GÊNERO LITERÁRIO E MORALIDADE FILOSÓFICA N’O SANTO E A PORCA DE

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  • Pontifcia Universidade Catlica de Gois PUC

    Departamento de Letras

    Mestrado em Letras Literatura e Crtica Literria

    GNERO LITERRIO E MORALIDADE FILOSFICA NO SANTO E A PORCA DE ARIANO SUASSUNA

    Goinia, 2011

    Maria Lourena Ferreira de Bastos

  • GNERO LITERRIO E MORALIDADE FILOSFICA NO SANTO E A PORCA DE ARIANO SUASSUNA

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps - graduao do Departamento de Letras Mestrado em Letras: Literatura e Crtica Literria da Pontifcia Universidade Catlica de Gois como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre

    Orientadora: Profa. Dra. Albertina Vicentini

    Goinia, 2011

  • Agradecimentos

    Agradeo a todas as pessoas que, de certa forma, possibilitaram a realizao

    deste estudo, em especial Profa Albertina Vicentini que acolheu e acreditou na

    minha proposta de estudo, e com muito profissionalismo me indicou caminhos,

    leituras e reflexes que possibilitaram o desenvolvimento desta pesquisa. Agradeo

    aos professores Maria Luiza Ferreira Labossire de Carvalho e Robson Corra de

    Camargo que, com muita dedicao fizeram leitura do meu trabalho, compuseram a

    banca de qualificao, oferecendo contribuies que engrandeceram a escrita final

    deste texto.

    Aos colegas de trabalho que contriburam com palavras de incentivo e apoio

    durante o perodo que estive de licena para aprimoramento e muito especial

    minha famlia pelo permanente apoio em todos os momentos de minha vida.

  • Resumo: Neste trabalho, observamos os aspectos sobre os quais grande parte da crtica do teatro de Ariano Suassuna chama a ateno: as repeties de seus personagens, histrias e textos, tanto no nvel intertextual (Plauto, Molire, Menandro, Gil Vicente, commedia dell'arte) quanto intratextual (auto-repetio). Como base para suas recriaes, o escritor repete tipos e situaes e isso lhe tem sido motivo de rduas crticas, que destacam tambm o emprego de recursos vulgares e grosseiros de comicidade e a criao de personagens sem sentido. Tais repeties so consideradas por Suassuna como tpicas de um processo clssico de recriao na comdia popular, em especial do Romanceiro Popular Nordestino, que comenta tambm que o mesmo processo, embora com outra medida, foi utilizado por dramaturgos clssicos, a exemplo de Molire e Goldoni. Nosso propsito foi apontar esses fatores de repetio incongruncias - como pertencentes no s cultura popular, que define a obra de Suassuna, como tambm ao gnero da farsa, cuja principal caracterstica a incoerncia de personagens e histrias, alm da ironia, que estabelece moralidades.

    Palavras chave: Crtica. Ariano Suassuna. Ironia. Farsa filosfica.

  • SUMRIO

    Introduo .......................................................................................................6

    Captulo I

    1.1 Apresentao do escritor Ariano Suassuna ......................................... 14

    1.2 Obras do escritor: intertextualidade e intratextualidade ................... 22

    Captulo II

    2.1.O Santo e a Porca: relao com Plauto, Gil Vicente, Molire, Commedia

    dellarte e Garcia Lorca .................................................................................39

    2.2 Elementos principais dO Santo e a Porca ......................................... 51

    Captulo III

    3.1 Teatro e forma de representao na comdia: Comdia na Idade

    Clssica..59

    3.2 O circo: picaresco..... 62

    3.3 O riso ...................................................................................................... 65

    3.4 A farsa e a moralidade existencial nO Santo e a Porca ......................74

    3.5 Humor e ironia ........................................................................................83

    Consideraes finais....................................................................................88

    Referncias....................................................................................................92

  • Introduo

    Tenho muito medo de livro de erudito. Livro de homem que leu tudo e sabe tudo e ento compe a sua obra reunindo todas aquelas sabedorias, costuradas com fio de seda; mas a gente sente logo que aquilo vem da cabea inventiva, no dos flancos criadores do homem; e em arte a gente no quer astcias intelectuais, mas vida pulsando, embora sem saber como pulsa e por que pulsa.

    Raquel de Queiroz

    Nosso interesse por este estudo teve incio ainda na poca da graduao em

    Letras, h vrios anos, poca que tambm iniciamos na atividade de professora de

    portugus/literatura na segunda fase do ensino fundamental. Naquela poca a ideia

    era trabalhar a obra de um escritor brasileiro que versasse sobre questes da

    estrutura social, em especial do Nordeste, talvez motivada por um estudo realizado

    sobre Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Com o passar dos tempos e a partir de

    novas experincias na sala de aula, passamos a nos interessar tambm pela cultura

    popular brasileira e, portanto, pela obra do escritor Ariano Suassuna.

    Lgia Vassalo (1988), ao falar sobre as marcas da oralidade portuguesa na

    literatura popular nordestina, afirmando ser o Nordeste uma regio de sobrevivncia

    do acervo cultural e social da Europa medieval (VASSALO, 1988 p, 50), observa

    que a presena dessa oralidade na regio se deve a vrios motivos, entre eles o de

    ser mais antiga regio de colonizao no pas; permanncia de isolamento da regio

    por longo tempo; encontro e cruzamento, permanente, de raas e culturas;

    organizao e estabilidade social semi-feudal de latifndio e patriarcalismo,

    possibilitando a permanncia, no local, das tradies herdadas em comunho com

    as histrias e costumes da populao da regio. (idem p. 50).

    O universo de criao do escritor paraibano Ariano Suassuna, nome que est

    ligado defesa das manifestaes populares nordestinas, em especial Literatura

    de Cordel, a partir da qual escreveu vrias obras, entre elas a pea O Santo e a

    Porca, publicada em 1957, objeto de nossa pesquisa, pode vir da influncia do

    contexto mencionado no pargrafo anterior.

  • Entre os grandes feitos do autor, que revelam seu interesse no conhecimento

    e desenvolvimento das maneiras de expresso da cultura popular, com a inteno

    de realizar uma arte erudita brasileira a partir da recriao dessa expresso,

    destacamos o grupo de teatro intitulado Teatro de Estudante de Pernambuco, de

    1946, e o Movimento Armorial, iniciado em 1970. O primeiro, como afirma Jos

    Laurenio de Melo em nota obra O Casamento Suspeito, tinha como proposta trs

    aspectos: levar o teatro ao povo - para isso as representaes ocorriam em praas

    pblicas, teatros suburbanos, centros operrios, ptios de igrejas etc.; instaurar

    entre os membros do grupo a compreenso da problemtica teatral, por meio no s

    do estudo das obras consagradas da dramaturgia universal, mas tambm da

    observao e pesquisa dos elementos constitutivos das vrias modalidades de

    espetculos populares da regio; e, por fim, estimular a criao de uma literatura

    dramtica de razes fincadas na realidade brasileira, particularmente nordestina

    (MELO, In: Suassuna, 2007, p.8-9)

    O segundo, o Movimento Armorial, lanado em outubro de 1970, com o

    concerto Trs Sculos da Msica Nordestina do Barroco ao Armorial e uma

    exposio de escultura, pintura e gravura, como o prprio autor revela, propunha

    estimular a Arte Armorial Brasileira, que teria como base comum a ligao com o

    esprito mgico dos folhetos do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de

    Cordel) com a msica de viola, rabeca ou pfano, que acompanha seus cantores, e

    com a xilogravura, reconhecida na ilustrao de capas das obras do autor. O

    Movimento tambm estava ligado ao esprito e a forma das Artes e espetculos

    populares do Romanceiro. (NOGUEIRA, 2002, p. 112).

    Na recriao da pea O Santo e a Porca, Suassuna aborda o tema da

    avareza e conta a histria do avarento Eurico, rabe, devoto de Santo Antnio, que

    vive em constantes sobressaltos, pois esconde, junto imagem do santo, na sala de

    sua casa, uma porca de madeira cheia do dinheiro que vem economizando h anos.

    A angstia de Eurico se intensifica a partir do momento em que recebe uma carta

    de Eudoro, um vivo, ex-noivo de sua irm Benona, na qual anuncia a sua inteno

    de roubar o seu mais precioso tesouro, que a filha, do que Eurico entende ser a

    porca. O efeito cmico vai se revelando medida que a carta lida, desencadeando

    uma srie de mal entendidos que passam a fazer parte de artimanhas recheadas de

  • astcias e manobras, todas comandadas por Caroba, espcie de governanta da

    casa, que as utiliza para tentar conseguir algum dinheiro, pois pretende se casar

    com Pinho, funcionrio de Eudoro. Ela percebe que poderia, ainda, tirar mais algum

    proveito dessas situaes equvocas, se articulasse o casamento de Dod, filho de

    Eudoro, com Margarida (to desejado por eles), e do prprio Eudoro com Benona,

    que tinham sido noivos no passado. Essas artimanhas do origem a outras que vo

    assim compondo o enredo principal: o do avarento que fica sem o dinheiro que trasia

    escondido junto imagem de Santo Antnio, pois com o passar do tempo esse

    dinheiro havia perdido o valor. Ao longo da histria, Eurico invoca e questiona

    Santo Antnio, e se mostra dividido: ora se apegando a ele, ora porca.

    Nosso interesse pelo estudo da obra de Suassuna reside, portanto, na

    inteno de desvendar um pouco do universo de sua criao, conforme a epgrafe

    de Raquel de Queiroz do incio desta introduo. Segundo ela, esse universo vem

    dos flancos criadores do homem; e em arte a gente no quer astcias intelectuais,

    mas vida pulsando, embora sem saber como pulsa e por que pulsa, referindo-se ao

    estilo literrio e ao processo de criao do escritor, nos comentrios que faz 9

    edio do romance dA Pedra do Reino (2007).

    A princpio, a obra O Santo e a Porca, que um texto curto, tambm nos

    pareceu bastante simples, passando a impresso de que no encontraramos

    elementos suficientes para um estudo mais amplo do processo de criao de

    Suassuna, o qual, entre outras questes, trata das inerentes ao contexto do homem

    nordestino. medida que fomos mergulhando no universo do escritor, e nas vrias

    teorias literrias e do teatro, fomos tomando conscincia da complexidade da obra e

    visualizando o que o prprio escritor afirma ao comentar o momento de produo

    teatral no pas, referindo-se aos meados e ltimas dcadas do sculo XX, mais

    propriamente a produo nordestina: estamos vivendo a poca elisabetana agora,

    estamos num tempo semelhante ao que produziu Molire, Gil Vicente, Shakespeare

    etc. (Suassuna, In: MAGALDI, 2001 p. 236). Nessa observao, Suassuna sinaliza

    perceber uma aproximao do teatro nordestino aos clssicos da literatura mundial,

    contexto em que se faz presente a pea O Santo e a Porca. (idem p. 236).

    na realidade brasileiro/nordestina, portanto, numa viso de mundo

    contemporneo, que Suassuna alia f catlica, o universo popular e por vez

  • dramtico, conhecido e vivenciado por ele, e tambm elementos e traos medievais

    para compor, assim, a base de seu processo de criao. Como afirma Magaldi,

    Suassuna:

    Funde () em seus trabalhos, duas tendncias que se desenvolvem quase sempre isoladas em outros autores, e consegue assim um enriquecimento maior da sua matria-prima. Alia o espontneo ao elaborado, o popular ao erudito, a linguagem comum ao estilo terso, o regional ao universal. (idem, 2001 p, 236)

    Da mesma forma observa Roberto Mesquita Ribeiro, na dissertao de

    mestrado Entre tica e esttica: o processo mimtico da Farsa da Boa Preguia,

    referindo-se a essa obra do escritor: trata-se de um texto (), com fortes acentos

    picos; um texto farsesco, mas portador de rupturas com a tradio da farsa;

    cmico, mas temperado por situaes um tanto srias. (RIBEIRO, 2007 p.11).

    Essas assertivas podem se aplicar obra objeto deste nosso estudo, pois O

    Santo e a Porca portadora de uma unidade, na qual esto presentes tanto

    elementos e traos da cultura popular - literatura de cordel quanto elementos e

    traos eruditos; trata-se de um texto construdo a partir de elementos da tradio

    popular nordestina, mas com razes eruditas, em especial as da Comdia Nova

    grega, uma vez que o escritor recria, maneira nordestina, a popularidade da

    personagem do avarento, bem como revela seu interesse em transpor para os dias

    atuais, para a realidade brasileira nordestina, a histria de Euclio: o debate ntimo

    de um indivduo entre os bens materiais e os espirituais, a presena da avareza

    como pecado e a possibilidade de resgate do pecado pelo despojamento de todas

    as amarras terrenas (Idem, p. 242). Da insero e explorao dessa temtica no

    contexto atual, o escritor trata da existncia humana, como afirma em nota 16

    edio da obra em 2007:

    O Santo e a Porca apresenta a traio que a vida, de uma forma ou de outra, termina fazendo a todos ns. A vida traio contnua. Traio nossa a Deus e aos seres que mais amamos. Traio dos acontecimentos a ns, dentro do absurdo de nossa condio, () a morte, por exemplo, no s no tem sentido como retira toda e qualquer possibilidade de sentido vida. desta traio que Eurico Arbe subitamente se apercebe, esta viso perturbadora e terrvel que lhe aponta os homens como escravos como escravos fundamentais e no s do ponto de vista social (), no fossem as preocupaes, a cegueira voluntria e involuntria, as distraes e divertimentos, a covardia, tudo enfim que nos ajuda a ir levando a vida enquanto a morte no chega e que faz desta aventura que se fosse sem Deus era sem sentido um aglomerado suportvel de cotidiano. (SUASSUNA, 2007 p, 23-24)

  • Segundo o escritor, ele se utilizou da condio da personagem Eurico de ser

    um estrangeiro, um rabe, tido no serto dos srios como rabes e turcos

    enraizados, para tratar da condio desterrada do homem: No temos aqui, cidade

    permanente, citando Hebreus 13,14. E, assim, por meio do conflito de Eurico

    diante da perda da porca de madeira recheada de dinheiro, seu bem mais valioso,

    perde-se tambm o sentido de toda sua vida, pois Eurico sacrificou toda sua

    existncia a ela. Suassuna, ento, fala dos absurdos e falta de sentido da vida sem

    Deus; trata dos conflitos existenciais do homem diante dos absurdos e perdas na

    vida. Ao encontrar-se nessa situao, Eurico sente se s, sem direo, sem motivo

    para viver, j que descobre de repente, esmagado, que, se Deus no existe, tudo

    absurdo. E, com essa descoberta, volta-se () para a nica sada existente em

    seu impasse, a humilde crena de sua mocidade, o caminho do santo, de Deus

    representado na obra pela figura de Santo Antnio, muito venerado, em especial, no

    Nordeste - do qual foi aos poucos desviado pela idolatria de adquirir bens

    materiais, e garantia de estabilidade, de segurana, de poder, de mundo (Idem

    p.25).

    O Santo e a Porca permeada de jogos de situaes e falas que remetem ao

    riso, ao humor, ironia, entre outros, a elementos da farsa e da moralidade, no

    somente social, mas tambm filosfica. O foco de nosso estudo recai sobre esses

    elementos, que procuramos observar a partir dos intertextos e intratextos presentes

    na obra e da insero da temtica no contexto nordestino brasileiro.

    Nosso estudo est dividido em trs captulos que tentamos interligar por meio

    da relao entre os elementos presentes nos gneros mencionados, bem como na

    relao com a temtica da avareza, trabalhada em outras pocas e abordada por

    Suassuna na atualidade.

    Para contextualizar o universo de criao do escritor, desenvolvemos no

    Captulo I uma apresentao do escritor com a insero de reflexes de alguns

    crticos a respeito das relaes entre suas fases de criao e os acontecimentos que

    marcaram sua vida pessoal e como esses acontecimentos parecem presentes na

    sua criao, bem como alguns apontamentos e estudos realizados por crticos que

    analisaram tanto o processo de composio das obras do escritor, consideradas

  • relevantes, quanto os aspectos que tm provocado questionamentos, polmicas e

    crticas. Focalizamos, tambm, neste captulo, os traos e elementos que

    evidenciam a presena de intertextualidade e intratextualidade, caracterstica

    marcante do escritor, no seu processo de construo das obras. Para anlise e

    observao desse aspecto na pea objeto de nosso estudo, tomamos como

    referncia os tericos Michael Bakhtin e Jlia Kristeva. So atribudas ao primeiro as

    reflexes iniciais sobre intertextualidade como conceito de teoria e crtica literria,

    portanto a ideia de influncia e apropriao de elementos e sentidos de um texto por

    outro, postulado pelo terico como dialogismo. Aps, discutimos as reflexes

    retomadas posteriormente por Kristeva na concepo da intertextualidade.

    No Captulo II, observamos especificamente a pea O Santo e a Porca.

    Nessa observao, procuramos identificar a relao existente entre essa obra de

    Suassuna e a pea Aululria do dramaturgo Plauto, por meio do intertexto, pois,

    como afirma o escritor, aquela seria uma adaptao da pea do dramaturgo latino,

    ou seja, Suassuna resgata o tema da avareza e o insere no contexto nordestino

    brasileiro. Segundo Magaldi, dois motivos so considerados decisivos no interesse

    do escritor pela obra de Plauto: seria a popularidade da personagem do avarento,

    (MAGALDI, 2001, p. 242), que, ao longo dos tempos, tem sido uma constante na

    sociedade, embora seu interesse maior parea se debruar sobre a possibilidade de

    transpor para os nossos dias a histria de Euclio, que evoca uma reflexo a

    respeito do debate ntimo de um indivduo entre os bens materiais e os espirituais,

    em que a avareza percebida como pecado e a possibilidade de resgate do

    pecador pelo despojamento de todas as amarras terrenas (Idem p. 242). A partir

    dessa reescrita, Suassuna trata da moralidade e da farsa, como observa Magaldi, ao

    sabor, ou seja, maneira nordestina.

    Enquanto em Aululria Euclio encontra uma panela de ouro que teria sido

    enterrada no quintal de sua casa pelo av e junta essa histria do casamento da

    filha da personagem com um senhor bem mais velho, mas muito rico, e esses dois

    fatos desencadeiam todo o enredo central do texto, recheados de artimanhas e

    manobras, na recriao da temtica no universo nordestino Suassuna alia

    literatura popular - de cordel - elementos e traos medievais, tecendo um enredo

    que tem sido apontado por crticos como mais complicado e criativo. Nessa releitura,

  • o escritor compe situaes, cenas e falas que provocam o riso, o humor, mas com

    certa dose de inteno nas indicaes e reflexes que permeiam a obra, chamando

    a ateno para o roteiro de um dos homens mais marcados pelo esprito do mal, at

    a salvao (MAGALDI, 2001 p.242), representando, assim, todos os homens na sua

    liberdade de escolha. Suassuna parece evidenciar uma tendncia ao existencialismo

    cristo, pois trabalha a personagem de Eurico no sentido de que este, ao deparar

    com a perda total, encontra-se entre duas possibilidades: evoluir, percebendo que o

    dinheiro, que a princpio representava sua nica possibilidade de vida, era na

    verdade apenas uma distrao, um meio e no a finalidade de sua existncia; ou

    permanecer na iluso, na condio de cidade permanente (idem p.242), sem

    entender o que aconteceu e sem possibilidade de escolha.

    No captulo III fazemos um breve percurso de observao da histria da

    comdia, desde as consideradas primeiras manifestaes teatrais surgidas na

    Grcia, passando por seus vrios momentos ao longo dos tempos, at os dias atuais

    e seu significado e relao com a vida, com o contexto poltico-social de cada poca.

    Observamos a relao entre comdia, riso, humor, ironia, farsa e moralidade

    filosfica presente na pea O Santo e a Porca, bem como a relao desses

    elementos com os presentes na Commedia dellArte e na obra de outros

    dramaturgos de diferentes pocas, como Plauto, Molire, Gil Vicente entre outros.

    Nessa observao, embasamo-nos nas concepes e teorias de: Aristteles em Arte

    Potica (2006) e A Potica Clssica (2005), de Vilma Aras em Iniciao Comdia

    (1990), de Mikhail Bakhtin em A Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento:

    o contexto de Franois Rabelais (2008), de Henri Bergson em O riso (1980), de

    Georges Minois em Histria do Riso e do Escrnio (2003), e Wladimir Propp em

    Comicidade e riso (1992), entre outros.

    Por meio dos jogos de situaes, falas e gestos presentes em O Santo e a

    Porca, tentamos observar os pontos comuns entre comdia, riso, humor e ironia e

    de que forma se apresentam na farsa e na moralidade e que funo desempenham

    na convivncia social em diferentes pocas e contextos. Observaes essas que

    nos permitem tambm identificar comportamentos relacionados ao avaro, aos vcios

    e s transgresses como alternativas de sobrevivncia. Para isso, focalizamos a

  • personagem Eurico como referncia, para tentar compreender, por meio da histria

    e comportamento da personagem e seus desencadeamentos em determinado

    contexto, a relao desse tipo: Eurico, personagens e contexto de outras pocas,

    portanto, em aspectos universais.

  • Captulo I

    1.1 Apresentao do escritor Ariano Suassuna

    Ariano Suassuna, considerado um dos maiores defensores dos produtos

    nacionais, das manifestaes populares, em especial da Literatura de Cordel, oitavo

    dos nove filhos de Joo Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna e Rita de Cssia

    Dantas Villar, nasceu em 1927, em Joo Pessoa capital da Paraba, poca em que

    seu pai era governador do Estado. Devido aos conflitos polticos que resultaram no

    assassinato do pai, Suassuna, ainda criana, muda-se com a me para Tapero,

    interior do estado, regio de origem de seus familiares e onde permaneceu at os

    quinze anos. Esse perodo que viveu no serto o favoreceu a assimilar mais

    intensamente as tradies e costumes sertanejos, que j eram tradio de famlia,

    como ele prprio assinala, favorecendo, assim, que o escritor construsse seu

    universo ficcional.

    Os primeiros estudos de Suassuna ocorreram em Tapero, no perodo de

    1934 a 1937, com os professores Emdio Diniz e Alice Dias. Foi nesse perodo que

    ele teve suas primeiras experincias nas caadas e expedies nas fazendas So

    Pedro, Saco, Panati e Malhada da Ona, experincias presentes no imaginrio

    literrio do escritor e nas constantes referncias a esses locais. Nessa poca,

    tambm em Tapero, ele ouve pela primeira vez um desafio de viola, e v uma pea

    de mamulengo - o teatro nordestino de tteres - (SUASSUNA, 2007, p. 19).

    No perodo de 1938 a 1941, poca em que ainda vivia no interior, Suassuna

    teve como mestre de literatura seus prprios tios, Manuel Dantas Villar, que era

    considerado meio ateu, republicano e anticlerical, e Joaquim Duarte Dantas, tido

    como monarquista e catlico. Entre as leituras sugeridas pelo primeiro estariam Ea

    de Queiroz, Guerra Junqueiro e Euclides da Cunha; pelo segundo, Antero de

    Figueiredo (Dom Sebastio). Ainda, nessa poca, leu Doidinho, de Jos Lins do

    Rego, obra comprada em Campina Grande PB, por outro tio, Antnio Dantas Villar.

    (Idem, 2007, p. 20).

    Em 1942, a famlia Suassuna muda-se para Recife, onde os irmos mais

    velhos do escritor j estudavam. Ariano vai estudar no Colgio Estadual de

    Pernambuco, quando tem os primeiros contatos com a msica erudita e a pintura.

  • Em 1945, aos 18 anos e j no Colgio Oswaldo Cruz, Suassuna publica seu

    primeiro poema intitulado Noturno, de caractersticas ainda simbolistas:

    Tm para mim Chamados de outro mundo as Noites perigosas e queimadas, quando a Lua aparece mais vermelha So turvos sonhos, Mgoas proibidas, so Ouropis antigos e fantasmas que, nesse Mundo vivo e mais ardente consumam tudo o que desejo Aqui. Ser que mais Algum v e escuta?

    Sinto o roar das asas Amarelas e escuto essas Canes encantatrias que tento, em vo, de mim desapossar.

    Diludos na velha Luz da lua, a Quem dirigem seus terrveis cantos?

    Pressinto um murmuroso esvoejar: passaram-me por cima da cabea e, como um Halo escuso, te envolveram. Eis-te no fogo, como um Fruto ardente, a ventania me agitando em torno esse cheiro que sai de teus cabelos.

    Que vale a natureza sem teus Olhos, Aquela por quem meu Sangue pulsa?

    Da terra sai um cheiro bom de vida e nossos ps a Ela esto ligados. Deixa que teu cabelo, solto ao vento, abrase fundamente as minhas mos...

    Mas, no: a luz Escura inda te envolve, o vento encrespa as guas dos dois rios e continua a ronda, o Som do fogo.

    meu amor, por que te ligo Morte?

    Este poema a verso publicada, em 1945, no suplemento do Jornal do

    Comrcio. Segundo registros, essa primeira publicao foi proposta pelo professor

    de Suassuna, poca Tadeu Rocha, que o encaminhou ao editor do suplemento

    Esmaragdo Maroquim. H outra verso, de 1950, que apresenta algumas

    modificaes em relao de 1945.

    Mas na Faculdade de Direito, na qual entra em 1946, que Suassuna tem

    contato com pessoas interessadas em arte e literatura, convivendo com pintores,

    atores, poetas e romancistas. Sob influncia de grandes clssicos e juntamente com

    um grupo de escritores e artistas locais, funda o Teatro do Estudante de

  • Pernambuco. Essa proposta seguiria em trs grandes direes: levar o teatro ao

    povo, para o que as apresentaes ocorriam em praas pblicas, centros operrios,

    ptios de igrejas e outros; propiciar aos integrantes do grupo a conscincia da

    problemtica teatral, a partir de estudos da dramaturgia universal, bem como da

    pesquisa e observao dos elementos que compunham as modalidades de

    espetculos populares da regio; por fim favorecer a criao de uma literatura

    dramtica brasileira, de razes nordestinas. Segundo pesquisas, esse grupo teatral

    montou, alm de peas de Sfocles, Shakespeare, passando por Tchecov, Ramon

    Sender at Garcia Lorca, tambm peas originais brasileiras.

    O TEP estimulou, fundou e encenou as primeiras manifestaes de uma dramaturgia nordestina, que representa o que nossa tradio, nossos contos e mitos, nosso romanceiro e nosso esprito populares tm de mais verdadeiro e profundo. Embora tendo o teatro como atividade bsica, realizou, sem dinheiro nem apoio, um movimento artstico completo, total, que lanou quase todas as artes, sendo escola de autores, encenadores, cengrafos, mas tambm de pintores, msicos, poetas, novelistas, estudiosos das tradies e artes do povo; criou uma editora e lanou livros. (Borba Filho, In: SANTOS, 1999, p.40).

    No perodo de 1946 a 1948, Suassuna publica seus primeiros poemas ligados

    ao romanceiro popular do nordeste na Revista Estudantes da Faculdade de Direito,

    no Jornal do Diretrio Acadmico de Medicina e em suplementos de jornais de

    Recife. Tambm nessa poca, baseando-se no mesmo romanceiro popular do

    nordeste, escreve sua primeira pea, Uma Mulher Vestida de Sol.

    Em 1948, Suassuna escreve a pea em um ato O Desertor de Princesa e, em

    1949, a pea Os Homens de Barro, em trs atos.

    Em 1950, com a pea Auto de Joo da Cruz, inspirada em folhetos da

    literatura de cordel, recebe o Prmio Martins Pena. Neste ano, forma-se em Direito

    pela Faculdade de Direito da atual Universidade Federal de Pernambuco e tambm

    retorna para Tapero, regio onde passou a infncia, para se tratar de uma doena

    de pulmo. Durante o perodo que passou em Tapero, escreve e monta,

    acompanhado por um terno-de-pfanos (pequeno grupo instrumental) de Seu Manuel

    Campina, a pea para mamulengos Torturas de um corao, ou em Boca fechada

    no entra mosquito. Essa pea seria re-escrita em prosa por volta de 1959,

    recebendo o ttulo de A inconvenincia de ter coragem, incorporada como primeiro

    ato da obra definitiva A Pena e a Lei.

  • O escritor retorna para Recife em 1952, ano em que escreve a pea O Arco

    Desolado, recebendo meno honrosa no Concurso do IV Centenrio da Cidade de

    So Paulo. Em 1953 e 1954, escreve, respectivamente, as peas O Castigo da

    Soberba e O Rico Avarento, ambas em um ato: a primeira baseada em um folheto

    de cordel e a segunda, em uma pea popular tradicional de mamulengo. Em 1955,

    escreve O Auto da Compadecida.

    Em 1956, ano em que escreve o romance A Histria do Amor de Fernando e

    Isaura, Suassuna deixa a advocacia, tornando-se professor de Esttica da

    Universidade Federal de Pernambuco e escreve o Manual de Esttica, publicado

    pelo diretrio da Faculdade de Filosofia. No ano seguinte, casa-se com Zlia de

    Andrade Lima, com quem tem seis filhos. Ainda nesse mesmo ano de 1957,

    escreve as peas O Casamento Suspeito e O Santo e a Porca (esta ltima, objeto

    de nossa pesquisa), que recebe a medalha de ouro da Associao Paulista de

    Crticos Teatrais.

    Em 1958, Suassuna escreve O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna e,

    neste ano, O Auto da Compadecida recebe a medalha de ouro da Associao

    Paulista de Crticos Teatrais. Ariano considerado, pela Secretaria de Educao e

    Cultura da Prefeitura do Distrito Federal (Rio de Janeiro), o melhor autor nacional de

    comdia. Tambm neste mesmo ano recebe dois prmios conferidos pela

    Associao de Cronistas Teatrais de Pernambuco.

    Em 1959, escreve a pea em trs atos A Pena e a Lei (que, na verdade, tem

    como parte a re-escrita de uma outra pea escrita em 1951), e recebe, pela segunda

    vez, concedidas pela Associao de Cronistas Teatrais de Pernambuco, as

    premiaes que havia recebido no ano anterior. A pea O Auto da Compadecida

    traduzida pela revista polonesa Dialog, Rok IV, Pazdiernik nr. com o ttulo Histria o

    Milosiernej Czyli Testament Psa.

    As peas A Farsa da Boa Preguia, em trs atos, e A caseira e a Catarina,

    em um ato, so escritas, respectivamente, em 1960 e 1962.

    Em 1963, a University of Califrnia Press publica uma traduo que verso

    em ingls de O Auto da Compadecida e, em 1964, as peas Uma Mulher Vestida de

    Sol e O Santo e a Porca so publicadas pela Universidade Federal de Pernambuco,

    saindo tambm uma traduo holandesa dO Auto da Compadecida.

  • Em 1966, a pea O Santo e a Porca publicada na Argentina. No ano

    seguinte, Suassuna torna-se membro fundador do Conselho Estadual de Cultura,

    atuando at 1973.

    Suassuna, que sempre foi interessado no desenvolvimento e conhecimento

    das maneiras de expresso populares, e com a inteno de realizar uma arte erudita

    brasileira, como ele prprio afirma: Buscando realizar uma arte erudita brasileira a

    partir das razes populares da nossa cultura, iniciou, no Recife, o Movimento

    Armorial, lanado em outubro de 1970, com o concerto Trs Sculos da Msica

    Nordestina do Barroco ao Armorial e uma exposio de escultura, pintura e gravura.

    Como o prprio escritor revela, propunha estimular a Arte Armorial Brasileira que

    tem como base comum a ligao com o esprito mgico dos folhetos do

    Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a msica de viola,

    rabeca ou pfano que acompanham seus cantores, e com a xilogravura,

    reconhecida na ilustrao de capa das obras do escritor. O Movimento tambm

    estava ligado ao esprito e forma das Artes e espetculos populares do

    Romanceiro. (NOGUEIRA, 2002, p.112).

    No programa de lanamento do evento, Suassuna afirmou que:

    Em nosso idioma, armorial somente substantivo. Passei a empreg-lo tambm como adjetivo. Primeiro, porque um belo nome. Depois, porque ligado aos esmaltes da Herldica, limpos, ntidos, pintados sobre metais fabulosos, cercados por folhagens, sis, luas e estrelas. Foi a que, meio brincando, comecei a dizer que tal poema ou tal estandarte de Cavalhada era armorial, isto , brilhava em esmaltes puros, festivos, ntidos, metlicos e coloridos, como uma bandeira, um braso ou um toque de clarim. Lembrei-me, a, tambm, das pedras armoriais dos portes e frontadas do Barroco brasileiro, e passei a estender o nome Escultura com a qual sonhava para o Nordeste. Descobri que o nome armorial servia, ainda, para qualificar os cantares do Romanceiro, os toques de viola e rabecas dos Cantadores toques speros, arcaicos, acerados como gumes de faca-de-ponta, lembrando o clavicrdio e a viola-de-arco da nossa msica barroca do sculo XVIII. () A unidade nacional vem do Povo, e a Herldica popular est presente, nele, desde os ferros-de-marcar-bois e os autos dos guerreiros do Serto, at as bandeiras das Cavalhadas e as cores azuis e vermelhas dos Pastoris da Zona da Mata. Desde os estandartes de Maracatu e Caboclinhos, at as Escolas de Samba, as camisas e as bandeiras dos Clubes de futebol. (Suassuna, In: NOGUEIRA, 2002, p. 112).

  • Para o escritor, portanto, o nacionalismo no se apresenta como uma

    exaltao unanimista e nostlgica, mas como fonte de busca da diferena, da

    multiplicidade cultural.

    Sobre o Armorial, escreveu Santos (1999, p.13) que se trata de uma palavra

    sonora que evoca brases e emblemas, palavra um pouco misteriosa que provoca

    estranhamento e chama a ateno. H registro de que esse movimento, por suas

    peculiaridades e localizao regional precisa, e pela caracterstica que seus

    integrantes afirmavam e assumiram de ser essencialmente nordestinos, a princpio

    passou a ser compreendido como uma espcie de ressurgimento do esprito do

    Recife . Ao longo dos anos passou por diferentes fases e, a cada uma, ressurgia

    com um novo nome, a exemplo de Movimento Regionalista e Tradicionalista de

    1926. No entanto, Santos afirma que:

    A referncia obra popular constitui o cimento do Movimento Armorial e lhe confere identidade na histria da cultura brasileira. Orienta a pesquisa e condiciona a criao. Contudo no poderia ser exclusiva nem primordial o movimento no rene artistas populares, mas artistas cultos que recorrem obra popular como a um material, que procuram recriar e transformar segundo modos de expresso e comunicao pertencentes a outras prticas artsticas. Esta dimenso culta e at erudita manifesta-se tanto na reflexo terica, desenvolvida em paralelo criao, como na multiplicidade das referncias culturais. (SANTOS, 1999, p. 286).

    Portanto, pesquisas, a exemplo das de Santos (1999), postulam que o

    Movimento Armorial revela sua prpria originalidade e que os motivos de sua

    existncia so revelados a partir de obras, de encontros e intercmbios entre

    artistas, caractersticas que o tornam singular em busca de sua identidade na

    cultura brasileira:

    Entre popular e letrado, entre oral e escrito, o Movimento Armorial desempenhou, na cultura brasileira, um papel original e talvez nico. Reunir poetas e gravadores, msicos e escritores, pintores e homens de teatro, ceramistas e bailarinos num projeto cultural, num movimento, por menos codificado e formalista que seja, que parece um desafio no Brasil, onde a originalidade da criao artstica e sua singularidade so consideradas dogmas. (SANTOS,1999, p.21).

    A experincia de recriao de uma potica popular que levou descoberta do

    Movimento Armorial, bem como de sua posio na relao oral/escrito e

  • popular/letrado, segundo Santos, no se encontra balizada pelos marcos de uma

    metodologia segura e experimentada. Pois, na verdade, essa metodologia foi

    tambm construda a partir de um trabalho de investigao crtica da literatura oral e

    popular, que forneceu a base para a elaborao do movimento.

    Nesse perodo de lanamento do Movimento, Suassuna publica,

    respectivamente em 1971 e 1974, pela Editora Jos Olympio, o romance dA Pedra

    do Reino e o Prncipe do Sangue do Vai-e-Volta ( primeiro captulo do romance dA

    Pedra do Reino), A Farsa da Boa Preguia e Seleta em Prosa e Versos, com

    poemas, teatro, contos e ensaios. A partir dessa poca, o escritor passa a ocupar

    vrios cargos ligados cultura.

    Merece destaque, tambm dessa poca, o poema que Suassuna escreveu

    em 1974, em homenagem ao pai, figura muito presente nos seus comentrios,

    entrevistas e escrita no geral. Santos (1999, p. 94) observa que, no segundo volume

    do romance dA Pedra do Reino, o escritor comete sutis deslizes narrativos e

    bruscamente as lembranas do menino de trs anos invadem a fala do narrador na

    evocao dos raros momentos vividos ao lado do pai, assassinado em 1930.; o

    prprio escritor, ao comentar o exerccio de escrita do romance faz constantes

    referncias ao pai. Transcrevemos, aqui, o poema que Suassuna escreveu em sua

    homenagem.

    Fazenda Acauban (Lembranas de Meu Pai)

    Aqui morava um Rei, quando eu menino vestia ouro e Castanho no gibo. Pedra da Sorte sobre o meu Destino, Pulsava, junto do meu, seu Corao.

    Para mim, seu Cantar era divino Quando, ao Som da Viola e do bordo, Cantava com voz rouca, o Desatino, o Sangue, o riso e as mortes do Serto.

    Mas mataram meu Pai. Desde esse dia eu me vi como um Cego, sem meu Guia, que se foi para o Sol, transfigurado.

    Sua efgie me queima. Eu sou a presa, ele a brasa que impele ao Fogo, acesa, Espada de ouro em Pasto ensanguentado.

    (SUASSUNA, p 99, 1974)

  • Em 1990, morre a me de Suassuna: figura sempre destacada, nos

    depoimentos/comentrios do escritor como smbolo de fora, coragem e

    determinao, a exemplo da passagem sobre a atitude da me aps o assassinato

    do pai, para evitar que os filhos percebessem o perigo que rondava a casa: nas

    vezes em que sua casa se encontrava cercada pela polcia, ela obrigava os filhos a

    cantarem o Hino de Princesa, sob o comando do irmo mais velho ao piano.

    Aquelas estranhas palavras que queimavam o vento assassino de Trinta cercavam nossa casa, com gritos, ameaas e cnticos cheios de dio: Joo Dantas tinha matado o Presidente Joo Pessoa, longe, no Recife, e aquela multido queria se vingar disso matando minha Me, Tia Filipa e os cachorros de Pedro Justino Quaderna [] Ouo as notas clarinadas do canto enfurecido da Vassourinha, notas que corporificavam, para ns, o perigo, o fogo, a ameaa e o dio da multido. Parece que ainda estou ouvindo a voz amada de minha Me dizer para meu irmo mais velho: - Esses miserveis pensam que vamos nos humilhar? Manuel, meu filho, puxe a o canto: para mostrar a essa gente quem somos ns e quem seu Pai, vamos todos cantar o hino do Serto, o Hino de Princesa! Eu estava assombrado, sem entender bem o que era aquilo, mas cantei com meus outros irmos, a plenos pulmes [] (SUASSUNA/ORD, 121, apud SANTOS, 1999, p. 101).

    Ainda a respeito da determinao e fortaleza da me, Suassuna revela que

    essas caractersticas foram trabalhadas em personagens femininos de sua obra, a

    exemplo da tia Filipa de A Pedra do Reino, Rosa de Uma Mulher Vestida de Sol e

    Nossa Senhora dO Auto da Compadecida. Nesse mesmo ano de falecimento da

    me, Suassuna foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, aposentando-se

    como professor da Universidade Federal de Pernambuco em 1994. A partir dessa

    poca, continua em contato com estudantes, com as aulas-espetculos, inventadas

    por ele.

    Em 1999, foi publicado, pela Editora da Universidade Federal de

    Pernambuco, o volume Poemas, obra que rene uma coletnea de trabalhos de

    Suassuna, que, at aquele momento, eram praticamente desconhecidos do pblico -

    apenas alguns amigos do escritor sabiam e j havia tido contato com parte dessas

    produes. O material, no entanto, foi e considerado to importante quanto as

    demais peas e romances, uma vez que na poesia de Suassuna, como afirma

    Jos Laurenio de Melo em nota obra O Casamento Suspeito (p.12, 2008), que de

    fato reside talvez o ncleo de tudo mais . Isso porque, sua poesia, observada no

  • conjunto, considerada como uma complexa narrativa mtico-dramtica balizada

    pelo dilogo com poetas antigos e modernos, eruditos e populares, num arco que se

    estende de Homero e Dante a Manuel Bandeira e ao cantador Manuel de Lira

    Flores. (MELO, In: SUASSUNA, 2008, p.12).

    Em outubro de 2000, precisamente no dia 09, quando completa 70 anos da

    morte do pai, Suassuna toma posse na Academia Paraibana de Letras. Nesse

    mesmo ano, tambm recebe da Universidade Federal do Rio Grande do Norte o

    ttulo de doutor Honoris causa e estreia no cinema uma adaptao da pea O Auto

    da Compadecida.

    1.2 Obras do escritor: intertextualidade e intratextualidade

    Conforme o E- Dicionrio de termos literrios, a palavra intertextualidade traz

    consigo, na sua prpria constituio, o significado de relao entre textos. Isso,

    desde que o texto seja tomado em um sentido amplo, como um recorte significativo

    feito no processo ininterrupto de semiose cultural (), na ampla rede de

    significaes dos bens culturais, pode-se afirmar que a intertextualidade inerente

    produo humana. (E- Dicionrio. Carlos Ceia).

    O dilogo entre textos, em que um, sob influncia do outro, apropria-se de

    elementos discursivos e sentidos deste, incorporando esses recursos ou

    transformando-os, nos remete ideia de dialogismo postulada por Bakhtin e

    posteriormente retomada por Kristeva sob a abordagem de intertextualidade. Apesar

    de este conceito estar ligado ao nome de Kristeva, estudos vinculam a Bakhtin as

    primeiras reflexes sobre intertextualidade como conceito de teoria e crtica literria,

    uma vez que sua concepo de linguagem se encontra alicerada na

    intertextualidade, conforme comentrios de Barros e Fiorin:

    Em resumo, Bakhtin concebe o dialogismo como o princpio constitutivo da linguagem e a condio do sentido do discurso. Examina-se, em primeiro lugar, o dialogismo discursivo, desdobrando em dois aspectos: o da interao verbal entre o enunciador e o enunciatrio do texto, o da intertextualidade no interior do discurso. (BARROS e FIORIN, 1999, p.2).

  • Podemos inferir que a intertextualidade na abordagem bakhtiniana a das

    vozes que dialogam e problematizam-se no interior do texto e, assim, expandem-se

    a outros textos. Em relao obra literria, o terico afirma que a palavra no pode

    ser considerada de forma isolada, pois ela carrega as interaes, as relaes que se

    estabelecem nas superfcies textuais, ou seja, onde se encontram em dilogo

    vrias obras: a do contexto em questo, a atual, e a de contextos anteriores.

    Camargo (2009), ao falar sobre o texto espetacular e o palimpsesto, no artigo

    A Pantomima e o teatro de feira na formao do espetculo, observa que:

    Palimpsesto um conceito que tem sido utilizado, principalmente na anlise literria, para evidenciar assim possveis textos contidos, citados, parodiados, plagiados, imitados em um texto principal de anlise, revelado pelo olhar analtico do crtico. Mais um procedimento metafrico descobrindo relaes com o texto evidente, revelado pela crtica. (CAMARGO, 2009, p. 4).

    A partir desse conceito, o pesquisador faz uma reflexo sobre o encontro e

    cruzamento de textos durante a encenao, representao teatral, uma vez que,

    segundo ele o tablado, a cena, o meio que os carrega e os exibe, em seus vrios

    e diferentes textos, num dilogo de imagens ideia que, embora carregada de outros

    elementos que a torna mais complexa, tambm remete ao dialogismo de Bakhtin,

    intertextualidade. Neste dilogo complexo apontado pelo pesquisador, entram em

    cena, alm do texto verbal/escrito, vrios outros como:

    () o texto do cenrio, dos gestos, dos figurinos, das msicas, da iluminao, textos que conformam outras unidades que so, ao mesmo tempo, semiautnomas e semifechadas no complexo espetacular, pois existem apenas em sua mltipla relao espetacular, no existem em si, mas se revelam pelos traos justapostos tecidos pela crtica, pelos produtores, pela audincia ou pelo encontro ocorrido. (idem p. 5).

    Genette, ao teorizar sobre a prtica (considerada medieval) do palimpsesto,

    que consiste na escrita de um texto sobre outro, expande essa ideia afirmando que

    no sentido figurado, entendemos por palimpsestos todas as obras derivadas de

    uma obra anterior, por transformao ou por imitao j que nas relaes

    cumulativas encontra-se tudo aquilo que coloca um texto em relao manifesta ou

    secreta com outros textos (1982, p. 12), evocando assim a intertextualidade.

  • Tambm para Schneider:

    O texto literrio um palimpsesto. O autor antigo escreveu uma primeira vez, depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a pgina com um novo texto, e assim por diante. Textos primeiros inexistem tanto quanto as puras cpias; o apagar no nunca to acabado que no deixe vestgios, a inveno, nunca to nova que no se apie sobre o j-escrito. (SCHNEIDER, 1990, p.17, apud E- Dicionrio. Carlos Ceia).

    Como observam os tericos, a intertextualidade inerente produo do

    texto, em especial o literrio, bem como na recepo deste, uma vez que o leitor e a

    literatura, o literato se valem, consciente ou inconscientemente, desse recurso

    intertextual nesses dois momentos.

    , portanto, luz das afirmaes desses tericos a respeito do dilogo entre

    textos que passamos a observar a intertextualidade na obra do escritor Ariano

    Suassuna, que, ao comentar sobre seu processo de criao, confessa a apropriao

    e a re-escrita de diferentes produes, indo dos folhetos de cordel aos clssicos

    ibricos medievais. Em determinados casos, em que o escritor se vale dessa

    apropriao para re-elaborao/re-escrita e construo de seu texto, a

    intertextualidade torna-se explicita, pelas recorrentes repeties em diferentes

    publicaes (intratextualidade) de situaes e tipos. Motivo pelo qual tem sido alvo

    de duras crticas que comentaremos mais adiante.

    Para nossa observao desse processo de construo, partiremos da pea

    Uma Mulher Vestida de Sol, escrita em 1945, por ser esta tida como a primeira

    tentativa de Suassuna de re-escrita do Romanceiro Popular Nordestino e incio de

    sua carreira no teatro. Para Hermilo Borba Filho, com essa pea Suassuna chegava:

    () para comprovar tudo aquilo que pregvamos e, se para nada mais tivesse servido o TEP, teria servido para revelar um autor de caractersticas universais como ele. Escrevi, naquela poca: Tenho a impresso de que o Nordeste encontrou em Ariano Suassuna o seu poeta dramtico mais capacitado para transformar em termos de teatro os seus conflitos e as suas tragdias. O futuro, j agora presente, confirmou tudo. (BORBA FILHO, apud SUASSUNA 2006, p. 18).

    Segundo Suassuna, a escrita da pea teve como base o romance popular do

    serto de Jos de Souza Leo. Ele conhecia esse romance em duas verses,

  • escolhendo a que ouviu quando ainda pequeno em Tapero, uma verso simples e

    trgica, que conta a histria de um coronel, enciumado do amor da filha por Jos de

    Souza Leo, mata-o, sendo por sua vez morto pelo pai do heri. uma das histrias

    que se cantam nas feiras, cada uma delas um esboo de drama. (FILHO, apud

    SUASSUNA, 2006 p. 19). Ele buscou preservar, na pea, o que h de eterno, de

    universal e de potico no nosso riqussimo cancioneiro onde h obras-primas de

    poesia pica, ou seja, a fase conhecida por pastoreio. Assim, Suassuna pde ver

    seu drama representado para o povo, o que considerou ser o retorno sua prpria

    origem.

    A pea foi re-escrita em 1957 quando o escritor, que era protestante, j havia

    se convertido ao catolicismo. Com isso, o carter considerado puritano da primeira

    verso foi diludo na segunda e esta ganhou uma atmosfera de amor e violncia

    comparvel das elisabetanas, principalmente as de John Ford (), que, como

    Suassuna, une os elementos sangue, honra, famlia, incesto, nas exatas medidas

    dramticas. (FILHO, apud SUASSUNA, 2006, p. 19). Segundo Borba Filho,

    Suassuna segue rigorosamente a tradio clssica elisabetana, uma vez que

    trabalha no universo trgico a comicidade dos personagens, tidas como ridculas

    (embora poticas), como o Bacharel Orlando de Almeida Sapo e o Delegado de

    Polcia, que representam o oposto dos demais personagens. Outro elemento da

    pea que caracterizaria a fidelidade a essa tradio estaria no jogo do uso ora da

    prosa ora do verso.

    No conjunto, a obra do escritor traz consigo esse universo dialgico,

    intertextual, uma vez que o escritor no processo de re-escrita, re-elaborao de

    folhetos de cordel e outros textos da cultura popular, evidencia no somente os

    traos e elementos desse contexto, como tambm de clssicos da literatura e

    dramaturgia universal que tambm se fazem presentes na sua criao. Esses

    elementos que marcaram desde o incio sua carreira, e passaram no decorrer dos

    anos por um processo de re-elaborao, sendo aperfeioados at atingirem certo

    amadurecimento, so os recursos que deram direo sua produo literria. Esse

    processo caracterizado pelo aspecto de sua obra encontrar-se centrada no

    compromisso entre a re-elaborao do material de origem popular e o refinamento

  • dos meios de que dispe um escritor culto, no pleno domnio dos recursos de seu

    ofcio (MELO, In: Suassuna, 2008, p.13). Esses aspectos so considerados rduos

    e responsveis pelo equilbrio que Suassuna conseguiu atingir com sua formulao

    esttica da arte armorial em especial na escrita do romance e de vrias peas

    teatrais. Com essas observaes, podemos inferir que Suassuna, a partir de uma

    trama bastante trabalhada na intertextualidade de grandes dramaturgos, em

    comunho com a re-escrita da literatura nordestina, escreveu peas que tratam de

    questes atuais, o que lhe garante a comunicao com as plateias do mundo

    inteiro. Os prprios recursos utilizados pelo escritor, como a simplicidade da escrita,

    o dilogo objetivo e direto, a comicidade das mais variadas situaes que a todos

    contagia, a sua proposta do jogo cnico e do texto como abertura para um teatro

    anti- ilusionista, e uma viso religiosa da vida que o seu iderio pessoal embebe de

    humanismo cristo e de esperana so considerados veculos que possibilitam

    essa comunicao alm fronteiras. (MELO, In: SUASSUNA, 2008, p.13). Nesse

    sentido escreve Nogueira:

    A dialgica vida e idias revela um Suassuna universal, que se pe questes existenciais comuns a todos os homens de todos os tempos e lugares, e favorece a unidualidade que enfoca a diferena num primeiro instante, mas esforando-se em ultrapass-lo, para amplificar o olhar na direo de territrios mais amplos.(NOGUEIRA, 2002, p.17)

    Estudos apontam os sonhos utpicos da personagem Quaderna, o heri do

    romance A Pedra do Reino (1971) de Suassuna, como semelhantes aos de um Dom

    Quixote. Quaderna seria, portanto, uma apropriao do aspecto idealista de Dom

    Quixote. (SANTOS, 1999, p 81). Da mesma maneira, Suassuna teria se inspirado

    nos contos de Malazartes para a criao das personagens Joo Grilo e Chic de o

    Auto da Compadecida e o Benedito de A Pena e a Lei. O escritor adota tambm

    tipos de personagens de fontes como folheto e mito, a exemplo de Joo Grilo (Auto

    Compadecida) e Cano (Casamento Suspeito); aproxima ainda passagens de

    peas, como o caso da cena de Hamlet em que a personagem Polnio se esconde

    atrs da cortina, que, em O Casamento Suspeito, re-elaborada para a cena de

    Gaspar, que tambm se esconde atrs de uma cortina para desmascarar Lcia,

    Roberto e Susana:

  • Gaspar Cano, eu vou-me embora! Estou em tempo de morrer de medo. Cano No, precisamos de alguma coisa para dizer a Geraldo. Fique escondido aqui. De acordo com o que eles disserem, a gente faz o plano. Gaspar E se eles no vierem? Cano No se incomode no, que eles vm me procurar. () Cano Esconde-se, homem de Deus! Assim est bom. Depois, corra e v me contar tudo. GASPAR se esconde atrs de uma cortina e Cano sai para a rua. Entram LCIA, ROBERTO e SUSANA. (SUASSUNA, 2008, p. 45)

    Podemos destacar como elementos de intratextualidade na obra de Suassuna

    as repeties de tipos de personagens em diversas obras, como o das duplas

    astuciosas Joo Grilo e Chic em o Auto da Compadecida e a responsvel pelas

    manobras e artimanhas Caroba e Pinho em O Santo e a Porca; e tambm Cano

    e Gaspar em o Casamento Suspeito. Para Santos, essas personagens retratam a

    gama de pobres coitados viventes do Serto em toda a sua variedade (cangaceiros,

    beatos, retirantes, cantadores, mentirosos, valentes, sedutores etc.), evidenciando

    assim alguns tipos que tm ligao com as histrias dos folhetos de cordel.

    (SANTOS, In: Cadernos de Literatura Brasileira, 2000, p. 152).

    Os disfarces tambm se repetem com certa freqncia na obra do escritor, a

    exemplo de alguns que ocorrem em O Santo e a Porca, como:

    a) de Dod que se passa por outra pessoa para namorar Margarida, filha de

    Eurico:

    Entra MARGARIDA atrada pelo rumor. Vem acompanhada de DOD VICENTE, disfarado com uma horrvel barbicha, com a boca torta, com corcova, coxeando e vestindo de preto. (SUASSUANA, 2007 p. 35).

    MARGARIDA O melhor a gente confessar tudo, querido. No agento mais essa agonia. A todo instante penso que meu pai vai reconhecer voc. DOD No est vendo que impossvel, meu bem? Quando seu pai me viu pela ltima vez, eu era um menino. E com essa corcova, essa roupa, essa barba No possvel de jeito nenhum! (idem p. 43).

    b) de Caroba, sabendo do passado de Benona e Eudoro e do interesse que ela

    ainda nutre pelo namorado do passado, aproveita dessa situao para arquitetar os

    casamentos, dos quais v a possibilidade de tirar proveito, articulando um encontro

    noite, s escuras, de Benona com Eudoro, em que aquela se passe por Margarida,

    verdadeiro interesse de Eudoro naquele momento.

  • CAROBA - o tempo que passou Dona Benona! BENONA Voc acha? CAROBA No tenha dvida, ele continua no mesmo entusiasmo! Chegou at a pedir que eu arranjasse uma entrevista dele com a senhora! BENONA Uma entrevista? Quando? CAROBA noite, quando o povo estiver dormindo. () BENONA E se algum acordar? CAROBA A senhora vem disfarada. Veste um vestido de Dona Margarida. Se algum acordar, a senhora faz que ela, que veio rezar, e ningum desconfia. De noite, fcil.

    Os mesmos recursos dos disfarces ocorrem em A Pena e a Lei, onde a

    personagem Cheiroso se passa por Jesus se cobrindo com um manto; em O

    Casamento Suspeito, as personagens Gaspar e Cano se travestem, para o

    primeiro se passar pelo juiz e o segundo pelo Frei Roque; assim como inmeros

    disfarces das personagens na Farsa da Boa Preguia, a exemplo nas cenas em

    que:

    Entram SIMO e NEVINHA, esfarrapados, com sacos de viagem s costas. (SUASSUNA, 2003, p. 228). () Aparece MIGUEL, como mendigo, e com mscara de cego. (idem p. 271). () Entra SIMO PEDRO, como velho mendigo, e de modo parecido com o de SO MIGUEL. Bate palmas, no limiar. (idem p. 281).

    Assim segue toda a pea, com personagens travestidas de divindades,

    humanos e demnio.

    Traos de intertextos recorrentes no conjunto da obra de Suassuna so

    tambm os do mundo rural da Espanha de Garca Lorca (povoados de ciganos, bois

    e cavalos), que recriado pelo escritor em relao ao serto nordestino.

    O que se oculta e se revela na obra do escritor so consideradas, na sua

    essncia, metforas - que mantm a riqueza simblica e redimensionam o lugar do

    Outro e o sentido do Anthropos (NOGUEIRA, 2002, p. 17) - em um complexo

    entrelaamento.

    A obra de Suassuna percebida no como categorizao armorial, mas como

    aquilo que rompe esse limite, podendo ser compreendido como uma estratgia de

    explicao do iderio do escritor. Isso porque sua narrativa revela uma viso de

    mundo barroca prenhe de religiosidade e a confluncia entre a reversibilidade e a

    irreversibilidade do tempo, e tratada de maneira a revelar um estilo considerado

    spero, forte e at insano. Essas marcas podem ser observadas, por exemplo, na

  • temtica da pedra - que em suas obras se revela por meio do sonho e da paixo

    presena constante no universo do escritor. (NOQUEIRA 2002, p. 129)

    A realizao de uma leitura mais cuidadosa das obras de Ariano Suassuna

    nos remete s diversas influncias assimiladas pelo escritor, com as apontadas nos

    pargrafos anteriores, bem como as do escritor portugus Gil Vicente e as do

    dramaturgo romano Plauto. Essas influncias vo emergir com o entrecruzamento

    de textos que o escritor faz ao adaptar narrativas populares do cordel a do teatro

    europeu, criando um modo particular seu, no qual preserva a linguagem popular,

    com escrita e construo gramatical consideradas eruditas.

    Na realizao de seu trabalho, tem como suporte no somente as histrias e

    casos narrados e contados em prosa e verso, mas tambm as prprias formas da

    narrativa oral e da poesia sertaneja que foram assimiladas e re-elaboradas por ele.

    (MELO, In: SUASSUNA, 2008, p.13).

    O escritor chega a utilizar, como base para suas recriaes, por vrias vezes,

    um mesmo tipo, e isso tem sido motivo de rduas criticas que ele mesmo comenta

    no texto de entrega definitiva da pea O Casamento Suspeito.

    Creio que, de todas as que montei, foi esta a mais atacada. Os pontos mais visados eram referentes s minhas repeties e vulgaridades. Disseram, por outro lado, que eu estava repetindo tipos e situaes j usados no Auto da Compadecida e, por outro, que empregara, nesta comdia, mais do que na primeira, meios vulgares e grosseiros de comicidade, alm de criar personagens sem sentido. (SUASSUNA. 2008, p.21)

    Quanto crtica de criar personagens sem sentido, Suassuna afirma no

    poder avaliar se seria justa ou no. Mas a respeito da repetio de tipos e situaes

    e tambm do emprego de meios vulgares e grosseiros, o escritor diz que essas

    crticas partem de ideia de teatro e de concepo de mundo totalmente diferentes e

    inconcebveis s dele. Segundo ele, quanto repetio de personagens, o que fez

    foi um processo clssico de recriao de tipos j existentes numa comdia popular,

    no caso a tradio do Romanceiro Popular Nordestino. E remete a Molire e

    Goldoni, comentando que esses dois grandes dramaturgos recriaram os tipos da

    comdia popular mediterrnea. No caso de Molire, inclusive, alguns de seus

    personagens se parecem com de Scapin; e Goldoni foi mais longe, pois no se

  • preocupou em transpor, para suas peas, personagens da tradio popular, sem

    nem mesmo mudar seus nomes nas diferentes peas. E comenta:

    Na inveno de certos personagens (...), o que fiz foi um processo clssico de recriao de tipos j existentes numa comdia popular, no caso a tradio do Romanceiro Popular Nordestino. No mesmo sentido se bem que com outra medida, claro, porque se tratava de dois gnios - Molire e Goldoni recriaram os tipos da comdia popular mediterrnea. No se preocupou, o primeiro, com o fato de o Sganarelle do Dom Juan parecer com o Sylvestre de Les fourberies de Scapin; de serem semelhantes e terem problemas semelhantes o M. Jourdain de Le bourgeois gentilhommee o George Dandin; (...) No se incomodou o segundo de escrever peas em que os personagens eram diretamente transpostos da tradio popular, esquemtica e fixa, no se dando sequer ao trabalho de mudar seus nomes de pea para pea. E assim, toda uma tradio clssica do teatro e da novela. (SUASSUNA. 2008, p. 21).

    Segundo o autor, agia-se assim no por falta de criatividade, e ironiza: era o

    que faltava, acontecer isso com Molire, Goldoni ou Shakespeare!, mas agia-se

    assim porque o uso desses recursos,

    (..) firmava uma tradio e um estilo, valorizava o que j existia na conscincia coletiva, aproveitava, com maior solidez, uma arquitetura preexistente e que j recebera, na sano coletiva, o selo de uma perenidade que s um orgulho muito tolo deixaria de lado em nome da criao exclusivamente individual. (SUASSUNA, 2008, p.22).

    Assim, o autor aponta para a intertextualidade que faz de grandes

    dramaturgos desde a Antiguidade at os contemporneos, bem como para a

    intratextualidade recorrente em sua obra, por meio da qual trata de questes atuais,

    a exemplo do tema da avareza, semelhana das personagens e do enredo que

    ocorrem em O Santo e a Porca, trabalhados por Plauto em Aululria e tambm por

    Molire em o Avarento, assunto que abordaremos mais adiante.

    Com esses recursos, Suassuna, insere em sua obra traos da tradio

    clssica tanto do teatro quanto da novela, ou seja, na verdade, longe de significar

    falta de imaginao a que ele ironiza - era o que faltava, acontecer isso com

    Molire, Goldoni ou Shakespeare!, na verdade esse procedimento firmava uma

    tradio e um estilo, valorizava o que j existia na conscincia coletiva (...), e que j

    recebera, sano coletiva (...), que s um orgulho muito tolo deixaria de lado em

    nome da criao exclusivamente individual.

    Para Suassuna, considerar o mundo dos personagens que ele retrata como

    pobre e a sua repetio estril revelam desconhecimento e falta de respeito ao que

  • de mais rico temos, que so nossas razes. Lembra ainda que: Se a tradio

    popular nordestina pobre, no ser mais do que (...) a da Commedia dellArte que

    aqueles gnios renovaram e cujos tipos eram poucos e esquemticos. Isso

    desconhecimento do que Ortega Y Gasset chamou de a realidade mais eficiente do

    teatro e que , como afirma Suassuna, a tradio do teatro grego e romano, do

    elisabetano, do espanhol e francs clssicos, do goldoniano (...), do teatro que

    considero o grande teatro e que se ope ao contemporneo - o teatro em runa.

    (idem p.23)

    crtica que adjetiva de vulgares os meios cmicos que Suassuna utiliza em

    suas obras, ele se defende dizendo: prefiro o rasgado e franco riso latino, que

    inclui, entre outras coisas, uma loucura sadia, uma sadia violncia e um certo

    disparate, ao que eles consideram como humor educado e delicado. (idem p. 23)

    E, mais uma vez, lembra os grandes nomes e personagens da dramaturgia que tm

    sido qualificados por sua vulgaridade: Falstaff e Scapin.

    Na recriao dos textos populares reside a intertextualidade trabalhada por

    Suassuna, que utiliza o cordel, o bumba-meu-boi, o mamulengo, misturando o

    popular ao erudito, como o prprio autor cita nos prefcios e entrevistas. Essa sua

    prtica se inspira no s em textos da Idade Mdia, mas tambm em criaes que

    vo de Shakespeare Bblia. A respeito de seu processo de criao/recriao

    comenta o escritor que no faz distino entre cultura popular e a erudita e, que a

    cultura brasileira, em especial a cultura popular brasileira no est ameaada, e

    mesmo que queiram mat-la no ser possvel, no conseguiro, pois ela

    resistente. E com essa mesma convico defende a cultura popular nacional e, em

    especial, o romanceiro popular nordestino.

    Ao comentar o romance d' A Pedra do Reino, Nogueira (2002, p. 40) diz que

    o sopro forte do mito no universo suassuniano desenrola-se no terreno da epopeia

    () ultrapassando o realismo, aproximando o homem do divino. Tambm Santos

    (1999, p.77) observa que o escritor, na tentativa de interpretar e decifrar o real e

    mtico do Serto, de fornecer uma viso total do mundo, constri uma viso pica

    em sua obra. Isso porque, segundo a pesquisadora, os mitos que emergem de suas

    narrativas se imbricam aos da espcie de serto sonhoso, o que remete ideia de

    teia presente em A Pedra do Reino, especificamente no Folheto XXXVII, que traz o

  • nome de A Teia do Meu Processo, um dos vrios que compem o romance ainda

    em construo. E continua destacando passagens de outras obras do escritor que

    tambm sugerem uma teia, cujos pontos so unidos pelos sonhos, enigmas,

    segredos e temas do mundo do qual fazemos parte. Assim, ela revela a forma

    particular do escritor de jogar com certos sentido que se escondem atrs das

    palavras, principalmente as de sentido ambguos e polivalentes (idem p. 77), sendo

    o mito carregado dessa singularidade. Com essa presena constante e essencial do

    mito, a narrativa rebrilha sob o sol catico e revigorante da eterna tenso entre

    sonho e realidade, aspectos facilmente percebidos em vrias obras de Suassuna.

    (idem p.77)

    Sobre o mito, Lvi-Strausss ( 1997) observa que a [sua] ordem (...) exclui o

    dilogo, porque eles seriam a repetio das mesmas coisas sempre.

    Para a composio final da pea A Pena e a Lei, Suassuna re-escreveu

    cenas do texto Torturas de um Corao ou em Boca fechada no entra mosquito e

    do Auto da Compadecida, entremeadas, como ele prprio afirma, por uma pea

    escrita por ltimo, O caso do novilho furtado, j que todas tinham os mesmos

    personagens.

    Sbato Magaldi (2005, p.152) comenta que o Mamulengo de Cheiroso, na

    apresentao da pea, chama a ateno para o ttulo, evidenciando o que ser visto

    - vero funcionando algumas leis e castigos que se inventaram para disciplinar os

    homens -, revelando as intenes que direcionaram o escritor. Nesse caso,

    Suassuna teria dissolvido a pureza tradicional dos gneros ao inscrever a obra

    como tragicomdia lrico-pastoril, drama cmico em trs atos, farsa de moralidade e

    faccia de carter bufonesco. (idem p.152) Para o crtico, Suassuna conseguira

    xito justamente nessa re-escrita, que junta o popular ao erudito, o local ao

    universal, mas com o devido cuidado de no cair no populesco, j que lanara mo

    do arcaico considerado medieval e o trabalhara no sentido de suaviz-lo por

    meio da criatividade, da leveza e da espontaneidade e improvisao dos dilogos,

    marcas prprias da linguagem popular. Lembra tambm que justamente nessa

    tentativa de fuso, em que muitos escritores terminam fracassando, que Suassuna

    atinge sempre seu grande feito. (idem p. 152)

  • O crtico considera muito ousada e corajosa a iniciativa de Suassuna em

    antecipar, na fala de seus personagens Cheirosa e Cheiroso - este ltimo uma

    espcie de seu porta-voz -, sua justificativa pelas passagens nas quais retoma,

    parcialmente, recursos cnicos de outros textos seus, a exemplo do Cristo entre os

    personagens no cu, que inspira Cheirosa o comentrio: Vo dizer que voc no

    tem mais imaginao e s sabe fazer agora o Auto da Compadecida; ao que replica

    Cheiroso: Isso fcil de resolver: na prxima pea, em vez de o personagem ser

    sabido, besta,(...) em vez de tudo se passar no cu, se passa no inferno. A eu

    quero ver o que que eles vo dizer. Tal ousadia, para Magaldi, possibilitou que

    Suassuna realizasse o texto mais complexo e maduro at aquele momento,

    enriquecendo o repertrio brasileiro com uma inegvel obra-prima. (MAGALDI,

    2005, p.152).

    O processo de construo da pea considerado engenhoso, como indicam

    as rubricas do primeiro ato: deve ser encenado como se tratasse de uma

    representao de mamulengos; do segundo, representao em meio-termo, entre

    boneco e gente, com alguma coisa de trpego e grosseiro que sugira a

    incompetncia, a ineficincia, o desgracioso e material que, a despeito de tudo,

    existe no homem; e do terceiro, atores com rosto e gestos teatralmente normais,

    indicando que s ento, com a morte, que nos transformamos em ns mesmos.

    (idem, p.152).

    Assim, trata-se de uma pea que diverte, mas tambm analisa as questes

    sociais a partir de uma proposta que vai do mamulengo, do boneco irresponsvel, ao

    homem na sua plenitude diante de Deus. A partir do teatro de mamulengos e de

    histrias populares de cantadores nordestinos, Suassuna mescla seu texto de auto,

    farsa e stiras de costumes. Com isso, o trao marcante de sua narrativa - a moral -

    faz-se presente na pea, e o trgico suavizado pelo cmico e pelas cantorias

    nordestinas. Em sntese, A Pena e a Lei uma pea que aborda vrias temticas,

    que partem do ridculo at as bases do srio, da cultura popular at as bases

    eruditas. (idem p.150).

    A msica outro elemento intertextual presente em Suassuna seja pela

    influncia do teatro de mamulengo, que a fundamenta, seja pela do folheto, citado

    muitas vezes ou usado como modelo em obras quase inteiramente cantadas, com

  • destaque especial em A Pena e a Lei, revelando diferentes ritmos nordestinos.

    (VASSALLO, 2000, p. 152).

    Ainda, a respeito da presena marcante da msica na obra de Suassuna,

    Santos (SANTOS, 1999, In: Cadernos de Literatura, n10, 2000, p. 98) observa que:

    a constatao de que a cultura popular nordestina mantm caractersticas

    medievais sendo a primeira delas a fora potica da voz leva Suassuna a certas

    escolhas na sua maneira de recriar os elementos populares dessa fora potica, em

    especial no que se refere ao campo musical. Nessa recriao, a teoria musical por

    ele elaborada tem em vista a msica erudita - ecos de msicas de corte nos

    romances ibricos, influncias do canto gregoriano e outros - presentes na popular.

    Nesse processo, comenta Santos, h anacronismo, em que o armorial tenta manter

    uma coerncia interna atravs da escolha de seus instrumentos de recriao. E

    destaca ainda que o Barroco ibrico ao qual Suassuna se refere em mltiplas

    ocasies representa, por sua vez, outro anacronismo, ao evidenciar a influncia

    notvel dos motes medievais.

    Em nota obra Auto da Compadecida (2005, p.179), Braulio Tavares

    observa que a maioria das comdias teatrais de Suassuna, procura recuperar e

    reproduzir mecanismos narrativos da comdia medieval e renascentista da Europa e

    da comdia popular do Nordeste. O crtico destaca que a caracterstica

    importantssima desse tipo de teatro seu carter tradicional e coletivo, lembrando

    que, nesse caso, a fidelidade a determinada tradio chega a ter mais importncia

    que a originalidade individual, j que o escritor escreve com a colaborao, mesmo

    que implcita, de toda uma comunidade. Isso de certa forma sempre reafirmado

    pelo escritor - como j mencionamos - ao revelar que em sua recriao repete tipos

    e situaes, caracterizado como um processo clssico () j existente numa

    comdia popular, no caso a tradio do Romanceiro Popular Nordestino, no qual

    esto presentes as narrativas de toda a tradio de um grupo.

    Apesar de os episdios utilizados pelo escritor para composio de suas

    peas serem considerados de uma mecnica narrativa simples e divertida, grande

    parte delas tem como pano de fundo a stira social e trabalha com questes que

    revelam imagens fortes e de impacto imediato, como: os casos das falsas morte e

    ressurreio; do dinheiro que colocado nas condies de excremento; da pessoa

  • que se cega pela ambio; da pessoa que se torna vulnervel a certas trapaas -

    incapaz de enxergar o absurdo passa a acreditar nas histrias mais inusitadas; das

    sentenas severas de determinado juiz sendo diludas pelo perdo de outro

    benevolente; entre outros. (idem Auto da Compadecida, 2005, p. 183).

    Braulio Tavares observa ainda que esses episdios so como figuras que

    ilustram um texto, ou como canes j prontas que surgem a certa altura em um

    musical. Mantm sua unidade original, mas so revistas noutro contexto (Idem.

    Ibidem), ou seja, a partir de sua re-escrita, tm a oportunidade de serem renovadas

    e a especial funo de enriquecer um novo contexto.

    Quanto s crticas pela apropriao, por exemplo, de personagens como Joo

    Grilo, Suassuna argumenta que esse processo no s renovou o protagonista, mas

    uniu o teatro e o cordel nordestino, ao mesmo tempo em que homenageou o heri

    do romance As proezas de Joo Grilo, de Joo Martins de Athayde (1877 1959), e

    tambm um vendedor de jornal astucioso que conheci[era] na dcada de 1950 e

    que tinha este apelido. Comenta ainda que, anos depois, descobriu por meio de

    Jos Cardoso Marques ter existido, tambm em Portugal, um heri picaresco com o

    nome de Joo Grilo. A grande novidade inserida na personagem foi a parceria do

    inofensivo e mentiroso Chic, que, segundo o escritor, nasceu de uma pessoa que

    havia conhecido em Tapero. Com esses tipos - o palhao e o besta - o escritor

    tratou tambm da tradio circense dos tipos que j fazem parte do imaginrio

    coletivo, escrevendo assim a partir de situaes e personagens da tradio antiga,

    mas de maneira considerada extremamente nova. ( Auto da Compadecida, 2005, p.

    184 185).

    Faz-se constante na obra do Suassuna a presena do malandro,

    representado sempre nas duplas Joo Grilo e Chic, ou Cano e Gaspar que,

    segundo Santos (1999, p. 252), corresponde[m] a uma separao de personalidade

    dupla do pcaro-malandro do folheto o esperto que sobrevive graas a sua

    inteligncia e sua vivacidade, por um lado e, por outro, o herdeiro da sabedoria

    popular que se expressa em provrbios e adivinhaes. A forma de expresso dos

    respectivos personagens dO Auto da Compadecida e Um Casamento Suspeito,

    Chic e Gaspar, sempre se d por meio de provrbios. O mesmo ocorre com Simo

    na Farsa da Boa Preguia, Benedito em A Pena e a Lei e Pinho em O Santo e a

  • Porca. Essa caracterstica da citao proverbial, alm de desempenhar um sentido

    figurativo popular, utilizada pelo escritor como recurso de escrnio.

    Suassuna, desde os comentrios que tece a respeito de sua maneira de re-

    escrever os textos populares e elaborar suas peas, faz sempre perceber a

    conscincia que possui tanto de seu processo de intertextualidade quanto de

    intratextualidade:

    Repito assim que, quando aproveito de um romance popular, a ideia do Joo Grilo que apresento em minha pea recriado como tipo e no como transposio direta do mito sei perfeitamente o que estou fazendo. Como sei tambm o que estou fazendo quando recrio do mesmo modo outro amarelinho, outro quengo (pessoa astuta, sabida), o Cano, de O Casamento Suspeito. A mesma coisa acontece na criao de outros personagens, estes partidos no mais de uma tradio oral, mas da realidade. O Chic, do Auto da Compadecida, foi baseado num personagem real, j morto, cujas histrias so conhecidssimas em Tapero,(...). O mesmo acontece com Manuel Gaspar, baseado num servial de minha famlia, ainda vivo, com o mesmo nome, gago e no muito corajoso (...). Quando juntei o primeiro a um amarelinho astuto (Joo Grilo) e o segundo a outro (Cano), sabia que estava incorrendo na incompreenso de toda essa gente. (...) o que me interessava era novamente recriar uma tradio do teatro popular, esta circense: a que apresenta sempre ao lado de um palhao astuto, meio maldoso e valente, um outro, bobo, ingnuo, moralista e covarde. (SUASSUNA, 2008, p.24).

    Assim, o escritor lembra que essa tradio faz parte da realidade, pois,

    normalmente, as pessoas astutas, inteligentes, tm um amigo, um empregado, um

    scio () mais ou menos a anttese de suas qualidades e a quem elas se apegam

    com grande amizade temperada de bonomia, ironia e benevolncia. (idem p. 24).

    Isso sinaliza j para a pea O Casamento Suspeito, uma comdia de

    costumes semelhante Comdia Nova do dramaturgo grego Menandro, porque

    trata de uma problemtica domstica que se passa, assim com em O Santo e a

    Porca, na famlia da matriarca Dona Guida. As duas peas tm em foco o interesse

    pelo dinheiro, que, para ser adquirido, precisa passar pelo casamento, ao qual,

    assim, se associa. Da mesma forma que remete Comdia Nova, essa pea

    tambm remete aos empregados astutos e independentes de Molire e da

  • Commedia dell`arte, em especial na figura dos personagens Cano e Gaspar

    (VASSALLO, 2000, p. 161).

    Mais uma vez, como em outras peas, Suassuna, apelando para o riso

    farsesco provocado pelos inmeros travestimentos (idem p. 161), trata de questes

    sociais e de comportamento humano e nesse processo tem como foco principal a

    crtica aos representantes da Justia e da Igreja.

    Vassallo, ao comentar sobre os procedimentos textuais trabalhados por

    Suassuna, nos quais ele estabelece dilogo com a tradio culta, destaca que

    repousa[m] na relao com O grande teatro do mundo, de Caldern de La Barca,

    j que elementos dessa pea podem ser observados, embora de forma

    fragmentria, diluda e sob o modo pardico, em O Auto da Compadecida, Farsa da

    boa preguia e A Pena e a Lei. Suassuna trabalha por meio da carnavalizao a

    problemtica sria que existe no auto sacramental de duas maneiras: uma que seria

    a dessacralizao do papel do autor, ou seja, do personagem que representa o

    elemento de sustentao no teatro barroco espanhol, no caso o que faz o papel de

    Deus; a outra seria a transformao da problemtica da vida, do cotidiano do

    homem comum como palco na tcnica do teatro dentro do teatro: estabelecendo

    assim, por meio desses e de outros elementos presentes na sua obra, a relao

    entre o regional e o universal. (VASSALLO, 2000, p.155)

    Assim, o autor aponta para a intertextualidade que faz de grandes

    dramaturgos desde a Antiguidade at os mais atuais, bem como para a

    intratextualidade recorrente em sua obra, por meio da qual trata de questes atuais,

    a exemplo do que ocorre em O Santo e a Porca.

    Ao comentar as crticas feitas pea O Santo e a Porca, Suassuna observa

    que se considera um realista, no moda naturalista - que falseia a vida -, mas

    maneira da literatura popular que, segundo ele, a partir da imaginao capaz de

    transfigurar a vida para ser realmente fiel a ela. Por isso, dadas as caractersticas

    de seu teatro, via sem sentido os comentrios que alguns crticos ilustres haviam

    feito de ser impossvel o fato de um avarento ter perdido todo o dinheiro por

    desconhecer as operaes bancrias; que, ao contrrio, um avarento jamais

    ignoraria essas transaes. A tais crticas, o escritor observa que:

  • mesmo que isso fosse impossvel na vida, no o seria em meu teatro, onde um cangaceiro se deixa enganar por uma flauta e um conto-do-vigrio no caso, o Padre Ccero e onde os anjos se vestem de judeus e os diabos de frades ou de vaqueiros; () mesmo na vida, o caso to possvel que aconteceu; foi em Tapero, com uma pessoa avarenta, () pertencente minha famlia. Na agncia (), juntou gente para ver aquelas notas, guardadas durante tanto tempo que ningum as conhecia mais. (SUASSUNA 2007, p. 26).

    Revela ainda que, com isso, pretendeu atingir se no a verdade do mundo,

    pelo menos a de seu mundo, do qual tentou se aproximar com as histrias, os

    mitos, os personagens, as cabras, as pedras, o planalto seco e frio de minha regio

    parda, pedregosa e empoeirada. (idem, 2007, p. 26).

  • Captulo II

    2.1 O Santo e a Porca: relao com Plauto, Gil Vicente, Molire, Commedia

    dellarte e Garcia Lorca

    A pea em trs atos O Santo e a Porca, segundo Vassallo (2000), assim

    como a maioria das peas de Suassuna, adota o modelo da alta cultura e, neste

    caso, o escritor transpe uma pea do escritor romano Plauto, a Aulularia,

    imbricando-a com O avarento, de Molire (sculo VXII).

    1) O carter do avarento o protagonista -, tanto em Suassuna quanto nos

    dois dramaturgos anteriores, trabalhado em contraposio aos demais

    personagens, mesmo que em cada um dos dramaturgos ele seja

    apresentado de maneira particular e tenha comportamento bastante

    distinto. Com essa caracterstica principal, o protagonista avarento

    aparece como um tipo eterno e imutvel nas sociedades retratadas, um

    trao de personalidade independente das injunes do mundo exterior, por

    ser descrito de maneira atemporal. (VASSALLO 2000, p. 162). Isso

    revela que, mesmo se as sociedades so distintas nas vrias pocas e

    espao, em relao propriedade privada e diviso em classes, elas

    comungam algumas ideias. Podemos observar isso no caso do tesouro

    que to ciosamente guardado. Seu roubo, alm de desesperar o lesado,

    deixa o ladro em situao superior e em condies de atingir seus

    desgnios (idem p. 162) visto que seus senhores e empregados

    encontram-se em posies opostas e em permanente conflito e embate de

    interesses.

    2) A temtica do casamento, em cada escritor, tambm se reveste, segundo

    Vassallo, com graus diversos de complexidade, mas expressa de

    maneira significativa os costumes da poca e local de origem da pea.

    Suassuna, em seus comentrios a respeito da pea O Santo e a Porca,

    afirma ser esta uma imitao nordestina de Plauto, fazendo referncia comdia

    clssica Aululria, em que o dramaturgo latino critica o sistema poltico-social de sua

  • poca e seus representantes. Essa imitao, em Suassuna, re-escreve folhetos de

    cordel, prprios da cultura nordestina que se estrutura sobre valores tradicionais

    preservados por uma tradio folclrica e religiosa, a exemplo da cultura clssica,

    estruturada sobre os mitos dos triunfos heroicos e dos feitos divinos.

    A palavra imitao, usada por Suassuna, remete aqui mmesis de Horcio,

    em que o conceito de imitar seria a representao de uma realidade, mas tambm

    uma imitao de bons modelos anteriores. No caso de O Santo e a Porca, essa

    representao se d com a retomada que o autor faz do tema da avareza inserindo-

    o no contexto nordestino. Diferente de Plauto, considerado de estilo linearmente

    clssico, Suassuna trabalha a narrativa no sentido de fornecer abundncia de

    elementos que garantem e evidenciam sua inteno de tratar de questes da

    moralidade filosfica, constituindo nisso sua imitao diferenciada.

    Suassuna trabalha com elementos distintos, que revelam influncias

    medievais, como os traos presentes na tradio dos autos, em especial, de Gil

    Vicente, com o acrscimo de elementos circenses e de comicidade popular,

    elementos que podem ser percebidos com nitidez em O Auto da Compadecida. No

    entanto, por outro lado, no conjunto da sua obra, h tambm a presena marcante

    de elementos clssicos, que so de origem e inspirao em dramaturgos como

    Plauto, Molire, mas tambm da Commedia dellarte entre outros. A pea do

    escritor que sintetiza bem a presena de traos clssicos e a que ele confessa ser

    de inspirao em Plauto O Santo e a Porca, uma vez que Suassuna, assim como

    Molire bem verdade que em pocas e com intenes distintas e, claro,

    recebidos de forma diferente pelos seus respectivos pblicos -, inspirou-se na

    Aululria do dramaturgo latino. Na imitao nordestina dessa obra, Suassuna chega

    a preservar algumas de suas passagens e tipos, porm altera significativamente a

    estrutura na composio de sua pea. (MAGALDI. 2001, p 236)

    O escritor Fernando Marques, no texto De avareza e avarentos o tema da

    sovinice em Plauto, Molire e Suassuna (www.fernandomarques.art.br) destaca

    passagens na obra de Suassuna que revelam essa alterao na estrutura, como a

    da

    (...) figura de Caroba, mulher capaz de atar e desatar os fios de enredo, empregada de Eurico Arbe (como so conhecidos os rabes, srios ou turcos no Nordeste), o avarento. Caroba , nesse sentido, nica. No texto de Plauto, a irm de Megadoro, Eunmia, tem certa importncia no enlace

  • da histria quando convence o maduro Megadoro de que chegou a hora de casar e de que ele deve pedir Fedra em casamento. Mas o trabalho de Eunmia limita-se a esse gesto, e a personagem praticamente desaparece no decorrer do entrecho. De forma ainda menos marcada, Frosine, no Avaro, ensaia intervir nos destinos de Harpago e demais personagens, mas seu papel de alcoviteira fica na promessa o que rendeu crticas a Molire, conta Jouanny em nota: Essa intriga acaba antes de terminar. Critica-a Diderot no seu Tratado da poesia dramtica: Acaba-se a pea e no tornamos a ver Frosine nem a baixa-bret que continuamos a esperar. (www.fernandomarques.art.br).

    Caroba, em O Santo e a Porca, desde os primeiros momentos revela-se

    responsvel por arquitetar todas as peripcias que resultam nos encontros e

    desencontros que ocorrem do incio ao final da histria.

    Outro aspecto destacado por Marques, como sendo Um passo adiante ou

    diferente de Suassuna em relao a seus antecessores, Plauto e Molire, recai no

    fato de que, no dramaturgo latino,

    (...) a soluo otimista mostrava um homem que, depois dos golpes que sofreu o susto com o furto da marmita e, em seguida, com a notcia de que a filha lhe daria um neto capaz de corrigir-se, entregando a Fedra e ao genro os bens que guardava de maneira obsessiva. (www.fernandomarques.art.br).

    No caso de Molire, Harpago termina to mercenrio e avaro quanto era no

    comeo da histria. Enquanto no final da pea de Suassuna a personagem

    avarenta de Eurico descobre que na verdade sempre foi[ra] pobre, conservando

    estupidamente cdulas sem valor, e percebe o quanto a sua vida tem[havia] sido

    vazia de sentido. (...) A avareza ganha, portanto, ressonncia tica e existencial

    mais ampla na pea brasileira, apontando, assim, para a inteno de Suassuna,

    que de evidenciar no s a moralidade social, mas principalmente a filosfica.

    Tambm Magaldi (2001, p.244) observa que as trs histrias de avarentos,

    por mtodos diferentes, aproximam-se na defesa de uma melhor condio humana,

    cada uma inserida em seu contexto e poca.

    O Santo e a Porca trata, portanto, por meio de situaes cmicas, de vrias

    questes de cunho profano e religioso. Na modalidade profana, na qual Suassuna

    se inspira para compor suas peas (entre elas aquela), esto a farsa, a Commedia

    dell`arte e o circo. Mesmo trabalhando nesse universo, as situaes humorsticas da

  • pea no representam o seu ponto principal, j que, no desenrolar dos

    acontecimentos, elas deixam o centro da obra, cedendo espao para um texto mais

    denso, que expressa certa viso crtica por meio de passagens que a princpio

    parecem bastante simples, mas que no fundo tm a inteno, como afirma

    Suassuna, de despertar para reflexes que questionam a existncia humana de

    forma filosfica.

    Esses aspectos podem ser percebidos quando observarmos os movimentos e

    as atitudes do protagonista da pea, Eurico, que apresenta constante oscilao

    entre o mundo material e o espiritual. Nesses momentos, sua angstia intensa e o

    faz refletir sobre sua existncia, sobre as coisas e acontecimentos do mundo, sobre

    as pessoas, sobre o que o rodeia.

    O dramaturgo Plauto havia