher (Londrina), Ver-sus (SP) e Coojornal (Porto Alegre). Do universo de 150 jornais pesqui-sados pelo autor, cerca de 25 títulos conseguiram chegar aos cinco anos de existência. Outros tiveram vida curta, não completando um ano de circulação.

Fim do ciclo alternativo

Os atentados promovidos por grupos de extrema direita em bancas que vendiam os

tablóides ajudaram a colocar um pon-

to final na experiência alternativa no período de abertura política, no final dos anos 1970. Pressionados, jornaleiros passaram a recusar a distribuição, pro-vocando o estrangulamento financeiro desses veículos que, sem anunciantes, dependiam fundamentalmente das ven-das avulsas para sua sobrevivência.

A explosão de bancas de jornal, no entanto, não pode ser apon-tada como único fator para o

desaparecimento dos “nanicos”. Beatriz Kushnir chama a atenção para o fato de que, após a anistia política, muitos jor-nalistas voltaram para as redações dos grandes jornais com o propósito de esta-belecer a luta política na grande impren-sa. O processo de redemocratização, no entanto, não foi capaz de eliminar as contradições da sociedade brasileira.

“Acreditou-se nesse projeto da pós-anis-tia, que vincula democracia a eleições, mas aos poucos descobrimos que eleger as pessoas não significa necessariamente que vivemos em democracia”, salienta a historiadora.

Karina Woitowicz concorda com essa argumentação. Segundo ela, “a democracia política não

acompanhou, na mesma medida, a de-mocracia social e nem a democratização do direito à comunicação, que manteve a mesma estrutura de concentração dos meios por alguns poucos grupos de re-presentativo poder político e econômi-co”. Sem a existência de um “inimigo comum” (a ditadura) durante o processo de redemocratização, Karina afirma que houve uma fragmentação dos movi-mentos sociais, que passaram a lutar por causas mais específicas.

O que se percebe são mudanças nas formas de luta, que perde-ram seu caráter mais ‘combati-

vo’ a partir do processo de instituciona-lização dos movimentos sociais. Porém, não se pode dizer que a comunicação alternativa deixou de existir. Há uma produção, embora nem sempre muito visível, que continuou fortalecendo os espaços de contra-hegemonia depois do fim da ditadura militar. É o caso de jornais, rádios comunitárias, sites e ou-tras formas de comunicação produzidas por movimentos, grupos e organizações sociais feministas, ambientalistas, ho-mossexuais, sindicais e indígenas dentre outras. Atuam com o objetivo de infor-mar, formar e mobilizar grupos e comu-nidades em defesa dos seus direitos. Esta é a nova cara da mídia alternativa”, atesta Karina Woitowicz.

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Setembro 2009UFRJJornal da

18 anos89uFRJSetembro 2009Graduação

Sidney Coutinho

muda com Novo EnemAcesso à UFRJ

Com a adesão ao Exame Nacional de Ensino Mé-dio (Enem), a UFRJ vai

realizar o Concurso de Acesso aos Cursos de Graduação em 2010 em duas etapas. É uma operação que fará a universidade mobilizar cerca de quatro mil pessoas em um mo-delo novo, que continua a demandar planejamento ao longo de meses, mas, para os organizadores, será a mistura ideal com avaliações objeti-vas e discursivas.

A primeira fase da seleção terá caráter eliminatório e ficará sob res-ponsabilidade do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do Ministério da Educação. Ela constará da aplicação de quatro provas objetivas, em um total de 200 questões, nas áreas de Linguagens, de Ciências Naturais, de Ciências Humanas e de Matemática. São mais de 4,5 milhões de inscritos para a seleção que acontece nos dias 3 e 4 de outubro, sendo 311.641 so-mente no estado do Rio de Janeiro.

As provas serão realizadas em 1.826 municípios brasileiros, no

sábado, das 13h às 17h30, e no do-mingo, das 13h às 18h30. No Rio de Janeiro, além da UFRJ adotarão o Enem a Universidade Federal Flumi-nense (UFF), a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Enquanto a instituição de Niterói terá duas fases, como a UFRJ, aproveitando a nota do Enem como bônus para com-por a nota da segunda fase de alu-nos da rede pública, as duas últimas universidades terão uma fase única aproveitando o resultado do exame nacional.

A segunda etapa do concurso da UFRJ, prevista para a primeira quin-zena de janeiro, constará de provas discursivas: duas comuns a todos os candidatos: Redação e mais Língua Portuguesa e Literatura Brasileira; e ainda três provas de disciplinas espe-cíficas para o grupo de cursos esco-lhidos pelos estudantes. Elas ficarão a cargo da Coordenação do Concur-so de Acesso aos Cursos de Gradu-ação que convocará os que tiverem notas no Enem em uma classificação

até o quádruplo do número de vagas oferecidas por cada opção de curso.

A chamada será em ordem de-crescente, conforme o resultado do somatório das provas do Enem a ser divulgado no dia 4 de dezembro. No entanto, não bastará ao candidato o bom desempenho no exame nacio-nal. Quem quiser estudar na UFRJ terá de efetivar uma pré-inscrição no concurso em outubro. Na ocasião, deverá ser feita a escolha da carreira a ser cursada. A pré-inscrição para a segunda fase do acesso à UFRJ, po-rém, será gratuita, bastando apenas ao concorrente apresentar o número de inscrição no Enem. O programa e o calendário do concurso da institui-ção ainda dependem de aprovação do Conselho de Ensino de Graduação (CEG), mas deverão ser divulgados a partir de 1º de setembro, quando sair o edital da segunda etapa.

A participação no Enem parece ter aguçado o desejo de se preparar um processo seletivo que busque, segundo Luiz Otávio Langlois, coor-denador acadêmico da Comissão do Concurso de Acesso aos Cursos de

Graduação da UFRJ, avaliar a capa-cidade de raciocínio dos candidatos e saber se eles estabelecem relações entre fatos e dados, interpretam gráficos e tabelas sem o tradicional caráter conteudista. “Nossas provas são criativas e tentam avaliar habili-dade e inteligência mais do que con-teúdo consolidado ou decorado. A nossa avaliação é capaz de selecionar talentos. Ouso dizer que a prova da UFRJ é melhor do que a do Enem”, ressalta Langlois.

As provas da UFRJ há anos são discursivas e dificilmente esse mode-lo será modificado, apesar do Enem. Na opinião de Langlois, o exame na-cional será muito útil para muitas universidades, pois será um instru-mento poderoso, mas há que se ter cautela. “Eu diria que em relação a UFRJ, dificilmente vamos conse-guir substituir as provas discursivas. Acho que esse modelo que estamos adotando, com duas fases, é ideal para seleção de nossa universidade. A primeira etapa ajuda o Enem, aju-da o Inep, ajuda a regular um pouco o Ensino Médio no sentido de que

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Setembro 2009Setembro 2009 UFRJJornal da

19Setembro 2009 anos89uFRJ

Graduação

todos os alunos têm de fazer essa prova, mas não dispensa as provas discursivas”, avalia o coordenador.

Segundo ele, na época em que o vestibular do Rio de Janeiro era so-mente de múltipla-escolha, o mode-lo se estendeu para as provas bimes-trais aplicadas nas escolas e depois para os livros didáticos, provocando efeitos devastadores no Ensino Mé-dio. “Nos Estados Unidos, há estu-dos que mostram como as provas de múltipla-escolha não são suficientes e o quanto as discursivas são impor-tantes”, exemplifica Luiz Otávio Lan-glois.

Ele é tão favorável às avaliações discursivas, que acredita piamen-te ser muito danoso para o Ensino Médio a volta ao modelo apenas com questões de múltipla-escolha. Na opinião de Langlois, as provas discursivas da UFRJ são capazes de selecionar melhor porque, entre outras características, exigem que o estudante não seja apenas um bom leitor, mas um autor das próprias respostas.

No entanto, ele reconhece que nem sempre é possível fugir de ava-liações que cobrem conhecimento de fórmulas: “tentamos. Mas em provas como de Física e de Química não há muita saída para isso. O Ensino Médio não dá conta de programas tão enciclopédicos e imensos como são os da UFRJ. Nós reconhecemos isso e há uma tentativa de deixar de lado o conteudismo, trabalhar mais com os conhecimentos centrais para a formação do aluno em qualquer área. O pessoal que trabalha na área de Química acabou de fazer uma ex-celente reforma no programa que é muito melhor que a matriz de refe-rência do Enem. Nós conseguiremos selecionar, na prova de Química, melhor que o Enem, cobrando me-nos conteúdo, mas ainda assim co-brando conhecimento de Química.”

Langlois deixa claro, porém, que considera o Enem um instrumento poderosíssimo e muito importante. “A dificuldade é que ele está preci-sando dar conta de três tarefas mui-to complicadas e que nem sempre se consegue resolver somente com um formato: primeiro, ele é um ins-trumento de avaliação do Ensino Médio; agora, ele passou a ser um instrumento de seleção para as uni-versidades. Cada vez mais é adotado com o duplo papel e nem sempre se consegue ter o mesmo instrumen-to para a eficiência na seleção e na avaliação. Para fazer a seleção, por exemplo, tiveram que multiplicar por três a quantidade de questões. Isso gera problema no tempo de pro-va, além de restrições que temos ao formato atual do Enem.”

De acordo com o professor, sub-meter o estudante a seis horas de prova, no dia seguinte mais cinco horas de exame e mais redação, é um massacre. E ainda, para ficar com um

formato que é mais ou menos a cara do Enem atual, que tem os enun-ciados muito longos, vai dar muito trabalho. “E agora, o Ministério da Educação quer um terceiro papel para o Enem, que é o de regular os currículos do Ensino Médio.”

Operação de guerraAs preocupações, todavia, não

se limitam ao modelo de prova e a forma de avaliar os candidatos ao ingresso na UFRJ, como explica Mô-nica Conde, responsável por toda a logística do con-curso. “Tendo o Enem como pri-meira etapa, dimi-nui a quantidade de candidatos, mas, o processo continua sendo contínuo”, afirma a coordena-dora administrati-va da Coordenação de Acesso.

No último pro-cesso seletivo, fo-ram 51.558 candi-datos e a estimativa é que em 2010 o número caia para 32 mil, que é o quá-druplo do número de vagas oferecidas pela UFRJ. “É uma operação de guer-ra mesmo, porque todo o processo, desde o início até o final, é extrema-mente trabalho-so”, avalia Mônica Conde, esclarecen-do que somente a partir do quantita-tivo dos candidatos é possível determi-nar o pessoal e o material que serão utilizados.

“Anteriormente, com 50 mil candi-datos, em dia de aplicação de prova havia, em média, seis mil pessoas trabalhando. So-mente na correção, a banca tinha apro-ximadamente 400 professores. Agora, o número deve cair para algo em tor-no de quatro mil pessoas, com o nú-mero de professores chegando a 250. Isso, mantendo a aplicação apenas no estado do Rio de Janeiro”, estima Mônica.

Cabo Frio, Campos, Macaé, Nova Friburgo, Volta Redonda, Petrópo-lis, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Niterói e São Gonçalo são os muni-cípios fora da capital onde são apli-cadas as provas. Para o próximo ano, é possível que o primeiro município seja excluído do grupo com as pes-

soas sendo redirecionadas para as cidades próximas como Macaé, São Gonçalo e Niterói.

A escolha é definida pela proxi-midade do Código de Endereçamen-to Postal (CEP) dos candidatos com os locais de prova. “A gente aloca os candidatos e, a partir do quantitati-vo, dispõe, por exemplo, rádios de longa e de curta distância, detecto-res de metais, papel higiênico, papel toalha e litros de desinfetante”, ex-plica a coordenadora, dando conta de parte da necessária logística a ser

disponibilizada nos locais de aplicação de provas.

Além dos 57 pontos diferentes de aplicação dos exames, a UFRJ realiza avaliações em unidades pri-sionais do Desipe, no Instituto Nacio-nal de Educação de Surdos (Ines) e no Instituto Benjamim Constant (institui-ção de educação de cegos). Com a ado-ção do Enem, Mô-nica Conde acha que não ocorrerão exames para inter-nos do Desipe. Ela crê que os detentos serão superados por outros candida-tos que antes fica-vam de fora porque não podiam pagar a inscrição, como por exemplo, muitos estudantes da rede pública de ensino que foram isentos da taxa de R$ 35 do exame nacional.

Segurança: preocupaçãopermanente

A cada ano, com a evolução tecno-lógica aumenta a preocupação com a segurança e o si-gilo. Em 2010, por exemplo, para evi-tar canetas espiãs (scanners portá-

teis) os candidatos somente poderão realizar os exames com canetas que tenham o corpo transparente. “En-quanto a gente passa dias buscando soluções de segurança que impeçam fraudes, há sempre um novo meca-nismo de burla”, constata Mônica Conde.

Também são utilizadas gráficas diferentes para imprimir os cader-nos de questões e os de respostas. “A gente fecha a gráfica e um grupo de pessoas indicadas pela UFRJ acom-panha todo o processo. É escolhido

um único computador – desconec-tado de toda e qualquer rede – onde são abertos os arquivos com as pro-vas. Também há câmeras de segu-rança para gravar o que acontece. Todo o lixo por nós gerado, sequer fica na gráfica. Qualquer pedacinho de papel é trazido de volta. Os rolos de impressão das máquinas são lim-pos”, revela a coordenadora.

Mecanismo contém “invasão”A possibilidade de haver um au-

mento significativo na quantidade de estudantes de outros estados bra-sileiros disputando vagas com ca-riocas e fluminenses, uma vez que, é possível se inscrever em até cinco cursos de universidades diferentes, está descartada. O leque de opções é apenas para as Ifes que adotam o Enem como única forma de acesso. Além de ter duas fases, a UFRJ tem um mecanismo de pré-inscrição pre-visto para acontecer em outubro que também seria capaz de conter a vinda em massa de pessoas de outros esta-dos. “Particularmente, eu não acredi-to que isso possa acontecer. Acho que continuará a mesma dinâmica dos concursos anteriores (pouca deman-da de estudantes de outros estados). Há, inclusive, coincidência de datas na aplicação de provas (em outros estados) no período que estamos pre-vendo para fazer os exames da segun-da fase”, avalia Mônica.

DesencontrosA prova do Enem trará cinco no-

tas diferentes para cada uma das qua-tro áreas do conhecimento avaliadas e mais a redação. De acordo com o Inep, não haverá diferenciação dos pesos entre as áreas, o que acontecerá é que a prova será estruturada segun-do uma metodologia na qual as ques-tões do Enem sejam distribuídas em graus diferenciados de complexidade. Ou seja, no cálculo final da nota em cada área, as questões mais difíceis valem mais do que as questões menos complexas. Logo, haverá casos em que o total de acertos será parecido entre dois ou mais concorrentes, mas as notas serão diferentes, conforme o valor da questão que marcaram.

Para Mônica Conde paira, porém, uma dúvida acerca quem vai infor-mar ao candidato se ele pode ou não prosseguir na seleção da UFRJ. O Inep vai liberar os resultados das pro-vas objetivas no dia 4 dezembro. Se-gundo ela, “o candidato vai autorizar a universidade a buscar a nota dele no Enem. Porém, nós não temos certeza se ele saberá a nota conosco, ou com o Inep, para prosseguir na segunda fase. Isso nos preocupa. Ele terá o ga-barito e vai conferir quantas questões acertou, mas não saberá o somató-rio das quatro notas. Esperamos que o Inep nos libere as notas para que possamos evitar polêmicas por parte de candidatos que se sentirem injus-tiçados”.

A prova do Enem trará cinco notas diferentes para cada uma

das quatro áreas do conhecimento avaliadas e mais a redação. De acordo com o

Inep, não haverá diferenciação

dos pesos entre as áreas, o que acontecerá é que a prova

será estruturada segundo uma

metodologia na qual as questões do Enem sejam

distribuídas em graus

diferenciados de complexidade.

Ou seja, no cálculo final da nota em

cada área, as questões mais difíceis valem mais do que as questões menos

complexas.

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Setembro 2009UFRJJornal da

20 anos89uFRJSetembro 2009América Latina

Um espectro ronda o continenteA América do Sul vê, na atual década, o neoliberalismo ser quase varrido por uma onda de renovação que promove o estabelecimento de governos de esquerda em muitos países do continente. Mas as mudanças estão sob fogo cerrado.

Após o malogro das políti-cas neoliberais dos anos 1990, a maior parte das

nações da América do Sul deu uma

guinada à esquerda em suas escolhas. Um após outro, líderes populares fo-ram alçados, sobretudo pelos setores mais humildes, aos postos máximos de seus países. Hugo Chávez foi o pri-meiro, assumindo o Palácio Miraflo-res (sede do governo venezuelano) em 1999, onde ainda se mantém. Lula as-

sumiu a Presidência em 2003. O indígena aymara, Evo

Morales, assumiu, em 2006 o go-

verno bo-l i v i a n o.

R af a e l

Correa, por sua vez, desde 2007, presi-de o Equador. Em 2008, tomou posse na República do Paraguai, o bispo Fer-nando Lugo.

Além do discurso nacionalista, da adoção de políticas sociais inclusivas e da defesa de recursos naturais es-tratégicos (e sobretudo energéticos), um tema comum a esses governos. São todos mal-vistos e criticados pela maioria dos órgãos da chamada gran-de imprensa.

O noticiário privilegia quebras de contrato, rusgas diplomáticas, amea-ças, bravatas contra os Estados Unidos e cerceamento da liberdade de im-prensa, enfatizando aspectos contro-

versos no modus operandi desses governos.

Para Ingrid Sarti, profes-sora do Programa de Pós-

graduação em Economia Política, do Núcleo de Estudos Internacionais (NEI) vinculado ao Cen-tro de Ciências Jurídicas e

Econômicas (CCJE) da UFRJ, as

críticas têm sido ferinas. Isso se dá, por que embora sejam governos diferentes entre si, “têm em comum a questão da afirmação de políticas sociais no con-tinente; o apoio às questões étnicas e uma proposta de integração como for-ma de enfrentar a hegemonia norte-americana”, explica Sarti, que é douto-ra em Ciência Política.

Para ela, a conjunção desses fato-res provoca uma reação conservadora, “também dos preconceitos mais arrai-gados na formação social brasileira, que tende a ver questões de classe e de etnia com menosprezo”. Assim sendo, “a ascensão de um índio à Presidên-cia da Bolívia, que é uma significativa alteração na política internacional, é desqualificada. Ainda mais que ele é cocalero, vindo de um estrato sindica-lista”, analisa a cientista política.

Nesse esforço crítico – e também depreciativo – a mídia é coesa, com um discurso que também encontra ressonância em parte da academia, na avaliação de Sarti. “Há fatores que convergem, no plano político-ideoló-gico, na crítica a um projeto de Estado que busca uma saída social, busca cul-turalmente enfrentar também a colo-nialidade a que estamos submetidos. Vemos o mundo a partir de um crité-rio eurocêntrico, que nos pôs em um lugar secundário”, critica a professora.

Luiz Werneck Vianna, cientista político do Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro (Iuperj), concorda que tem havido “certa diabolização” dos no-vos personagens da política latino-americana por parte da grande imprensa. Em sua opinião, a mí-dia apresenta um discurso hege-mônico. Para ele, “o editorial de

um veículo de grande porte é o editorial de todos. A mí-

dia, hoje, é quase

Bruno Franco

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Setembro 2009Setembro 2009 Setembro 2009

Um espectro ronda o continente

um partido político. Funciona como se fosse, tem causas, bandeiras, inimi-gos. De maneira geral, seu interesse é conservar o sistema de dominação das elites.”

Adversários da integraçãoIngrid Sarti destaca que além da

pressão midiática, há também um componente de preconceito contra os povos do continente, por ter o Bra-sil voltado as costas a eles por muito tempo. “À exceção do período desen-volvimentista, a política externa privi-legiou as grandes potências. A lógica era aliar-se ao que já era o centro do capitalismo. Essa idéia ainda está mui-to presente” afirma a professora.

Desse modo, o antagonismo não se volta apenas contra governantes, mas a todo o projeto de integração do con-tinente, que privilegia a formação de um bloco político-econômico. “Aí não adianta ter uma potência ou duas, mas fortalecer a comunidade de nações. É preciso ter cuidado com os outros integrantes do bloco. Não pode haver um mesmo critério para situações pro-fundamente desiguais”, acredita Sarti.

Na visão da pesquisadora, o fe-roz discurso dos principais jornais brasileiros, ao mesmo tempo em que desencoraja a integração, incita o na-cionalismo, como na árdua negocia-ção entre Petrobras e o governo de Evo Morales acerca de investimentos e compra de gás natural. “O presidente Lula teve uma intervenção nas posi-ções que pudessem colaborar com a Bolívia. O Brasil foi solidário, sabendo que a saída não era somente a posição econômica”, elogia a especialista.

Para ela, a imprensa – também a reboque de parte do que chama de opinião pública – não avalia a possi-bilidade de, ao fazer um projeto co-mum entre partes desiguais, o país deve manter alguma solidariedade em relação às posições assimétricas, “se-não não haverá projeto de integração.

Haverá um empreendimento em que o Brasil se fortalece como potência e o resto que se vire”.

A integração sul-americana é uma intenção nova na avaliação de Ingrid Sarti, voltado às questões sociais, e é justamente por esse foco que o proces-so mexe com os alicerces dos poderes constituídos e recebe o contrafogo da reação conservadora.

Palavras ao ventoPara Werneck Vianna, algo que

complica a relação dos presidentes re-formistas com a imprensa é o que cha-ma de “revolução em palavras”, o uso corriqueiro de bravatas nos discursos desses líderes. “Acho que os fatos de-vem estar à frente das palavras. Muitas declarações são mais grandiloquentes do que aparentam os atos. Será que Chávez quer mesmo liderar uma revo-lução socialista?”, indaga o professor.

Sarti ressalta que embora o concei-to de mídia soe monolítico, é preciso diferenciar os jornalistas, as empre-sas, os grandes conglomerados, para que estes não sejam todos tomados por iguais. “O corpo profissional é sério, mas, dependendo para quem trabalhe, tem sua pauta mais restrita e orientada. Também não surpreende que não se encontre aquele modelo de jornalismo ideal, que veicule os variados pontos de vista. Não é comum haver um pensamento único tão bem estabelecido quanto este a respeito de nossos gover-nantes e seus projetos para o continente”, pondera a professora.

Mudanças importantesEmbora haja motivações político-

ideológicas para a agressividade e cons-tância da cobertura jornalística acerca dos populares e dos ditos populistas líderes sul-americanos, as críticas não surgem do vácuo.

Na avaliação de Werneck Vianna, o contexto de alguns desses países torna-se complicado no que tange à demo-

cracia formal. ”Os elementos plebiscitários es-tão muito fortes, também os ce-saristas (comando político verticalizado, centrado na figura de um líder carismático, que chama a si a representação das massas) estão presentes, mui-to claramente no caso da Venezuela”, avalia o pesquisador.

Governos que recorrem, constante-mente, a plebiscitos para empreender reformas institucionais, que teriam maior dificuldade em realizar pela via ordinária, afetam a normalidade da institucionalidade democrática. Se-gundo Werneck, “esses governos es-tão sempre convocando a população a se manifestar e essa convocação é feita pelo vértice do sistema. Enfim, dentro das mobilizações, as mudanças estão ocorrendo. Isso é bom e significativo. Mas, essa forma de agir tem suas com-plicações conforme se vê”.

Werneck Vianna critica a centrali-zação excessiva na figura do chefe de Estado, que controlaria as classes su-balternas e as manteria em estado de permanente mobilização. O pesquisa-dor alerta que a perda da rotatividade no poder (Chávez governa a Venezue-la desde 1999) é problemática para o assentamento da democracia.

Não obstante, Werneck Vianna classifica como “muito interessante” o processo de mudanças no conjunto das nações sul-americanas: governa-das pela esquerda, em particular na Bolívia e no Equador, com setores subalternos dessas sociedades enfim alcançando o poder público e pro-movendo mudanças, dentre as quais o reconhecimento dos direitos e as-pirações de grupos sociais, como os indígenas, e a firme defesa de seus in-teresses nacionais.

Destaca o cientista político que as

fortes reformas não têm parado nem mesmo diante de determinadas for-mas institucionais como contratos. “Sempre que isso ocorre, há uma ra-dicalização, fica-se no limiar de uma revolução, em ambos os sentidos (go-verno e situação)”, analisa Werneck Vianna.

Em relação ao comportamento po-lítico de seus vizinhos, a postura do Brasil tem sido de simpatia, mas com confortável distanciamento. “A iden-tificação (com os líderes reformistas) levaria a uma grande radicalização e sofreria as consequências da oposição. Além disso, o Brasil é uma presença poderosa na América Latina e a ele não interessa alinhamento com essas posições”, explica Werneck Vianna.

Para Ingrid Sarti, o ser humano, de modo geral, resiste a mudanças de ma-neira impressionante. “O desconheci-do provoca temor. Mas, no caso da América Latina, não é apenas isso. É a preservação dos poderes constituídos”, afirma a professora.

Na avaliação de Werneck Vianna, estejam certos ou não, Chávez e os de-mais, “temos de buscar formas demo-cráticas novas, de modo a obter apoio da base da população. Envolvê-la no projeto comum e não apenas deixá-la como receptáculo passivo das ações do Estado”.

anos89uFRJJornal da

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Setembro 2009UFRJJornal da

22 anos89uFRJSetembro 2009Saúde e Cidadania

A disputa pela arte de partejar

Interesses corporativos, econômicos, sociais e até filosóficos estão no cerne

de uma luta que tem de um lado médicos e de outro, enfermeiras obstetras. Em junho deste ano

desenrolou-se mais uma batalha, quando a Vigilância Sanitária fe-chou a Casa de Parto Da-vid Capistrano Filho, no bairro de Realengo, no Rio de Janeiro, sob alegação da inexistência de equipamen-tos essenciais. Reaberta dois dias depois por uma liminar judicial concedida a favor de entidades ligadas aos profissio-nais de Enfermagem, a unidade de saúde é um dos pivôs da acir-rada disputa pela arte de parte-jar.

A guerra entre os profissio-nais de saúde motivou até uma tese de doutorado, defendida por Jane Márcia Progianti, em 2001,

na UFRJ. “Pesquisei acerca do tema porque sou enfermeira obstetra des-de 1981 e percebi as lutas nesse cam-po, principalmente, nos hospitais. São disputas entre médicos e enfermeiras para estar presente ou por agir diante

do parto de forma diferente”, reve-la Jane Progianti, que

atualmente

é professora de Enfermagem na Uni-versidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

O nascimento é a hora crítica. É quando os conflitos afloram entre os profissionais. “Procurei entender a origem deles e fiz um recorte tempo-ral, de 1934 a 1951, o início do pro-cesso de medicalização da sociedade brasileira e, conseqüentemente, do parto”, explica a professora. A partir

dos modelos de assistência obstétrica da época, ela mostra como o médico se consolidou como hegemônico na área.

Segundo Jane Progianti, para con-seguir espaço nas instituições hospi-talares, as enfermeiras se aliaram aos médicos contra as parteiras e ajuda-ram, naquele contexto, a implantar o processo de medicalização no parto.

“Agora, em outro contexto, a mesma cate-

g o r i a

luta para resgatar as técni-cas das parteiras”, afirma a pesquisadora.

A medicalização é o fenômeno pelo qual se passou a tratar como doença os processos fisiológicos tais como a gravidez e o parto, requisitan-do, desta forma, o acompanhamento médico. Tal ocorrência dá-se em to-das as sociedades industrializadas,

não apenas por aqui. “No Brasil a medicalização é fato até a década de 1970, na China, por exemplo, ocor-re agora. Tudo é visto como doença e, por isso, somente se pode fazer o atendimento seguro no hospital com a presença de um médico.”

E é realmente desta forma que uma das maiores opositoras das casas de parto, Vera Fonseca, que é presi-dente da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia do Estado do Rio de Janei-ro (SGORJ) encara a questão do parto.

“Não somos mais nem contra os enfermeiros fazendo

p a r t o .

Nós queremos é juntar todas essas forças em um local que já existe: a maternidade. Nós somos contra re-troceder no tempo, porque a casa de parto não dá segurança para a pa-ciente”, assinala a ginecologista.

Sidney Coutinho

Banco de Imagens SXC

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Setembro 2009Setembro 2009 UFRJJornal da

23Setembro 2009 anos89uFRJ

Saúde e Cidadania

“Ele usa tecnologias não

invasivas, porque acredita que o corpo da mulher é perfeito

e que gestação não é doença”, diz

Progianti.

Vera assegura, suas palavras repre-sentam a ideologia de outras instituições como o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) (de onde é vice-presidente), a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, a Sociedade de Pediatria e a Academia Nacional de Medicina. “Se nós lutamos para exigir do governo que todas as ma-ternidades públicas ou privadas tenham banco de sangue, unidades de terapia in-tensiva, exames complementares, como ultrassonografia ou cardiotocografia não podemos defender que a mulher tenha o bebê onde não há medicação, saída de oxigênio, banco de sangue, en-fim, nada que dê tranqüilidade para ela e para o bebê”, afirma a médica.

De acordo com ela, que também chefia o setor de Patologia do Trato Ge-nital Inferior no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), a maternidade mais próxima da Casa de Parto Davi Capistrano fica a 15 qui-lômetros. “Sabemos que em relação à Obstetrícia muita coisa pode acontecer de grave em pouco tempo, as chamadas intercorrências do parto. Por exemplo, a necessidade de realizar uma histerec-tomia (que é a retirada do útero, que não consegue se contrair naturalmente de forma eficiente após a mãe expelir o bebê e que acarreta hemorragia grave)”, adverte Vera.

A ginecologista deseja fechar a casa de parto para unir esforços na formação de uma equipe multidisciplinar, com enfermeiros e médicos: “como sempre existiu, mas dentro de uma unidade hospitalar que ofereça segurança.”

Para Jane Progianti a proposta é in-viável. “O que o médico faria em uma casa de parto? Ele seria um supervisor técnico do que ele não sabe fazer?”, ques-tiona a enfermeira, lembrando que por trás daquela unidade de saúde há um conceito diferente, chamado de huma-nização. “Há uma disputa de campo e uma insubordinação do saber. O médi-co quer ficar lá para supervisionar o que não sabe, ou seja, as técnicas não invasi-vas de cuidar. Ele não aprendeu isso na faculdade”, afirma ela, certa de que have-rá interferências.

Segundo a professora da Uerj, não é à toa que o Brasil é campeão mundial de cesarianas. São oito a cada dez partos, quando a Organização Mundial de Saú-de (OMS) recomenda que apenas 15% dos partos sejam feitos através de inter-venção cirúrgica. “Ao observar os pron-tuários, ver-se-á que a maioria das cesa-rianas é indicada por falta de passagem. Será que as brasileiras são aleijadas, têm problema de bacia, são imperfeitas?”, questiona, com ironia, Jane, para quem, “a cesariana virou um parto, o que na verdade não é. É uma intervenção sobre o parto.”

Para ela, a medicalização enxerga a mulher como incapaz de parir, o que justifica intervir com tecnologias invasi-vas não apenas fisicamente, mas psico-logicamente também. Segundo a profes-sora, a cesariana dá para o organismo se recuperar, trabalho enorme para o orga-

nismo se recuperar, porque são muitas camadas de tecido para cicatrizar, do útero até a parede do abdôme. O tempo varia de pessoa para pessoa, mas a cica-trização às vezes pode não ser bem feita acarretando problemas. “O corte vagi-nal faz com que muitas mulheres sintam dor pelo resto da vida nas relações sexu-ais e ninguém liga para isso”, afirma Jane Progianti.

Parto com prazerPara Jane Progianti, visão de mundo

é o que difere o parto humanizado. Um profissional que atende sob tal concep-ção encara a mulher como protagonista do ato, estimula que ela seja ativa duran-te o nascimento do bebê, acredita na for-ça de parir: “ele (o profissional) usa tec-nologias não invasivas, porque acredita que o corpo da mulher é perfeito e que gestação não é doença.”

Na visão humanizada, o parto é entendido como parte da sexualidade feminina e se é assim tem de ser praze-roso. O hormônio que cai na corrente sanguínea durante o parto, para ajudar na contração e na dilatação, a ocitocina, é o mesmo liberado no orgasmo. “Por que em uma situação eu tenho prazer e na outro eu tenho dor? É a cultura que impõe isso”, afirma a professora da Uerj.

Quem defende um orgasmo duran-te o trabalho de parto sabe que ele não é algo que se busca conscientemente, mas que pode ocorrer naturalmente quando a mulher, livre dos precon-ceitos e do modelo que repreende a sexualidade feminina, se permite sentir as sensações que o próprio corpo ofe-rece. “Acham que a vagina da mulher é defeituosa, não é suficientemente elás-tica para a passagem do bebê; ou, na visão machista, a mulher vai ficar larga e prejudicar a sexualidade do homem. Eu classifico o parto como evento se-xual da mulher e passo a priorizar o prazer do outro”, pontua Progianti, que vê como uma das principais caracterís-ticas do parto humanizado, entender a gravidez como algo natural, como fe-nômeno que faz parte do direito sexual e reprodutivo da mulher.

“Quando se fecha a casa de parto, fecha-se um modelo. Fere-se, também, a cidadania da mulher, sua autonomia e a produção de conhecimento de téc-nicas não invasivas de cuidado que es-tão sendo aperfeiçoadas. Não invasivas, porque tudo que é feito na mulher é

compartilhado, não tem o autoritarismo do hospital”, destaca Jane Progianti.

Desperdício de dinheiro públicoNa opinião de Vera Fonseca, presi-

dente da SGORJ, a Casa de Parto David Capistrano Filho é um total desperdício de dinheiro público. Durante cinco anos de funcionamento, nasceram perto de 1.350 bebês. Ao todo 850 consultas de pré-natal são realizadas, em média, to-dos os meses. “Eu acho que criaram essa história de humanização. Você vê que na Casa de Parto de Realengo (bairro do subúrbio carioca) são 23 partos por mês, menos que um por dia. Um desperdício de dinheiro. Se você pega a maternida-de Carmela Dutra, são 23 partos em 24 horas. Aí, é óbvio que o local onde há mais carinho é aquele com triagem e mais tempo para nascer. Se você treinar uma equipe de duas ou três enfermeiras para fazer um parto a cada 24 horas, isso quando faz, é diferente”, afirma a gine-cologista.

Para ela, “se para a população, para a sociedade está se vendendo uma ima-gem que humanizar é passar a mão na cabeça de uma mãe, então estamos em um caminho errado. Eu, como presi-dente de uma sociedade médica, como vice-presidente do Cremerj, luto por mais, por vaga certa de CTI esperando pela mulher em caso de intercorrências, não importa onde seja, por todas as ma-ternidades com banco de sangue, por-que a gente sabe que a segunda causa de morte materna são as hemorragias e se não houver uma interferência, pode-se perder a mulher. Também luto por um pré-natal de qualidade para prevenir os casos de hipertensão arterial. Isso, para mim, é humanizar”, afirma a especialis-ta.

A diretora da Escola de Enfermagem Ana Néri (EEAN) da UFRJ, Maria An-tonieta Rubyo Tyrrell, entra nessa briga para dizer que talvez haja um grande desconhecimento acerca do processo de formação do enfermeiro. Considera-ções devem ser feitas antes de se indagar como os enfermeiros vão se responsa-bilizar por hemorragias com inversões uterinas. “Isso não chega à casa de par-to, porque é feito o pré-natal da mulher com condições de se detectar um grau de risco e de imediato encaminhar para unidades de referência. Se a referência determinar, com avaliação médica e de toda a equipe institucional do hospital,

que ela tem de ficar e ser conduzida lá, ela fica”, explica a professora titular, espe-cialista em Políticas Públicas em Saúde da Mulher.

Segundo Tyrrell, a Casa de Parto Da-vid Capistrano atende mais de 800 con-sultas pré-natais por mês e assistiu cerca de 1.500 partos sem nenhum óbito. “E mesmo que viesse a acontecer, acontece em todo o processo, em todas as profis-sões, em todos os hospitais. Caso acon-tecesse, seria o bode expiatório. Mas é o caso de se perguntar: quando acontece nos hospitais, quem deveria ser respon-sabilizado? Quem não é qualificado? Como, se ali está sob o comando médi-co?”

De acordo com a diretora da EEAN, a enfermeira tem formação generalis-ta, diferentemente de outras profissões, inclusive da médica, que é mais voltada para a especialização. Além disso, no curso de graduação, um terço da carga horária é dirigido para a área materno-infantil. Somada a especialização, são entre 700 e 1.500 horas de formação, embora o Ministério da Educação exija apenas 360. “O curso qualifica da me-lhor forma possível a enfermeira para atender a Fisiologia, para indicar os graus de risco e para indicar a interven-ção médica, que é muito necessária no momento de uma alteração da natureza, de uma complicação imprevisível, de uma avaliação clínica mais restrita e es-pecialista”, afirma Tyrrell.

Ela faz questão de ressaltar que o Ministério da Saúde fez um grande in-vestimento ao financiar projetos que vi-sassem à qualificação em nível de espe-cialização dos enfermeiros e promovia eventos de capacitação interdisciplinar, com materiais didáticos, nos quais estão registrados tanto a participação da Asso-ciação Brasileira de Enfermagem como da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia. “Agora se posicionam con-tra?”, questiona a professora.

Tyrrell ressalta que não há exclusões nas casas de parto, até porque os médi-cos estão presentes como referência e contra-referência, como manda a filoso-fia do Sistema Único de Saúde (SUS). “É um erro, e devemos consertar esse desvio conceitual. Queremos os enfermeiros in-cluídos no SUS e não no sistema médico. O SUS, aliás, tem vários subsistemas, um deles é o médico. Os outros são a Enfer-magem, a Nutrição, a Assistência Social, a Psicologia, a Fonoaudiologia, a Fisiote-rapia, a Terapia Ocupacional. Todas áreas muito importantes nesse caráter interdis-ciplinar. Acho que a casa de parto faz par-te do sistema e, como tal, deve ser vista.”

Maria Antonieta Tyrrell prega o res-peito à Constituição, que preserva os di-reitos do cidadão e os deveres do Estado. “Portanto, critico os movimentos corpo-rativos da classe médica que, no discurso, é uma coisa e, na prática, outra. É preciso que respeitem as políticas públicas e so-ciais e as estratégias de melhor atender, com qualidade e com dignidade – que a gente chama agora de humanização –, a mulher nesse período que é sublime, quando opta pela maternidade.”

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Márcio Castilho

Persona

Quando escreveu, em 1956, “A voz do morro”, obra mais gravada do seu

grande e variado repertório, aquele compositor que, por sua timidez na infância, recebera o apelido de “Zé Quietinho” estava dizendo definitiva-mente ao cenário musical brasileiro para o que veio. “Eu sou o Samba / a voz do morro sou eu mesmo sim se-nhor” anunciou o poeta. Nos poucos versos em que exalta o gênero musi-cal mais popular do país, José Flores de Jesus, o Zé Kéti, expressa um traço que se tornou marcante em sua traje-tória profissional: a contestação polí-tica ou a tentativa de utilizar o Samba como instrumento de afirmação so-cial dos moradores das comunidades pobres do Rio de Janeiro. Essa temá-tica, se não perpassa toda a sua obra, alargou os horizontes do compositor para além dos limites da favela. Zé Kéti participou ativamente dos movimentos de resistência cul-tural no período de repressão política nos anos 1960, sendo um dos principais interlocutores entre o morro e os intelectuais do asfalto.

“Embora não fosse explicitamente de esquerda, Zé Kéti sempre procu-rou utilizar o Samba como forma de expressão comunitária, como afirma-ção do grupo marginalizado, da clas-se social subalterna”, analisa Eduardo Coutinho, professor da Escola de Co-municação (ECO) da UFRJ.

A música e o cinema levaram Zé Kéti, ainda nos anos 1950, ao encon-tro da intelectualidade progressista do Rio de Janeiro. Na esteira do su-cesso de “A voz do morro”, o sambista participou em 1955 do filme Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, que rompe, na estética e na lingua-gem, com as populares chanchadas. Por retratar a dura realidade da po-pulação pobre dos morros cariocas, o filme é considerado o embrião do Cinema Novo.

O trabalho de compositores que faziam “sambas de morro” se con-solidava nos anos 1960 como uma importante manifestação da cultura popular brasileira. A Bossa Nova en-controu em Zé Kéti a possibilidade de conseguir maior identificação com o público do “outro lado do túnel”. Um velho sobrado no Centro do Rio era o ponto de encontro de intelectuais, boêmios e sambistas. Lá funciona-va o bar, restaurante e casa de shows Zicartola, onde Zé Kéti atuava como uma espécie de relações públicas do lugar, atraindo músicos de toda a ci-dade. “O Zicartola representou um momento de redescoberta da tradi-ção popular pela intelectualidade de esquerda. Era uma forma de resistên-cia político-cultural. E, nesse contex-to, Zé Kéti teve um papel importante, formando inclusive novas gerações de sambistas”, afirma Coutinho, autor do livro Velhas histórias, memórias futu-ras (Editora Uerj, 2002) sobre a obra de Paulinho da Viola, um dos artistas lançados por Zé Kéti.

Outro importante fruto dessa integração entre o Samba e a Bossa Nova foi a criação, em 1964, do show

Opinião, dirigi-do por Augusto Boal. No palco, o encontro musical reunia Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão, músicos de diferentes ori-gens e classes sociais. O es-petáculo tornou conhecidas al-gumas de suas composições, como “Opinião” e “Diz que fui por aí” (com Hortêncio Rocha). Coutinho reflete acerca da importância do espetáculo Opinião naquele contexto social e polí-tico: “ocorreu um deslocamento dos in-telectuais ligados ao Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) em direção ao universo do Samba. De certa forma, era um projeto paternalista, que ten-tava se utilizar da linguagem popular do Samba como veículo para expressar conteúdo revolucionário de esquerda.”

Para Fred Góes, professor da Facul-dade de Letras e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Carnavales-cos do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da UFRJ, os intelectuais acreditavam na utopia de que a arte poderia modificar o país no período de repressão política. Segun-do ele, o sambista esteve envolvido nesse processo, mas preservando o seu talento e a sua integridade ar-tística. “A arte de Zé Kéti sempre foi maior. Ele não era panfletário. Se fos-se, não teria ficado na história da mú-sica brasileira. Ele tinha uma vivência que outros não tinham, reafirmando a postura de determinados composi-tores que promoveram a cisão entre o morro e o asfalto”, destaca o pesqui-sador.

Em defesa do SambaA conquista, em 1968, do título

“Cidadão Samba” marcou o auge da carreira do compositor, nascido em 16 de setembro de 1921, no bairro de Inhaúma, na Zona Norte do Rio de Janeiro. O cotidiano no subúrbio carioca, região que concentra impor-tantes comunidades do Samba, teve grande influência na carreira de Zé Kéti. Desde o início dos anos 1940, integrava o grupo de compositores do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela. Sua relação com a agremia-ção azul e branco de Madureira, po-rém, foi marcada por muitas idas e vindas.

Polêmico, vestido sempre com o chapéu de aba curta, que era sua mar-ca registrada, o compositor era um dos mais combativos artistas em de-fesa da música brasileira. Às vésperas do Carnaval de 1966, Zé Kéti já cri-ticava a grandiosidade dos desfiles e a perda de autenticidade dos sambas-enredo: “Escola de Samba autêntica é aquela que tem o ‘partido alto’ (...) É a que conserva as tradições do mor-ro. É a que mantém seus passistas e pastoras dizendo o Samba no pé, sem acrobacias”, dizia o compositor no de-

bate promovido pela re-vista Fatos e Fotos naquele

ano e reproduzido por Ney Lopes na biografia Zé Kéti:

o Samba sem senhor (Relume Dumará, 2000).

A partir da década de 1970, o sambista começa a viver uma fase de

ostracismo. Produziu músicas popu-lares de cunho religioso e voltou-se para o mundo dos negócios. O res-gate da carreira ocorreu apenas em 1996, quando lançou o disco 75 anos de Samba, com participa-ção de Zeca Pagodinho e Monarco, dentre outros. No mesmo ano, o cantor Zé Renato gravou “Natural do Rio de Janeiro”, em que atualiza a obra de Zé Kéti. O sambista rece-beu também uma série de homena-gens, dentre elas o 18º Prêmio Shell para a Música Brasileira, em 1998, no palco do Canecão.

Zé Kéti morreu em 14 de no-vembro de 1999 aos 78 anos sem conseguir concretizar um projeto de regulamentação profissional dos artistas. Em entrevista a Tribu-na da Imprensa em 18 de agosto de 1987, declarou: “Se me considero injustiçado? Injustiçado é o artista brasileiro. Ciro Monteiro, Wilson Batista, Geraldo Pereira, Cartola, Nelson Cavaquinho foram alguns que morreram pobres, esquecidos em vida. De que adiantam belíssi-mas homenagens póstumas, se o que eles queriam, e o que nós que-remos, é continuar cantando? (...) O artista brasileiro ainda terá seu tra-balho reconhecido. Ao menos rece-bendo o suficiente para pagar a conta do hospital.”

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Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 47 • Setembro de 2009 • Encarte Especial–Editora UFRJ–Bienal do Livro 2009

A Editora UFRJ conta em seu catálogo com livros de diversas áreas de conhecimento, de diferentes orien-tações teóricas. Sua diretriz sempre foi investir em

obras fundamentais para o debate acadêmico e o desenvolvi-mento da ciência. Busca também manter-se sintonizada com a contemporaneidade e com as demandas da sociedade, atra-vés de um eficiente planejamento de sua produção editorial e da comercialização das obras publicadas.

Presente a todas as bienais do livro no Rio e em São Paulo, premiada com dois Jabutis, a editora também participa de todos os eventos de divulgação científica por todo o Brasil.

Em seu catálogo estão incluídos alguns clássicos do pensa-mento social brasileiro, como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Guerreiro Ramos e Octávio Ianni.

As publicações da editora estão agrupadas em várias cole-ções. Entre elas: Pensamento Crítico; Etnologia; Economia e sociedade; Estudos; História, cultura e idéias. Em convênio

com a FUJB (Fundação Universitária José Bonifácio), a Edito-ra UFRJ lançou a Série Didáticos, com obras produzidas por docentes da UFRJ.

Com apoio do Banco do Brasil e da Reitoria da UFRJ, a Editora estará presente na Bienal, no estande da ABEU, no Pavilhão Laranja (D08/C05/C08/B05), com títulos inéditos e a reedição do clássico, há muito fora do mercado, Cangaceiros e Fanáticos, de Rui Facó.

Entre os títulos inéditos, destacam-se: Arte e sociedade, de György Lukács; Heidegger e a destruição da ética, de Ale-xandre Marques Cabral; O patronato rural no Brasil recente (1964-1993), de Sonia Regina de Mendonça; Os arquitetos da memória: a construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil (anos 1930 e 1940), de Márcia Regina Ro-meiro Chuva; O corpo da nação. Classificação racial e gestão social da reprodução num hospital público do Rio de Janeiro, de Valeria Ribeiro Corossacz.

Editora UFRJ presente

XIV Bienal Internacional do Livro do Rio de JaneiroEditora UFRJ - Pavilhão Laranja - Estande C05/D08

XIV Bienal Internacional do Livro do Rio de JaneiroRiocentro - 10 a 20 de setembro de 2009

ENCARTE ESPECIAL

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Reitor Aloísio Teixeira

Vice-reitora Sylvia da Silveira Mello Vargas

Pró-reitoria de Graduação (PR-1)

Belkis Valdman Pró-reitoria de Pós-graduação

e Pesquisa (PR-2) Ângela Maria Cohen Uller

Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3)

Carlos Antônio Levi da Conceição Pró-reitoria de Pessoal (PR-4)

Luiz Afonso Henriques Mariz Pró-reitoria de Extensão (PR-5)

Laura Tavares Ribeiro SoaresSuperintendência Geral

de Administração e Finanças Milton Flores

Chefe de Gabinete João Eduardo Fonseca

Forum de Ciência e CulturaBeatriz Resende

Prefeito da Cidade UniversitáriaHélio de Mattos Alves

Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) Paula Maria Abrantes Cotta de Melo

Coordenadoria de Comunicação (CoordCom) Fortunato Mauro

Marshall Sahlins. Tradução de Vera Ribeiro.Resenha: Francisco Conte (publicada no Jornal da UFRJ, n° 8, set. 2005)

Marshall Sahlins é hoje talvez o maior antropólogo norte-americano vivo. Professor emérito da Universi-dade de Chicago, sua obra abrange os mais variados aspectos dessa disciplina, em particular o das suas relações com a história. Suas preocupações não são, porém, exclusivamente acadêmicas. Nos anos 1960

destacou-se como ativista contra a guerra do Vietnam e, no final da década, viveu em Paris, quando sofreu o impacto libertário dos protestos de Maio de 68. É dessa mesma época, também, o seu contato com a intelectualidade francesa, em especial com as obras de Lévi-Strauss, que o considera “o mais lúcido dos antropólogos contemporâneos”.

Cultura na prática resgata um pouco desse percurso. São 16 ensaios, escritos entre 1964 e 1999, e organizados em três partes que expressam, como salienta o autor, alguma sucessão temporal e de preocupações. A primeira parte, que reproduz textos publicados entre meados da década de 1960 e meados da década seguinte, recolhe análises teóricas sobre a natureza da cultura e sobre as diferenciações culturais e estudos etnográficos acerca do comportamento eco-nômico no Ocidente e em outras culturas. A segunda, por seu turno, acolhe material de natureza mais política, sobre a experiência da guerra do Vietnam, que marcou profundamente a geração do autor. Por fim, os ensaios da terceira parte, escritos nas décadas de 1980 e de 1900, refletem o impacto da experiência política das décadas anteriores. Com uma abordagem mais marcadamente histórica, Sahlins estuda aspectos da cultura ocidental, assim como reafirma a especificidade das demais culturas.

Acima de tudo, um pensamento que, fiel a seu projeto, se nega a reduzir a diversidade da experiência cultural ao ponto de vista do Ocidente.

Fredric Jameson. Organização e tradução de Ana Lucia de Almeida Gazzola.Resenha: Francisco Conte (publicada no Jornal da UFRJ, n° 8, set. 2005)

Usar o marxismo para compreender e desmontar o pós-moderno, esse parece ser o projeto de Fredric Jameson, importante crítico norte-americano da cultura. Um marxismo heterodoxo, por certo, que se apropria e incorpora elementos oriundos de diversas matrizes (Lukács, Ador-

no, Benjamin, Marcuse, Bloch, Mandel, Saussure, formalistas russos, estruturalistas e pós-estruturalistas, crítica mítica e psicanálise são algumas de suas fontes) e que insistentemente enfrenta o que considera a mais importante mutação do capitalismo.

Fugindo às análises exclusivamente negativas, Jameson enfatiza o aspecto político da questão: o pós-moderno não é uma panacéia conceitual que dê conta do estado da cultura moderna, mas justamente o que deve ser explicado. Portanto, nem celebração orgíaca, nem repúdio enfadado.

Na contramão de uma cultura que parece querer dissolver a dimensão temporal da vida num eterno (e, talvez, anódino) presente, ele, como afirma enfaticamente, se mantém fiel ao projeto marxista de “histori-cizar sempre”. Resulta uma proposta de análise dos textos culturais contemporâneos como manifestações específicas do capitalismo tardio, que resgata sem ambigüidades a categoria marxiana de totalidade. Ao mesmo tempo não aceita vê-la assimilada a uma manifestação, entre outras, do totalitarismo, como pre-tende, aliás, o ódio pós-moderno à modernidade. Ao contrário, trata-se de revelar as motivações políticas profundas dessa significativa “guerra à totalidade”.

Espaço e Imagem, nessa terceira edição, recolhe oito artigos de Jameson, publicados entre 1984 e 1994. Um aporte fundamental ao debate das artes, das culturas, e das sociedades contemporâneas.

Néstor García Canclini. Tradução de Maurício Santana Dias.Resenha: Francisco Conte (publicada no Jornal da UFRJ, n° 10, nov. 2005)

As mutações societais contemporâneas, aquilo a que se convencionou chamar globalização, têm sido objeto de intensa produção intelectual. Para Néstor García Canclini, diretor do Progra-ma de Estudos sobre Cultura Urbana da Universidade Autônoma Metropolitana, México, uma

perspectiva multicultural é necessária para compreender os fenômenos: não estaria em curso, como mui-tos autores afirmam, um processo de nivelamento e homogeneização, mas um “reordenamento” – sem efetivamente suprimi-las - das desigualdades e das diferenças socioculturais.

Consumidores e cidadãos analisa os impactos da globalização sobre as cidades e a indústria cultural da América Latina a partir desse viés metodológico. Este ponto de vista, entretanto, não significa qualquer opção localista, pois, como afirma Canclini, não é mais possível pensar e agir politicamente fora da globa-lização. Não se trata, também, vale sublinhar, da retomada de explicações anteriores das relações – colonial ou imperialista – entre o continente e os Estados Unidos e a Europa. As transformações nas maneiras de consumir, provocadas pela indústria cultural, alteraram as formas e as possibilidades de exercer a cidada-nia. Elas afetaram drasticamente a esfera pública: as campanhas eleitorais, por exemplo, sob seu impacto, migraram dos comícios e das praças para as telas de TV, dos debates ideológicos para o marketing.

Não se trata, sublinha Canclini, de depositar esperanças na conquista do Estado ou no suposto caráter revolucionário das camadas populares, mas de redefinir, ao mesmo tempo, o papel do Estado e da socie-dade civil, o que implica repensar as formas de participação política, como consumidores e cidadãos. Esse debate ganha, assim, urgente atualidade.

Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização

Cultura na prática

Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios

Resenhas

Diretor Carlos Nelson CoutinhoConselho editorial Carlos Nelson Coutinho (presidente), Charles Pessanha, Diana Maul de Carvalho, José Luís Fiori, José Paulo Netto, Leandro Konder e Virgínia Fonte Co-ord. de edição de texto Lisa Stuart Coord. de produção Janise Duarte Coord. de divulgação e comerciali-zação Fernanda Ribeiro Coord. de livraria Julio Dias Assessoria de imprensa Eva Spitz

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Supervisão editorial João Eduardo Fonseca

Jornalista responsável Fortunato Mauro (Reg. 20732 MTE)

Edição e pauta Antônio Carlos Moreira e Fortunato Mauro

Redação Francisco Conte, Luciana Crespo, Coryntho Baldez, Eva Spitz

Projeto gráfico Anna Carolina Bayer, Jefferson Nepomuceno, Patrícia Perez e Rodrigo Ricardo

Diagramação Anna Carolina Bayer

Instituições interessadas em receber essa publicação devem entrar em

contato pelo e-mail [email protected]

Fotolito e impressão Esdeva Indústria Gráfica - 25 mil exemplares

José Luis Romero. Tradução de Bella Jozef.Resenha: Francisco Conte (publicada no Jornal da UFRJ, n° 15, abr. 2006)

Três décadas após sua publicação, em junho de 1976, pela Siglo Veintiuno, importante editora argentina que acabou arrasada pela obscurantista ditadura militar instalada apenas dois meses antes, este texto se conver-teu em um clássico da historiografia latino-americana. O autor, um dos mais notáveis historiadores argen-

tinos, relê a tese clássica de Sarmiento e a desenvolve em amplitude e complexidade: a história dessa parte do mundo – una e diversa a um só tempo – resultaria da tensão entre cidade e campo, sendo a primeira seu eixo dinâmico.

Extensão do mundo europeu, as cidades latino-americanas se conformam, em sua origem, como postos avança-dos daquele continente que, aqui, busca organizar, à sua imagem e semelhança, um vasto e hostil território concebido como culturalmente vazio. Daquela homogeneidade inicial e sob impacto de processos tanto heterônomos (transfor-mações econômicas e afluxos de idéias européias) como autônomos (a consciência sobre a região, a sua sociedade e suas formas ideológicas), Romero faz surgir uma diferenciação crescente. O livro, que aproveita a sua rica experiência anterior como historiador da Antigüidade clássica e das sociedades urbanas européias medievais, destaca, em capí-tulos sucessivos, momentos importantes dessa trajetória multissecular: o ciclo das fundações, as cidades fidalgas das Índias, as cidades criollas, as cidades patrícias, as cidades burguesas e as cidades massificadas contemporâneas.

Como observa Afonso Carlos Marques de Souza, professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, na apresentação da edição brasileira, “Romero estava disposto a ultrapassar a história política tradi-cional, que reduzia a história das cidades aos aspectos factuais do exercício do poder e na qual o fenômeno urbano permanecia incompreensível em sua complexidade”. Resulta uma obra impressionante que abarca a história cultural urbana do continente desde os séculos de colonização e que destoa, pelo seu caráter abrangente, da produção con-temporânea sobre o assunto, predominantemente monográfica. Indo mais além, acaba traçando um amplo panora-ma da história da América Latina, a partir dos seus focos mais ativos e de seus centros de decisão.

A tradução para o português da obra de Romero, que faleceu subitamente em Tóquio, em 1977, quando assistia a uma reunião do Conselho Diretivo da Universidade das Nações Unidas, do qual fazia parte, é de Bella Jozef, profes-sora emérita da Faculdade de Letras da UFRJ, e sua publicação constitui um esforço para aproximar pesquisadores argentinos e brasileiros.

Francisco Fernández Buez. Tradução e apresentação de Luiz Sérgio Henriques.Resenha: Francisco Conte (publicada no Jornal da UFRJ, n° 9, out. 2005)

Há, por certo, algo de temerário no projeto de Francisco Fernández Buez, professor de Filosofia Política da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, Espanha, e um dos mais importantes in-telectuais marxistas contemporâneos: resgatar um Marx anterior à proliferação dos marxismos

que acabaram produzindo um intrincado palimpsesto que sufoca a voz marxiana numa profusão de inter-pretações, não raro em aberto confronto entre si. Não se trata, evidentemente, de reinventar um mítico Marx “original” e isento de toda contaminação, como se esse retorno à obra marxiana e ao ambiente intelectual em que ela foi gerada não comportasse uma parcela de construção, mas ao contrário distinguir, com cuidado e meticulosidade, aquilo que disse e escreveu do que escreveram e disseram em seu nome. Tarefa intelectual e politicamente urgente, pois, na onda da euforia midiática pela derrocada da URSS, ameaça-se elidir a dimensão agudamente crítica do filósofo alemão.

Buez se sai a contento da empreitada a que se propôs. A obra percorre os principais textos de Marx, desde as obras da juventude até as grandes obras da maturidade, com ênfase nas condições políticas e intelectuais em que foram gestadas. Nessa trajetória, diversas discussões importantes para a compreensão da obra marxiana são levantadas. Duas delas: a persistência de traços autoritários na obra e na prática de Marx e a sua relação com o judaísmo.

Esse esforço paciente de contextualização das categorias marxianas redescobre um Marx empenhado na crí-tica da totalidade do mundo burguês, e não apenas da sua economia política; e, ao mesmo tempo, um pensador atravessado por contradições e tensões nem sempre adequadamente resolvidas. Um Marx, não raro, crítico do próprio marxismo; o que talvez explique a irônica afirmativa de que, ele mesmo, não se considerava marxista.

Marx (sem ismos)

América Latina: as cidades e as idéias

Karl Korsch. Tradução de José Paulo Netto,Resenha: Luciana Crespo ( publicada no Jornal da UFRJ, n° 42, mar. 2009)

Durante o intervalo entre a Revolução de Outubro, em 1917, e o estabelecimento do marxismo “oficial” da Academia de Ciências de Moscou, vários pensadores publicaram interpretações diferenciadas da época extraordinária em que viviam e foram por isso condenados – tanto pelos líderes do movimento

comunista internacional, à frente Zinoviev, como pelos próceres da social-democracia, à frente Kautsky.Entre estes “livros malditos” do marxismo no século XX, que posteriormente considerou-se que fundam o

“marxismo ocidental”, dois volumes se destacam: História e consciência de classe, de Giörgy Lukács, e Marxismo e filosofia, de Karl Korsch, ambos de 1923. Os dois tomaram no entanto, rumos bem diferentes: Lukács, apesar de preparar bem fundamentada defesa, nunca a publicou, acatou a decisão e viveu próximo ao movimento comunista por toda a sua vida; Korsch tentou dialogar com seus críticos, foi expulso do partido em 1926 e acabou se isolando.

Marxismo e filosofia não tem a profundidade do trabalho de Lukács, mas é importantíssimo para a crítica do “marxismo vulgar”, este veio do pensamento de Marx abastardado por Kautsky e companhia. É importante ainda para se avaliar que riqueza de debates poderia se ter produzido, não fosse a “ortodoxia” dos líderes revolucionários que se tornaria o engessamento do stalinismo. Este livro traz ainda a resposta de Korsch às críticas – Estado atual do problema (anticrítica) – e mais quatro ensaios do autor. Obra apresentada e traduzida por José Paulo Netto, com exaustiva pesquisa das referências originais, Marxismo e filosofia é fundamental em qualquer biblioteca marxista.

Marxismo e filosofia

Foto Marco Fernandes

Ilustração Jefferson Nepomuceno

Revisão Mônica Machado

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Em 1885, o médico Deocleciano Pires Teixeira, vindo de Palmas de Monte Alto (BA), compra um sobrado em outra cidadezinha baiana, onde finca raízes profissionais e familiares. A pequena Caetité já era ilustre nas redondezas. Para lá fugiram muitas

famílias perseguidas pela Coroa Portuguesa, à época da Inconfidência Mineira. Ao lado dos primeiros missionários jesuítas, esses novos moradores formaram, ainda no século XVIII, um núcleo aristocrático que valorizava a cultura e a educação. Caetité passou a ser chamada de “Corte do Sertão”. Hoje, é conhecida como a terra natal de Anísio Teixeira. Um dos filhos de Deocleciano e Anna de Souza Spínola, nascido em 12 de julho de 1900, tornou-se um dos mais notáveis educadores brasileiros e deu fama a Caetité para além dos confins do sertão baiano.

Autora de vários ensaios sobre Anísio Teixeira, Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero – professora aposentada da UFRJ e coordenadora do Programa de Estudos e Documentação Educação e Sociedade (Proedes) – afirma que ele reunia as qualidades raras de pensador, educador e administrador. O Proedes – vinculado à Faculdade de Educação – possui, entre os mais de 400 mil documentos, algumas jóias raríssimas do arquivo pessoal de Anísio Tei-xeira. “É um acervo pequeno, mas muito expressivo”, orgulha-se a pesquisadora. Abrange todas as designações do educador para cargos públicos, de 1924 a 1961, a coleção completa dos diplomas, incluindo o título de Master of Arts concedido pela Universidade de Columbia, e o original da tese Educação é um Direito, que elaborou para concorrer à cátedra de Admi-nistração Escolar e Educação Comparada – que já lecionava interinamente – na Faculdade Nacional de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil. “O concurso acabou não acontecendo e poucos sabem que a obra publicada pela Editora UFRJ com o mesmo título é a tese dele”, revela Fávero – que, junto com Jader de Medeiros Britto, organizou o livro Educação e Universidade (UFRJ, 1998), com artigos de Anísio Teixeira, e o Dicionário de Educadores no Brasil (UFRJ, 1999), que recebeu voto de louvor do Conselho Nacional de Educação.

O homem públicoFoi na atmosfera dos colégios jesuítas que Anísio Tei-

xeira recebeu os primeiros ensinamentos. Até os 14 anos, estudou no Instituto São Luiz Gonzaga, em Caetité. Já em Salvador, concluiu o secundário no Colégio Antônio Vieira. Em seguida, foi para a capital e diplomou-se, em 1922, pela Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro – atu-al UFRJ.

Em 1924, de volta a Salvador como bacharel em Direito, ocupa o cargo de Inspetor Geral do Ensino da Bahia. Queria uma vaga para promotor público, mas a função inesperada lhe permitiu iniciar uma fecunda obra a serviço da educação pública. Nesse período, entre 1924 e 1929 (ano em que deixa a Inspetoria de Ensino da Bahia) vai à Europa e aos EUA para conhecer outros sistemas de ensino e mantém contato com a obra do filósofo e pensador norte-americano John Dewey, que o marca como intelectual e educador.

Para a coordenadora do Proedes, um dos momentos mais significativos da sua traje-tória foram os anos em que atuou como Secretário de Educação do Distrito Federal. De 1931 a 1935 – na gestão do prefeito Pedro Ernesto – “criou um programa de educação pública que se estendia do pré-escolar ao ensino superior”, frisa. Na rede municipal bási-ca, conseguiu criar 25 novos prédios projetados com moderna arquitetura escolar, criou as Escolas Técnicas Secundárias e transformou a antiga Escola Normal em Instituto de Educação.

Nesta mesma época – precisamente em 1932 – torna-se signatário do Manifesto dos Pio-neiros da Educação, que continha as diretrizes de um programa nacional de reconstrução do ensino defendido por um grupo de educadores e intelectuais, entre os quais Roquette Pinto, Hermes Lima e Cecília Meireles.

Mas foi a criação da Universidade do Distrito Federal (UDF), em abril de 1935, que mostrou ao país porque Anísio Teixeira era um homem à frente de seu tempo. Uma das suas maiores inovações foi a idéia de vincular a universidade à pesquisa. “Pela primeira vez, foram criados grupos de pesquisa constituídos por professores e ex-alunos que tinham o compromisso de escrever e publicar. Hoje, isso é exigência da Capes em relação à pesquisa de pós-graduação. Foi, de fato, um pioneirismo”, realça Maria de Lourdes Favero.

Afastado da vida política por perseguições, logo depois da criação da UDF, Anísio re-fugia-se em uma fazenda, na região de Caetité, onde fica até 1945. No ano seguinte, atua como Conselheiro de Ensino Superior da ONU e volta à vida pública como Secretário de Educação da Bahia, em 1947. Na função, uma de suas mais importantes iniciativas foi a criação da Escola-Parque, uma experiência de educação integral que oferecia à criança alimentação, higiene e preparo para o trabalho.

Anísio Teixeiraum sacerdote da educação

Coryntho Baldez

Educação não é privilégioDurante sua gestão no Inep e também

como Secretário Geral da Capes (de 1951 a 1964) fez palestras e publicou o livro Educação não é privilé-gio, em 1957. Foi acusado de “extremista” por um grupo de bispos, que pediram sua demissão do Inep, nega-da pelo então presidente Juscelino Kubitschek. Antes,

já tinha feito um balanço de sua experiência de educador comprometido com o ensino público

em A Educação e a crise brasileira, de 1956, que, recentemente, ganhou nova edição da

Editora UFRJ.Logo depois, envolveu-se com

tanta energia na construção da Universidade de Brasília (UnB),

que Darcy Ribeiro – idealizador do projeto – disse que

Coleção Anísio Teixeira Editora UFRJ

• Educação para a democracia: introdu-ção à administração educacional

• Diálogo sobre a lógica do conhecimento

• Pequena introdução à filosofia da educação: a escola progressiva ou a transformação da escola

• Educação não é privilégio

• Educação e o mundo moderno

• Aspectos americanos da Educação

• Educação e a crise Brasileira

• Em marcha para a democracia• Ensino superior no Brasil

• Educação no Brasil• Educação é um direito• Educação e Universidade

“se devêssemos falar de pai fundador, uma outra vaga precisaria ser aberta para Anísio Teixeira”. Com o golpe militar de 1964, é afastado da reitoria da UnB, do Inep, da Capes e aposentado com-pulsoriamente. Embarca para os Estados Unidos e leciona nas Universidades de Columbia, Nova Iorque e Califórnia.

Segundo Maria de Lourdes Fávero, Anísio Teixeira não era marxista – “disse uma vez que nunca lera Marx” – mas um liberal democrata que defendia a educação como direito de todos e dever do Estado. “Foram essas idéias que incomo-daram a ditadura militar”, observa.

No dia 14 de março de 1971, Anísio Teixeira foi encontrado morto no poço do elevador de um prédio

da Praia de Botafogo onde morava Aurélio Buarque de Holanda. Queria conversar com o acadêmico sobre o convite que recebera para se candidatar a uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL). A morte trágica e suspeita, em circunstâncias até hoje não esclarecidas, interrompeu sua brilhante trajetória como educador. E, certamente, privou o Brasil de mais um punhado de idéias arrojadas e inovadoras. Anísio Teixeira, àquela altura, já era uma personalidade marcante da história contemporânea do Brasil.

(matéria publicada no Jornal da UFRJ, n° 12, jan. 2006)

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