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Gestão da Assistência Farmacêutica Módulo 2: Medicamento como insumo para a saúde UnA-SUS Especialização a distância

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TEXTO CONTRACAPA

UnA-SUSM

ódulo 2: Medicam

ento como insum

o para a saúde

Gestão da AssistênciaFarmacêutica

Módulo 2: Medicamento como

insumo para a saúde

UnA-SUS

Especialização a distância

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AbordAgem culturAl dA doençA e dA Atenção à

sAúde e contexto socioculturAl do uso de

medicAmentos

Módulo 2

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GOVERNO FEDERALPresidente da República Dilma Vana Rousseff Ministro da Saúde Alexandre Rocha Santos PadilhaSecretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) Milton de Arruda MartinsDiretor do Departamento de Gestão da Educação na Saúde (DEGES/SGTES) Sigisfredo Luis BrenelliSecretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) Carlos Augusto Grabois Gadelha Diretor do Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos (DAF/SCTIE) José Miguel do Nascimento JúniorResponsável Técnico pelo Projeto UnA-SUS Francisco Eduardo de Campos

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINAReitor Álvaro Toubes Prata Vice-Reitor Carlos Alberto Justo da Silva Pró-Reitora de Pós-Graduação Maria Lúcia de Barros Camargo Pró-Reitora de Pesquisa e Extensão Débora Peres Menezes

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDEDiretora Kenya Schmidt Reibnitz Vice-Diretor Arício Treitinger

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS FARMACÊUTICASChefe do Departamento Rosane Maria BudalSubchefe do Departamento Flávio Henrique ReginattoCoordenadora do Curso Mareni Rocha Farias

COORDENAÇÃO DO PROJETO JUNTO AO MINISTÉRIO DA SAÚDECoordenador Geral Carlos Alberto Justo da SilvaCoordenadora Executiva Kenya Schmidt Reibnitz

COMISSÃO GESTORACoordenadora do Curso Mareni Rocha FariasCoordenadora Pedagógica Eliana Elisabeth DiehlCoordenadora de Tutoria Rosana Isabel dos SantosCoordenadora de Regionalização Silvana Nair LeiteCoordenador do Trabalho de Conclusão de Curso Luciano Soares

EQUIPE EaDAlexandre Luiz PereiraBernd Heinrich StorbFabíola BagatiniFernanda ManziniGelso Luiz Borba JuniorGuilherme Daniel PupoMarcelo CampeseBlenda de Campos Rodrigues (Assessora Técnico-Pedagógica em EaD)

AUTORESEliana Elisabeth DiehlEsther Jean Langdon

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© 2011. Todos os direitos de reprodução são reservados à Universidade Federal de Santa Catarina. Somente será permitida a reprodução parcial ou total desta publicação, desde que citada a fonte.

Edição, distribuição e informações:Universidade Federal de Santa CatarinaCampus Universitário 88040-900 Trindade – Florianópolis - SCDisponível em: www.unasus.ufsc.br

EQUIPE DE PRODUÇÃO DE MATERIALCoordenação Geral da Equipe Eleonora Milano Falcão Vieira e Marialice de MoraesCoordenação de Design Instrucional Andreia Mara Fiala Design Instrucional Marcia Melo Bortolato Revisão Textual Judith Terezinha Muller LohnCoordenadora de Produção Giovana SchuelterDesign Gráfico Felipe Augusto Franke Ilustrações Aurino Manoel dos Santos Neto, Rafaella Volkmann PaschoalDesign de Capa André Rodrigues da Silva, Felipe Augusto Franke, Rafaella Volkmann Paschoal Projeto Editorial André Rodrigues da Silva, Felipe Augusto Franke, Rafaella Volkmann Paschoal Ilustração Capa Ivan Jerônimo Iguti da Silva

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SUMÁRIO

unidade 5 - abordageM cultural da doença e da atenção à saúde e contexto sociocultural do uso de MedicaMentos .......................... 7

Lição 1 - O conceito de cultura ........................................................... 10Lição 2 - A doença como processo e como experiência ...................... 20Lição 3 - Autonomia ou agência dos usuários ..................................... 28

referências ......................................................................... 38

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Unidade 5Parte 1

Módulo 2

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Unidade 5 - Abordagem cultural da doença e da atenção à saúde e contexto sociocultural do uso de medicamentos

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UNIDADE 5 - ABORDAGEM CULTURAL DA DOEN-ÇA E DA ATENÇÃO À SAÚDE E CONTEXTO SO-CIOCULTURAL DO USO DE MEDICAMENTOS

Ementa da Unidade

• Contextualizaçãodocampodaantropologiaesuascontribuiçõesàáreadasaúde;

• Contextualização do uso de medicamentos a partir de umaabordagemsociocultural.

Carga horária da unidade: 15 horas, divididas em 10 horas junto ao Módulo 2 e 5 horas junto ao Módulo 4.

Objetivos específicos de aprendizagem

• Compreenderoconceitodepráticasdeautoatenção;

• Refletirsobrealgunsconceitosqueenvolvemmedicamentos,àluzdanoçãodeculturaedaspráticasdeautoatenção;

• Compreender a noção de cultura e suas implicações para asaúde, especialmente nas atividades relacionadas à utilizaçãodosmedicamentos;

• Compreenderarelaçãoentredoença,culturaesociedade.

Apresentação

Naunidade“Abordagemculturaldadoençaedaatençãoàsaúdee contexto sociocultural do uso de medicamentos”, estudaremosalguns conceitos que são fundamentais para a compreensão dosmedicamentos para além de suas dimensões farmacológica,bioquímica,técnicaelegal.

A unidade, que corresponde a 15 horas-aula, está dividida emquatro lições principais: (1) O conceito de cultura: nessa lição, osconceitosserãodiscutidosnaperspectivadaAntropologiasimbólico-interpretativa, de acordo com Clifford Geertz (1989) e Esther Jean

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Langdon(2003),entreoutros. (2) Adoençacomoprocessoecomoexperiência:aquidiscutiremos“doença”emumaperspectivaquevaialémdadimensãobiológica,procurandoarticularcomoconceitodeculturatratadonalição1.(3)Autonomiaouagênciadosusuários:ossaberes,aspráticaseasexperiênciasenvolvidosnoprocessosaúde-doença-atenção serão abordados naperspectiva das atividadesdeautoatenção,conformeEduardoMenéndez(2003,2009).E,porúltimo(4)Contextosocioculturaldousodemedicamentos:vamosrepensaralgunsconceitosbiomédicosqueenvolvemosmedicamentos,àluzdaabordagemantropológicadeautorescomoSjaakvanderGeest(1987,1996),PeterConrad(1985),ElianaDiehl(2001,2004,2010)eoutros.Nestalição,osconceitosdeadesão,usoracionaldemedicamentos,eficácia,entreoutros,serãorevisitados,visandodesenvolverumolharmaisamploqueaqueledisciplinadopelosaberbiomédico.

AstrêsprimeirasliçõesserãoestudadasnesteMódulo“Medicamentocomoinsumoparaasaúde”,ealição4serátrabalhadanoMódulo4 “Serviços farmacêuticos”, junto ao conteúdo “Dispensação demedicamentos”.TaldivisãovisaaproximarcadatemadesteconteúdoaoutrosconteúdosafinsdoCurso.

Além das leituras e atividades obrigatórias, faremos sugestões deleiturascomplementareseexercíciosparareflexãosobreatemática.

Aavaliaçãoserádadaduranteoprocessodeestudos,pormeiodeatividadesdefixaçãodosconteúdos.

Conteudistas responsáveis:

ElianaElisabethDiehlEstherJeanLangdon

Conteudista de referência:

ElianaElisabethDiehl

Conteudistas de gestão:

SilvanaNairLeiteMariadoCarmoLessaGuimarães

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Unidade 5 - Abordagem cultural da doença e da atenção à saúde e contexto sociocultural do uso de medicamentos

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ENTRANDO NO ASSUNTO

Contextualizando

Nesta unidade abordaremos conceitos que vêm do campo daAntropologia,emespecialdaAntropologiadaSaúde.

Mas,porqueessetemaé importanteemumCursodeGestãodaAssistênciaFarmacêutica?

Nossaformaçãoémarcadapelotecnicismoeaindaémuitorecenteainserçãodeconteúdosdasciênciassociaisehumanasnoscurrículosfarmacêuticos, tornados obrigatórios pelas Diretrizes CurricularesNacionaisdoCursodeGraduaçãoemFarmácia,quereforçamqueofarmacêuticodeveterumperfilhumanistaesercapazdecompreendera realidade social, cultural e econômica de seumeio. Alémdisso,quandofalamosemintegralidadedaatençãoàsaúde,énecessárioquenossasaçõeseserviçoscontemplemoserhumanoeosgrupossociaisemtodaasuacomplexidade.Nessesentido,aAntropologiaé uma das ciências que reflete sobre as coletividades humanas etrabalha com conceitos e não com hipóteses, diferentemente dasciênciasdasaúde.EnfatizamosqueaescolhapelaAntropologiaenãoporoutraciênciahumanasedeveaofatodequevimosrefletindosobre sua abrangência e especificidade no campo da saúde – esobreosmedicamentos–,buscandoampliaravisãoesensibilizarosprofissionaisdesaúdeparaaimportânciadessaciência.

Acesse a Resolução CNE/CNS n. 2, de 19 de fevereiro de 2002, na

Biblioteca da unidade, no AVEA.

Ambiente Virtual

EstaunidadefoidesenvolvidapelaProfessoraEstherJeanLangdon,antropóloga e professora do Departamento de Antropologia daUniversidade Federal de Santa Catarina, e pela Professora ElianaElisabeth Diehl, farmacêutica e professora do Departamento deCiênciasFarmacêuticasdaUniversidadeFederaldeSantaCatarina.

No decorrer da unidade, além de trazermos alguns autoresque consideramos fundamentais para o tema, apresentaremosexperiências vividas, especialmente pela professora autora EstherJean,bemcomooutrosrelatos, ilustrandoas ideiasquequeremoscompartilharcomvocês.

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Bem,temosmuitoadiscutir,então,vamoscomeçar?

Lição 1 - O conceito de cultura

Nesta primeira lição você terá como objetivos de aprendizagemcompreender a noção de cultura e suas implicações para asaúde, especialmente nas atividades relacionadas à utilização dosmedicamentos.Desejamosque,aofinaldeseuestudo,vocêconsigaatenderaessesobjetivos.

Todos sabem o que é cultura no sentido comum. Dizemos queuma pessoa tem cultura quando possui uma boa formação emeducação,vemdeumafamíliacomumbomnívelsocioeconômico,conhece as artes, amúsica, a história e a filosofia. Até podemospensarqueousuário“comcultura”éumbomusuário,poiseletemculturasuficienteparaentenderoqueomédicoouoenfermeirofalasobrecuidadosdesaúde,paraseguirasinstruçõescorretamenteeparasecuidar,melhordoqueumapessoa“semcultura”.Ousuário“semcultura”éomaisdifícil,éaquelequeageerradoporquestõesdeignorânciaesuperstições.Esseéosensocomumemqualquercontextodeprestaçãodeserviços.

TalvezpossaparecerinadequadoouestranhofalardeculturaemumCursodeEspecializaçãodirecionadoafarmacêuticos,ouqueesseconceitonãosejaútilparaumapessoatrabalhandonasaúde,masqueremosalteraressaimpressãoinicial.

Nesta lição vamos discutir cultura como conceito central daAntropologia,comoobjetivodepropiciarreflexãosobrecomoousodemedicamentosestávinculadoàculturadousuário.

Idealmente,comoprofissionaisdesaúde,imaginamosqueousuáriosegue ou deve seguir de modo fiel a receita domédico, que elecompartilha da mesma racionalidade e do mesmo entendimentosobreovaloreaeficáciadomedicamento.Defato,cotidianamenteesse não é o caso. O cumprimento das instruções – tanto naaquisiçãoquanto na frequência e dosagem indicadas – raramenteacontececomodeterminadonareceitamédica.

Vários fatores interferem para influenciar quanto, como e quandoodoenteadquireeautoadministraseusmedicamentos.Vocêdeveimediatamentepensarqueoacessoeaquestãoeconômicaestãoentre os aspectos mais importantes que condicionam o uso dosmedicamentos.Vamosargumentar,duranteestaunidade,queessesfatoressãomuitomenosimportantesqueasexperiênciasdosujeitoeasavaliaçõesfeitassobresuasnecessidades.

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Unidade 5 - Abordagem cultural da doença e da atenção à saúde e contexto sociocultural do uso de medicamentos

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Paraentenderasexperiências,avaliaçõesenecessidades,éprecisoexplorarocontextoculturalemqueapessoavive.Fatoresculturaissão fundamentaisnaexperiênciadadoençaenasdecisõesqueapessoa toma quando se trata de suamedicação. Argumentamostambémque,deumaperspectivaantropológica,a relaçãoentreaculturaeosprocessosdesaúdeedoençadeveserpartedaformaçãodequalquerprofissionalquetrabalhacomsaúdee,particularmente,dofarmacêutico,seesteteminteresseementenderousohumanodosmedicamentos.Ousodemedicamentosestádeterminadomaispelaconstruçãosocioculturaldaexperiênciadadoençaemenospelaexperiência biológica. Em resumo, segundo o conceito de culturaaserelaboradoaqui,todostêmculturaeéelaquedetermina,emgrandeparte,asdecisõesqueousuáriotomaquandodecidesevaitomarecomovaitomarummedicamento.

Cultura é qualquer atividade física ou mental que não seja determinada pela

biologia e que seja compartilhada por diferentes membros de um grupo.

A cultura inclui valores, símbolos, regras da vida e costumes.Nessa primeira definição, três aspectos devem ser ressaltadosparaseentenderoqueéatividadecultural.Aculturaéaprendida,compartilhadaepadronizada.

Ao dizer que é aprendida, estamos afirmando que não podemosexplicarasdiferençasdocomportamentohumanoatravésdabiologia.Semnegarumpapeldabiologia,aperspectivaculturalafirmaqueaculturamodelaasnecessidadesecaracterísticasbiológicas.

Assim,abiologiaofereceumpanodefundoaonossocomportamentoe às potencialidades de nosso desenvolvimento, mas é a culturaquetornaessaspotencialidades(asquaissãoiguaisparatodosossereshumanos)ematividadesespecíficas,diferenciadas,segundoaculturadogrupoaquepertencemos.Porém,serhomemoumulher,brasileiroouchinês,nãodependedacomposiçãogenética.

Aculturadeterminacomoohomemeamulher,obrasileiroeochinêsvãosecomportaroupensar.Assim,MargaretMead(2000)eváriosoutrosantropólogosposteriores têmdemonstradoquehágrandesvariaçõesdecomportamentodossexosequeessasvariaçõesvêmdoqueapessoaaprendedasuaculturasobreoqueéserhomemoumulher.Porexemplo,MeadencontrouentreasdiferentesculturasdaNovaGuiné umgrupo emque asmulheres eramagressivas e

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assumiamasatividadeseconômicasdogrupo,enquantooshomenseramvaidososemaispassivos;outrogrupo,emqueaspessoasdeambosossexoseramagressivas;e,finalmente,umgrupoemqueambos–homensemulheres-erampassivosesededicavamaoscuidadosdascrianças.

Para ampliar seu entendimento sobre a temática, sugerimos duas

leituras pertinentes:

• Roberto da Matta – Você tem cultura?

• Maria Ignez Paulilo – O peso do Trabalho Leve. O texto trata da discussão

sobre trabalho “leve” e “pesado” no Nordeste e em Santa Catarina.

Ambos disponíveis na Biblioteca da unidade, no AVEA.

Ambiente Virtual

Ao dizer que a atividade cultural é compartilhada e padronizada,salientamos a dimensão coletiva e estamos separando ocomportamento cultural do comportamento individual. Assim,diferenças individuais devido às diferenças das experiênciasparticularese/oucaracterísticaspsicológicasparticularesnãofazempartedacultura,sendoalvodeoutraciênciahumana,aPsicologia.Nossointeresseestánainfluênciadocontextoculturalnapessoa.

Para ilustrar essa afirmação, vamos conferir as diferenças depensamentosecomportamentossobreacomida.NoBrasil,ofeijãoeoarrozformamobásicodoalmoçocompletoparamuitosgrupos,que não satisfazem sua fome se esses dois alimentos não estãopresentes.Outrossempreprecisamdeumpratodecarneparasesentiremalimentados,eatésaemcomfomedepoisdecomerumaabundante comida chinesa cheiade legumesmisturados comumpoucodecarne.Ochinês,poroutrolado,sente-secompletamentesatisfeito com a sua comida. Quando eu, Jean1, morei com osíndiosnaselvaamazônica,sofribastantenosdiasemqueacomidaconsistiadeformigascomcassava(pãodemandioca),pois,emboraasformigassejamumaboafontedeproteínaevitamina,sentiafome,mesmoapósasrefeições.

Segundo a cultura, não só o que comer é definido distintamente,mas também quando comer. A maioria dos brasileiros tem quecomeraprincipal,maisfartarefeiçãoaomeio-diaparadigerirbemeficarbemalimentadoparaotrabalhodatarde.Comermuitoànoite,sobretudocomidaspesadas,fazmalparaoestômago.Porsuavez,

Esther Jean Langdon nasceu nos Estados Unidos em 1944 e mora no Brasil

desde 1983.  Formou-se em Sociologia e Antropologia em Carlton College (EUA),

e fez o mestrado na Universidade de Washington

(EUA).  Realizou pesquisa de campo sobre xamanismo

e cosmologia na Colômbia, entre 1970 e 1974. Com

base nessa pesquisa, obteve o doutorado na Tulane

University, nos Estados Unidos, em 1974. O enfoque da sua tese de doutorado foi a relação entre cosmologia,

doença e práticas cotidianas entre os índios Siona da

Colômbia. Atualmente é Professora Titular na

Universidade Federal de Santa Catarina, onde

trabalha desde 1983.

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onorte-americanonãosentefaltadofeijão;emgeralcomepoucoaomeio-diaejantamuitobemànoite,depoisquesaidotrabalho.Paraeles,acomidaemabundânciafazmalparaotrabalhodatardeesóalmoçamfartamenteaosdomingosouemfestividadesespeciais.

Taisconsideraçõessobreoquecomerequandocomersãorelativasaatividadesculturaisquesãocompartilhadasepadronizadaspelosmembrosdogrupoe,portanto,nãosãofundamentadasnabiologia.Aculturadecadaumdosgruposdefineoqueequandocomerparaconsiderar-sebem,eissonãodependedabiologia.Abiologia,nesseaspecto,sónosindicaanecessidadedenutriçãoecertaslimitaçõesquantoaalimentostóxicos.

Ao aprofundar o conceito de cultura, vamos entender melhor asua fundamental importância na atividade de um grupo. Quandofalamosquea cultura é qualquer atividade física ou mental,nãoestamosnosreferindoaumacolchaderetalhosfeitadepedaçosdesuperstiçõesoucomportamentossemlógica.

Basicamente, a cultura organiza o mundo para o grupo e o organiza

segundo sua própria lógica para formar um total. Assim, a cultura tem

sua própria lógica e sua integração depende dessa lógica.

Paraoserhumano,aculturadesempenhaumpapelparecidocomo papel dos instintos biológicos nos animais, ou seja, o papel dedeterminar como o grupo vai sobreviver. Cada grupo vive dentrodeumambiente,easuaculturadeterminacomosobrevivernesseambiente. O ambiente pode variar segundo a cultura, e assim épossível encontrar, dentro de um tipo ambiental, várias soluçõesculturaispararesolverumaquestão.Atecnologiahumanaeosgruposqueparticipamdastarefassãoresultantesdaculturadogrupo.

O ser humanonasce coma capacidadedeparticipar dequalquercultura, aprender qualquer idioma e desempenhar qualquer tarefa,maséaculturaespecífica,naqualelenasceesedesenvolve,quedeterminao idiomaque fala, asatividadesque faz segundo idade,sexoeposiçãosocial,ecomopensasobreomundoemquevive.Chamamos a esse processo de desenvolvimento dentro de umaculturadeenculturaçãoousocializaçãoe,nesseprocesso,aculturadeterminaoqueapessoadeve fazeretambémo porquê de fazer.

Esteúltimoaspecto,o porquê de fazer,éimportanteparaentenderaintegraçãoealógicadeumacultura.

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Acultura,antesdetudo,ofereceumavisão do mundo,istoé,umaexplicaçãodecomoomundoéorganizado,decomoatuarnestemundoconstruídopelaculturaequaissãoosvaloressobreessasatividades. Assim, voltando ao nosso exemplo da comida, cadagrupocomsuacultura,alémdeorganizarumsistemadaquiloqueécomestívelounãoedecomoconseguiracomidadentrodoambienteecomastecnologiasdisponíveis,tambémorganizaosalimentosemclassificaçõesdo tipo:oqueéboacomida,comida fraca,comidaleveetc,todascarregadasdevalores.

Tomemosoutroexemplo,odoconceitodelimpeza,umacategoriafundamentalemtodasasculturas.Cadaculturaestabelececategoriasdas coisasque são limpas epuras e asque são sujas, conformea antropóloga inglesaMaryDouglas (1976).Cada cultura tambémtempráticasecrençasquantoamanterascoisas ligadasaessascategoriasdistintasparanãomisturá-las.Entretanto, asdefiniçõesdeoqueéolimpoeoqueéosujotêmtantasvariaçõescomotantassãoasdiferentesculturas.

Eu,Jean,melembrobemdeumaexperiênciaquevivientreosíndiosBarasana, na selva amazônica da Colômbia. Eu estava fazendo apesquisa tradicional de um antropólogo, vivendo com o grupo eparticipandodavidadeleparaaprenderasuacultura,sobretudoosaspectos ligadosàsuasaúde.Viviacomelesnamaloca,umacasagrandequeabrigava10famíliasporparentesco,etrabalhavacomasmulheresnassuastarefasdecultivarasroçasdemandioca,conseguirlenhaeprepararopãofeitodemandioca.Eurecémhaviachegadopara viver com aquele grupo e não falava nada além de algumaspalavrasdoidioma.Acomidadeleserabaseadaemcarneoupeixe,produtodacaçaoupescafeitapeloshomens,eempãodemandiocafeitopelasmulheres.Apóscomer,sempretomavamumlíquidoquente,feitodosucodamandiocaextraídonoprocessodefazeropão.

Normalmente, quando umcaçador tinha sorte na caça, na volta àmalocaentregavaamaiorporçãodecarneparao líderdacasa,ohomem mais velho da extensa família. Sua esposa ou esposascozinhavamacarneecolocavamapanelagrandenochãodocentrodacasa.Olíderchamavaparacomerprimeirooshomens,observandoumahierarquiabaseadanaidadeenoprestígio,elogoemseguidachamavaasmulheres,masnemsempretodas;criançasnuncaeramchamadasquandoapanelatinhacarneoupeixedegrandeporte.

Notei que as mulheres, fazendo pão, raramente paravam paracomer,masnãoentendiaoporquê.Imaginei,inclusive,haveralgumtipodepensamentomachistadogrupo,dominadopelaautoridademasculina.Outracoisainteressantesempreacontecia,quetambémentendimalnessa fase inicialdapesquisa:depoisdecomer,cada

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Unidade 5 - Abordagem cultural da doença e da atenção à saúde e contexto sociocultural do uso de medicamentos

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umlevantavaeiatomarolíquidodamandiocanumapanelagrande.Serviam-sedelacomumaconcha,escolhendoumadasduasxícarasqueficavamaoladodapanela.Semprequandoeuiatomarolíquido,copiandoosoutros,ummoçorapidamentemeseguiaemeserviaolíquido.“Queboasmaneiras,”pensava,“Talvezporservisitantenacasadelesqueiramservir-me.”Queerradaeuestava,masdemoreialgumtempoparaentender!

Umdiaeuestavaralandoamandiocaparafazerpãoquandoumapanelagrandedecarneestavasendoservida.Depoisdechamaroshomens,olíderchamouamimeaváriasmulheresnãoocupadasnatarefadefazer pão.Estandocommuita fome, que erameuestado contínuoentreaquelegrupodevidoàcomidaexóticaeàshorastãoestranhasqueserviamacomidaprincipal,eufui,sentindo-meumpoucoculpadaporseraúnicamulherescolhidaentreaquelastrabalhandocomopão;porém,afomevenceueeucomi.Logodepoisvolteiatrabalharparademonstraraminhaboavontade.Amulherdolíderveiocorrendoegritandoparamim“witsioga,witsioga!”,metiroudoserviçoderalaramandiocaememandouembora.Todoscomeçaramagritarparamim;euentendipouco,mascompreendiaraiva.

Com o tempo, descobri que havia quebrado uma regra sagrada arespeitodalimpezaedapurezaentreessegrupo:Witsiogaéacategoriade uma substância na comida, existente especialmente na carne,que fazmal para as crianças pequenas, pessoas de certas idadesouemestadosdeiniciação(porexemplo,asqueestãoentrandonapuberdadeouqueestãosendoiniciadasnapajelança),mulheresquerecémderamàluzeaspessoasdoentes.Elesfazemumaclassificaçãocomplicada dos mamíferos e peixes que são witsioga, organizadasegundotamanho,comportamentoetc,epossuemváriaspráticasdoquepodeenãopodefazerdepoisdecomercarne,alémdaspráticashigiênicaspara tirar essa substânciadapessoaquecomeacarne:logo em seguida à ingestão tomam banho com folhas cheirosas elimpambemosdentes comoutras folhas, epor isso tinhammuitointeressenaminhaescovadedentes,porque“ajudaatirarwitsioga”.Tambémaprendiqueessasubstânciaé ligadanãosóàcomidaeàdoença,masatodaacosmologia2daquelacultura.

Para os Barasana, o mundo está controlado por espíritos, e awitsiogaatraiosespíritosmaus,queatacamaspessoasemestadosclassificadoscomoenfraquecidosouvulneráveis.Assim,podemosverqueoqueeuentendicomo“boasmaneiras”era,narealidade,atentativadelesdemanterememseparadoaxícaracompartilhadapelaspessoascomwitsiogadaquelacompartilhadapelaspessoasquenãopodiamtercontatocomela.Alémdisso,descobritambémqueopãoépuroeque,aotercomidocarne,euestavacontaminandotodooabastecimentodepãodaqueledia.

Cosmologia trata das teorias e relações que um grupo humano tem com seu universo, sendo normalmente expressa simbolicamente por meio dos mitos e ritos que tratam da origem, estrutura e do funcionamento de seu universo. Quando está relacionada a casos de doenças graves, que ameaçam a continuidade do grupo social, as causas da doença são frequentemente atribuídas a este entendimento do funcionamento do universo.

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Diehl e Langdon Medicamento como insumo para a saúde16

Esseexemploilustraaatitudeetnocêntricaquenormalmentetemosquandopensamosnoscostumesdosoutros,masnãoentendemosoporquêdeles.Quandociteiqueelescomemformigas,quecomemna mesma panela usando pão para pegar a comida, que váriaspessoascompartilhamumasóxícaraparabeber,talvezoleitortenhacomeçado a sentir um pouco de nojo – “formiga não é comida”,“tiraracomidadapanelaquandoestaseencontranochãoésujo”,“separarasxícaraseasatividadessegundowitsiogaésuperstição”–eapensarquetudoissonãotemnadaavercomasaúde.Assim,estamos julgando esses índios segundo nossos valores e nossasclassificaçõesdemundo,enãosegundoosdeles.

Estamossendoetnocêntricos3.

Aperspectivacultural requerqueapessoa tenteabandonaressesjulgamentosetnocêntricosevenhaaolharaculturasegundoseusprópriosvaloresecrenças,reconhecendoquesãointegradosemumsistemacultural,emumavisãodomundo.Esserelativismo cultural4nospermiteentenderoporquêdasatividadesecrençassegundoalógicaeintegraçãodacadaculturaemsimesma.

A dinâmica da cultura

Apesar de muitos profissionais de saúde reconhecerem que énecessárioterumacompreensãodoconceitodeculturaedecomoelaafetaapercepçãodadoençaeasdecisõestomadaspararetiraradoença,muitos têmumavisãodeculturacomoumobstáculoàpercepçãoda racionalidademédica.Pensamqueaculturadeumgrupooudeumapessoaéumalgodado,umestadoestanqueefixo.

Oconceitoqueestamosapresentandoaquidiferemuitodessavisão,visto que cultura refere-se a umaspecto abstrato e dinâmicodosgruposhumanos,queresultadacapacidadedeorganizarseumundoviasímbolosecomunicarsimbolicamentesobreestemundo.Noseusentidodinâmico,culturaédefinidaporCliffordGeertz(1989)comoumsistemadesímbolosqueforneceummodelodeeummodeloparaarealidade.

Essesistemasimbólicoépúblicoecentradonoator,queousaparainterpretarseumundoeparaagir,deformaquetambémoreproduz.Asinteraçõessociaissãobaseadasemumarealidadesimbólicaqueéconstituídade,eporsuavez,constituiossignificados,asinstituiçõeseasrelaçõeslegitimadospelasociedade.Aculturaéexpressanainteraçãosocial,quandoosatorescomunicamenegociamossignificados.

Etnocentrismo é a atitude pela qual um indivíduo ou

um grupo social considera sua cultura como sistema de referência, julga outros

indivíduos ou grupos à luz dos seus próprios

valores. O etnocentrismo pressupõe que o indivíduo ou grupo de referência se

considera superior àqueles que ele julga, e também que o indivíduo ou grupo

etnocêntrico tenha um conhecimento muito limitado dos outros, mesmo que viva

na sua proximidade.

3

Relativismo cultural é o princípio que afirma que

todos os sistemas culturais são intrinsecamente iguais em valor e que os aspectos

característicos de cada um têm que ser avaliados

e explicados dentro do contexto do sistema em que

aparecem.

4

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Unidade 5 - Abordagem cultural da doença e da atenção à saúde e contexto sociocultural do uso de medicamentos

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Aplicado ao domínio da medicina, o sistema de saúde é também um

sistema cultural, um sistema de significados ancorado em arranjos

particulares de instituições e padrões de interações interpessoais. É aquele

que integra os componentes relacionados à saúde e fornece ao indivíduo

as pistas para a interpretação de sua doença e as ações possíveis.

Essa visão da ação simbólica enfatiza certos aspectos que sãofrequentemente ignorados na dinâmica da cultura. Um aspectoimportantepara nós équeopróprio significadodas coisas não édado,masdependedocontextoeemergedainteraçãosocial.Porexemplo,osignificadodeumadoençaédefinidopelainteraçãodaspessoasqueestãocomunicandosobreoassunto.

Numa pesquisa realizada entre as mulheres de uma comunidadeno sul do Brasil, a médica-antropóloga Maria Lúcia da Silveira(2000) descobriu que osmédicos e asmulheres têm percepçõesmuito diferentes sobre uma aflição corporal e psíquica, conhecidalocalmentecomo “nervos”.Osmédicosnãoconseguem identificarumdiagnósticocomcorrespondênciaemseusmanuaisdemedicina,enquantoessaafliçãoécomumemuitoconhecidaentreosmembrosdacomunidade.Defato,nervoséumadoençabastanteconhecidaentremuitascomunidadespor todoonossopaís.Nocasodessapesquisa, a médica-antropóloga observou que os médicos, nasunidades de saúde, tenderam a descartar a importância dessadoença na vida das mulheres e, frente à impotência deles pararesolvê-la,arotularamcomodoença“psi”,receitandomedicamentoscontrolados. Esses medicamentos, conhecidos pelas mulherescomode“receitaazul”,foramvalorizadosporelaspelosseusefeitoscalmantes, apesar de a aflição continuar existindo em suas vidas.Umresultadodesuavalorização,baseadonaexperiênciadetomaromedicamento,expressa-senatrocadessareceitaentreelasparafacilitaroacessoaoutrasmulheres.

Portanto, a cultura não é uma coisa dada. Não é mais possível afirmar que a

cultura impede o outro de entender a nossa medicina ou é um obstáculo a

ser superado por meio de programas de educação em saúde. Cultura é um

sistema de símbolos fluidos e, podemos dizer, abertos à reinterpretação, ou

seja, há a possibilidade de as pessoas criarem novos significados.

Reflexão

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Diehl e Langdon Medicamento como insumo para a saúde18

Nessesentido,segundoEstherJeanLangdon(2007)eLucianeOuriquesFerreira (2010), as noções de tradição e de tradicional devem serrepensadas,poisnãosãoarepetiçãohabitualeautomáticadeações,comopensamváriosprofissionaisdesaúde.Atradiçãoécontinuamenterecriadae,nestarecriação,aaçãohumananãoédeterminada.

Semdescartara ideiadequeacultura,comosistemasimbólico,écompartilhadapelosmembrosdeumgrupo,suaanálisepassaparaumenfoquenapraxis:arelaçãoentreaprocuradosignificadodoseventoseaação.Essaabordagemenfatizaosaspectosdinâmicoseemergentes.Aculturaemergedainteraçãodosatoresqueestãoagindojuntosparaentenderoseventoseprocurarsoluções.Osignificadodoseventos,sejaadoençaououtrosproblemas,emergedasaçõesconcretas tomadas pelos participantes. Essa visão reconhece queinovaçãoecriatividadetambémfazempartedaproduçãocultural.

Cultura não é mais uma unidade estanque de valores, crenças, normas

etc, mas uma expressão humana frente à realidade. É uma construção

simbólica do mundo sempre em transformação.

Vamos dar uma paradinha para refletirmos sobre tudo o que estamos

aprendendo sobre cultura e como essa questão interfere na gestão de

um serviço farmacêutico.

Pois é, entender que cultura é uma construção nos coloca dois desafios:

o primeiro é o reconhecimento de que um gestor/gerente/condutor deve

promover a interação entre os atores, exercitando o respeito às diferenças

e às visões de mundo, isto é, atuar no sentido de promover consensos e

fortalecer vínculos. Num mundo em constante transformação, os vínculos

por identidade de objetivos tendem a ser mais duradouros.

Ou seja, alternativas de intervenção sobre a realidade concreta devem ser

construídas a partir do debate entre diferentes opiniões e possibilidades.

O outro desafio é que, ao entender que a cultura emerge da

interação dos atores que agem para entender os eventos e procurar

soluções, coloca uma grande responsabilidade para a gestão no

sentido de favorecer um contexto criativo e capaz de produzir novos

valores organizacionais. Por exemplo, se diz de forma recorrente,

algumas vezes com razão e em outras nem tanto, que os serviços

públicos não têm uma cultura de avaliação, e por essa razão

ninguém cobra nada de ninguém, e todo mundo faz o que quer.

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Unidade 5 - Abordagem cultural da doença e da atenção à saúde e contexto sociocultural do uso de medicamentos

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Esse diagnóstico, ainda que possa ter algumas vezes propósito

ideológico de desqualificar a administração pública, coloca uma

responsabilidade para os gestores no sentido de criar uma “cultura”

de avaliação, de cobrança sobre resultados, de compromisso

com a população, enfim, de construir novos valores que orientem

e qualifiquem cada vez mais e melhor os serviços públicos.

Você, no seu dia a dia de trabalho na assistência farmacêutica, tem feito

alguma coisa para mudar a forma de a população ver o serviço público?

Você se preocupa com o fato de muitas pessoas não valorizarem os serviços

públicos? De acharem que o SUS é coisa de pobre e por isso não precisa ter

serviços de saúde “bonitos”, bem instalados, confortáveis e bem assistidos?

Quantas vezes você já ouviu alguém se surpreender ao ser bem atendido

nas unidades do SUS, pois o que se espera é um mau atendimento? O

que você fez diante dessa situação?

Esses significados precisam ser alterados, e para isso é preciso que a

realidade também seja transformada.

Então... pense, que ao melhorar os serviços farmacêuticos, ao mudar

a lógica de condução/gerência dos serviços de saúde, incluindo os

diferentes atores no processo de decisão e ação, e buscando melhores

alternativas, você estará, consequentemente, contribuindo para produzir

outros valores sobre os serviços de saúde.

Vamos continuar aprendendo mais sobre cultura.

Tambémcentralnesseconceitodeculturaéoenfoquedoindivíduocomoumserconsciente,quepercebeeage.Adoençaévista,apartir dessa perspectiva, como uma construção sociocultural esubjetiva.Pormeiodoprocessodesocialização,acriançainternalizaasnoçõessimbólicasexpressaspormeiodasinteraçõesdogrupodo qual ela participa. Interpretando as mensagens contidas nasatividades culturais, ela também age segundo suas percepçõesindividuais, influenciada em parte pelos significados culturaiscirculantesnogrupo,mastambémporsuaprópriasubjetividadeeexperiênciaparticular.

Reconhecer essa subjetividade implica, ainda que nos gruposmaisisolados edistantesdeoutras culturas, nem todosos indivíduosdeumaculturasão iguaisnoseupensamentoounasuaação.Éumavisãoquepermiteheterogeneidade,nãosóporqueasculturassempreestãoemcontatocomoutras,que têmoutrosconhecimentos,mastambémporqueosindivíduos,dentrodeumacultura,porserematoresconscienteseindividuais,têmpercepçõesheterogêneasdevidoàsua

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Diehl e Langdon Medicamento como insumo para a saúde20

subjetividadeeàsuaexperiência,quenuncasãoiguaisàsdosoutros.Como observaremos, essa ideia da cultura, que ressalta a relaçãoentre percepção-ação, heterogeneidade e subjetividade, tem váriasimplicaçõesnanovavisãosobresaúde-doença.

Lição 2 - A doença como processo e como experiência

Nessa segunda lição você terá como objetivo de aprendizagemcompreenderarelaçãoentredoença,culturaesociedade.

A doença como processo

Segundoavisãodeculturacomoumsistemasimbólico,adoençaéconceituadacomoumprocessoenãocomoummomentoúnico,nemcomoumacategoriafixa.Éumasequênciadeeventosmotivadapordoisobjetivos:

1) Entender o sofrimento no sentido de organizar a experiênciavivida,e

2) Sepossível,aliviarosofrimento.

Ainterpretaçãodosignificadodadoençaemergedoseuprocesso.Assim, para entender a percepção e o significado, é necessárioacompanhartodooepisódiodadoença:oseuitinerárioterapêuticoe os discursos dos participantes envolvidos em cada passo dasequênciadeeventos.Osignificadoemergedesteprocessoentrepercepçãoeação.

Um episódio apresenta um drama social que se expressa e seresolve com a aplicação de estratégias pragmáticas de decisão eação.Ousodemedicamentoséumaestratégiaimportante,masédeterminadopelaexperiênciadousuárioepelasuapercepçãodosefeitosebenefícios.

Emtermosgerais,osseguintespassoscaracterizamadoençacomoprocesso: (a) o reconhecimento dos sintomas do distúrbio comodoença,(b)odiagnósticoeaescolhadetratamento,e(c)aavaliaçãodotratamento.

Vejacadaumdeles:

a) Reconhecimento dos sintomas:oseventoscomeçamcomoreconhecimentodo estadodedoençabaseado nos sinais queindicam que o todo não vai bem. Segundo Jaqueline Ferreira(1994),outramédica-antropóloga,adefiniçãodossinaisquesão

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reconhecidoscomoindicadoresdedoençadependedacultura.Essesnãosãouniversais,comopensadosnomodelobiomédico5.Cadaculturareconhecesinaisdiferentesqueindicamapresençadedoença,odiagnóstico,aspossíveiscausaseoprognóstico.Diferentedabiomedicina,ossinaisdadoençanãoestãorestritosaocorpoouaossintomascorporais.Ocontexto,sejadasrelaçõessociais,sejadoambientenatural,fazpartetambémdepossíveisfontesdesinaisaseremconsideradosnatentativadeidentificaradoença,suascausaseseusignificado.Aprocuradesinaisforadocorpoéparticularmentecomumnasdoençassérias,nasquaisodoentequerentenderoporquêdeestarsofrendo.

b) Diagnóstico e escolha de tratamento: umavezqueumestadodemal-estaréreconhecidocomodoença,oprocessodiagnósticoseinstituiparaqueaspessoasenvolvidaspossamdecidiroquefazer. Esse momento inicial normalmente acontece dentro docontexto familiar, ondeosmembrosda família negociamentreelesparachegaraumdiagnósticoqueindicaráqualtratamentodeveserescolhido.Senãochegamaumdiagnósticoclaro,pelomenosprocuramumacordo,pormeioda leituradossinaisdadoença,dequaltratamentodeveserescolhido.Nocasodesetratardeumadoençaleveeconhecida,acurapodeserumcháouumavisitaàunidadedesaúde.Nocasodeumadoençaséria,comsintomasanômalosouinterpretadacomoresultantedeumconflitonasrelaçõessociaisouespirituais(porexemplo,quebradetabu), talvezabenzedeira,opaidesanto,oxamãououtroespecialistaemacertarrelaçõessociaisseráescolhidoprimeiro.

c) Avaliação: uma vez feito o tratamento, as pessoas envolvidasavaliam os seus resultados. Em casos simples, a doençasome depois do tratamento e todos ficam satisfeitos, mas,frequentemente,adoençacontinua.Assim,éprecisorediagnosticara doença, baseado na identificação de novos sinais ou nareinterpretaçãodossinaisreconhecidosanteriormente.Comonovodiagnóstico,outrotratamentoéselecionado,realizadoeavaliado.Essas etapas se repetem até que a doença seja consideradaterminada.Casosgravesouprolongadosenvolvemvárioseventosde diagnóstico, tratamento e subsequentes avaliações. Muitasvezesadoençasetornaumacrisequeameaçaavidaedesafiaosignificadodaexistência.Muitaspessoasemuitosgrupossãomobilizadosnoprocessoterapêuticoeossignificadosdadoençano contexto mais abrangente (relações sociais, ambientais eespirituais) sãoexplorados.Pormeiodosepisódiosdadoença,envolvendodiagnósticos,tratamentoseavaliaçõessucessivas,aspessoasprocuramossinaisextracorporais,taiscomonasrelaçõessociais ou nosmovimentos cosmológicos, para compreender aexperiênciadosofrimento.

Utilizamos o termo “biomédico” ou “biomedicina” para designar a medicina ocidental hegemônica, cujo enfoque é a biologia, a fisiologia e a patofisiologia humanas.

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Diehl e Langdon Medicamento como insumo para a saúde22

O processo terapêutico não é caracterizado por um simplesconsenso, sendo mais bem entendido como uma sequência dedecisõesenegociaçõesentreváriaspessoasegruposdepessoas,com interpretações divergentes a respeito da identificação dadoençaedaescolhadaterapiaadequada.Háduasfontesprincipaisdedivergências:umaseencontranapróprianaturezadossinaisdadoença;eaoutra,nasdiferentesinterpretaçõesdaspessoas.

Emprimeirolugar,ossinaisdadoençanãosãoclarospornatureza.Sãoambíguos,causandointerpretaçõesdivergentesentrepessoas,mesmoqueestascompartilhemomesmoconhecimentoeamesmaclassificaçãodiagnóstica.NapesquisaclássicasobreapercepçãodasdoençasentreosSubanun,nasFilipinas,publicadaem1961,oantropólogoFrakeconseguiu,pormeiodeentrevista,detalharosistemaclassificatóriodedoençasdepele,solicitandoonomedasdoençaseossintomasassociadosacadauma.Elenotouquehouveconsenso entre os Subanun sobre as doenças e seus sintomas.Porém, na prática, eles não concordavam sempre com omesmodiagnóstico de um caso específico. Frake sugere que isso ocorrenãoporquenãocompartilhemdomesmosistemaclassificatório,masporque eles interpretam asmanifestações na pele diferentemente.Sabemos que isso acontece na prática clínica da biomedicinatambém,pois nemsempreháumconsensoentre osmédicos aoexaminaremomesmousuário.Nateoria,aclassificaçãodasdoençassegundo seus sintomas pode ser bem organizada em categoriasdiscriminadas,semaparênciadeambiguidade;mas,naprática,umsinal dedoençanãoénecessariamenteclaroe fácil de interpretardevidoàsuamanifestaçãoambígua.

Reflexão

Diferentes diagnósticos de uma mesma doença aumentam

consideravelmente quando os participantes no processo representam

diferentes conhecimentos, experiências e interesses sobre o caso em pauta.

Entre os membros de um grupo, nem todos possuem o mesmoconhecimento,devidoaváriosfatores:idade,sexo,papelsocial(porexemplo,apessoacomumouumespecialistaemcura),redessociaisealiançascomoutros.Porisso,cadapassodoepisódioécaracterizadoporvisõesdiferentesdosparticipantesepornegociaçõesparachegaraumainterpretaçãoqueindiqueotratamentonecessário,cadaumexercendoseusdiferentesconhecimentos,experiênciasepoderes.

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A doença como experiência

Finalmente,vamosexploraroconceitodadoençacomoexperiência.Segundo essa visão, a doença é melhor entendida como umprocessosubjetivo,construídoatravésdecontextossocioculturaisevivenciadopelosatores.

A doença não é mais um conjunto de sintomas físicos universais,

observados numa realidade empírica, mas é um processo subjetivo, no

qual a experiência corporal é mediada pela cultura.

Podemoscitaraexperiênciadadorcomoumexemplosimplesdessaideia.Sabemosquemembrosdeculturasdiferentesexperimentameexpressamsuasdoresdiferentemente,comomostrouMariaLuciada Silveira (2000) em sua pesquisa entre asmulheres em relaçãoaosnervos.Enquantoosmédicosrotularamsuadoençacomoumamanifestaçãopsíquica inespecífica, elasexpressaramasuaafliçãopormeiodesintomascorporais.

Em uma mesma sociedade, a dor é experimentada de maneiradiferenciada, dependendo de fatores como sexo, classe sociale etnicidade. Há muitas pesquisas no Brasil que demonstramessas diferenças. Por exemplo, pesquisa pioneira realizada entreos descendentes dos açorianos, na Ilha de Santa Catarina, pelaenfermeiraIngridElsen(1984),registrouqueoshomensnãosentemdoresesintomasdedoençanamesmafrequênciaqueasmulheres.

Aexperiênciadopartoéoutroexemplo.Enquantomulheresdecertosgrupos enfrentam o parto com grande medo da dor e expressama experiência pormeio dela,mulheres de outros lugares ou classespassam pela experiência com pouca referência à dor. Sempre tiveadmiraçãopelasmulheresindigênasSionadaColômbia,comquemeu,Jean,convividurantetrêsanos.Apesardagravidezedoperíododepós-partoserempermeadosporváriostabusquantoàalimentaçãoeoutrasrestrições,opartoemsirecebepoucaatenção.Nãoexisteopapeldeparteira,nemdeumapessoareconhecidacomumsaberespecial.Naprimeiragravidez,amoçavaiàroçaparadaràluzacompanhadaporsuamãeououtramulhercomexperiência.Empartossubsequentes,elasimplesmentevaisozinha,dáàluzevoltaparacasa.

Na nossa sociedade, a gravidez é mais e mais medicalizada,particularmente se examinamos as estatísticas sobre o númerocrescentedecesarianas,emboraestasejaumatendênciarecente.

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Diehl e Langdon Medicamento como insumo para a saúde24

Naminhagravidez,eu,Jean,lembro-medecomoumaenfermeira,daidadedaminhamãe,insistiaemdizerqueeunãoiaaguentarodordopartoquandoaaviseiqueiafazerum“partonatural”.Essaprevisãodelacontrariavaademinhascolegase irmãs,queparticiparamdomovimentopelopartonatural.

Minha irmã, jámãe de nove filhos,me avisara que o parto causacertoincômodo,nãoexatamentedor,atéosminutosfinais,equeadordopartopropriamenteditaécurtaefacilmentesuportável.Essaexperiência,quetivehá35anos,nosdáoutraliçãosobreapercepçãodocorpoetambémsobreasubjetividadedoqueépercebidocomonatural.Naquelaépoca,oconceitode“partonatural” implicavaumpartosemnenhuma intervençãoparaaliviarador.Hoje,noBrasil,comastaxasaltasdecesarianas,“partonatural”éentendidoentreasmulherescomoum“partovaginal”,semcirurgia.

Não estamos dizendo simplesmente que a dor se manifestadiferentemente,dependendodaculturaoudogrupo,um fatoquepareceserbemestabelecido.Arelaçãocorpo-culturavaibemalémda questão de sofrimento físico. Anthony Seeger e seus colegasRoberto daMatta e Eduardo Viveiros deCastro, em um texto de1979, argumentaram que, entre os povos indígenas brasileiros,ocorposervecomoumamatriz simbólicaqueorganiza tanto suaexperiênciacorporal,comoomundosocial,naturalecosmológico.

Oqueocorposentenãoéseparadodosignificadodasensação,istoé,aexperiênciacorporalsópodeserentendidacomoumarealidadesubjetivanaqualocorpo,suapercepçãoeossignificadosseunemnumaexperiênciaparticularquevaialémdoslimitesdocorpoemsi.

Oestudodarelaçãoentrecultura,corpoeexperiênciadevidanãoé limitado aos povos indígenas, e talvez seja umdos temasmaisestudados no Brasil, entre os diversos grupos sociais, em todasas regiões. Voltando ao tema da gravidez, Heloísa Paim (1998),pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpoe a Saúde, pesquisou um grupo demulheres de baixa renda emPortoAlegre,RioGrandedoSul.Comooutrosestudiosossobreotema,elaargumentaqueagravidezeamaternidadenãoseesgotamapenascomofatoresbiológicos,masremetemaouniversosimbólicoemqueamulhervive.Nessesentido,aexperiênciadocorpográvidoabrange dimensões que são construídas cultural, social, históricaeafetivamente.Apercepçãoeavalorizaçãodocorpográvidosãobaseadasnaexperiência social, nopapel feminino idealdentrodogrupo. Assim, diferente de muitas mulheres de classe média, as

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Unidade 5 - Abordagem cultural da doença e da atenção à saúde e contexto sociocultural do uso de medicamentos

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mulheres participantes da pesquisa descrevem a experiência emfunçãodesuasgrandesresponsabilidadesjuntoàfamília.Paraelas,os incômodosduranteagravidez,asdores intensasdopartoeasmarcascorporaissãodescritoscomorgulhoemfunçãodaimagemdamulhervalente,enãodamulherfrágil.

Ultimamente há uma tendência, não só na Antropologia, mastambém nas ciências da saúde, de reconhecer que a divisãocartesiana entre o corpo e amente não é ummodelo satisfatórioparaentenderosprocessospsicofisiológicosdasaúdeedadoença.As representações simbólicas não só expressam o mundo, mas,por intermédiodaexperiênciavivida, tambémsão incorporadasouinternalizadasatéopontoque influenciamosprocessoscorporais.Já existem casos registrados nos quais o contexto socioculturalé o fator central no desencadeamento do processo da doença,comodemonstraramamédica-antropólogaMariaLúciadaSilveira(2000)eapesquisadoraHeloisaPaim(1998).Quandodiscutirmosocontextosocioculturaldousodemedicamentosnomódulo“ServiçosFarmacêuticos”,retomaremosessadiscussão,exemplificando-apormeiodosconceitosdeeficácia,placeboeefeitoplacebo.

Aindasobreesseassunto, talvezocasomais famososejaamortepor vodu, que foi inicialmente documentado entre os aborígenesaustralianospelomédicoWalterCannon (1942),quandoumnativo,aparentementesaudável,morreusobseuscuidados.Elechegouaomédicoexpressandomedoporqueopajédoseugrupotinharealizadooritode“apontouoosso”,condenando-oàmorte.Oexamedomédiconãoidentificounenhumproblema,maselemorreuempoucosdias.Orito–apontaroosso–éoresultadodeumjulgamentofeitoàvítimapor tervioladoalgumaregramoralesuaperformancerepresentaasuamorte iminente.Jásurgiramváriashipótesessobreacausadamorteporsugestão,masqualquerexplicaçãonãopodeexcluirqueopodersimbólicodoritorealizadopelopajé,figurapoderosa,deuinícioaumacadeiadereaçõesfísicas,levandoonativoàmorte.

RenéDubos(1959),emseulivroA Miragem de Saúde,apontaquesóoserhumanotemmedodassombras.SusanneLanger(1976),em sua discussão sobre o papel da capacidade de simbolizaçãodoserhumano,argumentaqueessacapacidadetransformanossaexperiênciaeque,diferentementedosgatos,vivemosnummundo“falsificado”. No seu artigo bem conhecido, A Eficácia Simbólica,Levis-Strauss (1989) demonstrou como um xamãCuna conseguetranquilizarumamulhercomdificuldadesnopartoatravésdoscantosrituais,levandoasituaçãoaumfinalfeliz.

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Diehl e Langdon Medicamento como insumo para a saúde26

Considerações finais

Nestalição,procuramosdemonstrarqueaAntropologia,atualmente,conceituaasaúdecomooresultadodaarticulaçãoentreobiológico,oculturaleaexperiênciasubjetiva.Esperamosqueumavisãomaisampladosprocessossaúde-doençapossaestimularosprofissionaisdesaúdearefletiremsobresuaspráticaseseuconhecimento.

Anoçãodedoençacomoexperiênciatemoutra implicaçãoparaapráticaclínica.Énecessárioenxergarosusuárioscomosereshumanosqueretêminformaçõesimportantessobresuasaflições.Nãoestamosdizendoqueomédico, o enfermeiro ouo farmacêuticodevamsetornar antropólogos. Antropologia, antes de tudo, é um métodoparaconhecerooutroenãoumacúmulodedadosetnográficos6exóticos.Énecessárioqueoprofissionalouçaousuário,permitindoqueelefalesobresuaexperiência,expressandonassuaspalavrasoqueestáacontecendoecomoeleestápercebendoseucorpoeosignificadodadoença.

Ouvir é uma ação muito importante para a gestão. Uma das mais

importantes ferramentas de gestão, a negociação, é pautada sobretudo

no ato de ouvir. Só ouvindo você poderá compreender o desejo do outro.

Uma condução democrática requer o exercício da “escuta”. Mas o ato

de ouvir, de escutar, não é simplesmente ficar em silêncio. Eu posso

estar calado, mas não estou ouvindo o que o outro diz. Só escuto quando

“considero” o que o meu interlocutor diz. Considerar significa respeitar,

procurar entender sua lógica, sua racionalidade, em síntese: os valores

que orientam o seu pensamento. Infelizmente presenciamos muito

mais o “silêncio” do que a “escuta” em nossas organizações, em nosso

trabalho.

Existe uma fábula milenar chamada Sons da Floresta, de autor

desconhecido, que estamos disponibilizando para você ler e refletir

sobre o ato de gerência, sobre os requisitos de um bom administrador.

Leia e depois reflita sobre:

O que significa para você “ouvir o inaudível”?

No seu dia a dia de trabalho, você precisou decifrar outros sinais que

não o da palavra dita?

Será que tudo que os seus colegas dizem, o que você diz para o

secretário de saúde sobre os problemas da assistência farmacêutica é

“a” verdade? Ou é a maneira como você quer ver a situação?

Etnografia trata da escrita do pesquisador sobre a cultura de um grupo. É

baseada na experiência de vivência entre o grupo, seja

este um grupo exótico e desconhecido ou um grupo urbano com quem ele tem

bastante familiaridade. A palavra etnografia também

é usada para referir ao método qualitativo na

coleta de dados. Baseia-se no contato intersubjetivo

entre o antropólogo e o sujeito da pesquisa, em

que o antropólogo procura entender a visão de mundo que o grupo tem e a lógica

de suas práticas.

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Unidade 5 - Abordagem cultural da doença e da atenção à saúde e contexto sociocultural do uso de medicamentos

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Um gerente precisa exercitar muito todos os sentidos, entender todas

as formas de expressão, ter uma sensibilidade aguçada para poder

conhecer, de forma mais ampla possível, a realidade que atua. Conhecer

as pessoas com quem trabalha. E, para conhecer “gente”, é preciso

ouvir o inaudível, isto é, observar outras formas de expressão. Às vezes

o corpo diz mais do que as palavras...Pense nisso! Lembre-se que as

relações humanas envolvem poder, e este se manifesta em diferentes

situações. Continue com a leitura do capítulo e você terá outras

evidências do que estamos falando.

Você encontrará o texto Sons da Floresta na Biblioteca da unidade, no

AVEA.

Ambiente Virtual

Éimportantequeoprofissionalestejaconscientedequeaintervençãomédicaacontecenumcontextomaior,marcadoporrelaçõesdepoder.Numaprimeira instância,podemospensarnopoder,comodescritopor Boltanski (1989), presente na relação médico-usuário, o qualsemanifestaprimariamentequandooprofissional ignoraodiscursocompleto do doente e seleciona só o que a ciênciamédica indicacomoimportante.Eletrataadoençaenãoousuário.Paraentenderasconsequênciasdohábitodenãoouviroqueousuáriodizsobresuaexperiência,maisumavezrecomendamosaleituradolivrodamédica-antropólogaMariaLuciadaSilveira(2000),quetratadadoençadosnervosentremulheres.Entreoutrasconsequências,Silveirademonstraquearotulaçãodasmulheres,quesequeixamdosnervos,como“psi”ouhistéricasresultanousoexageradodecalmantes.

Em situações nas quais os usuários são membros de gruposminoritários, a presença de poder nas relações é ainda maior.Podemos citar como exemplo a experiência com alguns povosindígenas.Osserviçosdesaúdeorientadosparaessasetniasestãomarcadosprofundamentepelasposiçõesdesiguaisentreo índioeonão-índio.Essasdesigualdadesforamconstruídashistoricamente,atravésdaimposiçãoforçadaeviolentadoeuropeusobreosíndios.Hojeessarelaçãodedominante-dominadonãosedescaracterizoue manifesta-se por intermédio do poder imbricado nos contatos

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Diehl e Langdon Medicamento como insumo para a saúde28

interétnicosatuais.Porém,asdiferençasdepoderquecaracterizamasrelaçõesíndio-brancofazempartetambémdosserviçosdestinadosaoutrosgruposminoritários,taiscomonegros,mulheres,pobresetc.

Lição 3 - Autonomia ou agência dos usuários

Nessa terceira lição você terá como objetivo de aprendizagemcompreenderoconceitodepráticasdeautoatenção.

Itinerário terapêutico

Iniciamos nossa discussão tentando entender a cultura como umconceitoqueremeteàdimensãodinâmicadaaçãohumanaequenosajudaacompreenderasdecisõestomadasporumapessoacomrelaçãoàssuasafliçõesfísicasepsíquicaseaousodemedicamentos.Essaideiadequeaculturaédinâmicaenãoumacervode“crenças”ou “representações” quedeterminamasdecisões e açõesparecesimples.Defato,amaiorpartedosprofissionaisdesaúdeentendeaculturanessesentidomaisestanque,ouseja,entendemaculturacomoumacoleçãodecrenças,atitudes, valoresecostumesfixosqueservem,maisquetudo,comoumobstáculodousuárioparaacompreensãodasrecomendaçõesbiomédicas.Essaideianãopodeestarmais longe da realidade, e as pesquisas antropológicas queacompanhamositinerários terapêuticosdaspessoasdoentestêmdemonstradoqueodoenteeseusfamiliaresdecidemescolherumterapeutaemespecialeseguirassuasinstruçõesdeumamaneirabastante criativa e experimental, que depende da construçãosocioculturaldadoença,aolongodeseuprocesso.

Enquantoomodelobiomédicolocalizaasdoençasnocorpomateriale biológico, os modelos de atenção à saúde da população leigarefletem um contextomais amplo para diagnosticá-las e tratá-las.Quandoeu,Jean,moreientreosíndiosSionadaselvaamazônicadaColômbia,procuravaentendera lógicadaaçãodos índiosquandoocorriam problemas de saúde e, para esse fim, acompanhei ositineráriosterapêuticosdasdoençasqueapareceramduranteminhavivência entre eles. Um caso particular exemplifica, com bastanteclareza,comoaspessoasaproveitamtodososmodelosdeatençãoacessíveis no caso de doenças sérias, mas nem sempre issoacontececomomesmoentendimentodoscurandeirostradicionaisedosprofissionaisdesaúdeprocurados.

Trata-sedeumíndioSionaqueestavasofrendodeumproblemadepelequandoinicieiapesquisadecampoequeacompanheidurantetrêsanos.Oitinerárioterapêuticonestecasoéumahistóriabastantelongaeaqui a reduzimosparaospontosmais relevantes.O índio,

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demaisoumenos setenta anos, sequeixavadeumacoceiraquenãodeixavamarcas oumanchas na pele,masque o incomodavasuficientemente para lhe tirar o sono durante as noites. Quandoperguntadosobreoiníciodadoença,elerespondeu:“ah,euestavacaminhandoparaminha roça,depoisqueeu tinhavoltadodeumaviagem para Loma Linda, o centro dos missionários do InstitutoLinguísticodeVerão.LáconhecialgunsíndiosdoVaupés”.OVaupéslocaliza-senoladodaColômbia,nafronteiracomaregiãodoAltoRioNegro,noBrasil.Continuandocomsuanarrativa,oíndioexplicouque“ospajésdoVaupéssãomuitopoderosos”e,prosseguindo,dissequenaqueledia,nocaminhodaroça,elesentiualgo,comoumafolhaseca,cairnasuacabeça.Tentoutirá-la,masnãoachounadaeseguiuparaotrabalho.Depoisdepassarodiatrabalhadonosolesobcalor,começouasofrerumacoceiraqueaumentavaeentãoagiusegundoumalógicaquereconhecemos:tomouumbanhoetrocouaroupa,achandoqueeraasujeiradaroçamisturadacomosuorecalorquehaviamcausadoacoceira.Porém,essasaçõesnãoderamresultadoseapartirdeentãoelesofreudacoceiraatéofinaldasuavida.

Ointeressanteparaanossadiscussãoéadiversidadedetratamentosqueeleprocurouaolongodosanos.Elerealizoubanhoscomervasrecomendadasporsuamulher,especialistaemplantas,eporvizinhos,caboclostambémreconhecidoscomotendoessesaber.Procurouomissionárioevangélicoqueestavanasuaaldeiae tambémamim,a antropóloga. Tomava as vitaminas recomendadas por ambos,mas sem resultados. Quando a condição piorou, impedindo-o detrabalhar,dobrouseusesforçosparacurar-sedacoceira.Perguntouatodosquepassarampelaaldeiasesabiamidentificaradoençaeespeculousobreaspossíveiscausas.Enquanto,noinício,pensavasercausadapelasujeiraepelosuordotrabalhobraçalnaroça,como agravamentoda sua condição, especulavaquepoderia ter sidocausadapelospajésdoVaupésqueeleconhecia.Aexperiênciadotoque invisívelnacabeça,nocaminhoparaaroça, foi interpretadacomoumsinaldefeitiçaria,possivelmentedeumdessespajés,oudeoutrapessoacomquemeletinhabrigado.

Aonãopodertrabalharmais,procurouváriostratamentosparaaliviarsuaaflição,inclusivecomeçouafazerviagensparaforadaaldeia.Naprimeiraviagem,subiuorioparachegaraolocalurbanomaispróximo,ondehouvessefarmácias.Láelefoiparaafarmáciadasfreiras,queatendiammuitosdosíndios.Elasrecomendaramumapomadadebaixocusto,queelecomproueaplicou.Apósumasemana,avaliouquenãoestavafuncionando.Nasegundaviagem,seguindoasrecomendaçõesdaantropóloga,elefoiàunidadedesaúde,ondeomédicodissequeoproblemaeraalergiaaosolereceitoudoismedicamentos,umsoba formadecomprimidoseoutrodeumapomada.Oscomprimidoseramcarosparaelee,assim,nãocomprouaquantidadereceitada.

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Explicava, durante esse tratamento, que estava atrás do alívio dossintomas para poder fazer uma viagemmais longa para receber otratamentodeseucunhadopajé,comoobjetivodecurar-sedacausadadoença,atribuídaà feitiçaria.Embora tenhahavidoumamelhorainicialcomotratamentoreceitadopelomédico,pioroudenovopornãousaradosagemnecessária.Dessaforma,aquantidadecompletadareceitafoicompradapelaantropólogaeacondiçãodoíndiomelhorou,osuficienteparaviajaràprocuradopajé.Paraele,ocasoencerrouquandoumpajérealizouumritoparadescobriracausadafeitiçariaeretornarodanoinvisívelàssuasorigens.

Esse caso demonstra claramente a construção sociocultural dadoença,comoantesdiscutido.Váriosatoresentramemcenaparaopinar, recomendar e ajudar. Também demonstra que, durante oprocesso, os atores envolvidos constroem suas explicações, nemsempreconcordandoentresi.Aindamais,demonstraqueodoentee sua família sãoos atoresprincipais nessesdramasdedoençaeque não são as crenças nem as representações que determinamas medidas a serem tomadas para resolver o caso. No caso dadoençadepele,aculturaindígenanãooperavacomoobstáculo.Eleprocuravatratamentosrecomendadosporvizinhoseporpessoasforadesuacultura.Foramoutrosfatores,denaturezasocial,econômicaedeacessibilidadenoprocessodadoença,queguiaramoitinerárioterapêutico.Porém,aculturafoiimportanteparaguiarainterpretaçãodoprocessoedarmaiorsignificadoaossintomaseaosresultados.

O estudo de itinerários terapêuticos é útil para compreender vários

aspectos do comportamento de um grupo ou de uma pessoa frente à

experiência da doença. Ele aponta para um fato pouco considerado pelos

profissionais de saúde: que fora do âmbito hospitalar, onde o usuário

é sujeito a maior controle, o doente e seus familiares são os atores

principais nas práticas de atenção à saúde. Ainda mais, todos os grupos

humanos desenvolvem práticas para manter a saúde do grupo, visando

sua preservação tanto quanto a resolução dos agravos que o atacam.

SeguindooantropólogoargentinoEduardoMenéndez(2003,2009),essas práticas são melhores conceituadas como práticas de autoatenção,queenfatizamadinâmicadasdecisõessobresaúde,exercidaspelosatoresenvolvidos.

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Práticas de autoatenção e serviços médicos

EduardoMenéndez(2003,2009),antropólogocomvastaexperiênciaemserviçosprimários,saúdecomunitáriaeprojetosdeintervençãoemsaúde,resumebemaquestãodaculturaedacentralidadedafamílianoprocessoterapêutico,pormeiodeseuconceitodeautoatenção.

Emsuapublicaçãomaisrecentede2009,Menéndezdefinenapágina48queaautoatençãoé“asrepresentaçõesepráticasqueapopulaçãoutilizatantoindividualquantosocialmenteparadiagnosticar,explicar,atender, controlar, aliviar, suportar, curar, solucionar ou prevenir osprocessosqueafetamsuasaúdeemtermosreaisouimaginários,semaintervençãocentral,diretaeintencionaldecuradoresprofissionais,emboraelespossamserosreferenciaisdessaatividade”.

Nossa experiência com profissionais de saúde indica que muitosconfundemesseconceitocomodeautocuidado,termoque,segundoMenéndez (2003, 2009) é utilizado pelo setor saúde para entenderas ações efetuadas pelos indivíduos com o objetivo de prevenir odesenvolvimentodecertasdoençasepromovercuidadosemfavordaboasaúde,ouseja,esseéumconceitocomfoconoindivíduo.

EduardoMenéndez(2003,2009)escolheuautoatençãoprecisamentepara contrastar coma perspectiva individualista e para enfatizar anaturezasocialeculturaldasatividadesdossujeitosenãoavisãodosprofissionais.Comopodeservisto,pelaexpressão“tantoindividualquantosocialmente”,elesalientaasaçõescoletivasdosconjuntossociais.

Assimcomoospioneirosque fundaramocampodaAntropologiada Saúde, conforme foi apontado antes, em nossa discussãosobre cultura, ele reconhece que todas as culturas desenvolvemseus valores, saberes e práticas sobre a saúde e que esses sãocompartilhados pelos membros do grupo. No cotidiano, váriasatividadessãopráticas,segundoospreceitosdecomoéviverbemeoqueéumavidasaudávelparaoconjuntosocialeparaoindivíduo.Emais,asaúde,nosentidolatoouamplo,nãopodeserseparadadavivênciaemgrupo.

Comafinalidadedepensararelaçãoentreoindivíduoeseugruponoprocessodesaúde-doença-atenção,esseautorexploraoconceitodeautoatençãoemdoisníveis:osentido amploeosentido restrito.Vejamos:

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No sentido amplo

Nosentidoamplo,segundoMenéndez(2003,p.199),autoatençãotratade“todasasformasnecessáriasparaassegurarareproduçãobiossocial dos sujeitos e grupos a nível dos microgrupos, eespecialmentedogrupodoméstico–formasquesãoutilizadasapartirdosobjetivosenormasestabelecidospelaprópriaculturadogrupo”.Aquiqueremoschamaraatençãoparaosprocessosdereproduçãobiossocial,porquesãoessesqueremetemàculturaproduzidapelogrupocomênfasenasaúdeenãonadoença.Assim,nãosereferesó à atenção e prevenção dos padecimentos, mas também àsatividadesquediscutimosnaprimeirapartedestaunidade,ouseja,apreparaçãoedistribuiçãodealimentos,ahigienedolar,doentornoedocorpo,aspráticassanitáriasetc.Aindamais,envolveosrituaisdepassagem(nascimento,casamento,morte),asproibiçõeseostabus,as atribuições aos gêneros, as regras de casamento, as normasde reciprocidade, e outras práticas que não são necessariamenteconsideradas quando pensamos a saúde de um ponto de vistabiológico.Sãoessasatividadesquereproduzemsocialefisicamentea continuidade de um conjunto social ao longo do tempo. Trata,portanto,dacontinuidadedogrupoedavivênciacoletiva,aspectosnãoreconhecidospelomodelodeatençãobiomédica.

No sentido restrito

Osentidorestritodaautoatençãoémaisfácildepercebermosporquese refere “às representaçõesepráticasaplicadas intencionalmenteao processo de saúde-doença-atenção” (MENÉNDEZ, 2003, p.199).Assim,osdiagnósticosfeitospelafamília,asrecomendaçõesdosvizinhos,aatençãodadaaodoente,oscuradoreseossaberesfitoterapêuticoseoutrasatividadesepessoasacionadaspararesolverumestadopercebidocomodoença,sãomaisfáceisdereconhecercomopráticasdeautoatenção.

OimportantenasreflexõesdeMenéndez(2003,2009)éadinâmicaobservada nas práticas de autoatenção. Como foi apontado noexemploanteriorsobre itinerárioterapêutico,qualquergrupotemàsuamãováriosmodelosdeatenção.NocasodosSiona,vimosqueelesprocuramseusvizinhoscomconhecimentos,seuscuradoresepajés,asfarmáciasdacidadeeaunidadedesaúde.Emumcontextourbanocontemporâneo,asopçõessemultiplicam.

Asociedadebrasileiratemumamploelencodeescolhas,quepodeserbuscadoemsequênciaousimultaneamente–sabereseformasde atenção biomédica, populares ou tradicionais, alternativas ouparalelas,outrastradiçõesmédicas(acupuntura,ayurvédica),gruposdeautoajuda(comoAlcoólicosAnônimos),curasreligiosasetc.Não

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épossívelcaracterizarumgruposocialcomosendoaquelequeoptapor formas não biomédicasmais que outras. Se as comunidadespopularesprocurammaisabenzedeira,ocuradorououtraspráticasconhecidas como tradicionais, namesmamedida a classemédiatambémprocuraalternativas,nemsemprereconhecidaspelaciênciamédica,taiscomo:osfloraisdeBach,naturologiaerituaisquefazempartedosnovosgruposespirituaisdaNova Era7.

Pesquisasantropológicasentreusuárioscomcâncer,independentedeclassesocial,têmdemonstradoqueostratamentosbiomédicossãoacompanhadospelaprocuratambémdepráticasespirituais.Porexemplo,comodemonstraumestudoqueWaleskaAureliano(2010)está realizandonosuldopaís, emuma instituiçãoespírita (CentrodeApoioaoPacientecomCâncer/CAPC),aoobservarquepessoasdetodasas idadesecamadassociais,vindasdeváriosestadoseaté do exterior, procuram seus tratamentos simultaneamente aostratamentos de radioterapia e quimioterapia. Ainda mais, muitosafirmamnãoseremreligiososouacreditaremnareligiãoespírita.

Talvezapráticadeautoatençãomaisdivulgadanasociedadebrasileirasejaapráticadeautomedicação,eestademonstraadinâmicadaautonomiadosgrupossociaisemdesenvolverformasdeautoatençãoinfluenciadas, mas não controladas, pelos profissionais de saúde.SegundoEduardoMenéndez(2003,2009),abiomedicinacostumaconfundirouidentificaraautoatençãosomentecomaautomedicação,que,paraele,éaformaautônomaourelativamenteautônomadeossujeitosemicrogruposutilizaremdeterminadosmedicamentossemainterferênciadiretadoprofissionaldesaúde.OqueéimportantenavisãodeMenéndez(2003,2009),équeaautomedicaçãonãotratasomentedadecisãodeusarmedicamentos,masrefereaousodetodasassubstâncias,comoervasmedicinais,álcool,maconhaetc,edeoutrasatividades,comocataplasmas,massagensetc.

Esseautoraindaapontaque,demodogeral,opessoaldasaúdecostuma julgar a automedicaçãode formanegativa ouperniciosa,queé frutoda faltadeeducaçãoouda ignorância, identificando-acomo um comportamento das classes sociais mais pobres. Paraele, essa avaliação está baseada naprópria experiência clínica ounatradiçãooralinstitucional,bemcomonaposiçãodosetorsaúdefrenteàautomedicação,masnãoempesquisassistemáticassobreosmalefíciosoubenefíciosdaautomedicação.

Menéndez (2003, 2009) quer dizer com isso que a biomedicinaidentificaapenasosaspectosnegativosdaautomedicação,como,porexemplo,nocasododesenvolvimentoderesistênciadevetoresacertosmedicamentos,comoaosantibióticos;oudosefeitoscancerígenosdevidoaousoindiscriminadodecertosfármacos,masnãoinvestiga,demaneira

Para Elisete Schwade (2006), a Nova Era é um fenômeno, um conjunto de práticas que tem levado a mudanças de comportamento, especialmente entre camadas médias urbanas. Para a autora, a presença da Nova Era nas cidades é observada “por meio da implementação progressiva de uma rede de produtos e serviços fundamentada na perspectiva de uma reorientação de diversos aspectos da vida cotidiana, com a finalidade de orientar e promover o ‘bem-estar’” (p. 9). Entre tais serviços e produtos, são exemplos a valorização de alimentação específica (naturalista, vegetariana, macrobiótica), massagens, tarô, astrologia etc.

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continuada, as atividades de automedicação nas doenças crônicas,visandodeterminarseessapráticarealmenteépositivaounegativa.

OutroaspectoimportantequeMenéndez(2003,2009)nostrazéque,apesardascríticasedosjulgamentosnegativosdaautoatençãoemtermosdeautomedicação,abiomedicinaeseusserviçosdesaúdeestimulam atividades de autoatenção em termos de autocuidado,como o uso do termômetro, a apalpação dos seios femininos,o planejamento familiar através da pílula contraceptiva, o uso dacamisinha,areidrataçãooral,aautoinjeçãodeinsulina,aleituradaglicosenosangue,entretantosoutrosexemplos.

Talvez as pesquisas sobre diabetes demonstrem bem, não só aavaliação negativa dos profissionais de saúde sobre as práticasde autoatenção, mas também como os profissionais acabamestimulandoaautomedicação.

FabianeFrancioni(2010),enfermeira,realizouumapesquisaqualitativasobreaspráticasdeautoatençãoemumacomunidadedepescadoresnosuldopaís,focadaempessoasquetêmdiabetesmellitus (DM)e que participam há vários anos de encontros organizados pelosprofissionaisdaunidadedesaúdelocal.Nessecaso,osprofissionaistêmuma longa história coma comunidade e sãobem recebidos,sendo vistos como vizinhos e pessoas de confiança. Porém, apesquisa identificou,entreaspráticasdeautoatenção,quemuitassãodecorrentesdainteraçãocomosprofissionais.

AspessoascomDMdemonstraramumagrandeaceitaçãoelegitimidadeaosmedicamentosalopáticoseaosdiagnósticosdadospelomédicopormeioderesultadosdeexames.Porém,elesreapropriaramearticularamessasinformaçõescomoutrosconhecimentosepráticasquejulgaraminteressanteseacreditaramterefetividade.Ousodamedicaçãooralé o tratamento mais aceito, mas fazem adaptações, alterando oshorárioseafrequênciaouasdosagenstomadas,baseadosnosefeitosobservadosemrelaçãoaocontroleglicêmico.

O resultadode umexameapontandoglicemia normal oupróximadanormalidadeéinterpretadocomojustificativaparaareduçãodamedicaçãoouoconsumodecomidasgeralmentenãoaconselhadas,taiscomoosdocesouasfrituras.Adietasemaçúcarecompoucagordurarecebeênfaseespecialnosencontroscomosprofissionais,masparaaspessoascomDM,comeréumatosocialquefazpartedas relaçõesdeamizadesedasatividades festivasquesãovistascomoessenciaisparaasaúde.Aflexibilidadedadietaéresultadodosvaloresassociadosàspráticasdesociabilidadedacomunidade,que,nadefiniçãodeMenéndez(2003,2009),fazempartedaspráticasdeautoatençãonosentidoamplo.

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Unidade 5 - Abordagem cultural da doença e da atenção à saúde e contexto sociocultural do uso de medicamentos

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Outroexemplomuitoclarosobreaspercepçõesdiferentesentreosprofissionaisdesaúdeeaspessoasquesãoobjetodeintervençãoéodacampanhadeenfrentamentoaocólera,desenvolvidaemumafavelaemFortaleza,Ceará,quefoiestudadapelaantropólogaMarilynNations(1996).Frenteaoelevadonúmerodecasosidentificadosnaepidemiade1993,quandoFortalezaexibiaastaxasmaisaltasdeprevalênciadadoençaedemortedecorrentedela,asequipesmédicasdesaúdepúblicarealizaramuma“guerracontraocólera”.Identificandoasfavelascomoaszonasdealtorisco,tomaramváriasmedidasparaeducarapopulação.Nasfavelas,distribuíramcartazesanunciandoacampanhae utilizando símbolos militares, trataram os poços comunitários deáguaeascaixasd’águanascasascomcloro,investigaramomaterialfecaldosresidenteseadministraramantibióticosprofiláticosparaosportadoresassintomáticosdoVibrio colerae.

Apesardebemintencionados,osesforçosforaminterpretadosdeoutraforma pelos membros das comunidades. Entrevistas realizadas pelaantropóloga demonstraram que eles interpretaram a distribuição doscartazeseasintervenções,somentenasfavelas,comoacusaçõessobresuamarginalidadeepobreza.Entenderamasacusaçõesdeseremsujoseotratamentocomodestinadoacachorrosvira-latas,quedevemsercontroladoseeliminados.Aindamais,perceberamasequipesdesaúdeconspirandocontraelesafavordosricose,assim,nãolevaramasérioosdiagnósticosdosassintomáticos,jogandoforaosremédios.Poroutrolado,quandoreconheceramumcasodecóleraentreeles,continuaramaprocuraroatendimentodeemergênciadoshospitaispróximos.

Considerações finais

Naterceiralição,continuamosnossadiscussãosobrearelaçãoentresaúde e cultura, mas, diferente das disciplinas biomédicas, nossaintençãoédiscutirosprocessosdadoençanaperspectivadosujeitoenãodoprofissionaldesaúde.Comoargumentadonaprimeiraparte,todososatores,emumepisódiodedoença,têmpercepçõessobreocorpoeostratamentosadequados.Frequentemente,emumencontroentre o profissional e o usuário, essas percepções são bastantediversas, devido às suas experiências, aos seus conhecimentose às influências culturais. Podemos dizer que os profissionais, porum lado,compartilhamaculturadabiomedicina,comseusvalorese conhecimentos. Por outro lado, os usuários são parte de outrascoletividadesougrupossociais,quetambémtêmseusconhecimentosevalores.Emrelaçãoaotemadasaúde,chamamosaessaspráticasdascoletividadesedosgrupossociaisdeautoatenção.

Assim, introduzimos o conceito de autoatenção na tentativa dedemonstrarqueodoenteeseus familiares tomamdecisõessobre

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queaçõesdevemser feitasquandosurgeumadoençaeque,defato,oprofissionaldesaúdetempoucocontrolesobreatomadadedecisõeseaprocuradeterapias.Aspráticasdeautoatençãonoseusentidoamplosãoestreitamenteligadasaaspectosdacultura,seusvalores, suas formas de organização social, seus conhecimentos,queremetemàvidaemgrupoequevaialémdavisãodabiomedicinaesuaperspectivabiologicista.

Concebemos o encontro entre o profissional de saúde e o não-profissionalcomoumeventoqueérelacionadoàsdiferençasdepoder.Emgeral,oprofissionalpresumequeeletemopapeldemodificarocomportamentododoente.Defato,elenormalmentetemmaispoderno encontro médico, e frequentemente exibe atitudes avaliativasquerotulamousuáriocomoerradopornãoseguirsuasinstruçõescomodeveria.Podemospensar algumasdessas avaliações comoetnocêntricas–taiscomodizendoqueousuárionãotemeducação,é relaxado, ou que, em alguns casos, é ignorante, age segundocrençaserradasequenão temaculturaadequadaparaentenderas instruções. Porém, como aponta Eduardo Menéndez (2003,2009), as pessoas são autônomas nas suas decisões sobre suasaúde.Comodeveservistopelosexemplosdados,elasnãonegamosbenefícioseasrecomendaçõesdosprofissionais,masavaliameadaptamasrecomendaçõesmédicasàluzdeseusconhecimentosepráticasdeautoatenção.Talcomportamento,comovistonocasodaautomedicaçãoedeoutraspráticasdeautoatenção,ébaseadonasuaexperiênciaenalógicasocioculturalquefazpartedeseugrupo,masqueéignoradopeloprofissionaldesaúde.

As três primeiras lições aqui apresentadas serão retomadas nomódulo4 –Serviços Farmacêuticos –quandoa lição4 (Contextosociocultural do uso de medicamentos) será abordada junto aoconteúdo“Dispensaçãodemedicamentos”,vistoqueláessaquartaliçãoserámelhoraproveitadaporvocê,especializando.

Concluímos os estudos desta unidade. Acesse o AVEA e confira as

atividades propostas.

Ambiente Virtual

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Análise crítica

Oconteúdo“Abordagemculturaldadoençaedaatençãoàsaúdeecontexto sociocultural dousodemedicamentos” tratadeum temamuitopouco (ounada)enfatizadona formaçãodosprofissionaisdesaúde, sejam eles farmacêuticos, médicos, enfermeiros e outros.Entendemosqueadimensãoculturaléfundamentalparaareflexãodequeossaberes,osconhecimentoseaspráticasdabiomedicinasãoapenasmaisumconjuntodepossibilidadesaseracionadonoprocessosaúde-doença-atenção,equeossujeitosegrupossociaisdecidemautonomamenteoquefazerebuscar.Indomaisalém,compreenderarelaçãoentreculturaeosprocessosdesaúde-doença-atençãoeousodemedicamentosauxiliaoprofissionaldesaúdeemseucotidianode trabalho, vistoqueodeslocadeumaposiçãoetnocêntricaparaefetivamente entender a visão demundo do outro, permitindo, naspalavrasdeEduardoMenéndez(2003,2009),ainclusãoarticulada,pormeiodaspráticasdeautoatenção,dossujeitosegrupossociaiscomosserviçosdesaúdebiomédicosecomoutrasformasdeatenção.

Fechamento do módulo

NoMódulo2(Medicamentocomoinsumoparaasaúde),tratamosdetemasquemostramacomplexidadequeenvolveomedicamentocomouminsumoestratégicodesuporteàsaçõesdesaúde,incluindoseusaspectostécnicoselegaiseumaconcepçãocentradanoolharsociocultural.NopróximoMódulo,apresentaremosaestruturaçãodaassistênciafarmacêuticaeconceitosdeacessoemumaperspectivahistóricaepolítica.

Bonsestudos!

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Diehl e Langdon Medicamento como insumo para a saúde38

Referências8

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DIEHL,E.E.Entendimentos, Práticas e Contextos Sociopolíticos do Uso de Medicamentos entre os Kaingáng (Terra Indígena Xapecó, Santa Catarina, Brasil.2001.230f.Tese(DoutoradoemCiências) -EscolaNacionaldeSaúdePública,FundaçãoOswaldoCruz,RiodeJaneiro,2001.

DIEHL,E.E.;RECH,N.Subsídiosparaumaassistênciafarmacêuticano contexto da atenção à saúde indígena: contribuições daAntropologia. In:LANGDON,E.J.;GARNELO,L. (org.).Saúde dos Povos Indígenas–reflexõessobreAntropologiaparticipativa.RiodeJaneiro:Contracapa/ABA,2004.p.149-169.

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Na lista abaixo já estão referenciados alguns trabalhos que serão

citados na lição 4 (Contexto sociocultural do uso de medicamentos) dessa

unidade.

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Unidade 5 - Abordagem cultural da doença e da atenção à saúde e contexto sociocultural do uso de medicamentos

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Diehl e Langdon Medicamento como insumo para a saúde42

Autores

Eliana Elisabeth Diehl

Formou-se em Farmácia em 1988, fez mestrado em CiênciasFarmacêuticas (1992) pela Universidade Federal do Rio Grandedo Sul e doutorado pela Escola Nacional de Saúde Pública(2001) da Fundação Oswaldo Cruz. É professora no Curso deFarmácia da Universidade Federal de Santa Catarina desde1991, atuando na graduação, nas disciplinas de FarmacotécnicaHomeopáticaedeEstágioSupervisionadoemFarmácia;enapós-graduação, no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva.Desenvolve pesquisa interdisciplinar, utilizando referenciais teórico-metodológicosdaAntropologia,daSaúdeColetivaedasCiênciasFarmacêuticas, especialmente em temas da saúde indígena e daassistênciafarmacêutica.Ainda,desenvolveatividadesdeextensão,principalmenteemassistênciafarmacêutica.

http://lattes.cnpq.br/7240894306747562

Esther Jean Langdon

NasceunosEstadosUnidose vivenoBrasil desde1983,quandoveioparaFlorianópolis. FezmestradoemAntropologia (1968)pelaUniversity of Washington, doutorado em Antropologia (1974) pelaTulaneUniversityofLouisianiaepós-doutoradopelaIndianaUniversity(1994)eUniversityofMassachusetts(2009).ÉprofessoratitularnoDepartamento de Antropologia da Universidade Federal de SantaCatarina,atuandonagraduaçãoepós-graduação.Temexperiênciana área de Antropologia, com ênfase em cosmologia e saúde,pesquisando principalmente nos seguintes temas: antropologiada saúde, saúde indígena, política da saúde indígena, narrativa eperformance,xamanismoecosmologia.

http://lattes.cnpq.br/8747931503750041