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GEP Grupo de Estudos Preparatórios do Congresso de Direito Comercial PRINCÍPIOS DO DIREITO COMERCIAL São Paulo 2011

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GEP – Grupo de Estudos Preparatórios do

Congresso de Direito Comercial

PRINCÍPIOS DO DIREITO COMERCIAL

São Paulo

2011

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Organizadores: Prof. Fábio Ulhoa Coelho

Marcelo Guedes Nunes

Breve currículo dos autores:

Fábio Ulhoa Coelho, Jurista e Professor Titular da PUC-SP.

André Luiz Santa Cruz Ramos, Doutorando em Direito Empresarial pela

PUC-SP, Procurador Federal em exercício no CADE e Autor do livro Direito

Empresarial Esquematizado

Áurea Moscatini, Mestre em Direito Privado pela UNIMEP e Doutoranda em

Direito Empresarial pela PUC-SP. Professora Universitária. Advogada.

Daniel Shem Cheng Chen, Especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP e

em Direito Empresarial pela PUC/SP. Atualmente é mestrando em Direito

Empresarial pela PUC/SP.

Fernando Melo da Silva, Advogado, Professor Universitário, Mestre e

Doutorando em Direito.

Frederico Marcondes Stacchini, Possui especialização em Administração de

Empresas pela FGV-SP e é Mestrando em Direito Empresarial pela PUC-SP.

Advogado em São Paulo.

Herbert Morgenstern Kugler, Mestrando em Direito Comercial pela PUC-SP.

Advogado em São Paulo

Ivan Vitale Lorena Jr., Advogado. Coordenador da área de Direito Empresarial

da Escola Paulista de Direito – EPD. Mestre e Doutorando em Direito Comercial

pela PUC-SP

José Roberto Salvini, Especialista em Administração de Empresas pela FGV e

Mestrando em Direito Empresarial pela PUC-SP. Advogado em São Paulo.

Juliana Alves do Nascimento, Bacharel em Direito, Universidade do Estado do

Rio de Janeiro (2005), Mestranda em Direito Comercial, Pontíficia Universidade

Católica de São Paulo. Associada de Motta, Fernandes Rocha - Advogados.

Marcelo Guedes Nunes, Mestre e Doutorando em Direito Empresarial pela

PUC-SP. Advogado em São Paulo.

Marcelo Tourinho, Mestrando em Direito Empresarial pela PUC-SP. Advogado

no Rio de Janeiro.

Pedro Henrique Laranjeira Barbosa, Especialista e Mestrando em Direito

Comercial pela PUC/SP. Advogado em Curitiba/PR.

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ÍNDICE

Princípios do direito comercial

Introdução por Fábio Ulhoa Coelho....................................................................................5

Parte I - Princípios gerais do direito comercial

1) Liberdade de iniciativa

Juliana Alves do Nascimento..................................................................................7

2) Liberdade de competição

Juliana Alves do Nascimento.................................................................................10

3) Função social da empresa

Marcelo Tourinho..................................................................................................12

Parte II – Princípios do direito societário

4) Liberdade de associação

André Luiz Santa Cruz Ramos..............................................................................16

5) Autonomia patrimonial da pessoa jurídica e Limitação e

subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais

Áurea Moscatini....................................................................................................19

6) Princípio majoritário e a Proteção do sócio minoritário

Pedro H. Laranjeira Barbosa.................................................................................29

Parte III – Princípios do direito cambiário

7) Cartularidade e Literalidade

Daniel S. C. Chen..................................................................................................32

8) A Autonomia das obrigações cambiais

Daniel S. C. Chen..................................................................................................35

Parte IV – Princípios do direito contratual dos empresários

9) Autonomia da vontade

Frederico M. Stacchini..........................................................................................37

10) Plena vinculação dos contratantes ao contrato

José Roberto Salvini..............................................................................................41

11) Proteção do contratante economicamente mais fraco nas

relações contratuais assimétricas

Herbert M. Kugler..................................................................................................45

12) Princípio do reconhecimento dos usos e costumes comerciais

Marcelo Guedes Nunes..........................................................................................48

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Parte V – Princípios do direito falimentar

13) Inerência do risco a qualquer atividade empresarial

Fernando Melo da Silva.........................................................................................53

14) Impacto social da crise da empresa

Marcelo Tourinho...................................................................................................58

15) Transparência nas medidas de prevenção e solução da crise

André Luiz S.C. Ramos..........................................................................................61

16) Tratamento paritário dos credores

Ivan Vitale Junior....................................................................................................65

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Introdução

“Ideologia” é uma palavra normalmente associada a algo ruim. Muito em função dos

ecos da Guerra Fria, que marcou o enfrentamento dos Estados Unidos e da União das

Repúblicas Socialistas Soviéticas ao longo da segunda metade do século vinte, a palavra

evoca uma vaga referência a perversas manipulações de conceitos no bojo de uma luta pelo

poder.

Desvestida, porém, desse seu contexto, “ideologia” surge como referência a um

conjunto de valores. Não há vida em sociedade, sem que as pessoas incorporem, em razão de

suas experiências nos ambientes familiar, escolar, laboral ou social, preceitos sobre o que é

certo e o que é errado fazer. Os valores sintetizam regras de conduta e são cultivados e

reafirmados tanto no plano verbal, como no do comportamento – mais neste ultimo que

naquele. O conjunto de valores geralmente nutridos e adotados como pertinentes por um

grupo de pessoas ou classe social é uma “ideologia”.

Cada ramo do direito tem, neste sentido, sua “ideologia”, isto é, um conjunto de

valores que visa prestigiar, por meio de normas constitucionais, legais ou regulamentares. São

normas de âmbito muito largo, que se costumam chamar de princípios. Os princípios de uma

disciplina jurídica formam sua ideologia.

Nenhuma ideologia existe por si mesma. Para que exista, é necessário que os valores

nela abrigados sejam vivenciados por um grupo expressivo de pessoas como pertinentes,

corretos, justos, racionais, valiosos. Ideologias, assim, surgem e desaparecem em função da

dinâmica das relações sociais. Pode-se dizer, por exemplo, que a ideologia do fundamento

divino do poder real, que vicejou largamente na Europa Medieval, não existe mais;

desapareceu com a afirmação e disseminação da democracia como a forma mais adequada de

organização do Estado.

Se um valor não é reiterado, reforçado, atualizado, no plano conceitual, ele deixa de

ser, aos poucos, vivenciado.

Os valores que compõem a “ideologia” do direito comercial correm, hoje, o risco de

desaparecerem, no emaranhado da complexa sociedade contemporânea. Se não insistirmos

que a proteção jurídica feita ao investimento aproveita não apenas o investidor, em seus

interesses individuais, mas principalmente à sociedade como um todo, aos poucos perder-se-á,

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no espírito dos juízes e outros membros da comunidade jurídica, os valores de que depende o

direito comercial para sobreviver.

Sob o ponto de vista técnico, os valores de uma disciplina jurídica expressam-se por

meio dos princípios próprios dela. O princípio do reconhecimento da vulnerabilidade do

consumidor corresponde ao valor fundamental do direito do consumidor; o princípio do

poluidor-pagados, ao do direito ambiental; a indisponibilidade do interesse público, ao do

direito administrativo; e assim por diante.

Precisamos reverter o processo de lento desaparecimento dos valores do direito

comercial, realimentando a ideologia desta disciplina. Os instrumentos neste processo são a

realização de eventos periódicos e representativos, como este 1º Congresso Brasileiro de

Direito Comercial, a elaboração e difusão de trabalhos doutrinários e acadêmicos, que

identifiquem os princípios do direito comercial e os aprofundem, mostrando como devem ser

entendidos atualmente, em cotejo com a ideologia dos demais ramos do direito que se

avizinham.

O Grupo de Estudos Preparatórios “Princípios do Direito Comercial”, que eu

coordenei, procura, neste relatório, abrir uma picada neste tortuoso caminho de reconstrução

da ideologia do direito comercial. Do grupo fizeram parte orientandos meus no Programa de

Pós-graduação em Direito Comercial da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-

SP). Cada um ficou encarregado de considerar um ou mais princípios do direito comercial,

para estudá-los no contexto de uma tentativa de sua atualização, com vistas a contribuir para o

reforço do valor embutido em cada um deles. O resultado é, em vista dos objetivos fixados,

altamente satisfatório e esperamos todos, eu e os demais integrantes do Grupo, que nossas

reflexões sirvam ao debate que terá lugar no 1º Congresso Brasileiro de Direito Comercial.

Fábio Ulhoa Coelho – Professor Titular de Direito Comercial da PUC-SP

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Parte I – Princípios gerais do direito comercial

1. Liberdade de Iniciativa

Juliana Nascimento

A livre iniciativa é princípio constitucional tratado no caput do art. 170 da

Constituição Federal, considerada direito fundamental1 do homem por garantir o direito de

acesso ao mercado de produção de bens e serviços por conta, risco e iniciativa própria do

homem que empreende qualquer atividade econômica. Por definição, significa direito à livre

produção e circulação de bens e serviços2 e, consequentemente, o respeito dos demais (Estado

e terceiros) a essa liberdade, garantido pelo princípio da livre concorrência.

A atual interpretação da doutrina e da jurisprudência é a de que a Constituição Federal

limita a exploração da atividade econômica a outros princípios elencados no art. 170 da

Constituição Federal3. Neste sentido, o entendimento majoritário é o de que a livre iniciativa

é base da ordem econômica em conjunto com a valorização do trabalho, e que o desempenho

da atividade econômica, deve observar cumulativamente todos os valores relacionados nos

incisos do art. 1704. Entretanto, tal interpretação gera restrições à liberdade de iniciativa

1 “Em segundo lugar surge a liberdade de iniciativa. Na verdade esta liberdade é uma manifestação dos direitos fundamentais

e no rol daqueles devia estar incluída. [...] Equivale ao direito que todos têm de lançarem-se ao mercado da produção de bens

e serviços por sua conta e risco. Aliás, os autores reconhecem que a liberdade de iniciar a atividade econômica implica a de

gestão e a de empresa” (BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil:

promulgada em 5 de outubro de 1988. 7º volume, arts. 170 a 192. São Paulo: Saraiva, 1990. P. 16). 2 “O seu exercício envolve uma liberdade de mercado, o que significa dizer que são proibidos os processos tendentes a tabelar 2 “O seu exercício envolve uma liberdade de mercado, o que significa dizer que são proibidos os processos tendentes a tabelar

os preços ou mesmo a forçar a sua venda em condições que não sejam as resultantes do mercado. A liberdade iniciativa

exclui a possibilidade de um planejamento vinculante. O empresário deve ser o senhor absoluto na determinação de o que

produzir, como produzir, quanto produzir e por que preço vender. Esta liberdade, como todas as outras de resto, não pode ser

exercida de forma absoluta. Há necessidade sim de alguns temperamentos. O importante, contudo, é notar que a regra é a

liberdade. Qualquer restrição a esta há de decorrer da própria Constituição ou de leis editadas com fundamento nela”

(BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro

de 1988. 7º volume, arts. 170 a 192. São Paulo: Saraiva, 1990. P. 16). 3 “A defesa do consumidor, a proteção ao meio ambiente, a função social da propriedade e os demais princípios elencados

pelo art. 170 da CF como informadores da ordem econômica, bem como a lembrança da valorização do trabalho como um

dos fundamentos dessa ordem, tentam refletir o conceito de que a livre iniciativa não é mais que um dos elementos estruturais

da economia” (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 1, 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005.

P. 186). 4 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a

todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência;

V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto

ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e

sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis

brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização

de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

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econômica e distorções na aplicação do princípio da livre iniciativa, principalmente quando

no caso concreto ele se apresenta em conflito com outro valor protegido constitucionalmente5.

Curiosamente, o princípio da livre iniciativa perde de todos os princípios sociais

quando sujeito à ponderação de princípios, como se pode ver na jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal6, o que nos leva à seguinte reflexão: será que a maioria dos juízes e juristas

considera a livre iniciativa um princípio inferior?7

A premissa maior aqui é a compreensão do texto constitucional8. A valorização do

trabalho humano e a livre iniciativa são igualmente elencadas como a base da ordem

econômica, a qual tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da

justiça social. Esse trecho, porta de todo o intervencionismo protecionista e paternalista por

parte do estado, informa que a existência digna deve ser alcançada com o trabalho e a livre

iniciativa. Em nenhum momento está dito que o trabalhador e o empreendedor devem arcar

com a existência digna daqueles que não trabalham ou não empreendem – e isso já ocorre

com o pagamento de impostos, instrumento clássico de redistribuição de renda.

Caso recentemente julgado no Supremo Tribunal Federal ilustra muito bem a postura

protecionista do país frente à proteção da livre iniciativa e livre concorrência. O Tribunal

Pleno decidiu pela manutenção do privilégio do serviço postal por razões técnicas e formais (a

distinção entre monopólio e privilégio, decorrente da diferenciação entre serviço público e

atividade econômica em sentido estrito), ignorando a realidade de competição no setor e a

experiência internacional contemporânea. Vale a pena ler a íntegra do acórdão, com destaque

5 Livre Iniciativa. Parâmetros. ADI 1.950, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 3-11-05, Plenário, DJ de 2-6-06; ADI 3.512,

Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 15-2-06, Plenário, DJ de 23-6-06. 6 Limitação social à liberdade de iniciativa: AC 1.657-MC, voto do Rel. p/ o ac. Min. Cezar Peluso, julgamento em 27-6-

2007, Plenário, DJ de 31-8-2007; ADI 1.950, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 3-11-2005, Plenário, DJ de 2-6-2006; ADI

3.512, julgamento em 15-2-2006, Plenário, DJ de 23-6-2006; ADI 319-QO, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 3-3-

1993, Plenário, DJ de 30-4-1993; STA 171, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 12/12/2007, Tribunal Pleno, DJ de 29-02-

2008; ADI 3512, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 15/02/2006, Tribunal Pleno, DJ de 23-06-2006; ADI 1950, Rel. Min.

Eros Grau, julgamento em 03/11/2005, Tribunal Pleno, DJ de 02-06-2006; RE 349686, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento

em 14/06/2005, Segunda Turma, DJ de 05-08-2005; RE 321796 Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 08/10/2002,

Primeira Turma, DJ de 29-11-2002. 7 “[...] significa que, embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os

demais valores da economia de mercado. [...] essa prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado na economia,

a fim de fazer valer os valores sociais do trabalho [...]. (SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição, 2ª

ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006. p. 709)(grifo nosso) 8 Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins trazem, na nota de rodapé nº 1 dos comentários ao art. 170 da obra

Comentários à Constituição do Brasil, uma bela análise dos fundamentos do art. 170 nas constituições federais, feita por

Washington Peluso Albino de Souza. SOUZA, Washington Peluso Albino de. A experiência brasileira de Constituição

econômica, Revista de Informação Legislativa, 102:29-32, abr-jun, 1989, citado por BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS,

Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 7º volume, arts. 170 a 192. São

Paulo: Saraiva, 1990. P. 12-15.

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9

para o voto vencido do Ministro Marco Aurélio (ADPF 46, Rel. p/ o ac. Min. Eros Grau,

julgamento em 5-8-09, Plenário, DJE de 26-2-10).

O cerne da questão reside no pensamento político dominante. Não está claro para

muitos que a livre iniciativa é princípio fundamental por ser essencial para o desenvolvimento

do país e não inferior a princípios sociais. O prêmio Nobel de economia Amartya Sen destaca

em sua obra Development as Freedom a importância da escolha social para o

desenvolvimento. Ele argumenta que a liberdade individual – em todos os campos da

expressão do indivíduo e não apenas do ora analisado enfoque econômico da liberdade de

iniciativa – deve ser encarada como um comprometimento social. Para ele, uma sociedade

saudável é aquela habitada por indivíduos com a capacidade de escolher e de construir boas

vidas com suas escolhas. O seu conceito de justiça, publicado ano passado no livro The Idea

of Justice, requer que cada cidadão seja equipado com uma ampla gama de “capacidades”

(que ele define como o “poder de fazer algo”) para que seja considerado responsável pelo seu

próprio bem estar, ou, em nossa linguagem constitucional, sua existência digna9.

Neste sentido, os eminentes juristas Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins

demonstram um pensamento de lucidez admirável na interpretação do caput do art. 17010

.

Em nossa opinião, essa é a melhor interpretação possível do texto constitucional e deve

prevalecer sobre a jurisprudência e doutrina mais festejadas.

9 SEN, Amartya; tradução Laura Teixeira Motta. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras,

2010. 10 “O que se poderia perguntar é se é possível organizar-se a justiça social dentro de um regime de liberdade de iniciativa. A

nosso ver não existe uma contradição visceral entre essas idéias. É certo que jogadas a si mesmas as forças da produção

podem caminhar num sentido inverso ao da justiça, contudo, ainda assim, os Estados que mais têm avançado na melhoria da

condição humana são justamente aqueles que adotam a liberdade de iniciativa. Ao Estado pode caber um papel redistribuidor

da renda nacional. O que não é aceitável é ver-se uma contradição entre a liberdade de iniciativa e a justiça social a ponto de

se afirmar que esta última só é atingível na medida em que se negue a primeira” (BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives

Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 7º volume, arts. 170 a 192. São

Paulo: Saraiva, 1990. P. 18).

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2. Liberdade de Competição

Juliana Nascimento

Como explicado acima, o princípio da livre concorrência, tratado no art. 170, IV e no

art. 173, § 4º11

, é manifestação do princípio fundamental da livre iniciativa.

Na lição de Yves Guyon, a obrigação de liberdade de concorrência se acrescenta à

obrigação de lealdade na competição12

. No Brasil, o Professor Fabio Ulhoa Coelho discorre

sobre a importância dos efeitos da prática empresarial para a verificação e concorrência

abusiva; se a atividade econômica resulta em dominação de mercado, eliminação de

concorrência ou aumento arbitrário de lucros ela é considerada abusiva e, portanto, ilícita13

.

A competição pura é o fim do princípio e objeto da Lei nº 8.884, de 11 de junho de

1994.

“Desnecessário se torna encarecer ainda mais os altos fins visados por meio da

defesa da liberdade de mercado. Vale a pena transcrever aqui a opinião de Luís Cabral de

Moncada: “O objectivo (sic) das leis de defesa da concorrência é o de assegurar uma

estrutura e comportamento concorrenciais dos vários mercados no pressuposto de que é o

mercado livre que, selecionando os mais capazes, logra orientar a produção para os setores

susceptíveis de garantir uma melhor satisfação das necessidades dos consumidores e, ao

mesmo tempo, a mais eficiente afetação dos recursos econômicos disponíveis, que é como

quem diz, os mais baixos custos e preços. A concorrência é assim encarada como o melhor

processo de fazer circular e orientar livremente a mais completa informação econômica, quer

ao nível do consumidor, quer ao nível de produtores, assim esclarecendo as respectivas

preferências. É por isso que a sua defesa é um objectivo de política econômica” (Direito

econômico, 2. ed. Coimbra Ed., p. 313)”14

O estado conta com modelos econômicos de mercado livre e de competição saudável

para servir de parâmetro para sua atuação fiscalizatória e de repressão ao abuso de poder

econômico. A análise acessível que Fábio Nusdeo faz sobre as falhas de mercado leva-nos a

11 Art. 173. [...]

§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao

aumento arbitrário dos lucros. 12 “Dans un système juridique dominé par le principle de la liberté du commerce et de l‟industrie, il ne devrait pas exister de

réglementation de la concurrence. En effet celle-ci devrait se suffire à elle-même, les commerçants médiocres étant éliminés

par le libre jeu des règles du marché. L‟experience montre cependant qu‟une concurrence absolument libte engendre des

désordres et finit par se détruire elle-même car d‟éliminations en éliminations elle aboutit à la création de monopoles. [...].

Classiquement cette invention avait pour objet le maintien de la loyaté de la concurrence, car dans la guerre commerciale

tous les coups ne sont pas autorisés. [...]. A l‟obligation traditionnelle de loyale concurrence est venue s‟ajouter l‟obligation

nouvelle de libre concurrence, qui est atuellement l‟un des thèmes majeurs de la politique économique” (GUYON, Yves.

Droit des Affaires: Droit commercial general et Sociétés. Paris: Ed. Economica, 1980. P. 757-758). 13 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 1, 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. P. 209. 14 (BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro

de 1988. 7º volume, arts. 170 a 192. São Paulo: Saraiva, 1990. P. 27)

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concordar com a sua conclusão no sentido de que “[...] à percepção de que a mecânica

operacional do mercado, tal como imaginada pelos clássicos, corresponde mais a um modelo

simplificado do que a uma realidade facilmente encontradiça em cada caso concreto”15

, que o

autor chama de “concorrência perfeita”, a que o estado busca adequar a realidade, impedindo

as conseqüências indesejáveis das distorções identificadas.

Entretanto, o estado brasileiro, ao fazer política econômica, não raro extrapola ao

incutir objetivos não econômicos em medidas de controle e intervenção na economia,

onerando a iniciativa privada e prejudicando a liberdade de concorrência.

Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal vem corrigindo diversos casos de fixação

de preços pelo estado em clara ofensa aos princípios da livre iniciativa e livre concorrência e

se posicionando no sentido de que não é legal a fixação de preços abaixo do valor de

mercado16

. Este entendimento ainda se mostra tímido, uma vez que a fixação de preços não é

necessária para o funcionamento de nenhum mercado e gera graves distorções na ordem

econômica17

.

A proposta teórica é refletir sobre a necessidade de intervenção do estado na economia

e na livre concorrência. A atuação dos órgãos que compõem o Sistema Brasileiro de Defesa

da Concorrência já é suficiente e bem orientada no sentido de promover ambiente

institucional/legal que favoreça o livre funcionamento dos mercados e estimule o

investimento privado. Qualquer medida intervencionista caminha no sentido oposto ao

desenvolvimento econômico.

15 NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2010. P. 167. 16 AI 683098, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 01-06-2010, Segunda Turma, DJ de 25-06-2010; RE 583992, Rel. Min.

Ellen Gracie, julgamento em 26-05-2009, Segunda Turma, DJ de 12-06-2009; RE 422941, Rel. Min. Carlos Velloso,

julgamento em 06/12/2005, Segunda Turma, DJ de 24-03-2006; RE 226836, Rel. Min. Nelson Jobim, julgamento em

12/09/2000, Segunda Turma, DJ de 13-10-2000. 17 Neste sentido, HAYEK, Friedrich A. von. The road to serfdom: text and documents. The definitive edition. Edited by

Bruce Caldwell. The University of Chicago Press, 2007.

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3. FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

Marcelo Tourinho

No Brasil, a expressão função social aparece nas Constituições de 1934 (art.113), 1946

(art. 147), 1967 (art.157, III), 1969 (art.160, III) e 1988 (arts.5º, XXIII, 170, 182 e 186),

relacionadas à função social da propriedade e dos contratos. Embora sem previsão expressa, a

doutrina entende ter sido ela acolhida pelo Código Civil de 200218

, seja em razão do expresso

reconhecimento da função social de outros dois institutos vinculados ao exercício da empresa,

o contrato (art. 422, CC) e a propriedade19

(art. 1228, §1º, CC), de cujo cumprimento não

pode o empresário se escusar, seja em virtude dos critérios dirigentes da interpretação do

diploma civil de 2002, que são a eticidade, a socialidade e a operabilidade20

.

Aplicada à empresa, a função social somente passa a ser expressamente prevista com a

edição de Lei nº 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas), em seus artigos 116 e 15421

.

Trata-se de figura de difícil definição, cujo conteúdo não pode ser depreendido a partir

dos dispositivos a ela aplicáveis. Conceito bastante difundido entre a doutrina é o de que por

função social deve-se entender o respeito aos direitos e interesses dos que se situam em torno

da empresa22

, também conhecidos como stakeholders23

, conceito esse que inclui acionistas,

18 Vide Enunciado 53, aprovado na I Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça

Federal: “Deve-se levar em consideração o princípio da função social na interpretação das normas relativas à empresa, a

despeito da falta de referência expressa”. Jornadas de Direito Civil: Enunciados aprovados. Disponível em

<http://www.jf.jus.br/portal/publicacao/download.wsp?tmp.arquivo=1296>. Acesso em 30/01/2011. 19 A noção da função social da empresa prende-se, ou tem por base, a noção de função social da propriedade, nos termos do

artigo 170, III, da Constituição Federal de 1988 (SALOMÃO FILHO, Calixto. Função social do contrato: primeiras

anotações. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros Editores, ). 20 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; BARTHOLO Bruno Paiva, Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos

Tribunais. v. 857, p. 11-28 mar./2007, p. 17. 21 “Art. 116. [...]. Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu

objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela

trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”. “Art. 154. O

administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia,

satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa. (...)” 22 BULGARELLI, Waldírio. A teoria jurídica da empresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 284. No mesmo

sentido, BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 134. 23 Stakeholder é qualquer grupo ou indivíduo que pode afetar ou ser afetado pela conquista dos objetivos de uma empresa,

como, por exemplo, acionistas, credores, gerentes, empregados, consumidores, fornecedores, comunidade local e o público

em geral.(EVAN, W.; FREEMAN, R.E., “A Stakeholder Theory of the Modern Corporation : Kantian Capitalism”. In: T.

Beauchamp and N. Bowie, Ethical Theory and Business, Englewood Cliffs, NJ, 1988, p. 103). Sobre o tema: ALKHAFAJI,

A. F.. A Stakeholder Approach to Corporate Governance. Managing in a Dynamic Environment. Westport, CT: Quorum

Books, 1989; MITCHEL, Ronald K.; AGLE, Bradley R.; WOOD, Donna J. Toward a Theory of Stakeholder Identification

and Salience: Defining the Principle of Who and What Really Counts. Academy of Management Review, v. 22, n. 4, p. 853-

886, 1997.

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empregados e comunidade24

. José Edwaldo Tavares Borba apresenta o seguinte exemplo de

aplicação do conceito:

“Jamais, no entanto, poderá o interesse do empregado ser sacrificado sob o

argumento de que a redução do quadro aumentará o lucro, ou como processo de substituição

de empregado antigo – de remuneração mais elevada – por empregado novo – de

remuneração mais baixa. Práticas dessa natureza correspondem ao sacrifício do trabalho em

proveito do capital e, como tal, conflitam com o já referido art. 116, parágrafo único, que

colocou capital, trabalho e comunidade em posição de equilíbrio25

.”

Após a edição da Lei 6.404/76, foi grande a movimentação da doutrina em torno do

artigo 116, mas este infelizmente teve pouca aplicação prática26

. É difícil determinar, a partir

da jurisprudência nacional, a extensão, os deveres positivos e as prerrogativas que decorrem

da função social da empresa. A função social da empresa é utilizada, no mais das vezes, em

sentido genérico, sem que seja explicitado seu conteúdo. No sentido que lhe é dado nos arts.

116 e 154 da Lei das S.A., pode ser identificada com a exigência de um comportamento

“idôneo e probo” de controladores e dos administradores das pessoas jurídicas27

. A expressão

ganha maior densidade quando tratada em processos de recuperação judicial e falências, nos

quais é aplicada com vistas à preservação da empresa em crise, caso em que e passa a ser

identificada com a importância da preservação de empregos, arrecadação de tributos e

desenvolvimento econômico do país28

.

O conteúdo da função social, não obstante o esforço da doutrina e o tratamento

jurisprudencial, permanece impreciso – para alguns vazio do ponto de vista axiológico29

24 Modesto Carvalhosa inclui no conceito o respeito aos consumidores e aos concorrentes. (Comentários à Lei de Sociedades

Anônimas, 3º volume, Artigos 138 a 205. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 276). Lamy, um dos autores da lei das S.A.., entende

que a função social “há que traduzir-se na busca atenta e permanente da conciliação do interesse empresarial com o interesse

público; no atendimento aos reclamos da economia nacional, como um todo, na identificação da ação empresarial com as

reivindicações comunitárias – numa palavra, na observância de uma ética empresarial, que, afinal, é o que distingue o

aventureiro do empresário” (A Função Social da Empresa. Revista de Direito Administrativo, nº 190. Rio de Janeiro:

Renovar. p. 59. out./dez. 1992). 25 Op. Cit. p.136. 26 FORGIONI, Paula Andréa; OLIVEIRA, Jonathan Mendes de; RODRIGUEZ, Caio Farah; Interpretação dos negócios

empresariais. In: Wanderley Fernandes. (Org.). Série GVlaw Fundamentos e princípios dos contratos empresariais. São

Paulo: Saraiva, 2007, p. 143. 27 STJ, REsp 1130103 / RJ, Ministro Relator Castro Meira, julgado em 30/08/2010. 28 STJ, AgRg no CC 105215/MT, Ministro Relator Luiz Felipe Salomão, julgado em 02/12/2010; STJ, REsp 1201912,

Ministro Relator OG Fernandes, julgado em 30/09/2010; STJ, CC 73380/SP, Ministro Relator Helio Quaglia Barbosa,

julgado em 28/11/2007; STJ, EREsp 111294 / PR, Ministro Relator Castro Filho, julgado em 28/06/2006 29 Vide a crítica de AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O princípio da Boa-fé nos Contratos. In: CEJ, v.9, p.43.

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e mantêm-se como uma porta aberta para seu uso arbitrário, pois quanto maior a abertura do

conceito, maiores as possibilidades de interpretações divergentes30

. A questão é bastante

relevante, especialmente tendo-se em conta o atual cenário31

de desrespeito à pessoa

jurídica32

, incompreensão das particularidades relativas aos negócios comerciais33

e

desprestígio do próprio do direito comercial.

É preciso ter em mente, como concepção crítica, que o recurso à função social (hoje

vista como um avanço ou superação de um modelo “individualista”) é algo que, ao longo da

história, mostrou-se característico também de regimes não democráticos34

. Além disso,

subordinar a atividade empresarial a interesses que não o daqueles que detêm o seu capital,

significa, em primeiro lugar, insegurança jurídica – já que não é possível se saber a quem e

em que medida deverá a atividade empresarial atender ou privilegiar – e, em segundo lugar,

um incentivo perverso àquele que deseja empreender e criar novos negócios, e que, para tanto,

gastará tempo e recursos, suportando integralmente os riscos do negócio, sem que o produto

desse esforço responda necessariamente a interesses convergentes com os dele.

Um administrador que seja obrigado a gastar recursos com a comunidade local, com o

meio-ambiente, com a cultura ou com a redução da desigualdade social, está, em última

análise, gastando os recursos dos acionistas (capital investido), dos consumidores (já que seus

produtos ficarão mais caros) e dos próprios trabalhadores (já que a capacidade de pagamento

30 Como bem adverte Luiz Fernando de Freitas Santos, é razoável imaginar-se a existência de uma distância de anos-luz entre

o que um socialista e um neoliberal percebem como sendo a expressão concreta de princípios, tais como o da função social

dos contratos, segurança jurídica ou da livre iniciativa. (A tipicidade no direito administrativo sancionador: Balalada de la

Justiça y la Ley. In: OSÓRIO, Fábio Medina (Org.). Direito Sancionador: Sistema Financeiro Nacional. Belo Horizonte:

Fórum, 2007. p. 276.) 31 Luciano Benetti Timm arrisca estabelecer o que seria quase um consenso na doutrina jurídica nacional acerca do sentido da

função social, quanto aos contratos, apontando que a maioria dos autores por ele analisados entende a função social como a

expressão, no âmbito dos contratos, dos ditames da “justiça social” próprios do Welfare State. (Direito, economia e a função

social do contrato: em busca dos verdadeiros interesses coletivos protegíveis no mercado de crédito. Revista de Direito

Bancário e do Mercado de Capitais. v.33. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 15-31. jul./set.2003). 32 Para um panorama sobre o uso (indiscriminado) da desconsideração da personalidade jurídica vide NUNES, Márcio Tadeu

Guimarães. Desconstruindo a Desconsideração da Personalidade Jurídica. São Paulo: Quartier Latin, 2007. 33 FORGIONI, Paula. (Et.al). Op. Cit. 34 Sua origem em um diploma legal pode ser atribuída à Constituição Mexicana de 1917, inspirada pelo movimento anarco-

sindicalista, vencedor da revolução ocorrida naquele país (COMPARATO, Fábio Konder. A constituição Mexicana de 1917.

Disponível em HTTP://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/anthist/mex1917.htm). Em 1919, a função social apareceria na

Constituição de Weimar, albergando interesses de grupos comunistas e fascistas que surgiram para rivalizar com os partidos

liberais clássicos na Alemanha devastada pela Primeira Guerra (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Função Social no

Direito Privado e Constituição. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, n. 61, 2006. p 156).

No mesmo sentido, Rachel Sztajn demonstra, ainda, como a propriedade, à época do fascismo italiano, nada mais era do que

um meio de facilitar a intervenção ou controle do Estado sobre a atividade econômica ou a propriedade fundiária (A função

social do contrato e o direito da empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo:

Malheiros, p. 36)

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de maiores salários restará prejudicada) 35

. Não que esses deveres devam ser esquecidos e

abandonados, mas é importante que se note que os interesses dos próprios stakeholders

podem não ser convergentes entre si.

O estudo contemporâneo da função social da empresa deve fugir do discurso retórico

que o vem acompanhando e buscar, primordialmente, o aprofundamento da investigação e

descrição das múltiplas funções e utilidades da atividade empresarial, a fim de sopesar com

maior precisão e consciência a eventual conveniência de se privilegiar um ou outro interesse a

ser tutelado pela empresa.

35 É sempre válido relembrar a clássica crítica de Milton Friedman em “The Social Responsibility of Business is to Increase

its Profits” New York Times, September 13, 1970, Section 6 (Magazine). Uma visão crítica pode também ser encontrada em

SMITH, D. G. “The Shareholder Primacy Norm” (1998) 23 Journal of Corporate Law 277; STOUT “Bad and Not-So-Bad

Arguments for Shareholder Primacy” (2002) 75 South California Law Review 1189; FISCH “Measuring Efficiency in

Corporate Law : The Role of Shareholder Primacy” 31 J Corp L 637 (2006); KEAY, “Shareholder Primacy in Corporate

Law. Can it Survive? Should it Survive?, disponível em http://ssrn.com/abstract=1498065.

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Parte II – Princípios do direito societário

4. Liberdade de Associação

André Luiz Santa Cruz Ramos

O direito empresarial pode ser entendido, sucintamente, como o regime jurídico

especial de direito privado que disciplina a atividade econômica (empresa) e seus agentes

econômicos (empresários).

Antes de iniciar qualquer estudo ou proposta de estudo sobre o direito empresarial e

seus valores e princípios, é imprescindível estabelecer, a priori, qual o regime de mercado

escolhido pelo ordenamento jurídico geral no qual esse direito empresarial se insere.

Pois bem. De acordo com a nossa atual Constituição Federal, parece-nos claro que o

ordenamento jurídico brasileiro adota o regime capitalista de mercado, já que a Lei

Fundamental reconhece a livre iniciativa como pilar da ordem econômica (art. 170, caput), a

qual tem por princípios, dentre outros, a propriedade privada (art. 170, II) e a livre

concorrência (art. 170, IV). Ademais, a Carta Magna ainda prevê que o Estado, em princípio,

não explorará diretamente atividade econômica (art. 173, caput) e que o planejamento estatal

da economia é meramente indicativo para o setor privado (art. 174, caput).

Partindo-se, pois, da premissa de que o direito empresarial brasileiro está inserto num

ordenamento jurídico geral capitalista, é fácil supor que os princípios e valores constitucionais

que fundamentam esse regime capitalista de mercado são também princípios e valores

fundamentais do direito empresarial. E um desses princípios e valores é, justamente, a

liberdade de associação, a qual, a propósito, é também assegurada expressamente na

Constituição Federal, em seu art. 5º, XVII e XX.

Um regime capitalista só funciona se ele assistir ao pleno e genuíno funcionamento do

livre mercado, em que a propriedade privada é reconhecida e protegida e os agentes

econômicos são livres para atuar por meio de trocas voluntárias36

. Assim, pode-se dizer que o

direito empresarial, num ordenamento jurídico capitalista, deve permitir – e garantir – a

36 Atualmente, porém, tanto a propriedade privada quanto a liberdade para a realização de trocas voluntárias estão fortemente

limitadas, em nome de um “modismo” jurídico chamado função social.

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efetiva cooperação entre os agentes econômicos por meio de acordos voluntários, sobretudo

acordos que envolvam a associação desses agentes econômicos para fins lícitos.

É importante lembrar que a liberdade de associação está na raiz do direito empresarial,

já que foi a partir da associação dos comerciantes burgueses que surgiram as conhecidas

Corporações de Ofício medievais, cujos estatutos representaram, segundo os doutrinadores, a

primeira tentativa de sistematização das regras comerciais37

.

Como princípio constitucional, a liberdade de associação possui dois vetores: (i)

positivo, que garante a todo e qualquer cidadão o direito de associar-se livremente, sem

nenhuma restrição por parte do Estado; (ii) negativo, que assegura a todo e qualquer cidadão

os direitos de não se associar e de se desassociar, sem nenhuma imposição por parte do

Estado. Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal38

.

Veja-se que, em ambos os sentidos – positivo e negativo – a liberdade de associação

repele a interferência estatal, ressalvadas apenas as expressas situações excepcionais descritas

no próprio texto constitucional: associação para fim ilícito ou paramilitar. Portanto, pode-se

dizer que a autonomia da vontade, no que tange à liberdade de associação, deve ser plena,

evitando-se ao máximo a interferência estatal nessa seara, seja por meio de atividade

legislativa39

ou jurisdicional40

.

Ponto interessante sobre a liberdade de associação é que ela, aplicada ao direito

empresarial, não deve ser assegurada apenas às pessoas naturais – como defendem alguns

37 “As fontes do ius mercatorum eram os estatutos das corporações mercantis, o costume mercantil e a jurisprudência da

cúria dos mercadores. (...) O costume nascia da constante prática contratual dos comerciantes: as modalidades

consideravam vantajosas convertiam-se em direito; as cláusulas contratuais transformavam-se, uma vez generalizadas, no

conteúdo legal dos contratos. Por último, os comerciantes designados pela corporação compunham os tribunais que

decidiam as controvérsias comerciais.”: GALGANO, Francesco. História do direito comercial. Tradução de João Espírito

Santo. Lisboa: Editores, 1990, p. 40. O que se vê, hodiernamente, é a intervenção cada vez maior do Estado nas relações

privadas, sobretudo as relações econômicas, algo que o direito empresarial deveria repelir, em respeito e homenagem à sua

própria história. Não se deve permitir que o “meio econômico” (trocas voluntárias dentro de um livre mercado) seja

subjugado pelo “meio político” (expropriação violenta da riqueza de terceiros) na tarefa de oferecer aos indivíduos às

possibilidades de satisfação de suas necessidades: OPPENHEIMER, Franz. The State. New York: Vanguard Press, 1914. 38 “Ao lado, portanto, da liberdade positiva – liberdade de associar-se livremente sem oposição por parte do Estado –,

consagrou a nova Carta a liberdade negativa, ou seja, a de não ser compelido a associar-se ou a manter-se associado,

situação absolutamente incompatível com a liberdade de associar-se, implicando impossibilidade de a lei impor um ato de

adesão ou de permanência em uma associação. [...].Já não há espaço para a concepção de um imperativo sistema

centralizado de arrecadação e distribuição dos direitos autorais, inexistindo dúvida de que a lei, em agredir a nova

disciplina constitucional sobre a liberdade de associação (incisos XVII e XXI do artigo 5.o da CF) e sobre a exclusividade

do autor sobre o direito de utilização, publicação e reprodução de suas obras (inc. XXVII do dispositivo citado), já não pode

compelir os titulares desses direitos a reunirem-se, diretamente ou por via de suas associações, numa entidade única, para

vê-los arrecadados e distribuídos.” (STF, ADIn nº 2.054-DF, Relator Min. Ilmar Galvão, RTJ 191/78). 39 Não se deve admitir, por exemplo, que leis restrinjam ou limitem a liberdade de associação, como tem ocorrido com a

liberdade de contratar, submetida muitas vezes ao cabresto do dirigismo contratual. 40 Embora não tenha tratado especificamente do tema liberdade de associação, um recente julgado do STJ ilustra bem a

importância de o Judiciário não se imiscuir em questões relacionadas à vida de organismos associados constituídos

livremente: STJ, MC 14.561/BA, Relatora Min. Nancy Andrighi, julgado em 16/09/2008, DJe 08/10/2008. No acórdão,

consagrou-se a intervenção mínima do Judiciário em questões societárias.

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juristas41

–, mas também às pessoas jurídicas. Afinal, é fato que no mercado a atuação das

pessoas jurídicas (sociedades empresárias) é cada vez maior e mais relevante que a atuação

individual das pessoas naturais (empresários individuais).42

41 “A liberdade de associação, como a de reunião, é direito individual. Não pode invocar liberdade de associação, direito do

homem, qualquer pessoa jurídica.”: MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Tomo IV. 4ª ed. Rio de

Janeiro: Forense, 1963, p. 480. 42 “A liberdade legítima é a ação desobstruída de acordo com nossa vontade, limitada pelo igual direito de terceiros.”

(Thomas Jefferson)

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5. Autonomia Patrimonial da Pessoa Jurídica e Limitação e Subsidiariedade da

responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais

Áurea Moscatini

Destina-se o presente estudo à exposição breve acerca do princípio da autonomia

patrimonial da pessoa jurídica e também da subsidiariedade da responsabilidade dos sócios

pelas dívidas sociais, como vêm sendo estudados, interpretados e aplicados, tanto pela

doutrina, quanto pela jurisprudência.

A verdade é que até pouco tempo justificou-se a forma como vinham sendo aplicados,

pelas regras do neoliberalismo, diante dos valores estabelecidos, pois sua principal função foi

a de garantir a independência e limitação do patrimônio dos investidores e assim o direito de

mantê-lo intacto, com a invasão no patrimônio dos sócios, como, por exemplo, diante da

afronta à lei, ao contrato ou em casos de fraude declaradamente comprovada. Dentro de uma

visão individualista e apoiada na proteção do direito da propriedade, até então, não ocorreu

qualquer problema, mas atualmente, o quadro que se apresenta é bem diferente.

Esses princípios vêm sendo colocados de lado, muitas vezes, desprestigiados, que não

dizer desprezados, especialmente pelas áreas do Direito que protegem interesses dos

chamados credores não negociáveis, como os consumidores e os trabalhadores.

O Direito Comercial como Ciência somente se justifica, desde que seus princípios

estejam fortalecidos e, por esta razão, é o momento de buscar novos caminhos dentro dos

valores emergentes da sociedade de hoje para que se solidifique como ciência.

Importante demonstrar que os princípios da autonomia patrimonial e da

subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais são importantes, a fim de

que os investimentos continuem sendo feitos, o que garantirá via de conseqüência a

sobrevivência da figura do empresário, na forma de sociedade ou individual, o que é muito

importante para a sociedade e mais ainda para a sobrevivência do próprio homem, como ser

social que é. Não se pode esquecer que o homem necessita da imposição de normas que

garantam sua tranqüilidade no convívio social e especialmente lhe garantam os bens, com a

crescente evolução tecnológica a que está acostumado. Se por um lado existem fortes

investimentos na área tecnológica, por outro lado, verifica-se a aproximação de um mal

inevitável, como as mudanças climáticas, as quais representam grandes catástrofes, com fortes

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impactos ambientais, sociais e econômicos, o que num curto espaço de tempo, fará com que o

homem dispute por água e comida e não petróleo ou bens sofisticados tecnologicamente,

como se imaginava, anteriormente.

Daniela Campos Liborio di Sarno sugere que definição de uma política pública sobre

os itens centrais, a tecnologia para alteração de matriz energética, a redução de emissão de

carbono, os diagnósticos com métodos aprovados internacionalmente, parece estar longe das

competências locais e regionais. Entretanto, pode-se conseguir a redução de emissão de

carbono por meio da eficiência do trânsito, com duração menor para os deslocamentos

urbanos. Pode-se viabilizar uma eficiência energética estimulando o uso de energia solar nas

novas construções ou produzindo energia nos aterros sanitários. A impermeabilização do solo

urbano também é outro fator de alteração de microclima que pode exigir uma disponibilidade

energética maior, trazer uma incidência maior de alterações climáticas. O uso e ocupação do

solo é elemento chave para o desenvolvimento do clima e seu adensamento deve ser

controlado rigidamente pelo Estado como uma forma de não agravar as condições climáticas

das grandes regiões urbanas. Considerando que a ocupação de encostas, beiras de rios a áreas

alagadiças é feita pela população de baixíssima renda, são estas pessoas que sofrerão, em

primeira instância, as conseqüências do clima. As políticas públicas precisam ser revistas

urgentemente para se adequarem às novas circunstâncias. O aquecimento pode ser global, mas

as conseqüências serão sempre locais.43

Evidente que todas essas providências demandaram,

sem dúvida alguma, muita pesquisa, capital, trabalho, que efetivamente encontra-se no setor

privado Assim, as políticas públicas podem refletir em incentivos e proteção a esse setor, que

já está capacitado para atender às demandas emergenciais.

Neste sentido, o mundo encontra-se carente de investimentos, que representem a

simples garantia de sobrevivência do ser humano e um dos agentes importantes neste

contexto, sem dúvida nenhuma, é o empresário, sendo o responsável pela circulação de

riquezas.

Especialmente o Brasil, na condição de país em desenvolvimento, onde os impactos

sofridos já são mais que evidentes, necessita de um engajamento de todos, não só das

autoridades públicas, mas sim um envolvimento social de maior envergadura para suportar

essas dificuldades.

43 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Direito Ambiental e Urbanístico: Panorama Jurídico Sobre As Mudanças Climáticas

e o Aquecimento Global: Algumas Considerações. Editora Fórum, 2010. 60p.

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O Direito visa o equilíbrio nas relações sociais, uma vez que suas normas efetivamente

representam a proteção de valores consagrados pela sociedade, assim importante é a

preocupação com a proteção da atividade empresarial, que tem papel significativo neste

contexto, já que o Estado não tem como suprir todas as deficiências e necessidades,

principalmente em situações de risco acentuado, como dos impactos das mudanças

climáticas. Tal questão apresenta-se, inicialmente, de forma tranqüila e despida de qualquer

pretensão, mas essa simples lição, que nos acompanha desde os primeiros estudos da Ciência

do Direito, mostra que o seu enfraquecimento, fatalmente, desembocará no desequilíbrio

social, se não ficarmos atentos ao chamado para o fortalecimento de seus princípios, os quais

têm como a principal tarefa de disciplinar e, por que não dizer, preservar a fonte produtora, no

caso, a empresa.

Segundo as lições do Prof. Fábio Ulhoa Coelho, “cada ramo jurídico assenta-se em

valores próprios traduzidos pelos seus princípios.”44

E assim, chamando a atenção para o fato

de que os valores do Direito Comercial estão esgarçados, merecendo momento de reflexão e

análise, importante será destacar idéias, mecanismos que justifiquem a aplicação de tais

princípios, diante do quadro que se estabelece a cada momento.

Por fim, pretende-se demonstrar que em sendo fortalecidos esses

princípios que se referem à atividade empresarial, seus agentes se sentirão motivados a não só

continuar investindo, mas também aumentarão tais investimentos, garantindo-se preços justos,

produtos de qualidade e, especialmente, proporcionando a todos uma sociedade mais justa e

com qualidade de vida, pois são os responsáveis não só pelos avanços tecnológicos, como

também pela sobrevivência do ser humano, quando garantem os itens de subsistência,

principalmente em situações de perigo.

É importante destacar que os princípios são vetores, diretrizes a serem seguidas e que

traçam as noções básicas do ordenamento jurídico, vinculando as atividades de aplicação e

interpretação da ciência jurídica.

Interessantíssima a distinção feita por Rizzatto Nunes, entre princípio e valor:

“O princípio é, assim, um axioma inexorável e que, do ponto de vista do Direito, faz

parte do próprio linguajar desse setor de conhecimento (...). O valor sofre toda influência de

44Fábio Ulhoa Coelho, O Futuro do direito comercial , Ed. Saraiva, 2010, p.7

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componente histórico, geográfico, pessoal, social, local, etc. e acaba se impondo mediante

um comando de poder que estabelece regras de interpretação – jurídicas ou não”.45

E ainda nas lições do Prof. Alaor Café, quando aborda a gênese da norma demonstra

que ela deve brotar dos anseios da sociedade, deve refletir os seus interesses:

“A norma não é simplesmente o que é linguisticamente, mas também o que pode e

deve ser no mundo real da comunidade jurídica à qual pertence. Ela é enquanto pode e deve

ser cumprida neste mundo. Se a norma de direito não pudesse ser cumprida, nem devesse ser

cumprida na comunidade jurídica, então não seria norma jurídica.

...

A norma jurídica não é só válida (e existente) por compor um sistema normativo em

seu contexto hierárquico positivado. Ela exige um componente empírico, com fundamento nos

fatos socioculturais, para que seu estudo e hermenêutica não se resumam a um mero capítulo

da lógica. A verdade de sua validade não é a coerência sistêmica. Há necessidade de

verificação empírica para apurar-se a validade da norma jurídica.” 46

Ao tratar especificamente da questão relacionada à empresa no Código Civil

Brasileiro, Rachel Sztajn,47

citando Dagan, enfatiza que valores públicos devem informar as

normas de Direito Privado, não deixando de lado o foco das relações a que disciplinam, que

são as horizontais, desde que as expectativas e pretensões sociais apareçam como fundamento

do Direito Privado.

Não justifica-se mais a aplicação dos princípios em análise mediante uma visão

eminentemente individualista, mas sim, diante de sua integração a de valores coletivos, dada a

sua importância num quadro de responsabilidade social.

Ao citar, a autora, Oppo 48

, o qual afirma que se está diante de um Direito de Mercado,

onde explica que “a liberdade de iniciativa e utilidade social compreende valores como

segurança, dignidade dos seres humanos e dever de solidariedade, pelo que considera ser a

utilidade social limite à iniciativa econômica; que as normas concorrenciais, ao penalizarem

o exercício de poder no mercado, são, igualmente, limitação à liberdade de iniciativa.”

Neste sentido, vê-se que existe uma preocupação de cunho nacional e

internacional de que o Direito Privado é dotado de valores específicos, e não sendo mais a

propriedade e sim o bem-estar coletivo, deve-se procurar novas maneiras de interpretação.

45 NUNES, Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2002. 46 ALVES, Alaôr Caffé. Dialética e Direito. Editora Manole, 2010. 435p 47 SZTAJN, Rachel. Revista do Advogado n° 96: Codificação, decodificação, recodificação: a empresa no Código Civil

brasileiro. AASP, 2008. 124p. 48 Ob. Cit.

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23

No que se refere especificamente à questão dos princípios da autonomia patrimonial,

verifica-se que o princípio da autonomia patrimonial vem sendo desprestigiado.

Observa-se, em resumo, que quando os credores são bancos, fornecedores, ou seja,

outros empresários, os sócios não são responsabilizados, não havendo a invasão no

patrimônio.

Segundo os ensinamentos de Fabio Ulhoa Coelho49

, a responsabilização dos sócios

tem se verificado em casos em que não há os pressupostos de fraude e diante de credores não

empresários, acabando, pois, com as bases do instituto.

Em seguida 50

, sustenta que as bases para a motivação jurídica em fortalecer tais

princípios dizem respeito primeiro à limitação das perdas, que não devem ultrapassar o

investimento feito, pois representa fator essencial para a atividade econômica capitalista. Em

seguida sustenta-se pelo custo da atividade econômica, pois o preço a ser pago pelo

consumidor sofrerá com o repasse de redução de custos e prática de preços elevados, ao

adquirir produtos de baixa qualidade a preços mais caros.

Afirma não se justificar o afastamento da autonomia patrimonial diante da mera

inadimplência, exigindo-se a comprovada utilização da mesma. 51

Ainda, segundo referido autor, ao abordar a questão da subsidiariedade da

responsabilidade dos sócios52

, demonstra que referido tema é uma questão de direito-custo,

pois os capitalistas se afastariam de segmentos que exigem altos aportes na área tecnológica e

o preço das inovações suportados pelos consumidores seria bem alto, para cobrir os seus

custos e gerar os lucros capazes de cobrir o risco da perda do patrimônio.

Evidente que a fuga do consumidor, via de regra, fará com que haja menos circulação

de riquezas. Segundo Fábio Ulhoa Coelho a quebra da sociedade será a perda do credor, pois

é perfeitamente previsível que toda empresa está sujeita ao risco do insucesso e é, para ele,

justo que todos os agentes econômicos suportem o prejuízo.

49 COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de Direito Comercial, volume 2 Direito de Empresa, Sociedades. São Paulo, 14ª edição,

Saraiva, 2010, pagina 23. 50 Ob. Cit., pagina 40. 51 Ob. Cit., página 41 52 Ob. Cit., página 413

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Outra questão levantada pelo autor diz respeito à falta de textos legislativos

reguladores da perda da autonomia patrimonial em relação aos credores não negociais.

Concluindo, então, que

“na tutela dos direitos dos consumidores, na proteção da concorrência e na repressão

a práticas lesivas ao meio ambiente, a imputação da responsabilidade aos sócios deve

atender aos pressupostos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Os

empregados e demais credores não negociais, por fim, enquanto não editada regra que os

beneficie expressamente, devem ter os seus direitos creditórios, perante a sociedade limitada,

sujeitos à regra da autonomia patrimonial e da limitação da responsabilidade do sócio53

”.

A questão de que o Direito Comercial necessita de princípios próprios, já foi objeto de

discussões ao longo dos anos, o que foi destacado por Paula A. Forgioni.54

Destacou que não se pode prosseguir numa sociedade onde um desconfia do outro,

onde todos os envolvidos não estão protegidos pelo manto do Direito, em caso de qualquer

eventualidade, se exige maior segurança.

Fábio Konder Comparato, defende que reconhecimento claro e consequente de que

controle empresarial não é propriedade implica uma verdadeira revolução copernicana no

estatuto da empresa, que passa de objeto a sujeito de direito. Com essa substituição do centro

de gravidade, é o empresário que deve servir à empresa, e não o contrário.

E então, propõe a instituição democrática da empresa, onde o lucro deixaria de ser

fruto da propriedade do capital, sendo repartido por todos os que concorreram com seus

esforços e recursos para a produção do resultado. Procura colocar ao final que isso até pode

parecer loucura, mas se justifica diante dos acontecimentos sócio-econômicos, onde

princípios como o da autonomia patrimonial afastaria a responsabilidade dos sócios, pois a

empresa personalizada, tal como a fundação, tornar-se-ia um patrimônio finalístico.55

Interessante posicionamento, porém difícil de se sustentar.

A Doutrina já chama a atenção para que o grande desafio que se impõe aos estudiosos

do Direito Comercial é o de conciliar o econômico e o social, com o fim último de garantir o

devido cumprimento de normas que representem efetivamente os anseios sociais, garantindo-

se, via de conseqüência a convivência harmônica.

53 Ob. Cit., página 419 54 Cf. FORGIONI, Paula A.; A Interpretação dos negócios empresariais no novo código civil brasileiro. in RDM 130/7 55Comparado Konder Fábio, Direito Empresarial – Estudos e Pareceres, , 1990, Ed. Saraiva

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Em análise à jurisprudência pudemos perceber que realmente o princípio da autonomia

patrimonial e da subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas dívidas da sociedade

estão sendo aplicados de forma equivocada. Neste sentido, julgados acerca de direitos do

consumidor, onde sem mesmo serem atendidos aos ditames do artigo 50 do Código Civil,

determina-se a desconsideração da personalidade jurídica.56

Em pior situação encontram-se os julgados na esfera trabalhista, que inadvertidamente

invadem, de antemão os bens particulares dos sócios pelas dívidas sociais, em flagrante

desrespeito à lei e aos princípios aqui estudados. 57

Uma vez ou outra, localiza-se decisões esparsas que respeitam efetivamente o disposto

no artigo 50 do Código Civil, qual seja, de que se forem nomeados bens à penhora por parte

da empresa executada, não há que se invadir o patrimônio particular dos sócios58

, que, no

entanto, não são regra, infelizmente.

56 AGRAVO DE INSTRUMENTO.CUMPRIMENTO DE SENTENÇA.DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE

JURÍDICA.Obstáculo ao ressarcimento de danos ao consumidor. Relação de consumo.Aplicação do art. 28, § 5º, do CDC.

Teoria Menor da Desconsideração. Sócio minoritário, detentor de apenas 1% das cotas e sem poder de

administração.Responsabilidade pessoal, mas subsidiária em relação ao sócio administrador, que exercia os poderes de

gestão da empresa. Interpretação à luz da excepcionalidade da medida e do Enunciado nº 7 do CJF. Conformação da Teoria

Menor aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.Excesso de execução reconhecido.Afastados dos cálculos a

cobrança de valores abrangidos pela gratuidade de justiça. Alegação de impenhorabilidade de bem de família rejeitada,

porquanto determinada apenas penhora sobre direitos hereditários. Decisão parcialmente reformada.RECURSO PROVIDO

EM PARTE (TJSP, Agravo de Instrumento nº 4012757020108260000 SP, Relator: Paulo Alcides, julgado em 16/12/2010) 57 “AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. EXECUÇÃO. CITAÇÃO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE

PROCESSUAL. APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DO DEVEDOR.

1. Não procede a alegada nulidade da citação, visto que a Corte de origem consignou que esta ocorreu validamente, tanto

que a executada indicou bens à penhora, rejeitados pela exequente, sendo certo que não foram encontrados outros bens da

pessoa jurídica, razão por que a execução voltou-se contra o patrimônio pessoal dos sócios. 2. A aplicação da teoria da

despersonalização advém do descumprimento das obrigações decorrentes do contrato de trabalho e da falta de bens

suficientes da empresa executada para satisfação das obrigações trabalhistas. Correta a constrição dos bens da ora

agravante, considerando sua condição de sócia da executada durante a relação de emprego da autora, bem como a

inexistência de patrimônio da empresa executada capaz de garantir a execução, conforme salientado na decisão proferida

pelo Tribunal Regional. Agravo de Instrumento a que se nega provimento”. (TRT 15 Processo: AIRR - 262840-

52.2000.5.02.0076 Data de Julgamento: 18/08/2010, Relator Ministro: Lelio Bentes Corrêa, 1ª Turma, Data de Publicação:

DEJT 27/08/2010) e 58 Voto do desembargador Eurico Cruz Neto: “(...) A desconsideração da personalidade jurídica de uma empresa somente se

justifica quando há prova incontestável de que os sócios agiram com abuso (artigo 50 do CC).

Durante toda a instrução processual não restou demonstrado qualquer elemento de prova que pudesse atestar a

inidoneidade financeira do primeiro reclamado e nem que os seus sócios estivessem agindo de forma a dilapidar-lhe o

patrimônio.

Por óbvio que os créditos trabalhistas devem ser privilegiados. Contudo, a desconsideração da personalidade jurídica de

uma empresa deve observar os requisitos legais, sob pena de aniquilarmos o conceito de pessoa jurídica.(...)” (TRT 15ª

Região, Recurso Ordinário nº: 0942-2008-097-15-00-1, Relator: Desembargador Enrico Cruz Neto, julgado em: 01/09/2009)

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - Recurso contra r. decisão

que indeferiu pedido de desconsideração da personalidade jurídica - A desconsideração da personalidade jurídica é medida

excepcional que somente pode ser aplicada quando demonstrada a prática de irregularidades e fraudes pelos sócios -

Decisão mantida- Recurso improvido."

(TJSP, Agravo nº 990.10.141164-4 Data de julgamento: 03/08/2010, Relatora: VIVIANI NICOLAU, 9ª Câmara de Direito

Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo)

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Nas questões tributárias, com base em textos legais, vem se observando, diante dos

ditames da própria lei tributária a solidariedade entre empresa e sócio-administrador, desde

que tenham praicado atos com excesso de poder ou em afronta à lei.59

Enfim, o grande problema está realmente localizado na esfera trabalhista, que além

dos perigosos entendimentos jurisprudenciais a que destacamos, vêm celebrando convênios

para o fim de proceder a penhoras on-line e, mais, com a Receita Federal para acessar a dados

pessoais, quebrando-se o sigilo bancário, que segundo sua ótica, vem propiciar melhora na

prestação jurisdicional. E mais recentemente, o TRT da 15ª Região celebrou convênio

referente ao protesto extrajudicial das decisões em fase de execução na esfera trabalhista.

Mais uma atrocidade, haja vista que, mesmo na fase de liquidação inúmeras questões de

ordem processual poderão ser suscitadas, acarretando, inclusive, em possível liquidação zero.

Assim, não existe mais o respeito a limites impostos, inclusive, de ordem constitucional.

Enfim, o momento demanda enorme esforço por parte dos estudiosos e operadores do

Direito Comercial e exige rapidez no agir, especialmente, para evitar que essas posturas

desprovidas de qualquer amparo legal, porém alicerçadas em princípios próprios, como

especialmente, o de proteção ao hipossuficiente, no Direito do Trabalho, acabem por

comprometer a força produtiva da empresa, levando ao colapso toda a sociedade.

Diante do quadro apresentado, fácil ficou de constatar que se o princípio não se

mantém por si, necessária a sua interpretação em consonância com outro princípio. O que se

verifica é que o fato de esquecer-se da aplicação correta dos princípios ora em análise, o

investidor tome caminhos outros, quiçá indesejáveis e até mesmo lesivos à sociedade,

provocando um círculo vicioso, que desemboca no aumento de conflitos.

A proteção e devida aplicação dos princípios da autonomia patrimonial e da

responsabilidade subsidiária dos sócios representa o fortalecimento e a manutenção da fonte

produtora, que representa a garantia de todos os credores e de toda a sociedade. Isto porque a

técnica a qual o empresário está acostumado é a de todos nós, o comodismo ou o repasse, o

59 “É dominante no STJ a tese de que o não-recolhimento do tributo, por si só, não constitui infração à lei suficiente a

ensejar a responsabilidade solidária dos sócios, ainda que exerçam gerência, sendo necessário provar que agiram os mesmos dolosamente, com fraude ou excessos de poderes. (STJ, AgRg no RESP n. 346.109/SC, Relatora: Ministra Eliana

Calmon, julgado em: 19/03/2002)” e “Os sócios gerentes são responsáveis, por substituição, pelos créditos referentes a

obrigações tributárias decorrentes da prática de ato ou fato eivado de excesso de poderes ou com infração de lei,contrato

social ou estatutos, ou quando tenha ocorrido a dissolução irregular da sociedade, comprovada, porém a culpa. 2. O simples

inadimplemento de obrigações tributárias não caracteriza infração legal” (REsp n. 724.077/SP, Relator: Ministro Francisco

Peçanha Martins, julgado em 20.10.2005)

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que implica em atingir direitos metaindividuais, pois, como demonstrado, a falta de bens e

serviços afeta toda a coletividade, Estado, trabalhadores, consumidores, etc. “São interesses

metaindividuais que, sendo inatingível o grau de agregação e organização necessário à sua

afetação institucional junto a certas entidades ou órgãos representativos dos interesses já

socialmente definidos, restam em estado fluido, dispersos pela sociedade civil como um todo

(v.g., o interesse à pureza do ar atmosférico), podendo, por vezes, concernir a certas

coletividades de conteúdo numérico indefinido (v.g., os consumidores). Caracterizam-se pela

indeterminação dos sujeitos, pela indivisibilidade do objeto, por sua intensa litigiosidade

interna e por sua transitoriedade ou transformação em virtude de alteração na situação

fática que os ensejou.

...

Embora necessariamente compartilhado por todos, não pode ser quantificado e

dividido entre membros determinados da coletividade. Simplesmente repercutem no bem-

estar de todos ou mesmo na própria sobrevivência da sociedade. Vale dizer, se o interesse

individualizável merece a tutela jurídica, essa proteção deve ser potencializada quando uma

pluralidade de titulares, conquanto não-definível, esteja sendo afetada.60

Na verdade, ao fortalecer os princípios de Direito Comercial, não se está defendendo

exclusivamente o patrimônio privado e sim um patrimônio que gera bem-estar à coletividade,

mesmo porque, seguindo a sociologia de Durkheim, a empresa é parte integrante desta, sua

falta causa graves danos à mesma, ficando lançada a idéia propulsora para recozer tais

princípios, com o intuito de que se enfraquecidos não afetam drasticamente o grande

investidor, mas toda a sociedade.

Sendo isto o que explica a sociologia jurídica à luz dos ensinamentos de Durkheim:

"Na solidariedade característica de uma sociedade industrial, os indivíduos desenvolvem

funções especializadas, diferentes entre si, mas, ao mesmo tempo, interdependentes.

Durkheim, para esclarecer essa solidariedade, usa a metáfora do corpo, segundo a qual cada

membro e cada órgão, embora desempenhem funções diferentes, estão mutuamente

relacionados de forma que a soma das partes compõem um todo integrado e homogêneo.

Exatamente por isso, Durkheim chamou essa solidariedade de orgânica. Ela, sendo

característica das sociedades modernas e industriais, ao mesmo tempo está relacionada com

os grandes grupos sociais que atingem alto grau de diferenciação interna e necessitam, por

60 SHIMURA, Sérgio. Tutela Coletiva e sua efetividade. Editora Método, 2006. 27, 28p.

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essa razão, que as funções coletivas sejam partilhadas e cada indivíduo possa desempenhar

atividades totalmente diferentes, mas perfeitamente indispensáveis para a coletividade."61

Assim, pode-se dizer que a sociedade como um todo vive em uma "simbiose", onde

cada grupo integrante faz sua parte e contribui significativamente para os outros. Nesse

contexto entram também as figuras dos empresários, como peças chaves sem as quais não há

a possibilidade de uma convivência harmônica.

Sem a presença da empresa não há como garantir uma sociedade livre, justa e

solidária, nos termos preconizados no artigo 3º da Constituição Federal, afinal a população

não terá empregos, desencadeando um efeito dominó, pelo qual não haverá como garantir

respectivamente os outros objetivos dos incisos seguintes. Comprovando, aqui, que a função

social da empresa é muito mais ampla do que se imagina, o que se repete nos direitos sociais

previstos no artigo 6º, do mesmo diploma legal supracitado, devendo, pois serem garantidos

os limites impostos pelo princípio da autonomia patrimonial.

61 LOCRE, Adriana A.; FERREIRA, Helder R. S.; SOUZA, Luis Antonio S.; IZUMINO, Wania Pasinato. Sociologia

Jurídica, Porto Alegre, Síntese, 1999, página 51.

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6. Princípio Majoritário e a Proteção do Sócio Minoritário

Pedro Henrique Laranjeira Barbosa

O princípio majoritário foi e ainda pode-se afirmar que é um dos pilares fundamentais

do direito comercial pátrio e estrangeiro, mas que vem sofrendo, no âmbito interno, algumas

modificações ante a globalização, a nova realidade do mercado de capitais brasileiro e a

aplicação de alguns conceitos e princípios da governança corporativa.

A “majority rule” 62

está intimamente ligada ao direito de voto nas sociedades

empresárias e é tida por alguns autores como a “democracia societária”, justificada,

principalmente, pela impossibilidade de se conseguir, na ampla maiorias da vezes, a

convergência da unanimidade dos sócios em uma deliberação de interesse geral 63

,

conduzindo a um melhor andamento e desenvolvimento da empresa. Todavia, o princípio não

traduz, como se pode pensar, uma relação de parentesco com a democracia no campo da

organização estatal, mas sim está diretamente conectada ao risco do empreendimento,

estabelecendo, como regra geral, que cada participação no capital social corresponde a um

voto e a maioria desta participação é quem definirá os rumos sociais.64

Em razão dos potenciais abusos que tal formulação do direito pode ocasionar em

desfavor da própria sociedade empresária e dos minoritários, a lei estabelece algumas

exceções para determinadas deliberações sociais65

, punições severas quanto ao abuso do

poder do voto, proibição do voto em hipóteses de conflito de interesses, além de inúmeros

direitos em prol dos minoritários, restando consagrado, portanto, o princípio de proteção ao

minoritário.

Não restam dúvidas que os princípios majoritário e o de proteção ao minoritário são

amplamente protegidos e de fundamental importância em nosso ordenamento jurídico 66

,

62 Termo amplamente utilizado no direito norte-americano para designar o princípio majoritário consagrado em nosso sistema

jurídico. 63 VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedade por Ações, v. II, p. 112. Ver COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO

FILHO, Calixto. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 5a. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008; 64 COELHO, Fábio Ulhoa. “Democratização” das Relações Entre os Acionistas In CASTRO, Rodrigo R. Monteiro;

AZEVEDO, Luis André N. de Moura (org.). Poder de Controle e Outros Temas de Direito Societário e Mercado de Capitais.

São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 48/49. 65 Na lei das sociedades anônimas é possível destacar uma deliberação que demanda a unanimidade dos acionistas, aquela

prevista no art. 221: transformação da sociedade em outro tipo societário. O Código Civil também estabelece a unanimidade

para deliberação na sociedade limitada em seu artigo 1.061: designação de administrador não sócio enquanto não totalmente

integralizado o capital social. 66 A lei do anonimato é um bom exemplo desta consagração, já que, conforme se extraí inclusive da sua exposição de

motivos, foi elaborada tendo em vista uma figura central: o acionista controlador, a partir do qual são fixadas as principais

normas do diploma.

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sendo reconhecidos pela jurisprudência e tendo também a CVM manifestado-se quanto a sua

efetivação no âmbito do mercado de capitais.

Entretanto, tais princípios vêm sofrendo modificações em sua interpretação e

aplicação, principalmente no que tange as sociedades anônimas abertas e que, aos poucos,

vêm se disseminando e orientando as sociedades anônimas de capital fechado e as limitadas.

É possível afirmar que os fenômenos da globalização, da governança corporativa e o

desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro, com o recentíssimo surgimento da

dispersão acionária em nossa mercado, são três das principais razões para a releitura dos

referidos princípios societários.

Estes fatos têm impacto direto no campo do direito societário, haja vista estabelecerem

novos paradigmas não só para a interpretação e aplicação do direito positivo vigente, mas

como também para elaboração de novas normas jurídicas e administrativas. Tais fenômenos

trazem para a esfera interna da sociedade interesses diversos daqueles tidos como dos

acionista controlador, minoritários e sociais, podendo citar como exemplos destes novos

interesses a proteção ao mercado, a figura do investidor externo, a proteção do trabalhador e

da comunidade em geral, os quais impactam diretamente no desenvolvimento da empresa

societária, servindo para orientar a atuação de todos os acionistas, sejam majoritários ou

minoritários e, conseqüentemente, influenciando diretamente nos princípios majoritário e na

proteção ao minoritário.

A nova concepção destes importantes princípios já começou a tomar forma,

primeiramente com o chamando “Novo Mercado” da BMF Bovespa 67

, que apesar de sua

índole contratual 68

, traz alguns mecanismos de seguimento obrigatório para as companhias ali

listadas, tais como a melhoria na proteção ao minoritário quando do exercício do direito de

recesso, necessidade da existência de apenas ações ordinárias e a resolução de conflitos pela

arbitragem; em regulações administrativas promulgadas pela CVM, podendo ser citados os

Pareceres de Orientação n. 34/2006 e 35/2008, os quais trazem mudanças ao regime

majoritário em sede de restruturação societárias, principalmente nos intensamente debatidos

67 O regulamento da listagem do novo mercado está disponível em: <http://www.bmfbovespa.com.br/pt-

br/mercados/download/RegulamentoNMercado.pdf>, acesso em 01.02.2011. 68 SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. 3a. Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 57.

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casos das incorporações69

, em atendimento à protecção do minoritário dentre outros

interesses, a instrução normativa n. 481/2009, que reconhece o desaparecimento da figura do

acionista controlador e a existência de um controle minoritário, através da regulação do

processo da proxy machinery; e na própria doutrina, que vem explorando estes temas,

procurando dar novos contornos ao direito societário em geral.

69 Ressalta-se que não está em debate aqui a questão da legalidade de tais disposições, mas tão somente a observação que a

releitura dos princípios majoritário e proteção ao minoritário está sendo realizada pela CVM. Ver WARDE JR., Walfrido

Jorge. Os Poderes Manifestos no âmbito da Empresa Societária e o Caso das Incorporações: a Necessária Superação do

Debate Pragmático-Abstencionista In CASTRO, Rodrigo R. Monteiro; AZEVEDO, Luis André N. de Moura (org.). Poder de

Controle e Outros Temas de Direito Societário e Mercado de Capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2010; e a entrevista de José

Alexandre Tavares Guerreiro disponível em: <http://www.bmfbovespa.com.br/juridico/noticias-e-

entrevistas/Noticias/091223NotA.asp>, acesso em 31.01.2011.

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Parte III – Princípios do direito cambiário

7. Cartularidade e literalidade

Daniel Shem Cheng Chen

Segundo Vivante, em seu conceito clássico, título de crédito “é o documento necessário para

o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado”. Dessa definição, é possível

extrair três princípios do direito cambiário que sintetizam sua teoria geral: a cartularidade, a

literalidade e a autonomia.

Embora considerados como documentos, os títulos de crédito se distinguem dos demais em

três aspectos, segundo Fábio Ulhoa Coelho70

. Ensina esse autor, primeiramente, que os títulos

de crédito documentam somente relações creditícias, não podendo estabelecer obrigação de

dar, fazer ou não fazer. Em segundo lugar, para facilitar sua cobrança em juízo, a lei

processual conferiu eficácia executiva aos títulos de créditos, considerado-os como título

executivo extrajudicial, dispensando-se a necessidade de ajuizar ação de conhecimento para o

reconhecimento do direito do credor. Por fim, a negociabilidade dos títulos de crédito permite

a sua circulação e, consequentemente, a negociação entre partes desses instrumentos,

diferentemente de outros instrumentos representativos de uma obrigação que não possuem

todos os atributos de um título de crédito.

Princípio da Cartularidade: Conforme esse princípio, título de crédito é o documento

necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado. A posse do título

e sua exibição pelo credor ao devedor ou a quem deva saldar o crédito são indispensáveis para

a garantia do exercício dos direitos nele mencionados. Tanto é que alguns autores se valem da

noção de incorporação ao explicar a materialização do direito de crédito no documento71

. Em

outras palavras, o direito se incorpora ao documento72

.

Ensina Fábio Ulhoa Coelho que a apresentação de cópias autenticadas de um título não

confere essa mesma garantia, porque quem as apresenta não se encontra necessariamente na

posse do documento original, podendo já tê-lo transferido a terceiros73

. Ao ajuizar a ação de

70 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito de Comercial: Direito de Empresa v. I. 12a edição, Saraiva, São Paulo, 2008, p.

374. 71 BORGES, João Eunápio. Títulos de Crédito. 2a Edição, Forense, Rio de Janeiro, 1979, p. 12-13. 72 BULGARELLI, Waldirio. Títulos de Crédito. 9ª edição, Atlas, São Paulo, 1992, p. 55. 73 COELHO, Fábio Ulhoa. Obra citada, p. 376. “A exigência da via original do título executivo extrajudicial como requisito à

propositura do processo de execução visa atender duas finalidades: primeiro, certifica a autenticidade do título, e, segundo,

afasta a possibilidade de ter a cártula circulada (3a Turma STJ, Recurso Especial 337.822/RJ).”

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execução para o pagamento de título de crédito, é imprescindível que o credor instrua a inicial

com o título original. Esse autor conclui que uma pessoa que não tem em sua posse o título

original, não se pode ser presumido credor74

.

Não é por outro motivo que aquele que realiza o pagamento da obrigação consubstanciada no

título deve exigir a sua devolução, impedindo que esse mesmo título seja novamente

negociado junto a terceiros de boa-fé, evitando-se que seja compelido a realizar novamente o

pagamento75

. Esse cuidado garante ao pagador o direito de regresso contra outros eventuais

devedores do título pago.

Por fim, há uma exceção ao princípio da cartularidade no direito brasileiro. O legislador

determinou que na duplicata mercantil ou de prestação de serviços, o credor poderá exercer

seus direitos mesmo não tendo a posse do documento. Neste caso, para garantir os seus

direitos, o credor deverá formalizar um protesto no cartório competente, indicando o portador,

a quantia devida, o vencimento etc., do título, caso este não tenha sido devolvido76

. Essa

formalidade, instruída com o comprovante de entrega e recebimento da mercadoria,

possibilitará ao credor promover a execução extrajudicial e assegurar o pagamento do seu

crédito77

.

Princípio da literalidade: Uma vez apresentado o documento, é indispensável que o

título subscreva todos os direitos conferidos ao credor frente ao devedor, uma vez que “vale

no título o que nele está escrito78

”. Trata-se do princípio da literalidade. Pode-se assim

concluir que a literalidade é a medida do direito contido no título e que, sendo assim, “o que

não está no título não está no mundo79

”.

Em outros termos, os efeitos do princípio da literalidade conferem garantias tanto ao credor

como ao devedor. O credor terá a certeza de que poderá exigir do devedor os direitos descritos

74 COELHO, Fábio Ulhoa. Obra citada, p. 376. 75 “Paga mal o sacado que se satisfaz com a quitação em separado fornecida pelo sacador sem dele exigir a devolução da

cártula. O recibo há de ser passado pelo legítimo portador (4a Turma do STJ, Recurso Especial 1.534/SC).” 76 Artigo 13, §1°, da Lei 5.474 de 18 de julho de 1968. 77 Artigo 15, inciso II, da Lei 5.474 de 18 de julho de 1968. 78 MARTINS, Fran. Títulos de Crédito v. I. 11ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1995, p. 10. 79 BURLGARELLI, Waldirio. Obra citada, p. 55. “1. Por gozarem os títulos de crédito de literalidade, eventual quitação

destes, no caso, da nota promissória, deve necessariamente constar no próprio contexto da cártula ou eventualmente em

documento que inequivocadamente possa retirar-lhe a exigibilidade, liquidez e certeza. Outrossim, qualquer questão

relacionada a sua cobrança indevida deve ser demonstrada por meio documental. Sob esse prisma, pois descabida a produção

de prova testemunhal para comprovar a quitação de parte da dívida ou a cobrança abusiva de juros. 2. Assim, ausente a

quitação da dívida, conforme, inclusive, reconhecido pelas instâncias ordinárias, até mesmo porque inexistente qualquer

início de prova por escrito, e sendo descabida a produção de prova testemunhal dada a literalidade do título executado,

perfeitamente cabível o julgamento antecipado da lide com a extinção do processo (4a Turma STJ, Recurso Especial

707.460/MS).”

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e expressos no documento que apresentar. Por outro lado, ao devedor assegura-se que não

serão exigidos créditos que não estejam expressamente mencionados no documento.

Por fim, o legislador previu uma exceção ao princípio em comento, ao permitir que a

quitação, quando se tratar de duplicata, seja transcrita em documento em separado, desde que

seja dada pelo legítimo portador da duplicata.

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8. Autonomia das Obrigações Cambiais

Daniel Shem Cheng Chen

Trata-se, segunda a doutrina, do mais importante dos princípios do título de crédito, pelo fato

de assegurar a circulação dos créditos80

. O princípio da autonomia determina que quando um

título descrever mais de uma obrigação, a irregularidade, invalidade ou ineficácia de uma ou

mais obrigações não prejudicará as demais81

, o que significa que uma obrigação não fica a

depender de outra para ter validade82

.

O princípio da autonomia subdivide-se em outros dois subprincípios83

conhecidos como o “da

abstração” e o “da inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé”. De acordo

com o primeiro subprincípio, quando o título de crédito, como instrumento de circulação de

crédito, passa a circular no mercado, deixa de ser relevante a causa que lhe deu origem. Ou

seja, quando o título é transferido ao terceiro de boa-fé, a relação de causalidade entre a

motivação para a sua criação e o próprio título torna-se irrelevante.

Por fim, segundo o subprincípio da inoponibilidade, credor e devedor não podem alegar, um

contra o outro, matéria que não esteja diretamente relacionada à existência do título, exceto

quando terceiro agir de má-fé. Isto é, somente os aspectos objetivos referentes ao título de

crédito podem ser alegados. Sendo assim, não pode o devedor se “escusar de cumprir uma

obrigação assumida alegando ao portador suas relações com qualquer obrigado anterior84

.”

Apesar de ser considerado um instrumento eficaz e útil para documentar e circular

créditos no mercado, a importância e utilidade do título de crédito tendem a diminuir.

Futuramente, o tratamento conferido pelo direito cambiário possivelmente sofrerá alterações

significantes, em decorrência do avanço tecnológico e do uso crescente de formas eletrônicas

para a sua administração. Fábio Ulhoa Coelho acredita que esse processo de modernização

poderá culminar no fim desse instituto jurídico85

, uma vez que vivenciamos um período de

desmaterialização do título de crédito. Diante desse quadro, esse autor faz uma releitura dos

80 COELHO, Fábio Ulhoa. Obra citada, p. 379. 81 “Nas obrigações cambiais, a causa que lhes deu origem não constitui meio de defesa. Neste ponto se diferenciam os títulos

de crédito abstratos dos causais. Nestes, a sua eficácia é nenhuma se o negócio jurídico subjacente inexistir ou for ilícito.

Naqueles, esses mesmos vícios não impedem que a obrigação cartular produza seus efeitos (3a Turma STJ, Recurso Especial

162.032/RS).” 82 MARTINS, Fran. Obra citada, p. 13. 83 Fábio Ulhoa Coelho qualifica as características da abstração e da inoponibilidade de terceiros dos títulos de crédito como

subprincípios, uma vez que entende que nada acrescentam ao que já se encontra determinado pelo princípio da autonomia.

Ver obra citada, p. 380-383. 84 MARTINS, Fran. Obra citada, p. 18. 85 COELHO, Fábio Ulhoa. Obra citada, p. 389.

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princípios da cartularidade, literalidade e autonomia. Afirma que, para o exercício do direito

cambiário não será mais necessária a posse e apresentação do título já que este não será mais

emitido. Ou seja, futuramente, a existência e validade da relação cambiária não dependerão da

existência física de um documento.

Ainda em virtude da desmaterialização do título de crédito, o princípio da literalidade

também terá sua importância reduzida, pois o crédito também poderá ser documentado por

meio eletrônico.

Por fim, é possível concluir que somente o princípio da autonomia e seus

subprincípios (da abstração e da inoponibilidade das exceções) não apresentam

incompatibilidades intrínsecas, quando transportados ao processo de desmaterialização dos

títulos de crédito86

. Posto isso, é nítida a necessidade de se iniciar uma reflexão sobre as novas

bases teóricas que regerão os títulos de crédito nesse século, para garantir a segurança e

efetividade nas futuras relações comerciais.

86 Idem. P. 389-390.

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Parte IV – Princípios do direito contratual dos empresários

9. Autonomia da Vontade

Frederico Stacchini

A autonomia da vontade consiste no poder atribuído pelo ordenamento jurídico ao

indivíduo na criação, modificação e extinção de relações jurídicas, surtindo efeitos sobretudo

no âmbito da propriedade e de sua disposição, e tendo como seu principal instrumento de

exercício o negócio jurídico, que inclui o contrato.

Sob a ótica da Teoria Contratual Clássica, iniciada com a evolução política e social

dos séculos XVIII e XIX, o contrato tornou-se o instrumento jurídico que possibilitava e

regulamentava a circulação e a geração de riquezas dentro da sociedade. O fundamento do

contrato encontrava-se na liberdade do indivíduo e no liberalismo econômico, bastando a

vontade dos contratantes para vinculá-los segundo seus próprios interesses. É o que se

convencionou chamar de autodeterminismo dos interesses particulares, em que as pessoas

podiam livremente exercer suas escolhas e criar as regras para si mesmas, adequadas à

satisfação de seus próprios interesses.

Para que o pleno exercício da autonomia da vontade e a efetiva manifestação da

liberdade de contratar fossem possíveis, o Direito garantia, em termos meramente formais, a

igualdade das partes, sob a crença de que ela seria suficiente para assegurar que as trocas

fossem justas e equitativas, proporcionando a harmonia econômica e social. De acordo com a

Teoria Contratual Clássica, a obrigação contratual equivaleria ao justo e à efetiva

comutatividade entre os contratantes.

Nesse cenário, o Estado assumia a posição de intervir minimamente na economia e na

vida das pessoas, deixando o livre curso da iniciativa privada e do mercado regular o interesse

geral da sociedade. O Direito, por sua vez, tinha como função proteger a vontade dos

indivíduos, de modo a assegurar que o conteúdo do contrato correspondesse à vontade livre

dos contratantes. Essa proteção se refletia na existência de normas jurídicas imperativas que

permitiam a anulação do contrato, caso a vontade de uma das partes estivesse viciada.

Na concepção da Teoria Contratual Clássica, não cabia aos operadores do Direito

questionar se o conteúdo do contrato era justo ou injusto, mas tão somente se a vontade era

livre ou viciada. Desde que manifestada livremente, sem qualquer vício de consentimento, o

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contrato obrigava o indivíduo ao cumprimento da prestação ajustada. Tratava-se de nítida

concepção formalista do sistema jurídico, pela qual o conteúdo do contrato, tendo sido

pactuado livremente, como expressão da autonomia da vontade, era presumidamente justo e,

assim, exequível em quaisquer circunstâncias.

No entanto, a partir da segunda metade do século XX, com a constatação de que a

desigualdade econômica e social entre os contratantes gerava contratos substancialmente

injustos e abusivos, foi descartada, na vida real, a crença de que a igualdade formal dos

indivíduos asseguraria o equilíbrio entre as partes. Acresça-se a isso a crescente complexidade

e diversidade das relações econômicas e sociais, que exigiram nova técnica de contratação,

simplificando o processo de formação dos contratos, como no caso dos contratos de massa,

com a uniformização e padronização de suas cláusulas e condições, acentuando o fenômeno

da despersonalização dos contratantes.

Nesse contexto, nasce a Teoria Contratual Contemporânea, inspirada no princípio da

solidariedade social e na tese da proteção social dos mais fracos, destinada a corrigir as

desigualdades criadas pelo liberalismo jurídico e econômico. Assim, o contrato, sem perder

sua funcionalidade enquanto instrumento de circulação e geração de riquezas, volta-se

também para a geração do bem comum e a satisfação dos interesses da coletividade.

Como consequência, o princípio da autonomia da vontade e da presunção da igualdade

das partes é flexibilizado, dando início à fase do chamado dirigismo contratual, mediante a

intervenção do Estado no âmbito contratual, bem como no estabelecimento de novos

parâmetros para interpretação dos contratos. Trata-se de uma evolução, em que o Direito

busca assumir uma função social, atuando como protetor do indivíduo e inibidor de abusos, ao

mesmo tempo em que atua como indutor da prosperidade e do desenvolvimento da sociedade.

Na Teoria Contratual Contemporânea, os princípios da autonomia da vontade e da

obrigatoriedade do contrato passam a ter aplicação reduzida, devendo ser compatibilizados e

interpretados segundo os princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e do

equilíbrio real entre as partes. O Estado passa a ter autorização legal para intervir nos

contratos, podendo não apenas modificá-los, mas também rescindi-los ou mesmo dar-lhes

uma solução diferente do ajustado entre as partes. Estas, por sua vez, são obrigadas a pautar

suas condutas segundo a cláusula geral da boa-fé objetiva, tanto sob o ponto de vista da

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intenção das condições do negócio, quanto no intuito de não lesar ou obter vantagem indevida

em relação à outra parte.

No Brasil, o intervencionismo estatal orientado para restringir a autonomia da vontade

e a liberdade de contratar teve grande repercussão com o Código de Defesa do Consumidor de

1990 e mais recentemente com o Código Civil de 2002. Essa intervenção estatal na esfera

privada e na economia levou muitos juristas a anunciar a "crise do contrato" ou a "morte do

contrato".

Nesse novo contexto, o contrato deixa de ser concebido exclusivamente como

instrumento da autonomia da vontade e expressão do poder de autodeterminação individual e

passa a encontrar na própria lei novas fontes originadoras das obrigações entre as partes. A lei

impõe limites à liberdade do indivíduo, seja proibindo ou exigindo conduta específica, como

forma de corrigir o desequilíbrio e garantir a igualdade real das partes na relação contratual.

Em verdade, a autonomia da vontade não desaparece, mas toma novos contornos face

às novas exigências e anseios da sociedade. A lei, ao incorporar os princípios da boa-fé

objetiva e da função social do contrato, impõe às partes o dever de honestidade e lealdade em

todas as fases da relação contratual, dando novo conceito à autonomia da vontade e à

instrumentalidade do contrato. O contrato, como expressão dos interesses e expectativas dos

indivíduos, passa a ser visto com instrumento de respeito aos direitos e garantias

fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, como a dignidade da pessoa humana

e a livre iniciativa.

Os novos desafios que se impõem ao operador do Direito na atualidade surgem então

em relação à interpretação dos contratos, face aos novos princípios limitadores da autonomia

da vontade (função social do contrato e boa-fé objetiva), bem como em relação à medida legal

de intervencionismo do Estado nas relações contratuais, notadamente quanto aos contratos de

adesão, no âmbito das relações de consumo.

Tanto a interpretação quanto o intervencionismo devem ocorrer no sentido de

estimular a prosperidade e o desenvolvimento da sociedade, em todos os seus aspectos,

econômicos e sociais. Os limites da autonomia da vontade impostos pelo intervencionismo

estatal devem assegurar o equilíbrio e a harmonia entre os princípios e valores previstos

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constitucionalmente, em especial a dignidade da pessoa humana e a livre iniciativa, sob pena

de estar-se prestando um desserviço à sociedade. 87

87 SOBRE O ASSUNTO, VER:

BORGES, Adriana Cunha. O Princípio da Autonomia da Vontade e o Dirigismo Contratual. Dissertação de Mestrado em

Direito Civil. PUC-SP. 1998.

FRANCO, Alice Moreira. Transformação do Princípio da Autonomia da Vontade Sob a Ótica do Novo Código Civil. Direito,

Estado e Sociedade nº 21. PUC-RJ. Rio de Janeiro. 2002.

GOMES, Orlando. Contrato. 26ª Edição. Editora Forense. Rio de Janeiro. 2008.

GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. A Limitação da Autonomia Privada nos Direitos Reais e Pessoais.

Revista de Direito Privado nº 14. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 2003.

NETO, Antônio José Marques. A Intervenção do Estado na Autonomia Privada. Revista de Direito Civil, Imobiliário,

Agrário e Empresarial nº 37. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 1986.

PENTEADO JR., Cassio M. C. O Relativismo da Autonomia da Vontade e a Intervenção Estatal nos Contratos. Revista de

Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem nº 21. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 2003.

STORER, Aline. Autonomia da Vontade: Ficção da Liberdade. Considerações sobre a Autonomia da Vontade na Teoria

Contratual Clássica e na Concepção Contemporânea da Teoria Contratual. Revista Jurídica nº 363. Editora Notadez. Rio

Grande do Sul. 2008.

TARREGA, Maria Cristina Vidotte Blanco. Autonomia Privada e Princípios Contratuais no Código Civil. RCS Editora. São

Paulo. 2007.

TREVISAN, Marco Antônio. Panorama da Autonomia da Vontade no Atual Paradigma do Contrato e a Tendência da

Objetivação do Elemento Volitivo. Dissertação de Mestrado em Direito das Relações Sociais. PUC-SP. 2003.

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10. Plena Vinculação dos Contratantes ao Contrato

José Roberto Salvini

É fundamental para o desenvolvimento econômico e social de todo país que

adota o regime capitalista a existência de um arcabouço jurídico e de um sistema judiciário

que reconheçam e assegurem a obrigatoriedade de cumprimento das relações contratuais

validamente estabelecidas – pacta sunt servanda.

Como menciona Silvio Rodrigues: “... a explicação da obrigatoriedade dos

contratos, embora não se afaste em muito desse entendimento, assenta em preocupação que

ultrapassa as raias do interesse particular para atender a um anseio de segurança que é de

ordem geral. Pois o problema deve ser encarado não sob o ângulo individual, mas sob o

social.”88

Todavia, nos últimos anos, cada vez mais esse princípio do direito comercial

vem perdendo força no direito brasileiro em face da aplicação desmedida da teoria da

imprevisão (cláusula rebus sic stantibus) e do preceito da função social do contrato89

como

mecanismos para revisão dos contratos, especialmente após o advento do Código de Defesa

do Consumidor90

e do Código Civil de 200291

.

Tomemos por exemplo os contratos de arrendamento mercantil firmados com cláusula

de variação cambial, expressamente autorizados pela lei92

. Após a forte valorização do dólar

frente ao real ocorrida em 1999, muitos arrendatários buscaram no judiciário a revisão de seus

contratos. O Superior Tribunal de Justiça93

entendeu que caberia o compartilhamento entre a

arrendadora e o arrendatário do ônus decorrente da valorização do dólar, aplicando para isso a

teoria da imprevisão.

88 RODRIGUES, Silvio, Direito Civil, Vol. 3, 30ª Ed., 2004, Ed. Saraiva, p. 12. 89 Lei 10.406/2002, art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” 90 Lei 8.078/90, art. 6º, “São direitos básicos do consumidor: ... V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam

prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;” 91 Lei 10.406/2002, Art. 478. “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar

excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis,

poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.” 92 Lei 8.880/1994, Art. 6º - É nula de pleno direito a contratação de reajuste vinculado à variação cambial, exceto quando

expressamente autorizado por lei federal e nos contratos de arrendamento mercantil celebrados entre pessoas residentes e

domiciliadas no País, com base em captação de recursos provenientes do exterior. 93 Acórdão do Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 473141, de 11/03/2003, da relatoria do Ministro Ari

Pargendler.

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Há de se ponderar que no Brasil, ainda que o Banco Central tenha a responsabilidade

de atuar no mercado de câmbio para conter movimentos desordenados da paridade do real

frente ao dólar, de fato o câmbio94

é livre e sujeito à oscilação, sendo da sua natureza a

imprevisibilidade.

Falar que oscilações fortes na taxa de câmbio é um fator imprevisível é ignorar a

realidade econômica no nosso país. De 1999 para cá ocorreram ao menos outros dois

momentos de forte oscilação do câmbio. O primeiro em 2002, às vésperas da eleição

presidencial, e o segundo, em 2008, quando apenas no mês de setembro, no início da crise

financeira internacional, o dólar subiu 18%, resultando em enormes perdas em contratos de

derivativos financeiros por empresas brasileiras que detinham posição cambial alavancada

nessas operações.

Como leciona Silvio de Salvo Venosa: “Não pode a teoria da imprevisão ou da

excessiva onerosidade servir de panacéia para proteger o mau devedor. Em País que sofreu

de inflação endêmica, com o Brasil, cujo fantasma está sempre presente, o surto inflacionário

epidêmico não pode servir de suporte à teoria. Tantos foram os planos econômicos que

sofremos, que deve o juiz usar de extrema cautela para admitir a intervenção.”95

Toda decisão relacionada a investimentos de capital leva em consideração a segurança

jurídica conferida pelo Estado no reconhecimento da validade, eficácia e exequibilidade de

direitos e obrigações contratados nos exatos termos de suas leis. Sempre que houver

possibilidade de revisões judiciais de contratos legitimamente firmados, diminuirá o interesse

pelo investimento naquela localidade, pois se acrescenta ao risco do negócio uma variável que

foge totalmente a qualquer premissa de um projeto empresarial.

Como menciona o Professor Fábio Ulhoa Coelho: “Com o desenvolvimento da

globalização da economia, os empresários procuram localizar seus estabelecimentos

industriais em países de direito-custo mais atraente. Em vista disso, os interessados em atrair

94 http://www.bcb.gov.br/pre/bc_atende/port/mercCam.asp#17. O Banco Central executa a política cambial definida pelo

Conselho Monetário Nacional. Para tanto, regulamenta o mercado de câmbio e autoriza as instituições que nele operam.

Também compete ao Banco Central fiscalizar o referido mercado, podendo punir dirigentes e instituições mediante multas,

suspensões e outras sanções previstas em Lei. Além disso, o Banco Central pode atuar diretamente no mercado, comprando e

vendendo moeda estrangeira de forma ocasional e limitada, com o objetivo de conter movimentos desordenados da taxa de

câmbio. 95 VENOSA, Silvio de Salvo, Direito Civil, Vol. 2, 7ª Edição, 2007, Ed. Atlas, pp.432 e 433.

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investimentos, como é o caso do Brasil, terão maior ou menor sucesso na medida em que os

respectivos direitos passem a representar vantagens competitivas. Quanto maior a liberdade

reconhecida pela ordem jurídica para os próprios agentes econômicos definirem, por

contrato, seus direitos e obrigações, maior será a atração de investimentos.”96

Assim, a plena vinculação das partes contratantes é um princípio que deve ser

fortemente prestigiado não só para fazer valer as obrigações contratadas, mas principalmente

visando a um interesse comum de toda a sociedade. Investimentos no país representam

geração de empregos, maior arrecadação de tributos, crescimento econômico e, com isso,

melhora na qualidade de vida da população. Se o Estado não consegue reconhecer a validade

de negócios contratados em estrita consonância com as leis e princípios jurídicos que o

próprio Estado criou, qual será o conforto em se estabelecer relações empresariais nessa

localidade?

Não se trata aqui de apologia ao princípio da economia liberal e da intervenção

mínima do Estado nas relações empresariais, mas apenas do reconhecimento da ordem

jurídica existente. Também não se pretende negar as conquistas alcançadas com Código de

Defesa do Consumidor, que assegura a proteção daqueles que contratam em condição de

desvantagem. Assim é plenamente válida a lição de Alberto do Amaral Júnior que dispõe: “O

controle das cláusulas contratuais abusivas, tal como instituído pelo Código de Defesa do

Consumidor, em absoluto se choca com o princípio da liberdade contratual, pela simples

razão de que este princípio não pode ser invocado pela parte que se encontra em condições

de exercer o monopólio de produção das cláusulas contratuais, a ponto de tornar difícil ou

mesmo impossível a liberdade contratual do aderente.”97

De fato, o que se almeja é demonstrar que o princípio de vinculação das partes

contratantes transcende ao interesse individual dessas. Não se trata tão somente de fazer valer

a lei entre as partes. A tutela jurisdicional na defesa do interesse metaindividual para proteger

os hipossuficientes em relações contratuais demasiadamente desvantajosas, deve ser tão

rigorosa quanto aquela que faz valer o direito das partes em obrigações validamente

contratadas.

96 COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de Direito Comercial, Vol. 3, 10ª Edição, 2009, Ed. Saraiva, p. 16. 97 AMARAL JÚNIOR, Alberto do, Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor; 1ª ed., Saraiva, SP,1991, página

184.

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Não há como ser considerado um país com sólidas instituições democráticas se

inexistir respeito às liberdades individuais e prestígio à livre iniciativa. Se o Brasil busca

demonstrar internacionalmente sua capacidade para atrair investimentos de capital,

especialmente em setores de infra-estrutura que demandam apetite de risco de longo prazo,

deve, primeiramente, provar a eficácia do seu sistema jurídico em reconhecer as obrigações

estabelecidas entre particulares.

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11. Proteção do contratante economicamente mais fraco nas relações contratuais

assimétricas

Herbert Morgenstern Kugler

A importância e do conceito do princípio da proteção do contratante economicamente

mais fraco nas relações contratuais assimétricas, pressupõe, em primeiro lugar, a compreensão

da distinção entre contratos submetidos ao Direito do Consumidor, contratos civis e contratos

empresariais.

Os contratos submetidos ao Direito do Consumidor são aqueles nos quais existe uma

relação de consumo, conforme definido no Código de Defesa do Consumidor, enquanto que

contrato civil é aquele no qual as partes contratantes não são nem empresários, nem

consumidores98

. Por sua vez, os contratos empresariais ou mercantis são, no dizer de Haroldo

Malheiros Duclerc Verçosa, “aqueles nos quais uma das partes é um empresário (ou a

sociedade empresária) no exercício de sua atividade, conforme os termos dos arts. 966 e 982

do NCC, e a outra parte também é empresário ou pessoa não caracterizada como

consumidor.”99

Nota-se, contudo, que há doutrinadores que propõem um conceito mais estreito de

contrato empresarial, como, por exemplo, Fábio Ulhoa Coelho, segundo o qual são

empresariais os contratos nos quais as partes contratantes são, necessariamente, empresários

ou sociedades empresárias.100

Neste contexto, verifica-se que os contratos empresariais têm, e devem ter, princípios

próprios (embora similares aos princípios relativos aos contratos civis e dos consumidores), os

quais, justamente, distinguem o tratamento jurídico a eles conferido daqueles confiados aos

contratos civis e do consumidor.

É neste diapasão que surge o princípio da proteção do contratante economicamente

mais fraco nas relações contratuais assimétricas, cujos contornos devem ser delimitados,

hodiernamente, dentro do âmbito dos contratos empresariais, muito embora com positivas

98 Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, Contratos Mercantis e a Teoria Geral dos Contratos – O Código Civil de 2002 e a

Crise do Contrato, São Paulo, Quartier Latin, 2010, p. 25. 99 Idem. 100 Curso de Direito Comercial, Volume 3, Direito de Empresa, 10ª edição, São Paulo, Saraiva, 2009, p. 5 e 18. No mesmo

sentido, Fábio Ulhoa Coelho, O Futuro do Direito Comercial, São Paulo, Saraiva, 2011, p. 165.

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influências dos princípios do Direito do Consumidor e do Direito Civil, tais como a boa-fé

objetiva e a função social do contrato.

Trata-se de um princípio que reconhece a desigualdade ou assimetria entre

contratantes submetidos ao mesmo regime jurídico – o comercial. Sustenta-se, portanto, no

reconhecimento de que os empresários, bem como as sociedades empresárias, não são iguais

entre si, vez que há diferenças de conhecimento industrial e intelectual, tecnologia e porte

econômico, dentre outros, os quais podem, e frequentemente produzem, efeitos tão nefastos

quanto àqueles decorrentes da desigualdade entre consumidores e empresários.

Neste sentido, o princípio sob análise visa resguardar o empresário ou a sociedade

empresária dos reflexos indevidos decorrentes de sua dependência econômica em relação à

outra parte, também empresário ou sociedade empresária, não se aplicando na presença de

empresários ou sociedades empresárias iguais, assim entendidas aqueles com recursos

bastantes para negociarem, de modo devidamente informado, sobre a exata extensão dos

direitos e obrigações em contratação101

.

A fragilidade de um empresário ou sociedade empresário diante de outro deve ser,

sempre, verificada diante de cada caso concreto, sendo que ela pode ser de ordem técnica,

jurídica ou socieconômica, da mesma forma que se verifica a vulnerabilidade do

consumidor102

. Tem-se, portanto, que a pequena e média empresa pode ser considerada tão

vulnerável quanto os consumidores, perante as grandes e hipersuficientes sociedades

empresárias103

.

Dentro do contexto dos contratos empresárias, tem-se que o princípio sob apreço

confere proteção aos interesses meta-individuais da igualdade, da concorrência e, finalmente,

da justiça. Realiza tais desideratos, por meio da equalização de partes desiguais, permitindo

que ambas as partes contratantes tenham condições de negociarem, bem como

compreenderem, a exata extensão dos direitos e obrigações assumidos. Desta feita, as partes,

tendo mais condições para negociarem, possuem instrumentos para entabularem contratos

mais justos, além de terem meios de estabelecer comparações entre diversos contratantes.

101 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, Volume 3, Direito de Empresa, 10ª edição, São Paulo, Saraiva, 2009, p.

19. 102 Luiz Antonio Rizzatto Nunes, Curso de Direito do Consumidor, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 575-576. No mesmo sentido,

Fábio Ulhoa Coelho, O Empresário e os Direitos do Consumidor, São Paulo, Saraiva, 1994, p. 144. 103 Robert Reich, apud Marcus Vinicius Fernandes Andrade da Silva, Direito do Consumidor, Coleção Didática Jurídica,

coord. Marcelo Ma. Peixoto e Sérgio A. Z. Pavani, São Paulo, MP Editora, 2008, p. 35.

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Em função da proteção de tais interesses, verifica-se que em outros países há

legislação especial que buscar equilibrar as relações entre empresários ou sociedades

empresárias desiguais. É o caso de Portugal, conforme informa Haroldo Malheiros Duclerc

Verçosa, por meio da Lei das Condições Contratuais Gerais104

, arts. 17 a 19.

104 Contratos Mercantis e a Teoria Geral dos Contratos – O Código Civil de 2002 e a Crise do Contrato, São Paulo, Quartier

Latin, 2010, p. 30.

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12. Princípio do reconhecimento dos usos e costumes comerciais

Marcelo Guedes Nunes

A dinâmica da atividade comercial faz com que os negócios entabulados com

empresários se desenvolvam dentro de um ambiente de informalidade. Com exceção dos

grandes negócios ocasionais com capacidade de afetar as bases essenciais da empresa, como,

por exemplo, operações societárias e contratos estratégicos, a atividade empresarial é

composta de sucessivos negócios interconexos de pequeno porte, pautados pela prática, pela

rapidez e pelo relacionamento de longo prazo. Pequeno ou grande, o tráfico comercial é

composto de um conjunto interdependente de negócios, que faz do cotidiano do empresário

um dia-a-dia de contratações. O padeiro, que semanalmente compra farinha, água e sal para

fazer o pão, ou o encanador, que adquire peças, graxa e ferramental para prestar seus serviços,

não elabora instrumentos contratuais complexos a cada visita aos seus fornecedores. Esses

empresários trabalham em um regime dinâmico, em que o ritmo da atividade e da competição

impõe a realização de compras sucessivas, formatadas dentro de um padrão informal e de

baixo custo.

A importância dos usos e costumes na regulação dos negócios empresariais surge

neste contexto. É sobre a prática costumeira e habitual de atos que se assenta a credibilidade

do tráfico negocial. A palavra costume deriva do latim “consuetudinis”, significando o estado

de estar acostumado ou habituado a uma prática, mesma raiz do termo consuetudinário. Já a

palavra uso tem também origem no latim “usualis”, porém significa aquilo que se faz ou se

utiliza com freqüência. A expressões usos e costumes são cláusula abertas, até porque uma

definição legal exata os desnaturaria e retiraria a sua força consuetudinária. A maioria da

doutrina identifica nos usos e costumes a prática uniforme, constante, pública e geral de

determinados atos, sob a convicção de sua necessidade jurídica.105

É nos usos e costumes que

fica registrado o padrão informal de trabalho do empresariado e é ali que encontramos o

repositório de boas práticas para a regulação das relações empresariais.106

Reconhecendo a

sua relevância para a dinâmica dos mercados, o revogado Código Comercial., tratando de um

105 Segundo Judith Martins-Costa: “Bem entendido, os usos e costumes não significam apenas a tradição, o antigo, o

conhecido, a prática muitas vezes repetida no passado. Como construção social que efetivamente são, os usos e costumes são

fontes de normas que contém, em si, sentidos, significados e valores, entre eles o valor da permanência na vida coletiva.” (in

LUDWIG, Marcos de Campos. Usos e costumes no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 4) 106 Segundo Fábio Ulhoa Coelho: “O costume é referência às regras de conduta vivenciadas como obrigatórias pela sociedade

ou por um segmento desta.” (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. Vol 1. São Paulo: Saraiva. 2ª Ed. 2006, p. 28.)

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modelo hermenêutico, cuidava da matéria em dois dispositivos: o art. 131, 4, que tratava da

interpretação de contratos,107

e o art. 291, caput, que trava da interpretação de leis.108

Na atual

legislação, resultante na unificação obrigacional do Direito Civil e do Direito Comercial,

identificam-se não só o modelo hermenêutico, mas também um modelo jurídico.109

No que se

refere ao modelo jurídico, o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil110

relaciona os

costumes dentre as fontes de direito,111

ao lado da lei, da analogia e dos princípios gerais.112

Trata-se da capacidade da prática gerar novas normas jurídicas. No que se refere ao modelo

hermenêutico, o artigo 113 do novo Código Civil113

reafirma os usos do lugar da celebração

como referência para interpretação dos negócios jurídicos. Trata-se aqui da capacidade da

prática em esclarecer o significado de regras jurídicas preexistentes.114

A força das práticas de mercado na regulação das relações empresariais advém de dois

fatores: de um lado a necessidade de redução de custos de transação, do outro a manutenção

de um grau de segurança jurídica aceitável. No que se refere à redução de custos, a

107 Art. 131 - Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada

sobre as seguintes bases: (...) 4 - o uso e prática geralmente observada no comércio nos casos da mesma natureza, e

especialmente o costume do lugar onde o contrato deva ter execução, prevalecerá a qualquer inteligência em contrário

que se pretenda dar às palavras. 108 Art. 291 - As leis particulares do comércio, a convenção das partes sempre que não lhes for contrária, e os usos

comerciais, regulam toda sorte de associação mercantil; não podendo recorrer-se ao direito civil para decisão de qualquer

dúvida que se ofereça, senão na falta de lei ou uso comercial. 109 LUDWIG, Marcos de Campos. Usos e costumes no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. A

parte II desta obra trabalha a distinção entre os dois modelos de acordo com a legislação brasileira, especialmente o novo

Código Civil. 110 Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de

direito. Este dispositivo reproduz a solução d CPC em seu art. 126: O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando

lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à

analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. 111 Segundo a doutrina, as fontes de direito se subdividem em materiais e formais. As fontes materiais são as condicionantes

de natureza cultural, moral, ideológica psicológica, religiosa que conformam o conteúdo do direito. As fontes formais são os

canais através dos quais o direito se manifesta, independentemente de seu conteúdo. A tecnologia jurídica se dedica apenas

ao estudo fontes formais de direito, deixando o estudo das fontes materiais para outras ciências sociais. (COELHO, Fábio

Ulhoa. Curso de Direito Civil - vol. 1. São Paulo: Saraiva. 2ª Ed. 2006. p. 27) 112 Essa relação está baseada na idéia de que o direito é um elemento imaterial que emana das fontes. Isso porque, se a lei e a

jurisprudência são fonte de direito, elas não podem ser o próprio direito, que seria o sentido de dever subjetivo que emana

dessas fontes. É possível, no entanto, trabalhar com uma noção distinta, em que o direito é definido como o conjunto de

comandos, gerais e abstratos ou individuais e concretos, proferidos pelas autoridades munidas de poder público. Dentro dessa

perspectiva, a lei e a jurisprudência não seriam fontes do direito, mas sim o direito propriamente dito. E as fontes do direito

seriam as autoridades, no caso o legislador ou o juiz, que expediram as normas de conduta, sejam elas leis ou sentenças. 113 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. 114 A distinção entre modelo hermenêutico e modelo jurídico permite algumas considerações adicionais a respeito da

definição de usos e costumes. Há quem veja as expressões como redundantes. Por exemplo, na definição de Silvio Rodrigues:

“O costume é o uso implantado numa coletividade e considerado por ela como juridicamente obrigatório.” (RODRIGUES,

Silvio. Direito Civil. Parte Geral – vol 1. São Paulo: Saraiva. 34ª Ed. 5ª Tiragem. 2007. p. 21). Aparece também na definição

de Maria Helena Diniz: “A grande maioria dos juristas, entre os quais citamos Storn, Windscheid, Gierke, Clóvis Beviláqua,

Vicente Raó, Washington de Barros Monteiro, sustenta que o costume jurídico é formado por dois elementos necessários:

o uso e a convicção jurídica, sendo portanto a norma jurídica que deriva da longa prática uniforme, constante, pública e

geral de determinado ato com a convicção de sua necessidade jurídica.” (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil

Brasileiro. Vol. 1. 14ª Ed. São Paulo, Saraiva, 1998. p. 67). No entanto, se considerarmos a menção ao costume no art. 4º da

LICC e ao uso no art. 113 do CC, pode-se concluir que as expressões têm significados distintos, relativos, respectivamente ao

modelo jurídico e ao modelo econômico: o costume refere-se à prática como fonte de novas normas jurídicas nos casos de

lacunas legais, e o uso refere-se à prática como ferramenta de interpretação de negócios.

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negociação de contratos empresariais detalhados a cada celebração de um novo negócio

implicaria em despesas adicionais à atividade empresarial, consistentes no gasto de tempo e

de dinheiro (pagamento de advogados e consultores, despesas de deslocamento e material)

para a discussão da melhor redação a ser dada às cláusulas. Considerando o volume de

contratos celebrados cotidianamente por um empresário, a assunção desses custos poderia

reduzir substancialmente a sua margem de lucro e até, no limite, tornar inviável o negócio.

Dentro de um ambiente competitivo, a informalidade dos negócios se torna um imperativo de

sobrevivência. No que se refere à segurança razoável, faz sentido adotar como referência as

práticas consagradas pelo mercado, já que os consensos em relação à melhor formatação de

um tipo de negócio tendem a ser as mais equilibradas e justas. O mercado trabalha através de

mecanismos seletivos de soluções razoáveis, nos quais práticas desequilibradas ou lesivas

tendem a não ser reproduzidas e, portanto, a não prevalecer com a frequência e a abrangência

que caracterizam os usos e costumes. Ao adotar as práticas gerais como um repositório de

fontes de regulação de suas relações, os empresários reduzem os custos correntes com suas

transações cotidianas, ao mesmo tempo em que se apoiam em um conjunto de práticas gerais

seguras, razoáveis e funcionais.115

Dois outros pontos merecem ser comentados: a prova em juízo e o conflito com a lei.

A prova em juízo dos usos e costumes pode ser complicada. Como comprovar

documentalmente uma prática expontânea, informal e dispersa? O art. 8º, VI, da Lei nº

8.934/94 tenta superar essa dificuldade ao atribuir competência às Juntas Comerciais para

proceder ao assentamento dos usos e práticas mercantis. O assentamento formalizaria e

registraria as práticas de mercado e, assim, há quem entenda que a sua prova só poderia ser

feita após um procedimento administrativo perante a Junta Comercial.116

Em oposição,

argumenta-se que a importância das fontes práticas do direito está na sua informalidade e que

sujeitá-las a um processo de sanção administrativa amputaria a sua natureza. Um recurso

especial julgado em 2009 pelo Superior Tribunal de Justiça enfrentou essa questão.117

O STJ

entendeu que o assentamento seria uma prova plena, suficiente para a demonstração judicial,

porém não o único meio cabível para a comprovação do uso ou costume perante os tribunais.

Caso apenas os assentamentos fossem admitidos, os usos e costume não teriam utilidade em

115 Para uma análise econômica da negociação e interpretação de contratos: POSNER, Richard. The Law and economics of

contract interpretation. Texas Law Review n. 83, PP. 1581-1614. 116 “Finalmente, contam como fonte do Direito Comercial os usos e costumes comerciais, como tais entendidos aqueles

assentados no Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, na forma do art. 6º, VI, da Lei 8.934/1994.”

(VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol. 01. São Paulo, Malheiros, 2004. p. 61) 117 REsp 877074 / RJ Recurso Especial 2006/0175650-4, Rel. Nancy Andrighi.

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juízo, que julga exatamente os casos controvertidos em que há dúvida relevante sobre a

existência e o sentido da prática, o que não ocorrerá nas hipóteses, raríssimas diga-se de

pessagem, em que houver assentamento.118

Por fim, a questão do conflito entre usos e costumes, de um lado, e a lei, de outro. A

doutrina identifica três tipos de costumes: (i) secundum legem, que são os previstos na lei; (ii)

praeter legem, em relação aos quais a lei é omissa; e (iii) contra legem, que vão em sentido

oposto ao da lei escrita.119

Nosso problema diz respeito ao costume contra legem. Pode

acontecer que empresários, de forma espontânea, freqüente e generalizada, adotem práticas

negociais conflitantes com o que determina a lei. Como deve decidir um juiz neste caso? Com

base na prática ou na determinação legal? O princípio da legalidade, sobre o qual se apóia o

estado de direito, tem no respeito à lei o seu cânone maior. Tanto a Lei de Introdução ao

Código Civil como o Código de Processo Civil admitem os costumes como fonte subsidiária

de direito, ou seja, apenas os costumes praeter legem.120

Há, no entanto, julgados que

reconhecem a primazia dos costumes diante de leis eclipsadas, cuja eficácia vem se reduzindo

por conta da desatualização de seu conteúdo diante de novos costumes sociais.121

O

ordenamento também reage às pressões sociais, que muitas vezes reduzem dispositivos legais

à ineficácia e criam uma jurisprudência inovadora que força a modificação das leis.122

A questão é intrincada. O dinamismo e a criatividade do empresariado tornam

complexa a tarefa de julgar controvérsias apenas com base em regras gerais e abstratas

118 “É evidente que nem todo costume comercial existente estará assentado antes que surja uma oportunidade para que seja

invocado em juízo, pois o uso necessariamente nasce na prática comercial e depois se populariza nas praças comerciais, até

chegar ao ponto de merecer registro pela Junta Comercial. A posição defendida pela recorrente levaria à restrição da

utilização do costume mercantil como fonte subsidiária do direito apenas àquelas hipóteses já extremamente conhecidas na

mercancia; porém, como estas situações, justamente por serem estratificadas, não geram conflitos entre os comerciantes, cria-

se um círculo vicioso que afasta totalmente a utilidade do uso mercantil para o debate jurídico.” (REsp 877074 / RJ Recurso

Especial 2006/0175650-4, Rel. Nancy Andrighi) 119 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol. 01. São Paulo, Malheiros, 2004. p. 62. DINIZ,

Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 1. 14ª Ed. São Paulo, Saraiva, 1998. p. 68. 120 Esta é também a posição de Fábio Ulhoa Coelho, manifestada no art. 15 de sua minuta de Código Comercial. (COELHO,

Fábio Ulhoa. O futuro do Direito Comercial. São Paulo: Saraiva. 2010) 121 Esta é também a posição de Fábio Ulhoa Coelho, manifestada no art. 15 de sua minuta de Código Comercial. (COELHO,

Fábio Ulhoa. O futuro do Direito Comercial. São Paulo: Saraiva. 2010) 121 No Brasil, um dos mais famosos exemplos de pressão consuetudinária sobre a lei é a do conceito de “mulher honesta”,

que vigorou nos arts. 215 e 216 do Código Penal até 2005. Por conta da sua desatualização diante dos novos costumes

sexuais da sociedade, a Lei n.º11.106/2005 retirou o adjetivo honesta do diploma penal. No Direito Comercial, um bom

exemplo é o da construção jurisprudencial da dissolução parcial de sociedades empresárias, consagrada pelos tribunais em

respeito ao princípio da preservação da empresa, apesar da confrontação com a lei. A prática jurisprudencial da dissolução de

sociedade foi legalizada com o advento do novo Código Civil. 122 “O desuso de uma lei (desuetudo), portanto, ao condená-la a uma espécie de „ostracismo normativo‟, é um fenômeno cuja

análise foge ao plano da validade, pois ocorre no âmbito da efetividade. Formalmente, só uma lei pode „retirar a voz‟ de outra

lei, como, de resto, determina o art. 2º da LICC. Quando uma determinada lei „entra em eclipse‟, ou seja, quando ela deixa de

ser aplicada devido à supremacia material de outro modelo jurídico, aí estamos perante um caso em que a realidade se rebela

contra as aspirações de generalidade e eternidade do modelo legislativo.” (LUDWIG, Marcos de Campos. Usos e costumes

no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 171)

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previamente estabelecidas. Os usos e costumes, por terem origem em práticas que se

disseminaram espontaneamente, podem oferecer uma solução mais tendente à paz social e à

acomodação dos interesses conflitantes do que uma lei, por exemplo, concebida em um

momento ou local distante do conflito. É legítima a expectativa dos agentes econômicos de

que as práticas usuais de seus parceiros ou de seu mercado serão reconhecidas pelo Poder

Judiciário. Além disso, o ordenamento legal está sujeito ao desgaste pelo tempo e o choque

com os costumes e usos sociais são o maior indicativo de inoperância de conceitos legais

superados. Impedir que as práticas sociais, excepcionalmente, se sobreponham até mesmo à

lei é nutrir uma crença radical e estéril na perfeição e na imutabilidade de um modelo de

legislação positivada, em detrimento de uma visão mais complexa e dinâmica do ordenamento

legal.

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Parte V – Princípios do direito falimentar

13. Inerência do Risco a Qualquer Atividade Empresarial

Fernando Melo Da Silva

O Direito Comercial se destaca por ter como elemento formador a realidade da

atividade econômica.

Todo o impulso normativo deste especial ramo do direito (seu dever ser) deriva das

necessidades decorrentes da realidade das relações intersubjetivas efetivados no ambiente de

mercado (ser).

Referida constatação tem base na história do Direito Comercial, que surgira da

necessária adaptação de normas do Direito Civil de inspiração e formulação romano-

canônica, para o atendimento de necessidades próprias do tráfico mercantil, possibilitando,

por conseguinte, o surgimento de regras jurídicas inovando pura e simplesmente no mundo

jurídico ou superando vetos e proibições que o ordenamento comum e geral (Direito Civil)

impunha ou podia impor ao desenvolvimento do comércio.

Neste sentido ensina Paula A. Forgioni:

“Conforme doutrina clássica, em sua origem o direito comercial emerge, por volta do

século XII, da necessidade prática dos comerciantes, para quem o direito romano (que estava

até então sendo redescoberto) não bastava para (i) atribuir um maior grau de segurança e de

previsibilidade às relações comerciais e (ii) proteger a celeridade e outras características

peculiares da vida mercantil.123

Na atualidade, mantém o Direito Comercial referida característica na medida em que

as relações econômicas desempenhadas num ambiente de mercado estão em constante

mudança, inovando e requerendo flexibilidade de instrumentos sem o que o próprio

desenvolvimento econômico será comprometido.

123 FORGIONI, Paula A. A interpretação dos negócios empresariais no novo Código Civil brasileiro. Revista de direito

mercantil, industrial, econômico e financeiro. São Paulo, Malheiros. v. 130, pp.7-38. abr./jun., 2003. p.18. Complementa

esta idéia a lição de Raquel Sztajn segundo a qual: “Foram as demandas dos mercadores que, para ultrapassar as barreiras dos

direitos locais, levaram à produção de um sistema uniforme e internacional, bastante heterodoxas em relação ao arcabouço

tradicional vigente nos séculos XI e XII. Esse direito especial, de uma classe de agentes econômicos, se desenvolve

paralelamente ao direito comum, operando sob princípios desenhados para permitir que cumprisse a função para a qual foi

predisposto: reger atividades econômicas exercidas profissionalmente, seja sob o manto das corporações de artes e ofícios,

seja, posteriormente, do Estado, com as outorgas reais para a criação das companhias, seja, finalmente, sob a égide do direito

privado.” (SZTAJN, Raquel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresarial e mercados. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

p. 5.)

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Tendo hoje o Direito Comercial foco na figura da empresa em sua complexa

caracterização, aqui sintetizada como “[...] organização dos fatores de produção para a criação

e oferta de bens e serviços em mercados [...]”124

, dita premissa não se alterou eis que como

ensina Raquel Sztajn:

“[...] não é o Direito que produz as mudanças, mas que as reconhece e as convalida.

Parece claro que o operador do Direito deve estar atento a tais demandas, notadamente no

que tange ao Direito Comercial, cuja relação com outras disciplinas, mas, sobretudo, com a

prática, a realidade social subjacente, é cristalina desde suas origens históricas.125

Sob este primado impossível ignorar um aspecto da realidade da prática empresarial

que no caso se consubstancia no risco, configurado na possibilidade de prejuízos daquele que

exerce atividade empresarial.

Toda atividade empresarial, desde os primórdios de seu surgimento pautou a atuação

de seus agentes pela tentativa de suplantar ou minimizar os riscos inerentes à atividade

econômica como forma de tentar maximizar o proveito objetivado por este agente com a

atividade que escolheu desempenhar.

Ele compõe o cálculo dos custos do empresário, na medida em que, segundo lições da

economia fatores de produção possuem uma interação tão intensa e complexa, que a certo

modo, apesar de ainda guardarem o caráter da mobilidade, ganham contornos de rigidez em

suas mais variadas expressões, sejam eles de natureza: física, operacional, institucional ou

psicológica126

, de modo a conferir aquilo que é de mais precioso numa economia de mercado,

que é a previsibilidade e a estabilidade.

Sua menção na doutrina é pródiga, principalmente quando doutrinadores arvoram-se a

definir empresa e relacioná-la com o mercado, numa interface direta com a economia.

Como um dos vários exemplos desta postura vê-se na obra de Alberto Asquini127

,

quando ao falar da empresa enquanto realidade econômica o autor dissertar que:

124 Ibid. p. 3. 125 Ibid. p. 5. No mesmo sentido: SALOMÃO FILHO, Calixto. A fattispecie do empresário no Código Civil de 2002. Revista

do advogado. São Paulo: AASP, ano XXVIII, n. 96, p. 11 – 20, Mar. 2008. p. 13. 126 NUSDEO, Fabio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p.

140. 127 ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro. São Paulo:

Revista dos Tribunais, ano 35, n. 104, p. 109 – 126, out. – dez. 1996. Tradução de: Fabio Konder Comparato. p. 110.

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“O fenômeno da empresa faz parte da dinâmica da economia enquanto realidade

produtiva desenvolvida ao longo do tempo, nas quais as variáveis do risco da empresa – o

risco técnico e o risco econômico – o primeiro inerente ao processo produtivo e, o segundo à

capacidade de cobrir com os resultados da atividade, os custos do trabalho (salários) e, dos

capitais empregados (juros) interagem com o trabalho organizado pelo empresário, dando-

lhe assim relevo.”

O jurista italiano ao esclarecer o conceito de empresário, nos termos postos no art.

2.082 do Código Civil italiano, segundo o qual: “É empresário quem exerce profissionalmente

atividade econômica organizada, tendo por fim a produção ou a troca de bens ou serviços.” -

expõe sobre o que seja atividade econômica organizada prelecionando que:

“[...] uma atividade empresarial (organização do trabalho alheio e do capital próprio

e alheio) que implica de parte do empresário a prestação de um trabalho autônomo de

caráter organizador e a assunção do risco técnico e econômico correlato. Não é, portanto,

empresário, quem exerce uma atividade econômica à custa de terceiros e com o risco de

terceiros. Não é, tampouco, empresário, quem presta um trabalho autônomo de caráter

exclusivamente pessoal, seja de caráter material, seja de caráter intelectual. Não é ainda

empresário quem exerce uma simples profissão (o guia, o mediador, o carregador, etc.) nem

de regra, quem exerce uma profissão intelectual (o advogado, o médico, o engenheiro, etc.) a

menos que o exercício da profissão intelectual „dê lugar a uma atividade organizada sob a

forma de empresa (art. 2.238), como no caso do exercício da farmácia, de um sanatório, de

uma instituição de ensino, etc. (...)”128

(Grifos nossos)”

Numa simbiose risco e resultado (lucro) convivem na dinâmica da realidade da

atividade empresarial, tendo em vista que o empresário, sujeita-se a diversos fatores externos,

tais como mudanças tecnológicas, concorrência, economia, política entre tantos outros,

estando as empresas sujeitas a riscos e incertezas no desenvolvimento de suas atividades

tornando necessário àquelas a adoção de técnicas que forneçam informações, com a menor

subjetividade possível, da ocorrência daqueles fatores sobre os resultados129

.

Enfim, justamente por não ter o empresário o controle sob diversos fatores eventuais

que podem afetar as relações nas quais se integra por força do exercício da empresa, a

inerência do risco diferencia sua atuação das dos demais agentes do mercado130

, constituindo-

se como pressuposto inerente de suas relações interpessoais.

128 Ibid. p. 114-115. 129 YONEMOTO, Hiroshi Wilson. MANCINI, Renata Foltran. Risco e retorno financeiro nas decisões empresariais.

Disponível em: http:// intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/2232/2393. Acessado em: 31/01/2011.

p. 4. 130 Destaque-se entre estes agentes os trabalhadores e os consumidores, assim definidos na legislação, que justamente por não

terem o domínio sobre os fatores de produção, de modo algum podendo ser “sócios” do empresário compartilhando seus

riscos de forma plena.

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Referida constatação, qual seja, a inerência do risco a pautar a postura das relações do

empresário no mercado, exercendo, por conseqüência, influência na concepção e interpretação

das normas jurídicas empresariais de modo a que estas estejam em sintonia com a realidade

que pretendem normatizar, faz com que assuma uma natural configuração de princípio, vez

que se presta a função de regra estrutural do sistema, justamente aquela que diz respeito à

relação entre as normas no sistema, ao qual conferem coesão.131

Quando o risco se concretiza, eis que surge o prejuízo e nesta condição pode advir

uma crise econômico-financeira para o empresário e todos os seus conseqüentes.

A normatização dos interesses decorrentes desta situação cabe ao Direito Concursal,

enquanto conjunto dogmático realizável para solução da situação da situação jurídica do

devedor insolvente, podendo servir como instrumento para liquidação judicial ou

administrativa de seu patrimônio pessoal em prol do pagamento dos credores, ou, viabilizando

a manutenção e recuperação da empresa pelo devedor desenvolvida.

Nesta hora a intervenção do aparelho do Estado, referendada pela superação do

dogmatismo liberal, impõe duas formas bem claras de solução para a insolvência da empresa,

- sua falência ou sua recuperação – para tanto, princípios como os da tutela ao crédito e da

preservação da empresa, precisam ser coordenados por um outro vértice, a bem do equilíbrio

do sistema, qual seja, o princípio da inerência do risco na atividade empresarial.

Por ser a própria falência do empresário, também um risco face aos seus demais

colaboradores132

(fornecedores de matérias-primas, bancos, os próprios consumidores entre

outros), pelo princípio da inerência do risco na atividade empresarial, as regras da falência

devem ser construídas para a compensação ou minimização dos riscos do inadimplemento

gerado pela insolvência do devedor, proporcionando assim uma adequada tutela ao crédito no

ambiente de mercado.

Logo sua pertinência também tem cabimento, no momento em que, na falência,

determinadas categorias de credores, v.g. os trabalhadores, tenham seu crédito tratado de

131 FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 5. Ed. São Paulo: Atlas,

2007. p. 247. Ainda sobre o que se entenda como princípio Carlos Ari Sandfeld afirma serem os princípios “[...] idéias

centrais de um sistema, ao qual dão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de

organizar-se.” (Fundamentos de direito público. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 143.) 132 Sobre esta situação discorre Bisbal Mendez afirmando que “[...]como um mal inevitable y necesario del sistema

capitalista; algo que debe tenerse em cuenta em el mismo instante que alguien decide iniciar una empresa o construir un

império [...]”. (Bisbal Mendez, Apud, LOBO. Direito concursal: direito concursal contemporâneo, acordo pré-concursal,

concordata preventiva, concordata suspensiva, estudos de direito concursal. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 32.)

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forma prestigiada no bojo do concurso de credores, justamente para não se tornar um “sócio”

da empresa, quando da sua insolvência, vez que ao longo de sua estada nesta não partilhou

dos lucros, somente teve até certo tempo a justa retribuição por sua força de trabalho cedida.

No plano da recuperação judicial da empresa, o princípio da inerência do risco é a

medida ideal da idéia de viabilidade econômica da empresa, conceito aberto delimitador da

correta forma de intervenção do Estado na solução da crise econômica da empresa, fazendo-a

pender entre a falência e sua recuperação133

.

Esta última, a recuperação – judicial ou extrajudicial - deve se dar de forma a não

persistir na expansão do risco inerente aos credores do empresário em crise, deve

compreender uma opção soberana dos credores e dos titulares da empresa no sentido da

continuidade e recuperação do negócio em crise134

.

O interesse público na preservação da empresa fica, pois, limitado ao interesse do

credor em não se submeter a riscos maiores com a recuperação da empresa, visto serem eles

inerentes ao negócio com possibilidades de superação ou não conforme o caso concreto.

Desta forma conclui-se que uma vez que o risco é uma realidade com a qual o

empresário deve conviver, realidade esta ligada diametralmente com a expectativa de proveito

econômico por ele almejada com a empresa, esta pauta suas relações interpessoais e por

conseqüência se torna princípio normativo do Direito Comercial.

133 Na fala de Fábio Ulhoa Coelho: “Nem toda a falência é um mal. Algumas empresas, porque são tecnologicamente

atrasadas, descapitalizadas ou possuem organização administrativa precária, devem mesmo ser encerradas. Para o bem da

economia como um todo, os recursos – materiais, financeiros e humanos – empregados nessa atividade devem ser realocados

para que tenham otimizada a capacidade de produzir riqueza. Assim, a recuperação da empresa não deve ser vista como um

valor jurídico a ser buscado a qualquer custo. Pelo contrário, as más empresas devem falir para que as boas não se

prejudiquem. Quando o aparato estatal é utilizado para garantir a permanência de empresas insolventes, inviáveis, opera-se

uma inversão inaceitável: o risco da atividade empresarial transfere-se do empresário para os credores [...]” (COELHO, Fábio

Ulhoa. Curso de direito comercial. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 3. p. 235.) 134 “O instituto da recuperação da empresa está essencialmente atrelado aos incentivos econômicos que o empresário

racionalmente encontra para pretender manter-se nesta condição. Não há como tornar efetiva a

recuperação da empresa sem levar em conta o interesse e a vontade privada do empresário. Por outro lado, de nada adianta o

titular da empresa considerá-la o mais eficiente instrumento de maximização de seus ganhos se, diante de sua eventual crise

econômico-financeira, o mesmo não for feito pelos demais grupos de interesses envolvidos com a organização econômica.”

(PIMENTA, Eduardo Goulart. Eficiência econômica e autonomia privada como fundamentos da recuperação de empresas no

direito brasileiro. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. (coord.). Direito

Civil: Atualidades II. Da autonomia privada nas situações jurídicas patrimoniais e existenciais. Belo Horizonte: Del Rey,

2007. p. 291 – 313. p. 301.). Razão assiste às observações do autor acima citado na medida em que segundo a Lei

11.101/2005, a iniciativa do pedido de recuperação judicial cabe ao devedor (arts. 48 c/c. 51 e art. 95 da lei). De outra parte,

cabe aos credores, decidir de forma soberana sobre a aprovação ou não do plano de recuperação judicial apresentado pelo

devedor (Lei 11.101/2005, arts. 55, 56 § 2º. c/c. art. 45 e art. 58). O mesmo sucede com a recuperação extrajudicial sob as

formas para ela preconizadas pela lei.

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14. IMPACTO SOCIAL DA CRISE DA EMPRESA

MARCELO TOURINHO

São muitos os tipos de crise que podem ser enfrentados por uma empresa. Por crise

econômica deve-se entender a retração considerável nos negócios desenvolvidos pela

sociedade empresária. A crise financeira ou de liquidez revela-se pela impontualidade, ou seja

ocorre quando a sociedade empresária não tem caixa para honrar seus compromissos. A crise

patrimonial, por sua vez, é a insolvência – a insuficiência de bens no ativo para atender a

satisfação do passivo, condição temerária indicativa de grande risco para os credores135

.

As ordens de dificuldades enfrentadas pelo setor empresarial brasileiro podem ser

classificadas também como (i) causas externas, quando se referirem a aperto de liquidez,

redução de tarifas alfandegárias, liberação de importações, mudanças na política cambial,

fiscal e creditícia; (ii) causas internas ou imputáveis às próprias empresas ou aos empresários,

no caso de sucessão de controlador, capital insuficiente, avaliação incorreta das possibilidades

de mercado, desfalque pela diretoria, operação de alto risco, falta de profissionalização e

baixa produtividade; e (iii) causas acidentais, como no bloqueio de papel moeda no BACEN,

maxidesvalorização da moeda nacional e situação econômica anormal136

.

A sistematização e da natureza da crise da empresa é de grande importância para o

estudo e desenvolvimento do novo direito falimentar brasileiro, renovado com a promulgação

da Lei 11.101/2005 (LRF), por meio da qual o legislador pátrio deslocou o foco da tutela

protetiva da figura do comerciante, para os meios produtivos que constituem a atividade

empresaria, e inseriu, sob inspiração do direito comparado, instrumento de manutenção da

fonte produtiva e da preservação da empresa, ao invés de sua liquidação. A nova lei reconhece

expressamente a importância econômica e social da empresa conforme se vê do disposto no

artigo 47 da LRF:

“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação

de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte

produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim,

a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

135 COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito comercial, volume 3: direito de empresa, 10ª Ed., Saraiva, 2009. p.231. 136 LOBO, Jorge. Artigo Jurídico “O Moderno Direito Comercial Brasileiro”. Apud MARZAGÃO, Lídia, A Recuperação

Judicial. In: MACHADO, Rubens Approbato. (coord.) Comentários à nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São

Paulo. Quartier Latin, 2005. Sobre as causas e tipos de crises, vide também ARMOUR, J., The Law and Economics of

Corporate Insolvency: A Review. Working Paper 197. Disponível em

http://www.econ.jku.at/members/Buchegger/files/Juristen/armour_2001_corporate%20insolvency.pdf. Aceso em 01.02.2011.

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A preservação da empresa, por alguns considerada como o principal princípio da nova

lei137

, pode ser também observada na falência, em seu artigo 75, o qual dispõe que a falência,

ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a preservar e otimizar a

utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da

empresa. Carlos Henrique Abrão entende que, com a edição da nova lei, “publiciza-se, com

maior ênfase, o direito da empresa em crise, passando ao juiz o papel de uma justiça social –

e não apenas comutativa”138

.

São muitos os casos na jurisprudência em que é prestigiada a preservação ou

conservação da empresa, em reconhecimento à sua função social139

. A preservação da

empresa por vezes está relacionada à questão da impossibilidade de prosseguimento de

execuções junto à justiça do trabalho, paralelamente à recuperação ou falência. Nesses casos o

entendimento que vem se firmando no Superior Tribunal de Justiça é o de que a manutenção

de execuções trabalhistas individuais, aplicando-se isoladamente o disposto no art. 6º, §5º, da

LF n. 11.101/05140

, afrontaria os princípios reitores da nova lei. O princípio aplica-se também,

por exemplo, para o caso de credor único que rejeita o plano141

e em casos aos quais os

valores devidos não são suficientes para justificar a recuperação ou quebra (sendo

reconhecida inclusive para casos iniciados quando da vigência do Decreto-Lei n. 7.661/45)142

.

Manter a empresa é algo importante para os empregos, a arrecadação de impostos, a

economia local etc. Questão que não pode fugir à análise sobre o tema, contudo, é a de se

137 SALOMÃO FILHO, Calixto Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, coordenação de Francisco Satiro

de Souza Júnior e Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo, Ed. RT, São Paulo, 2005,

pág. 41. 138 ABRÃO, Carlos Henrique. O Papel do Judiciário na Lei 11.101/05 in Direito Societário e a Nova Lei de Falências e

Recuperação de Empresas. Coord. Rodrigo. R. Monteiro de Castro e Leandro Santos Aragão. São Paulo: Quartier Latin,

2006. 139 STJ, AgRg no CC 105215/MT, Min. Rel. Luis Felipe Salomão, julgado em 28.04.10; STJ, CC 108457 / SP, Min. Rel.

Honildo Amaral de Mello Castro, julgado em 10.02.10; STJ, CC 73380 / SP, Min. Rel. Hélio Quaglia Barbosa, julgado em

28.11.07; 16ª Câmara Cível do TJ/MG, Agravo de Instrumento nº 1666083-42.2008.8.13.0024, Des. Rel. Wagner Wilson,

julgado em 10.06.09; 13ª Câmara Cível do TJ/MG, Agravo de Instrumento nº 3881220-83.2007.8.13.0702, Des. Rel. Cláudia

Maia, julgado em 27.09.07; 5ª Câmara Cível do TJ/RS, Apelação nº 70016094419, Des. Rel. Umberto Guaspari Sudbrack,

julgado em 06.06.07. 140 Art. 6o A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da

prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário.

(...)

§ 5o Aplica-se o disposto no § 2o deste artigo à recuperação judicial durante o período de suspensão de que trata o § 4o deste

artigo, mas, após o fim da suspensão, as execuções trabalhistas poderão ser normalmente concluídas, ainda que o crédito já

esteja inscrito no quadro-geral de credores. 141 TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 627.287.4/5-00, Relator Romeu Ricupero. Câmara Especial de Falências e Recuperações

Judiciais de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 142 STJ, REsp 1025358, Ministra NANCY ANDRIGHI, Decisão: 13/04/2010; STJ, REsp 1052495, Ministro MASSAMI

UYEDA, DJe 18/11/2009; STJ, REsp 805624, Ministro SIDNEI BENETI, DJe 21/08/2009.

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saber a que custo e em que medida deve ser a empresa preservada. Por óbvio, nem toda

falência é um mal. Como ensina Fábio Ulhôa Coelho:

“Quando o aparato estatal é utilizado para garantir a permanência de empresas

insolventes inviáveis, opera-se uma inversão inaceitável: o risco da atividade empresarial

transfere-se do empresário para os seus credores143

.”

Não pode o direito contemporâneo servir para preservar empresas com organização

ineficiente, defasadas e incapazes de produzir bens ou fornecer serviços de modo competitivo.

A manutenção de más empresas prejudica as boas; a manutenção de um emprego em uma

organização ineficiente impede a criação de um novo emprego em outra empresa; o imposto

não pago pela empresa inviável acaba sendo suportado por empresas saudáveis, e assim

sucessivamente.

A superação da crise da empresa deve resultar de uma “solução de mercado”, ou seja,

pessoas devem se dispor a investir na empresa porque a vêem como uma oportunidade de

ganhar dinheiro, do contrário será melhor a falência144

. As soluções de mercado jamais devem

ser substituídas pelo judiciário. Se a vida empresarial é complexa a ponto de fazer com que

empresários – inclusive os especializados, dedicados, e conscientes do risco incorrido pelo

capital investido – quebrem, tanto mais ficará se as decisões negociais passarem a ser

dirigidas por juízes, que naturalmente não têm como dominar todos os mecanismos que ditam

o funcionamento cotidiano dos diversos tipos de atividades empresariais.

A lei e a atuação do judiciário devem facilitar que se encontre a eventual solução de

mercado, jamais substituí-la.

143 COELHO, Fábio Ulhôa. Op. Cit. P.234. 144 COELHO, Fábio Ulhôa. Op. Cit. P.234 e 235.

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15. Transparência nas Medidas de Prevenção e Solução da Crise

André Luiz Santa Cruz Ramos

Não é de hoje que a transparência é fator primordial nos processos de prevenção de

crises empresariais. Hodiernamente, por exemplo, essa preocupação com a transparência

tem sido a base dos códigos e manuais de governança corporativa. Com efeito, é consenso

entre todos os doutrinadores que as práticas de governança corporativa estão centradas,

fundamentalmente, na transparência (disclosure) e na prestação de contas confiável

(accountabillity).

Nesse sentido, aliás, podem ser citadas a Lei nº 11.638/2007 e a Lei nº 11.941/2009,

que trouxeram novas regras acerca da elaboração e da divulgação das demonstrações

contábeis da sociedade anônima, sempre com o objetivo de conferir maior transparência na

gestão das companhias.

No mesmo sentido, podem ser citadas inúmeras medidas determinadas pela CVM

(Comissão de Valores Mobiliários) em relação às companhias abertas, notadamente as

previstas na Instrução Normativa nº 480/2009, dentre as quais se destaca a determinação de

divulgação detalhada da remuneração dos administradores. Tal medida teve apoio de

importantes entidades associativas ligadas ao tema145

, bem como foi chancelada pelo Poder

Judiciário146

.

No que se refere à solução de crises empresariais, a situação não é diferente. Já se

tornou um clichê afirmar que a Lei nº 11.101/05 (Lei de Falência e Recuperação de Empresas)

era necessária porque o antigo Decreto-lei nº 7.661/45 (Lei de Falências e Concordatas)

estava em descompasso com o atual momento da economia brasileira. A afirmação, de fato,

está correta. Mas talvez seja importante explicá-la melhor.

A concordata, instrumento processual previsto na legislação falimentar anterior para a

solução da crise do devedor comerciante, além de se resumir ao abatimento (concordata

remissória) ou ao alongamento (concordata dilatória) das dívidas – ou a ambas as coisas

(concordata mista) – ostentava outro grave defeito: não se preocupava com os interesses dos

145 O IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa) apoiou a determinação da CVM, afirmando que “o aumento da

transparência na divulgação da remuneração dos administradores é essencial para o contínuo desenvolvimento do mercado

brasileiro, para alinhá-lo aos padrões requeridos internacionalmente e para atender às demandas cada vez maiores de

investidores, stakeholders e reguladores”: http://www.ibgc.org.br/PressRelease.aspx?CodPressRelease=357. 146 O Tribunal Regional Federal da 2ª Região entendeu ser legítima a determinação da CVM, e o julgamento foi

fundamentado, basicamente, na afirmação da necessidade de transparência da gestão das companhias abertas.

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credores, os quais tinham que se submeter à decisão de um magistrado, que muitas vezes

sequer possuía os conhecimentos técnicos necessários para aferir se a recuperação do devedor

concordatário era viável ou não.

O que a concordata permitia, pois, era uma indevida intervenção estatal – já que o

Judiciário é um dos Poderes do Estado – na atividade econômica, algo extremamente nefasto

e que deveria ser sempre combatido, e não incentivado pela lei. O que a lei deve privilegiar é

a solução de mercado, limitando-se no máximo a facilitar o entendimento entre o devedor e

seus credores, sem jamais impor uma solução.

Nesse sentido, pode-se dizer que a Lei nº 11.101/05, realmente, trouxe significativos

avanços, na medida em que deu voz ativa e participação decisiva aos credores na decisão

sobre a sorte do devedor empresário em crise. Pode-se dizer, enfim, que a não-intervenção

estatal é um dos princípios da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial – e também

da falência147

.

Ora, uma vez que legislação falimentar atual privilegiou a solução de mercado,

entendendo-a como a melhor forma de propiciar a superação da crise do devedor, a partir do

acordo voluntário com seus credores, é óbvio que ela teria que se preocupar com a

transparência dos atos do devedor empresário em crise, como forma de permitir aos seus

credores uma fiscalização efetiva do cumprimento das obrigações contidas no plano de

recuperação.

Nesse sentido, destaca-se o fato de que a lei dá à escrituração do devedor um papel de

extremo relevo, sobretudo para permitir que os credores (i) verifiquem, a priori, se a

recuperação do devedor é realmente viável, e (ii) fiscalizem, posteriormente, se a execução do

plano de recuperação está de fato conduzindo o devedor à solução de sua crise. Afinal, é a

partir da análise da escrituração do empresário que se pode aferir a viabilidade econômica da

empresa.

De acordo com a Lei nº 11.101/05, tanto na recuperação judicial quanto na

recuperação extrajudicial o devedor tem que apresentar “as demonstrações contábeis

relativas aos 3 (três) últimos exercícios sociais e as levantadas especialmente para instruir o

147 Na falência, o princípio da não-intervenção estatal deve ser entendido como a vedação de toda e qualquer forma de

socorro empresarial a empresas em crise, de modo a evitar risco moral e permitir a solução de mercado natural.

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pedido, confeccionadas com estrita observância da legislação societária aplicável e

compostas obrigatoriamente de:

I - Balanço patrimonial; II - Demonstração de resultados acumulados; III -

Demonstração do resultado desde o último exercício social; IV - Relatório gerencial de fluxo

de caixa e de sua projeção”.

Mas não é apenas em relação à escrituração que se manifesta o dever de

transparência do empresário devedor em crise. O art. 51 da Lei nº 11.101/05, por exemplo,

que estabelece os requisitos formais do pedido de recuperação judicial, obriga o devedor a

expor-se totalmente ao juízo e aos seus credores, apresentando uma série de documentos, que

vão desde a relação de bens particulares dos sócios até a relação de ações ajuizadas contra ele.

No mesmo sentido, o art. 52 determina que o devedor em recuperação judicial deverá

apresentar contas demonstrativas mensais, sob pena de destituição dos seus administradores.

Interpretadas essas regras legais com cuidado, pode-se extrair delas um conteúdo

normativo maior, de natureza principiológica:

sem uma exposição total e fiel da crise do devedor, com absoluta transparência, é

inviável qualquer tentativa de solução de mercado.

Uma prova cabal dessa afirmação é obtida a partir da análise dos grandes processos de

recuperação judicial já processados na vigência da Lei nº 11.101/05. Em todos eles, a

transparência foi fator determinante para o sucesso das medidas de solução da crise previstas

nos planos de recuperação das empresas148

.

Pode-se concluir, pois, que tanto em relação à prevenção de crises empresariais

(governança corporativa), quanto em relação à solução dessas crises (recuperação judicial e

extrajudicial), um princípio deve ser observado sempre: o princípio da transparência, que

significa, para o direito empresarial, o dever do empresário de adotar medidas de divulgação

148 Citem-se, por exemplo, os casos da Avestruz Master, do Grupo Arantes e da Agrenco. Em todos eles a questão da

transparência provocou problemas, como a destituição de administradores, por exemplo.

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amplas e suficientemente claras de divulgação de suas demonstrações contábeis, de suas

atividades, dos seus administradores etc.149

149 Sobre o assunto, ver:

TOLEDO, Paulo F. C. Salles de e ABRÃO, Carlos Henrique (coord.). Comentários à Lei de recuperação de empresas e

falência. São Paulo: Saraiva.

COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de recuperação de empresas: (Lei n. 11.101, de 9-2-

2005). São Paulo: Saraiva.

DE LUCCA, Newton e SIMÃO FILHO, Adalberto (coord.). Comentários à Nova Lei de Recuperação de Empresas e de

Falências. São Paulo: Quartier Latin.

JUNIOR, Francisco Sátiro de Souza e PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes (coord.). Comentários à Lei de

recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005 – Artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.

CANTIDIANO, Luiz Leonardo e CORRÊA, Rodrigo (org.). Governança corporativa: empresas transparentes na

sociedade de capitais. São Paulo: Lazuli, 2004.

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16. Tratamento Paritário entre Credores

Ivan Vitale Jr

O princípio da paridade ou par condicio creditorum, que pretende assegurar

perfeita igualdade entre os credores da mesma classe, é a base lógica do processo falimentar e

o seu principal princípio. Através dele que se baliza a proteção ao crédito empresarial150

. O

processo falimentar tem como interesse mediato esta proteção, instrumento imprescindível a

atividade econômica ele necessita de proteção até quando está desprotegido como na falência

de um devedor151

.

A falência por mais que seja um processo de execução coletivo movido em face do

empresário ou sociedade empresária insolvente, por ser a melhor forma de equacionar os

débitos do devedor, ao tratar igualmente os credores, possibilita que o prejuízo do crédito em

caso de falência não seja absoluto.

O credor ao ter a proteção jurídica que em caso de falência do seu devedor possa de

certo modo socializar o prejuízo com os demais credores, recebendo que seja uma parte desse

crédito, possibilita que o crédito tenha sempre maior garantia.

Obviamente, foge ao senso de justiça que um devedor insolvente, que tenha uma

dívida maior que o seu patrimônio, que um determinado credor receba a integralidade do

crédito e o outro não receba nada, o mais justo, e por isso a existência do princípio da

paridade de credores, que eles recebam o ativo existente proporcionalmente as suas dívidas152

.

Por isso que afirmamos que este princípio é a base lógica do processo falimentar. No

entanto, para que esse princípio seja bem aplicado necessitamos bem enquadrá-lo frente a Lei

11.101/05.

150FABIO ULHOA COELHO. CURSO DE DIREITO COMERCIAL. VOL.3.11ª edição.pag. 244. “O tratamento paritário

dos credores pode ser visto como uma forma de o direito tutelar o crédito, possibilitando que melhor desempenhe sua função

na economia e na sociedade. Os agentes econômicos sentem-se menos inseguros em conceder o crédito, entre outros

elementos porque podem contar com esse tratamento parificado, na hipótese de vir o devedor a encontrar-se numa situação

patrimonial que o impeça de honrar, totalmente, seus compromissos.” 151 O termo devedor deve ser usado como sinônimo de empresário e sociedade empresária 152 FABIO ULHOA COELHO. CURSO DE DIREITO COMERCIAL. VOL.3.11ª edição.pags. 243/244. O valor básico de

justiça, que se encontra nos alicerces do direito falimentar, isto é, a instauração do concurso na hipótese de devedor sem

meios suficientes para cumprir na totalidade suas obrigações, é referido pela expressa latina par condicio creditorum.”

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O princípio da paridade, a princípio, significa que os credores em caso de falência de

um devedor insolvente devem ser tratados de forma igualitária.

A primeira ressalva que se deve fazer o intérprete a luz do artigo 83 da lei de falências

é que existe uma preferência de recebimento do crédito entre credores. Os trabalhistas

recebem primeiro que os reais, que recebem primeiro que os quirografários e assim

sucessivamente. O legislador assim optou levando critérios como o tipo de credor e de

proteção ao crédito como já mencionado. O trabalhista pelo caráter alimentar, os reais para

que o crédito garantido possa ter um custo menor, apenas para citarmos alguns exemplos.

Portanto, ao analisarmos o princípio da paridade entre credores deveremos na sua

interpretação fazermos uma ressalva, os credores da mesma espécie devem ser tratados

igualmente e não todos os credores indistintamente, visto que faz parte do sistema um tipo de

credor ter privilégio no recebimento do crédito em relação ao outro.

E paridade não deve ser tratada como igualdade, mas como proporcionalidade, pois

também não estaria correto que um credor que tivesse um crédito maior que outro credor da

mesma espécie recebesse a mesma quantia que este, o mais justo é que eles recebam

proporcionalmente o ativo disponível.

Este princípio a que temos conhecimento das varas que tramitam processos

falimentares vem ao longo do tempo observando suas regras e sistemática. O mesmo não

ocorre com a Justiça do Trabalho que não respeita a paridade entre credores. A Justiça do

Trabalho ao querer dar continuidade na execução individual no argumento de proteção ao

crédito trabalhista, não apenas desrespeita este princípio como também prejudica o crédito

trabalhista153

.

Tomamos este exemplo não com a finalidade de um discurso crítico a Justiça do

Trabalho, mas exemplificativo de que como o princípio é essencial a sistemática falimentar de

proteção indireta a qualquer crédito.

A justiça do trabalho ao permitir a penhora de um bem da massa falida, ou mesmo de

um bem pessoal dos sócios ou administradores do devedor, para um crédito trabalhista

individual está prejudicando todo o crédito trabalhista coletivo.

153 FABIO ULHOA COELHO. CURSO DE DIREITO COMERCIAL. VOL.3.11ª edição.pag. 243. “Para evitar a injustiça –

privilegiando os mais necessitados, tornando eficazes as garantias legais e contratuais ou conferindo iguais chances de

realização do crédito a todos os credores de mesma categoria – o, direito afasta a regra da individualidade de execução e

prevê, na hipótese, a instauração da execução concursal, isto é, do concurso de credores. “

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Se o bem da massa pertence a todos os credores, inclusive trabalhistas, não pode um

credor trabalhista se locupletar em relação aos demais da mesma espécie, sob pena de um

credor receber tudo e o outro absolutamente nada154

.

Da mesma forma, caso um credor trabalhista penhore um bem pessoal de um sócio ou

administrador – imaginando-se uma hipótese de responsabilização pessoal pelas dívidas

falimentares - este bem deve integrar a massa falida e ser rateado proporcionalmente de

acordo com os próprios créditos trabalhistas listados na falência. Caso contrário ferirá a

paridade entre credores prejudicando o próprio crédito trabalhista155

.

Portanto, entendemos que o princípio da paridade entre credores deve ser

rigorosamente respeitado por todos os operadores do direito, pois com ele se equaliza se

forma justa os possíveis recebimentos de créditos numa falência fazendo que o interesse

indireto econômico que é o crédito seja mais uma vez protegido156

.

154 SERGIO CAMPINHO. FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESA. RENOVAR.2006. pag.332. “Com o mesmo

intento de garantir a unidade e a universalidade do concurso falimentar, bem como a igualdade de tratamento dos credores, é

que se impõe a suspensão, a partir da decretação da falência, de todas as ações e execuções individuais dos credores em face

do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares dos sócios de responsabilidade solidária e ilimitada. A vis attractiva

do processo falimentar garante a sua universalidade e indivisibilidade, propiciando que os credores a ele concorram, ainda

que seus títulos não estejam vencidos, como se viu no item anterior. Com as providências do vencimento antecipado das

obrigações do devedor falido e com a suspensão das ações e execuções individuais dos credores, assegurando-se a par

conditio creditorum, princípio mãe a inspirar todo e qualquer procedimento concursal, implicando o acertamento adequado

do passivo falimentar.” 155 GLADSTON MAMEDE . Falência e Recuperação de Empresas. 2ª edição. Atlas. Pag. 424. “Com a decretação da

falência, constitui uma situação jurídica distinta, a sujeitar todos os credores – todos- que somente poderão exercer os seus

direitos sobre os bens do falido e do sócio ilimitamente responsável na forma prescrita pela Lei 11.101/05, em seu artigo 115.

Abandona-se, assim, o cenário em que se permitem as execuções individuais, o que implicaria ver, por força apenas da

agilidade em executar seus créditos, alguns credores plenamente satisfeitos, em prejuízo dos demais, que nada receberiam,

sem considerar a relevância social de cada crédito. Em seu lugar, estabelece uma execução concursal, ou seja, uma ordem

predeterminada no procedimento de apuração adequada de seu patrimônio passivo (o valor global efetivo de suas dívidas) e,

enfim, uma preocupação com a distribuição do montante arrecadado com as vendas dos bens, tendo em vista dois critérios

distintos: (1) o interesse público em que determinadas obrigações, por sua natureza, sejam satisfeitas preferencialmente, em

desproveito de outros créditos que, igualmente por sua natureza, mostram menor relevância pela avaliação do legislador; (2) a

preocupação em garantir que todos os credores, titulares de crédito da mesma natureza, sejam tratados em igualdade de

condições, opção jurídica que se identifica com o principio da par conditio creditorum, ou seja, princípio do tratamento dos

credores em igualdade de condições.” 156 RUBENS REQUIÃO. CURSO DE DIREITO FALIMENTAR. 1º VOLUME. SARAIVA.16ª edição. Pags. 23/24. “Tanto

a par condicio creditorum como o saneamento do meio empresarial constituem elementos que se devem levar em conta para

a compreensão da finalidade do instituto falimentar, mas que ambos os princípios não se sobressaem dominadores, mas se

compõem ou se constituem como elementos imprescindíveis à garantia geral do crédito, que deve ser promovido e

assegurado pelo Estado, através da lei. É claro que a segurança do crédito é elemento essencial para a estabilidade econômica

e, nos países menos desenvolvidos, instrumento básico para o seu progresso. Tudo isso a lei falimentar pretende realizar. “