Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
-
Upload
nicaize-marinho -
Category
Documents
-
view
219 -
download
1
Transcript of Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 1/46
ninguÉm escreve ao coronel
gabriel garcÍa mÁrquez
colecÇÃo novis
biblioteca visÃo - 10
digitalização e arranjo
agostinho costa
com a novela ningum escreve ao coronel! gabriel garciam"rquez constr#i um universo rico em emoç$es humanas! atravs
de %ersonagens inesquec&veis' o coronel e a sua mulher%erderam um (ilho! recebendo como herança um valioso galo decombate que se torna (onte de rendimento! mas tambm umades%esa quase insustent"vel' na %obreza! vivendo a crdito! ocoronel es%era todas as se)tas-(eiras! durante quinze anos! achegada da %ensão %rometida %or um governo h" muito derrubado'esta obra anteci%a as qualidades liter"rias que culminam noromance cem anos desolidão' em 1*+,! garcia m"rquez recebeu o %rmio nobel da
literatura'
t&tulo
ningum escreve ao coronel
t&tulo original
el coronel no ti.nne quien le escriba
autor
gabriel garc&a m"rquez
tradução
jos colaço barreiros
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 2/46
tradução cedida %or
quetzal editores
1*/1
bibliote)! s' l'
%ara esta edição
abrilcontrol jornal
im%ressão março de ,000
abril control jornaledi%ress
o coronel desta%ou a cai)a do ca( e veri(icou que nãohavia mais que uma colherinha' tirou a %anela do (ogão!des%ejou metade da "gua no chão de terra! e com uma (acaras%ou o interior da cai)a %ara dentro da %anela at sesoltarem as ltimas ras%as de %# de ca( misturadas com(errugem da lata' ao es%erar que (ervesse a in(usão! sentado junto do(ogareiro de barro numa atitude de con(iada e inocente
e)%ectativa! o coronel teve a sensação de que lhe nasciam(ungos e l&rios venenosos nas tri%as' era outubro' uma manhãdi(&cil de su%ortar! mesmo %ara um homem como ele que j"sobrevivera a tantas manhãs como esta' durante cinquenta eseis anos - desde que terminou a ltima guerra civil - ocoronel não (izera outra coisa senão es%erar' outubro era umadas %oucas coisas que chegavam' a mulher ergueu o mosquiteiro quando o viu entrar no quartocom o ca(' nessa noite tivera uma crise de asma e agora%assava %or um estado de tor%or' mas levantou-se %ara recebera )&cara' - e tu - disse' - j" tomei - mentiu o coronel' - ainda havia uma colherada
grande'
/
nesse momento! os sinos começaram a dobrar a (inados' ocoronel esquecera-se do enterro' enquanto a mulher tomava oca(! des%rendeu a cama de rede %or uma das %ontas e enrolou-a%ela outra! %ara tr"s da %orta' a mulher %ensou no morto'
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 3/46
- nasceu em 1*,, - disse ela' - e)actamente um m2s de%ois donosso (ilho' a sete de abril' continuou a sorver o ca( nos intervalos da sua res%iraçãoo(egante' era uma mulher constitu&da a%enas de cartilagensbrancas %or cima de uma es%inha dorsal arqueada e in(le)&vel'as %erturbaç$es res%irat#rias obrigavam-na a %erguntara(irmando' quando terminou o ca( ainda estava a %ensar no
morto' - deve ser horr&vel estar enterrado em outubro - disse' maso marido não lhe %restou atenção' abriu a janela' outubro j"se tinha instalado no %"tio' ao contem%lar a vegetação quebrotava em verdes intensos e os minsculos buracos dasminhocas no barro! o coronel voltou a sentir o m2s aziago nosintestinos' - tenho os ossos hmidos - disse' - É inverno - res%ondeu a mulher' - desde que começou achover que ando a dizer-te que durmas com as meias calçadas' - h" uma semana que durmo com elas' chovia %ouco mas sem %ausas' o coronel teria %re(eridoenrolar-se numa manta de lã e meter-se outra vez na rede' mas
a insist2ncia dos sinos rachados recordou-lhe o enterro'
3
- É outubro - murmurou! e caminhou %ara o meio do quarto' s#então se lembrou do galo atado ao % da cama' era um galo decombate' de%ois de ir %4r a )&cara na cozinha deu corda na sala a umrel#gio de %2ndulo assente numa %eanha de madeira lavrada' aocontr"rio do quarto! demasiado estreito %ara a res%iração deuma asm"tica! a sala era am%la! com quatro cadeiras de baloiçode (ibra 5 volta de uma mesinha com uma toalha e um gato de
gesso' na %arede o%osta 5 do rel#gio! o quadro de uma mulhervestida de tule rodeada de cu%idos numa barca coberta derosas' eram sete e vinte quando acabou de dar corda ao rel#gio' aseguir levou o galo %ara a cozinha! atou-o a um % do(ogareiro! mudou a "gua da gamela e %4s-lhe ao lado um %unhadode milho' entrou um gru%o de crianças %ela cerca sem cancela'sentaram-se em volta do galo! a contem%l"-lo em sil2ncio' - não olhem mais %ara esse animal - disse o coronel' - osgalos gastam-se de tanto olharem %ara eles' as crianças não se me)eram' um dos ra%azes iniciou naharm#nica os acordes de uma canção em voga' - não toques hoje - disse-lhe o coronel' - h" morto na
terra' - o ra%az guardou o instrumento no bolso das calças e ocoronel (oi ao quarto vestir-se %ara o enterro'
+
a rou%a branca estava %or %assar a (erro %or causa da asmada mulher! de maneira que o coronel teve de se decidir %elovelho (ato %reto que de%ois do casamento s# usara em ocasi$es
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 4/46
muito es%eciais' custou-lhe um bom bocado a encontr"-lo no(undo do ba! embrulhado em jornais e %reservado das traçascom bolinhas de na(talina' deitada na cama! a mulhercontinuava a %ensar no morto' - j" se deve ter encontrado com agust&n - disse ela' -talvez não lhe conte a situação em que (ic"mos de%ois da mortedele'
- a esta hora devem estar a discutir galos - comentou ocoronel' encontrou no ba um cha%u de chuva enorme e antigo'ganhara-o a mulher numa t4mbola %ol&tica destinada a angariar(undos %ara o %artido do coronel' nessa mesma noite assistirama um es%ect"culo ao ar livre que não (oi interrom%ido a%esarda chuva' o coronel! a es%osa e o (ilho agust&n - que naaltura tinha oito anos - %resenciaram o es%ect"culo at ao(im! sentados debai)o do cha%u de chuva' agora agust&n estavamorto e o tecido de cetim brilhante tinha sido destru&do %elastraças' - olha o que resta do nosso cha%u de chuva de %alhaço decirco - disse o coronel! usando uma antiga (rase sua' abriu
%or cima da cabeça um misterioso sistema de varetas met"licas'- agora s# serve %ara contar as estrelas' sorriu' mas a mulher não se deu ao trabalho de olhar %ara ocha%u de chuva' - est" tudo assim - murmurou' - estamos a a%odrecer vivos'
*
- e (echou os olhos %ara %ensar com mais intensidade no morto' de%ois de se barbear %elo tacto - %ois j" não tinha es%elhoh" muito tem%o -! o coronel vestiu-se em sil2ncio' as calças!quase tão justas nas %ernas como as ceroulas com%ridas!
a%ertadas nos tornozelos com n#s corrediços! seguravam-se nacintura com duas %resilhas do mesmo tecido que %assavamatravs de duas (ivelas douradas cosidas 5 altura dos rins'não usava cinto' a camisa cor de cartão antigo! e dura como ocartão! (echava-se com um botão de cobre que servia ao mesmotem%o %ara segurar o colarinho %ostiço' mas o colarinho estavaroto! de maneira que o coronel renunciou 5 gravata' (azia cada coisa como se (osse um acto transcendente' osossos das suas mãos estavam cobertos %or uma %ele brilhante eesticada! manchada das be)igas assim como a %ele do %escoço'antes de %4r os botins de verniz ras%ou o barro incrustrado nacostura' a mulher viu-o nesse instante! vestido como no dia docasamento' s# então veri(icou at que %onto o marido tinha
envelhecido' - est"s arranjado como %ara um acontecimento - disse' - este enterro um acontecimento - re%licou o coronel' - Éo %rimeiro de morte natural que temos desde h" muitos anos' %arou de chover de%ois das nove' o coronel dis%unha-se asair quando a mulher o agarrou %ela manga do casaco'
10
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 5/46
- %enteia-te - disse ela' ele tentou dominar com um %ente de corno as cerdas cor deaço' mas (oi um es(orço intil' - devo %arecer um %a%agaio - comentou' a mulher e)aminou-o' %ensou que não' o coronel não %arecianenhum %a%agaio' era um homem seco! de ossos s#lidos e
articulados que nem com %ara(uso e %orca' era a vitalidade dosseus olhos que (azia com que não %arecesse conservado em(ormol' - assim est"s bem - admitiu ela! e acrescentou quando omarido j" abandonava o quarto - %ergunta ao doutor se nesta casa lhe deitamos "gua quenteem cima' viviam 5 sa&da da %ovoação! numa casa de tecto de %alma com%aredes de caliça meio ca&da' a humidade continuava! mas j"não chovia' o coronel desceu at 5 %raça %or uma rua de casasamontoadas' ao desembocar na rua central teve umestremecimento' at onde alcançava a sua vista! a terra estavaata%etada de (lores' sentadas 5 %orta das casas! as mulheres
de %reto es%eravam o enterro' na %raça começou outra vez a chuviscar' o dono do salão debilhar viu o coronel da %orta do estabelecimento e gritou-lhecom os braços abertos - coronel! es%ere! que lhe em%resto um guarda-chuva' o coronel res%ondeu sem virar a cabeça' - obrigado! vou bem assim'
11
ainda não tinha sa&do o enterro' os homens - vestidos debranco com gravatas %retas - conversavam 5 %orta debai)o dos
cha%us de chuva' um deles viu o coronel a saltar %or cima das%oças de "gua da %raça' - meta-se aqui! com%adre - gritou' (ez es%aço debai)o do cha%u de chuva' - obrigado! com%adre - disse o coronel' mas não aceitou o convite' entrou directamente na casa %aradar os %2sames 5 mãe do morto' a %rimeira coisa que sentiu (oio cheiro de muitas (lores di(erentes' de%ois começou o calor'o coronel tentou abrir caminho atravs da multidão bloqueadana alcova' mas algum lhe %4s uma mão no ombro! em%urrando-o%ara o (undo do quarto %elo meio de uma galeria de rostos%er%le)os at ao lugar em que se encontravam - %ro(undas edilatadas - as (ossas nasais do morto'
ali estava a mãe! a(astando as moscas do atade com um lequede %almas entrançadas' outras duas mulheres vestidas de %retocontem%lavam o cad"ver com a mesma e)%ressão com que se olha%ara a corrente de um rio' imediatamente começou um vozear no(undo do quarto' o coronel arredou uma mulher! encontrou de%er(il a mãe do morto e %4s-lhe uma mão no ombro' cerrou osdentes' - os meus sentidos %2sames - disse' ela não voltou a cabeça' abriu a boca e lançou um guincho' ocoronel sobressaltou-se' sentiu-se em%urrado contra o cad"ver
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 6/46
%or uma massa in(orme que irrom%eu num vibrante alarido'%rocurou a%oio com as mãos! mas não encontrou a %arede'
1, 16
havia outros cor%os no lugar dela' algum lhe disse aoouvido! devagar! com uma voz muito terna - cuidado! coronel' - virou a cabeça e de%arou-se com omorto' mas não o reconheceu %orque era enrgico e activo eagora %arecia tão desconcertado como ele! envolvido em %anosbrancos e com o cornetim nas mãos' quando levantou a cabeça 5%rocura de ar %or cima dos gritos! viu o cai)ão aos tombos emdirecção 5 %orta! ta%ado %or uma encosta de (lores que sedes%edaçavam contra as %aredes' suou' do&am-lhe asarticulaç$es' um momento de%ois soube que estava na rua %orqueo chuvisco lhe (eriu as %"l%ebras e algum o agarrou %elobraço e lhe disse - des%ache-se! com%adre! estava 5 sua es%era'
era d' sabas! o %adrinho do seu (ilho morto! o nicodirigente do seu %artido que esca%ara 5 %erseguição %ol&tica eque continuava a viver na terra' - obrigado! com%adre - disse o coronel! e caminhou emsil2ncio debai)o do guarda-chuva' a banda iniciou a marcha(nebre' o coronel deu %ela (alta de um metal e %ela %rimeiravez teve a certeza de que o morto estava morto' - coitado - murmurou' d' sabas %igarreou' segurava o guarda-chuva com a mãoesquerda! com o cabo quase 5 altura da cabeça %ois era maisbai)o que o coronel' os homens começaram a conversar quando ocortejo abandonou a %raça' d' sabas virou então %ara o coronelo rosto desconsolado! e disse - com%adre! então o galo7
- o galo l" est" - res%ondeu o coronel' nesse instante ouviu-se um grito - aonde vão com esse morto7 o coronel levantou os olhos' viu o alcaide na varanda doquartel em atitude de discurso' estava em ceroulas de (lanela!com as bochechas %or barbear muito inchadas' os msicossus%enderam a marcha (nebre' um momento de%ois! o coronelreconheceu a voz do %adre 8ngel a conversar aos gritos com oalcaide' deci(rou o di"logo atravs do cre%itar da "gua sobreos cha%us de chuva' - então7 - %erguntou d' sabas' - então nada - res%ondeu o coronel' - o enterro não %ode%assar 5 (rente do quartel da %ol&cia'
- tinha-me esquecido - e)clamou d' sabas' - esqueço-mesem%re de que estamos em estado de s&tio' - mas isto não uma insurreição - disse o coronel' - É um%obre msico morto' o cortejo mudou de sentido' nos bairros bai)os! as mulheresviram-no %assar roendo as unhas em sil2ncio' mas de%ois sa&ram%ara o meio da rua e lançaram gritos de louvor! de gratidão ede des%edida! como se julgassem que o morto as ouvia dentro doatade' o coronel sentiu-se mal no cemitrio' quando d' sabaso em%urrou %ara o muro %ara dar %assagem aos homens que
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 7/46
trans%ortavam o morto! voltou %ara ele a sua cara sorridente9mas de%arou-se com um rosto duro'
1:
- o que tem! com%adre7 - %erguntou' o coronel sus%irou' - É outubro! com%adre' regressaram %ela mesma rua' tinha %arado de chover' o cu(icou %ro(undo! de um azul intenso' j" não chove mais! %ensouo coronel! e sentiu-se melhor! mas continuou absorto' d' sabasinterrom%eu-o' - com%adre! v" ao mdico' - não estou doente - disse o coronel' - o que acontece queem outubro me sinto sem%re como se tivesse bichos nas tri%as' - ah - (ez d' sabas' e des%ediu-se 5 %orta da sua casa! umedi(&cio novo! de dois %isos! com janelas de (erro (orjado' ocoronel dirigiu-se %ara a sua! ansioso %or largar o traje de
cerim#nias' voltou a sair um momento de%ois %ara com%rar naloja da esquina uma lata de ca( e meia libra de milho %ara ogalo'
; ; ;
o coronel (oi tratar do galo! a%esar de ser quinta-(eirae ter %re(erido (icar na rede' não %arou de chover durantev"rios dias' no decorrer da semana rebentou a (lora das suasv&sceras' %assou algumas noites sem dormir! atormentado %elossilvos %ulmonares da asm"tica' mas outubro concedeu uma trguana se)ta-(eira 5 tarde' os com%anheiros de agust&n - mestres
al(aiates como ele tinha sido! e (an"ticos dos combates degalos - a%roveitaram a ocasião %ara e)aminar o galo' estava em(orma' o coronel voltou %ara o quarto quando (icou sozinho em casacom a mulher' ela reagira' - o que dizem eles - %erguntou' - entusiasmados - in(ormou o coronel' - estão todos a juntardinheiro %ara a%ostarem no galo' - não sei o que viram eles nesse galo tão (eio - disse amulher' - c" %or mim acho-o um (en#meno tem a cabeça muito%equenina %ara as %atas' - eles dizem que o melhor do de%artamento - re%licou ocoronel' - vale uns cinquenta %esos'
1/
teve a certeza de que este argumento justi(icava a suadeterminação em conservar o galo! herança do (ilho varado delado a lado nove meses antes no %avilhão de lutas de galos!%or distribuir %ro%aganda clandestina' - É uma ilusão que custa caro - disse a mulher' - quando se
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 8/46
acabar o milho! vamos ter de aliment"-lo com os nossos(&gados' - o coronel demorou muito tem%o a %ensar enquanto%rocurava as calças de cotim no rou%eiro' - É %or %oucos meses - disse ele' - j" se sabe de certezaque vai haver combates em janeiro' de%ois %odemos vend2-lo %ormelhor %reço' as calças estavam %or engomar' a mulher %assou-as em cima do
(ogão com duas %lacas de (erro aquecidas nas brasas' - %ara qu2 tanta %ressa em ir 5 rua - %erguntou' - o correio' - tinha-me esquecido de que hoje se)ta-(eira - comentouela de volta %ara o quarto' o coronel estava vestido mas semas calças' ela observou-lhe os sa%atos' - esses sa%atos j" s# estão bons %ara deitar (ora - disse' -%$e outra vez os botins de verniz' o coronel sentiu-se desolado' - %arecem sa%atos de #r(ão - %rotestou' - sem%re que oscalço! sinto-me (ugido de um asilo' - n#s somos #r(ãos do nosso (ilho - disse a mulher' tambm desta vez o %ersuadiu' o coronel dirigiu-se %ara o
cais antes que %al%itassem as lanchas' botins de verniz!calças brancas sem cinto e a camisa sem o colarinho %ostiço!
13
(echada em cima com o botão de cobre' observou as manobras daslanchas da %orta do armazm do s&rio moiss' os viajantesdesceram! esgotados ao (im de oito horas sem mudarem de%osição' os mesmos de sem%re vendedores ambulantes e a genteda terra que tinha sa&do na semana anterior e regressava 5rotina' a ltima (oi a lancha do correio' o coronel viu-a atracar
com um angustiante con(rangimento' no tejadilho! amarrado aostubos do va%or e %rotegido com um oleado! descobriu o saco docorreio' quinze anos de es%era haviam agudizado a suaintuição' o galo havia agudizado a sua ansiedade' a %artir doinstante em que o administrador dos correios subiu 5 lancha!desatou o saco e o %4s ao ombro! o coronel não tirou os olhosde cima dele' seguiu-o %ela rua %aralela ao cais! um labirinto de armaznse barracas com mercadorias coloridas em e)%osição' sem%re queo (azia! o coronel sentia uma ansiedade muito di(erente mastão constrangedora como o terror' o mdico es%erava os jornaisno %osto do correio' - a minha mulher manda %erguntar-lhe se l" em casa lhe
deitaram "gua quente! doutor - disse-lhe o coronel' era um mdico jovem com o cr<nio coberto de lustrososcarac#is' havia qualquer coisa de incr&vel na %er(eição do seusistema dent"rio' interessou-se %ela sade da asm"tica'
1+
o coronel (orneceu uma in(ormação %ormenorizada sem descurar
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 9/46
os movimentos do administrador que distribu&a as cartas %eloscom%artimentos classi(icados' a sua indolente maneira de agire)as%erava o coronel' o mdico recebeu a corres%ond2ncia com o %acote dos jornais'%4s de lado os boletins de %ro%aganda mdica' a seguir! leusu%er(icialmente as cartas %essoais' entretanto! oadministrador distribuiu o correio %elos destinat"rios
%resentes' o coronel observou o com%artimento que lhecorres%ondia na ordem al(abtica' uma carta area de bordosazuis aumentou a tensão dos seus nervos' o mdico quebrou o lacre dos jornais' in(ormou-se dasnot&cias de destaque enquanto o coronel - de olhos (i)os noseu com%artimento - es%erava que o administrador se detivessediante dele' mas não o (ez' o mdico interrom%eu a leitura dosjornais' olhou %ara o coronel' de%ois %ara o administradorsentado 5 (rente dos instrumentos do telgra(o e a seguiroutra vez %ara o coronel' - vamos - disse' o administrador não levantou a cabeça' - nada %ara o coronel - disse ele'
o coronel sentiu-se envergonhado' - não estava 5 es%era de nada - mentiu' lançou ao mdico umolhar com%letamente in(antil' - a mim ningum me escreve' regressaram em sil2ncio' o mdico concentrado nos jornais' ocoronel com a sua maneira de andar habitual que mais %arecia ade um homem que volta atr"s 5 %rocura de uma moeda %erdida'
1*
estava uma tarde brilhante' as amendoeiras da %raça dei)avamcair as suas ltimas (olhas a%odrecidas' começava a anoitecerquando chegaram 5 %orta do consult#rio'
- que not&cias h"7 - %erguntou o coronel' o mdico deu-lhe alguns jornais' - não se sabe - disse' - É di(&cil ler nas entrelinhas doque a censura %ermite %ublicar' o coronel leu os t&tulos em destaque' not&ciasinternacionais' em cima! a quatro colunas! uma cr#nica sobre anacionalização do canal do suez' a %rimeira %"gina estavaquase totalmente ocu%ada com os convites %ara um enterro' - não h" es%erança de eleiç$es - disse o coronel' - não seja ingnuo! coronel - res%ondeu o mdico' - j" somosmuito crescidos %ara es%erarmos %elo messias' o coronel tentou devolver-lhe os jornais! mas o mdicoo%4s-se'
- leve-os %ara casa - disse ele' - l2-os esta noite edevolve-mos amanhã' um %ouco de%ois das sete soaram na torre as badaladas dacensura cinematogr"(ica' o %adre 8ngel utilizava este meio%ara divulgar a quali(icação moral do (ilme de acordo com alista classi(icada que recebia todos os meses %elo correio' amulher do coronel contou doze badaladas' - mau %ara todos - disse' - h" %erto de um ano que os (ilmessão maus %ara todos' - desceu o mosquiteiro e murmurou - omundo est" corrom%ido' - mas o coronel não (ez nenhum
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 10/46
coment"rio' antes de se deitar! amarrou o galo ao % da cama'
,0
(echou a %orta da casa e deitou insecticida no quarto de
dormir' a seguir! %4s a candeia no chão! estendeu a rede edeitou-se a ler os jornais' leu-os %or ordem cronol#gica e da %rimeira 5 ltima %"gina!at mesmo os anncios' =s onze tocou o clarim do toque derecolher' o coronel conciliu a leitura meia hora mais tarde!abriu a %orta do %"tio %ara a noite im%enetr"vel e urinoucontra a latada! acossado %elos mosquitos' a mulher estavaacordada quando ele regressou ao quarto' - não dizem nada dos veteranos - %erguntou' - nada - disse o coronel' a%agou a candeia antes de se meterna rede' - ao %rinc&%io %elo menos ainda %ublicavam a listados novos %ensionistas' mas h" uns cinco anos que não dizemnada'
choveu de%ois da meia-noite' o coronel conciliou o sono masacordou um momento de%ois! alarmado %elos seus intestinos'descobriu uma goteira num %onto da casa' enrolado at 5 cabeçanuma manta de lã! tentou localizar a goteira na escuridão' um(io de suor gelado escorregou-lhe %ela coluna vertebralabai)o' tinha (ebre' sentiu-se a (lutuar em c&rculosconc2ntricos dentro de um tanque de gelatina' algum (alou' ocoronel res%ondeu do seu catre de revolucion"rio' - com quem (alas - %erguntou a mulher' - com o ingl2s dis(arçado de tigre que a%areceu noacam%amento do coronel aureliano buend&a - res%ondeu ocoronel' reme)eu-se na cama de rede! ardendo em (ebre'
,1
- era o duque de marlborough' chegou 5 manhã esgotado' ao segundo toque %ara a missasaltou da rede e instalou-se numa realidade turva alvoroçada%elo cantar do galo' a cabeça ainda lhe andava 5 roda emc&rculos conc2ntricos' sentiu n"useas' saiu %ara o %"tio edirigiu-se %ara a retrete atravs do minucioso cochichar e dossombrios odores do inverno' o interior do com%artimento demadeira com telhado de zinco estava rare(eito %elo va%oramoniacal da bacia' quando o coronel levantou a tam%a surgiu
do (undo uma nuvem de moscas triangulares' era alarme (also' acocorado na %lata(orma de t"buas! sem%estanejar! sentiu o constrangimento da <nsia (rustrada' aa(lição (oi substitu&da %or uma dor surda no tubo digestivo' - não h" dvida - murmurou' - acontece-me sem%re o mesmo emoutubro' - e assumiu a sua %osição de con(iada e inocentee)%ectativa at se a%aziguarem os (ungos das v&sceras' entãovoltou ao quarto %ara tratar do galo' - esta noite estavas a delirar com (ebre - disse a mulher' tinha começado a arrumar o quarto! recom%osta de uma semana
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 11/46
de crises' o coronel (ez um es(orço %ara se lembrar' - não era (ebre - mentiu' - era outra vez o sonho das teiasde aranha' como acontecia sem%re! a mulher saiu e)citada da crise' nodecorrer de toda a manhã virou a casa do avesso'
,,
mudou o lugar das coisas todas! salvo o rel#gio e o quadro danin(a' era tão (ranzina e el"stica que quando andava %ela casacom as suas %antu(as de %ano e o (ato %reto inteiramente(echado %arecia ter a virtude de %assar atravs das %aredes'mas antes do meio-dia tinha recu%erado a sua densidade! o seu%eso humano' na cama era um vazio' agora! movendo-se %elo meiodos vasos de (etos e beg#nias! a sua %resença transbordava dacasa' - se agust&n estivesse vivo %unha-me a cantar - disse!enquanto reme)ia a %anela em que (erviam cortadas aos bocados
todas as coisas de comer que a terra do tr#%ico ca%az de%roduzir' - se te a%etecer cantar! canta - disse o coronel' - (az bem5 b&lis' o mdico veio de%ois do almoço' o coronel e a mulher bebiamca( na cozinha quando ele em%urrou a %orta da rua e gritou - morreram os doentes' o coronel levantou-se %ara o receber' - assim ! doutor - disse-lhe! dirigindo-se %ara a sala' -eu sem%re disse que acerta o seu rel#gio %elo dos abutres' a mulher (oi %ara o quarto arranjar-se %ara o e)ame' omdico (icou na sala com o coronel' a%esar do calor! o seu(ato de linho imaculado e)alava um h"lito de (rescura' quandoa mulher anunciou que estava %ronta! o mdico entregou ao
coronel tr2s (olhas de %a%el dentro de um envelo%e' entrou noquarto! comentando
,6
- É o que os jornais de ontem não diziam' o coronel j" o su%unha' era uma s&ntese dos ltimosacontecimentos nacionais im%ressa a stencil %ara circulaçãoclandestina' revelaç$es sobre o es tado da resist2ncia armadano intrior do %a&s' sentiu-se desconcertado' dez anos dein(ormaç$es clandestinas não lhe tinham ensinado que nenhuma
not&cia mais sur%reendente que a do ltimo m2s' j" havia acabado de ler quando o mdico regressou 5 sala' - esta doente est" melhor que eu - disse ele' - com uma asma como a dela eu estaria bom %ara viver cemanos' o coronel olhou-o sombriamente' devolveu-lhe o envelo%e sem%ronunciar uma %alavra! mas o mdico recusou-o' - (aça-o circular - disse em voz bai)a' o coronel guardou o envelo%e no bolso das calças' a mulhersaiu do quarto! dizendo
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 12/46
- um dia destes morro e levo-o %ara o in(erno! doutor' - omdico res%ondeu em sil2ncio com o estereoti%ado esmalte dosseus dentes' %u)ou uma cadeira at 5 mesa e tirou da maletav"rios (rascos de amostras gratuitas' a mulher %assou de largo%ara a cozinha' - es%ere! que lhe aqueço um ca(' - não! muito obrigado - disse o mdico' escreveu a dose numa
(olha do receitu"rio' - nego-lhe redondamente a o%ortunidadede me envenenar' ela riu-se na cozinha'
,:
quando acabou de escrever! o mdico leu a receita em vozalta %ois tinha consci2ncia de que ningum conseguia deci(rara sua escrita' o coronel tentou concentrar a atenção' voltandoda cozinha! a mulher descobriu-lhe no rosto os estragos danoite anterior'
- esta madrugada teve (ebre - disse! re(erindo-se ao marido'- esteve umas duas horas a dizer dis%arates da guerra civil' o coronel sobressaltou-se' - não era (ebre - insistiu! recu%erando a com%ostura' - almdisso - %rosseguiu -! no dia em que me sentir mal não me %onhonas mãos de ningum' deito-me eu mesmo no cai)ote do li)o' (oi ao quarto buscar os jornais' - obrigado %ela %iada - disse o mdico' caminharam juntos at 5 %raça' a atmos(era estava seca' oalcatrão das ruas começava a derreter-se com o calor' quando omdico se des%ediu! o coronel %erguntou-lhe em voz bai)a! dedentes cerrados - quanto lhe devemos! doutor7 - %or agora nada - res%ondeu o mdico! e deu-lhe uma %almada
nas costas' - de%ois lhe %assarei uma conta bem grande! quandoo galo ganhar' o coronel dirigiu-se 5 al(aiataria %ara entregar a cartaclandestina aos com%anheiros de agust&n' era o seu nicore(gio desde que os correligion"rios tinham sido mortos oue)%ulsos da terra! e ele se trans(ormou num homem solit"riosem outra ocu%ação que não (osse es%erar %elo correio todas asse)tas-(eiras'
,>
o calor da tarde estimulou o dinamismo da mulher' sentada nomeio das beg#nias do corredor! junto de uma cai)a de rou%a quej" não servia! (ez outra vez o eterno milagre de obter %eçasnovas do nada' (ez colarinhos de mangas e %unhos de tecido dascostas e remendos quadrados! %er(eitos! embora com retalhos decor di(erente' uma cigarra veio instalar-se com o seu assobiono %"tio' o sol amadureceu' mas ela não o viu agonizar %orcima das beg#nias' s# levantou a cabeça ao anoitecer! quando ocoronel voltou %ara casa' então agarrou o %escoço com as duasmãos! desengonçou as articulaç$es e disse
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 13/46
- tenho o crebro r&gido como um %au' - sem%re o tiveste assim - disse o coronel! mas a seguirobservou o cor%o da mulher totalmente coberto de retalhos decores' - %areces um %ica-%au' - %ara te vestir tenho de %icar %au que nem um car%inteiro -re%licou ela' estendeu uma camisa con(eccionada com %ano detr2s cores di(erentes! salvo o colarinho e os %unhos que eram
da mesma cor' - no carnaval bastar-te-" tirar o casaco' interrom%eram-na as badaladas das seis' - o anjo do senhor anunciou a maria - rezou em voz alta!dirigindo-se com a rou%a %ara o quarto de dormir' o coronelconversou com as crianças que ao sa&rem da escola tinham vindocontem%lar o galo' de%ois lembrou-se de que não havia milho%ara o dia seguinte e (oi ao quarto %edir dinheiro 5 mulher'
,/ ,3
- creio que j" s# nos restam cinquenta centavos - disse ela'
guardava o dinheiro debai)o da esteira da cama! atado na%onta de um lenço' era o %roduto da m"quina de costura deagust&n' durante nove meses tinham gasto esse dinheiro centavoa centavo! re%artindo-o %elas suas %r#%rias necessidades e%elas necessidades do galo' agora s# havia duas moedas devinte e uma de dez centavos' - com%ra uma libra de milho - disse a mulher' - com o restocom%ras o ca( da manhã e quatro onças de queijo' - e um ele(ante dourado %ara %endurar na %orta - continuou ocoronel' - s# o milho custa quarenta e dois' %ensaram um momento' - o galo um animal e %or isso mesmo %ode es%erar - disse amulher ao %rinc&%io' mas a e)%ressão do marido obrigou-a are(lectir' o coronel sentou-se na cama! de cotovelos a%oiados
nos joelhos! (azendo soar as moedas nas mãos' - não %or mim- disse %assado um momento' - se de%endesse de mim (aria hojemesmo galo de cabidela' deve ser muito boa uma indigestão decinquenta %esos' - (ez uma %ausa %ara esmagar um mosquito no%escoço' de%ois seguiu a mulher com os olhos 5 volta doquarto' - o que me %reocu%a que esses %obres ra%azes estão ajuntar dinheiro' então ela começou a %ensar' deu uma volta com%leta com abomba do insecticida' o coronel descobriu qualquer coisa deirreal nos seus gestos! como se estivesse convocando! %ara osconsultar! os es%&ritos da casa' %or (im! %4s a bomba no%equeno altar de litogra(ias e (i)ou os seus olhos cor de
am2ndoa nos olhos cor de am2ndoa do coronel' - com%ra o milho - disse ela' - deus saber" o que havemos de(azer %ara nos arranjarmos'
; ; ;
este o milagre da multi%licação dos %ães! re%etiu ocoronel de cada vez que se sentaram 5 mesa no decorrer da
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 14/46
semana seguinte' com a sua assombrosa habilidade %ara com%or!cerzir e remendar! ela %arecia que tinha descoberto a solução%ara aguentar a economia domstica no vazio' outubro %rolongoua trgua' a humidade (oi substitu&da %ela modorra'recon(ortada %elo sol de cobre! a mulher destinou tr2s tardesao seu laborioso %enteado' - agora começa a missa cantada - disse o coronel na tarde em
que ela desenredou os com%ridos cabelos azulados com um %entede dentes se%arados' na segunda tarde! sentada no %"tio com umlençol branco ao colo! utilizou um %ente mais (ino %ara tiraros %iolhos que tinham %roli(erado durante a crise' %or (im!lavou a cabeça com al(azema! es%erou que en)ugasse e enrolou ocabelo na nuca em duas voltas seguras com um travessão' ocoronel es%erou' de noite! des%erto na cama de rede! so(reumuitas horas %ela sorte do galo' mas na quarta-(eira%esaram-no e estava em (orma'
60
nessa mesma tarde! quando os com%anheiros de agust&nabandonaram a casa (azendo alegres contas sobre a vit#ria dogalo! tambm o coronel se sentiu em (orma' a mulher cortou-lheo cabelo' - tiraste-me vinte anos de cima - disse ele! e)aminando acabeça com as mãos' a mulher %ensou que o marido tinha razão' - quando estou bem! sou ca%az de ressuscitar um morto -disse ela' mas a sua convicção durou %ouqu&ssimas horas' j" não restavaem casa nada que vender! tirando o rel#gio e o quadro' naquinta-(eira 5 noite! no ltimo e)tremo dos recursos! a mulhermani(estou a sua inquietude %erante a situação' - não te %reocu%es - consolou-a o coronel' - amanhã vem o
correio' no dia seguinte (oi es%erar as lanchas diante do consult#riodo mdico' - o avião uma coisa maravilhosa - disse o coronel! deolhos (i)os no saco do correio' - dizem que %ode chegar 5euro%a numa noite' - assim - disse o mdico! abanando-se com uma revistailustrada' o coronel descortinou o administrador %ostal numgru%o que es%erava o (inal da manobra %ara saltar %ara alancha' (oi ele o %rimeiro' recebeu do ca%itão um sobrescritolacrado' de%ois subiu ao tejadilho' o saco do correio estavaamarrado entre dois lat$es de %etr#leo' - mas não dei)a de ter os seus %erigos - disse o coronel'
61
%erdeu de vista o administrador! mas recu%erou-o no meio dos(rascos de cores do carrinho dos re(rescos' - não im%unemente que a humanidade %rogride' - hoje em dia mais seguro que uma lancha - res%ondeu omdico' - a vinte mil %s de altitude voa-se %or cima das
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 15/46
tem%estades' - vinte mil %s - re%etiu o coronel! %er%le)o! sem concebera noção do nmero' o mdico interessou-se' endireitou a revista com as duasmãos at conseguir uma imobilidade absoluta' - h" uma estabilidade %er(eita - disse' mas o coronel estava sus%enso dos movimentos do
administrador' viu-o consumir um re(resco de es%uma rosadasegurando o co%o com a mão esquerda' com a direita segurava osaco do correio' - alm disso! no mar h" barcos ancorados em %ermanentecontacto com os avi$es nocturnos - continuou a dizer o mdico'- com tantas %recauç$es! mais seguro que uma lancha' o coronel olhou %ara ele' - sem dvida - con(irmou' - deve ser como os ta%etes' o administrador veio ter directamente com eles' o coronelretrocedeu! im%elido %or uma ansiedade irresist&vel! tentandodeci(rar o nome escrito no envelo%e lacrado' o administradorabriu o saco' entregou ao mdico o %acote dos jornais' aseguir! rasgou o envelo%e da corres%ond2ncia %rivada!
6,
veri(icou a e)actidão da remessa e leu nas cartas os nomes dosdestinat"rios' o mdico abriu os jornais' - ainda o %roblema do suez - disse! lendo os t&tulos emdestaque' - o ocidente %erde terreno' o coronel não leu os t&tulos' (ez um es(orço %ara reagircontra o seu est4mago' - desde que h" censura! os jornais não (alam senão da euro%a- disse' - o melhor ser" que os euro%eus venham %ara c" e quen#s vamos %ara a euro%a' assim toda a gente (icar" a saber o
que se %assa no seu res%ectivo %a&s' - %ara os euro%eus! a amrica do sul um homem de bigodes!com uma guitarra e um rev#lver - disse o mdico! a rir %orcima do jornal' - não com%reendem o %roblema' o administrador entregou-lhe a corres%ond2ncia' meteu oresto no saco e voltou a (ech"-lo' o mdico %re%arou-se %araler as cartas %essoais' mas antes de rasgar os envelo%es olhou%ara o coronel e de%ois %ara o administrador' - nada %ara o coronel7 o coronel sentiu o terror' o administrador %4s o saco aoombro! desceu do %asseio e res%ondeu sem virar a cabeça - ningum escreve ao coronel' contrariando o seu costume! não se dirigiu logo %ara casa'
tomou ca( na al(aiataria enquanto os com%anheiros de agust&n(olheavam os jornais' sentia-se de(raudado' teria %re(erido %ermanecer ali at 5se)ta-(eira seguinte %ara não se a%resentar essa noite dianteda mulher com as mãos vazias'
66
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 16/46
mas quando (echaram a al(aiataria teve de en(rentar arealidade' a mulher es%erava-o' - nada - %erguntou' - nada - res%ondeu o coronel'
na se)ta-(eira seguinte voltou 5s lanchas' e como todas as
outras se)tas-(eiras regressou a casa sem a carta es%erada' - j" estamos (artos de es%erar - disse-lhe essa noite amulher' - É %reciso ter a %aci2ncia de boi que tu tens %araes%erar %or uma carta durante quinze anos' - o coronelmeteu-se na rede a ler os jornais' - tem de se es%erar %ela vez - disse ele' - o nosso nmero o mil oitocentos e vinte e tr2s' - desde que estamos 5 es%era! esse nmero j" saiu duas vezesna lotaria - re%licou a mulher' o coronel leu! como sem%re! da %rimeira 5 ltima %"gina!inclusivamente os anncios' mas desta vez não se concentrou'durante a leitura %ensou na sua %ensão de veterano' dezanoveanos antes! quando o congresso %romulgou a lei! iniciou-se um
%rocesso de justi(icação que durou oito anos' de%ois %recisoude mais seis anos %ara se (azer incluir na lista' essa (oi altima carta que o coronel recebeu' terminou de%ois do toque de recolher' quando ia a%agar acandeia! re%arou que a mulher estava acordada' - ainda tens aquele recorte7 a mulher %ensou' - sim' deve estar com os outros %a%is'
6:
saiu do mosquiteiro e tirou do arm"rio um co(re de madeira
com um %acote de cartas ordenadas %elas datas e %resas com umel"stico' localizou um anncio de uma ag2ncia de advogados quese com%rometia a uma gestão activa das %ens$es de guerra' - desde que comecei a dizer-te que devias mudar de advogadoj" t&nhamos tido tem%o at de gastar a massa toda - disse amulher! entregando ao marido o recorte do jornal' - nãoganhamos nada se no-la meterem no cai)ão como aos &ndios' o coronel leu o recorte datado de h" dois anos' guardou-o nobolso da camisa %endurada atr"s da %orta' - o %ior que %ara mudar de advogado %reciso dinheiro' - nada disso - decidiu a mulher' - escreve-se-lhes a dizerque descontem o que (or da %ensão quando a receberem' É anica maneira de se interessarem %elo assunto'
assim! no s"bado 5 tarde o coronel (oi ter com o seuadvogado' encontrou-o %reguiçosamente deitado numa rede' eraum negro monumental! tendo a%enas os dois caninos no ma)ilarsu%erior' meteu os %s numas %antu(as de solas de madeira eabriu a janela do escrit#rio %or cima de uma %oeirenta %ianolacom %a%is metidos nos es%aços dos rolos recortes do di"rioo(icial colados com goma em velhos cadernos de contabilidade euma colecção salteada dos boletins das (inanças' a %ianola semteclas servia ao mesmo tem%o de secret"ria'
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 17/46
6>
o coronel e)%4s a sua inquietação antes de revelar o%ro%#sito da visita' - eu avisei-o logo de que não seria de um dia %ara o outro -
disse o advogado numa %ausa do coronel' estava amar(anhado%elo calor' (orçou %ara tr"s as costas da cadeira e abanou-secom um cartão de %ro%aganda' - os meus agentes escrevem-me com (requ2ncia dizendo que nãodevemos deses%erar' - É a mesma coisa desde h" quinze anos - re%licou o coronel'- isto começa a (icar %arecido com a hist#ria do galo ca%ão' o advogado (ez uma descrição muito gr"(ica dos labirintosadministrativos' a cadeira era demasiado estreita %ara as suasn"degas outonais' - h" quinze anos era mais ("cil - disse ele' - nessa alturae)istia a associação munici%al de veteranos com%osta %orelementos dos dois %artidos' - encheu os %ulm$es com um ar
abrasador e %ronunciou a (rase como se acabasse de a inventar - a união (az a (orça' - neste caso não (ez - disse o coronel! a%ercebendo-se %ela%rimeira vez da sua solidão' - todos os meus com%anheirosmorreram 5 es%era do correio' o advogado não se alterou' - a lei (oi %romulgada demasiado tarde - disse' - nem todostiveram a sua sorte! que (oi coronel aos vinte anos' almdisso! não se incluiu uma verba es%ecial! de maneira que ogoverno tem sido (orçado a (azer remendos no orçamento'
6/
sem%re a mesma hist#ria' sem%re que a ouvia! o coronelsentia um surdo ressentimento' - isto não uma esmola - disse ele' - não se trata de nos(azer um (avor' n#s demos couro e cabelo %ara salvar are%blica' - o advogado abriu os braços' - assim ! coronel!- res%ondeu' - a ingratidão humana nãotem limites' tambm esta hist#ria j" o coronel conhecia' tinha começado aouvi-la no dia seguinte ao do tratado de neerl<ndia quando ogoverno %rometeu subs&dios de viagem e indemnizaç$es aduzentos o(iciais da revoluÇão' acam%ado em torno dagigantesca ma(umeira de neerl<ndia! um batalhão
revolucion"rio! com%osto em grande %arte de adolescentes(ugidos da escola! es%erou durante tr2s meses' de%oisregressaram 5s suas casas %elos %r#%rios meios e a&continuaram 5 es%era' quase sessenta anos de%ois! ainda ocoronel es%erava' e)citado %elas recordaç$es! assumiu uma atitudetranscendente! a%oiou no osso da co)a a mão direita - sim%lesossos cosidos com (ibras nervosas - e murmurou - %ois eu decidi tomar uma resolução' o advogado (icou em sus%enso'
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 18/46
- o que quer dizer7 - mudo de advogado' uma %ata! seguida de v"rios %atinhos amarelos! entrou noescrit#rio' o advogado levantou-se %ara a %4r na rua'
63
- como quiser! coronel - disse ele! es%antando os animais' -ser" como quiser' se eu %udesse (azer milagres! não estaria aviver neste curral' - %4s uma tranca de madeira na %orta do%"tio e voltou %ara a cadeira' - o meu (ilho trabalhou toda a vida - disse o coronel' - aminha casa est" hi%otecada' a lei das re(ormas (oi uma %ensãovital&cia %ara os advogados' - %ara mim não - %rotestou o advogado' - gastou-se at aoltimo centavo nas dilig2ncias' o coronel so(reu com a ideia de ter sido injusto' - não (oi isso que eu quis dizer - corrigiu' en)ugou a
(ronte com a manga da camisa' - com este calor at os%ara(usos da cabeça en(errujam' um momento de%ois! o advogado virou o escrit#rio do avessotentando encontrar a %rocuração' o sol avançou at ao centro do desmobilado com%artimentoconstru&do com t"buas %or a%lainar' de%ois de %rocurar inutilmente %or toda a %arte! o advogado%4s-se de gatas! bu(ando! e tirou um rolo de %a%is de bai)oda %ianola' - aqui est"' entregou ao coronel uma (olha de %a%el selado' - tenho de escrever aos meus agentes %ara que anulem asc#%ias - concluiu' o coronel sacudiu o %# e guardou a (olha nobolso da camisa'
- rasgue-a voc2 mesmo - disse o advogado' - não - res%ondeu o coronel' - são vinte anos derecordaç$es' - e es%erou que o advogado continuasse a busca'
6+
mas este não o (ez' (oi at 5 rede lim%ando o suor' da& olhou%ara o coronel atravs de uma atmos(era reverberante' - tambm %reciso dos documentos - disse o coronel' - de quais7 - a justi(icação'
o advogado abriu os braços' - isso que ser" im%oss&vel! coronel' o coronel alarmou-se' como tesoureiro da revolução nacircunscrição de macondo tinha e(ectuado uma %enosa viagem deseis dias com os (undos da guerra civil em dois bas atados aolombo de uma mula' chegou ao acam%amento de neerl<ndiaarrastando a mula morta de (ome meia-hora antes de se assinaro tratado' o coronel aureliano buend&a - intendente-geral das(orças revolucion"rias no litoral atl<ntico - elaborou orecibo dos (undos e incluiu os dois bas no invent"rio da
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 19/46
rendição' - são documentos de um valor incalcul"vel - disse o coronel'- h" um recibo escrito %elo %r#%rio %unho do coronel aurelianobuend&a' - de acordo - re%licou o advogado' - mas esses documentos j"%assaram %or milhares e milhares de mãos em milhares emilhares de re%artiç$es at chegarem sabe-se l" a que
de%artamentos do ministrio da guerra' - documentos dessa &ndole não %odem %assar des%ercebidos anenhum (uncion"rio - %rotestou o coronel'
6*
- mas nos ltimos quinze anos j" mudaram muitas vezes os(uncion"rios - %recisou o advogado' - %ense que j" houve sete%residentes e que cada %residente alterou %elo menos dez vezeso seu gabinete e que cada ministro mudou os seus em%regados%elo menos cem vezes'
- mas ningum %ode ter levado os documentos %ara casa -objectou o coronel' - cada novo (uncion"rio deve t2-losencontrado no seu lugar' o advogado (icou deses%erado' - alm disso! se esses %a%is sa&rem agora do ministrioterão de se submeter a uma nova entrada %ara a lista dees%era' - não im%orta - disse o coronel' - ser" questão de sculos' - não im%orta' quem es%era cem! tambm es%era mais dez'
; ; ;
levou %ara a mesinha da sala um bloco de %a%el de linhas!a %ena! o tinteiro e uma (olha de mata-borrão! e dei)ou abertaa %orta do quarto %ara o caso de ter de %erguntar alguma coisa5 mulher' ela rezava o terço' - a quantos estamos hoje7 - vinte e sete de outubro' escreveu com uma com%ostura a%licada! %ondo a mão com a %enana (olha de mata-borrão! e a coluna vertebral direita! comolhe tinham ensinado na escola' o calor tornou-se insu%ort"velna sala (echada' caiu uma gota de suor na carta' o coronelen)ugou-a com o mata-borrão' de%ois tentou ras%ar as %alavrasdesbotadas! mas (ez um borrão' não deses%erou' escreveu uma
chamada e anotou 5 margem direitos adquiridos' a seguir! leutodo o %ar"gra(o' - em que dia me inclu&ram na lista7 a mulher não interrom%eu a oração %ara %ensar' - doze de agosto de 1*:*' um momento de%ois começou a chover' o coronel encheu uma(olha de %a%el com grandes garatujas! um %ouco in(antis! asmesmas que lhe haviam ensinado na escola %blica de manaure'
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 20/46
:,
e de%ois uma segunda (olha at meio! e assinou' leu a carta 5 mulher' ela a%rovou-a (rase a (rase com acabeça' quando terminou a leitura! o coronel (echou o envelo%ee a%agou a candeia'
- %odias %edir a algum que ta %assasse 5 m"quina' - não - res%ondeu o coronel' - j" estou (arto de andar a%edir (avores' durante meia hora ouviu a chuva bater contra as %almas dotelhado' o %ovoado alagou-se no dilvio' de%ois do toque derecolher começou a gotejar num s&tio qualquer da casa' - isto j" se devia ter (eito h" muito tem%o - disse amulher' - sem%re melhor entendermo-nos directamente' - nunca demasiado tarde - re%licou o coronel! %reocu%adocom a goteira' - %ode ser que esteja tudo resolvido quando sevencer a hi%oteca da casa' - (altam dois anos - disse a mulher' ele acendeu a candeia %ara localizar a goteira na sala' %4s
%or bai)o dela a gamela do galo e voltou %ara o quarto%erseguido %elo ru&do met"lico da "gua na lata vazia' - É %oss&vel que %elo interesse de ganharem o dinheiroresolvam tudo antes de janeiro - continuou ele! e convenceu-sea si mesmo' - %or essa altura agust&n j" ter" (eito um ano e%oderemos ir ao cinema' ela riu em voz bai)a'
:6
- j" nem me lembro dos bonecos - disse' o coronel tentouv2-la atravs do mosquiteiro'
- quando (oste ao cinema %ela ltima vez7 - em 1*61- res%ondeu ela' - deram a vontade do morto' - tinha %ancada7 - nunca se soube' caiu um aguaceiro quando o vigaristatentava roubar o colar 5 ra%ariga' adormeceu-os o barulho da chuva' o coronel sentiu um ligeiromal-estar nos intestinos' mas não se alarmou' estava %restes asobreviver a um novo outubro' enrolou-se numa manta de lã e%or um instante notou a ruidosa res%iração da mulher -long&nqua - navegando noutro sonho' então (alou! %er(eitamenteconsciente' a mulher acordou' - com quem est"s a (alar7
- com ningum - disse o coronel' - estava a %ensar que nareunião de macondo tivemos razão quando dissemos ao coronelaureliano buend&a que não se rendesse' (oi isso que deitou omundo a %erder' choveu toda a semana' a dois de novembro - contra a vontadedo coronel -! a mulher (oi levar (lores 5 cam%a de agust&n'voltou do cemitrio com outra crise' (oi uma semana dur&ssima'mais dura que as quatro semanas de outubro 5s quais o coroneljulgara não sobreviver' o mdico (oi ver a doente e saiu doquarto a gritar
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 21/46
::
- com uma asma destas eu estaria ca%az de enterrar a%ovoação toda' - mas (alou a s#s com o coronel e %rescreveu um
regime es%ecial' tambm o coronel so(reu uma reca&da' agonizou muitas horasna retrete! com suores (rios! sentindo que a%odrecia e lheca&a aos bocados a (lora das v&sceras' - É o inverno - re%etiu %ara consigo sem deses%erar' - tudoser" di(erente quando acabar de chover' - e acreditourealmente nisso! com a certeza de estar vivo no momento em quechegasse a carta' calhou-lhe desta vez a ele remendar a economia domstica'teve de cerrar os dentes muitas vezes %ara solicitar umcrdito nas lojas vizinhas' ?É s# at 5 semana que vem?!dizia! sem ele mesmo estar seguro de que era verdade' ?É umdinheirito que j" devia ter vindo na se)ta-(eira?' quando saiu
da crise! a mulher observou-o com es%anto' - est"s s# %ele e osso - comentou' - estou a %re%arar-me %ara me vender - res%ondeu o coronel'- j" (ui encomendado %or uma ("brica de clarinetes' mas na realidade a%enas o sustinha a es%erança da carta'esgotado! com os ossos mo&dos %ela vig&lia! não conseguiaocu%ar-se ao mesmo tem%o das suas necessidades e do galo' nasegunda quinzena de novembro julgou que o animal iria morrerao cabo de dois dias sem milho' então lembrou-se de um %unhadode (eij$es que %usera em julho a secar %or cima do (ogareiro'abriu as vagens e %4s ao galo uma lata de sementes secas'
:>
- anda c" - chamou ela' - um momento - res%ondeu o coronel! observando a reacção dogalo' - boa boca tem a (ome''' (oi dar com a mulher tentando sentar-se na cama' o cor%ogasto e)alava um ba(o de ervas medicinais' ela %ronunciou as%alavras! uma a uma! com uma %recisão calculada - v2 se te livras imediatamente desse galo' o coronel j" tinha %revisto aquele momento' es%erava-o desdea tarde em que lhe mataram o (ilho e ele decidiu conservar ogalo' j" tivera muito tem%o %ara %ensar'
- j" não vale a %ena - res%ondeu' - daqui a tr2s meses serãoos combates e então %oderemos vend2-lo %or melhor %reço' - não questão de dinheiro - retorquiu a mulher' - quandoc" vierem os ra%azes diz-lhes que o levem e que (açam com eleo que muito bem lhes a%etecer' - É %or agust&n - disse o coronel com um argumento %revisto'- imagina a cara com que ele viria comunicar-nos a vit#ria dogalo' a mulher %ensou realmente no (ilho' - esses malditos galos (oram a %erdição dele - gritou' - se
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 22/46
a tr2s de janeiro tivesse (icado em casa não o teria a%anhadoa m" hora' - estendeu %ara a %orta um dedo macilento ee)clamou - %arece que adivinhava quando ele saiu com o galo debai)odo braço' avisei-o de que tivesse cuidado! não lhe (osseacontecer alguma coisa no %avilhão dos galos!
:/
e ele mostrou-me os dentes e disse-me ?cala-te! que estatarde vamos (icar %odres de ricos?' tombou e)tenuada' o coronel em%urrou-a suavemente %ara aalmo(ada' os olhos dele esbarraram com outros olhose)actamente iguais aos seus' - não te me)as - disse ele! sentindo os silvos dentro dosseus %r#%rios %ulm$es' a mulher caiu num tor%or moment<neo'(echou os olhos' quando voltou a abri-los! a sua res%iração%arecia mais descansada'
- É %ela situação em que estamos - disse ela' - É %ecadotirarmos o %ão da boca %ara o dar a um galo' o coronel en)ugou-lhe a (ronte com o lençol' - ningum morre em tr2s meses' - e entretanto o que comemos - %erguntou a mulher' - não sei - res%ondeu o coronel' - mas se tivssemos demorrer de (ome j" estar&amos mortos' o galo estava %er(eitamente vivo diante da lata vazia'quando viu o coronel emitiu um mon#logo gutural! quase humano!e deitou a cabeça %ara tr"s' ele deu-lhe um sorriso decum%licidade - a vida dura! camarada' saiu %ara a rua' vagueou %ela terra adormecida na hora dasesta! sem %ensar em nada! nem sequer tentando convencer-se de
que o seu %roblema não tinha solução' andou %or ruasesquecidas at se sentir esgotado' então voltou %ara casa'
:3
a mulher deu %or ele entrar e chamou-o ao quarto' - oque 7 ela res%ondeu sem olhar %ara ele' - %odemos vender o rel#gio' o coronel j" tinha %ensado nisso'
- tenho a certeza de que o Álvaro te d" logo quarenta %esos- disse a mulher' - lembra-te da (acilidade com que com%rou am"quina de costura' re(eria-se ao al(aiate %ara quem agust&n trabalhara' - %ode-se (alar amanhã - admitiu o coronel' - qual (alar amanhã - %rotestou ela' - mas agora mesmo orel#gio! %$es-lho na mesa e dizes-lhe Álvaro! aqui lhe tragoeste rel#gio %ara que o com%re' ele %erceber" logo' o coronel sentiu-se in(eliz' - É como andar a carregar o santo se%ulcro - %rotestou' - se
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 23/46
me virem %ela rua com um traste destes ainda me cantam umacegada' mas tambm desta vez a mulher o convenceu' ela mesma tirou orel#gio da %arede! embrulhou-o em jornais e %4s-lho nas mãos' - não voltes %ara casa sem os quarenta %esos - disse' ocoronel dirigiu-se %ara a al(aiataria com o embrulho debai)odo braço' encontrou os com%anheiros de agust&n sentados 5
%orta' um deles o(ereceu-lhe o lugar' o coronel tinha as ideiasbaralhadas' - obrigado - res%ondeu' - estou de %assagem'
:+
Álvaro saiu da al(aiataria' num arame esticado entre doisganchos de %assadiço estendeu uma %eça de cotim molhada' eraum ra%az de (ormas duras! angulosas! e olhos alucinados'tambm ele o convidou a sentar-se' o coronel sentiu-se
recon(ortado' encostou o banco ao batente da %orta e sentou-se5 es%era de que Álvaro (icasse sozinho %ara lhe %ro%or oneg#cio' logo veri(icou que estava rodeado de rostoshermticos' - não interrom%o7 - %erguntou' eles %rotestaram' um inclinou-se %ara ele e disse! num tommal %erce%t&vel - agust&n escreveu' o coronel observou a rua deserta' - o que diz7 - o mesmo de sem%re' deram-lhe a (olha clandestina' o coronel guardou-a no bolsodas calças' de%ois %ermaneceu em sil2ncio tamborilando com osdedos no embrulho at %erceber que algum tinha re%arado nele'
(icou sus%enso' - o que leva a&! coronel7 o coronel evitou os %enetrantes olhos verdes de germ"n' - nada - mentiu' - levo o rel#gio ao alemão %ara arranjar' - não seja %arvo! coronel - disse germ"n! tentandoa%oderar-se do embrulho' - es%ere que eu vejo-lho' ele resistiu' não disse nada! mas as suas %"l%ebras (icaramro)as' os outros insistiram'
:*
- dei)e-o ver! coronel' ele sabe de mec<nica' - É que não quero incomod"-lo' - qual incomodar nem meio incomodar - argumentou germ"n'%egou no rel#gio' - o alemão leva-lhe dez %esos e dei)a-lho namesma' entrou na al(aiataria com o rel#gio' Álvaro estava a coser 5m"quina' ao (undo! %or bai)o de uma guitarra %endurada num%rego! uma mulher %regava bot$es' havia um letreiro %osto emcima da guitarra É %roibido (alar de %ol&tica' o coronelsentiu (altar-lhe o ar' a%oiou os %s na travessa do banco'
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 24/46
- merda! coronel' sobressaltou-se' - nada de %alavr$es - disse' al(onso ajustou as lunetas ao nariz %ara e)aminar melhor osbotins do coronel' - É %elos sa%atos - disse' - estreou uns sa%atos do carago' - mas %ode-se dizer sem %alavr$es - re%licou o coronel! e
mostrou as solas dos botins de verniz' - estes monstros t2mquarenta anos e a %rimeira vez que ouvem um %alavrão' - j" est" - gritou germ"n l" de dentro! no momento e)acto emque o rel#gio soava' na casa ao lado! uma mulher bateu na%arede divis#ria! e gritou - dei)em essa guitarra que agust&n ainda não (ez um ano' e)%lodiu uma gargalhada' - É um rel#gio'
>0
germ"n saiu com o embrulho' - não era nada - disse' - se quiser! acom%anho-o a casa %arao %4r ao n&vel' o coronel recusou a o(erta' - quanto te devo7 - não se %reocu%e! coronel - res%ondeu germ"n! ocu%ando oseu lugar no meio do gru%o' - em janeiro o galo %aga' o coronel a%roveitou a es%erada ocasião' - %ro%onho-te uma coisa - disse' - o que 7 - o(ereço-te o galo' - e)aminou os rostos 5 sua volta' -o(ereço-lhes o galo a todos' germ"n (itou-o %er%le)o' - j" estou muito velho %ara isto - %rosseguiu o coronel'
im%rimiu 5 voz uma severidade convincente' - É demasiadares%onsabilidade %ara mim' desde h" dias que tenho a im%ressãode que esse animal est" a morrer' - não se %reocu%e! coronel - disse al(onso' - o que acontece que nesta %oca o galo est" com a %lumagem a crescer' tem(ebre nas %enas' - no m2s que vem j" estar" bom - con(irmou germ"n' - de qualquer maneira não o quero - reiterou o coronel'germ"n %erscrutou-o com as %u%ilas' - veja bem as coisas! coronel - insistiu' - o im%ortante que seja o coronel a levar aos combates o galo de agust&n' o coronel %ensou'
>1
- estou a ver muito bem - res%ondeu' - %or isso o tive atagora' - cerrou os dentes e sentiu-se com (orças %ara avançar - o %ior que ainda (altam tr2s meses' (oi germ"n quem com%reendeu' - se s# %or isso não h" %roblemas - declarou' e %ro%4s a sua (#rmula' os outros aceitaram' ao anoitecer!
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 25/46
quando entrou em casa com o embrulho debai)o do braço! amulher so(reu uma desilusão' - nada - %erguntou' - nada - res%ondeu o coronel' - mas agora não im%orta' osra%azes vão encarregar-se de dar de comer ao galo'
; ; ;
- es%ere que eu em%resto-lhe um guarda-chuva! com%adre' d' sabas abriu um arm"rio embutido na %arede do escrit#rio'descobriu um interior em con(usão! com botas de montar em(ila! estribos e arreios e uma cai)a de alum&nio cheia dees%oras de cavaleiro' %endurados na %arte su%erior! meia dziade cha%us de chuva e uma sombrinha de mulher' o coronel%ensou nos destroços de uma cat"stro(e' - obrigado! com%adre - disse ele! debruçado 5 janela' -%re(iro es%erar que escam%e' - d' sabas não (echou o arm"rio'instalou-se 5 secret"ria dentro da #rbita da ventoinha
elctrica' a seguir! e)traiu da gaveta uma seringa hi%odrmicaenvolvida em algodão' o coronel contem%lou as %lmbeasamendoeiras atravs da chuva' estava uma tarde deserta' - a chuva di(erente vista desta janela - comentou' - Écomo se estivesse a chover noutra terra' - a chuva chuva vista de qualquer %arte - re%licou d'sabas' %4s a seringa a (erver em cima do tam%o de vidro dasecret"ria' - esta uma terra de merda'
>:
o coronel encolheu os ombros' caminhou %ara o interior do
escrit#rio um salão de ladrilhos verdes com m#veis (orradosde %anos de cores vivas' ao (undo! amontoados em desordem!sacos de sal! odres de mel e cadeiras desmont"veis' d' sabasseguiu-o com um olhar com%letamente vazio' - eu no seu lugar não %ensaria o mesmo - disse o coronel' sentou-se com as %ernas cruzadas! (i)ando o olhar tranquilono homem inclinado sobre a secret"ria' um homem %equeno!volumoso mas de carnes (l"cidas! com uma tristeza de sa%o nosolhos' - v" consultar o mdico! com%adre - disse d' sabas' - andaum tanto (nebre desde o dia do enterro' o coronel levantou a cabeça' - estou %er(eitamente bem - res%ondeu'
d' sabas es%erou que a seringa (ervesse' - o)al" eu %udesse dizer o mesmo - lamentou-se' -bem-aventurado! que %ode comer at um estribo de cobre' -contem%lou as costas das mãos %eludas sal%icadas de lunares%ardacentos' usava um anel de %edra negra %or cima da aliança' - assim - admitiu o coronel' d' sabas chamou a mulher atravs da %orta que %unha oescrit#rio em comunicação com o resto da casa' de%ois iniciouuma lastimosa e)%licação do seu regime alimentar' tirou um(rasquinho do bolso da camisa e %4s em cima da secret"ria uma
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 26/46
%astilha branca do tamanho de um (eijão'
>>
- É um mart&rio andar com isto %or todo o lado - disse' - É
como trazer a morte no bolso' o coronel a%ro)imou-se da secret"ria' e)aminou a %astilha na%alma da mão at que d' sabas o convidou a sabore"-la' - É %ara adoçar o ca( - e)%licou-lhe' - É açcar! mas semaçcar' - evidentemente - disse o coronel! com a saliva im%regnadade uma doçura triste' - É o mesmo que re%icar mas sem sinos' d' sabas debruçou-se em cima da secret"ria com a cara entreas mãos de%ois de a mulher lhe ter dado a injecção' o coronel(icou sem saber o que havia de (azer com o seu cor%o' a mulherdesligou a ventoinha! %4-la em cima do co(re blindado e aseguir dirigiu-se %ara o arm"rio' - o cha%u de chuva tem muito a ver com a morte - disse ela'
o coronel não lhe deu atenção' tinha sa&do de casa 5s quatrocom o %ro%#sito de ir es%erar o correio! mas a chuvaobrigara-o a re(ugiar-se no escrit#rio de d' sabas' aindachovia quando a%itaram as lanchas' - toda a gente diz que a morte uma mulher - %rosseguiuela' era cor%ulenta! mais alta que o marido! e com uma verruga%eluda no l"bio su%erior' a sua maneira de (alar recordava ozumbido da ventoinha elctrica' - mas a mim não me %arece queseja uma mulher - insistiu' (echou o arm"rio e voltou aconsultar os olhos do coronel
>/
- eu creio que um animal com %s de cabra' - É %oss&vel - admitiu o coronel' - =s vezes sucedem coisasmuito estranhas' %ensou no administrador dos correios a saltar %ara a lanchacom um im%erme"vel de oleado' havia %assado um m2s desde quemudara de advogado' tinha o direito de es%erar uma res%osta' amulher de d' sabas continuou a (alar da morte at que re%arouna e)%ressão absorta do coronel' - com%adre - disse ela' - deve estar com alguma %reocu%ação' o coronel recu%erou o seu cor%o' - assim ! comadre - mentiu' - estou a %ensar que j" sãocinco horas e que ainda não se deu a injecção ao galo'
ela (icou %er%le)a' - uma injecção %ara um galo como se (osse um ser humano7 -gritou' - isso um sacrilgio' d' sabas não aguentou mais' levantou o rosto congestionado' - (echa a boca um minuto - ordenou 5 mulher' ela com e(eitolevou as mãos 5 boca' - h" meia hora que est"s a incomodar omeu com%adre com os teus dis%arates' - de maneira nenhuma - %rotestou o coronel' a mulher saiu batendo com a %orta' d' sabas en)ugou o%escoço com um lenço im%regnado de lavanda' o coronel
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 27/46
a%ro)imou-se da janela' chovia im%lacavelmente' uma galinha degrandes %atas amarelas atravessou a %raça'
>3
- É verdade que estão a injectar o galo7 - É verdade - res%ondeu o coronel' - os treinos começam nasemana que vem' - É uma temeridade - comentou d' sabas' - voc2 j" não est"%ara essas coisas' - de acordo - re%licou o coronel' - mas isso não razão%ara lhe torcer o %escoço' - É uma temeridade idiota - disse d' sabas! dirigindo-se%ara a janela' o coronel notou nele uma res%iração de (ole' osolhos do com%adre (aziam-lhe %iedade' - siga o meu conselho! com%adre - continuou d' sabas' -venda esse galo antes que seja demasiado tarde' - nunca demasiado tarde %ara nada - retorquiu o coronel'
- não seja teimoso - insistiu d' sabas' - É um neg#cio emque ganha %or dois lados' %or um! tira de cima de si essa dorde cabeça! e %elo outro mete novecentos %esos no bolso' - novecentos %esos@ - e)clamou o coronel' - novecentos %esos' o coronel so%esou a quantia' - cr2 mesmo que irão dar esse dinheirão %elo galo7 - qual creio7 - re%licou d' sabas' - tenho a certezaabsoluta' era a quantia mais alta que o coronel j" havia tido nacabeça de%ois de ter restitu&do os (undos da revolução'
>+
quando saiu do escrit#rio de d' sabas sentia uma (ortecontorção nas tri%as! mas tinha a consci2ncia de que desta veznão era %or causa do tem%o' no correio (oi ter directamentecom o administrador' - estou 5 es%era de uma carta urgente - disse ele' - É deavião' o administrador %rocurou nos com%artimentos classi(icados'quando acabou de ler re%4s as cartas na letra corres%ondente!mas não disse nada' sacudiu as %almas das mãos e dirigiu aocoronel um olhar signi(icativo' - devia chegar hoje de certeza - disse o coronel'
o administrador encolheu os ombros' - a nica coisa que chega de certeza a morte! coronel' a mulher recebeu-o com um %rato de %a%as de milho' elecomeu-as em sil2ncio com longas %ausas %ara %ensar entre cadacolherada' sentada 5 (rente dele! a mulher %ercebeu que algumacoisa tinha mudado em casa' - o que tens - %erguntou' - estou a %ensar no (uncion"rio de quem de%ende a %ensão -mentiu o coronel' - daqui a cinquenta anos n#s estaremos muitodescansados debai)o da terra enquanto esse %obre homem
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 28/46
agonizar" todas as se)tas-(eiras 5 es%era da sua re(orma' - mau sintoma - disse a mulher' - isso quer dizer que j"começas a resignar-te' - continuou a comer as %a%as' mas uminstante de%ois a%ercebeu-se de que o marido %ermaneciaausente'
>*
- agora o que deves (azer a%roveitar as %a%as' - estão muito boas - disse o coronel' - donde vieram7 - do galo - res%ondeu a mulher' - os ra%azes trou)eram-lhetanto milho que ele decidiu re%arti-lo connosco' É assim avida' - assim - sus%irou o coronel' - a vida a coisa melhorque j" se inventou' olhou %ara o galo atado ao % do (ogareiro e desta vez%areceu-lhe um animal di(erente' tambm a mulher olhou %araele'
- esta tarde tive de correr os garotos com um %au - disseela' - trou)eram uma galinha velha %ara a cruzarem com o galo' - não a %rimeira vez - comentou o coronel' - É o mesmo que(aziam nas aldeias com o coronel aureliano buend&a'levavam-lhe ra%arigas %ara cruzarem' ela celebrou a ocorr2ncia' o galo %roduziu um som guturalque chegou at ao corredor como uma surda conversação humana' - =s vezes %enso que este animal vai (alar - disse a mulher'o coronel voltou a olhar %ara ele' - É um galo que dinheiro em cai)a - disse ele' (ezc"lculos enquanto sorvia uma colherada de %a%as' - vai dar-nosde comer durante tr2s anos' - as ilus$es não se comem - res%ondeu ela' - não se comem! mas alimentam - retorquiu o coronel' - são
uma coisa assim como as %astilhas milagrosas do meu com%adresabas'
/0
dormiu mal essa noite! tentando riscar nmeros de cabeça' nodia seguinte ao almoço! a mulher serviu dois %ratos de %a%asde milho e consumiu o seu de cabeça bai)a! sem %ronunciar%alavra' o coronel sentiu-se contagiado de um humor sombrio' - o que tens7 - nada - res%ondeu a mulher'
ele teve a im%ressão de que agora lhe calhara a ela a vez dementir' tentou consol"-la' mas a mulher insistiu' - não nada de es%ecial - e)clamou' - estou a %ensar que omorto j" vai (azer dois meses e ainda não dei os %2sames' %or isso (oi d"-los nessa noite' o coronel acom%anhou-a acasa do morto e a seguir dirigiu-se ao salão de cinema atra&do%ela msica dos alti(alantes' sentado 5 %orta do seu gabinete!o %adre 8ngel vigiava a entrada %ara saber quem assistia aoes%ect"culo a%esar das suas doces advert2ncias' a luz ajorros! a msica estridente e os gritos das crianças o%unham
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 29/46
como que uma barreira (&sica' um dos midos ameaçou o coronelcom uma esco%eta de %au' - o que (eito do galo! coronel7 - %erguntou com vozautorit"ria' o coronel levantou as mãos' - est" aqui o galo@ um cartaz a quatro cores ocu%ava totalmente a (achada do
salão virgem da meia-noite' era uma mulher em traje de dançacom uma %erna descoberta at 5 co)a'
/1
o coronel continuou a deambular %elas imediaç$es at que dere%ente eclodiram trov$es e rel<m%agos long&nquos' então (oiter com a mulher' não estava em casa do morto' na sua tambm não' o coronelcalculou que j" devia (altar %ouqu&ssimo tem%o %ara o toque derecolher! mas o rel#gio estava %arado' (icou 5 es%era!
sentindo a tem%estade avançar em direcção ao %ovoado'dis%unha-se a sair de novo quando a mulher entrou em casa' levou o galo %ara o quarto' ela mudou de rou%a e (oi beber"gua 5 sala no momento em que o coronel acabava de dar cordaao rel#gio e es%erava o toque de recolher %ara o acertar' - onde estiveste7 - %erguntou o coronel' - %or a& - res%ondeu a mulher' %ousou o co%o no %oial sem(itar o marido e voltou %ara o quarto' - ningum %ensava que(osse chover tão cedo' - o coronel não (ez nenhum coment"rio'quando soou o toque! %4s o rel#gio nas onze! (echou o vidro ecolocou a cadeira no lugar' encontrou a mulher rezando o terço' - não me res%ondeste a uma %ergunta - disse o coronel' - qual'
- onde estiveste7 - (iquei %or a& a conversar - insistiu ela' - h" tanto tem%oque não sa&a 5 rua' o coronel tirou a cama de rede' (echou a casa e (umegou oquarto' a seguir! %4s a candeia no chão e deitou-se'
/,
- com%reendo-te - disse ele tristemente' - o %ior destasituação obrigar uma %essoa a dizer mentiras'
ela e)alou um longo sus%iro' - estive com o %adre 8ngel - murmurou' - (ui %edir-lhe umem%rstimo sobre as alianças' - e o que te disse ele7 - que %ecado negociar com coisas sagradas' continuou a (alar de dentro do mosquiteiro' - h" dois dias tentei vender o rel#gio - disse'não interessaa ningum %orque estão a vender a %restaç$es uns rel#giosmodernos com nmeros luminosos' %ode-se ver as horas mesmo 5sescuras' - o coronel veri(icou que quarenta anos de vida em
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 30/46
comum! de (ome em comum! de so(rimentos em comum! não lhehaviam chegado %ara conhecer a sua mulher' sentiu que qualquercoisa tinha tambm envelhecido no amor' - tambm não querem o quadro - %rosseguiu ela' - quase todaa gente tem o mesmo' estive ontem nos turcos' o coronel (icou amargurado' - de maneira que agora toda a gente sabe que estamos a
morrer de (ome' - estou (arta - res%ondeu a mulher' - os homens não sea%ercebem dos %roblemas da casa' j" v"rias vezes %us %edras a(erver %ara que os vizinhos não saibam que %assamos muitosdias sem (azer comida' o coronel sentiu-se o(endido' - isso uma verdadeira humilhação - comentou'
/6
a mulher abandonou o mosquiteiro e dirigiu-se %ara a cama de
rede' - estou dis%osta a acabar com os (ingimentos e ascontem%laç$es nesta casa - disse' a sua voz começou aturvar-se de c#lera' - estou mais que (arta de resignação e dedignidade' o coronel não me)eu um msculo' - vinte anos 5 es%era dos sa%atos de de(unto que te%rometeram de%ois das eleiç$es todas e de tudo isso s# nosresta um (ilho morto - %rosseguiu ela' - nada mais que um(ilho morto' o coronel estava habituado a esta es%cie de recriminaç$es' - cum%rimos o nosso dever - disse ele' - e eles cum%riram o deles de ganharem mil %esos %or m2s nosenado durante vinte anos - re%licou a mulher' - a& tens o meu
com%adre sabas com uma casa de dois %isos que não lhe chega%ara meter o dinheiro que tem! um homem que chegou c" 5 terraa vender remdios com uma cobra enrolada ao %escoço' - mas est" a morrer de diabetes - contra%4s o coronel' - e tu est"s a morrer de (ome - retorquiu a mulher' - %araque te convenças de que a dignidade não se come' interrom%eu-a o rel<m%ago' o trovão estoirou na rua! entrouno quarto e %assou a rodo%iar %or bai)o da cama como um tro%elde %edras' a mulher saltou %ara o mosquiteiro em busca doros"rio'
/:
o coronel sorriu' - isto acontece-te %or não re(reares essa l&ngua - comentou'- tenho-te dito sem%re que deus meu correligion"rio' mas na realidade sentia-se amargurado' um momento de%oisa%agou a candeia e mergulhou %ensativo numa escuridão cortada%elos rel<m%agos' lembrou-se de macondo' o coronel es%erou dezanos %or que (ossem cum%ridas as %romessas de neerl<ndia' no
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 31/46
tor%or da sesta viu chegar um comboio amarelo e %oeirento comhomens e mulheres e animais meio as(i)iados de calor!amontoados at ao tecto dos vag$es' era a (ebre da banana' emvinte e quatro horas trans(ormaram a terra' - vou-me embora - disse então o coronel' - o cheiro dabanana desarranja-me os intestinos' - e abandonou macondo numcomboio de volta! numa quarta-(eira! vinte e sete de junho de
mil novecentos e seis 5s duas e dezoito minutos da tarde'%recisou de meio sculo %ara se dar conta de que não tinhatido um minuto de sossego desde a rendição de neerl<ndia' abriu os olhos' - então não h" mais que %ensar - %ro(eriu' - o qu27 - a questão do galo - res%ondeu o coronel' - amanhã mesmovendo-o ao meu com%adre sabas %or novecentos %esos' atravs da janela %enetraram no escrit#rio os gemidos dosanimais ca%ados misturados com os gritos de d' sabas' - se não vier dentro de dez minutos! vou-me embora -%rometeu a si mesmo o coronel! a%#s duas horas de es%era' mases%erou mais vinte minutos' dis%unha-se a sair quando d' sabas
entrou no escrit#rio seguido %or um gru%o de jornaleiros'%assou v"rias vezes 5 (rente do coronel sem olhar %ara ele' s# o descobriu quando sa&ram os jornaleiros' - est" 5 minha es%era! com%adre7 - sim! com%adre - res%ondeu o coronel' - mas se est" muitoocu%ado %osso vir mais tarde' d' sabas j" não o ouviu do outro lado da %orta' - volto j" - disse ele' estava um meio-dia ardente' o escrit#rio res%landecia com areverberação da rua' toldado %elo calor! o coronel (echou osolhos involuntariamente e começou logo a sonhar com a mulher'a es%osa de d' sabas entrou nas %ontas dos %s' - não acorde! com%adre - disse ela' - vou (echar as%ersianas %orque este escrit#rio um in(erno'
//
o coronel seguiu-a com um olhar com%letamente inconsciente'ela (alou na %enumbra quando (echou a janela' - sonha com muita (requ2ncia7 - =s vezes - res%ondeu o coronel! envergonhado %or terdormido' - sonho quase sem%re que me %rendo em teias dearanha' - eu tenho %esadelos todas as noites - disse a mulher' -agora deu-me %ara saber quem essa gente desconhecida que uma
%essoa v2 nos sonhos' ligou a ventoinha elctrica' - na semana %assada a%areceu-me uma mulher 5 cabeceira dacama - %rosseguiu ela' - atrevi-me a %erguntar-lhe quem era eela res%ondeu-me sou a mulher que morreu h" doze anos nestequarto' - a casa (oi constru&da s# h" dois anos - contra%4s ocoronel' - assim - con(irmou a mulher' - isso quer dizer que at osmortos se enganam'
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 32/46
o zumbido da ventoinha consolidou a %enumbra' o coronelsentiu-se im%aciente! atormentado %elo tor%or e %ela inst"velmulher que %assou directamente dos sonhos %ara o mistrio dareencarnação' es%erava %or uma %ausa %ara se des%edir quandod' sabas entrou no escrit#rio com o seu ca%ataz' - j" te aqueci a so%a quatro vezes - quei)ou-se a mulher' - se quiseres aquece-a dez vezes - re%licou d' sabas'
/3
- mas agora não me d2s cabo da %aci2ncia' abriu a cai)a do dinheiro e entregou ao ca%ataz um rolo denotas juntamente com uma srie de instruç$es' o ca%ataz %u)ouas %ersianas %ara contar o dinheiro' d' sabas viu o coronel ao(undo do escrit#rio mas não revelou a menor reacção' continuoua conversar com o ca%ataz' o coronel levantou-se no momento emque os dois homens se %re%aravam %ara abandonar de novo oescrit#rio' d' sabas deteve-se antes de abrir a %orta'
- o que que o traz %or c"! com%adre7 o coronel veri(icou que o ca%ataz o observava' - nada! com%adre - res%ondeu' - queria (alar consigo' - o que (or! diga-me j" - ordenou d' sabas' - não %osso%erder nem um minuto' %ermaneceu em sus%enso com a mão a%oiada no %u)ador da%orta' o coronel sentiu %assarem os cinco minutos maiscom%ridos da sua vida' cerrou os dentes' - É %ela questão do galo - murmurou' então d' sabas acabou de abrir a %orta' - a questão do galo - re%etiu sorrindo! e em%urrou o ca%ataz%ara o corredor' - o mundo a acabar e o meu com%adre %endentedesse galo' e a seguir! dirigindo-se ao coronel
- muito bem! com%adre' volto j"' o coronel %ermaneceu im#vel no meio do escrit#rio at dei)arde ouvir os %assos dos dois homens na %onta do corredor'
/+
de%ois saiu e andou a vaguear %ela terra %aralisada na sestadominical' não havia ningum na al(aiataria' o consult#rio domdico estava (echado' ningum vigiava a mercadoria e)%ostanos armazns dos s&rios' o rio era uma l<mina de aço' um homemdormia no %orto em cima de quatro barris de %etr#leo! com o
rosto %rotegido do sol %or um cha%u' o coronel dirigiu-se%ara casa com a certeza de que era a nica coisa m#vel no%ovoado' a mulher es%erava-o com um almoço com%leto' - (oi (iado com a %romessa de %agar amanhã cedo - e)%licouela' durante o almoço! o coronel contou-lhe os incidentes dasltimas tr2s horas' ela ouviu-o im%aciente' - o que acontece que a ti te (alta car"cter - res%ondeuimediatamente' - a%resentas-te como se (osses %edir uma esmola
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 33/46
quando devias entrar de cabeça erguida e chamar 5 %arte o meucom%adre e dizer-lhe com%adre! decidi vender-lhe o galo' - assim a vida ("cil - re%licou o coronel' ela assumiu uma atitude enrgica' nessa manhã tinha %osto acasa em ordem e estava vestida de uma maneira ins#lita! com ossa%atos velhos do marido! um avental de oleado e um tra%oatado 5 cabeça com dois n#s nas orelhas'
- não tens o menor sentido dos neg#cios - insistiu' - quandose vai vender uma coisa tem de se (azer a mesma cara com quese vai com%rar'
/*
o coronel descobriu uma coisa divertida na sua (igura' - (ica assim como est"s - interrom%eu-a sorrindo' - est"s%arecida com o homenzinho dos (locos de aveia quaAer' ela tirou o tra%o da cabeça' - estou a (alar contigo a srio - retorquiu' - agora mesmo
vou levar o galo ao meu com%adre e a%osto o que tu quiseresque regresso em menos de meia hora com os novecentos %esos' - subiram-te os zeros 5 cabeça - res%ondeu o coronel' - j"começas a jogar com o dinheiro do galo' deu-lhe trabalho dissuadi-la' ela dedicara a manhã aorganizar mentalmente o %rograma de tr2s anos sem a agonia dasse)tas-(eiras' %re%arou a casa %ara receber os novecentos%esos' (ez uma lista das coisas essenciais que lhes (altavam!sem esquecer um %ar de sa%atos novos %ara o coronel' destinouno quarto um s&tio %ara o es%elho' a moment<nea (rustração dosseus %rojectos causou-lhe uma con(usa sensação de vergonha ede ressentimento' (ez uma curta sesta' quando se levantou! o coronel estavasentado no %"tio'
- e agora o que vais (azer - %erguntou-lhe' - estou a %ensar - res%ondeu o coronel' - então est" resolvido o %roblema' j" se %oder" contar comesse dinheiro daqui a cinquenta anos'
30
mas na realidade o coronel decidira vender o galo nessamesma tarde' %ensou em d' sabas! sozinho no seu escrit#rio!%re%arando-se em (rente da ventoinha %ara a injecção di"ria'j" tinha %revisto as suas res%ostas'
- leva o galo - recomendou-lhe a mulher quando ele sa&a' - acara do santo (az o milagre' o coronel o%4s-se' ela %erseguiu-o at 5 %orta da rua comuma ansiedade deses%erante' - não im%orta que esteja gente no escrit#rio - insistiu' -agarra-lo %or um braço e não o dei)as me)er-se enquanto não teder os novecentos %esos' - vão julgar que estamos a %re%arar um assalto' ela não (ez caso' - lembra-te de que s o dono do galo - %rosseguiu' -
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 34/46
lembra-te de que s tu que vais (azer-lhe o (avor' - est" bem' d' sabas estava com o mdico no quarto' - a%roveite agora! com%adre - disse a mulher dele aocoronel' - o doutor est" a %re%arar as coisas %ara ele viajarat 5 (azenda e s# volta na quinta-(eira' o coronel debateu-se entre duas (orças contr"rias a%esar da
sua determinação em vender o galo! desejava ter chegado umahora mais tarde %ara j" não encontrar d' sabas' - %osso es%erar - res%ondeu' mas a mulher insistiu' levou-o ao quarto onde estava omarido sentado na cama de dossel! em ceroulas! mantendo (i)osno mdico os olhos sem cor'
31
o coronel es%erou que o mdico aquecesse o tubo de vidro coma urina do %aciente! cheirasse o va%or e (izesse a d' sabas um
sinal a%rovador' - temos de (uzilar - disse o mdico dirigindo-se ao coronel'- os diabetes são demasiado lentos %ara acabar com os ricos' - voc2 j" (ez os %oss&veis com as suas malditas injecç$es deinsulina - re%licou d' sabas! e deu um salto sobre as suasn"degas (l"cidas' - mas eu sou um osso duro de roer' - e aseguir! %ara o coronel - vamos! com%adre' quando (ui ter consigo esta tarde nãoencontrei nem o cha%u' - não o uso %ara não ter de o tirar diante de ningum' d' sabas começou a vestir-se' o mdico meteu no bolso docasaco um tubo de vidro com uma amostra de sangue' a seguir!arrumou a maleta' o coronel %ensou que ele se %re%arava %arase des%edir'
- eu no seu lugar %assaria ao meu com%adre uma conta de cemmil %esos! doutor - disse' - assim não se %reocu%aria tanto' - j" lhe %ro%us o neg#cio! mas com um milhão - res%ondeu omdico' - a %obreza o melhor remdio contra os diabetes - obrigado %ela receita - disse d' sabas! tentando meter ovolumoso ventre nas calças de montar' - mas não a aceito %aralhe evitar a si a calamidade de ser rico'
3,
- o mdico viu os seus %r#%rios dentes re(lectidos no (echo
niquelado da maleta' olhou %ara o rel#gio sem mani(estarim%aci2ncia' na altura de %4r as botas! d' sabas dirigiu-seintem%estivamente ao coronel' - bom! com%adre! o que que se %assa com o galo7 o coronel a%ercebeu-se de que o mdico tambm estavasus%enso da sua res%osta' cerrou os dentes' - nada! com%adre - murmurou' - É que venho vender-lho' d' sabas acabou de calçar as botas' - muito bem! com%adre - disse sem emoção'É a coisa maissensata que lhe %odia ocorrer'
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 35/46
- j" estou muito velho %ara estas com%licaç$es -justi(icou-se o coronel %erante a e)%ressão im%enetr"vel domdico' - se eu tivesse vinte anos a menos seria di(erente' - voc2 ter" sem%re vinte anos a menos - re%licou o mdico' o coronel recu%erou o alento' es%erou que d' sabas dissessemais alguma coisa! mas este não o (ez' vestiu uma jaqueta decouro com (echo de correr e %re%arou-se %ara sair do quarto'
- se quiser! (alamos %ara a semana que vem - sugeriu ocoronel' - era o que eu ia dizer-lhe - res%ondeu d' sabas' - tenho umcliente que talvez lhe d2 quatrocentos %esos' mas temos dees%erar at quinta-(eira' - quanto7 - %erguntou o mdico'
36
- quatrocentos %esos' - eu tinha ouvido dizer que valia muito mais - contra%4s o
mdico' - (alou-me de novecentos %esos - disse o coronel! am%arado%ela %er%le)idade do doutor' - É o melhor galo de todo ode%artamento' d' sabas res%ondeu ao mdico' - noutros tem%os qualquer um daria mil %or ele - e)%licou' -mas agora ningum se atreve a mandar um bom galo' h" sem%re orisco de se sair morto do %avilhão' - virou-se %ara o coronelcom a%licada desolação - (oi o que eu quis dizer-lhe! com%adre' o coronel a%rovou com a cabeça' - bom - disse' seguiu-o %elo corredor (ora' o mdico (icou na sala retido%ela mulher de d' sabas que lhe %ediu um remdio %ara essas
coisas que dão de re%ente a uma %essoa e que não se sabe o que' o coronel es%erou %or ele no escrit#rio' d' sabas abriu acai)a-(orte! meteu dinheiro em todos os bolsos e estendeuquatro notas ao coronel' - aqui tem sessenta %esos! com%adre - disse ele' - quandovender o galo! (aremos contas' o coronel acom%anhou o mdico atravs dos bazares do %ortoque começavam a reviver com o (resco da tarde' uma barcaçacarregada de cana-de-açcar descia ao sabor da corrente' ocoronel sentiu no mdico um hermetismo ins#lito' - e voc2 como est"! doutor7
3:
o mdico encolheu os ombros' - regular - res%ondeu' - creio que estou a %recisar de ummdico' - É o inverno - comentou o coronel' - a mim desarranja-me osintestinos' o mdico e)aminou-o com um olhar absolutamente des%rovido deinteresse %ro(issional' (oi cum%rimentando sucessivamente os
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 36/46
s&rios sentados 5 %orta dos seus armazns' ao chegarem 5 %ortado consult#rio! o coronel e)%4s a sua o%inião sobre a venda dogalo' - não %odia (azer outra coisa - e)%licou' - esse animalalimenta-se de carne humana' - o nico animal que se alimenta de carne humana d' sabas- re%licou o mdico' - tenho a certeza de que vai voltar a
vender o galo %or novecentos %esos' - acha7 - tenho a certeza - disse o mdico' - É um neg#cio tãochorudo como o seu (amoso %acto %atri#tico com o alcaide' o coronel resistiu a acreditar' - o meu com%adre (ez esse %acto %ara salvar a %ele -res%ondeu' - %or isso que %4de (icar c" na terra' - e %or isso %4de com%rar %or metade do %reço os bens dosseus %r#%rios correligion"rios que o alcaide e)%ulsou da terra- retorquiu o mdico' chamou algum que lhe abrisse a %orta%ois não encontrou as chaves nos bolsos' a seguir! en(rentou aincredulidade do coronel'
3>
- não seja ingnuo - disse-lhe' - a d' sabas interessa muitomais o dinheiro que a %r#%ria %ele'
a mulher do coronel saiu 5s com%ras nessa noite' eleacom%anhou-a aos armazns dos s&rios! ruminando as revelaç$esdo mdico' - vai j" ter com os ra%azes e diz-lhes que o galo est"vendido - disse-lhe ela' - não se deve dei)"-los na ilusão' - o galo não estar" vendido enquanto não vier o meu com%adre
sabas - res%ondeu o coronel' encontrou Álvaro a jogar a roleta no salão de bilhar' oestabelecimento escaldava na noite de domingo' o calor %areciamais intenso %or causa das vibraç$es do r"dio a todo o volume'o coronel entreteve-se com os nmeros de cores vivas %intadosnum com%rido ta%ete de oleado %reto e iluminados %or umalanterna de %etr#leo %osta em cima de um cai)ote no centro damesa' Álvaro teimou em %erder no vinte e tr2s' seguindo o jogo%or cima do ombro dele! o coronel observou que o onze saiuquatro vezes em nove voltas' - a%osta no onze - murmurou ao ouvido de Álvaro' - É o quesai mais' Álvaro e)aminou o ta%ete' não a%ostou na volta seguinte'
tirou o dinheiro do bolso das calças! e juntamente com odinheiro uma (olha de %a%el' deu-a ao coronel %or bai)o damesa' - É de agust&n - disse' o coronel guardou no bolso a (olha clandestina' Álvaroa%ostou (orte no onze'
3/
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 37/46
- começa %or %ouco - aconselhou o coronel' - %ode ser um bom %al%ite - re%licou Álvaro' um gru%o dejogadores ao lado retirou as a%ostas de outros nmeros e todosa%ostaram no onze quando j" havia começado a girar a enormeroda de cores' o coronel sentiu-se o%rimido' %ela %rimeira veze)%erimentou a (ascinação! o sobressalto e a amargura do azar'
saiu o cinco' - lamento - disse o coronel envergonhado! e seguiu com umirresist&vel sentimento de cul%a a %" de madeira que levou odinheiro de Álvaro' - É o que acontece %or me meter onde nãosou chamado' Álvaro sorriu sem olhar %ara ele' - não se %reocu%e! coronel' e)%erimente no amor' de re%ente interrom%eram-se as trom%etes do mambo' osjogadores dis%ersaram-se de mãos no ar' o coronel ouviu nassuas costas o estalido seco! articulado e (rio de umaes%ingarda a ser carregada' com%reendeu que ca&ra (atalmentenuma rusga da %ol&cia com a (olha clandestina no bolso' deumeia volta sem levantar as mãos' e então viu de %erto! %ela
%rimeira vez na sua vida! o homem que dis%arara contra o seu(ilho' estava e)actamente na (rente dele! a%ontando-lhe o canoda es%ingarda ao ventre' era %equeno! meio &ndio! de %elecurtida! e e)alava um cheiro in(antil' o coronel cerrou osdentes e a(astou suavemente com a %onta dos dedos o cano daes%ingarda' - com licença -- disse' de%arou com uns olhinhos %equenos e redondos de morcego' numinstante sentiu-se engolido %or esses olhos! triturado!digerido e imediatamente e)%ulso' - %asse! coronel'
; ; ;
não %recisou de abrir a janela %ara identi(icar dezembro'descobriu-o nos seus %r#%rios ossos quando na cozinha %icava(rutas %ara a re(eição do galo' a seguir! abriu a %orta! e avisão do %"tio con(irmou a sua intuição' era um %"tiomaravilhoso! com a erva e as "rvores e a retrete (lutuando naclaridade! um mil&metro acima do solo' a mulher (icou na cama at 5s nove' quando a%areceu nacozinha! j" o coronel tinha arrumado a casa e conversava comos garotos 5 roda do galo' ela teve de dar uma volta %ara chegar ao (ogareiro' - tirem-se do caminho - gritou' lançou ao animal um olhar
sombrio' - nunca mais me livro desta ave de mau agoiro' o coronel e)aminou atravs do galo o humor da mulher' nãohavia nada nele que merecesse rancor' estava %ronto %ara ostreinos' de %escoço e %ernas %elados e cartilaginosos! decrista bem talhada! o animal havia adquirido uma (iguras#bria! um ar inde(eso' - vai ver 5 janela e esquece-te do galo - disse o coronelquando as crianças se (oram embora'
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 38/46
+0
- numa manhã destas at a%etece tirar um retrato' ela assomou 5 janela mas o seu rosto não revelou emoçãoalguma' - gostava de %lantar rosas - e)clamou ao regressar ao
(ogareiro' o coronel %endurou o es%elho no gancho %ara sebarbear' - se quiseres %lantar rosas! %lanta-as - res%ondeu' tentou ada%tar os seus movimentos aos da imagem' - os %orcos comem-nas - re%licou ela' - melhor - rebateu o coronel' - devem ser muito bons os%orcos engordados com rosas' %rocurou a mulher no es%elho e veri(icou que ela continuavacom a mesma e)%ressão' ao brilho do (ogo! o seu rosto %areciamoldado na mesma matria que o (ogão' sem dar %or isso! deolhos (i)os nela! o coronel continuou a barbear-se %elo tactocomo (izera durante muitos anos' a mulher %ensou! num longosil2ncio'
- É que não quero %lant"-las - res%ondeu' - bom - assentiu o coronel' - então não as %lantes' sentia-se bem' dezembro tinha (eito murchar a (lora das suasv&sceras' so(reu uma contrariedade nessa manhã ao tentarcalçar os sa%atos novos' mas de%ois de e)%erimentar v"riasvezes com%reendeu que era um es(orço intil e %4s os botins deverniz' a mulher deu %ela mudança' - se não calçares os novos acabas %or nunca os amaciar -advertiu-o'
+1
- são sa%atos de %aral&tico - %rotestou o coronel' - s#deviam vender o calçado com um m2s de uso' saiu %ara a rua estimulado %elo %ressentimento de que nessatarde chegaria a carta' como ainda não estava na hora daslanchas es%erou %or d' sabas no escrit#rio dele' mascon(irmaram-lhe que não chegaria senão na segunda-(eira' nãodeses%erou! a%esar de não ter %revisto este contratem%o' maiscedo ou mais tarde tem de vir! disse %ara consigo! edirigiu-se %ara o %orto! num instante %rodigioso! (eito de umaclaridade ainda totalmente nova' - todo o ano devia ser dezembro - murmurou! sentado noarmazm do s&rio moiss' - uma %essoa sente-se como se (ossede vidro'
o s&rio moiss teve de (azer um es(orço %ara traduzir aideia %ara o seu "rabe quase esquecido' era um oriental%l"cido! (orrado at ao cr<nio %or uma %ele lisa e esticada!com densos movimentos de a(ogado' e(ectivamente %arecia salvodas "guas' - assim era dantes - comentou' - se agora (osse o mesmo euteria oitocentos e noventa e sete anos' e tu 7 - setenta e cinco - res%ondeu o coronel! %erseguindo com osolhos o administrador dos correios' s# então descobriu ocirco' reconheceu o toldo remendado no tecto da lancha do
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 39/46
correio no meio de um montão de objectos coloridos' %or uminstante %erdeu de vista o administrador %ara %rocurar as(eras %or entre as cai)as em%ilhadas nas outras lanchas' nãoas encontrou'
+,
- É um circo - disse ele' - É o %rimeiro que vem c" desde h"dez anos' o s&rio moiss veri(icou a in(ormação' (alou com a mulhernuma mistura de "rabe e es%anhol' ela res%ondeu das traseirasda loja' ele (ez um coment"rio %ara si mesmo e a seguirtraduziu a sua %reocu%ação ao coronel' - esconde o gato! coronel' os ra%azes roubam-no %ara o iremvender ao circo' o coronel %re%arou-se %ara seguir o administrador' - não um circo de (eras - res%ondeu' - não im%orta - re%licou o s&rio' - os acrobatas comem gatos
%ara não %artirem os ossos' seguiu o administrador atravs dos bazares do %orto at 5%raça' a& sur%reendeu-o o turbulento clamor do %avilhão dosgalos' ao %assar! algum lhe disse qualquer coisa sobre ogalo' s# então se lembrou de que era o dia marcado %arainiciarem os treinos' %assou de largo %elos correios' um momento de%ois estavasubmerso na turbulenta atmos(era dos galos de combate' viu oseu galo no meio da %ista! sozinho! inde(eso! de es%or$esenvoltos em %anos! com um certo medo evidente no tremor das%atas' o advers"rio era um galo triste e %ardacento' o coronel não sentiu a menor emoção' (oi uma sucessão deassaltos iguais' um choque instant<neo de %enas e %atas e%escoços no meio de uma alvoroçada ovação'
+6
lançado contra as t"buas da barreira! o advers"rio deu umavolta sobre si mesmo e regressou ao assalto' o seu galo nãoatacou' rechaçou todos os assaltos e voltou a cair e)actamenteno mesmo s&tio' mas agora as %atas j" não lhe tremiam' germ"n saltou a barreira! ergueu-o com as duas mãos emostrou-o ao %blico na bancada' houve uma (rentica e)%losãode a%lausos e gritos' o coronel re%arou na des%ro%orção entre
o entusiasmo da ovação e a intensidade do es%ect"culo'%areceu-lhe uma (arsa! 5 qual - volunt"ria e conscientemente -tambm os galos se %restavam' e)aminou a galeria circular im%elido %or uma curiosidade umtanto de%reciativa' uma multidão e)altada %reci%itou-se %elosdegraus %ara a %ista' o coronel observou a con(usão de rostosa(ogueados! ansiosos! terrivelmente vivos' era gente jovem'todos os jovens da terra' reviveu - como um %ress"gio - uminstante a%agado no horizonte da sua mem#ria' então saltou abarreira! abriu caminho atravs da multidão concentrada na
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 40/46
arena e en(rentou os tranquilos olhos de germ"n' olharam-sesem %estanejar' - boas tardes! coronel' o coronel tirou-lhe o galo' - boas tardes - murmurou' e não disse mais nada %orque o (ezestremecer a quente e %ro(unda %al%itação do animal' %ensouque nunca havia tido uma coisa tão viva nas mãos'
+: +>
- o coronel não estava em casa - descul%ou-se germ"n!%er%le)o' interrom%eu-o uma nova ovação' o coronel sentiu-seintimidado' voltou a abrir caminho! sem olhar %ara ningum!aturdido com os a%lausos e os gritos! e saiu %ara a rua com ogalo debai)o do braço' toda a %ovoação - a gente mais bai)a - saiu %ara o ver%assar seguido %elas crianças da escola' um negro gigantesco
em cima de uma mesa e com uma cobra enrolada ao %escoço vendiaremdios sem licença numa esquina da %raça' de regresso ao%orto um gru%o numeroso detivera-se a ouvir o seu %regão' masquando %assou o coronel com o galo a atenção de todosdesviou-se %ara ele' nunca tinha sido tão com%rido o caminhode casa' não se arre%endeu' j" desde h" muito tem%o! a %ovoação jazianuma es%cie de tor%or! corrom%ida %or dez anos de hist#ria'nessa tarde - outra se)ta-(eira sem carta -! as gentes haviamdes%ertado' o coronel recordou-se de outra %oca' viu-se a simesmo com a mulher e o (ilho a assistirem debai)o de um cha%ude chuva a um es%ect"culo que não (oi interrom%ido a%esar dechover' recordou-se dos dirigentes do seu %artido!escru%ulosamente %enteados! abanando-se com leques no %"tio da
sua casa ao com%asso da msica' quase reviveu a dolorosaresson<ncia do bombo nos seus intestinos' atravessou a rua %aralela ao rio e tambm a& (oi encontrara tumultuosa multidão dos remotos domingos eleitorais'observavam a descarga do circo' do interior de uma loja umamulher gritou qualquer coisa relacionada com o galo' elecontinuou absorto at casa! ouvindo ainda vozes dis%ersas!como se o %erseguissem os restos da ovação do %avilhão dosgalos' = %orta dirigiu-se 5s crianças' - todos %ara casa - e)clamou' - o que entrar corro-o 5chicotada' %4s a tranca na %orta e %assou discretamente %ara a cozinha'
a mulher saiu o(egante do quarto' - levaram-no 5 (orça - gritou' - eu disse-lhes que o galonão sairia desta casa enquanto eu estivesse viva' - o coronelatou o galo ao % do (ogareiro' mudou a "gua da gamela%erseguido %ela voz (rentica da mulher' - disseram que o levariam nem que (osse %or cima dos nossoscad"veres - %rosseguiu' - disseram que o galo não era nossomas sim de toda a %ovoação' s# quando acabou de tratar do galo o coronel en(rentou orosto transtornado da mulher' descobriu sem assombro que não
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 41/46
lhe %roduzia remorsos nem com%ai)ão' - (izeram bem - res%ondeu calmamente' e a seguir! revistandoos bolsos! acrescentou com uma es%cie de insond"vel doçura - o galo não se vende'
+/
ela seguiu-o at ao quarto' sentiu-o com%letamente humano!mas inacess&vel! como se estivesse a v2-lo no ecrã de umcinema' o coronel tirou do rou%eiro um maço de notas! juntou-oao que tinha nos bolsos! contou o total e guardou-o norou%eiro' - estão a& vinte e nove %esos %ara devolver ao meu com%adresabas - disse ele' - o resto %aga-se-lhe quando vier a %ensão' - e se não vier - %erguntou a mulher' - h"-de vir' - mas se não vier' - %ois então não se %aga'
encontrou os sa%atos novos debai)o da cama' voltou aoarm"rio 5 %rocura da cai)a de cartão! lim%ou as solas com um%ano e meteu os sa%atos na cai)a! como os tinha trazido amulher no domingo 5 noite' ela não se me)eu' - os sa%atos devolvem-se - ordenou o coronel' - são maistreze %esos %ara o meu com%adre' - não os recebem - contra%4s ela' - t2m de os receber - re%licou o coronel' - s# os calceiduas vezes' - os turcos não %ercebem dessas coisas - rebateu a mulher' - t2m de %erceber' - e se não %erceberem' - %ois então que não %ercebam' deitaram-se sem comer' o coronel es%erou que a mulher
acabasse o terço %ara a%agar a candeia' mas não conseguiudormir' ouviu as badaladas da censura cinematogr"(ica!
+3
e quase a seguir - tr2s horas de%ois - o toque de recolher' ares%iração asm"tica da mulher tornou-se angustiante com o arglido da madrugada' o coronel tinha os olhos abertos quandoela (alou com uma voz re%ousada! conciliadora' - est"s acordado' - sim'
- v2 l" se voltas 5 razão - disse a mulher' - (ala amanhãcom o meu com%adre sabas' - s# volta na segunda-(eira' - melhor - re%licou a mulher' - assim tens tr2s dias %ara%ensar melhor' - não h" mais nada %ara %ensar - rebateu o coronel' o viscoso ar de outubro havia sido substitu&do %or uma(rescura a%raz&vel' o coronel voltou a reconhecer dezembro nohor"rio dos alcarav$es' quando deram as duas ainda não tinha conseguido adormecer'
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 42/46
mas sabia que a mulher tambm estava acordada' tentou mudar de%osição na cama de rede' - não tens sono - %erguntou a mulher' - não' ela %ensou um momento' - não estamos em condiç$es de (azer isto - disse ela' -%ensa bem no que são quatrocentos %esos juntos'
- j" (alta %ouco %ara chegar a %ensão - res%ondeu o coronel' - andas a dizer o mesmo h" quinze anos'
++
- %or isso mesmo - res%ondeu o coronel' - j" não %odedemorar muito mais' ela (ez um sil2ncio' mas quando voltou a (alar! %areceu aocoronel que o tem%o não havia %assado' - tenho a im%ressão de que esse dinheiro nunca h"-de vir -disse a mulher'
- vir" de certeza' - e se não vier' ele não conseguiu arranjar voz %ara res%onder' ao %rimeirocantar do galo! de%arou-se com a realidade! mas voltou amergulhar num sono denso! seguro! sem remorsos' quandodes%ertou j" o sol ia alto' a mulher dormia' o coronel re%etiumetodicamente! com duas horas de atraso! os seus movimentosmatinais! e es%erou %ela mulher %ara tomar o %equeno-almoço' ela levantou-se im%enetr"vel' deram os bons-dias um ao outroe sentaram-se a comer em sil2ncio' o coronel bebeu uma )&carade ca( %reto acom%anhada de um %edaço de queijo e um %ãodoce' %assou toda a manhã na al(aiataria' = uma regressou acasa e encontrou a mulher a remendar rou%a no meio dasbeg#nias'
- são horas de almoçar - disse ele' - não h" almoço - res%ondeu a mulher' ele encolheu os ombros' (oi ta%ar as brechas da cerca do%"tio %ara evitar que os garotos entrassem %ara a cozinha'quando voltou %ara dentro! a mesa estava %osta'
+*
no decorrer do almoço! o coronel com%reendeu que a mulherestava a (azer um es(orço %ara não chorar' essa certeza
alarmou-o' conhecia o car"cter da mulher! naturalmente duro! eainda mais endurecido %or quarenta anos de amargura' a mortedo (ilho não lhe arrancara uma l"grima' (i)ou directamente nos olhos dela um olhar de re%rovação'ela mordeu os l"bios! secou as %"l%ebras com a manga econtinuou a almoçar' - És um deslei)ado - disse ela' o coronel não (alou' - És ca%richoso! casmurro e deslei)ado - re%etiu ela' cruzouos talheres sobre o %rato! mas em seguida recti(icou
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 43/46
su%ersticiosamente a %osição' - toda a vida a comer terra e oresultado que mereço menos consideração que um galo' - É di(erente - res%ondeu o coronel' - É o mesmo - re%licou a mulher' - devias %erceber que estoua morrer! que isto que tenho não doença mas sim agonia' o coronel não (alou enquanto não acabou de almoçar' - se o doutor me garantir que vendendo o galo te %assa a
asma! vendo-o j" - disse ele' - mas se não! não' nessa tarde levou o galo ao %avilhão' de regresso veio darcom a mulher 5 beira de uma crise' %asseava ao longo docorredor! de cabelos soltos %elas costas abai)o! de braçosabertos! %rocurando o ar %or cima do silvo dos %ulm$es'
*0
assim esteve at ao anoitecer' de%ois deitou-se sem se dirigirao marido' ruminou oraç$es at %ouco de%ois do toque de recolher'
então! o coronel dis%4s-se a a%agar a candeia' mas elao%4s-se' - não quero morrer 5s escuras - %rotestou' o coronel dei)ou a candeia no chão' começava a sentir-seesgotado' a%etecia-lhe esquecer-se de tudo! dormir de seguidaquarenta e quatro dias e acordar a vinte de janeiro 5s quatroda tarde! no %avilhão dos galos e no momento e)acto de soltaro seu galo' mas sabia-se ameaçado %ela vig&lia da mulher' - É a mesma hist#ria de sem%re - começou ela uns segundosde%ois' - n#s %assamos (ome %ara que comam os outros' É amesma hist#ria desde h" quarenta anos' o coronel guardou sil2ncio at que a mulher (ez uma %ausa%ara lhe %erguntar se estava acordado' ele res%ondeu que sim'a mulher continuou num tom (ranco! (luente e im%lac"vel'
- tod a a gente vai ganhar com o galo! menos n#s' somos osnicos que não temos nem um centavo %ara a%ostar' - o dono do galo tem direito a vinte %or cento' - tambm tinhas direito a que te arranjassem um lugar quandote %unham a dar couro e cabelo nas eleiç$es - re%licou amulher' - tambm tinhas direito 5 tua %ensão de veteranode%ois de arriscares a %ele na guerra civil' agora toda agente tem a vida assegurada e tu est"s morto de (ome!com%letamente sozinho'
*1
- não estou sozinho - res%ondeu o coronel' tentou e)%licar qualquer coisa! mas o sono venceu-o' elacontinuou a (alar surdamente at que se a%ercebeu de que omarido dormia' então saiu do mosquiteiro e %asseou %ela sala5s escuras' a& continuou a (alar' o coronel chamou-a demadrugada' ela a%areceu 5 %orta! es%ectral! iluminada de bai)o %aracima %ela candeia quase e)tinta' a%agou-a antes de entrar %arao mosquiteiro' mas continuou a (alar'
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 44/46
- vamos (azer uma coisa - interrom%eu-a o coronel' - a nica coisa que se %ode (azer vender o galo -retorquiu a mulher' - tambm se %ode vender o rel#gio' - ningum o com%ra' - amanhã vou ver se o Álvaro me d" os quarenta %esos' - não tos d"'
- então vende-se o quadro' quando a mulher voltou a (alar estava outra vez (ora domosquiteiro' o coronel sentiu a sua res%iração im%regnada deervas medicinais' - não o com%ram - re%licou ela' - veremos - res%ondeu o coronel suavemente! sem sinal dealteração na voz' - agora dorme' se amanhã não se %uder vendernada! %ensa-se noutra coisa'
*, *6
tentou manter os olhos abertos! mas quebrou-o o sono' caiu
at ao (undo de uma subst<ncia sem tem%o e sem es%aço! onde as%alavras da mulher tinham um signi(icado di(erente' mas uminstante de%ois sentiu-se abanado %elo ombro' - res%onde' o coronel não soube se tinha ouvido esta %alavra antes oude%ois de adormecer' j" nascia a manhã' a janela recortava-sena claridade verde do domingo' %ensou que estava com (ebre'ardiam-lhe os olhos e teve de (azer um grande es(orço %ararecu%erar a lucidez' - o que se %ode (azer se não se %uder vender nada - re%etiua mulher' - então j" ser" vinte de janeiro - res%ondeu o coronel!%er(eitamente consciente' - os vinte %or cento %agam-nos nessamesma tarde'
- se o galo ganhar - insistiu a mulher' - mas se %erder' nãote %assou %ela cabeça que o galo %ode %erder' - É um galo que não %ode %erder' - mas su%$e que %erde' - ainda (altam quarenta e cinco dias %ara começarmos a%ensar nisso - re%licou o coronel' a mulher (icou deses%erada' - e entretanto o que comemos - %erguntou! e agarrou ocoronel %elas bandas do casaco do %ijama' sacudiu-o comenergia' - diz l"! o que vamos comer' o coronel %recisou de setenta e cinco anos - os setenta ecinco anos da sua vida! minuto a minuto - %ara chegar a este
instante' sentiu-se %uro! e)%l&cito! invenc&vel! no momento deres%onder - merda'
%aris! janeiro de 1*>3
nota biobibliogrÁ(ica
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 45/46
gabriel garcÍa mÁrquez nasceu na %equena %ovoação costeira dearacataea! col4mbia! em / de março de 1*,+! onde (oi educado%elos seus av#s maternos' mais im%ortante do que qualquer dassuas leituras de in(<ncia %ara a sua (ormação de escritor(oram as hist#rias que a av#! cheia de su%erstiç$es e de
crenças %o%ulares! lhe contava e a (orte imagem do av4!nost"lgico do seu glorioso %assado militar nas guerras civis'aos 1, anos! gabo! ou gabito! como (oi a%elidado! ingressou noliceo nacional em zi%aquir"' aos 1+ anos matriculou-se emdireito na universidade nacional de bogot"' ali conheceumercedes barcha! com quem viria a casar-se em 1*>+' garc&am"rquez não terminou os seus estudos de direito' em 1*>0começou a trabalhar como jornalista em barranquilla! %ro(issãoque e)erceu durante anos! dedicando o seu tem%o livre 5leitura e 5s tertlias liter"rias' incans"vel viajante! vive no m)ico desde 1*/1! com um%ar2ntese de oito anos %assados em barcelona' tem dois (ilhos rodrigo e gonçalo'
a revoada B1*>>C! o seu %rimeiro romance! revela uma (ortein(lu2ncia de Dilliam (aulAner9 deste e do seu m&tico condadode EoAna%ataD%ha! garc&a m"rquez tirou a ideia de dar vida aum es%aço (ict&cio que! ba%tizado de macondo! ser" o cen"riodas suas obras mais clebres' a transbordante imaginação destere%resentante m")imo do realismo m"gico mani(esta-se%oderosamente em ningum escreve ao coronel B1*/1C e noscontos os (unerais da mamã grande B1*/,C e alcança a suae)%ressão m")ima em cem anos de solidão B1*/3C! romancetraduzido em mais de doze l&nguas e galardoado com quatro%rmios internacionais' a sua (orma de combinar a (antasia coma hist#ria numa narrativa de grande (orça e invençãolingu&stica deslumbrou milh$es de leitores e desencadeou ochamado boom da literatura his%ano-americana'
em 1*31! a universidade de colmbia concedeu-lhe odoutoramento honoris causa' no ano seguinte! recebeu o %rmior#mulo gallegos! cuja verba entregou ao mas! %artidovenezuelano de esquerda' em 1*+1! (oi distinguido com a legiãode honra (rancesa' em 1*+,! garc&a m"rquez recebeu o %rmio nobel daliteratura'
obras %rinci%ais
romances
horas m"s B1*/,C! relato de um n"u(rago B1*30C! olhos de cão azul B1*3:C! o outono do %atriarca B1*3>C! cr#nica de uma morte anunciada B1*+1C! o amor nos tem%os de c#lera B1*+>C! o general no seu labirinto B1*+*C! de amor e outros dem#nios B1**:C! not&cia de um sequestro B1**/C'
8/10/2019 Gabriel Garcia Marquez - Ninguém Escreve ao Coronel.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/gabriel-garcia-marquez-ninguem-escreve-ao-coronelpdf 46/46
contos
a incr&vel e triste hist#ria de c<ndida erendira e de sua av# desalmada B1*3,C! doze contos %eregrinos B1**,C'
cr#nicas e ensaios
o%eração carlota B1*33C! te)tos costeFos B1*+1C! entrecachacos B1*+6C! a aventura de miguel li(tin! clandestino no chile B1*+/C'
scannerização e arranjo
amadora! março de ,001