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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 1 Auto da barca do inferno (Gil Vicente) 1. BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA A respeito do nascimento de Gil Vicente, só se sabe que deve ter sido em Guimarães em 1465 ou 1466. Parece que trabalhou como mestre da balança da Casa da Moeda de Lisboa até 1517. Sua primeira peça, Auto da visitação ou Monólogo do vaqueiro, foi encenada para o próprio rei em 1502, por ocasião do nascimento do filho de d. Manuel, d. João III. Na corte, Gil Vicente desempenhou também a importante função de organizador das festas palacia- nas. Sua última peça, uma comédia, data de 1536 (Floresta de enganos), o que leva à conclusão de que teria morrido nesse ou no ano seguinte. Foi também colaborador no Cancioneiro geral de Garcia de Resende. Algumas das peças de Gil Vicente foram publica- das em vida, em folhetos de cordel; e certas peças fo- ram proibidas pela Inquisição. O maior conjunto de suas obras só foi publicado em 1562, por seu filho Luís Vicente: Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente. OBRAS Destacamos aqui apenas as peças mais conhecidas de Gil Vicente: Auto da visitação (1502), Auto de S. Martinho (1504), Auto da Índia (1509), Velho da horta (1512), Quem tem farelos? (1515), Auto da barca do inferno (1517), Auto da barca do purgatório, Auto da barca da glória (1519), Auto da alma (1518), Farsa de Inês Pereira (1523), Comédia do viúvo (1524), Auto da Lusitânia (1532) e Floresta de enganos (1536). 2. INTRODUÇÃO A obra de Gil Vicente representa o ponto inicial da dramaturgia em língua portuguesa. Suas peças atingi- ram tanto o gosto popular quanto o interesse da fidal- guia lusitana do século XVI e ainda não perderam a capacidade de conquistar e entusiasmar espectadores e leitores. A simplicidade dramática e o poder ferino de suas críticas sociais parecem explicar, pelo menos em parte, essa popularidade ganha em todos os meios e classes sociais. Gil Vicente não perdoou nenhum gru- po social ou profissional em suas mordazes observa- ções da decadência moral que tomava conta do Portugal próspero do período expansionista. O Auto da barca do inferno é um bom exemplo desse poder crítico, bem como dos valores morais e religio- sos pretendidos pelo autor em sua dramaturgia. Na peça estão presentes o moralismo medievo de herança cató- lica e da Inquisição e também a representação mais forte dos grupos sociais que compunham a nação lusi- tana desde a Idade Média: sapateiros, corregedores, juízes, alcoviteiras, trapaceiros, fidalgos, usurários, cavaleiros e padres. A crítica a tipos sociais tão varia- dos leva o espectador/leitor à observação de um painel social amplo que se pretendia modificar ou pelo me- nos moralizar por meio do teatro de costumes. As personagens do Auto da barca do inferno não são pessoas, indivíduos com autonomia ou psicolo- gia própria, mas meros arquétipos 1 . Isso caracteriza a peça como teatro alegórico. As personagens são per- sonificações alegóricas ou tipos reais caricaturados, o que indica a clara intenção do escritor a propósito de sátira social. A intenção aparentemente religiosa vê-se obscurecida ou pelo menos minimizada pelo gosto de sátira da própria sociedade. A alegoria reli- giosa serve de mero pretexto para a sátira profana. O Auto da barca do inferno pode ser também classi- ficado entre as peças vicentinas como auto religio- so de moralidade , porque pretende comentar ensinamentos religiosos ou morais. 3. ENREDO DA PEÇA Num braço de mar, onde estão ancoradas duas barcas com dois arrais (condutores de barcos de trá- 1 Modelos ou padrões passíveis de serem reproduzidos em simulacros ou objetos semelhantes.

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Page 1: (Gil Vicente) - · PDF fileReprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 1 Auto da barca do inferno (Gil Vicente) 1. BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA

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Auto da barca do inferno(Gil Vicente)

1. BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA

A respeito do nascimento de Gil Vicente, só sesabe que deve ter sido em Guimarães em 1465 ou1466. Parece que trabalhou como mestre da balançada Casa da Moeda de Lisboa até 1517. Sua primeirapeça, Auto da visitação ou Monólogo do vaqueiro,foi encenada para o próprio rei em 1502, por ocasiãodo nascimento do filho de d. Manuel, d. João III.

Na corte, Gil Vicente desempenhou também aimportante função de organizador das festas palacia-nas. Sua última peça, uma comédia, data de 1536(Floresta de enganos), o que leva à conclusão de queteria morrido nesse ou no ano seguinte.

Foi também colaborador no Cancioneiro geral deGarcia de Resende.

Algumas das peças de Gil Vicente foram publica-das em vida, em folhetos de cordel; e certas peças fo-ram proibidas pela Inquisição. O maior conjunto desuas obras só foi publicado em 1562, por seu filho LuísVicente: Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente.

OBRASDestacamos aqui apenas as peças mais conhecidas

de Gil Vicente: Auto da visitação (1502), Auto de S.Martinho (1504), Auto da Índia (1509), Velho da horta(1512), Quem tem farelos? (1515), Auto da barca doinferno (1517), Auto da barca do purgatório, Auto dabarca da glória (1519), Auto da alma (1518), Farsa deInês Pereira (1523), Comédia do viúvo (1524), Autoda Lusitânia (1532) e Floresta de enganos (1536).

2. INTRODUÇÃO

A obra de Gil Vicente representa o ponto inicial dadramaturgia em língua portuguesa. Suas peças atingi-ram tanto o gosto popular quanto o interesse da fidal-guia lusitana do século XVI e ainda não perderam a

capacidade de conquistar e entusiasmar espectadorese leitores. A simplicidade dramática e o poder ferinode suas críticas sociais parecem explicar, pelo menosem parte, essa popularidade ganha em todos os meiose classes sociais. Gil Vicente não perdoou nenhum gru-po social ou profissional em suas mordazes observa-ções da decadência moral que tomava conta do Portugalpróspero do período expansionista.

O Auto da barca do inferno é um bom exemplo dessepoder crítico, bem como dos valores morais e religio-sos pretendidos pelo autor em sua dramaturgia. Na peçaestão presentes o moralismo medievo de herança cató-lica e da Inquisição e também a representação maisforte dos grupos sociais que compunham a nação lusi-tana desde a Idade Média: sapateiros, corregedores,juízes, alcoviteiras, trapaceiros, fidalgos, usurários,cavaleiros e padres. A crítica a tipos sociais tão varia-dos leva o espectador/leitor à observação de um painelsocial amplo que se pretendia modificar ou pelo me-nos moralizar por meio do teatro de costumes.

As personagens do Auto da barca do inferno nãosão pessoas, indivíduos com autonomia ou psicolo-gia própria, mas meros arquétipos1. Isso caracteriza apeça como teatro alegórico. As personagens são per-sonificações alegóricas ou tipos reais caricaturados,o que indica a clara intenção do escritor a propósitode sátira social. A intenção aparentemente religiosavê-se obscurecida ou pelo menos minimizada pelogosto de sátira da própria sociedade. A alegoria reli-giosa serve de mero pretexto para a sátira profana.O Auto da barca do inferno pode ser também classi-ficado entre as peças vicentinas como auto religio-so de moralidade, porque pretende comentarensinamentos religiosos ou morais.

3. ENREDO DA PEÇA

Num braço de mar, onde estão ancoradas duasbarcas com dois arrais (condutores de barcos de trá-

1 Modelos ou padrões passíveis de serem reproduzidos em simulacros ou objetos semelhantes.

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fego), chegam as almas que representam várias clas-ses sociais e profissionais. Uma das barcas dirige-se ao Purgatório ou ao Inferno; a outra, ao Paraíso.A primeira será tripulada pelo Diabo e seu Compa-nheiro; a outra, por um Anjo.

São personagens da peça: o Anjo (Arrais do Céu),o Diabo (Arrais do Inferno), o Companheiro do Dia-bo, o Fidalgo, o Onzeneiro (agiota), Joane, o Parvo(tolo, idiota), o Sapateiro, o Frade, Florença (amantede frade), Brísida Vaz (alcoviteira), o Judeu, o Corre-gedor (juiz), o Enforcado e os Quatro Cavaleiros (cru-zados).

O Diabo está impaciente para partir e apressa seuCompanheiro nos preparativos para a partida. Chegao Fidalgo acompanhado por um Moço que lhe trans-porta uma cadeira. Como ocorrerá com as demaispersonagens, o Fidalgo argumenta contra a própriapartida para o Inferno. O Diabo ironiza os diversosargumentos apresentados pelo Fidalgo.

FIDALGO — Que deixo na outra vidaquem reze sempre por mim.

DIABO — Quem reze sempre por ti!…Hi, hi, hi, hi, hi, hi!…Tivestes a teu prazercuidando cá guarecer2,porque rezam lá por ti?

Embarca, ou embarcaique haveis de ir à derradeira…Mandai meter a cadeira,que assim passou vosso pai.

FIDALGO — Quê! Quê! Quê! Assim lhe vai?DIABO — Vai ou vem, embarcai prestes3!

Segundo lá escolhestes,assim cá vos contentais.

Porque já a morte passastes,haveis de passar o rio.

FIDALGO — Não há aqui outro navio?DIABO — Não senhor, que este fretastes,

e primeiro que expirastesme tínheis dado sinal.

FIDALGO — Que sinal foi esse tal?DIABO — De que vós vos contentastes.

FIDALGO — A esta outra barca me vou.

O Fidalgo dirige-se então à outra barca e procuraargumentar com o Anjo sobre seu direito de embar-car, já que é fidalgo de boa linhagem. Nada conseguee termina voltando à barca infernal.

ANJO — Que mandais?FIDALGO — Que me digais,

pois parti sem aviso,se a barca do Paraísoé esta em que navegais.

ANJO — Esta é; que demandais4?FIDALGO — Que me deixeis embarcar;

sou fidalgo de solar,é bem que me recolhais.

ANJO — Não se embarca tiranianeste batel5 divinal.

FIDALGO — Não sei porque haveis por mal,que entre minha senhoria.

ANJO — Para vossa fantasia,é muito pequena esta barca.

FIDALGO — Para senhor de tal marca,não há aqui mais cortesia?

Mande a prancha e o atavio,Levai-me desta ribeira!

ANJO — Não vindes vós de maneirapara entrar neste navio.Esse outro vai mais vazio:a cadeira entraráe o rabo caberá6

e todo vosso senhorio.

Ireis lá mais espaçoso,com fumosa7 senhoria,cuidando na tiraniado pobre povo queixoso!E porque de generosodesprezastes os pequenos,achar-vos-ei tanto menosquanto mais fostes fumoso8.

O Fidalgo implora ao Diabo que o deixe tornar àvida para despedir-se da amante que queria matar-sepor causa dele. O Diabo ironiza as crenças do Fidal-go nas juras da moça, que já estava com outro quan-do ele expirava. O Fidalgo pede para ver a mulher:

FIDALGO — Dá-me licença, te peço,que vá ver minha mulher.

DIABO — E ela, por não te ver,Despenhar-se-á de um cabeço9.

Quanto ela hoje rezou,entre seus gritos e gritas,foi dar graças infinitasa quem a desabafou.

FIDALGO — Quanto ela bem chorou!DIABO — Não há aí choro de alegria?

FIDALGO — E as lástimas que dizia?DIABO — Sua mãe a ensinou.

2 No sentido de curar-se, salvar-se.3 Rapidamente, depressa.4 Desejais.5 Barco, embarcação pequena.6 Referência à indumentária e ao manto do fidalgo.7 Vaidosa, jactanciosa.8 Vaidoso, arrogante.9 Cume de um morro.

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Entrai, meu senhor, entrai;Ei-la prancha, ponde o pé!

FIDALGO — Entremos, pois que assim é…DIABO — Ora agora descansai,

passeai e suspirai,enquanto virá mais gente.

FIDALGO — Ó barca, como és ardente!Maldito quem em ti vai!

Chega com os bolsos cheios de dinheiro, o Onze-neiro10 que se recusa a embarcar quando descobrecom o Diabo que a barca vai para a infernal comarca.Vai até a barca do Anjo e pede para embarcar porquevai para o Paraíso, mas o Anjo recusa-se a embarcá-lo, porque está com o bolsão cheio:

ONZENEIRO — Eu para o Paraíso vou.ANJO — Pois quanto eu mui fora estou

de te levar para lá:essa outra te levará;vai para quem te enganou.

ONZENEIRO — Por quê?ANJO — Porque esse bolsão

tomará todo o navio.ONZENEIRO — Juro a Deus que vai vazio!

ANJO — Não já no teu coração.ONZENEIRO — Lá me ficam de roldão

vinte e seis milhões numa arca.DIABO — Pois que juros tanto abarca,

não lhe deis embarcação.

Vem Joane, o Parvo11, que conversa com o Diabo,mas passa a praguejar contra ele quando descobre quea barca vai para o Inferno:

PARVO — Ao Inferno, em hora-má?!Hiu! Hiu! Barca do carnudo,Pero Vinagre, beiçudo,rachador de Alverca, huhá!Sapateiro de Candosa!Entrecosto de carrapato!Hiu! Hiu! Caga no sapato,filho da grande aleivosa12!Tua mulher é tinhosae há de parir um sapometido num guardanapo,neto da cagarrinhosa!

Furta cebolas! Hiu! Hiu!Excomungado nas igrejas!Burrela, cornudo sejas!Toma o pão que te caiu,a mulher que te fugiupara a Ilha da Madeira!

Ratinho de Giesteira,o demo que te pariu!

Hiu! Hiu! Lanço-te uma pulha13

de pica naquela!Hiu! Hiu! Hiu! Caga na vela,ó dom Cabeça-de-Grulha!Perna de cigarra velha,caganita de coelha,pelourinho de Pampulha,rabo de forno de telha.

O Parvo chega ao barco do Anjo e é embarcado,porque dos parvos será o reino dos Céus:

ANJO — Tu passarás, se quiseres;porque não tens afazeres,por malícia não erraste;tua simpleza te bastepara gozar dos prazeres.

Espera, no entanto, aí:veremos se vem alguémmerecedor de tal bemque deva de entrar aqui.

Um sapateiro chega ao barco do Inferno com suasferramentas de trabalho. O Diabo manda-o entrar, masele argumenta que morreu confessado e comungado.O Diabo responde que ele morreu excomungado, por-que escondeu seus pecados: roubava ao cobrar de seusfregueses pelos serviços que prestava. Vai-se o sapa-teiro à barca do Anjo, mas este não quer embarcá-lo.Manda-o dirigir-se à outra barca, que leva quem roubana praça. O sapateiro retorna à barca do Inferno:

SAPATEIRO — Hou barqueiro, que aguardais?Vamos, venha a prancha logoe levai-me àquele fogo!Para que é aguardar mais?

Um Frade traz pela mão uma moça (Florença), queé sua amante, e também seus apetrechos de esgrima14.Vem cantando e dançando:

Tai-rai-rai-ra-rã ta-ri-ri-rã;Tai-rai-rai-ra-rã ta-ri-ri-rã;Ta-tã-ta-ri-rim-rim-rã, huha!

DIABO — Que é isso, padre? Que vai lá?FRADE — Deo gratias15! Sou cortesão.DIABO — Danças também o tordião16?FRADE — Por que não? Vê como sei.DIABO — Pois entrai, eu tangerei17

e faremos um serão.E essa dama, porventura?

10 Mesmo que agiota.11 Mesmo que tolo.12 Fraudulento, falso, enganoso.13 Dito obsceno, indecoroso.14 Segundo as Ordenações, a prática da esgrima por membros do clero havia sido rigorosamente proibida.15 Do latim, Graças a Deus.16 Dança renascentista em compasso (fórmula) ternário.17 Tanger: tocar instrumento de corda.

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FRADE — Por minha a tenho eu,e sempre a tive de meu.

DIABO — Fizeste bem, que é lindura!Não vos punham lá censurano vosso convento santo?

FRADE — E eles fazem outro tanto!DIABO — Que preciosa clausura18!

Entrai, padre reverendo!FRADE — Para onde levais gente?DIABO — Para aquele fogo ardente

que não temestes vivendo.FRADE — Juro a Deus que não te entendo!

E este hábito não me val19?DIABO — Gentil padre mundanal,

a Belzebu vos encomendo!

FRADE — Corpo de Deus consagrado!Pela fé de Jesus Cristo,que eu não posso entender isto!Eu hei de ser condenado?Um padre tão namoradoe tanto dado à virtude!Assim Deus me dê saúde,que eu estou maravilhado!

DIABO — Não façamos mais detença,embarcai e partiremos.tomareis um par de remos.

FRADE — Não ficou isso na avença20.DIABO — Pois dada está já a sentença!FRADE — Por Deus! Essa seria ela?

Não vai em tal caravela,minha senhora Florença?

Como? Por ser namoradoe folgar com uma mulher?Se há um frade de perder,com tanto salmo rezado?!

DIABO — Ora estás bem arranjado!FRADE — Mas estás tu bem servido.DIABO — Devoto padre e marido,

haveis de ser cá pingado…

O Frade passa a ensinar o Diabo a arte da esgrimacom a espada e o escudo.

Ao perceber que não adianta tentar convencer oDiabo, o Frade vai até o barco do Anjo, mas nem se-quer obtém resposta aos seus chamados. Apenas oParvo, já embarcado pergunta se o Frade furtou o fa-cão. O Frade resolve então voltar ao barco infernal:

DIABO — Padre, haveis logo de vir?FRADE — Sim, tomai-me lá Florença

e cumpramos a sentençae ordenemos de partir.

Logo que o Frade e sua companheira são embar-cados, chega uma alcoviteira21 de nome Brísida Vaz,que se recusa a entrar na barca infernal. O diabo sen-te-se lisonjeado com o receio da passageira e pergun-ta o que ela traz para embarcar. Brísida Vaz responde:

BRÍSIDA — Seiscentos himens postiçose três arcas de feitiços,que não podem mais levar.

Três armários de mentire cinco cofres de enleio,e alguns furtos alheios,assim em jóias de vestir,guarda-roupa de encobrir,enfim — casa movediça;um estrado de cortiçacom dois sofás de embair.

A maior carga que é:essas moças que vendia.E desta mercadoriatrago eu muitas, pois é.

Brísida Vaz dirige-se à outra barca e pede ao Anjoa prancha para embarcar. O Anjo manda-a embarcarna outra e parar de importuná-lo, porque não pode irlá. Brísida Vaz volta para a barca do Inferno e pede aprancha.

Depois que Brísida Vaz embarca, chega um Judeucom um bode às costas. O Diabo recusa-se a embar-car o animal, mas o Judeu tenta corrompê-lo com seustostões. O Judeu termina embarcando. Falam o Ju-deu, o Diabo e o Parvo (lá da barca da Glória).

Fala ao FIDALGO:

Ao senhor meirinho22 apraz?Senhor meirinho, irei eu?

DIABO — E ao fidalgo, quem lhe deuo mando deste batel?

JUDEU — Corregedor, coronel,castigai este sandeu23!

Azará, pedra miúda,lodo, pranto, fogo, lenha,caganeira que te venha,má diarréia que te acuda,por el deu(s) que te sacudacom a beca nos focinhos!Fazes troça24 de meirinhos?Dize, filho da cornuda!

PARVO — Furtaste a cabra, ladrão?

18 Mesmo que cela ou aposento de religiosos.19 Vale20 Acordo, convenção entre os litigantes; aveniência.21 Intermediária de encontros amorosos.22 Funcionário da justiça.23 Tolo, idiota, louco.24 Ato ou dito engraçado, divertido; brincadeira, divertimento, graça.

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Pareceis-me vós a mimcarrapato de Alcoutim

enxertado em camarão.DIABO — Judeu, lá te passarão,

porque vão mais despejados.PARVO — E ele mijou nos finados,

no adro25 de São Gião26!

E comia a carne da panelano dia de Nosso Senhor!E aperta o salvanore mija na caravela!

DIABO — Sus! Sus! Demos à vela!Vós, Judeu, ireis à toa,que sois muito ruim pessoa.Levai o cabrão na trela.

Vem um Corregedor carregado de processos, comsua vara na mão, e chega à barca do Inferno. O Cor-regedor recusa-se a embarcar quando descobre queserá colocado no Inferno. Procura defender-se, mas odiabo acusa-o de aceitar propinas através da própriamulher. O Corregedor tenta argumentar que a culpa édela, mas de pouco ou nada adianta. É interessantenotar os diálogos em latim.

CORREG. — Oh! Renego da viageme de quem me há de levar!

DIABO — Há aqui meirinho do mar?CORREG. — Não há cá tal costumagem.

Não entendo esta barcagem,nem hoc non potet esse27.

DIABO — Se ora vos parecesse,que não sei outra linguagem!…

Entrai, entrai corregedor!CORREG. — Hou! Videtis qui petatis!

Super jure majestatistem vosso manto vigor?28

DIABO — Quando éreis ouvidornon ne accepistis rapina?29

Pois ireis pela bolina,Como havemos de dispor…Oh! que isca esse papelpara um fogo que eu sei!

CORREG. Domine, memento mei!30

DIABO — Non este tempus, Bacharel!Imbarquemini in batelquia predicastis malitia31.

CORREG. — Semper ego in justiciafecit, e bem por nível.32

DIABO — E as peitas33 dos judeusque vossa mulher levava?

CORREG. — Isso eu não no tomava,eram lá percalços seus.Não são meus,preccavit uxore mea34.

DIABO — Et vobis quoque cum elanão temuistis Deus35.A largo modo acquiristissanguinis laboratorum,ignorantes peccatorum.Ut quid eos nom audistis.36

CORREG. — Vós, Arrais, nonne legistis37

que o dar quebra os penedos?Os direitos estão quedossi aliquid tradidistis…38

DIABO — Ora, entrai nos negros fados!Ireis ao lago dos cãese vereis os escrivãescomo estão tão prosperados.

CORREG. — E na terra dos danados,estão os evangelistas?

DIABO — Os mestres das burlas vistasLá estão bem fraguados.39

Enquanto o Corregedor conversa com o Diabo,chega um Procurador carregado de livros. O Corre-gedor diz ao Procurador:

Ó Senhor Procurador!PROC. — Beijo-vo-las mãos, juiz!

Que diz esse Arrais? Que diz?DIABO — Que sereis bom remador.

Entrai, bacharel doutor,e ireis dando na bomba.

PROC. — E este barqueiro zomba?Gracejais de zombador?

Essa gente que aí está,para onde a levais?

DIABO — Para as penas infernais.

25 Pátio externo descoberto e por vezes murado, localizado em frente ou em torno a uma igreja.26 João.27 Isso não pode ser.28 Vede o que reclamais, acaso o vosso poder está acima do direito de majestade?29 Não recebeste rapina (propina)?30 Senhor, lembra-se de mim!31 Não é tempo, Bacharel! Embarque no batel, porque sentenciaste com malícia32 Eu sempre obrei com justiça e com eqüidade.33 Subornos.34 Pecados meus, pois ela é que pecava.35 E pecavas com ela e não temestes a Deus.36 Ficastes rico a valer à custa do sangue dos trabalhadores ignorantes sem sequer ouvi-los.37 Acaso ouvistes.38 A lei se cala quando trazeis alguma coisa.39 Aflitos.

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PROC. — Disse! Não vou eu para lá!Outro navio está cámuito melhor assombrado.

DIABO — Ora estás bem arrumado!Entra, infeliz de hora-má.

CORREG. — Confessaste-vos, doutor?PROC. — Bacharel sou… Dou-me ao demo!

Não cuidei que era extremo,nem de morte minha dor.E vós, senhor Corregedor?

CORREG. — Eu muito bem me confessei,mas tudo quanto roubei,encobri ao confessor…

PROC. — Porque, se não retornais,não vos querem absolver;e é muito mau devolver,depois que o apanhais.

Os dois recusam o convite de embarcar e vão atéo barco da Glória. Chamam pelo Anjo que roga pra-gas aos documentos jurídicos que os dois trazem emanda-os de volta ao barco infernal.

Dentro do barco dos condenados, o Corregedorreconhece Brísida Vaz e os dois se falam.

Vem depois um Enforcado que se julga merecedordo perdão, porque sua morte foi cruel. Segundo Gar-cia Moniz40, isto já seria o castigo supremo, e a prisãono Limoeiro, o próprio Purgatório. Esses argumentos,entretanto, de nada valem. O Diabo apressa-o a entrar.

Vêm quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cadaum a cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrescentamentode sua santa fé católica morreram em poder dos mouros.Absoltos a culpa e pena por privilégio que os que assimmorrem têm dos mistérios da paixão daquele por quempadecem, outorgados por todos os Presidentes SumosPontífices da Madre Santa Igreja: e a cantiga que assimcantavam quanto à palavra dela é a seguinte:

À barca, à barca seguraguardar da barca perdida!À barca, à barca da vida!

Senhores, que trabalhaispela vida transitória,memórias, por Deus, memóriadeste temeroso cais!À barca, à barca, mortais!Porém na vida perdidase perde a barca da vida.

Vigiai-vos, pecadores,que depois da sepulturaneste rio está a venturade prazeres ou de dores!À barca, à barca, senhores,barca mui enobrecida,à barca, à barca da vida!

E passando por diante da proa do barco dos danadosassim cantando, com suas espadas e escudos, disse AR-RAIS da perdição dessa maneira:

DIABO — Cavaleiros, vós passaise não perguntais onde is?

CAVAL. — Vós, Satanás, presumis?Atentai com quem falais!

OUTRO — E vós, que nos demandais?Sequer conheceis-nos bem:morremos nas partes d’aléme não queirais saber mais.

DIABO — Entra cá! Que cousa é essa?Eu não posso entender isto!

CAVAL. — Quem morre por Jesus CristoNão vai em tal barca como essa!

Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direitoà barca da Glória, e tanto que chegam diz o ANJO:

Ó Cavaleiros de Deus,a vós estou esperando,que morrestes pelejando41

por Cristo, Senhor dos Céus!Sois livres de todo o mal,mártires da Madre Igreja,que quem morre em tal peleja,merece paz eternal.

E assim embarcam.

4. ESTRUTURA

A peça Auto da barca do inferno apresenta umúnico ato, como é bastante comum nos autos medie-vais. Sua estrutura é muito simples, quase primáriano que diz respeito ao enredo. A intenção principaldo autor não é fixar conflitos psicológicos, mas criar“um teatro de sátira social, um teatro de idéias, umteatro polêmico”. A comicidade torna-se mais evi-dente à medida que nos deparamos com a criação detipos comuns, arquétipos de uma sociedade que co-meça a sustentar-se no mercantilismo quinhentista,mas ainda presa à cultura medieval e ao espírito dasCruzadas. São essas caricaturas que dão vigor ao tex-to vicentino na representação das crendices, compor-tamentos e costumes da época.

A) Espaço: O espaço é um braço de mar que se-para a vida da morte. Nesse local, há duas barcas queconduzirão as almas a três diferentes destinos: Infer-no, Purgatório e Céu.

B) Tempo: O tempo é indeterminado, alegórico,mas as profissões e classes sociais das personagens

40 Funcionário da Casa da Moeda no tempo de Gil Vicente.41 Lutando, guerreando.

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estabelecem um período indeterminado entre o finaldo século XV e os primeiros anos do século XVI.

C) Diálogos: É interessante destacar a capacidadecriativa e de observação de Gil Vicente, pois suas per-sonagens traduzem em suas falas seu grau de cultura esua posição social. Assim, quando se trata do fidalgo,a linguagem é sintaticamente bem construída, eleva-da. Os bacharéis (Corregedor e Procurador) tambémfalam com domínio e empregam citações latinas, o quese torna verossímil diante da profissão que exercem.Já o Parvo, o Enforcado e Brísida Vaz, por exemplo,são gente simples do povo, com seus vícios de lingua-gem e um vocabulário bem próximo, algumas vezes,do baixo calão. O Parvo, cuja linguagem é confusa eobscura, sem nexo, de difícil compreensão, abusa dopalavrão, do xingamento popular. A capacidade doDiabo de adaptar-se a qualquer das linguagens das de-mais personagens denota sua força dentro da peça: es-força-se para conduzir as almas pecadoras ao Inferno,ainda que para isso tenha que se valer de uma multipli-cidade de linguagens e formas de comunicações.

Devemos destacar ainda que as falas são quasesempre muito curtas, diretas, e os períodos sintéticosdão à peça o ritmo necessário que evita a monotonia.

D) Personagens:1. Arrais do Inferno (Diabo): Representa a figu-

ra de um barqueiro que tem por missão conduzir asalmas danadas à comarca infernal. Personagem de gran-de poder de variação, domina diversos níveis de lin-guagem, adaptando-se ou moldando-se de acordo comas necessidades dos interlocutores. Chega a afirmar aoCorregedor que não conhece apenas português, pas-sando depois disso a mesclar frases ou citações em la-tim. Outra marca da personagem, alegoria do mal, é aintensa ironia com que trata seus passageiros.

2. Companheiro: É o assistente do Diabo. Tem pou-cas falas durante a peça. Está sempre apressado, a man-do de seu senhor, para colocar a barca em movimento.

3. Arrais do Céu (Anjo): Representa a figura dooutro barqueiro e que tem por missão conduzir as al-mas dos puros ao Paraíso. O Anjo evita conversar comaqueles que estão condenados a seguir na barca in-fernal e mal chega a ouvir os apelos ou súplicas doscondenados. Trata-os com firmeza e envia-os para abarca infernal. É uma alegoria do bem. Ao contráriodo diabo, não precisa conquistar passageiros e nãoadapta sua linguagem à dos candidatos.

4. Fidalgo (no sentido pejorativo, indivíduo so-berbo): Representa uma alegoria da fidalguia, da no-breza. Durante a vida não deu ouvidos aos subalternos,aos sofredores e só fez humilhá-los. Acreditava no

amor da amante e no sofrimento da esposa, mas oDiabo ironicamente mostra-lhe outra maneira de en-carar o mundo. Sua condenação está ligada ao des-prezo aos pequenos e a sua vaidade, representada pelolongo manto e pela cadeira que deseja levar consigopara o outro mundo.

5. Onzeneiro (indivíduo usurário, agiota): Repre-senta os agiotas42, que exploram a população neces-sitada de Portugal à época do mercantilismo. Insisteem embarcar para o Céu com a bolsa vazia. Entretan-to, não consegue esquecer o dinheiro, o baú de di-nheiro que deixou na Terra.

6. Parvo (indivíduo tolo): Representa a classe doshumildes e tolos, dos puros de alma de quem serão osreinos do Céu. Sua linguagem chula e incoerente de-monstra claramente sua inconseqüência. Por sua au-sência de maldade, merece embarcar com o Anjo.

7. Sapateiro: Representa a classe dos profissio-nais que exploram a população. Ele cobra mais doque deve pelos seus serviços. Também não consegueabandonar os valores materiais, já que insiste em le-var consigo suas ferramentas de trabalho. Embarcacom o Diabo.

8. Frade: É uma alegoria do clero hipócrita eimpuro, que quebra os votos religiosos para aprovei-tar os prazeres mundanos. O Frade acredita que seuspecados serão perdoados na mesma proporção dossalmos rezados, o que não acontece. Indivíduo bona-chão, tem uma amante e está o tempo todo a dançar ecantar. Pratica também a esgrima, o que fora proibi-do pelas ordenações da Igreja católica.

9. Florença: É amante do Frade. Moça muitobonita, segundo o Diabo.

10. Brísida Vaz: Representa a classe das alcovi-teiras, intermediárias do amor, com seus instrumen-tos de feitiçaria e de vaginoplastia43. Quandoperguntada pelo Diabo sobre o que leva consigo, édos instrumentos e bens materiais que se lembra. Brí-sida atendia aos ricos para conseguir-lhes amantes oucompanheiros e costumava mentir quanto à purezadessas mulheres. Ela representa ainda o grupo dosmistificadores, que apelam para a boa fé das pessoaspara tirar proveito delas. Acha que seus sofrimentos enoites sem dormir bastam para garantir o perdão, masacaba sendo embarcada pelo Diabo.

11. Judeu: Representa a classe dos agiotas e la-drões. Preso ao mundo material, pretende levar con-sigo um bode. Ao ser impedido de levar consigo oanimal, o Judeu tenta corromper o Diabo. Ele nemsequer tenta embarcar na barca do Anjo, porque nãosegue a religião católica.

42 Diz-se de ou pessoa que se dedica à agiotagem; que ou o que pratica a usura; usurário; que vive de emprestar dinheiro a juros.43 Cirurgia genital de reconstituição do hímen.

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12. Corregedor: Alegoria típica da justiça cor-rompida, essa personagem traduz o repúdio do autoràqueles que privilegiam os ricos, corruptores em suaessência, e desprezam os pobres, que não podem ob-ter a justiça através do poder econômico.

13. Enforcado: Representa a figura do criminosocomum condenado à morte. Sente-se livre dos pecadospor causa dos sofrimentos da prisão (cadeia do Limoei-ro) e do cadafalso (forca). Leva consigo uma corda.

14. Os quatro cavaleiros: Simbolizam os ideaisdas Cruzadas e a presença do universo medieval napeça. Eles têm consciência de que ganharam o Para-íso por causa de seus feitos heróicos em nome da Igre-ja. Seus pecados estão redimidos porque morreramem nome de Cristo.

5. ESTILO DE ÉPOCAE INDIVIDUAL

A obra dramática de Gil Vicente está inserida noHumanismo lusitano, fase de transição entre as ideo-logias teocêntricas da Idade Média e os ideais antro-pocêntricos do Humanismo renascentista. Não é poracaso que seu teatro é crítico, já que não só ataca osnovos ideais nascidos do mercantilismo expansionis-ta, como no Auto da Índia, mas também o comporta-mento hipócrita do clero ou da fidalguia, como noAuto da barca do inferno. A ideologia vicentina reto-ma o moralismo medieval católico, crença simplesnos valores morais apregoados pela fé religiosa maisintensa. Despir a sociedade de suas máscaras e dis-farces parece ser o mérito maior desse dramaturgo,ao desnudar as relações sociais nitidamente pecami-nosas ou imorais, bem como denunciar os maus há-bitos de cada grupo social.

A estrutura dramática das peças vicentinas não segueos princípios da Renascença, uma vez que a Gil Vicentenão serviram a estrutura fechada e formal das regras clás-sicas. A unidade dramática de ação, tempo e espaço érompida em defesa de um teatro não de enredo, mas decenas justapostas e, portanto, nitidamente alegórico. Emlugar do psiquismo e do conflito íntimo, Gil Vicente pri-vilegia o teatro de idéias, mais voltado ao social. Os ca-racteres individuais são substituídos por tipos sociais queagem e falam segundo sua lógica e condição.

O teatro vicentino não nasceu das influências clás-sicas contemporâneas ao autor, mas da tradição doteatro religioso medieval. Teve origem nos mistérios,milagres, farsas e moralidades representados durantea Idade Média. Sem dúvida, a influência mais fortede Gil Vicente foi o dramaturgo espanhol Juan delEncina, de quem imita a linguagem e a quem teria

plagiado, segundo seus inimigos. A influência alegó-rica veio de Torres Naharro. A trilogia das barcas tomapor base uma alegoria cuja tradição remonta aos Diá-logos dos mortos de Luciano de Samósata (século IIa. C). São muito variadas as influências recebidas peloautor ao longo de seus trinta e quatro anos de experi-ência teatral e quarenta e seis peças escritas.

No Auto da barca do inferno, Gil Vicente mantémuma tendência comum ao teatro lusitano da época: oemprego dos versos redondilhos maiores ou menores.Os versos redondilhos nasceram da própria tradiçãopopular ibérica durante o período medieval e foram uti-lizados mesmo em pleno Classicismo português, a des-peito do surgimento dos decassílabos com a Renascença.

Veja um exemplo de estrofe vicentina:

Por / que / já a / mor / te / pas / sas(tes), (A) 1 2 3 4 5 6 7há / veis / de / pas / sar / o / rio. (B)

— Não, / há / a / qui ou / tro / na / vio? (B)

— Não / se / nhor, / que es / te / fre / tas(tes), (A)

e / pri / mei / ro / que ex / pi / ras(tes). (A)

me / tí / nheis / da / do / si / nal. (C)

— Que / si / nal / foi / es / se / tal? (C)

— De / que / vós / vos / con / ten / tas(tes). (A)

As estrofes utilizadas no Auto da barca do infernosão oitavas (estrofes de oito versos) com versos re-dondilhos maiores e esquema de rimas A-B-B-A-A-C-C-A, como pode ser observado na estrofe acima.

6.PROBLEMÁTICA EPRINCIPAIS TEMAS

A primeira problemática surge quando nos depa-ramos com a linguagem realista e despojada de GilVicente na construção de suas personagens popula-res, gente simples e ignorante do povo. Considera-mos a linguagem vicentina a mais realista possívelporque adaptável ou moldável à condição socioeco-nômica das personagens. Mais do que isso, verossí-mil, próxima de uma verdade indiscutível. Essalinguagem simples torna-se mais complexa nas per-sonagens cultas, porque próxima também de sua rea-lidade, de seu falar social ou mesmo de sua profissão.É o caso do Corregedor ou mesmo do Fidalgo. Entre-tanto, os diálogos são sempre curtos, despojados deartificialismos desnecessários, concisos, sintéticos. Asfalas mais longas são do Parvo, porque isentas de ló-gica ou controle.

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As personagens de Gil Vicente são pessoas co-muns, verdadeiras caricaturas ou arquétipos de umasociedade que se pretende revelar como corrompidaem seus valores mais profundos. A caricatura, toda-via, não é gratuita nem artificial, mas resultado daacentuação de traços típicos. O mais importante éobservarmos o caráter de realismo que parece domi-nar cada um desses tipos, desde a linguagem até asatitudes que se esperam deles. Agem de acordo comuma ordem pré-estabelecida, mantendo a coerênciasocial, ainda que dentro da incoerência lingüística,como é o caso do Parvo.

A comicidade nasce de forma natural dessa inten-ção de caricaturar ou do encontro das concepções di-ferentes e contraditórias subjacentes ao comportamentode cada tipo social. O cômico surge do próprio ridícu-lo humano, é atemporal: ainda temos, mas com outrosnomes, parvos, corregedores, alcoviteiras, frades mun-danos, agiotas etc.

A visão vicentina do pecado deve ser observadaatentamente, porque são condenados a embarcar como Diabo todos os que levam algo de material da vida.O intuito moralizador condena todos os que não aban-donam os bens materiais, porque estão apegados ex-cessivamente a eles.

Os principais temas da peça Auto da barca do in-ferno são:

1. A crítica à exploração do homem pelo homem(agiotagem, prostituição, corrupção)

2. O anticlericalismo: a crítica ao clero decaden-te que mancha os valores da Igreja

3. A crítica ao convencionalismo e à hipocrisiareligiosa

4. A crítica à corrupção da justiça5. A crítica à ambição e ao materialismo

É interessante notar que o estilo simples e despo-jado de Gil Vicente é o grande responsável por seusucesso junto ao público até hoje. O caráter cômicode suas peças não perde força apesar de decorridostantos séculos desde sua estréia em 1502. As grandestransformações pelas quais o mundo e as pessoas pas-saram não destituíram o poder do humor. O riso pare-ce nascer fácil diante de um diabo irônico, gozador,que parece ainda nos condenar, mas não às árduaschamas infernais, mas à gargalhada mais espontânea.Faz-nos rir porque somos um pouco de cada uma daspersonagens vicentinas: o frade bonachão, o fidalgometido, a alcoviteira espertalhona, o corregedor cor-rupto, o judeu corruptor, e mesmo um simples e tolohomem do povo. É essa parte burlesca de nós mes-mos que ri de nosso próprio ridículo cotidiano, àsvezes exposto, mas tantas vezes oculto debaixo denossas próprias alegorias.

7. BIBLIOGRAFIA

VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno. Int. e est.de texto Segismundo Spina. 20. ed. São Paulo: Brasi-liense, 1989.VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno. 5. ed. Pref.e notas por Ivan Teixeira. São Paulo: Ateliê Editorial.SARAIVA, Antônio José e Óscar Lopes. História daliteratura portuguesa. 13. ed. Porto: Porto Editora.

Determinada personagem de Auto da barca do infernorepresenta a justiça corrupta. Qual é a personagem e que ob-jetos ela carrega que impedem sua entrada na barca do Anjo?

Que personagem de Auto da barca do inferno morreucomungada e confessada, mas ainda assim seguiu na barcado inferno? Que objetos a personagem carrega consigo querepresentam seu apego ao mundo material?

Quais foram os pecados cometidos pelo Frade que oconduziram para a barca do inferno?

O que caracteriza a linguagem utilizada pelo Diabona peça? Por que se pode afirmar que esse recurso servecomo poder de sedução para conduzir as almas dos peca-dores para a sua barca?

Que objeto conduz o Enforcado? Por que ele se consi-dera merecedor da barca do Anjo?

Por que as personagem de Auto da barca do infernopodem ser consideradas alegorias da sociedade?

Respostas1. Trata-se do Corregedor, o juiz, que carregava consigo autos deprocessos que estavam em andamento. 2. Trata-se do Sapateiro,que roubava no preço de seus serviços, o que impediu que a con-fissão e a comunhão redimissem seus pecados. O Sapateiro levavaconsigo os objetos de seu ofício, o que impediu sua entrada nabarca do Anjo. 3. O Frade pecou contra os votos de castidade econtra as ordenações, que proibiam que os membros do clero por-tassem armas (espada e escudo). A personagem leva uma vida de-vassa, possui amante, gosta de dançar e divertir-se. 4. O Diaboprocura adaptar sua fala à situação lingüística dos falantes, ou seja,utiliza o mesmo tipo de linguagem de seus interlocutores. Esserecurso pode ser considerado como resultante do poder de seduçãoda personagem porque cria aproximação entre os interlocutores. ODiabo tem necessidade de conquistar os passageiros, porque todospreferem a barca do Anjo. 5. O Enforcado conduz a corda comque foi executado pela justiça, além de todos os seus erros contra asociedade. Ele se julga merecedor do perdão porque sofreu duran-te o período em que esteve preso e também no momento daexecução. 6. Porque não constituem pessoas de carne e osso, masmeras representações de classes sociais e grupos profissionais dasociedade portuguesa da época. A incapacidade de individualiza-ção das personagens caracteriza a intenção de Gil Vicente de di-versificar sua crítica entre os vários tipos sociais.