Gastronomia[1]

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MADEIRA RURAL

Particularidades

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Gastronomia – A cozinha madeirense

A alimentação não é simplesmente uma necessidade fisiológica. Constitui, também

um acto cultural, se tivermos em conta a amplitude dos aspectos que lhe estão

associados.

O Arquipélago teve, ao longo dos séculos, diferentes ciclos agrícolas (cereais, açúcar e

vinho) factor que influenciou, naturalmente, os hábitos alimentares do povo

madeirense.

A gastronomia tradicional madeirense, embora não seja muito vasta, é rica e variada.

Duas classes usufruíram de grande riqueza no quadro económico madeirense: a

fidalguia, detentora das terras e a burguesia, possuidora do capital. No lado oposto,

encontrava-se o povo. Existia um grande contraste entre o modo de vida daquelas

classes e o modo de vida do povo, o que vai reflectir-se na cozinha madeirense,

podendo afirmar-se que existia uma cozinha rica e uma cozinha pobre.

Por outro lado, o madeirense é fruto de uma miscigenação que tem origem nos

primeiros colonizadores, originários de várias regiões do Portugal Continental e sofreu

influências de outros povos estrangeiros que comerciavam com o Arquipélago ou que

nele trabalhavam ou nele se estabeleceram, sendo a actual cozinha madeirense

resultado, também, dessa herança étnica-cultural.

As primeiras receitas eram simples e baseavam-se na agricultura de subsistência e

nas plantas locais, embora alguns alimentos consumidos nas épocas festivas, tenham

progressivamente vindo a fazer parte da gastronomia popular.

Com o decorrer dos tempos, a culinária madeirense sofreu aculturações sucessivas,

surgindo receitas mais elaboradas, principalmente após a evolução dos meios de

comunicação, que facilitou o contacto com o exterior e permitiu a introdução de novos

utensílios, novos produtos e o conhecimento de novas receitas.

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A predominância dos produtos agrícolas e o destaque dos cereais

Os cereais constituíram, durante muito tempo, a base da alimentação do povo

madeirense, especialmente nas áreas rurais, sendo, ainda hoje, um elemento sempre

presente na dieta alimentar e na qual ocupam um lugar de destaque.

O trigo foi, de início, a base da alimentação, continuando a confeccionar-se,

actualmente, receitas que têm como base este cereal, nomeadamente, o

frangolho (papas de trigo), o cuscus (prato de origem mourisca,

confeccionado tradicionalmente na Ilha da Madeira, num recipiente de barro,

com uma morfologia adaptada para o efeito, produzido nas olarias

madeirenses), a sopa de trigo e a sopa de trigo pisado, o bolo do caco

(confeccionado tradicionalmente na pedra ou caco, uma pedra de cantaria,

circular, com um rebordo) e o bolo de noiva (pão doce), considerado um pão

“rico”, sendo por isso, oferecido tradicionalmente, nalgumas freguesias, nos

casamentos e baptizados.

O milho tem várias utilizações. A barba seca era utilizada para fazer chá

(infusão) e o caule era fermentado, servindo para fazer aguardente. As

maçarocas (espigas) são consumidas tenras, cozidas ou assadas, ou

utilizadas como ingrediente nas sopas. Com a farinha de milho fazem-se as

tradicionais papas de milho, o milho frito, a açorda de milho e o pão.

Com a cevada torrada confecciona-se um prato típico denominado gófio

(farinha de cevada, amassada com leite, mel de abelha e azeite) o qual,

segundo consta, foi introduzido no século XV por cativos guanches, originários

das ilhas Canárias. As rosquilhas de cevada são características da ilha do

Porto Santo.

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Outros produtos agrícolas usados na alimentação

As semilhas (batatas) são tradicionalmente cozidas com casca, em água e sal

ou descascadas e cozidas, servindo de acompanhamento a diferentes pratos.

Durante muito tempo, constituíram a base da alimentação dos habitantes das

zonas rurais. A batata-doce por sua vez, é usualmente cozida com casca, em

água e sal ou assada e descascada à mão, quando é consumida.

Comem-se, ainda, outros tubérculos, nomeadamente o inhame, o qual

constitui o prato tradicional da Semana Santa. Trata-se de uma planta

assexuada e, talvez por esse facto, seja considerada pura, pois durante este

período, a religião católica preconiza o jejum e a abstinência dos seus fiéis.

O povo alimentava-se também de leguminosas e hortaliças, nomeadamente

a pepinela (chuchu), a abóbora, a couve, o agrião, o tomate, a cebola, o

feijão, a fava, a ervilha, o chícharo, utilizados como ingredientes nas sopas

ou como acompanhamento, e o tremoço, tradicionalmente muito consumido

na Semana Santa.

As especiarias, ervas aromáticas e outros condimentos, têm um papel de

destaque na culinária, valorizando e caracterizando a gastronomia madeirense.

Os mais utilizados são o louro (essencial na confecção da tradicional

espetada), a segurelha (que caracteriza a açorda madeirense), o orégão

(muito utilizado no tempero das semilhas e do peixe), o alecrim, a salsa, o

alho, a canela (utilizada por exemplo, como tempero da canja de galinha), o

cravo-da-índia, a erva-doce, a noz-moscada e o perrixil.

O perrixil é uma erva um tanto carnuda e glauca, muito vulgar em toda a costa e

existente em rochedos marítimos. É abundante na costa norte da ilha da Madeira, na

Ponta de S. Lourenço e na ilha do Porto Santo. No entanto, parece ter sido nesta

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última, que o seu uso na gastronomia se generalizou. Eram não só utilizadas como

condimento, mas também consumidas frescas ou curtidas. A conservação dos

alimentos, como se sabe, consiste num conjunto de operações que permitem retardar

o consumo dos produtos alimentares. Por esse motivo, o processo de curtimento em

vinagre foi muito difundido. Ao que parece, o perrixil, em escabeche, já era

utilizado na época dos Descobrimentos, para evitar o escorbuto, doença provocada

pela falta de alimentos frescos. Na ilha do Porto Santo, segundo temos conhecimento,

as plantas são colhidas verdes, nas rochas, e são fervidas inteiras, numa grande

panela com muita água. Depois de escorrida a água são colocados em escabeche, ou

seja, curtidos em vinagre, sal, alho e pimenta. Era muito comum consumir-se esta

planta, como acompanhamento de pratos de peixe, na Sexta-Feira Santa.

O consumo de peixe e carne

O peixe foi desde sempre, um alimento importante para os madeirenses,

sendo consumido cozido, assado, frito, salgado ou seco. A secagem de

várias espécies de peixe é uma actividade muito comum na ilha da Madeira,

nomeadamente em zonas piscatórias, como Câmara de Lobos, Caniçal e

Machico. A Ilha possui aliás uma fauna marítima muito variada e importante.

Contudo, pode afirmar-se que na gastronomia madeirense se destacam os

pratos confeccionados com o atum, o peixe-espada, o gaiado, o chicharro,

a cavala, a gata, o bodião e o pargo. Entre os mariscos, destacam-se as

lapas (grelhadas ou em escabeche) e os caramujos, petiscos tradicionais

muito apreciados. O arroz de lapas constitui um prato típico da gastronomia

madeirense.

As carnes (galinha, cabrito, carneiro, porco, vaca), nas zonas rurais,

faziam e fazem parte da alimentação festiva e constituíram durante muito

tempo privilégio de alguns. A espetada tradicional (carne de vaca cortada

aos cubos, temperada com sal, louro e alho e assada em espeto de louro)

constituía a refeição dos romeiros, sempre presente nos arraiais, a que nos

referiremos mais à frente, constituindo hoje um dos pratos principais da

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gastronomia madeirense. A carne de porco e derivados, conservados usando

diferentes processos, era também consumida, destacando-se a carne de

vinha-d’alhos que constitui, também, um prato típico, confeccionado,

tradicionalmente, na época natalícia.

A natureza da mesa madeirense: factores económicos, sociais e

culturais

A mesa madeirense popular foi, no entanto, sempre simples, situação que era apenas

quebrada nos momentos festivos, nomeadamente no Natal e noutros dias santos.

Esta frugalidade está associada a motivações naturalmente, económicas que são

obviamente preponderantes, mas também a factores sócio-culturais muito curiosos.

Com efeito, os alimentos eram alvo de preconceitos, conferindo-se-lhes um valor

social, o que traduz a mentalidade de uma época. Os tratados de culinária do século

XVI recordavam que a “superioridade” da camada mais requintada da sociedade

dependia, pelo menos em parte, do seu modo de alimentação. Acreditava-se que

quem consumia carnes de aves e carnes delicadas, como a de vitela ou carneiro,

possuía uma inteligência e sensibilidade superior à dos que se alimentavam de carne

de vaca e de porco e que tinham necessidade de uma alimentação mais fortificante.

As classes trabalhadoras podiam consumir um pouco de carne, mas considerava-se

que gozavam de melhor saúde, comendo grandes quantidades de legumes.