Gil vicente dois autos

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O teatro de Gil Vicente

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O teatro de Gil Vicente

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O teatro de Gil Vicente

◆Herdou algumas características da tradição medieval de temática religiosa e profana;◆aperfeiçoou as representações que se faziam até então, sendo considerado por vários estudiosos o primeiro grande precursor do modo dramático;◆nas suas peças, Gil Vicente transmite o que observa no seu quotidiano, através das falas das personagens e das relações que estabelecem entre si;

CARACTERÍSTICAS

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◆a linguagem usada pelas personagens reflete a sua condição sociocultural, aspeto fundamental na sua caracterização;

◆Gil Vicente reproduz as diversas variedades linguísticas do Portugal da sua época, distinguindo-se formas populares e as da corte.

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O teatro de Gil Vicente

◆O teatro vicentino serve-se de personagens-tipo – estas representam determinada classe socioprofissional ou traços psicológicos/ sociais, denunciados e satirizados por Gil Vicente, de forma a moralizar a sociedade da sua época.

OS TIPOS SOCIAIS

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◆Ridendo castigat mores – esta máxima coaduna-se com as peças de Gil Vicente, dado que a crítica vicentina é extensiva a toda a sociedade, ainda que de modo indireto.

OS TIPOS DE CÓMICO

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Gil Vicente recorre aos seguintes processos:

OS TIPOS DE CÓMICO

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆O Auto da Índia (1509), de Gil Vicente, apresentado em Almada perante a rainha D. Leonor, é o primeiro texto teatral onde é representada uma intriga, uma história completa e atual. Se o tema do adultério é intemporal, as circunstâncias "deste" adultério são as da primeira década do século XVI, quando, por trás da glória e da fachada épica da expansão ultramarina, era já possível perceber as profundas alterações, nem todas positivas, que essa expansão estava a provocar na sociedade portuguesa. A mesma ideia foi expressa sessenta anos mais tarde por Camões, no episódio do "Velho do Restelo".

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆É o primeiro auto a contar uma intriga, com princípio e fim, é também a primeira "farsa" escrita por Gil Vicente e a primeira das suas peças escrita maioritariamente em português. ◆No Auto da Índia a única personagem a falar em castelhano é o "Castelhano", com o objetivo óbvio de conseguir o efeito de real. ◆É também o primeiro auto a pôr em cena personagens femininas.

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆Por representar uma intriga com princípio e fim, é fácil identificar a sua estrutura tripartida. A ação mostra ao público o adultério da Ama, o que exige a ausência do Marido.

◆Assim, a 1ª parte corresponde à fase de expectativa da Ama, relativamente à partida ou não do Marido, e à distensão que se segue à confirmação da saída da armada e que ela aproveita para confessar a sua pré-disposição ao adultério. (Vai até ao verso 96.)

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆A 2ª parte é a fase do adultério. Sucessivamente, entram em cena os pretendentes, Castelhano e Lemos; o adultério consuma-se; a Ama revela, sem qualquer escrúpulo ou pudor, toda a sua leviandade, falsidade e imoralidade.

◆A 3ª parte corresponde à chegada do Marido. Desaparecem as condições que propiciaram o adultério e a Ama leva ao auge a sua hipocrisia.

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◆Poderá parecer estranho que o crime da Ama fique impune, mas o seu castigo destruiria o efeito cómico característico da farsa. ◆Por outro lado, o objetivo de Gil Vicente não era punir o adultério, mas sim preveni-lo. ◆A mensagem implícita parece ser esta: o castigo do infrator (a Ama) não repara a falta (o adultério); o que interessa é eliminar as condições objetivas que propiciam a falta.

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆Toda a ação decorre num único espaço - a casa da Ama.Os elementos textuais, no entanto, permitem subdividi-loem três: a câmara da Ama, onde decorre a maior parte daação; a cozinha, onde se esconde o Lemos em determinadomomento e que é referida no discurso outras vezes; e oquintal, onde o Castelhano aguarda, noite fora, autorizaçãopara entrar.

ESPAÇO

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◆Gil Vicente não chegou a conhecer a estruturação das peças

em atos distintos, que permitem a alternância de espaços

diferentes. Daí que tenha concebido a intriga de forma a poder

decorrer contínua no mesmo espaço.

◆Para compensar essa limitação, atribuiu à personagem da

Moça, além de outras, a função de mensageira: é ela que vai ao

exterior e de lá traz as notícias que modificam o desenrolar da

ação.

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆Naturalmente, o espaço aludido é bem mais vasto:

estende-se à cidade, ao mar, à Índia, para onde o Marido se

ausenta e de onde regressa no final da representação.

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆A ação decorre de forma contínua, num mesmo espaço, sugerindo que os acontecimentos se sucedem ao longo de um período de cerca de vinte e quatro horas. ◆O Marido ausenta-se de madrugada; logo a seguir o Castelhano visita a Ama; o Castelhano sai e, pouco depois, Lemos chega e fica para jantar e passar a noite; entretanto, o Castelhano regressa e aguarda no quintal, durante a noite, autorização para entrar até desistir e ir embora; no dia seguinte, de madrugada o Lemos vai embora e pouco depois o Marido regressa.

TEMPO

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◆No entanto, o tempo representado corresponde, não a um dia e uma noite, mas a um período de cerca de três anos.◆ É o discurso das personagens, principalmente da Moça, que faz a marcação do decorrer do tempo e leva o público a rejeitar a duração de vinte e quatro horas. ◆Logo de início somos informados que o Marido partiu para uma viagem marítima e deixou à mulher mantimentos para três anos:

Leixou-lhe pera tres annosTrigo, azeite, mel e panos.

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◆A confirmação vem-nos pela boca da Ama, quando recebe Lemos e lhe diz que o marido se ausentou para a Índia (v. 143). Como na época a duração média de uma viagem de ida e volta à Índia era de dois e meio a três anos, desfaz-se de vez, na mente dos espectadores, a impressão de que o tempo representado se reduz, neste momento, a algumas horas.

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◆Numa fase mais avançada da representação é a Moça que vai marcando o decorrer do tempo e prenunciando o regresso do Marido, dizendo:(...) agora vai em dous annosQue eu fui lavar os panosAlem do chão d'Alcami;E logo partiu a armada (...)Tres annos haQue partio Tristão da Cunha.

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◆Ama - É a personagem principal, a única que permanece em cena do início ao fim da representação. É em torna dela que gira toda a ação. Desse modo é fácil ao público (e ao leitor) perceber que o objetivo fundamental do autor é criticar o comportamento imoral das esposas na ausência dos maridos. ◆No entanto, ao mandar o Marido para a Índia, Gil Vicente, implicitamente, introduz um segundo aspeto crítico: o efeito perverso que a expansão ultramarina produzia na ordem social e moral do país, facilitando a degradação moral do ambiente familiar.

PERSONAGENS

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◆A Ama apresenta-se como "moça e fermosa" e serve-se disso como justificação para o seu comportamento imoral:Est'era bem graciosa,Quem se ve moça e fermosaEsperar pola ira ma.Partem em Maio daqui,Quando o sangue novo atiça:Parece-te que é justiça?

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◆Revela-se uma mulher sensual e leviana, incapaz de controlar

os seus desejos sexuais durante a ausência do marido. Essa

licenciosidade leva-a a aceitar sem dificuldade o assédio dos

dois namorados (Castelhano e Lemos); leva-a mesmo a estimular

as propostas imorais dos dois:

Vós querieis ficar cá?

Agora he cedo ainda;

Tornareis vós outra vinda,

E tudo bem se fará.

Que foi do vosso passear,

Com luar e sem luar,

Toda a noite nesta rua?

Ama

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◆Mostra-se desde o início uma mulher falsa, mentirosa e hipócrita. Engana, não apenas o marido, mas os próprios amantes, escondendo a cada um deles a existência do outro. Colocando em cena, não um, mas dois amantes, o autor sublinha a licenciosidade e leviandade da Ama.

Ama

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◆A sua hipocrisia é evidente: apesar do comportamento manifestamente imoral, procura por todos os meios preservar a imagem pública de uma mulher honesta e virtuosa:Foi-se à India meu marido,E depois homem nacidoNão veio onde vós cuidais;A vezinhança que dirá,Se meu marido aqui não'stá,E vos ouvirem cantar?

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◆A hipocrisia da Ama torna-se ainda mais evidente com o regresso do marido. Nessa altura garante-lhe que sofreu muito a sua ausência, que rezou pela sua segurança e permaneceu esses três anos recatadamente em casa, aguardando o seu regresso. Vai ao ponto de manifestar ciúme pelas presumíveis aventuras amorosas do marido na Índia.

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◆A imagem que ela procura transmitir para o exterior, para o marido e para os próprios amantes contrasta com o seu efetivo comportamento. Só nos monólogos e nos diálogos com a Moça é que ela revela sem disfarce a sua verdadeira maneira de ser.

Ama

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◆É também uma mulher extremamente manhosa e habilidosa. Consegue esconder o seu comportamento leviano do marido, mas, de certo modo, também dos amantes. Quando o Castelhano a procura e ela está com o Lemos em casa, consegue esconder a existência de cada um deles do outro.

Ama

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◆Através da personagem Ama, Gil Vicente traça um retratorealista de um determinado tipo de mulher, bem diferente da imagem feminina, profundamente idealizada, que nos é transmitida pela poesia lírica da época. ◆A Ama representa todas aquelas mulheres que, abandonadas pelos maridos empenhados na aventura ultramarina, se mostravam incapazes de resistir ao assédio dos pretendentes, incorrendo em adultério. Nesse sentido, materializa também um dos aspectos negativos da expansão.

Ama

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◆Moça - Como personagem-tipo, representa os dependentes domésticos, obrigados a submeter-se aos caprichos e maus-tratos dos patrões, que reagem a essa situação ironicamente, observando e criticando os comportamentos incorrectos dos seus senhores.

◆Esta personagem tem, na economia do auto, um estatuto especial.

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◆A Moça é uma personagem, ao mesmo nível das outras, na medida em que intervém no desenrolar dos acontecimentos. Assume então o papel de confidente e amiga.

MOÇA

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◆A sua presença permite à Ama revelar o seu verdadeiro carácter, que ela esconde, quer do marido, quer dos amantes. É em conversa com a Moça que a Ama manifesta o seu desagrado pela hipótese de o marido, afinal, não partir; o desejo de que ele não regresse da Índia; as suas infidelidades anteriores, bem como a sua intenção de o trair enquanto estiver na Índia.

MOÇA

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◆Como amiga, mostra preocupação com o seu estado de espírito, quando, na primeira cena, a encontra desolada; procura tranquilizá-la, apressando-se a saber se o Marido, afinal, parte ou não parte; atreve-se mesmo a aconselhá-la, alertando-a para a fanfarronice e o carácter pouco recomendável do Castelhano:Jesu! Como he rebolão!Dae, dae ó demo o ladrão.(...)Não vos fieis vós naquelle,Porque aquillo he refião.

MOÇA

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◆A Moça coloca-se também no papel de espectadora. Observa os comportamentos da Ama, diverte-se com eles e julga-os severamente. Essa crítica é feita quase sempre em apartes.Desmente as acusações feitas pela Ama ao marido:Todas ficassem assi.Leixou-lhe pera tres annosTrigo, azeite, mel e panos.

MOÇA

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◆Condena o comportamento devasso da Ama, a sua manha e hipocrisia:Quantas artes, quantas manhas,Que sabe fazer minha ama!Hum na rua, outro na cama!

MOÇA

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◆Manifesta satisfação, com um certo sabor de vingança pelas humilhações sofridas, quando o regresso do Marido põe termo aos arranjos da Ama:Raivar, que este he outro jogo.

◆Quando interrogada pela Ama sobre os seus apartes, responde-lhe ironicamente, declarando em voz alta o contrário do que transmitira ao público, o que produz um imediato efeito cómico.

MOÇA

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◆Funciona como intermediária entre o interior e o exterior. É ela que sai, logo no início, para confirmar a partida do marido. É ela, igualmente, que traz da rua a notícia do seu regresso. ◆Com a ação concentrada num espaço único e limitado (a câmara, a cozinha e o quintal da casa da Ama) era necessária uma personagem que funcionasse como mensageira e introduzisse no diálogo as notícias que suscitam alterações dramáticas no desenrolar da intriga.

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◆É à Moça que o autor atribui a função de marcar o decorrer do tempo representado: primeiro, prenunciando a duração de três anos; mais tarde, anunciando efetivamente o decorrer do tempo (dois anos..., três anos...).

MOÇA

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◆É uma mulher de idade indefinida; subserviente, por necessidade; fiel à sua ama, que nunca denuncia; perspicaz e atenta aos comportamentos da sua senhora; sensata, pois não se deixa iludir pelo aparato e as falas pomposas do Lemos e do Castelhano; crítica, é a única personagem que mostra ser capaz de distinguir claramente o certo do errado.

MOÇA

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◆Castelhano - É uma personagem de origem social humilde, provavelmente um vendedor ambulante (é certamente a ele que a Ama se refere, quando fala no "castelhano vinagreiro"). Oportunista, procura imediatamente seduzir a Ama, assim que se apercebe da ausência do marido. Utiliza como estratégia de sedução a lisonja e um discurso empolado, retórico, excessivo e inadequado ao seu estatuto humilde. Ao mesmo tempo revela-se um fanfarrão, exagerando a sua valentia. O excesso, quer do discurso, quer da fanfarronice, tornam-no ridículo, perante o público e perante a Ama.

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆A imagem de homem culto, civilizado, que procura transmitir com a sua pomposa declaração (culto da aparência), é desfeita na sua segunda intervenção, ao reagir com grande violência verbal, quando se sente rejeitado pela Ama, impossibilitada de o receber, devido à presença de Lemos.

CASTELHANO

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◆O modo como se veste revela a sua origem humilde, que ele procura disfarçar, insinuando ser homem de posses, apesar do aspeto que apresenta. Através dele (e de Lemos), Gil Vicente aproveita para introduzir um outro tópico de crítica - o culto das aparências, típico duma sociedade onde os bens materiais são já o valor dominante:Que aunque tal capa me veis,Tengo mas que pensareis:Y no lo tomeis en grueso.

CASTELHANO

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◆Embora não se sinta nada impressionada com a apresentação espalhafatosa do castelhano, a Ama aceita-lhe a corte e marca-lhe um encontro amoroso, o que serve para acentuar o seu carácter leviano.

CASTELHANO

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆Lemos, tal como o Castelhano, é introduzido na peça para caracterizar a Ama como uma mulher leviana e adúltera.

◆Trata-se de um escudeiro pobre, que procura esconder a decadência, com modos delicados e um discurso galanteador. Também ele documenta o culto das aparências, com mais sucesso do que o Castelhano, visto que o estatuto social superior e as suas maneiras delicadas seduzem a Ama e levam-na a preferi-lo ao Castelhano.

LEMOS

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◆Ostenta um desafogo material que não engana a Moça, quando presunçosamente a manda fazer compras, pois de imediato rejeita os alimentos caros e dá-lhe muito pouco dinheiro para as despesas.Vá esta moça à ribeiraE traga-a ca toda inteira,Que toda s'ha de gastar◆Também ele procura (e consegue) aproveitar-se da ausência do Marido para obter os favores sexuais da Ama, que mostra ter percebido há muito a corte distante de Lemos..

LEMOS

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◆O Marido está fisicamente ausente, ao longo da maior parte da representação; só no final entra em cena, encerrando desse modo o conflito dramático. De facto, a sua ausência é condição essencial para que a intriga se desenvolva no sentido pretendido pelo autor: é ela que cria as condições necessárias para que a leviandade da Ama se transforme em adultério, o que, provavelmente, já acontecera antes:Hi se vai elle a pescarMeia legoa polo mar,Isto bem o sabes tu;

MARIDO

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◆No contexto, a expressão "Isto bem o sabes tu" perde toda a ambiguidade e fica claro que significa "bem sabes que lhe sou infiel".

◆Podemos falar de uma "ausência-presença", já que a sua existência condiciona o desenrolar da ação: é o seu afastamento que permite os avanços amorosos do Castelhano e do Lemos e o adultério da Ama, do mesmo modo que o seu regresso põe fim (ao menos por algum tempo) a essa situação.

MARIDO

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆Representa todos aqueles portugueses com experiência marítima, pescadores ou marinheiros, que se alistavam nas armadas para a Índia, na mira de um enriquecimento fácil, impossível no Reino. A Índia constituía na época uma miragem, um mundo de riquezas, aparentemente ao alcance de quem tivesse coragem para enfrentar os riscos e desconfortos da viagem.

MARIDO

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆Na mira do lucro fácil dispunham-se a correr todos os riscos: viagens demoradas e perigosas; doenças fatais; tempestades; climas estranhos e doentios; combates com os habitantes locais. Para os que conseguiam regressar, quase sempre o lucro era reduzido. A própria personagem o reconhece, dizendoSe não fôra o capitão,Eu trouxera, a meu quinhão,Hum milhão vos certifico.

MARIDO

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆Daí que muitos entendessem que não se justificava o sacrifício de ir procurar tão longe um lucro improvável. De certo modo o Castelhano exprime essa ideia ao dizerQue mas India que vos,Que mas piedras preciosas,Que mas alindadas cosas,Que estardes juntos los dos?

MARIDO

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆Esse desejo insensato de enriquecer rapidamente tem consequências. Com o seu chefe afastado, algumas famílias passam necessidades. Não foi isso que aconteceu com a Ama, mas a sua acusação, embora mentirosa, alerta-nos para uma realidade que deveria ser muito frequente:Leixou-me aquelle fastioSem ceitil.

MARIDO

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◆Mas todas elas ficavam afetivamente desamparadas: famílias sem pais e sem maridos, sujeitas aos assédios dos oportunistas. Nessas condições o adultério era sempre possível e muitas vezes concretizava-se. A personagem-tipo do Marido representa, portanto, todos os maridos enganados pelas esposas, que, na sua ingenuidade, aceitam como boas todas as manifestações de amor e fidelidade das respectivas consortes.◆Pode então dizer-se que esta personagem condensa os aspetos negativos da expansão portuguesa.

MARIDO

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆Sendo o Auto da Índia uma farsa, um dos objetivos do autor era divertir o seu público, recorrendo para isso ao cómico.◆Tal como em muitas outras peças de Gil Vicente, é possível encontrar aqui três tipos de cómico.

CÓMICO

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆O cómico de linguagem resulta da exploração de certas virtualidades da língua; aquilo que se diz e o modo como se diz suscita o riso no espectador. No Auto da Índia está presente ao longo de todo o texto, por exemplo, em algumas expressões insultuosas dirigidas pela Ama à Moça, mas sobretudo na fala do Castelhano, pomposa, exagerada, cheias de expressões de cunho literário, que, por inadequadas às personagens e à situação, provocam o riso na Ama e no público.

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆O cómico de carácter resulta da própria maneira de ser e de se comportar de determinadas personagens. ◆ Castelhano - exagerado, fanfarrão;◆O Marido – ingénuo, aceita todas as declarações da Ama;◆Lemos - apresenta-se com um chapéu ("sombrero") excessivamente grande e revela a sua sovinice perante o hábil interrogatório da Moça. ◆A Ama - hipocrisia com que fala ao Marido e finge ciúmes.

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◆O cómico de situação surge quando, no decorrer da representação, uma personagem é colocada numa posição ridícula. ◆O Castelhano é obrigado a aguardar no quintal, ao frio, durante a noite, autorização para entrar em casa da Ama. ◆O Lemos é constrangido a esconder-se na cozinha para que a Ama possa tranquilamente falar com o Castelhano.

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆Gil Vicente consegue também obter efeitos cómicos pela ironia, sobretudo nas falas da Moça, ao fazê-la dizer em voz alta à Ama o contrário do que tinha declarado no aparte anterior. Recorre igualmente à caricatura, que consiste em exagerar um ou mais traços específicos de uma dada personagem, como acontece no caso do Castelhano. Por fim lança mão da sátira, isto é, da crítica divertida dos comportamentos humanos.

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆Com esta farsa Gil Vicente procura criticar situações e comportamentos sociais:◆Degradação moral da família, traduzida no adultério, facilitado pela ausência prolongada dos maridos envolvidos na aventura colonial.◆Motivações egoístas e interesseiras da expansão ultramarina.◆Materialismo da sociedade, traduzido na busca de um enriquecimento rápido.◆Culto das aparências, com as pessoas procurando ostentar uma posição e uma riqueza que, de facto, não possuem.

CRÍTICA SOCIAL

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◆Cada uma das personagens representa um tipo social, com o seu comportamento próprio e os seus defeitos, que são habilmente ridicularizados. O texto permite-nos apreender a outra face dos Descobrimentos, a face menos heróica, mais prosaica, expondo as verdadeiras motivações materialistas dos agentes da expansão e os efeitos perversos que ela tinha sobre a estrutura familiar e social. Nesse aspeto podemos considerá-la como o contraponto de Os Lusíadas.

CARÁCTER DOCUMENTAL E ATUALIDADE DO AUTO

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Índia

◆Há no texto aspetos intemporais que lhe concedem uma inegável atualidade. ◆Descontados os aspetos circunstanciais, as críticas de Gil Vicente são perfeitamente atuais: é atual a infidelidade no casamento, a falta de respeito pelos compromissos assumidos; é atual o materialismo desenfreado, a hipervalorização dos bens materiais em detrimento de valores mais nobres; atual é também a crítica da ostentação, do culto das aparências.

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Auto da Barca do Inferno

Ilustração do Auto da Barca do Inferno

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Barca do Inferno

◆É escrito em verso, em oitavas, com rima emparelhada e interpolada;◆apresenta apenas um ato - cenário: o rio e o cais, onde

estão ancoradas duas barcas;◆não contém divisão externa, mas pode ser dividido em

cenas à maneira clássica, sempre que entra ou sai uma personagem de cena.

ESTRUTURA EXTERNA

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Barca do Inferno

◆O Auto da Barca do Inferno é composto por um conjunto de miniações semelhantes, à volta de um ou mais protagonistas. ◆Oito destas ações são constituídas por exposição, conflito e desenlace. ◆A exposição e o conflito estão muitas vezes interligados.

ESTRUTURA INTERNA

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Barca do Inferno

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Barca do Inferno

◆As miniações:◆assemelham-se a um julgamento no tribunal, em que há dois ou três advogados de acusação (Diabo, Anjo e/ ou Parvo), mas nenhum de defesa – a alma é responsável pela sua própria defesa;◆estrutura semelhante: cada um dos protagonistas vai desfilando pelo cais, todos (à exceção do Judeu) tentam entrar no Paraíso, embora tenham de se conformar com o seu destino, rumo ao Inferno, perante a recusa ou o silêncio do Anjo.

ESTRUTURA INTERNA

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◆O Parvo:◆Para quebrar a estrutura monótona do auto, Gil Vicente serviu-se da figura do Parvo, que participa na ação, mas não no argumento, dado que não entra nas barcas e permanece no cais, desempenhando o papel de comentador e/ou acusador, ao mesmo tempo que diverte, sobretudo pela linguagem utilizada.

ESTRUTURA INTERNA

😉

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O teatro de Gil Vicente – Auto da Barca do Inferno

◆Fidalgo◆Onzeneiro◆Parvo◆Sapateiro◆Frade◆AlcoviteiraJudeu◆Corregedor◆Procurador◆Enforcado◆Cavaleiros

◆Anjo◆Diabo

PERSONAGENS-ALEGÓRICASPERSONAGENS-TIPO

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Auto da Barca do Inferno