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GILSON SOUZA DE JESUS
AO SOM DOS ATABAQUES:
Costumes negros e as leis republicanas em Salvador (1890-1939)
Santo Antônio de Jesus - BA
Abril de 2011
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – DCH- CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
MESTRADO
2
GILSON SOUZA DE JESUS
AO SOM DOS ATABAQUES:
Costumes negros e as leis republicanas em Salvador (1890-1939)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local, Departamento de Ciências Humanas - DCH - Campus V, Universidade do Estado da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Isabel Cristina Ferreira dos Reis. Área de Atuação: História Regional e Local.
Santo Antônio de Jesus - BA
Abril de 2011
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_________________________________________________________________________
J585 Jesus, Gilson Souza de. Ao Som dos Atabaques: costumes negros e as leis republicanas em
Salvador (1890-1939). / Gilson Souza de Jesus - 2011. 184 f.: il
Orientadora: Prof. Dra. Isabel Cristina Ferreira dos Reis. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa
de Pós-Graduação em História Regional e Local, 2011.
1. Negros – Bahia – Relações com o Governo. 2. Política e Cultura – Bahia – História. 3. Candomblé – Bahia. 4. Bahia – Relações Raciais. I. Reis, Isabel Cristina Ferreira dos. II. Universidade do Estado da Bahia, Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local.
CDD: 981.4200496
___________________________________________________________________
Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396.
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GILSON SOUZA DE JESUS
AO SOM DOS ATABAQUES:
Costumes negros e as leis republicanas em Salvador (1890-1939)
Dissertação para obtenção do grau de Mestre em História. Santo Antônio de Jesus - BA, ______/______de 2011
Banca Examinadora:
_______________________________________________ Prof.ª Dr.ª Isabel Cristina Ferreira dos Reis – UNEB/UFRB
Orientadora
_________________________________________________ Prof. Dr. Antônio Liberac Cardoso Simões Pires − UFRB
Examinador
_________________________________________________ Prof. Dr. Wilson Roberto de Mattos – UNEB
Examinador
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- Qué apanhá sordado? - O quê? - Qué apanhá? Pernas e cabeças na calçada.
(“O Capoeira”, de Oswald de Andrade)
6
Dedico este trabalho primeiramente
a Mestre Roque dos Anjos, meu
mestre de Capoeira, e a todas as
Iyalorixás, Babalorixás e capoeiristas
da Bahia.
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Agradecimentos
Laroiê! Kawó-Kabiesilé!
Por incrível que pareça, a parte dos agradecimentos é uma das mais complicadas
tarefas de todo este processo de reflexões. Muitas pessoas me ajudaram das mais
variadas maneiras possíveis, antes mesmo que eu ingressasse no Mestrado e
sempre há aquele temor, quase inevitável, de esquecer-me de mencionar alguém.
Enfim, agradeço aos Orixás e a todos os espíritos ancestrais que possibilitaram que,
no dia 13 de maio de 2009, exatamente 121 anos depois da abolição oficial da
escravidão no Brasil, em que aos Negros era vedado o direito à educação e era
proibido até mesmo saber ler e escrever, eu tivesse a minha primeira aula em um
curso de pós-graduação de uma universidade pública.
Agradeço à Universidade do Estado da Bahia, primeira universidade pública do
Brasil a implantar o sistema de cotas raciais por iniciativa própria, tanto na
graduação como na pós-graduação; às secretárias do PPGHIS (Ane, Consuelo e
Vilma) e à minha orientadora, Drª Isabel Cristina Ferreira dos Reis por responderem
pacientemente às minhas eternas dúvidas, por menores que fossem; à Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pelo incentivo
financeiro que me tranquilizou e apareceu no momento certo; ao coordenador do
Programa, Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira e à Banca Examinadora pela
confiança no meu trabalho. Aos funcionários de todas as instituições em que estive,
sobretudo os do APB, onde minha presença foi mais frequente.
À minha namorada Dayane e às minhas duas famílias: a de sangue (Maristela,
Gilson, Maíra, Thaís e Denilson) e a de coração (Rosiley, João, Caliane, Inaiah,
Yasser, Maria e D. Lurdes), por entenderem minhas eventuais ausências e pelo
apoio fundamental que eu tive; Guilherme e Sandra por terem sido as duas primeiras
pessoas a me incentivar a seguir por esse caminho, antes mesmo de eu tomar essa
iniciativa; ao agora Mestre Wanderson Bispo e à Drª Nancy Assis por ouvirem
minhas angústias (que não foram poucas, a vocês eu devo muito!) e por me
orientarem desde a graduação.
Silvana Bispo, “minha problemática preferida”, Reinaldo Costa, José Marcelo, Cris
Reis, Aline Damião,Cíntia, Carlos Copioba, Gustavo, Daniel Neto, Antônio Marcos,
Wilson Mattos, Denílson Lessa, Ana Rita Machado, Suely Santana, Sandro Correia,
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Daniela Galdino, Kathia Marise, Evellin, Wilkens, Ecírio, Luiz “B Negão”, Humberto,
Vandic, Andréa, Isabela, Bárbara, Anna e Jamile por todas as nossas lutas diárias e
pelo aprendizado, seja no Peti, na Residência Universitária ou no AfroUneb; ao Dr.
Antônio Liberac Pires pelas valiosas contribuições e pelas dicas de como chegar aos
documentos que eu precisava.
A todos os colegas e professores do Mestrado, especialmente Drª Ana Maria
Carvalho, Lielva, Priscila, Napoliana, Antônio “Ziro”, Marilva, Regina e Melina que
sempre foram mais próximos no decorrer do curso; um agradecimento mais que
especial à Gabriela, com quem compartilhei a maior parte dos momentos e cuja
identificação mútua foi o que nos uniu ao longo desses dois anos.
Aos meus antigos, novos e eternos amigos da UNEB: Maria Dielle, Eduardo, Murillo,
Jeane, Rosângela, Bianca, Ariana Teles, Ana Paula, Nete, Diana, Salete, Valney,
Milenna Lemos, Paulinha, Vanessa, Verena, Alana, Silvana Andrade, Ione, Mércia,
Carmem, Aurelielza, Kênia, Josenel, Mayara, Janúbia, Reinaldo Sande, Manoel
Neto, Anne Kelly, Manuela, Adriana “Laly”, Ariane, Alaíze, Aline Santos, Catarina
Valéria, Juliana, Lucy, Matheus, Ivani, Thiago, Daniel, Ana Letícia, Sayonara,
Edlane, Hermano e a todos os professores e funcionários do Campus V,
principalmente Seu Geraldo, D. Dete, Bartô e Flávio. A todos da Academia de
Capoeira Ogunjá, em Santo Antonio de Jesus, local onde me encontrei com o meu
passado, especialmente Mestre Roque, D. Telma, Mó e Jirlan.
Não poderia jamais esquecer a galera de Valéria, meu bairro, onde meus amigos de
todas as horas estão: Paulo Sérgio, Marcello, Marcos, Emídio, Alan Falcão, Leandro,
André, Alan Santos, Dildo, Walesson, Sara, Milena, Vanessa, Andreza, Éderson,
Abner, os Feitosa (Sérgio, Ânderson e Fábio), os Almeida (Sérgio, Silvio e Silvana
[In Memorian]), Cristiano, Valdson, Aldemir, Vladimir, D. Celsina, D. Eugênia, D.
Juciara, D. Sonja e suas famílias.
Serei eternamente grato a pessoas muito especiais que, mesmo de longe, sempre
me mandam energias positivas: Joice Ashanti, Diane, Mara Andrade, Luana,
Priscila, Adriana, Laiane, Lucyana, Géssica, Giselli “Gisa”, Giselle Carvalho, Rafaela
e Débora.
Ao Rappa, Racionais MC‟s, Alicia Keys e Bob Marley, por me inspirarem com suas
poesias.
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
AHPMS − Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Salvador
APB – Arquivo Público do Estado da Bahia
BPEB – Biblioteca Pública do Estado da Bahia
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
IGHB – Instituto Geográfico e Histórico da Bahia
TJBA – Tribunal de Justiça do Estado da Bahia – Fórum Ruy Barbosa
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Resumo
O presente estudo se propõe a analisar algumas medidas governamentais e
jurídicas tomadas desde o final do século XIX até as primeiras décadas do século
XX; e perceber até que ponto, explícita ou implicitamente, estas leis buscaram
exercer certo controle sobre as práticas culturais majoritariamente negras em
Salvador – a exemplo do Candomblé e da Capoeira –, com o intuito de levar à frente
os ideais de “modernização” e de “exclusão dos indesejáveis”, agora que esta
parcela da população não se encontrava mais sob o controle e a perseguição de
senhores, feitores e capitães-do-mato. Jornais e documentos policiais, como
portarias e processos-crime, também são utilizados, com o intuito de verificar a
aplicação das leis republicanas (ou sua violação) no cotidiano da cidade,
principalmente no que se refere aos costumes mais comuns às populações negras.
Palavras-chave: Leis; Candomblé; Capoeira; Modernização; República.
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Abstract
This study proposes to examine some governmental and legal measures taken
since the late nineteenth century until the first decades of the 20th century; and
realize to what extent, explicitly or implicitly, these laws sought to exert some control
over cultural practices in the predominantly black in Salvador – the example of
Candomblé and Capoeira – to take forward the ideals of "modernization" and
"exclusion of the undesirables", now that this portion of the population was not longer
under the control and the persecution of fellow and benefactor members.
Newspapers and police documents such as ordinances and criminal proceedings,
are also used to verify the application of the Republican laws (or by your violation) in
daily life of the city, mainly as regards most common customs of the black
populations.
Keywords: laws; Candomblé; Capoeira; Modernization; Republic.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 13
CAPÍTULO I
ATABAQUES, JUSTIÇA E POSSIBILIDADES DE ABORDAGEM
HISTORIOGRÁFICA ........................................................................................... 27
1.1. PRÁTICAS NEGRAS X JUSTIÇA NA PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA
BRASILEIRA .................................................................................................... 27
1.2. ÁGUAS, FLORES E PERFUMES: INCOMPATIBILIDADES ENTRE O
PROJETO MODERNIZADOR E O ESPAÇO DA RUA NO COTIDIANO E NAS
FESTAS POPULARES. .................................................................................... 33
1.3. POBREZA, MENDICÂNCIA E VADIAGEM NA CAPITAL BAIANA .......... 44
1.4 AS POLÍTICAS HIGIENISTAS EM UM SÉCULO DE EPIDEMIAS ............. 51
CAPÍTULO II
O BRASIL EM BUSCA DE ESTRUTURAÇÃO JURÍDICA .................................. 64
2.1. SOB A ÉGIDE DO CATOLICISMO: ALGUNS CAMINHOS PERCORRIDOS
PELA JUSTIÇA BRASILEIRA ANTES DA REPÚBLICA ................................... 64
2.2. A CIDADE DE SALVADOR NO CONTEXTO DA REPÚBLICA .................. 73
2.3. NOVAS LEIS PARA UM NOVO PAÍS ........................................................ 78
CAPÍTULO III
O NEGRO NA MIRA DA IMPRENSA E DA POLÍCIA ....................................... 103
3.1. NO CAMINHO DO “PROGRESSO”: REPRESENTAÇÕES SOBRE O NEGRO
DE UM PAÍS EM TRANSIÇÃO. ...................................................................... 103
3.2. O ARTIGO 157 FINALMENTE ENTRA EM AÇÃO: O CASO DE NELSON
JOSÉ DO NASCIMENTO ............................................................................... 125
CAPÍTULO IV
“CUBRA-SE QUE VOU LHE CORTAR!”: RESISTÊNCIA NEGRA E
TRANSGRESSÃO DA ORDEM EM SALVADOR ............................................. 137
4.1. OUTROS “DETRATORES DA MORAL PÚBLICA” E A AÇÃO POLICIAL 137
4.2. MUNDOS QUE SE CRUZAM: OS CASOS DE JOSÉ CYRIACO E
ALEXANDRE RAMOS .................................................................................... 158
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 165
ANEXOS................................................................................................................167
FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................... 177
13
INTRODUÇÃO
A cidade de Salvador sempre foi marcada por sua pluralidade cultural, característica
de uma metrópole que foi sede do poder político nacional desde a sua fundação em
1549 até meados do século XVIII, e um dos principais portos de comércio de
escravizados no Brasil. Salvador foi também o local em que a presença africana se
deu de forma mais marcante, o que contribuiu para a ressignificação de seus
diversos elementos culturais para a sociedade brasileira e para a composição de
uma cultura peculiar na Bahia, com todos os seus contrastes e contradições.
Sidney Mintz e Richard Price, ao discorrer sobre a formação da cultura afro-
americana, fruto dos processos de colonização do continente pelos europeus, que
se utilizaram, na maioria das vezes, de mão-de-obra de indivíduos das variadas
etnias africanas, inferem que nenhum grupo consegue transpor de um local para
outro o seu estilo de vida, suas crenças e seus valores de maneira intacta. Estas
características sofrem alterações a partir do contato de uma população com a
cultura de outros povos, como aconteceu no translado de escravizados de diversas
nações africanas com destino às colônias do chamado “Novo Mundo”. Os autores
criticam um erro recorrente cometido pelo senso comum em pensar o continente
africano como uma cultura única. Ressaltam que as pessoas que acabaram sendo
escravizadas “foram retiradas de partes diferentes do continente, de numerosos
grupos lingüísticos e étnicos e de diferentes sociedades das várias regiões”.
Informam ainda que não se pode afirmar que os africanos escravizados e
transportados para a América compartilhavam uma cultura, no sentido em que o
mesmo poderia ser cogitado ao se pensar nos colonos europeus de uma
determinada colônia. Isto quer dizer que, ao contrário dos colonizadores, que já
compartilhavam de vários costumes na Europa, antes mesmo de iniciarem a viagem
para suas colônias americanas, as populações advindas da África possuíam uma
composição bem heterogênea. Muitos não tinham quase nada em comum uns com
os outros. 1
1 MINTZ, Sidney; PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana. Uma perspectiva
antropológica. Rio de Janeiro: Pallas: Universidade Cândido Mendes, 2003, p. 20.
14
Tais afirmações nos remetem às advertências de Edward P. Thompson sobre as
generalizações acerca do que é denominado “cultura popular”. Muitas vezes o termo
é visto como uma categoria estanque, consensual. Da maneira como questões
relativas à cultura são descritas, temos a impressão de que o “tradicional” não sofreu
qualquer alteração, seguiu do mesmo jeito com o decorrer dos anos. Thompson
sugere que o costume é “um campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual
interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes”. O autor ainda afirma
que a cultura também seria um espaço de diferentes recursos, de troca entre o
escrito e o oral, o “dominante” e “subordinado”, e que a ideia de um consenso
poderia nos distrair das contradições e oposições que poderiam existir dentro do
conjunto.2
Deste modo, devemos nos ater ao fato de que não há como conceber que os
hábitos culturais majoritariamente negros abordados neste trabalho, apesar de
receberem uma grande adesão destas populações, eram praticados e apoiados por
todos os negros baianos, bem como devemos lembrar que a cultura hegemônica,
pautada no cristianismo católico, branco e machista não recebia o apoio integral das
elites econômicas e sociais de Salvador. A depender da situação e da conveniência,
as pessoas poderiam se identificar ora com uma vertente, ora com outra.
A capital baiana dos primeiros anos da República se apresentava, em muitos
aspectos, contrária aos ideais propostos por setores das elites políticas e intelectuais
brasileiras. Sua população composta principalmente por negros e o caráter especial
de sua fé, − que conseguia agregar, por exemplo, o Catolicismo (que, apesar de não
ser mais a religião oficial do país,3 ainda era sua principal expressão de
religiosidade) − e uma religião de matrizes africanas, como o Candomblé, era um
duro golpe às tentativas de construção de uma Nação “moderna” e culturalmente
identificada com os padrões europeus de civilização.
Desta maneira, em Ao som dos atabaques: costumes negros e as leis republicanas
em Salvador (1890-1939), buscaremos estabelecer um diálogo entre a legislação
brasileira no contexto das políticas de controle social e repressão da população
2 THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 16-17. 3 CARONE, Edgar. A Segunda República (1930-1937): Corpo e Alma do Brasil. Rio de Janeiro –
São Paulo: DIFEL, 1978, p. 197.
15
negra da cidade de Salvador, e os costumes destas populações, observando o
quanto os interesses de certos setores das elites econômicas e políticas pela
“modernização” das estruturas e a manutenção do status quo permaneceram após a
abolição do sistema escravista. Convém salientar, entretanto, que apesar de o
Candomblé e a Capoeira serem elementos fundamentais estudados neste trabalho,
duas das principais marcas que contribuíram para o estabelecimento de identidades
culturais negras na capital baiana, nos propomos a perceber também outras práticas
mais comuns a estas pessoas, como algumas festas populares, a exemplo do
entrudo, do carnaval, das comemorações do Dois de Julho, entre outras. Também é
importante informar que muitas das práticas descritas neste trabalho não são
exclusivas das populações negras, embora seu contingente seja bastante
significativo. Assim, quando citamos alguma matéria jornalística ou mencionamos
alguma prática como pertencente às estas populações, apenas particularizamos o
enfoque, apesar de ter consciência que não podemos generalizar nem naturalizar os
costumes das sociedades.
As principais fontes deste trabalho serão as leis consolidadas a partir de 1890, com
o primeiro Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil, passando por
1925, ano em que entra em vigor o Código Sanitário do Estado da Bahia (um amplo
aparato governamental que regulamentava desde a construção de prédios até o
exercício da medicina), se encerrando em 1939, momento em que analisaremos o
único processo-crime encontrado para Salvador nas primeiras décadas do século
XX classificado textualmente como crime de feitiçaria e uso ilegal da medicina,
previsto no art. 157 do Código Penal de 1890. Este longo processo, que durou cerca
de dois anos e consumiu mais de 80 páginas, sintetiza bem a visão que as leis
brasileiras, e a polícia como sua executante, possuíam a respeito de práticas
culturais mais comuns às populações negras, como a cura através de mecanismos
alternativos e naturais, bem como a crença em divindades não-cristãs. Além disso,
serão analisados periódicos e outros documentos policiais que atestem os atos
arbitrários de violência contra a livre manifestação pública da religiosidade e do lazer
destas pessoas, frequentemente marginalizadas pela mídia e pela polícia; bem
como processos-crimes envolvendo capoeiras, com o intuito de perceber sua
atuação e suas formas de sobrevivência no cotidiano da cidade.
16
O atabaque foi escolhido para estar presente no título devido à sua origem, que nos
remete ao continente africano, bem como pela sua importância ritual, fundamental
para o Candomblé, a Capoeira, os batuques e sambas-de-roda e outros costumes
relacionados às populações negras, que, talvez justamente por essa razão, sofreram
significativas perseguições dos poderes públicos durante o século XIX e parte do
século XX. É um instrumento rítmico percussivo, construído com ripas de madeira
unidas por cordas. Um tambor fino, alto e recoberto com couro de origem animal em
sua boca superior, enquanto que sua boca inferior é descoberta. Na Capoeira, os
atabaques são reverenciados com muito respeito, juntamente com os berimbaus,
como se fossem representações da ancestralidade, tão importante para a
transmissão dos conhecimentos aos mais jovens e para a sobrevivência da luta.
Geralmente, antes do jogo começar, os dois praticantes se ajoelham e fazem o sinal
da cruz diante dos instrumentos que estão sendo tocados, pedindo proteção
espiritual e rezando para que o jogo transcorra na mais absoluta tranquilidade e sem
incidentes.
Nas religiões de matrizes africanas, a exemplo do Candomblé, os atabaques e seus
tocadores são igualmente reverenciados pela comunidade do terreiro e
principalmente pelos orixás. Segundo as tradições, o seu toque produz o som que,
agregado às músicas entoadas pelos fiéis, às danças e aos sons das palmas,
trazem os orixás ao aiyê (a Terra, o mundo em que vivemos) e desempenham este
papel de comunicação entre o mundo das divindades e o plano terrestre. Seu couro
é proveniente de animais que foram sacrificados e oferecidos aos orixás
especialmente para este fim. Posteriormente, existem diversas etapas litúrgicas para
que enfim o instrumento possa ser utilizado pela casa.4
O que ficou conhecido como Candomblé foi uma adaptação de diversas
manifestações religiosas das variadas nações africanas que aportaram na Bahia,
frutos do perverso sistema colonial, que arrancou estas populações de seus países
de origem. Entre as principais nações estão a angola, congo, jeje, queto, ijexá e
principalmente nagô, que, de acordo com Roger Bastide, seria um termo genérico
utilizado pelos colonizadores franceses para designar todos os negros que falassem
iorubá na Costa dos Escravos. Sua influência predomina entre as demais nações,
4 KILEUY, Odé; OXAGUIÃ, Vera de. O Candomblé bem explicado. Nações Bantu, Iorubá e Fon. Rio
de Janeiro: Pallas, 2009, p. 198-199.
17
impondo seus deuses, a estrutura de suas cerimônias e sua metafísica.5 O
Candomblé podia cultuar os orixás (entidades espirituais relacionadas às forças da
natureza ou aos falecidos ancestrais), no caso dos nagôs; os voduns (que seriam os
espíritos dos entes queridos), no caso dos jejes; ou as inquices no caso dos
angolas. Uma particularidade da nação angola – apesar de não ser uma
exclusividade desta nação − é o culto aos caboclos, os espíritos de indígenas,
considerado pelos africanos mais antigos como os verdadeiros “donos da terra”, os
ancestrais brasileiros, sendo, outrossim, os dignos de serem cultuados no novo
território ao qual agora pertenciam.6
A ancestralidade é levada muito a sério pelas populações africanas tradicionais.
Conforme Amadou Hampaté Bâ, o indivíduo é indissociável de sua linhagem, que
continua a viver através dele e da qual o mesmo é apenas um prolongamento.
Assim, quando se desejava homenagear alguém, ao invés de chamá-lo pelo seu
nome próprio (que equivaleria no Ocidente ao seu nome de batismo), costumava-se
saudar o homenageado chamando repetidas vezes pelo nome de seu clã
(equivalente ao sobrenome): “Bâ! Bâ!”, porque ao fazer isso, não se está saudando
apenas o indivíduo, e sim toda a linhagem de seus ancestrais.7 Deste modo, as
religiões de matrizes africanas se desenvolveram sem perder estes valores de vista.
Os próprios orixás, apesar das características míticas que lhe são atribuídas, seriam
ancestrais africanos, pessoas de carne e osso que viveram em um tempo não
medido pela cronologia ocidental.8
5 BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.
29. O autor, citando Arthur Ramos, infere que o termo “candomblé” seria uma onomatopeia, significando primitivamente “dança e instrumento de música” e, posteriormente, passou a designar a “própria cerimônia religiosa dos negros”. 6 PRANDI, Reginaldo. “As religiões negras do Brasil: Para uma sociologia dos cultos afro-brasileiros”.
In Revista USP. Dossiê Povo Negro n. 28, São Paulo: Ed. USP, dez./jan./fev. 1995-1996, p. 66. Sobre o assunto, ver também SANTOS, Jocélio Teles dos. Os donos da terra. Os caboclos nos candomblés baianos. Dissertação (Mestrado em Ciência Social). Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, 1992. Apesar de os angolas cultuarem os caboclos, convém ressaltar que isto não era exclusividade desta nação. A tradição indígena já cultuava seus ancestrais, antes mesmo de os primeiros angolas aportarem no Brasil. 7 Ou seja, se o nome do autor é Amadou Hampaté Bâ, este último nome seria correspondente ao seu
clã, o mesmo que todos os seus ancestrais carregavam. Cf. BÂ, Amadou Hampaté. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Pallas Athena: Casa das Áfricas, 2003, p. 23. 8 Na Umbanda também existe o culto aos encantados, seres espirituais que nunca tiveram uma
encarnação. São frequentemente associados a árvores, animais e outras manifestações da natureza. Para conhecer o arquétipo de alguns dos deuses africanos cultuados na Bahia, ver VERGER, Pierre Fatumbi. Os Orixás. Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 1997.
18
Existe uma hierarquia rígida no Candomblé, oriunda desta tradição africana baseada
no respeito aos mais velhos, detentores do conhecimento e responsáveis por dar
sequência aos saberes adquiridos durante a vida. Assim, a organização na religião
começa pelo abiã, passando pelas iaôs, ebômis, ogãs, equedes e, por fim, os
babalorixás e iyalorixás, pessoas que ocupam o maior grau hierárquico dentro de
uma casa ou terreiro, como é mais conhecido o espaço sagrado destinado à prática
do Candomblé, lembrando que existem outros postos hierárquicos dentro da religião.
Há diversas outras pessoas que interagem no espaço, mas como a rede é muito
vasta, reduzimos esta abordagem a alguns dos cargos considerados mais
importantes para que se possa compreender a hierarquia de um terreiro. A descrição
que trataremos a seguir tem apenas o intuito de oferecer ao leitor uma noção breve
dos preceitos da religião, não pretendendo, desta maneira, esgotar o tema nem se
aprofundar sobre o mesmo. Para uma melhor descrição, uma boa indicação é o
texto de Vivaldo da Costa Lima.9
O abiã, do iorubá “aquele que nasceu para um novo caminho”, é o primeiro estádio
para quem pretende se tornar membro da religião. Nesta etapa, a pessoa vai se
familiarizando com o ambiente e com o cotidiano do terreiro e vai aprendendo as
primeiras lições sobre os fundamentos religiosos, suas obrigações e direitos, para
que enfim possa decidir se é aquela casa a que mais atende às suas necessidades
e expectativas. Ainda não terá participação ativa nas cerimônias nem acesso aos
conhecimentos mais elaborados, mas já terá o contato inicial com o axé da casa.
Depois de decidida sua permanência na casa, o abiã faz seu primeiro ato litúrgico,
que marca o início oficial de sua entrada na casa, o borí, que seria a cerimônia de
“dar de comer à cabeça”. A cabeça, também chamada de orí, é o centro de todos os
principais acontecimentos e local onde o axé, a força sobrenatural que rege sua
vida, se deposita. No borí, os laços entre o fiel, o terreiro e seu orixá se tornam mais
estreitos e o indivíduo ganha força e disposição para enfrentar as outras fases do
complexo processo de iniciação. Bastide afirma que a lavagem das contas (ritual
onde os colares que os fiéis ostentarão são preparados para ser utilizados) e o borí
são fases essenciais. Como os ritos de iniciação são considerados perigosos, pelo
fato de se estabelecer contato com forças místicas e poderosas, estes
9 Para uma melhor descrição da hierarquia existente dentro de um terreiro, consultar LIMA, Vivaldo da
Costa. A Família de Santo nos Candomblés Jejes-Nagos da Bahia: Um estudo de relações intragrupais.Salvador: Corrupio, 2005.
19
procedimentos permitirão que o iniciando passe incólume por todas as etapas do
processo.10 Convém ressaltar, contudo, que o borí não é uma exclusividade para os
iniciandos. Qualquer pessoa pode (e deve) fazê-lo, mesmo que já seja iniciada há
muito tempo, pois a cerimônia revigora as energias e renova as proteções
espirituais.11
Após os abiãs, encontram-se os/as iaôs. Apesar de ser um termo ambivalente, que
pode se referir tanto a homens quanto a mulheres, a palavra geralmente é traduzida
por “a noiva” ou “esposa do orixá”. A iaô é uma pessoa iniciada que assumiu o
compromisso formal de aprender e seguir as normas da casa a qual pertence.
Transforma- se na mensageira do orixá, aquela que, no momento do transe,
transmite as palavras destinadas à comunidade ou a alguém especificamente,
podendo dar conselhos ou simples avisos. Nesta fase da vida religiosa, a iaô tem a
sua cabeça raspada e o seu corpo pintado, para que ela seja purificada e esteja apta
a receber sua divindade. Algumas incisões são feitas em sua pele para que o axé do
orixá entre em contato com seu corpo de maneira mais rápida e eficaz. Outras
liturgias fazem parte deste ritual, como a imolação de animais, o ato de catar as
folhas sagradas que serão utilizadas, a lavagem dos fios de conta novamente etc.
No final de todo este processo e ao completar sete anos no Candomblé, a iaô
transforma-se então em ebômi, um grau hierárquico um pouco maior, que terá mais
acesso a alguns ambientes da casa e a algumas liturgias, bem como terão certa
autoridade sobre as demais iaôs que ainda não atingiram esse nível, passando-lhes
sua experiência. 12
Há também pessoas no Candomblé que não podem entrar em transe nem receber
divindades, não tendo necessariamente que passar por todos os rituais descritos até
agora. São os ogãs, no caso dos homens, e as equedes, no caso das mulheres. Os
ogãs possuem várias funções. Escolhidos diretamente pelos orixás, através de
alguém previamente iniciado, muitas vezes se constituem em um cargo honorífico
pela sua condição financeira ou seu prestígio perante a sociedade externa à religião.
10
BASTIDE, Roger. Op. Cit., p. 45. 11
Cf. BRAGA, Júlio. Fuxico de Candomblé. Feira de Santana-BA: UEFS, 1988. 12
. A cerimônia que envolve o sacrifício de animais é uma das etapas que mais causam espanto às pessoas que não pertencem ao Candomblé, mas os autores ressaltam que a matança não tem nada de perverso em sua essência, já que os animais sacrificados serão preparados para o consumo dos convidados e dos iniciados, como qualquer animal que não tenha passado por este processo. Cf. KILEUY, Odé; OXAGUIÃ, Vera de. Op. Cit., passim.
20
Estes sacerdotes, sobretudo nas primeiras décadas do século XX, momento em que
as perseguições policiais foram mais intensas, eram responsáveis por “observar,
descrever e interpretar os cultos”, além de tentar intermediar as relações entre o
terreiro e a polícia.13 Artur Ramos e Nina Rodrigues eram ogãs do terreiro do
Gantois.14 Ruth Landes afirma que Édison Carneiro era disputado como ogã pelo
terreiro Axé Opô Afonjá, localizado no bairro de São Gonçalo do Retiro e por outras
casas, como a de Procópio, mas não se confirmou em nenhum.15 Assumir a
“confirmação” resultaria em uma responsabilidade maior em relação à casa,
participando dos rituais iniciáticos e estabelecendo uma relação permanente de
proteção a uma filha-de-santo.16 Além de ser essa espécie de “relações-públicas”, os
ogãs são fundamentais em vários eventos da vida do Candomblé, como na imolação
dos animais e no toque dos atabaques. Só eles possuem autorização para tal.
As equedes não desfrutam da mesma importância “social” dos ogãs, apesar de sua
relevância no terreiro ser fundamental. São elas que cuidam das iaôs quando caem
em transe, assim como são as responsáveis por manter a casa em ordem. Daí a
explicação para o fato de nem os ogãs nem as equedes poderem “cair no santo”.
Roger Bastide reflete sobre a confusão que poderia se instalar caso isso ocorresse:
Com efeito, como poderia o ritual transcorrer em ordem de acordo com todas as normas necessárias, se bruscamente uma equede, em lugar de cuidar do cavalo pelo qual é responsável, caísse por terra ao lado dele, sacudida por movimentos convulsivos, ou se o alabê
abandonasse por momentos a música pra dançar no meio da multidão?17
No topo da linha hierárquica presente no Candomblé, encontram-se as iyalorixás ou
os babalorixás. São os sacerdotes centrais, as principais autoridades de uma casa,
que só estão aptos para assumir tal função se tiverem cumprido todas as suas
obrigações litúrgicas e recebido de seu sacerdote o Decá, o elemento comprobatório
de seu cargo. Possuem total responsabilidade sobre a religiosidade das pessoas
que frequentam a casa e devem possuir um conhecimento apurado sobre tudo que
13
DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco. Usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988 p. 174. 14
RAMOS, Artur, O Negro Brasileiro – Etnografia Religiosa.São Paulo: Nacional, 1951, p. 63 apud DANTAS, Beatriz Góis, ibidem. 15 LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 162. 16 DANTAS, Beatriz Góis. Op. Cit, p. 174. 17 BASTIDE, Roger. Op. Cit., p. 60. Alabê é o nome dado ao ogã responsável pela música durante a
cerimônia, assim como axogum é aquele que fica encarregado da matança.
21
diz respeito ao Candomblé, suas liturgias, seus objetos etc., além de redobrada
dedicação e paciência, já que passa a maior parte do seu tempo administrando e
convivendo com problemas de diversas pessoas e promovendo a interação entre o
Aiyê (o plano terrestre) e o Orum (o plano das divindades).18
As questões religiosas na Bahia, e mais especificamente em Salvador eram de um
grau de complexidade tão grande que, por muito tempo, não havia um consenso
entre os intelectuais e as autoridades sobre sua conceituação. Nina Rodrigues, um
dos pioneiros nos estudos sobre esta questão, concebia as práticas religiosas das
diversas nações africanas que aportaram na Bahia como “fetichistas”. Para ele,
apesar de tantos povos, a cultura que prevaleceu foi a do povo jeje-nagô, e buscou
classificar hierarquicamente a religiosidade da Bahia tendo em vista toda essa
pluralidade, se valendo de resquícios racistas dos cientistas europeus tão em voga
entre o final do século XIX e começo do século XX. Rodrigues acreditava haver uma
“escala evolutiva”, na qual o topo pertencia ao monoteísmo católico, que mesmo
sendo compreendido por poucas pessoas, ainda era “sentido e praticado”. A
segunda, que teria uma abrangência bastante significativa junto à população da
Bahia, seria a “idolatria e a mitologia dos santos profissionais”, crença que atingia
todas as classes sociais e intelectuais e que independia da cor da pele. A terceira
zona definida por Nina Rodrigues seria a do sincretismo, a equivalência entre os
orixás e os santos católicos feita pelos povos de língua iorubá, os povos que
parecem ser os únicos que contam com um pouco mais de respeito do médico e
antropólogo, pois este os considerava “o resumo do animismo superior negro”, pelo
fato de terem se convertido ao cristianismo, apesar de ainda manterem sua crença
nos orixás, atribuindo às outras nações africanas que não possuíam a mesma
religiosidade como “tribos mais atrasadas”, de baixo nível intelectual.19
Sobre as religiões de matrizes africanas, utilizando como parâmetro a religião dos
“nagôs ou iorubanos”, Rodrigues se admirava com a organização da “mitologia” que
permeava a crença nos orixás e a atribuição de características divinas aos
elementos da natureza e aos fenômenos meteorológicos. Sua sobrevivência aos
infortúnios da escravidão e à longa travessia através do Oceano Atlântico se devia à
“evolução religiosa” que estes povos possuíam em relação aos demais, cujas
18 KILEUY, Odé; OXAGUIÃ, Vera de. Op. Cit., 19 RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Madras, 2008, p. 198.
22
práticas teriam os elementos e divindades nagôs como referência. Assim, a crença
nos orixás acabou prevalecendo dentre as diversas manifestações religiosas dos
povos africanos. Os estudos de Nina Rodrigues propiciaram o surgimento de vários
seguidores, dentre os quais se destaca Édison Carneiro, que, como veremos mais
adiante, foi um dos intelectuais responsáveis pela mudança no direcionamento da
imprensa soteropolitana em relação à sua visão deturpadora dos cultos de matrizes
africanas, em meados dos anos 1930.
Após esta breve apresentação, podemos passar às descrições mais objetivas deste
trabalho. A escolha do período, compreendido entre 1890 e 1939, pode ser
justificada pelo ano de publicação de cada um dos conjuntos de leis estudados, e
por suceder um período repleto de acontecimentos inéditos no Brasil, como o fim da
escravidão e da Monarquia, fatos que interferiram decisivamente na elaboração de
tais leis, e buscaram realizar mudanças radicais nas estruturas vigentes. O primeiro
Código Penal da República, de 1890, por exemplo, já oferece alguns indícios desta
tentativa, na medida em que incriminava os curandeiros, os feiticeiros e outras
categorias, como cartomantes e espíritas, apesar de garantir a liberdade religiosa.20
Neste mesmo código figura a criminalização, na forma de contravenção penal, dos
mendigos, ébrios, vadios e capoeiras.21
A constituição de 24 de fevereiro de 1891,− a primeira da República − na seção II,
referente à Declaração de Direitos, assegurara, em diversos parágrafos, o caráter
laico do Estado, bem como a livre manifestação de qualquer confissão religiosa,
inclusive publicamente,22 reafirmando o que o Código Penal promulgado no ano
anterior afirmava. Isto não quer dizer, contudo, que o Estado não tenha interferido no
intuito de coibir manifestações religiosas como o Candomblé, como sugere a forma
como a imprensa soteropolitana tratava o assunto, exigindo providências no sentido
20
DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô, Papai Branco: Usos e abusos da África no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1988, p. 165. 21
ALVAREZ, Marcos César; SALA, Fernando; SOUZA, Luís Antônio. A Sociedade e a Lei: O Código Penal de 1890 e as novas tendências penais na Primeira República. In Justiça e História, vol. 3, n. 6. Porto Alegre: 2003, p. 5. 22
TJBA – Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, Biblioteca Central, Fórum Ruy Barbosa. BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de Fevereiro de 1891.
23
de evitar que tais fatos continuassem ocorrendo e interpretando a permanência
destes cultos nos locais públicos como se fosse um “descuido da polícia”.23
A Constituição Federal de 16 de julho de 1934 não traz mudanças significativas em
relação aos direitos do cidadão, adquiridos em documentos anteriores,
principalmente a Constituição de 1891. Reafirma, no capítulo referente aos direitos e
garantias individuais, o caráter laico do Estado e de todas as instituições públicas,
garantindo a igualdade jurídica de todas as pessoas perante a lei e desconsiderando
privilégios e distinções por motivo de nascimento, sexo, raça, classe social, crenças
religiosas ou ideias políticas.24
A Salvador de fins do século XIX e início do século XX, com população estimada em
174.412 em 1890, e 283.422 em 1920, era a terceira maior cidade do Brasil, atrás
apenas do Rio de Janeiro e de São Paulo.25 Rinaldo César Leite faz várias
considerações a respeito da estrutura da capital baiana e seu processo de
“modernização” ocorrido, sobretudo, a partir da segunda metade do século XIX.
Afirma que as estruturas da cidade não acompanharam seu crescimento
demográfico, ou seja, as mudanças necessárias, apesar de estarem acontecendo no
decorrer do período, não se davam na velocidade que deveriam; o que ocasionou
diversos problemas de higiene, transportes, moradia e, sobretudo, graves problemas
de saúde, onde não eram raros os casos de epidemia de diversas doenças, como a
peste bubônica, a varíola, a febre amarela, a disenteria, e o impaludismo, “visitantes
costumeiras da cidade”.26
As ruas eram estreitas e mal alinhadas e as construções de prédios não seguiam um
padrão, sendo construídos de acordo com a vontade de quem os fazia. A iluminação
também deixava a desejar, pois os lampiões utilizados não eram suficientes e sua
substituição por iluminação a gás vinha sendo progressivamente realizada desde
1856. Tal quadro explica a revolta e os anseios das elites em instaurar mudanças
que “apagassem” da cidade o seu aspecto “colonial e atrasado” em relação às
23
IGHB – Instituto Histórico e Geográfico da Bahia. “Fetichismo” In Correio da Tarde, Salvador, 13 jan. 1903. 24
TJBA, BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934. 25
LEITE, Rinaldo Cesar. E a Bahia civiliza-se... Ideais de civilização e cenas de anti-civilidade em um contexto de modernização urbana. Salvador, 1912-1916. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996, p. 25. 26
Ibidem.
24
potências europeias, em uma sociedade na qual as aparências, o modo como ela
era vista pelos outros era extremamente relevante.
Assim, após as considerações acima realizadas, podemos fazer uma breve
descrição dos elementos que compõem este trabalho. O Capítulo I, Atabaques,
Justiça e possibilidades de abordagem historiográfica, oferece um panorama do
Brasil e da Bahia nas décadas que antecederam a publicação dos documentos
pesquisados. Fazemos uma abordagem acerca da produção bibliográfica sobre a
temática, tentando perceber de que maneira alguns autores trabalhavam a relação
entre as práticas das populações negras e a justiça. No mesmo capítulo, analisamos
as incompatibilidades entre o espaço da rua, as festas e manifestações populares de
Salvador e o projeto modernizador que as elites políticas, econômicas e sociais
tentaram implantar na capital baiana. Celebrações como a Lavagem do Bonfim, o
entrudo, o carnaval e as comemorações pela independência do Brasil na Bahia (a
popular festa do Dois de Julho), destoavam do clima “ordeiro” que se pretendia
implantar na cidade e foram combatidas de todas as formas pelos poderes públicos
e pela imprensa local, como o símbolos do “atraso” da cidade em relação às capitais
dos estados do Sul e do Sudeste, vistos como mais “civilizados” e próximos dos
padrões europeus. A pobreza, mendicância e vadiagem, bem como as medidas
profiláticas para combater as epidemias de febre amarela, peste e varíola que
assolaram a Bahia durante o século XIX e início do século XX também constam
neste primeiro capítulo.
O Capítulo II, O Brasil em busca de estruturação jurídica, começa analisando alguns
dos principais caminhos que a justiça brasileira percorreu antes de chegar aos
códigos republicanos. Devido ao grande volume de leis promulgadas durante o
período imperial e, sobretudo, de acordo com a relevância desta legislação para
nossa abordagem, ao invés de analisar as diversas posturas que entraram em vigor
individualmente com o passar dos anos, analisaremos apenas os códigos mais
extensos e mais abrangentes, como as Ordenações Filipinas;27 a primeira
Constituição do Império, promulgada em 1824; e o Código Criminal do Império de
1830 (substituído pelo Código Penal da República em 1890). Estas leis muitas
vezes se amparavam no Catolicismo, religião oficial do Brasil naquele período, para
27
Código português que vigorou no Brasil, pelo menos na parte referente aos direitos civis, até 1916.
25
condenar os desvios da população no que se refere à crença em outras religiões. O
intuito desta discussão é situar as leis e seus reflexos sobre as populações negras
no momento histórico em que foram aplicadas. Perceber o quanto tal processo
“civilizatório” visava, direta ou indiretamente, suprimir a presença destas populações
do convívio social da capital baiana. Assim, analisamos o alvorecer da República em
solo brasileiro, e mais especificamente baiano, com os seus ideais modernizadores.
O desejo de mudanças significativas que encheu de esperança os corações das
pessoas em um primeiro momento, transformou-se em frustração e revolta, à
medida que o tempo passava e as esperadas mudanças não aconteciam. Por fim,
trataremos ainda sobre a necessidade de o Brasil possuir instrumentos jurídicos
próprios após a proclamação da República, para que pudesse ser visto pelos demais
países como uma nação liberal e independente. As dificuldades em se conciliar um
código de características liberais em um país recém-saído da escravidão e os
direitos civis da população não passaram despercebidas. Neste ponto do texto,
discutimos também o que versavam as leis a respeito das práticas alternativas de
cura, da presença dos sujeitos indesejáveis e seus “maus hábitos” nas ruas e das
punições e agravantes para quem fosse pego nessas circunstâncias.
O Capítulo III – O negro na mira da imprensa e da polícia analisa o discurso dos
jornais sobre as populações negras, seu constante hábito de se autoproclamarem a
“voz da verdade” ou de se perceberem enquanto os “representantes da vontade dos
cidadãos de bem” de Salvador. Assim, veremos o quanto os periódicos se
empenhavam em denunciar às autoridades os costumes “perniciosos” que insistiam
em resistir aos “avanços da modernidade”; e o quanto a polícia era cobrada pela
imprensa no sentido de tomar atitudes para reprimir a presença de Candomblés, dos
vendedores ambulantes, das festas de rua com excessiva participação popular etc.
Trabalharemos também com alguns documentos policiais, que frequentemente
justificavam as prisões de indivíduos alegando “desordem” e “ofensa à moral
pública”, sem apresentar maiores explicações, além de uma análise sobre o aludido
processo-crime de Nelson José do Nascimento pelo crime de feitiçaria, no ano de
1939.
No quarto e último capítulo, intitulado “Cubra-se que vou lhe cortar!”: Resistência
negra e transgressão da ordem em Salvador, analisamos diversos documentos dos
outros “transgressores da moral e dos bons costumes”, com ênfase nos processos-
26
crime envolvendo capoeiristas. Suas estratégias de resistência, seus confrontos com
as autoridades e sua resolução de diferenças pessoais. A frase que dá título ao
capítulo é oriunda de um destes processos e teria sido dita por Alfredo Martins
Teixeira, vulgo Caboclinho, um capoeira que deixou seu nome marcado na história e
nas delegacias. Pareceu-nos ideal para entender o complexo mundo da Capoeira,
onde uma linha tênue separava o lúdico e a violência; a brincadeira e o crime;
amigos leais e inimigos mortais.
Esta pesquisa não visa se debruçar exclusivamente pelo mundo mágico das
religiões de matrizes africanas, tampouco dissertar amplamente sobre seus
fundamentos, pois as religiões, ao mesmo tempo em que pregam a difusão do
conhecimento e das experiências dos mais velhos para os mais novos, possuem
rituais e fundamentos sagrados e secretos que precisam ficar guardados entre os
seus adeptos. Também não nos propomos a analisar friamente os diversos códigos
de leis brasileiros, artigo por artigo. O que este trabalho pretende é caminhar sobre
esta linha que divide o institucional e o prático, entre o que a lei previa e o que
acontecia no cotidiano das ruas de Salvador. Perceber o que estas práticas
significavam para a heterogênea população da cidade é nosso principal desafio.
Em tempo: depois do Novo Acordo Ortográfico, algumas palavras da Língua
Portuguesa do Brasil sofreram alterações. Assim, palavras paroxítonas terminadas
em vogal, como “idéia” e “européia”, por exemplo, perderam o acento agudo. A
trema também deixou de ser usada em nosso idioma, ou seja, agora escrevemos
“consequência”, e não “conseqüência”.
27
CAPÍTULO I
ATABAQUES, JUSTIÇA E POSSIBILIDADES DE ABORDAGEM
HISTORIOGRÁFICA
1.1. PRÁTICAS NEGRAS X JUSTIÇA NA PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA BRASILEIRA
A relação entre os meios jurídicos do Brasil e as populações negras sempre foi
tensa, desde as primeiras posturas do século XIX até os mecanismos legais do
século XX. A atuação da polícia também tem um histórico de violência muito grande
sobre estas populações, sobretudo no intuito de coibir a maior parte de suas
manifestações culturais. Carlos Antônio Costa Ribeiro − em pesquisa realizada com
a antropóloga Yvonne Maggie −, constatou que nos inquéritos policiais que tratavam
de acusações de falso espiritismo, exercício ilegal da medicina e curandeirismo
entre os anos de 1900 e 1930 (pontos de partida principais para nosso trabalho), os
funcionários jurídico-policiais decidiam o que poderia ser considerado como
“verdadeiro” e “falso espiritismo”; isto é, já que a Constituição Federal de 1891
assegurava a plena liberdade de culto, ao mesmo tempo em que o Código Penal do
ano anterior condenava o “falso espiritismo” e a “feitiçaria”, a diferença entre o lícito
e o ilícito estaria na interpretação dos policiais e da justiça.28
O controverso médico maranhense radicado na Bahia, Raimundo Nina Rodrigues,
também buscava fazer a distinção entre a “verdadeira” e a “falsa” religião e usava a
Constituição de 1891 para comprovar a ilegalidade das perseguições policiais ao
Candomblé. Para ele, já que a Lei garantia igualdade de direitos a todos, assim
como liberdade de culto, nada justificaria a truculência da polícia ao tentar acabar
com os Candomblés. O médico argumentou que o culto jeje-nagô especificamente,
maioria entre as diversas descendências africanas na Bahia no período, se
constituía em uma religião de fato, na qual o período puramente fetichista estaria
“quase transposto”, se tornando agora um politeísmo genuíno. Por ser religião, não
28
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e Criminalidade. Estudo e análise da justiça no Rio de Janeiro (1900 – 1930). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995.
28
poderia ser considerado crime, já que o Código Penal só considerava ilegal a magia,
liberando a prática de qualquer culto religioso, sem distinções. 29
O adjetivo que atribuímos a Nina Rodrigues (“controverso”) se pode verificar pela
sua posição ambígua a respeito das religiões de matrizes africanas e da sua visão
sobre as populações negras. Apesar de considerar o negro inferior e que esta
inferioridade era “um fenômeno perfeitamente natural, produto da marcha desigual
do desenvolvimento filogenético da humanidade”, Rodrigues condenava as
perseguições realizadas pela polícia sobre os negros praticantes do candomblé
afirmando que estes eram desprovidos da capacidade de abstração, o que tornava
impraticável compreender a religião superior dos brancos, o Catolicismo, preferindo
a religião de origem nagô, que estaria mais de acordo com a sua “inteligência
rudimentar” e com o seu modo de sentir. Em outras palavras, os negros não teriam
capacidade intelectual suficiente para entender e interpretar a religião cristã, sendo
mais fácil cultuar seus próprios deuses.30
Interessado nos cultos populares de origem africana, Carneiro estudou, inclusive, a
língua nagô e pesquisou sobre o tradicional terreiro Axé Opô Afonjá, localizado no
bairro de São Gonçalo do Retiro, em Salvador.31 Foi graças à sua contratação pelo
jornal O Estado da Bahia, em 1936, que o discurso agressivo da imprensa pôde ser
abrandado, principalmente a partir da publicação de uma série de reportagens que o
mesmo organizou sobre os Candomblés da Bahia e suas festividades, muito embora
as perseguições ainda continuassem.32 Embora Carneiro fosse um grande
admirador da obra de Nina Rodrigues, havia uma certa discordância entre eles no
que diz respeito à característica deste culto. Se Rodrigues o considerava um
“politeísmo genuíno”, como mencionado há pouco, Édison Carneiro defende que o
Candomblé é um culto monoteísta – apesar de os fiéis cultuarem vários orixás – e o
compara ao Cristianismo e ao Islamismo. Compara sincreticamente Oxalá a Jesus
Cristo e afirma que mesmo havendo oferendas a diversos orixás, havia um que
estaria em um patamar hierarquicamente superior aos demais (Olorum, que em
29
RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. 7ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1988, p. 246. 30
Ibidem, p. 05. 31
DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco. Usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 187. 32
BRAGA, Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador, EDUFBA, 1995, p. 24.
29
nagô significa “Senhor ou Dono do Céu”), assim como acontecia na relação entre os
santos católicos, Deus e os fiéis.33
A fé nos orixás, voduns, inquices, caboclos etc. passou a sofrer perseguições mais
sistemáticas a partir da implantação do Código Penal de 1890, o primeiro código de
leis organizado na República, impulsionado pela tentativa de organizar o Brasil
juridicamente. Marcos César Alvarez, Fernando Sala e Luís Antonio Souza
apresentam uma das interpretações possíveis a este Código, quando inferem que a
necessidade de o país possuir uma estrutura jurídico-política própria vem desde sua
independência de Portugal em 1822. O Brasil precisava de um código de leis
autônomo, já que os que existiam até então ainda sofriam influência das
Ordenações Filipinas da ex-metrópole portuguesa, além dos Estados Unidos e da
Europa. Assim, a Constituição de 1824 e o Código Criminal do Império de 1830
foram criados visando nacionalizar o aparato jurídico brasileiro, que sofreu várias
críticas por parte das elites até o fim do Império. O artigo ainda afirma que havia
uma preocupação das elites, ao debater sobre o Código Penal de 1890, sobre como
manter a “ordem” estabelecida na República que se iniciava. Desta forma, segundo
os autores, havia uma “singular combinação entre repressão direta e controle social,
ambos dirigidos contra os inimigos da ordem política e os desviantes da ordem
social,” que pode ser comprovada pelo estabelecimento rigoroso das contravenções
penais contra os mendigos, ébrios vadios e capoeiras. Assim, pressionavam-se as
pessoas para o trabalho, tentando retirar sua presença das ruas, bem como
neutralizar a Capoeira, o Candomblé – à proporção que era facilmente relacionado
ao “baixo espiritismo”, “curandeirismo” ou “charlatanismo” – e as práticas alternativas
de cura exercidas pelas classes populares e que muitas vezes se confundia com a
medicina institucional. 34
Sobre a tentativa de se exercer o controle social das classes vistas como perigosas,
Maria Beatriz Góis Dantas considera que, embora os negros não sejam citados
textualmente nestes artigos, o que entraria em desacordo com o direito de cidadania
adquirido pelos ex-escravos após a abolição formal da escravidão em 1888, alguns
33
CARNEIRO, Édison. Candomblés da Bahia. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p.
22-23. 34
ALVAREZ, M. C.; SALA, F.; SOUZA, L. A. “A Sociedade e a Lei: O Código Penal de 1890 e as novas tendências penais na Primeira República”. In Justiça e História, vol. 3, n. 6. Porto Alegre: 2003. Disponível em: www2.tjrs.jus.br/institu/memorial/RevistaJH/.../04-Marcos_Alvarez.pdf, p. 5.
30
artigos, como o nº 157, por exemplo, que condenava genericamente a prática do
Espiritismo (e que acabava agregando as mais variadas práticas religiosas de
matrizes africanas) eram uma “tentativa de garantir aos dominantes o controle sobre
os negros livres, cujos centros de culto, localizados, sobretudo nas cidades,
constituir-se-iam em núcleos virtuais de „perigo‟ e „desordem‟”.35 Sydney Chalhoub
se aproxima deste argumento, quando infere que havia “um claro consenso entre os
deputados de que a Abolição trazia consigo os contornos do fantasma da
desordem”.36
Como este trabalho não pretende se restringir apenas ao estudo da repressão à
religiosidade de matrizes africanas, apesar de ser um dos grandes pilares de nossa
pesquisa, convém mencionar trabalhos relacionados a outras práticas culturais
majoritariamente negras, como a Capoeira. Carlos Eugênio Líbano Soares produziu
um artigo sobre a presença de capoeiras baianos no Rio de Janeiro na segunda
metade do século XIX e trouxe informações relevantes. Mostra que os capoeiras
tiveram um papel ativo na Corte, seja agindo como grupos isolados ou em conflito
com outros grupos por disputas territoriais, seja atuando como capangas ou aliados
de políticos geralmente monarquistas. Algo que chama atenção no trabalho de
Soares diz respeito aos praticantes da capoeira naquele momento. Ao contrário do
que normalmente se convém supor, o autor afirma não haver apenas negros (apesar
de serem maioria), escravos e/ou africanos na prática da “capoeiragem”. Nas rodas
estariam presentes diversos grupos de pessoas que compreendiam portugueses e
brasileiros de diversas regiões, que partiam em busca de oportunidades de emprego
na Capital do Império, com destaque para os nascidos na Bahia e, especialmente,
em Salvador. 37
O artigo ainda explica que os capoeiras, juntamente com as prostitutas, assaltantes,
mendigos e ladrões compunham os mais perigosos membros da população do Rio
de Janeiro e eram constantemente presos; contudo, devido às freqüentes ligações
35
DANTAS, Beatriz Góis, op. Cit., p. 165-166. 36
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro
da belle èpoque.Campinas-SP: Ed. UNICAMP, 2001 p. 66. 37
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A Capoeiragem baiana na Corte Imperial (1863 – 1890). In Revista Afro-Ásia n. 21-22 (1998-1999). Disponível em http://www.afroasia.ufba.br/edicao.php?codEd=38. Sobre a prática de Capoeira na Corte durante o século XIX, ver também, do mesmo autor, A Capoeira Escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808 – 1850). Campinas-SP, Unicamp, 2004.
31
com políticos e pessoas influentes, eram soltos rapidamente.38 Apesar de ainda não
figurar como crime no Código Criminal do Império, fato que só se concretizará com a
reforma deste código em 1890, a prática da capoeira era potencialmente subversiva
a ponto de existir uma vigilância especial sobre ela. Havia prisões sem maiores
justificativas além do fato de os “criminosos” serem “capoeiras” ou vir associadas ao
motivo de “desordem”, o que, conforme Soares, poderia ser um indicativo de ações
mais violentas, que, consequentemente, seriam punidas com mais severidade.
Quando à capoeira se associava a “vadiagem”, a falta de um trabalho plenamente
reconhecido era considerado ainda mais perigoso, tornando as prisões ainda mais
arbitrárias. O artigo traz uma tabela mostrando que mais da metade dos baianos
presos na Corte (cerca de 52%) tinham como único motivo a prática da capoeira.39
Myrian Sepúlveda dos Santos, ao investigar duas tentativas de fundação da Colônia
Correcional de Dois Rios, na Ilha Grande, também no Rio de Janeiro, durante os
primeiros anos da era republicana, aponta o estabelecimento de leis autorizadas
pelo então Presidente, General Floriano Peixoto, com o intuito de “corrigir”, através
das prisões e do trabalho, os “ébrios, vadios e capoeiras.” Assim como outros
autores já citados até aqui, Myrian Santos também acusa o Estado por práticas
violentas e excludentes, mesmo que pautadas sobre um discurso liberal e
democrático, influenciado pelas grandes repúblicas independentes mundiais da
época. Santos compreende que tais iniciativas estavam vinculadas ao ideal de
modernização tão em voga no país na época e sobre o qual abordaremos mais
adiante. 40
Falando sobre a Capoeira na Bahia, podemos destacar, por exemplo, os trabalhos
de Antônio Liberac Cardoso Simões Pires, Josivaldo Pires de Oliveira e Luiz
Augusto Pinheiro Leal, e Adriana Albert Dias.41 Antônio Liberac Pires analisa a
38
Ibidem, p. 148. 39
Ibidem, p. 164. 40
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. A prisão dos ébrios, capoeiras e vagabundos no início da Era Republicana. Disponível em: http://www.revistatopoi.org.pdf 41
OLIVEIRA, Josivaldo Pires; LEAL, Luiz Augusto Pinheiro. Capoeira, Identidade e Gênero. Ensaios sobre a história social da Capoeira no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2009; PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões. A Capoeira na Bahia de Todos os Santos. Um estudo sobre cultura e classes trabalhadoras (1890 – 1937). Tocantins/Goiânia-GO: NEAB/Grafset, 2004; DIAS, Adriana Albert. A Malandragem Mandinga: O cotidiano dos capoeiras em Salvador na República Velha (1910-1925). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2004. .
32
prática da Capoeira oferecendo uma possibilidade distinta dos estudos mais comuns
sobre o tema, na medida em que se preocupa com a Bahia das primeiras décadas
da República, enquanto vários outros estudos que lhe são contemporâneos
priorizaram o Rio de Janeiro. Resultante de sua tese de doutorado pela Unicamp, A
Capoeira na Bahia de Todos os Santos é uma obra que estuda minuciosamente esta
prática, buscando relacioná-la ao mundo do trabalho, na medida em que o autor
constatou que grande parte dos “capoeiras”, como eram chamados, eram oriundos
das classes trabalhadoras, sobretudo por trabalhadores do cais do porto,
estivadores, carregadores, vendedores de rua, entre outros.42 A obra é respaldada
por um ampla documentação, incluindo um grande número de processos crime
envolvendo praticantes da Capoeira, jornais que denunciavam tais fatos, listas de
Mestres de Capoeira contendo os apelidos e ocupações dos diversos grupos ou
“maltas” etc. Estas informações nos foram muito úteis para a localização destes
sujeitos, uma vez que nem sempre isso aparece nos documentos.
O livro de Josivaldo Pires de Oliveira e Luiz Augusto Pinheiro Leal, Capoeira,
Identidade e Gênero, oferece uma nova possibilidade de se pensar o ensino de
História nas escolas, ao mesmo tempo em que é bastante pertinente aos leitores
das mais variadas áreas do conhecimento. A obra refaz o percurso que levou a
Capoeira a passar de atividade criminosa a patrimônio cultural do Brasil;43 traz à
tona os personagens da Capoeira nas diversas obras de literatura brasileira, sem
perder de vista as questões de gênero, quando enfoca a presença significativa das
mulheres em uma atividade vista como eminentemente masculina; e ainda
transcreve os artigos que condenavam a prática da Capoeira, constantes do Código
Penal de 1890 (que discutiremos com mais detalhes no capítulo seguinte deste
texto). Estes anexos que encerram o livro nos fazem perceber o quanto as leis são
subjetivas, apesar de todo o grau de objetividade que as mesmas procuram passar,
e dependem do interesse e da mentalidade das pessoas que as fazem e as
interpretam. Josivaldo de Oliveira também defendeu sua dissertação de Mestrado na
Universidade Federal da Bahia falando sobre o tema. Seu texto intitula-se Pelas ruas
42
PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões, op. Cit., p. 25. 43
No dia 15 de julho de 2008, o IPHAN − Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, reconheceu a Capoeira como Patrimônio Cultural Brasileiro.
33
da Bahia: Criminalidade e poder no universo dos Capoeiras na Salvador republicana
(1912-1937).44
No mesmo ano e pela mesma universidade, Adriana Albert Dias dissertou sobre a
questão com o texto A Malandragem Mandinga: O cotidiano dos capoeiras em
Salvador na República Velha (1910-1925).45 Dias analisa o cotidiano dos capoeiras,
mostrando o quanto esta prática estava presente em diversos aspectos de sua vida,
inclusive na resolução de rixas pessoais. A circulação da Capoeira pelo mundo da
“desordem” também é discutido pela autora. Sua pesquisa utiliza uma série de fotos,
gráficos e tabelas contendo informações sobre a incidência e os locais mais
frequentes, o perfil dos praticantes e sua ocupação; um trabalho de pesquisa
minucioso realizado em diversas instituições, como o Arquivo Público do Estado da
Bahia, o Arquivo da Marinha e os Arquivos Municipais de Salvador e Santo Amaro
da Purificação. Como se pode perceber, apesar dos excelentes trabalhos
produzidos, a historiografia sobre o assunto é relativamente nova e não é tão vasta,
o que nos incentiva a trilhar por este caminho e contribuir para uma maior
visibilidade das diversas manifestações culturais pertencentes às populações negras
no início da República.
1.2. ÁGUAS, FLORES E PERFUMES: INCOMPATIBILIDADES ENTRE O
PROJETO MODERNIZADOR E O ESPAÇO DA RUA NO COTIDIANO E NAS
FESTAS POPULARES.
As ideias dos cientistas europeus a respeito de uma suposta inferioridade dos
habitantes de zonas tropicais em relação ao Velho Continente, ao serem transpostas
para o Brasil, em fins do século XIX e começo do século XX, alcançaram um status
de verdade plena e passaram a justificar o “atraso” brasileiro diante da Europa.46
Estas teorias tinham o intuito de “alavancar” o país em direção ao progresso e para
isso seria preciso tirar das ruas e dos olhos dos passantes as lembranças amargas
44 OLIVIERA, Josivaldo Pires de. Pelas ruas da Bahia:Criminalidade e poder no universo dos
Capoeiras na Salvador republicana (1912-1937). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2004. 45 DIAS, Adriana Albert. Op. cit. 46
Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças. Cientistas, instituições e pensamento racial no Brasil: 1870 – 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
34
do passado colonial, representadas pela figura incômoda do negro e por atividades
condenáveis ou de baixo prestígio social. A rua era vista como um espaço
desprestigiado, “por encarnar a metáfora de todos os vícios”, transformando-se no
lugar dos excluídos, frequentada por mendigos, prostitutas, escravos de ganho,
libertos, pobres, ladrões e vadios, que faziam dos seus becos e vielas um constante
caso de polícia.47 Estes grupos sociais foram, com o tempo, criando seus próprios
mecanismos de sobrevivência e de hierarquia no espaço urbano, buscando tirar
vantagem de determinadas situações e – acima de tudo – sobreviver.
Pensando acerca dos conceitos de território e territorialidade de Creusa Santos Lage
e Valério Gomes Machado para tentar compreender o quanto poderia ser incômoda
a presença de grupos sociais pouco desejáveis no espaço público de Salvador,
verificamos que o território é definido e fundamentado basicamente a partir das
relações de poder desenvolvidas neste espaço.48 Neste sentido, a ocupação do
espaço urbano pode ser considerada fundamental para a construção de uma
identidade própria, à medida que “um grupo não pode ser mais compreendido sem o
seu território, no sentido de que a identidade sócio-cultural das pessoas estaria
irremediavelmente ligada aos atributos do espaço concreto (natureza, patrimônio
arquitetônico, paisagem)”. A territorialidade, por sua vez, segundo os mesmos
autores, pode ser compreendida como “uma forma espacial de comportamento
social e a intenção de indivíduos, ou grupos, de produzir, influenciar ou controlar
pessoas”, utilizando para tal a delimitação e defesa de um espaço geográfico
determinado. Assim, a territorialidade se constitui através da construção de relações
de poder em determinado espaço, incluindo as atividades que as pessoas
realizam.49
Para Rogério Haesbaert, a questão do “território” é polissêmica e dentre as diversas
definições que este possa ter, o mesmo pode ser um espaço delimitado e controlado
onde há o exercício de um determinado poder, que pode ou não ser realizado pelo
Estado, definição que se aproxima da apresentada anteriormente, de Lage e
47
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Desafricanizar as Ruas: Elites letradas, mulheres pobres e cultura popular em Salvador (1890-1937). In Revista Afro - Ásia, 21-22,1998-1999, p. 239. Disponível em: http://www.afroasia.ufba.br/edicao.php?codEd=38 48
LAGE Creusa Santos; MACHADO, Valério Gomes. “Territorialidade Cíclica no Centro Tradicional de Salvador”. In Anais do 4º Congresso de História da Bahia. Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia; Fundação Gregório de Matos. Salvador, 2001, p. 657. 49
Ibidem.
35
Machado. Contudo, a vertente discutida por Haesbaert que mais interessa a este
estudo no que diz respeito ao território é a cultural, também chamada de simbólico-
cultural. O autor afirma que tal vertente prioriza uma dimensão mais subjetiva na
compreensão do território, no qual este espaço é visto como “o produto da
apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido”.50
Tais afirmações são válidas se considerarmos que a rua dizia muito sobre a
composição étnico-cultural da cidade de Salvador dos séculos XIX e XX.
Freqüentadas por mendigos, escravos, libertos, pobres e marginais, as ruas eram
consideradas “símbolos de degradação e desordem”. As mulheres negras das
classes mais populares se constituíam no maior símbolo desta “velha Bahia”, ainda
com resquícios coloniais, e eram protagonistas, freqüentemente, de notícias
jornalísticas que criticavam sua conduta, ao relatar sobre “bate-bocas” e discussões
banais que aquelas mulheres travavam no meio da rua, “atentando” diretamente
contra a moral da sociedade.51
Os poderes públicos tentaram coibir, de todas as maneiras, as manifestações
culturais destas pessoas, de acabar com os sambas de roda, a Capoeira, o
Candomblé e sua permanência excessiva no espaço urbano, o que remetia
diretamente ao período escravocrata. Diversas cidades brasileiras já tinham
atentado para isso, e na tentativa de se adequar ao modelo que se instaurava,
buscaram demolir antigas construções e em seu lugar construir novas avenidas,
iluminar ruas e reordenar o espaço público, enquanto a Bahia era acusada pelos
reformistas (os visitantes e as elites locais) de “velha” e “arcaica” por preservar
práticas culturais que lhe eram peculiares.52 J.J. Seabra, governador do Estado da
Bahia entre 1912 e 1916 tentou várias vezes durante o seu mandato implementar
reformas urbanísticas em Salvador, mas seus projetos foram constantemente
revisados e interrompidos por falta de recursos financeiros.53
Uma medida que a polícia tomou bem antes, em 1878, reflete a ambigüidade das
tentativas de moralização de Salvador. A partir deste ano, ficou proibido o entrudo, 50
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à
multiterritorialidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 40. 51
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Quem pariu e bateu, que balance! Mundos femininos,
maternidade e pobreza. Salvador, 1890-1940. Salvador: EDUFBA, 2003 p. 94. 52
ALBUQUERQUE, Wlamyra. Algazarra nas Ruas: Comemorações da independência na Bahia
(1889-1923). Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 1999, p. 23. 53
Ibidem.
36
festa popular que era considerada promíscua e subversiva, e instituiu-se o carnaval
à moda européia, através de bailes com a utilização de máscaras e roupas do
Teatro São João e do Teatro Polytheama Bahiano, - locais onde estes aconteciam, -
uma festa vista como familiar e ordeira.54 As roupas utilizadas pelas mulheres que
trabalhavam nas ruas também sofreram uma dura repressão das autoridades
policiais, que proibiam estes trajes que deixavam seus seios freqüentemente
expostos, expondo-se seminuas e escandalizando as famílias que passavam por
estes locais.55
Conforme Peter Fry, Sérgio Carrara e Ana Luiza Martins-Costa, o entrudo era uma
festa de origem portuguesa que até meados do século XIX acontecia de maneira
similar em todo o Brasil, inclusive na Bahia, sendo realizado no período em que
atualmente acontece o carnaval, ou seja, no período antecedente à quaresma, entre
o domingo e a quarta-feira de cinzas. Como características principais dos festejos,
havia uma “guerra” de farinha, água e perfumes, podendo também haver urina,
como sugerem os autores. Funcionava também como uma espécie de “dia da
mentira”, no qual “todas as peças e brincadeiras eram feitas a conhecidos e
visitantes”. De acordo com este estudo, cada grupo curtia à sua maneira. Os negros
interagiam apenas com os negros e os brancos com os brancos, apesar de
acontecer com freqüência os “ataques” de brancos a negros, mas nunca o contrário,
o que seria considerado, em qualquer hipótese e sob qualquer alegação, um caso
de polícia.56
O entrudo chocava por ser uma festa em que as excentricidades da cidade se
potencializavam. Criticava-se com bom-humor esse ideal de moralidade exagerado
e forçoso que a elite tentava imprimir arbitrariamente na Salvador de fins do século
XIX e começo do XX. Para tanto, os homens se vestiam de mulher, geralmente
aquelas com perfil marginalizado pela classe detentora do poder, como prostitutas e
vendedoras de comida, por exemplo. As mulheres eram tema recorrente no entrudo,
e participavam ativamente das festividades, causando um impacto simbólico muito
grande. Ocupando os espaços de poder na rua, geralmente destinados aos homens
54
QUERINO, Manuel, 1946, p. 145 apud FERREIRA FILHO Alberto Heráclito, op. cit., p. 96. 55
Ibidem. 56
Para maiores informações sobre o carnaval da Bahia, ver FRY, P.; CARRARA, S.; MARTINS-COSTA, A.L. “Negros e brancos no carnaval da Velha República”. In REIS, João José (org.) Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 238-244.
37
brancos, elas mostravam, com certo orgulho, que não se enquadravam naquele
modelo católico e elitista que restringia a mulher apenas ao “seio do lar”.57 O que
tornava o entrudo perigoso para a elite seria o fato de que as classes populares
demonstravam, com estas paródias e ridicularizações, que tinham consciência das
discrepâncias entre as classes na cidade, bem como das suas diferenças de
valores. Na visão de Alberto Heráclito Ferreira Filho,
A exibição de toda uma humanidade „degenerada‟, aos olhos da elite deixava clara a tensão dos vários mundos que habitavam a cidade, arrefecida, em outras épocas do ano, pela segregação dos espaços sociais, pelos padrões morais hegemônicos e pelas ações enérgicas
das autoridades.58
Outro motivo pelo qual o entrudo deveria acabar tem relação com o momento em
que o país, e mais especificamente Salvador, estava passando. Para que o projeto
“civilizador” e “modernizador” surtisse efeito, não deveria mais haver ruas sujas,
movimentos barulhentos de negros festejando em praça pública, além de “senhores
e senhoras molhados e decompostos”.59 Além disso, continuam os autores, as
festas do entrudo acabavam por colocar em um mesmo espaço, brancos e negros
que se divertiam sem o mesmo grau hierárquico que permeava suas relações no
decorrer do ano.60 Desta maneira, os préstitos, cortejos organizados pelos grandes
clubes carnavalescos, suplantaram o entrudo, visto como uma festa “grosseira”
pelos jornais e pelas classes médias mais “progressistas” da cidade. Isso não
impediu, porém, que as classes menos abastadas se organizassem para o carnaval
mesmo fora dos préstitos e dos grandes clubes, seja através dos cordões, dos
blocos ou das mascaradas avulsas, o que provocou reações dos poderes públicos.
A Secretaria de Polícia proibiu, em 1905, o uso de máscaras e o desfile de
“maltrapilhos” após as 18h, porque o fim do entrudo não significou necessariamente
o fim da subversão.61 As autoridades passaram a exercer um rígido controle sobre
as sociedades carnavalescas que desfilavam na avenida. Seus temas precisavam
passar por uma averiguação e posterior liberação da polícia. Os batuques que
57
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito, op.cit. p. 97. 58
Ibidem, p. 98. 59
FRY, P.; CARRARA, S.; MARTINS-COSTA, A. L. Ibidem, p. 245 60
Ibidem 61
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Op. cit.
38
faziam referência à África ou alguma alusão às condições de vida dos negros
também foram postos na ilegalidade, como uma medida “jurídico-policial e
ideológica” de repressão aos instrumentos culturais que pudessem de alguma forma
contribuir para a construção de uma identidade negra, bem como sua auto-
afirmação.62 Estas medidas podem ser interpretadas como tentativas de uma elite
social, política e econômica majoritariamente branca em se apropriar das
comemorações da cidade e do espaço urbano como um todo. Substituir a presença
“subversiva e imoral” do negro pela “nova ordem” que se buscava realizar, ainda que
sem o devido respaldo legal, já que a primeira Constituição da República (que
passou a vigorar em 1891), de caráter teoricamente liberal, não previa mais
distinções de tratamento entre as pessoas, considerando que não havia mais
“senhores” nem “escravos”, o que descartava a possibilidade de uma legislação
específica para determinados grupos da sociedade.63 Embora o texto da Carta
Magna não fizesse distinções raciais ou sociais explícitas, na prática, a proibição aos
“batuques” se aplicaria diretamente sobre as populações mais pobres de Salvador, −
de maioria negra, convém sempre lembrar − grupos sociais que mais utilizavam
esta maneira de se manifestar, como verificaremos no próximo capítulo deste
trabalho.
As manifestações de rua eram sempre a grande oportunidade das classes mais
abastadas ostentarem seu poderio perante as que não tinham os mesmos recursos,
assim como do Estado, da Igreja e das autoridades baianas de tentar comprovar
toda a sua “civilidade” e “progresso”. Além das reformas nas estruturas físicas da
cidade, uma mudança nos frequentadores do espaço público precisava ser
empreendida. As ruas sujas e as pretas “vendeiras” ocupando-as eram duas das
principais reminiscências da Bahia pré-republicana que atrapalhavam os planos
progressistas almejados pelas classes médias urbanas. Wlamyra Albuquerque faz
uma discussão bastante significativa a respeito das festas populares do período
entre o século XIX e XX (com exceção do carnaval) e nos mostra algumas das
tentativas de estabelecimento de uma “nova ordem cultural” na Bahia. 64
62
Ibidem 63
Op. Cit., 258. 64
ALBUQUERQUE, Wlamyra. “Santos, deuses e heróis nas ruas da Bahia: identidade cultural na Primeira República” In Revista Afro-Ásia, n. 18, 1996. Disponível em: http://www.afroasia.ufba.br/edicao.php?codEd=66
39
Começando pela religião, traço peculiar da cidade de Salvador, onde o Cristianismo
divide espaço com outras crenças, sobretudo as de origem afro-brasileira, em sua
grande parte motivada pelo sincretismo imposto pela colonização, a autora lembra o
processo de “romanização” encabeçado pela Igreja Católica em todo o Brasil, com o
intuito de retomar os valores cristãos “originais” e acabar com sua perversão,
“purificando-o”. O culto excessivo aos santos, que praticamente os dava um status
de “divindade” não era muito bem aceito pelo alto clero. Além disso, a proximidade
que havia entre os cultos eclesiásticos e o Candomblé, entre outras manifestações
“profanas” era bastante evidente. Edilece Souza Couto ressalta que embora as
procissões tivessem um cunho religioso, nem todos os fiéis aceitavam integralmente
as determinações da Igreja, resultando, muitas vezes, em figuras paramentadas e
bandas de música acompanhando os cortejos.65 As semelhanças continuam nos
alimentos servidos após o foguetório que encerrava os festejos. As irmandades
serviam para autoridades e convidados as mais variadas iguarias características da
cozinha afro-baiana e quem não estivesse incluso nesta lista poderia comprar nas
barracas que circundavam as Igrejas e os locais das festas.66 Interessante é
perceber que várias das refeições servidas e consumidas pela cúpula eclesiástica
também continham alimentos rituais dos orixás. Couto continua, afirmando que até
meados do século XX, as bebidas servidas durantes os festejos católicos eram
rigorosamente iguais às do Candomblé: Aluá, gengibirra, maduro e parati.67 Outro
hábito bastante questionável pelo Clero e muito comum em várias partes do Brasil
imperial, sobretudo na Bahia, era o costume dos santos deixarem seus altares para
serem cultuados nas ruas ou se dirigirem a outras Igrejas. Nestas circunstâncias, as
imagens recebiam todo o tipo de adornos que geralmente eram bastante suntuosos,
extravagantes e esteticamente muito mais elaborados. Albuquerque revela que essa
exteriorização da fé cristã se constituiu em uma das características mais marcantes
do Catolicismo na Bahia.68 As festas que mesclavam o lado religioso e o lado
65
COUTO, Edilece Souza. “Festejar os santos em Salvador: tentativas de reforma e civilização”. In BELLINI, Lígia; SOUZA, Evergton Sales; SAMPAIO, Gabriela dos Reis (orgs.). Formas de Crer:
Ensaios de história religiosa do mundo luso-afro-brasileiro, séculos XIV-XXI. Salvador: EDUFBA: Corrupio, 2006, p. 275-276. 66
Ibidem, p. 276-277. 67
A autora explica que as três primeiras, consumidas tanto nas festas católicas, quanto no Candomblé eram compostas de uma mistura fermentada de fubá de milho, gengibre, abacaxi e rapadura. E parati, usada frequentemente nos cultos ao orixá Exu, é uma espécie de cachaça. Ibidem, p. 277-278. 68
ALBUQUERQUE, Wlamyra. Op. cit, p. 109.
40
profano da fé, em alta durante o período colonial e em boa parte do Império,
encontraram alguns ecos na República, embora estivessem diminuindo sua
intensidade nos anos republicanos.
Uma das medidas “romanizantes” de maior impacto ocorreu poucas semanas após
a Proclamação da República, a 9 de dezembro de 1889, quando o arcebispo d. Luís
Antonio dos Santos, por intermédio de uma portaria, proibia a tradicional lavagem da
Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, fato que não impediu que os fieis se dirigissem à
Igreja na data previamente designada para as celebrações em janeiro do ano
seguinte, sendo surpreendidos pelas autoridades policiais que confiscaram vasos,
vassouras, violas, entre outros itens e afirmaram que naquele dia não haveria
lavagem.69 Desde aquela data até hoje, a tradicional “Lavagem do Bonfim”, como é
popularmente conhecido um dos principais eventos religiosos da Bahia, acontece
apenas nas escadarias, sem que as fiéis vestidas de baianas possam entrar na
Igreja com suas águas, flores e perfumes. Um questionamento levantado por
Wlamyra Albuquerque e que é totalmente pertinente, diz respeito aos elementos
motivadores desta proibição em especial: “não estariam as aspirações romanizantes
de d. Luís Antonio sendo reforçadas pela ordem republicana?”70 Considerando que o
principal argumento dos “novos tempos” seria o de que as “velhas” instituições,
símbolos de um passado “atrasado”, deveriam ser substituídas, a chamada
“romanização ” seria a contribuição da Igreja Católica para a modernidade. A partir
de então, não seriam mais toleradas as manifestações profanas regadas a álcool, os
batuques de negros que, sambando nas vias públicas, causavam transtornos aos
passantes, tampouco a crença sincrética do Candomblé “disputando” o
protagonismo das celebrações com os santos católicos. Os médicos e higienistas
republicanos reforçavam alertando do perigo de consumir alimentos e bebidas
alcoólicas nas ruas, hábitos bastante recorrentes nas festas públicas. Estes hábitos,
aliados ao costume de urinar ou despejar outros dejetos nas ruas eram freqüentes
no cotidiano, mas se acentuavam potencialmente nos festejos públicos.
Quando tais elementos que ofendiam a “moral” e os “bons costumes” não estavam
presentes nas festas, os jornais faziam questão de enaltecê-las, como fez o Diário
69
Ibidem. Sobre o assunto, ver também FERREIRA FILHO, Alberto H. Quem pariu e bateu, que balance! Mundos femininos, maternidade e pobreza. Salvador, 1890-1940. Salvador: EDUFBA, 2003 e QUERINO, Manoel. A Bahia de outrora. Salvador: Progresso, 1946. 70
ALBUQUERQUE, Wlamyra. Ibidem.
41
da Bahia de 13 de janeiro de 1903, ao falar sobre as festas de Reis: “Mais uma vez
a população da capital deu testemunho eloquente do seu amor à ordem, sábado e
domingo passados, nas festas de Reis”.71 Ao buscarmos compreender o sentido e a
finalidade da utilização pelo jornal das palavras “eloquente” e “ordem” na mesma
frase, analisando o contexto histórico em que a mesma está inserida, isto nos
possibilita pensar em como esta festa aconteceu. A matéria não entrou em maiores
detalhes, porém, como a idéia de “ordem” estava profundamente enraizada na
mentalidade das pessoas, supomos que as festas de Reis ocorreram sem
transtornos, ou melhor, sem uma presença exagerada de negros com batuques e
bebedeiras. O “progresso” também começa a se fazer presente nas festas de rua,
principalmente com o advento de dois dos maiores símbolos da modernidade no
início do século XX: o automóvel e a luz elétrica. No caso do automóvel, este servia
como um importante sinal de status, que diferenciava os mais ricos – geralmente
brancos – do restante da população. O espetáculo das novas luzes elétricas enchia
os olhos dos fiéis e se tornou um atrativo a mais para que a adesão às festividades
fosse maior, em uma cidade atormentada frequentemente pela iluminação pública
deplorável.
Não podemos esquecer o Dois de Julho, a festa de Independência da Bahia,
reconhecida por muitos baianos como a “verdadeira” independência do Brasil, uma
vez que a mesma aconteceu no ano seguinte à emancipação política formal,
eternizada na figura do Sete de Setembro. O Dois de Julho era um momento em que
os sentimentos de nacionalismo se exacerbavam, assim como, paralelamente,
afloravam os sentimentos de “baianidade”. O evento também tinha diversos
significados para a população heterogênea da Bahia do século XIX. As
discordâncias começavam na dificuldade que havia em inserir a mobilização popular
que ocorreu em 2 de julho de 1823, ao expulsar as tropas portuguesas do solo
baiano, configurando-se, assim no que ficou marcado como ato simbólico da
emancipação total do país frente ao jugo colonial, nas solenidades cívicas de um
“estado monárquico que preferia comemorar os atos da família real”.72 Além disso, a
questão da identidade nacional frequentemente entrava em conflito com a identidade
71
IGHB – Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (doravante, apenas IGHB). “As Festas de reis”. Diário da Bahia, 13 jan. 1903. 72
KRAAY, Hendrik. Entre o Brasil e a Bahia: As comemorações do Dois de Julho em Salvador, Século XIX. In Revista Afro-Ásia, n. 23, 2000, p. 52. Disponível em: http://www.afroasia.ufba.br/edicao.php?codEd=37
42
local que os baianos haviam construído em função desta data e de tudo o que ela
significava, assim como as hierarquias sociais existentes na cidade, mesmo com o
apelo dos organizadores dos festejos oficiais que praticamente suplicavam que
houvesse harmonia nesta data e que todas essas diferenças fossem esquecidas em
prol das comemorações, afinal, todos seriam baianos (ou brasileiros).73 Stuart Hall
nos explica a respeito da questão da identidade, considerando-a múltipla, na qual
podemos nos afastar ou nos aproximar de determinado grupo social, dependendo do
momento e das características que prevalecerem, e que compreendem um processo
de auto-afirmação em oposição ao outro, àquele que não podemos ser, por
exemplo: sabemos o que é a “noite” porque ela não é o “dia”. 74
Assim, a identidade
é pautada sobre as semelhanças e diferenças individuais e coletivas, o que
possibilita que grupos de pessoas aproximem-se ou afastem-se, de acordo com sua
identificação.
Hall disserta ainda sobre as culturas nacionais enquanto comunidades imaginadas,
já que, ao afirmarmos nossa nacionalidade, o fazemos metaforicamente, pois a
“brasilidade”, por exemplo, não está impressa de forma literal em nossos genes,
embora pensemos nela como se esta pertencesse à nossa natureza essencial.
Assim, mais do que uma entidade política, a nação é um discurso, uma maneira de
criar sentidos que “influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção
que temos de nós mesmos”.75 O desejo das autoridades baianas pela união do
povo, mesmo com todas as suas diferenças, ao menos nos eventos do Dois de
Julho, podem ser justificadas por Hall, à medida que o autor afirma haver nas
culturas nacionais um impulso por unificação: “Não importa quão diferentes seus
membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional
busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como
pertencendo à mesma e grande família nacional”.76
Mas unificar os habitantes da Bahia, com todas as suas diferenças, sob o pavilhão
nacional não seria uma tarefa muito fácil. As estimativas de Hendrik Kraay apontam
uma população escrava em torno de 40% de 65.500 pessoas em 1835,
predominantemente africanas, diminuindo de maneira brusca depois de 1850, com a
73
Ibidem, p. 58. 74
Cf. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 9ª Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. 75
Ibidem, p. 50. 76
Ibidem, p. 59.
43
extinção do tráfico e, à época da abolição, os números indicam uma superioridade
considerável dos livres não-brancos em relação à elite branca, entre os habitantes
das áreas urbanas de Salvador, elite esta que também não possuía um sentimento
de pertença em relação à capital baiana, pois se considerava “legítima”
representante da “civilização” européia, em uma cidade onde a cultura afro-brasileira
se manifestava em quase todos os lugares públicos.77
Nesta festa, como não poderia deixar de ser, também havia certa resistência à
participação de negros e pobres, bem como uma rejeição sistemática à incorporação
de elementos africanos ou afro-brasileiros às comemorações. Isso pode ser
percebido por matérias publicadas pelo jornal O Alabama, em meados da década de
1860, criticando a presença vergonhosa de “moleques descalços e africanos
esmolambados” conduzindo os carros patrióticos de volta à Lapinha e cobrando das
autoridades que acabassem com os batuques no Terreiro de Jesus, local onde a
festa se concentrava.78 Apenas membros da elite baiana eram almejados nas
cerimônias oficiais, desfilando em seus cavalos e carruagens e disputando o estreito
espaço da rua com os pedestres, o que demarcava os espaços hierárquicos
existentes nos festejos, além de ser uma grande exibição de sua condição social.
Apesar de aparentemente ser a mesma festa – a celebração da independência da
Bahia – ela possuía significados distintos para os grupos presentes. Enquanto para
as classes políticas imperiais e eclesiásticas, a data marcava o fim da dominação
portuguesa, para as classes populares, o Dois de Julho era o momento de
extravasar todo o sentimento de antilusitanismo e subversão da ordem, com quebra-
quebras e protestos contra os altos preços cobrados pelos armazéns de
portugueses. Além disso, era o momento em que as diversões e manifestações
populares aconteciam com mais entusiasmo e liberdade, como os sambas-de-roda,
os batuques e a apropriação religiosa da figura dos Caboclos pelo Candomblé, como
divindades genuinamente brasileiras.79 O dia de culto aos caboclos era (e ainda é)
justamente no Dois de Julho, e os fiéis os reverenciavam com oferendas aos seus
pés, posteriormente acompanhando o cortejo cívico vestidos de índios ou com
roupas típicas do povo-de-santo – como são denominados os adeptos do
Candomblé −, não sem causar o espanto de uns e a repulsa de outros que achavam
77
KRAAY, Hendrik. Op. Cit., p. 58. 78
Ibidem, p. 62-63. 79
ALBUQUERQUE, Wlamyra. Op. Cit, p. 116.
44
“destoantes” os batuques e as expressões espontâneas das populações
majoritariamente negras com a idéia de civilidade que um evento dessa magnitude
procurava demonstrar.
1.3. POBREZA, MENDICÂNCIA E VADIAGEM NA CAPITAL BAIANA
Durante o século XIX, Salvador, apesar da importância política e econômica que
ainda possuía no contexto nacional, ainda era uma cidade excessivamente pobre.
Os desníveis sociais e a concentração de renda nas mãos de poucas pessoas
emergiam de forma gritante. Kátia Mattoso estima que aproximadamente 90% dos
soteropolitanos viviam no “limiar da pobreza”.80 A autora indica que não havia uma
separação rígida entre os “bairros nobres” e os “bairros populares”, o que a mesma
caracterizou como uma “completa promiscuidade social”.81 Apesar das áreas
residenciais de ricos e pobres se localizarem praticamente no mesmo espaço
urbano, o tipo das casas e as condições de moradia eram significativamente
distintas.
As ruas também eram muito sujas e nelas eram encontrados todo o tipo de dejetos,
desde águas do serviço doméstico, lixo e até animais mortos que apodreciam nas
vias públicas.82 Os milhares de pobres que freqüentavam as ruas eram
constantemente alvos da polícia, que os perseguia por “suspeita de vadiagem”. O
Governo do Estado imaginou que a solução seria empregá-los para tirá-los da
ociosidade, contudo, em um país em que a escravidão ainda vigorava, aliado ao fato
de que havia um preconceito contra os trabalhos manuais, considerados “indignos”,
“coisas de escravo” ou “coisas de negro”, estes fatores tiveram grande
responsabilidade pelo excessivo número de desocupados em Salvador.83 Tal
raciocínio se explica pela imbricação que havia entre cor e condição social na Bahia
oitocentista. Os membros da elite eram ou se consideravam brancos, apesar de os
brancos portugueses ou de outras nacionalidades europeias que aqui residiam os
80
MATTOSO, Kátia de Queirós. Bahia, Século XIX: Uma Província no Império. Rio de Janeiro: Nova
fronteira, 1992. 81
Ibidem, p. 440. 82
DAVID, Onildo Reis. O Inimigo Invisível: epidemia na Bahia no século XIX. Salvador: EDUFBA/Sara Letras, 1996, p. 28. 83
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 38.
45
considerarem “inferiores” aos que vinham diretamente do Velho Continente. Os
pardos e cabras (termo usado para designar as pessoas cuja cor da pele variava
entre o preto e o pardo) também sofriam discriminações, mas nada que se
comparasse ao racismo sofrido pelos pretos brasileiros e sobretudo os africanos.
Exigia-se deste grupo de pessoas uma postura de submissão, independente de
serem escravos, libertos ou livres, e isso nem sempre era possível.84
Além dos pedintes que vagavam pelas ruas da capital baiana, havia também outros
pobres, mais discretos, que sobreviviam morando de favor em casas de família ou
trabalhando de ambulantes, serventes ou diaristas.85 Havia diversas categorias
intermediárias entre os senhores e os escravos, um contingente expressivo de
pobres livres e libertos, que vinha crescendo muito desde meados do século XVIII e
que chegou a quase 88% no censo de 1872, sendo que destes cerca de 60% era de
negros e mulatos.86
A pobreza em Salvador se apresentava das mais diversas formas e matizes. Por
mais que as famílias fossem pobres, a posse de um escravo, de alguns bens ou de
um imóvel, mesmo modesto, as situava em um patamar melhor que as demais
famílias que não possuíssem nem isso. Fraga Filho infere que muitas pessoas
tinham nos seus poucos escravos toda a possibilidade de obtenção de renda, o que
colocava os cativos em situação ainda mais difícil, uma vez que, além de conseguir
o suficiente para seu sustento, ainda precisavam garantir a subsistência de seus
pobres senhores. Se existiam dificuldades durante toda a vida, as coisas não
necessariamente seriam melhores para os mais pobres na hora da morte. Uma
prática recorrente em Salvador era a ação das autoridades de remover cadáveres de
crianças e idosos que eram abandonados na frente das igrejas por familiares que
não possuíam os recursos mínimos para realizar um enterro decente para seus
entes queridos.87 Contudo, o contrário também acontecia, pelo que se pode
comprovar por um ofício indignado do provedor do Hospital Santa Isabel, Dr.
Theodoro Gomes, a respeito do freqüente hábito da polícia de abandonar corpos de
indigentes, assim como pessoas embriagadas na porta do referido hospital, o que
84
Ibidem, p. 39. 85
FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec / Salvador: EDUFBA, 1996, p. 22. 86
REIS, João José. Op. cit., p. 34. 87
FRAGA FILHO op. cit, p. 28.
46
motivou o envio da correspondência ao chefe de polícia, conforme transcrito, na
íntegra, a seguir:
SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA BAHIA
Em 18 de Novembro de 1913
Nº 302
Ilmº Sr. Dr. Chefe de Polícia
Acabo de ter conhecimento de que autoridades policiais, vossas subalternas, e agentes da força pública do Estado costumam enviar para o Hospital Santa Isabel cadáveres de indigentes e indivíduos encontrados nas ruas em estado de embriaguez.
Contra este procedimento injustificável das autoridades distritais e agentes sob sua chefia, venho justamente protestar e pedir-vos providencias urgentes e terminantes, para que tais fatos não se reproduzam.
O Hospital Santa Isabel não é obrigado a receber cadáveres de indigentes, para proceder do seu enterramento, e isto mesmo já foi definitivamente resolvido entre esta provedoria e o Governo do Estado; tanto mais quanto, convém acrescentar, mantém o Estado o necrotério do “Instituto Nina Rodrigues” que, como sabeis, foi destinado especialmente a este serviço.
Relativamente aos indivíduos que são encontrados em estado de embriaguez, também não pode concordar esta provedoria com sua admissão ao Hospital, pois este é destinado ao recebimento e cura das pessoas doentes, e não de indivíduos viciados, que além de constituírem uma perturbação do silêncio e da tranquilidade, que devem reinar em uma casa desta natureza, encontrarão nas comodidades do Hospital um incentivo para o seu vício.
A propósito, tenho a acrescentar, que, não obstante tratar-se de indivíduos simplesmente embriagados, os agentes, sob as vossas ordens, quando para ali os levam e não são admitidos, costumam atirá-los sobre as calçadas do Hospital, ali deixando-os expostos á curiosidade dos transeuntes, dos quais eles mesmos, os vossos agentes, se incumbem de informar perversamente, de que se trata, no caso, de doentes que o Hospital recusa receber, procurando criar assim uma má aureola para o mesmo Hospital.
Para acabar estes abusos e inconvenientes vê-se esta provedoria na obrigação de proibir, terminantemente, d‟ora adiante, a entrada no referido Hospital de uns e outros, esperando que providenciareis, também com a mesma presteza para que vossos subordinados se eximam do procedimento, que venho impugnar, pois, não desejo ter o desprazer de continuar a ouvir dizer, em conseqüência do procedimento injusto e abusivo de vossos subordinados, que o
47
Hospital recusa receber os doentes, quando o Hospital, o que não pode e nem deve servir é de ”albergue noturno” para crápulas.
Aproveito a oportunidade para apresentar-vos os meus protestos de estima e consideração.
Deus vos guarde.
Theodoro Gomes88
Através deste documento, fica perceptível a iniciativa da polícia de promover uma
“limpeza social” nas ruas da cidade, retirando todos os indesejáveis e principais
espelhos de uma sociedade desigual, que mostravam todos os dias o quanto
existiam problemas que necessitavam de solução. Os bêbados e indigentes ficavam
em uma situação complicada, pois não eram bem quistos nas ruas, nem aceitos no
hospital − com toda justiça − uma vez que não padeciam de nenhuma doença que
pudesse ser curada pela casa de saúde. Não haveria uma justificativa plausível para
a remoção e deslocamento de cadáveres para uma instituição como o hospital,
principalmente se considerarmos que isso deveria acontecer com freqüência, a
julgar pelo tom do ofício e pela menção feita ao Instituto Médico Legal Nina
Rodrigues. E o que dizer da acusação de Theodoro Gomes à prática policial de
intimidar ou tentar estragar a reputação do Hospital Santa Isabel, alegando omissão
de socorro? A pressão policial sobre os funcionários do hospital causou uma grande
preocupação quanto à sua reputação perante a opinião pública. Se não houvesse
uma interferência de autoridades maiores como a provedoria e o chefe de polícia,
acompanhada de uma possível retratação, o fato poderia gerar uma crise na relação
entre as pessoas e a Santa Casa de Misericórdia, no que diz respeito à imagem que
a instituição procurava manter a respeito de sua filantropia.
Em uma sociedade pautada basicamente no poder de ostentação das riquezas e
dos bens materiais, apesar de todo discurso cristão sobre caridade, a pobreza era
vista como sinal de vergonha, até mesmo pelos próprios despossuídos. Os
denominados “pobres da paróquia” eram aquelas pessoas conhecidas pelos
freqüentadores das igrejas, delas recebendo auxílio, mas que não se consideravam
88
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA (doravante, APB), Secretaria de Segurança Pública. Correspondências Recebidas e Expedidas, 6649/2/1913.
48
mendigas, embora sobrevivessem de doações.89 Achavam muito degradante ter que
dividir as calçadas das igrejas com os mendigos propriamente ditos, o que nos
revela mais uma vez o quanto a aparência e a imagem de si mesmas perante a
sociedade significava para as pessoas. Ser pobre era incômodo, mas ser
reconhecido por todos enquanto tal, ser confundido com os mendigos ou
desempenhar funções consideradas “de negro” ou “de escravos”, incomodava na
mesma proporção.
A atividade da mendicância era permitida legalmente, contanto que o pedinte não
tivesse condição de trabalhar e estivesse em um local distante de asilos, hospícios e
similares, como se pode perceber pelo Capítulo XII do Código Penal de 1890,
totalmente dedicado aos “ébrios e mendigos”. Neste documento, o ato de mendigar,
tendo saúde e estando apto ao trabalho poderia ser motivo de prisão por um período
que variava de uma semana a um mês. Havia pena para aqueles que mendigassem
em locais próximos a asilos próprios para mendigos, ainda que estes não reunissem
condições físicas para trabalhar. Também era condenável fingir alguma enfermidade
para justificar a prática da mendicância, podendo ocasionar até dois meses de
prisão.90
Nestes artigos, nota-se que mendigar estando apto ao trabalho ou próximo de
instituições que possam lhe oferecer alguma assistência era considerado crime, por,
em tese, não haver uma justificativa satisfatória para o exercício desta prática, uma
vez que as condições à subsistência lhe foram dadas. A Justiça não levava em
consideração as dificuldades que alguém podia ter para conseguir um emprego, as
condições de trabalho que poderiam ser impostas, ou até mesmo o fato de o
suplicante não possuir a qualificação necessária para desempenhar determinadas
funções. Os demais artigos deste capítulo se dedicam aos ébrios, em outras
palavras, as pessoas que faziam uso excessivo de bebidas alcoólicas nas ruas,
incomodando significativamente a sociedade em geral; eles diziam o seguinte:
Art. 396. Embriagar-se por hábito, ou apresentar-se em publico em estado de embriaguez manifesta:
89
FRAGA FILHO, Walter. Op. Cit., p. 29. 90
BRASIL. Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil. Décimo
fascículo de 1 a 31 de outubro de 1890. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890 [s.p.]. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia – Fórum Ruy Barbosa (doravante, TJBA).
49
Pena - de prisão celular por quinze a trinta dias.
Art. 397. Fornecer a alguém, em lugar frequentado pelo publico,
bebidas com o fim de embriagá-lo, ou de aumentar-lhe a embriaguez:
Pena - de prisão celular por quinze a trinta dias.
Parágrafo único. Si o fato for praticado com alguma pessoa menor, ou que se ache manifestamente em estado anormal por fraqueza ou alteração da inteligência:
Pena - de prisão celular por dois a quatro meses.
Art. 398. Si o infrator for dono de casa de vender bebidas, ou substancias inebriantes:
Penas - de prisão celular por um a quatro meses e multa de 50$ a 100$000.
91
Como se pode compreender a partir destes artigos, havia uma preocupação maior
com os atos praticados em público do que propriamente com a saúde do ébrio.
Note-se que a pena é imputada a quem se apresenta em público em estado de
embriaguez (mesmo que o artigo condene também quem se embriaga por hábito),
assim como aqueles que oferecerem bebidas a alguém já alcoolizado ou para este
fim, em locais freqüentados pelo público. Assim, mais uma vez, a Justiça demonstra
seu desejo de ter no país uma sociedade “limpa”, longe da presença dos
indesejáveis, como mais um aparato legal na construção de uma “civilização
ordeira”, o primeiro grande passo para a modernização. Note-se também que havia
artigos que previam punições específicas caso a infração envolvesse menores de
idade. O artigo 395 criminalizava quem utilizasse menores sob sua responsabilidade
para pedir esmolas, assim como o parágrafo único do artigo 397 colocava a
presença de menores próximos ao infrator como uma agravante ao crime de
fornecer bebidas alcoólicas majorando a pena. Segundo Fraga Filho, as fontes
policiais costumam fazer referência a mendigos muito jovens, considerados “vadios”
ou “vagabundos” e, assim, enviados ao serviço militar, à prisão ou eram
deportados.92
O autor também traz dados estatísticos sobre a cor dos mendigos recolhidos pelo
Hospital de Caridade da Santa Casa de Misericórdia, extremamente relevantes para
91
Ibidem. 92
FRAGA FILHO, Walter. Op. Cit., p. 65.
50
este trabalho. De acordo com os seus dados, quase 60% dos mendigos eram pretos
e crioulos (os africanos e seus descendentes nascidos no Brasil, respectivamente).
Anexando o contingente não-branco (mestiços, cabras, pardos e caboclos), este
número chegava a 85%, maioria absoluta da população de necessitados, números
que expressam a difícil mobilidade social daqueles que não eram brancos. Alheia a
toda essa situação e se valendo dos “termos de bem viver”, a polícia poderia obrigar
as pessoas consideradas ociosas a conseguirem um emprego “digno” em um prazo
estipulado, podendo prender ou expulsar da freguesia aqueles que não
respeitassem esta determinação.
Por ser uma capital em franco processo de urbanização, e uma das principais
metrópoles do Brasil, Salvador atraía pessoas de diversas partes do estado e de
outras localidades do país, com seus sonhos de alcançar um status social melhor na
vida. Contudo, não havia tantos empregos disponíveis que oferecessem boa
remuneração a todos os postulantes, o que resultava em grandes desilusões. Os
pobres que se fixaram na cidade acabaram por ocupar as profissões temporárias
que tanto desprezavam ou realizando atividades ilícitas, como jogos, prostituição e
outros pequenos delitos, como furtos e roubos (quando há uso de violência). Sua
presença nas ruas era frequentemente associada à criminalidade, simplesmente por
não possuírem uma profissão de reconhecimento social ou por perambularem pelas
vias públicas até altas horas da noite. Sua prisão poderia comprometer ainda mais a
tentativa de se estabelecer de maneira legal, transformando-o em um criminoso em
potencial.
Com o passar dos anos, a visão que se tinha sobre os mendigos foi sofrendo
mudanças. Já que o modelo europeu era a principal referência para o país, algumas
ideias também foram importadas, como por exemplo, o valor moral burguês dado ao
trabalho. O governo investiu na retirada e no controle das crianças das ruas, por
esta ser considerada uma idade de maior propensão dos indivíduos à vadiagem,
além de ser um bom momento para se ensinar regras de conduta e o valor do
trabalho.93 Os mendigos e vadios não contribuíam em nada para o crescimento
econômico do país, pelo contrário, com sua ociosidade, impediam o crescimento
nacional, por não produzirem riqueza aos cofres públicos. Além disso, sob o estigma
93
Ibidem, p. 127-128.
51
de “classes perigosas”, os pobres eram relacionados a toda sorte de vícios e
duramente perseguidos pela polícia, no que Sidney Chalhoub chamou de “suspeição
generalizada”, ou seja, a prática adotada pela força policial que parte da premissa de
que estes grupos sociais seriam culpados até prova em contrário, contrariando o
Código Penal e a Constituição, que garantem a inocência do acusado até que sejam
apresentadas provas de sua culpa.94 Foram responsabilizados também pelas
grandes epidemias que assolaram a cidade durante todo o século XIX e início do
século XX, sendo considerados os “vilões da salubridade pública”, e assim
reprimidos do mesmo modo pelos médicos e higienistas.95 Para que Salvador
adquirisse um aspecto de “cidade moderna”, não adiantaria remodelar todo o seu
espaço urbano e suas edificações se não fosse solucionado o problema das
pessoas pobres que transitavam por ela, supostamente espalhando os temíveis
“miasmas” que dizimaram centenas de cidadãos, em um exercício de resistência e
sobrevivência cotidiana a todas as restrições que lhe foram impostas. A seguir,
analisaremos o pensamento sanitarista, aliado ao projeto “elitizador” do espaço
urbano soteropolitano, que responsabilizava os pobres e negros pela disseminação
de doenças contagiosas, assim como as medidas profiláticas para tentar conter as
epidemias que assolaram o estado da Bahia e outras partes do Brasil, entre o século
XIX e o início do século XX.
1.4 AS POLÍTICAS HIGIENISTAS EM UM SÉCULO DE EPIDEMIAS
A segunda metade do século XIX foi castigada por diversas epidemias em várias
partes do Brasil. As que mais causaram estragos foram a de febre amarela, a de
cólera e a de varíola, a partir da década de 1850. Estes surtos de doenças estão
intrinsecamente relacionados às condições de higiene e da pobreza que existia na
cidade. A epidemia de cólera-morbo causou pânico na população soteropolitana,
pois era totalmente estranha, inclusive para os médicos, que apenas conjecturavam
a respeito de suas causas, sintomas e formas de contágio.96 A epidemia começou
em Salvador em julho de 1855 e no mês seguinte este número havia crescido
94
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril. Cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 95
FRAGA FILHO, Walter. Op. Cit. p. 141. 96
Cf. DAVID, Onildo Reis. Op. Cit.
52
consideravelmente, coincidindo com a chegada de diversas famílias vindas de
Cachoeira e Santo Amaro, “onde o flagelo também fazia muitas vítimas”. David
afirma que houve uma escassez e consequente carestia no preço dos alimentos,
devido à morte de muitos trabalhadores que atuavam nessa área, causando grande
crise no comércio e no abastecimento da capital. O que agravou ainda mais o
quadro epidêmico da cidade foi a visão aterradora dos cadáveres, que por serem
virtuais vetores das doenças, eram abandonados nas portas das igrejas, nos
cemitérios ou até mesmo nas vias públicas.97
Como já foi mencionado anteriormente, o problema que perpassava o contágio e a
proliferação de doenças tinha a ver, sobretudo, com as questões de higiene em que
a população vivia. A pobreza, a sujeira e as péssimas condições de moradia seriam
as principais vilãs. Embora as áreas residenciais fossem ocupadas pelos mais
diversos grupos sociais, com variado poder aquisitivo, isso não implica dizer que
todos viviam nas mesmas condições. As famílias de maiores recursos econômicos
possuíam casas distintas das populações mais pobres, que, em geral, eram pouco
arejadas. Os chafarizes e fontes públicas serviam muitas vezes como depósitos de
excrementos e como tanques para lavagem de roupas, principalmente nas
localidades mais distantes do centro da cidade. Água encanada não era tão comum
neste período, então, a maioria da população se abastecia justamente através
destas fontes, chafarizes e bicas. Seu transporte se dava através de jarros ou barris
de madeira, carregados até as residências, e também havia a possibilidade de ser
vendida em carroças, com preços que variavam de acordo com a proximidade ou
distância entre a residência e a fonte.98
Michel Foucault estabelece diferenças entre o que chamamos de “saúde” e de
“salubridade”. Para o filósofo francês, estes termos não significam a mesma coisa,
pois a salubridade seria “o estado das coisas, do meio e seus elementos
constitutivos, que permitem a melhor saúde possível”.99 Em outras palavras, seria os
mecanismos de ordem material e social capazes de garantir à população a melhor
saúde possível. Saúde que seria, desta forma, as condições físicas e faculdades
mentais do indivíduo. Estes conceitos, formulados ainda no século XVIII e que foram
97
Ibidem, p. 16-17. 98
Ibidem, p. 28-31. 99
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 23ª ed. São Paulo: Graal, 2007, p. 93.
53
de grande importância para o desenvolvimento da medicina, serviram como uma das
principais bases teóricas para as medidas profiláticas que foram adotadas em
diversas partes do mundo. Daí a necessidade de se melhorar as condições de
salubridade da cidade de Salvador, ou seja, efetivar melhorias no saneamento
básico, para que as epidemias não se espalhassem.
Outra crença da população e da comunidade científica que por muito tempo foi
considerada “verdadeira” a respeito da disseminação de doenças contagiosas era a
existência das “emanações miasmáticas”. Acreditava-se na possibilidade de gases
ou vapores pútridos espalhados na atmosfera, oriundos da decomposição de
matéria orgânica proveniente do lixo ou de animais mortos, assim como do ar
expirado por pessoas doentes como a origem de todos os males que vinham
atingindo a população de todo o país com as epidemias de cólera, febre amarela e
varíola durante grande parte do século XIX e primeiras décadas do século XX. Este
grande pavor é o que fazia com que a população abandonasse os corpos de seus
familiares e entes queridos, sem ao menos lhes render uma última homenagem ou
um funeral decente.100
As habitações coletivas (os cortiços, por exemplo) também seriam o ambiente ideal
para que estes miasmas se proliferassem. Desta maneira, o projeto higienizador
recebeu o pretexto perfeito para realizar sua “descontaminação” das ruas e destes
espaços. Para começar, a Comissão de Higiene Pública sugeriu ao Governo da
Província que os mendigos fossem recolhidos a asilos em locais recomendados por
médicos – geralmente em localidades mais afastadas do centro da cidade - a fim de
que os moradores de rua não oferecessem incômodos ou riscos de saúde aos
transeuntes.101 Em agosto de 1895, a Intendência Municipal de Salvador, na pessoa
de José Luiz de Almeida Couto, foi autorizada a desapropriar, desde que estivesse
dentro do orçamento, os prédios considerados insalubres, anti-higiênicos ou de
construção antiga que fossem de pequeno valor. Estes prédios posteriormente
seriam leiloados, tendo que ser demolidos para que novos empreendimentos fossem
construídos.102 Percebemos, assim, o quanto a influência política dos médicos e
100
DAVID, Onildo Reis. Op. Cit., p. 121. 101
FRAGA FILHO, Walter. Op. Cit., p. 141-142. 102
BAHIA. Leis e Resoluções do Conselho Municipal da Capital do Estado da Bahia do Anno de 1895. Bahia: Litho-typographia Tourinho, 1900, p. 57. Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Salvador (doravante, AHPMS), 352 (047.32)/I611r/RPG-REL.
54
sanitaristas vai crescendo e às vezes até se impondo ao poder formal dos
governantes. Chalhoub atribui a estes o “arcabouço ideológico básico às reformas
urbanas realizadas em várias cidades ocidentais na segunda metade do século XIX
e nas primeiras décadas do século XX”.103 Os higienistas baianos, com o intuito de
“conter os miasmas”, pressionavam as autoridades políticas para que os mangues e
pântanos existentes fossem aterrados, pois seriam locais em que a matéria orgânica
poderia se transformar no mal que todos temiam.104
O jornal Diário de Notícias de 13 de fevereiro de 1920 fez duras críticas ao constante
estado de degradação de Salvador. A matéria intitulada “O descalabro na Saúde
Pública” descreve um cenário caótico da cidade, sem asseio, sem condições
adequadas de higiene, com o esgoto jorrando matérias pútridas nas calçadas e
exalando odores insuportáveis. Critica a situação em que se encontravam as ruas, a
exemplo das adjacentes ao bairro de São Joaquim, cujas poças que se formavam
contribuiriam para a proliferação das epidemias que acometiam o estado. A partir daí
segue uma longa discussão, tentando decidir quem seria o responsável por tal
quadro. A matéria conclui afirmando que:
Os responsáveis por este descalabro não são os médicos, nem tampouco o diretor da Saúde Pública. Eles reclamam dos poderes competentes, fazem pedidos de material necessário e não lhes fornecem coisa alguma. Fazem prodígios, operam milagres e só não podem é comprar novas ambulâncias, e tomarem do martelo para calçar as ruas e consertar os esgotos.105
Contudo, havia hipóteses “menos científicas” para os grandes surtos
epidemiológicos que se abateram sobre Salvador e outras províncias do Brasil.
Muitas pessoas acreditavam que estes surtos possuíam uma origem religiosa, ou
seja, seriam uma punição divina aos pecados e todos os males praticados pela
população. Os homens teriam cometido tantas faltas que acabaram despertando a
ira de Deus, manifesta através da cólera, da febre amarela e da varíola. Para curar
as epidemias, o arcebispo da Bahia e primaz do Brasil, Dom Romualdo Antonio de
Seixas, acreditava em uma união entre a moral e a fé, pois através do
arrependimento e da expressão pública de preces, procissões e súplicas, Deus
103
CHALHOUB, Sidney. Op. Cit., p. 65. 104
DAVID, Onildo Reis. Op. Cit., p. 83. 105
APB. “O descalabro da Saúde Pública”. In Diário de Notícias. 13 fev. 1920.
55
poderia perdoar os pecadores e “suspender o castigo”.106 Esta seria uma grande
oportunidade de se retomar os dogmas cristãos originais – a já citada “romanização”
– e buscar diminuir as perversões do Catolicismo, que se revela de uma maneira
bastante distinta daquele praticado pelo Vaticano. Ocorreram diversas críticas dos
religiosos aos “homens da ciência”, que buscavam explicar tudo de forma natural e
excluíam os motivos alegados pelos cristãos de suas teorias. Acabaram sendo
tachados de “incrédulos”, pois só depositavam confiança nos fatos empíricos.
O assunto era tão complexo que os próprios médicos debateram durante décadas
sobre essas doenças, suas formas de contágio e como elas poderiam ser sanadas.
Além das já assinaladas deficiências no saneamento básico, o calor excessivo
também era reconhecido como um dos causadores dos miasmas. As imigrações
para o Brasil, tanto de africanos, que continuavam a ser transportados para o
trabalho escravo, mesmo após as leis que proibiram o tráfico, quanto de europeus,
que já começavam a chegar para substituí-los, foram outras teorias apontadas para
a origem dos males.107 Salvador (que não recebeu um número significativo de
europeus), Rio de Janeiro e outras cidades portuárias teriam hipoteticamente
maiores possibilidades de receber pessoas vitimadas pelo “vômito preto”.108 Tal
hipótese baseava-se mais uma vez nas teorias a respeito de hierarquias raciais, tão
em voga no período, e que sempre tentavam atribuir aos negros características que
os tornavam menos humanos que os brancos. Ao se constatar que os imigrantes
europeus padeciam em maior número que os negros, cientistas justificavam
alegando, dentre as diversas possibilidades, que os mesmos estariam “aclimatados”,
ou seja, acostumados com o clima quente do Brasil, por terem vivido em
circunstâncias semelhantes no continente africano, ou simplesmente por já estarem
há muito tempo vivendo nestas condições aqui mesmo no Brasil, fato que os
imigrantes europeus ainda não haviam se acostumado. A febre amarela
comprometia significativamente os projetos de modernização e “embranquecimento”
da população brasileira, sobretudo na Capital do Império, que contava com a mão-
106
DAVID, Onildo Reis. Op. cit, p. 89. 107
CHALHOUB, Sidney. Op. Cit., p. 67. 108
“Vômito preto”, “febre reinante”, dentre outros, foram eufemismos utilizados para denominar a febre amarela no momento da epidemia. O medo que se tinha da doença era tão avassalador que muitas pessoas preferiam não pronunciar seu nome. Cf. CHALHOUB, Sidney, ibidem.
56
de-obra dos europeus e seus descendentes para substituir a força negra que
paulatinamente se escasseava através de diversos mecanismos.109
Sem perder estes projetos de vista, o higienista Pereira Rego foi um dos maiores
entusiastas do combate ao “vômito preto”, pois buscava melhorar a imagem que os
estrangeiros tinham do Brasil – principalmente do Rio de Janeiro −, pois o país era
visto muitas vezes pelos escritores como a “porta de entrada” para a proliferação
desta e de outras epidemias para “outras cidades do hemisfério sul”, o que acabava
afastando possíveis imigrantes. Ao estabelecer comparações entre os surtos de
cólera e de febre amarela, o médico nos oferece a possibilidade de refletir sobre as
políticas públicas de saúde que foram desenvolvidas no contexto destas crises e
também qual era o seu pensamento a respeito delas. Enquanto o cólera era uma
doença que acometia muito mais pessoas entre escravos e “indivíduos de ordem
inferior”, a febre amarela se propagava sobretudo nos “estrangeiros recém-
chegados e nos brasileiros vindos do interior” (em direção ao Rio de Janeiro), tendo
seus efeitos quase nulos nos pretos.110
Tal constatação explica o fato de o governo priorizar o combate à febre amarela, em
detrimento do cólera, da tuberculose e da varíola, que vitimavam muito mais
pessoas. Apesar de sua letalidade, não houve políticas públicas no intuito de
combatê-las, por serem doenças associadas ao passado, à pobreza e aos negros e
mestiços. Sidney Chalhoub traz um dado impactante. Infere que parecia haver em
certos setores das classes políticas, econômicas e médicas uma modalidade
peculiar de racismo, um novo projeto de “embranquecimento” do Brasil, “auxiliando”
a natureza: ao priorizar enfermidades que atingiam majoritariamente os brancos,
negligenciando aquelas que se abatiam sobre os negros, os médicos descobriram
uma nova maneira de tentar subjugar estas populações, nas quais, agregando a isso
o processo miscigenatório responsável por diluir o sangue negro entre as outras
etnias brasileiras (sobretudo a branca eurodescendente), almejavam extinguir a
109
Em sua Tese de Doutorado, Isabel Cristina Ferreira dos Reis aborda alguns dos dispositivos legais que entraram em vigor no país no decorrer do século XIX, bem como algumas estratégias de cativos para alcançarem a liberdade nas décadas que antecederam a abolição formal da escravidão na Bahia e no Brasil. In: REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888. 2007. 305 p. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007. Ver, por exemplo, os capítulos I e IV. 110
REGO, José Pereira. Memória histórica das epidemias da febre amarela e cólera-morbo que têm reinado no Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1873, apud CHALHOUB, op. cit., p. 93.
57
herança africana, sempre considerada “inferior”, do convívio da sociedade
brasileira.111 As próprias populações negras pareciam estar cientes desta tentativa,
acreditando que as doenças que as dizimavam faziam parte de algum plano nefasto
para eliminá-las. Para a cultura negra, por possuir uma origem nas tradições
religiosas africanas, as doenças poderiam vir acompanhadas de todo um conteúdo
simbólico, que pode envolver o lançamento de feitiços ou a fúria das entidades
conhecidas principalmente como orixás, em especial no caso da varíola.
Entre as epidemias que assolaram (e assombraram) o Brasil no decorrer do século
XIX e no início do século XX, a varíola foi a que teve seu apogeu por último, embora
tenha se manifestado muitas vezes paralelamente às outras epidemias. Mais uma
enfermidade cercada de mistérios, especulações, conflitos e embates entre a
medicina institucional considerada “legítima” e os saberes populares (que envolviam
questões religiosas de diversas ordens). Por esta razão, os órgãos públicos
encontravam alguma resistência por parte da população na tentativa de higienizar a
capital baiana. Segundo Maria Cristina Wissenbach, durante a epidemia de varíola,
era comum ver nas ruas e encruzilhadas de Salvador, oferendas ao orixá Omulu,
também conhecido como Saponã e Obaluaê, a quem as pessoas recorriam com
grande frequência em busca da cura para esta enfermidade.112
Wissenbach ainda comenta a experiência de Nina Rodrigues neste momento tão
delicado da história local. O médico afirma que quando suas atribuições o obrigavam
a percorrer os locais da cidade onde o índice de contaminação eram maiores, lhe foi
possível contar “vinte e tantos desses estranhos depósitos feitos da noite
precedente”.113 Nina Rodrigues atribui tal fato à crença africana, profundamente
enraizada na população baiana, de que a erupção variólica era apenas uma
manifestação de possessão do orixá Omulu, e não uma doença contagiosa. Desta
concepção, segundo o sanitarista, decorriam crenças que inviabilizavam a aplicação
de medidas sanitárias mais eficazes. As populações negras desprezavam a vacina
contra a varíola porque estariam convictas de que “o melhor meio de abrandar a
cólera do orisa é fazer-lhe sacrifícios que consistem em lançar nos cantos das ruas
111
CHALHOUB, Sidney. Op. cit., p. 95. 112
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. “Da Escravidão à Liberdade: Dimensões de uma privacidade possível”. In SEVCENKO, Nicolau (org.) História da Vida Privada no Brasil. República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 110. 113
RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. 7ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1988, apud WISSENBACH, Maria Cristina Cortez, Ibidem p. 110-111.
58
em que ele habita a sua iguaria favorita – milho estourado em azeite de oliva”.
Conclui dizendo que se na população da capital ainda vigoram estas doutrinas e
costumes, “pode se prever o que há de ser a religião dos sertanejos”,114 numa clara
posição de rejeição a estas práticas, sempre consideradas “ingênuas” ou
“atrasadas”, de maneira preconceituosa e elitista.
As tradições africanas, em sua maioria, possuem uma maneira religiosa de perceber
o mundo. Visão que nem sempre se coaduna com o modelo ocidental. Com os
constantes intercursos culturais entre o Brasil (especialmente a Bahia) e as diversas
nações da África, muitos destes costumes chegaram e se propagaram entre as
comunidades negras. De acordo com Amadou Hampaté Bâ, esta perspectiva de
mundo considera o universo visível como “o sinal, a concretização ou o envoltório de
um universo invisível e vivo, constituído de forças em perpétuo movimento”.115
Assim, tudo que existe na Terra teria uma relação cósmica, e nem sempre uma
explicação meramente científica daria conta de resolver todas as questões que
afligiam o ser humano. O mundo seria regido por leis sagradas e a violação destas
leis poderia causar um desequilíbrio entre as forças existentes.116
Talvez seja em decorrência desta herança de origem africana que as pessoas
preferiam confiar em Omulu (ou em São Roque, São Lázaro e São Benedito, no
sincretismo católico) do que nas prescrições médicas. Diversas histórias tradicionais
do Candomblé atribuem a Omulu a cura da varíola. Em um dos contos reunidos por
Reginaldo Prandi, o orixá teria desobedecido à sua mãe e, por esta razão, fora
castigado com a doença. Ele teria pisado nas flores de um jardim deliberadamente
enquanto brincava, apesar de todas as reprimendas feitas pela mãe. Após ter seu
corpo todo coberto pelas pequenas flores brancas que tanto pisara, Omulu chorou e
pediu à mãe que o curasse. Dada a punição, a mãe de Omulu jogou um punhado de
pipocas sobre o corpo de seu filho, que logo ficou curado. Esta é a analogia
estabelecida ao ato de se fazer sacrifícios ao orixá contendo pipoca e a cura da
114
Ibidem. 115
BÂ, Amadou Hampaté. “A Tradição Viva”. In: KI-ZERBO, Joseph. História Geral da África.
Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática; Paris: UNESCO, 1982, p. 186. 116
Ibidem.
59
varíola. Entre seus vários nomes Omulu pode ser chamado de Obaluaê (o Senhor
da Terra), Sapatá ou Xapanã.117
A fé nos santos cativava mais do que a fé na medicina formal. David infere que
apesar de São Francisco Xavier ser o padroeiro oficial da cidade de Salvador, “o
Senhor do Bonfim era seguramente o seu padroeiro popular”. Seus milhares de
devotos faziam todo o tipo de promessas com a intenção de se protegerem e de
receber a ajuda do poderoso santo.118 Ainda seguindo a linha de raciocínio das
tradições africanas ressignificadas no Brasil, diversos intelectuais brasileiros e
estrangeiros postulam sobre a possibilidade de a varíola ser uma “benção”, um
presente como “prova de amizade” de Omulu para com os seus filhos ou para
aqueles potencialmente aptos para sê-lo, mais um motivo que justificava o temor ou
a resistência de algumas pessoas à inoculação variólica. Obaluaê protegia seus
devotos da doença causando-lhes uma forma mais branda da mesma, e, assim,
imunizando-as permanentemente.119
Apesar da crítica erudita aos saberes populares, foi justamente este processo de
inocular os próprios elementos da varíola, retirados de alguém enfermo para
proteger os sãos, que se tornou o princípio básico da vacinação, prática controversa
que dividiu opiniões e causou uma crise no Rio de Janeiro, culminando com a
manifestação popular conhecida como Revolta da Vacina.120 Chalhoub afirma que a
vacina contra a varíola decorre de um costume antigo e presente em diversas
civilizações ao redor do mundo há séculos. O autor encontra referências à
inoculação de material semelhante ao vírus causador de doenças entre os hindus,
chineses, gregos, africanos, entre outros povos, o que comprova sua eficácia, uma
vez que já havia sido experimentada em diversos momentos, pelas mais distintas
nacionalidades.121
Devido à ideia de que a doença provinha da África e foi trazida a bordo dos
tumbeiros – um pensamento puramente racista, já que esta doença existia nos mais
variados continentes do mundo - inicialmente a primazia das vacinas era dos 117
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 204. 118
DAVID, Onildo Reis, op. cit., p. 98-99. 119
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Livraria Pioneira Editora/EDUSP,
1971, p. 134. 120
Cf. SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo:
Brasiliense, 1984. 121
CHALHOUB, Sidney. Op. cit, p. 102-104.
60
cativos, ainda que fosse introduzida aos poucos nos outros grupos sociais do Brasil.
Um dos métodos que foi adotado pelos médicos e se tornou mais popular era o da
inoculação “braço a braço”, isto é, retirar as pústulas dos doentes e injetá-las o mais
rápido possível no braço de uma pessoa saudável. O problema deste método, ainda
citando Chalhoub, é que foi constatado o crescente número de sífilis, entre outras
doenças, o que denota um certo despreparo dos consultórios e postos de saúde
quanto à precaução de outras doenças, além da falta de garantia da eficácia da
vacina contra a própria varíola, já que era comum se pensar que o ato da vacinação
seria, na verdade, a inoculação da própria doença, que acabaria contaminando os
sadios. Sem falar na percepção de que, à medida que se transmitia a secreção
variólica, ela ia enfraquecendo até perder sua potência.122 Não podemos deixar de
considerar também o quanto deveria ser incômodo ao doente se deslocar ao posto
médico para ter uma amostra do seu vírus retirada, além da repugnância do cidadão
saudável ao ter que injetar tal substância em seu organismo. Ainda que
desconsiderássemos todos os outros fatores logísticos e religiosos, esse motivo, por
si só, já era suficiente para afastar ou desencorajar o ritual que envolvia a
“variolização”.
Em 27 de agosto de 1897, o Intendente Interino de Salvador, Dr. Manoel de Assis
Souza, publicou a Postura n. 302, na qual, recebendo o aval do Governo do Estado
da Bahia, foi autorizado a obter qualquer modalidade de crédito para “attender à
calamitosa situação das classes pobres, victimadas pela peste da varíola, até a
extincção do mal”.123 De acordo com o documento, a Intendência Municipal se
comprometia a estabelecer enfermarias adequadas, em locais previamente
designados pelas autoridades sanitárias competentes, que seriam ampliados (ou
reduzidos) seguindo a progressão da peste, ressaltando que é um serviço público
destinado a qualquer pessoa que precise.124 A mobilização para conter o avanço da
“febre reinante” era tão grande que o art. 3º desta mesma lei autorizava o Intendente
a contratar quantos médicos fossem necessários para vacinar e revacinar em
escolas, fábricas, quartéis e quaisquer lugares onde houvesse um ajuntamento
significativo de pessoas ou o risco de proliferação da epidemia. No caso das
122
Ibidem, p. 116. 123
AHPMS. BAHIA. Leis e Resoluções do Conselho Municipal da Capital do Estado da Bahia do Anno de 1895. Bahia: Litho-typographia Tourinho, 1900, p.53. Ref: 352 (047.32) / I611r / RPG-REL. 124
Ibidem.
61
escolas, estas deveriam ficar pelo menos 15 dias sem atividades, para que se
tivesse certeza de que não havia mais nenhum risco de contágio.
Além da vacina, outros cuidados deveriam ser tomados. A Inspetoria de Higiene
teria à sua disposição os Comissários Municipais, que estariam incumbidos de
verificar as condições de salubridade das edificações, se já haviam sido
devidamente desinfetados e se suas instalações estariam aptas ao uso e à
circulação de pessoas. Caberia a estes Comissários também, no caso da ausência
do Inspetor de Higiene, a função de aplicar multas nos prédios cujas medidas
profiláticas ainda não tivessem sido adotadas, ou que tenham sido adotadas
erroneamente. O Intendente Municipal, contudo, não possuía poderes absolutos,
apesar da autonomia que lhe foi conferida. Suas funções estavam subordinadas ao
Conselho Municipal da Capital do Estado da Bahia, a quem o mesmo deveria se
reportar periodicamente, informando as dificuldades que por ventura houvesse, para
que as providências cabíveis fossem adotadas.125
Os três grandes surtos epidêmicos que acometeram a população baiana, assim
como outros estados brasileiros, entre os séculos XIX e XX, tiveram a mesma
recomendação dos médicos como medida profilática: isolamento, ou seja, o
afastamento dos doentes do convívio social com as pessoas saudáveis, seja em
suas próprias casas, seja em hospitais ou casas de saúde. Tal prática teria surgido
na Europa no final da Idade Média e se intensificado no século XVIII, no contexto
das epidemias de peste e de lepra que dizimaram diversos países do Velho
Continente. Ao abordar o surgimento da chamada “Medicina Social” e analisar o
nascimento dos hospitais, Michel Foucault disserta sobre o modelo médico
conhecido por quarentena, cujo esquema foi utilizado principalmente na epidemia de
lepra e foi considerado pelo autor como “um sonho político-médico da boa
organização sanitária das cidades, no século XVIII”.126 Este regulamento de urgência
consistia em manter as pessoas em um só lugar, se possível, em compartimentos
individuais. As cidades deveriam ser divididas em bairros aos encargos de uma
autoridade local, que teria inspetores de saúde responsáveis por vistoriar e garantir
que todos ficariam nos locais que lhes foram designados. Estes inspetores
revistariam diariamente todas as localidades, com o intuito de saber se alguém havia
125
Ibidem. 126
FOUCAULT, Michel. Op.cit., p.88.
62
contraído a peste e precisaria ser encaminhado para uma enfermaria especial e
todas as casas passavam por um processo de desinfecção. O leproso precisava ser
privado de qualquer interação social, exilado para fora dos muros da cidade, a fim de
purificar os demais.127
Na epidemia de peste, em meados do século XVIII, a prática da quarentena se
modificou e se “especializou”. O doente que antes era exilado, agora era trazido
para observação dentro das casas de saúde especializadas – ainda isolado das
pessoas sadias, logicamente – onde se poderia efetuar um controle e registro das
pessoas que passam por este local, suas patologias, seu quadro de saúde e tudo
que diga respeito ao paciente. Esta “medicina urbana”, como denomina Foucault,
será o arcabouço teórico-prático das medidas higienistas que viriam a se
desenvolver no Brasil cerca de um século depois. Desde este momento da história
da Europa, sobretudo na França, já havia uma preocupação das classes médicas
em analisar os potenciais focos de doenças espalhados pelas ruas e conter os
miasmas, expressos através do excesso de sujeira nas vias públicas e pelo depósito
desordenado de cadáveres em uma mesma cova. Foi a partir daí que se intensificou
a campanha pela individualização dos corpos nos cemitérios, bem como o
afastamento dos mesmos para as periferias das grandes cidades, pelo
estabelecimento de melhorias na distribuição e circulação da água e do ar – abrindo,
para tanto, longas avenidas com a intenção de fazer o ar puro chegar até a
população, e pesquisando métodos para o tratamento da água potável para que esta
não se misturasse à água poluída dos esgotos - e pelo investimento em condições
adequadas de salubridade.128
Como a medicina convencional está, obviamente, subordinada ao poder oficial,
burocrático, generalizante e elitista em boa parte das vezes, há de se considerar a
resistência das populações – sobretudo das populações mais pobres e, não por
coincidência, negras, responsabilizadas com frequência pela disseminação de
doenças – às imposições higienistas. As várias faces do racismo institucional, que
tentou transformar o Brasil em uma “Europa dos trópicos”, buscaram para tanto
eliminar da percepção pública a presença de costumes e alternativas de origem
africana à sua medicina tradicional, seja através da coerção física, do afastamento
127
Ibidem. 128
Ibidem, p. 89-91.
63
das principais ruas de Salvador ou mediante diversos dispositivos legais. Tais
medidas não lograram o êxito almejado, visto que os diversos códigos republicanos,
assim como aqueles que os precederam, foram ineficazes na tentativa de exercer
um controle absoluto das práticas culturais das populações negras. O fato de tornar
algo proibido não necessariamente significa dizer que determinado ato não mais
acontecerá. Assim, veremos no capítulo seguinte de que maneira o Estado se
comportou frente à existência de hábitos que não se coadunavam com o modelo
proposto (ou seria imposto?) pelos diversos documentos legais que regulavam o
país, e que medidas foram tomadas com o intuito de manter as estruturas
socioeconômicas inalteradas nos “novos tempos” republicanos.
64
CAPÍTULO II
O BRASIL EM BUSCA DE ESTRUTURAÇÃO JURÍDICA
2.1. SOB A ÉGIDE DO CATOLICISMO: ALGUNS CAMINHOS PERCORRIDOS PELA JUSTIÇA BRASILEIRA ANTES DA REPÚBLICA
Desde o período colonial, o Brasil foi conduzido pela legislação portuguesa,
que exportara o seu sistema jurídico, aplicando as leis aqui da mesma forma
que se aplicava em Portugal. As Ordenações Filipinas (uma referência ao rei
português que as promulgou, d. Filipe II), por exemplo, regeram a colônia, o
Império e só perderam oficialmente sua validade legal com a implementação do
Código Civil Brasileiro, em 1916, pelo menos a parte referente aos direitos
civis.1 Dos cinco livros que compunham as Ordenações Filipinas, o direito
penal foi o que teve duração mais curta no país, vigorando até a promulgação
do Código Criminal do Império de 1830.2 Essas Ordenações, que entraram em
vigor em Portugal durante o século XVI, seguindo e atualizando Ordenações
anteriores, nunca sofreram grandes alterações e foram incorporadas pela
Assembleia Constituinte brasileira após a independência, em caráter provisório,
“enquanto se não organizar um novo código”.3
O famoso Livro V das Ordenações Filipinas ficou conhecido pela sua violência
na aplicação das leis. Suas penas, que incluíam degredo (geralmente para o
continente africano), açoites e outras marcas corporais, além das diversas
formas de se executar a pena de morte eram aplicadas de maneira desigual, a
depender do réu e da gravidade da pena.4 No que se refere à religião, tema
que mais interessa a este estudo, as Ordenações tinham punições severas a
qualquer prática que se opusesse ao Cristianismo, religião oficial do Império.
Os hereges e apóstatas (aquelas pessoas que, por alguma razão,
abandonaram sua fé) sofriam penas que variavam de pesadas multas,
progressivas em caso de reincidência, e, de acordo com a condição social do
1 GRINBERG, Keila. Código Civil e cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 12
2 LARA, Silvia Hunold. (org.) Ordenações Filipinas: Livro V. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p. 38-39 3 Ibidem, p. 38.
4 Ibidem.
65
infrator, confisco dos bens até chegar aos castigos físicos e finalmente a pena
de morte. O mesmo valia para os blasfemos, ou seja, aqueles que maldizem de
Deus ou dos santos católicos.5
O capítulo III do Livro V destas Ordenações é ainda mais específico, pois se
refere aos “feiticeiros”. Contudo, neste momento devemos ter uma
compreensão um pouco mais abrangente a respeito do que se chamava de
“feitiçaria”. As práticas passíveis de condenação não eram válidas apenas para
os costumes africanos ou afro-brasileiros, já que este código foi trazido de
Portugal e havia diversas manifestações pagãs de crença e cura no país
europeu, embora a Igreja Católica detivesse a “exclusividade” sobre a fé das
pessoas.6 Mesmo não citando textualmente a quem se referia, o parágrafo 1º,
já nos oferece uma ideia do público-alvo desta proibição, ao descrever sua
prática:
E isso mesmo, qualquer pessoa que, em círculo ou fora dele, ou em encruzilhada, invocar espíritos diabólicos ou der a alguma pessoa a comer ou a beber qualquer coisa para querer bem ou mal a outrem, ou outrem a ele, morra por isso morte natural.7
Por “morte natural”, Silvia Hunold Lara aponta que esta seria a “morte infligida
por meio do uso de veneno, de instrumentos de ferro ou ainda do fogo”.8 Outra
determinação das Ordenações Filipinas é que qualquer tentativa de adivinhar o
futuro, seja através de água, cristal, espelho, animais e quaisquer objetos, ou
que supostamente tenha sido “revelado por Deus ou por algum santo”, seria
passível de açoites em praça pública ou degredo do sentenciado, com o
pagamento de determinada quantia em dinheiro à pessoa que o acusou.
Entretanto, se a tal “adivinhação” tivesse sido feita através de estudos
5 Ibidem, p. 55-62.
6 É importante mencionar a atuação da Inquisição que, sobretudo durante a Idade Média, ditou
o que era e o que não era lícito crer. Assim, práticas religiosas que não seguissem os ditames do Cristianismo sofreriam punições severas e o acusado era frequentemente condenado por supostas ligações com o Diabo. Tal pensamento se perpetuou com pequenas modificações, resultando na maneira violenta como as religiões de matrizes africanas eram vistas no Brasil e principalmente em estados onde sua presença sempre foi mais evidente, como a Bahia. Cf. DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. Uma cidade sitiada. 1300-1800. São Paulo:Companhia das Letras, 1989; SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 7 Ibidem, p. 63. A expressão “e isso mesmo”, conforme a autora, significa “assim mesmo”,
“desse modo”, “por isso mesmo” etc. 8 Ibidem, p. 23.
66
astronômicos, esta punição era desconsiderada. Assim, a lei absolvia quem
tivesse evidências científicas a respeito de suas afirmações, em mais uma
demonstração de apego das autoridades aos preceitos das ciências.9
Houve uma grande dificuldade em agregar características liberais à legislação
de um país que ainda convivia com a escravidão. Esse fator pode ter sido um
dos principais responsáveis pela demora em se criar um sistema jurídico
próprio depois do fim do sistema colonial. Os primeiros passos nessa direção
começaram a ser dados com a Constituição do Império, outorgada em 25 de
março de 1824, na qual, em seu artigo 5º afirmava que a “Religião Católica
Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras
Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas
para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”.10 Desse modo,
apesar de o Catolicismo ainda ser a religião oficial do país, este artigo abre a
possibilidade, ainda que timidamente, de outras manifestações de fé, contanto
que não fosse publicamente ou que se erigissem casas de culto para tal. João
José Reis, entretanto, contesta essa suposta “liberdade religiosa”, quando
alega que os legisladores não pensavam na possibilidade de liberar os cultos
do Candomblé e do Islã, principais religiões praticadas pelos africanos
presentes no Brasil. Para Reis, este vácuo na lei entre o que poderia ser
cultuado ou o que deveria ser proibido, deixando margens a interpretações
dúbias, era resolvido na prática, pois as leis acabavam sempre protegendo os
europeus não-católicos residentes no Brasil. Assim, “a liberdade religiosa fora
concebida com eles em mente”.11
Outras posições mais rígidas das Ordenações Filipinas foram ficando mais
brandas no decorrer do século XIX. Como dito anteriormente, o Código
Criminal do Império de 1830 veio a substituir as questões relativas ao direito
civil do Código português, mesmo que tenha preservado algumas de suas
penas. A pena de morte e as galés continuaram a ser aplicadas aos líderes de
insurreições, homicidas e para os casos de roubos com agravantes,
9 Ibidem, p. 66-67.
10 BRASIL. Constituição Politica do Imperio do Brazil (de 25 de março de 1824). Disponível
em : https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.html 11
REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: Escravidão, liberdade e
candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 142.
67
provavelmente o que hoje se denomina “latrocínio”, o roubo seguido de morte.
As punições mais graves foram gradativamente substituídas por multas e
prisão.12 Houve mudanças também na aplicação das penas. Com o passar do
tempo, os açoites foram proibidos às pessoas livres, por ser uma pena
humilhante. Esta pena continuou sendo imposta apenas aos escravos até ser
oficialmente revogada em 15 de outubro de 1886.13
Sobre a religião, o Código Criminal do Império possuía um capítulo à parte.
Manteve a determinação expressa na Constituição de 1824 de que qualquer
outra manifestação de fé diferente da oficial só poderia ser realizada na forma
de culto privado. Além disso, qualquer pessoa que tentasse menosprezar,
ridicularizar ou levantar falso a respeito do Catolicismo também sofreria as
sanções previstas na lei. Contudo, não deliberava prisões para o que
denominavam crime de “heresia”, como ocorreu durante a vigência das
Ordenações Filipinas, que poderia culminar com a pena de morte e o confisco
dos bens do “herege”. Alguns dos principais artigos presentes neste capítulo
sobre a temática seguem transcritos abaixo:
Art. 276. Celebrar em casa, ou edificio, que tenha alguma fórma exterior de Templo, ou publicamente em qualquer lugar, o culto de outra Religião, que não seja a do Estado.
Penas - de serem dispersos pelo Juiz de Paz os que estiverem reunidos para o culto; da demolição da fórma exterior; e de multa de dous a doze mil réis, que pagará cada um.
Art. 277. Abusar ou zombar de qualquer culto estabelecido no Imperio, por meio de papeis impressos, lithographados, ou gravados, que se distribuirem por mais de quinze pessoas, ou por meio de discursos proferidos em publicas reuniões, ou na occasião, e lugar, em que o culto se prestar.
Penas - de prisão por um a seis mezes, e de multa correspondente á metade do tempo.
Art. 278. Propagar por meio de papeis impressos, lithographados, ou gravados, que se distribuirem por mais de quinze pessoas; ou por discursos proferidos em publicas reuniões, doutrinas que directamente destruam as verdades fundamentaes da existencia de Deus, e da immortalidade da alma.
12
LARA, Silvia Hunold (org.). Op. cit., p. 40. Sobre o assunto, consultar também NETO, Zahidé Machado. Direito Penal e estrutura social. São Paulo: Saraiva/Edusp, 1977. 13
LARA, Silvia Hunold. Ibidem, p. 43.
68
Penas - de prisão por quatro mezes a um anno, e de multa correspondente á metade do tempo.
Art. 279. Offender evidentemente a moral publica, em papeis impressos, lithographados, ou gravados, ou em estampas, e pinturas, que se distribuirem por mais de quinze pessoas, e bem assim a respeito destas, que estejam expostas publicamente á venda.
Penas - de prisão por dous a seis mezes, de multa correspondente á metade do tempo, e de perda das estampas, e pinturas, ou na falta dellas, do seu valor.
Art. 280. Praticar qualquer acção, que na opinião publica seja considerada como evidentemente offensiva da moral, e bons costumes; sendo em lugar publico.
Penas - de prisão por dez a quarenta dias; e de multa correspondente á metade do tempo.14
Interessante perceber que as ações consideradas “ofensivas à moral pública”
estão colocadas neste capítulo, junto com as proibições de outras
manifestações de fé não oficiais. Este era o principal motivo das prisões de
negros registradas nas portarias expedidas pela polícia de Salvador entre os
anos 1890-1939, período delimitado por esta pesquisa. A simples ideia de
“desordem pública” e “desacato à moral” eram motivo suficiente para se efetuar
as prisões sem maiores questionamentos. Atrelar as religiões de matrizes
africanas a atos ilícitos ou condenáveis pela sociedade, como pequenos
roubos, prostituição e uso desenfreado de bebidas alcoólicas eram informações
recorrentes nos documentos que registravam as prisões, e utilizados como
agravantes. Note-se também que apesar de não haver mais a pena de morte e
a lei “permitir” outras manifestações religiosas, não havia essa abertura como
se pode supor. A lei previa punições a quem duvidasse da existência de Deus
e da imortalidade da alma, preceitos cristãos que direcionavam a população
brasileira a uma única modalidade de crença, sem espaço para outras, e dava
margens a ambiguidades na interpretação de seus artigos.
Além do Código Criminal do Império de 1830, houve várias posturas municipais
no decorrer do século XIX que buscavam coibir a “vadiagem” e as tão faladas 14
BRASIL. Código Criminal do Império do Brasil (Lei de 16 de dezembro de 1830).
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/LIM/LIM-16-12-1830.html.
69
“desordens públicas”, tentando controlar a circulação de negros na rua,
sobretudo à noite e quando não fosse necessário. Não são raras posturas
proibindo os “lundus e vozerias” após o toque de recolher. No caso disso
acontecer em ambientes fechados, como tendas, botequins, tavernas e outros
estabelecimentos comerciais, o proprietário que permitisse tais ocorrências,
bem como a demora de escravos por mais tempo que o necessário para
comprar ou vender algo, também seria multado, um “incentivo” a mais para que
houvesse colaboração da população no intuito de fazer com que as leis fossem
cumpridas.15 Mediante a Resolução de 2 de agosto de 1860, ficariam proibidos,
a qualquer hora, batuques, danças e ajuntamentos de escravos, sob pena de
serem castigados ou pagarem multa. A mesma Resolução determinou que as
ganhadeiras ou quintandeiras só poderiam vender juntas nos locais designados
pela Câmara, sob a possibilidade de pagar 2 réis de multa ou ficarem presas
por um dia. Este artigo, contudo, permitia que as mesmas executassem suas
funções pelas ruas ou em suas próprias casas, contanto que não
atrapalhassem a passagem.16
A questão das “desordens” não passou despercebida por Wilson Mattos. O
autor analisa que o Código Criminal do Império não especifica o que elas
seriam, deixando sua classificação e posterior punição para o arbítrio das
forças policiais. Assim, qualquer prática que fosse considerada ofensiva à
moral e aos bons costumes poderia ser considerada crime de desordem, ou
desacato à moral. Mattos infere que as prisões por este crime aumentaram
significativamente no decorrer do século XIX, chegando à incrível marca de
48,8% em 1887, ou seja, praticamente a metade de todas as prisões efetuadas
em Salvador teria sido motivada pelo crime de desordem, sem que ficasse
claro para a população que desordens seriam essas.17
Esta tipificação chegou aos tempos republicanos com força total. Em nossa
pesquisa no Arquivo Público do Estado da Bahia foram encontradas 336
portarias expedidas pelas diversas subdelegacias de polícia da capital,
15
AHPMS, Livro de Posturas Municipais de Salvador, de 1829 a 1859. Ref. 119.5. 16
FUNDAÇÃO CULTURAL DO ESTADO DA BAHIA. Diretoria de Bibliotecas Públicas. Legislação da Província da Bahia sobre o negro: 1835-1888. Salvador: A Fundação, 1996, p. 130-131. 17 MATTOS, Wilson Roberto de. Negros contra a ordem. Astúcias, resistências e liberdades
possíveis (1850-1888). Salvador: EDUNEB/EDUFBA, 2008, p. 128.
70
recolhendo as pessoas por desordem ou utilizando expressões similares
(desrespeito à moral ou ofensa à ordem pública, por exemplo). Muitas vezes
essas prisões eram associadas a uma segunda causa, como embriaguez,
agressão física, luta corporal ou gatunagem. A maioria destas portarias se
concentra entre os anos de 1920 e 1924. Eis uma delas:
SUBDELEGACIA DE POLÍCIA DO DISTRITO DOS MARES
PORTARIA
Em 29 de Julho de 1921
O Carcereiro da Cadeia de Correção recolhe à mesma cadeia, a disposição desta Subdelegacia, a individua de nome Ivanna Ferreira do Rozario, com 30 anos de edade, natural da Bahia, capturada neste districto, nesta data, por embriaguez e desordens.
Bahia, 29 de Julho de 1921.
O Subdelegado,
Henrique Pª Cunha18
Assim como a portaria acima, várias outras seguiam a mesma linha. Como a
própria folha-padrão para registros não oferecia espaço suficiente para maiores
informações sobre as circunstâncias das prisões, a polícia não fazia muito
esforço para detalhá-las. A simples tipificação “desordem”, ou algo que o valha,
já parecia suprir as necessidades dos registros. Havia outro modelo de portaria,
neste caso a que autorizava que os presos fossem libertados, e também foram
encontrados em grande quantidade. Vejamos uma delas:
SUBDELEGACIA DE POLICIA DO DISTRICTO DA LAPINHA,
Em 18 de Agosto de 1921
PORTARIA
Ao Snr. Administrador da Casa de Correção
Queira por em liberdade a individua de nome Carmélia Maria de Jesus, que aí acha-se presa e recolhida á minha ordem e disposição por desordem.
18 APB, Correspondências enviadas e recebidas da Secretaria de Segurança Pública,
Recolhimento à Cadeia de Correção e Liberdade. Caixa 6485/Doc. 2/ 1892 − 1932. As palavras em negrito são para destacar o que era preenchido pelo subdelegado, uma vez que o formulário já vinha com parte das informações previamente impressas. Existia uma folha-padrão com lacunas para se preencher com informações do preso e circunstâncias da prisão.
71
Saudações
Seraphim Augusto Rodriguez, o Subdelegado19
No total, contabilizamos a prisão de 396 homens e 150 mulheres por diversos
motivos. Os números não se coadunam com a quantidade de portarias porque
estes são os números absolutos, inclusos nesta conta os casos de
reincidência; outro fator que contribuiu para a discrepância entre o número de
prisões e o número de portarias é o hábito de alguns subdelegados em
registrar na mesma ficha as diversas pessoas que foram presas ao mesmo
tempo, em uma única batida policial; assim como a atribuição de vários crimes
a uma mesma pessoa na mesma ficha. Enfim, não havia um padrão no seu
preenchimento. Entre os homens, dos 396 autuados, 227 tiveram “desordem”
como motivo de sua prisão. “Falta de moralidade” ou “desrespeito à moral
pública” aparece com 25 casos. Entre os crimes que possuem informações
mais precisas, os de agressão ou lesão corporal possuem 53 portarias, contra
46 por furtos e roubos; 27 por gatunagem; 12 por desacato à autoridade; 9 por
embriaguez; 6 por vagabundagem ou por “vagar sem destino”; 1 por feitiçaria,
além de vários crimes que recebiam registros mais esporádicos e outros que
sequer mencionavam o motivo das prisões.20
Entre as mulheres o número de prisões por desordem também predominou.
Das 150 portarias, 97 tiveram este motivo e outras 27 acrescentavam como
causa o “desrespeito” ou “ofensa à moral pública”. As outras prisões de
mulheres que tem “desordem” como motivo principal associam como segunda
causa a luta corporal (com 12 casos); embriaguez (com 8); agressão (com 6);
devassidão/obscenidade (4 casos), um por feitiçaria, além de outros casos que
não tinham muitas portarias.
As prisões por desordem não duravam muito tempo, como podemos notar
através das reincidências. Por exemplo, Basília Maria de Jesus, que, em 1921,
tinha 35 anos de idade, foi presa no dia 25 de agosto daquele ano por
“desrespeito à moral pública”. Junto com Basília foram também capturadas
19
Ibidem. 20
Ibidem.
72
Ursulina Maria da Conceição, 40 anos e Maria de Jesus, 22, ambas por
“desordem”. Não conseguimos perceber qual a diferença prática entre o que
poderia ser considerado “desrespeito à moral pública” e o que seria
“desordem”, uma vez que, ao que tudo indica, as três mulheres estavam juntas,
a julgar pelo fato de que o documento que registrava a prisão de todas elas era
o mesmo. Basília foi solta no dia seguinte, mas em 11 de dezembro, apenas
quatro meses depois de ter sido presa, a mesma dava entrada na
Subdelegacia de Polícia da Lapinha pelo mesmo motivo. 21
Ao confrontar as portarias de prisão com as portarias de liberdade dos
acusados, pudemos constatar, entre as centenas de casos, que Joana Ferreira
do Rosário, de 30 anos, foi presa no distrito dos Mares em 29 de julho de 1921
por “desordem e embriaguez”. Foi solta no dia 02 de agosto, ou seja, passou
quatro dias na prisão; Lindaura Pedrosa Alves, sem idade declarada, foi presa
no dia 06 de outubro do mesmo ano, por desordem e “por ter ferido a cabeça
de uma sua companheira” no distrito de São Pedro, sendo solta no dia
seguinte; Agostinho Guilherme de Santana, de 24 anos, passou dois dias na
prisão por “faltar com respeito à moral”, também no distrito dos Mares. Assim
como estes casos, a maioria das portarias se encontrava nesta situação. Pela
sua simplicidade em relação aos processos-crime, consideramos que sua
função era a de registrar ocorrências menores, as que não careciam de
grandes investigações, depoimentos, testemunhas etc.
O Código Criminal do Império vigorou por 60 anos, perpassando todo o
Segundo Reinado, com algumas emendas, até a promulgação do Código Penal
de 1890, através do Decreto n. 847 de 11 de outubro daquele ano, já durante a
República. Seu fim fez parte de um conjunto de mudanças que acometeram o
Brasil no apagar das últimas luzes do século XIX, que levou consigo o Império
e a escravidão, mas deixou vários problemas não solucionados. As velhas
pressões por uma legislação liberal nos moldes das nações “civilizadas”
ficaram ainda maiores com a abolição do escravismo, que despontava como a
maior possibilidade de inserção social e econômica do negro que já havia
surgido até então, bem como a chegada da República, que prometia grandes
transformações no país. 21
Ibidem.
73
2.2. A CIDADE DE SALVADOR NO CONTEXTO DA REPÚBLICA
As primeiras décadas republicanas em Salvador foram marcadas por
incertezas e tentativas de auto-afirmação da capital baiana enquanto cidade
“moderna”, assim como as capitais das regiões sul e sudeste também tentavam
fazer. Tal processo já havia se iniciado durante o século XIX, ainda durante o
Império, com diversas obras no setor de transportes, comunicações e
saneamento básico, a exemplo da iluminação a gás, inaugurada em 1862, a
primeira linha ferroviária entre Salvador e Alagoinhas em 1863, que possibilitou
novas perspectivas em relação ao escoamento da produção e do estreitamento
das relações comerciais entre as duas cidades, a construção do Elevador
Lacerda que, inaugurado em 1873, se tornou uma das alternativas mais viáveis
no deslocamento de pessoas entre a Cidade Baixa e a Cidade Alta, bem como
o surgimento de dezenas de fábricas. Contudo, foi durante a República que
este processo se intensificou.22
O novo sistema político e o alvorecer de um novo século traziam consigo um
sentimento de que grandes mudanças precisavam ser empreendidas. As
construções e avenidas de Salvador, de aspectos tradicionais, pouco a pouco
passaram a ser substituídas por outras mais “modernas”, sempre tendo como
referência a Inglaterra e a França, países mais valorizados esteticamente e
grandes símbolos da modernidade europeia, bem como a cidade do Rio de
Janeiro, então capital do país e exemplo de sucesso da implantação destes
ideais. A construção de grandes espaços de lazer como cafés, praças, teatros
e cinemas, fazia parte deste processo de mudança nos hábitos culturais das
classes médias urbanas. Boa parte destas ações já foi discutida no capítulo
anterior, na medida em que a política higienizadora consistia em uma
ferramenta essencial para o êxito da urbanização da capital baiana. Higienizar
e urbanizar eram palavras praticamente sinônimas entre o final do século XIX e
o começo do século XX.
Conforme Maria das Graças de Andrade Leal, o Império havia deixado como
herança para Salvador uma infra-estrutura precária, ruas estreitas e mal
iluminadas e um sistema de esgotamento sanitário que deixava a desejar. Com
22
LEAL, Maria das Graças de Andrade. Manuel Querino entre letras e lutas. Bahia: 1851-
1923. São Paulo: Annablume, 2009, p. 158-159.
74
a República, e, sobretudo no primeiro governo de José Joaquim Seabra, entre
1912 e 1916, é que as maiores obras remodeladoras tiveram início, colocando
Salvador entre as grandes capitais da chamada bélle époque, na qual teve na
abertura da Avenida Sete de Setembro, inaugurada no dia sete de setembro de
1915, uma de suas obras de maior importância, desalojando algumas igrejas e
casas coloniais e imperiais.23
A chegada da República, bem como cada ano que a mesma completava, era
comemorada pelos editoriais dos jornais da época como um ato de coragem e
primeiro grande passo para as mudanças tão desejadas pelas elites sociais e
econômicas. O jornal Diário de Notícias assim registrou o que seria o décimo
nono aniversário do regime republicano brasileiro:
Dezenove anos completa amanhã a instalação do regimen republicano federativo no território brasileiro, após algumas tentativas malogradas.
Embora o descontentamento do povo revele-se por todos os lados, num protesto aos mil tributos que lhe são lançados, às injustiças que lhe são infringidas, a comemoração deste acontecimento é de jublio para todos nós brasileiros, devotados ao serviço da Pátria.
Se por mais de uma vez têm sido negativos os resultados aspirados pela colletividade, não é o regimen e sim dos homens que o servem a culpa, e isto os republicanos históricos, os que mais batalharam pela victoria do ideal de que amanhã se festeja o advento, já o disseram em todos os tons, nos períodos agudos que temos experimentado.
Rememorando a data da Proclamação da República, saudamos seus denodados defensores, synthetisados no glorioso exército nacional[...].24
No texto é perceptível uma tentativa do editor de forjar um sentimento de
nacionalismo e apoio popular ao regime republicano, desconsiderando as
críticas e os protestos que aconteciam na cidade, ao notar que, passadas
quase duas décadas, nenhuma grande transformação estrutural teria
acontecido na vida das populações mais pobres (sobretudo negras).
Responsabiliza as pessoas que geriam o governo, não o sistema de governo
em si, pelas promessas não cumpridas de avanço social e inserção da
23
Ibidem, p. 162. Seabra também seria eleito governador do Estado da Bahia entre 1920 e 1924. 24
APB. “A República”. In Diário de Notícias. 14 nov. 1908.
75
população às forças produtivas. O apelo ao sentimento de nacionalismo e
republicanismo parecia ser capaz de sanar todas as desigualdades e resolver
as questões que começaram a causar a impaciência de alguns grupos sociais
de Salvador. Tal postura iria se repetir em outras edições do jornal, o que não
deixa dúvidas a respeito do posicionamento político abertamente republicano
do Diário de Notícias, como se pode notar nesta edição publicada poucos dias
depois:
Reforma e Comemoração
Dentre as muitas manias que têm assaltado a classe dos letrados, depois que o Brasil é republicano, nenhuma, certamente, leva a dianteira à de se reformar o symbolo de nossa nacionalidade.
Paiz prodigiosamente fecundo, onde a belleza límpida do céo se harmoniza perfeitamente com a abundância das pedrarias preciosas [...]o nosso não se pode deixar ficar na imobilidade de uma idéa, assim como têm permanecido em hiperbólicas orações de discursadores fogosos os nossos direitos de liberdade.
É preciso, imprescindível mesmo se torna, e isto doutrina velha, que evolua, que dia a dia surjam reformas creando o que não existe ou reformando o que foi reformado.[...]
Um povo que não muda de idéas, que não substitui as mollas do seu mecanismo administrativo e não inventa, não crea nem destróe é um povo morto; e nós não queremos nem o podemos ser.
Dahi a derrocada do regimen monarchico e a adaptação do systema republicano ao nosso paiz [...] pela sugestão do progresso no trabalho reformador das nossas instituições e nossos costumes tidos, até então, por archaicos[...].
Houve uma verdadeira vertigem de evoluir em que se empenharam todas as classes sociaes, cada qual mais ávida de ascender ao paralello de suas congêneres civilizadas[...].25
As “mudanças” eram vistas como o caminho natural que o país precisava
seguir, em analogia às ideias de “evolução gradual” da humanidade, tema
recorrente entre os teóricos mencionados anteriormente. A falta desse
“espírito” de inovação seria o motivo do fracasso do Império, que não soube
lidar com o fim da escravidão e com a excessiva influência católica no governo,
25
IGHB. “A Bandeira e o Regimen”. Diário de Notícias, 19 nov. 1908.
76
instituições que entraram em crise no decorrer da segunda metade do século
XIX. Era mais ou menos nesta linha de raciocínio que os diversos editoriais
costumavam abrir os periódicos.
A despeito do que falavam os jornais, a chegada da República não teria sido
tão harmoniosa assim. Desde a década de 1870 já se registra a presença de
incipientes clubes republicanos em Salvador, que, de imediato, sofreram
repressão policial e perseguição do Presidente da Província. Mesmo tendo
lançado candidatos às eleições municipais de 1876, o clube não conseguiu
despertar maior interesse e acabou sendo desativado. Já em 24 de maio de
1888, foi criado o Clube Republicano Federal e, pouco tempo depois, o Clube
Centro Republicano da Bahia. Conforme Mário Augusto da Silva Santos, ao
que tudo indica, “às vésperas da proclamação existiam três clubes
republicanos em Salvador”.26
Consuelo Novais Sampaio afirma que na Bahia, os mais ardorosos defensores
da Monarquia resolveram aderir ao novo regime, mas só quando a República
era fato consumado e irreversível. Então, estes tomaram para si a função de
reorganizar o Estado política e administrativamente. Os interesses pessoais
eram bastante acentuados.27 A autora reitera a grande resistência que as elites
baianas manifestaram em relação à mudança de governo, reafirmando o fato
de que a Bahia teria sido o último estado a aderir ao novo regime político: “Com
efeito, até a vigésima quinta hora, a maior parte da elite política jurou fidelidade
ao Imperador, e, abertamente, repudiaram a ideologia igualitária da República.
Liberais e Conservadores uniram-se em protesto contra a mudança do
regime”.28 A lealdade ao Império permanecia tão grande na Bahia que,
conforme a autora, o último Presidente da Província teria recusado um convite
feito pelo Marechal Deodoro da Fonseca de seguir no cargo executivo baiano,
manifestando firmemente suas convicções políticas e afirmando que “o povo da
Bahia permanecia leal às instituições monárquicas”. Em meio a muita
26
SANTOS, Mário Augusto da Silva. O Movimento Republicano na Bahia. Salvador: Centro de Estudos Baianos da UFBA, 1990, p. 6. 27
SAMPAIO, Consuelo Novais. Os partidos políticos da Bahia na Primeira República: uma política de acomodação. Salvador: EDUFBA, 1998, p. 22. 28
Ibidem, p. 27.
77
instabilidade política, a República finalmente foi proclamada em Salvador no
dia 17 de novembro de 1889, dois dias depois da data oficial do evento.29
A adesão dos defensores da monarquia à República só se concretizaria de fato
após o exílio da família real para a Europa, em uma adesão em massa aos
partidos políticos, tentando conseguir alguma vantagem e recuperar o prestígio
ameaçado. Consuelo Sampaio aponta algumas possibilidades para justificar
todo esse apoio da elite política baiana ao Império. Uma das razões elencadas
seria a predominância de uma população rural, de valores conservadores e
resistentes a grandes mudanças. A maioria dos baianos vivia no campo, em
localidades onde o transporte e o acesso à informação eram precários. Além
disso, a maioria da população era analfabeta. Sampaio apresenta dados de
que em 1890, no limiar da República, cerca de 82% dos baianos eram
analfabetos. E como, a exemplo da Monarquia, a República proibia o voto aos
que não fossem alfabetizados, uma parcela significativa dos baianos estaria
impedida de ter uma participação mais ativa na política local. Mais uma
possibilidade importante seria o fato de que o movimento republicano de
Salvador restringiu-se a um pequeno grupo de estudantes e intelectuais,
liderados por Virgílio Damásio, Lellis Piedade, Virgílio de Lemos e outros.30 Não
podemos, todavia, ignorar que mesmo as populações analfabetas possuíam
suas aspirações e lutavam à sua maneira por seus direitos. Considerar que a
maioria do povo baiano e mais especificamente soteropolitano assistiu de
forma passiva e pacífica às mudanças que aconteciam à frente dos seus olhos
é recorrer novamente a um elitismo positivista que relega os “grandes feitos”
aos “grandes homens” e tenta excluir as camadas populares deste processo.
A manutenção de uma perspectiva de poder pautada na exclusão social dos
indesejáveis do processo político contribuiu para o surgimento das grandes
oligarquias locais que transpuseram o poder conquistado no período
monárquico para os tempos republicanos. Os redutos eleitorais continuaram a
ser administrados por uma minoria e estima-se que a participação política da
29
Ibidem. 30
Ibidem, p. 30. Lellis Piedade se notabilizou por ser editor do Jornal de Notícias, um importante periódico de grande circulação em Salvador. O anseio por mudanças radicais em determinadas estruturas da sociedade acabou expondo o lado excludente do republicano, que criticou duramente a permanência do Candomblé nas ruas da capital baiana, como veremos no próximo capítulo.
78
população foi dos irrisórios 2,4% nas eleições presidenciais entre 1894 a 1906,
até 2,7% nas eleições entre 1910 e 1930.31 A ausência de uma participação
maior da população no jogo político foi um fator fundamental para a
perpetuação e proliferação do elitismo presente na política baiana.
2.3. NOVAS LEIS PARA UM NOVO PAÍS
Possuir um código de leis era uma premissa básica para que o Brasil
alcançasse seu reconhecimento enquanto Nação constituída, independente e
liberal. Era necessária a existência de um Código Civil para legislar sobre as
relações de trabalho existentes, além das questões burocráticas, como
doações de bens e heranças. Desta forma, “sem a organização do direito civil,
era impossível organizar e controlar todas as situações e conflitos jurídicos
passíveis de ocorrer entre os cidadãos de economia moderna que o Brasil do
século XIX pretendia ser”.32 Ou seja, a organização do direito civil brasileiro,
ainda incipiente e totalmente influenciado pelo Código Português, fazia parte do
amplo processo “civilizatório” e “modernizador” que o Brasil buscava
ansiosamente, junto com a “desafricanização” das ruas e dos costumes da
população, marcados fortemente pela presença negra.
A grande dificuldade ao se elaborar o Código Civil brasileiro, desde a
independência até momentos antes da abolição, segundo Keila Grinberg, foi a
de tentar definir quem era “cidadão” e quem não poderia gozar deste direito,
uma vez que o Brasil possuía toda uma tradição escravocrata em suas
relações de trabalho.
Assim, um dos poucos direitos que o escravo possuía, a priori, seria o direito à
vida e à preservação de sua integridade física, muito embora isto não fosse
sempre respeitado. A despeito dos demais países da América Latina, que
aboliram a escravidão assim que se tornaram independentes, o Brasil manteve
o direito dos senhores a terem seus cativos, que juridicamente estariam
assimilados a simples mercadorias. Isto impossibilitou, em um primeiro
31
Ibidem, p. 51. 32
GRINBERG, Keila. Código Civil e cidadania. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2002, p. 9.
79
momento, a conciliação de um código liberal, como o que vigorava em boa
parte do mundo ocidental, no qual todas as pessoas possuíam (ou deveriam
possuir) direitos iguais, e o sistema escravista brasileiro, que separava
conceitual e juridicamente as pessoas (livres) e as “propriedades” (escravos).
Tornava-se meio fora de propósito, ou no mínimo incompatível, elaborar um
código civil que pudesse atingir uma parcela significativa da população, uma
vez que os negros não eram necessariamente vistos pela Justiça como
“pessoas”, figurando no referido código apenas na parte referente aos bens, à
propriedade do senhor.33
Wilson Roberto de Mattos refuta tais afirmações, mostrando que desde 1868
pelo menos, com uma Resolução do Conselho Imperial que proibia os castigos
físicos excessivos, já se delineava uma incipiente legislação que beneficiava os
escravizados, sendo complementada em 1886, com a abolição total dos
açoites. A chamada “Lei do Ventre Livre”, de 1871, também seria um passo
fundamental contra a “coisificação” dos cativos e na obtenção de algumas
prerrogativas legais por estas pessoas, na medida em que lhes possibilitava o
direito de manter mãe e filhos juntos até que as crianças completassem oito
anos de idade. Possibilitava também que as crianças fossem assistidas pelo
senhor até completarem esta mesma idade, entre outros direitos. Destarte,
segundo Mattos,
Ainda que seja incorreto considerar os escravos como cidadãos, na acepção clássica da palavra, a Lei de 1871, especialmente naqueles seus aspectos como a legalização do pecúlio; a permissão de compra da alforria; e a proibição de separação de famílias, transforma os escravos em sujeitos portadores de direitos, portanto, incluídos, ainda que parcialmente, no universo dos critérios jurídicos, senão de igualdade e universalidade, ao menos de legalidade. O que pode ter representado um primeiro passo, embora não necessariamente.34
Isto significa dizer que, mesmo não possuindo o status legal de “cidadãos”, já
existiam mecanismos que inseriam os escravizados na ordem legal, apesar de
o autor considerar que apenas estes mecanismos não seriam suficientes para
33
GRINBERG. Keila. Op. Cit., p. 48. 34 MATTOS, Wilson Roberto de. Op. cit, p. 151.
80
que os direitos dos cativos fossem plenamente respeitados. Um outro exemplo
a esse respeito pode ser comprovado ao verificar as medidas jurídicas contra
os que cometessem algum crime. Apesar de não ter os mesmos direitos que
uma pessoa livre, o escravo era considerado uma pessoa responsável por seus
atos segundo a lei penal, sendo passível de julgamento e condenação por
qualquer delito que praticasse, da mesma forma que qualquer homem livre.35
Com a abolição do sistema escravista no Brasil, fez-se necessária uma
reestruturação no sistema jurídico nacional, que garantisse a toda a população,
pelo menos em tese, um julgamento imparcial, que não levasse em
consideração sua cor de pele e sua classe social. Contudo, não foi bem assim
que a nova legislação se comportou, principalmente em relação a questões
religiosas e a práticas terapêuticas alternativas. O Código de 1890, primeiro
código criminal da República, vigorando, portanto, dois anos depois da abolição
da escravatura, já sentia a necessidade de uma intervenção maior dos poderes
públicos, conforme o Artigo 157 do Capítulo III, referente aos crimes contra a
saúde pública:
Praticar o Espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de
talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou
amor, inculcar curas de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim,
para fascinar e subjugar a credulidade pública (um a seis
meses de prisão celular, majorada se ao paciente resultasse
“alteração temporária ou permanente das faculdades físicas)36
Agora que não havia mais escravidão, e todos os homens estavam, pelo
menos oficialmente, livres e com todos os seus direitos civis assegurados,
havia a necessidade, por parte do Estado e das classes dominantes, de
exercer um novo tipo de controle social, mais sutil do que os mecanismos que
existiam no período escravista. Desta forma, as estruturas sociais poderiam
permanecer inalteradas no pós-abolição, e os instrumentos de identidade e
35
Ibidem, p. 53. 36
TJBA. BRASIL. Decretos do governo provisório da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890. 3171 p. Decimo fasciculo de 1 a 31 de
outubro de 1890.
81
poder da população majoritariamente negra, como a religião, estariam
neutralizadas e não ameaçariam a “ordem” estabelecida.
Algumas atividades que, ainda que não necessariamente estivessem
diretamente ligadas ao Candomblé, mas eram práticas comuns a populações
de origem africana e utilizavam de meios alternativos para perpetrar a cura,
assim como acontecia nos terreiros, também eram condenadas pelo referido
Código:
Art. 156: Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentária ou a farmácia; praticar a homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos.
Pena: de prisão celular por um a seis meses e multa de 100$ a 500$000.
Parágrafo Único: Pelos abusos cometidos no exercício ilegal da medicina em geral, os seus autores sofrerão, além das penas estabelecidas, as que forem impostas aos crimes que derem causa.
[...]
Art. 158. Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo, e sob qualquer fórma preparada, substancia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio do denominado curandeiro:
Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.
Paragrapho unico. Si o emprego de qualquer substancia resultar á pessoa privação, ou alteração temporaria ou permanente de suas faculdades psychicas ou funcções physiologicas, deformidade, ou inhabilitação do exercicio de orgão ou apparelho organico, ou, em summa, alguma enfermidade:
Penas - de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000.
Si resultar a morte:
Pena - de prisão cellular por seis a vinte e quatro annos.37
37
Ibidem. O grifo na palavra “curandeiro” está presente no documento original.
82
Podemos atribuir o rigor da lei aos praticantes do “ofício denominado
curandeiro”, assim como de outras atividades, a uma iniciativa do Estado para
conter a sua permanência na República, entrave à busca por uma Nação
“nova” e “ordeira”. Sobre isso, Maria Beatriz Góis Dantas considera que,
embora os negros não sejam citados textualmente nestes artigos, o que
entraria em desacordo com o direito de cidadania adquirido pelos ex-escravos,
alguns artigos, como o nº 157, por exemplo, eram uma “tentativa de garantir
aos dominantes o controle sobre os negros livres, cujos centros de culto,
localizados, sobretudo nas cidades, constituir-se-iam em núcleos virtuais de
„perigo‟ e „desordem‟”.38 Sydney Chalhoub se aproxima desta idéia, quando
infere que havia “um claro consenso entre os deputados de que a Abolição
trazia consigo os contornos do fantasma da desordem”.39 O chamado
“exercício ilegal da medicina” se referia basicamente à utilização de folhas,
ervas, beberagens, chás etc., com finalidade terapêutica sem o devido registro
nos órgãos competentes. Havia uma certa rivalidade pela hegemonia das
práticas curativas na Bahia, que ultrapassaria as fronteiras do século XIX e
permaneceriam vivas e intensas no decorrer do século XX. Assim, era prática
comum os jornais e a polícia reprimirem esta modalidade de cura, seja através
de ácidas palavras ou mediante ações violentas, respectivamente, sob a
alegação de “charlatanismo”, “curandeirismo” e outras alcunhas.40
O polêmico Código Penal de 1890 sofreu criticas de diversos setores das elites
republicanas desde sua entrada em vigor. As elites não o achavam
suficientemente rígido quanto às penas imputadas e censuravam a ausência de
questões ligadas à escola criminológica lombrosiana nos crimes cometidos por
38
DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô, Papai Branco: Usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 165-166. 39
CHALHOUB, Sidney, Trabalho, Lar e Botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle èpoque.Campinas-SP: Ed. UNICAMP, 2001, p. 66. 40
Sobre a relação entre as diversas práticas alternativas de cura e a maneira como estas eram tratadas pelas autoridades baianas, sobretudo na região do Recôncavo Sul, consultar SANTOS, Denílson Lessa. Nas encruzilhadas da cura: Crenças, saberes e diferentes práticas curativas Santo Antônio de Jesus – Recôncavo Sul – Bahia (1940-1980). 2005. 231p. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador-BA, 2005. Chalhoub também faz uma excelente abordagem sobre esta questão quando discute a resistência da população à vacinação e às ações governamentais para obrigá-los a se vacinar. Cf. CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril:
cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
83
negros.41 Neste código, pela primeira vez se pode perceber a universalidade
das penas, ou seja, a não existência de leis específicas para brancos ou
(principalmente) para negros, lançando assim as bases para a igualdade civil
entre todos os brasileiros, pelo menos do ponto de vista teórico. Será
considerado ineficiente no impedimento de novos crimes, segundo juristas do
período, que exigiam restrições ao exercício da cidadania e dos direitos.
Apesar das severas críticas que sofrera, este Código não recebeu quaisquer
alterações durante toda a Primeira República. Contudo, as ideias pautadas na
Criminologia europeia transposta para o Brasil contribuíram na elaboração de
estratégias punitivas mais rígidas, que buscaram coibir, “educar”, fiscalizar e
punir quem se desviasse das normas de conduta moralmente estabelecidas
pela sociedade, a exemplo de ações mais duras nos presídios, manicômios e
da atividade policial.42
Sendo assim, qual seria a maneira mais eficaz de impedir que o crime se
perpetuasse? Quais seriam estas estratégias? O filósofo e epistemólogo
francês Michel Foucault realizou diversos trabalhos sobre as relações entre os
delinquentes e as punições a estes aplicadas, e apresenta alguns argumentos.
Foucault acredita que para conter sua proliferação devem existir obstáculos
que tornem desvantajosa a prática de um crime. Seria necessário instituir pares
de representação de valores opostos em que, para cada delito, houvesse uma
punição exemplar correspondente. Para tanto, o aparato punitivo precisa
respeitar algumas especificações: Em primeiro lugar, a justiça deve evitar
arbitrariedades.
Foucault reconhece que as definições do que é ou deixa de ser um crime varia
de lugar para lugar, em razão dos interesses pessoais de quem as cria ou da
sociedade a qual a mesma será aplicada. Desta forma, a ligação entre o crime
e a sua punição tem que ser a mais próxima possível. Assim, o medo do
castigo desencorajaria os criminosos. “Que o castigo decorra do crime; que a
41
Cesare Lombroso, principal expoente da antropologia criminal, argumentava ser a criminalidade um fenômeno físico e hereditário, e, como tal, um elemento objetivamente detectável nas diferentes sociedades. Sobre o assunto, ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. Cit. 42
ALVAREZ, Marcos César; SALA, Fernando; SOUZA, Luís Antônio. A Sociedade e a Lei: O Código Penal de 1890 e as novas tendências penais na Primeira República. In Justiça e
História, vol. 3, n. 6. Porto Alegre: 2003, p. 3.
84
lei pareça ser uma necessidade das coisas e que o poder aja mascarando-se
sob a força suave da natureza”.43
Isto deve funcionar de maneira tal que diminua os fatores que levam o
criminoso a achar o crime atraente, tornar as penas temíveis e incutir na mente
das pessoas que o crime possui mais desvantagens do que vantagens. Porém,
tudo isso precisa ter um tempo estipulado, pois não haveria nenhum benefício
em manter o criminoso preso por tempo indeterminado, já que a intenção das
prisões seria a de transformá-lo e reintegrá-lo à sociedade, livre de seus vícios.
As prisões precisam ser temporárias. Entretanto, as teorias de Michel Foucault
não tiveram tanta funcionalidade na Bahia, haja vista a permanência de
determinados costumes afrobrasileiros, como a Capoeira e o Candomblé que,
mesmo sendo atividades proibidas, enfrentaram as autoridades formais e
sobreviveram através dos séculos, até conseguirem seu reconhecimento.
As leis que vigoraram a partir de 1890 (assim como suas antecessoras) tinham
como objetivo estabelecer normas de comportamento pautadas na disciplina,
na moral e nos “bons costumes”. Assim, padronizar os hábitos e os elementos
culturais, elegendo os mais apropriados às elites era a medida mais óbvia a ser
adotada na tão sonhada busca pelo “progresso” e pela “modernidade”. Isto só
poderia ser conseguido mediante o exercício contínuo da disciplina e do
controle social daqueles que se desviassem da “ordem” que se impunha.
Foucault afirma que a disciplina “procede em primeiro lugar à distribuição dos
indivíduos no espaço”, utilizando para tal diversos procedimentos, entre eles a
“clausura” do grupo social a ser disciplinado, aliada a outras técnicas, como
acontece nos conventos, quartéis, escolas e fábricas.44
O exercício do poder disciplinador se expressa como uma versão reduzida dos
mecanismos penais, que procura condenar tudo que se desvie do padrão, tudo
que pareça inadequado. Daí a razão de haver tantas perseguições às práticas
das “minorias” sociais. A subversão da ordem proporcionada pelo Candomblé e
pelos métodos extra-oficiais de cura, que sobreviveram por séculos e
continuavam a existir na República se constituíam em uma afronta à medicina
43
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. 36ª ed. Petrópolis – RJ, 2009, p. 101-102. 44
Ibidem, p. 136-137.
85
convencional e aos valores das elites e figuravam mascaradamente sob o título
de “contravenção”, que, de acordo com o artigo 8º do Título II do citado Código
Penal, referente à caracterização do que seria crime e quem seriam os
criminosos, explica que é o “[..]facto voluntario punivel que consiste unicamente
na violação, ou na falta de observancia das disposições preventivas das leis e
dos regulamentos.”45 Ou seja, a contravenção é algo que não chega a ser tão
grave quanto os crimes propriamente ditos, porém está sujeita a condenações
pela Justiça, em forma de prisão ou em pagamentos de multas, pelo fato de
atentarem contra a norma. Foucault afirma que este tipo de normatização dos
costumes só poderia alcançar algum êxito em um sistema de igualdade formal,
em um ambiente no qual o comportamento aceito esteja expresso de maneira
homogênea, impondo, desta maneira, que as diferenças individuais se
adéqüem a este sistema.46
Desta maneira, o Livro III do Código Penal de 1890 intitula-se Das
contravenções em espécie, no qual estão especificadas detalhadamente o que
seriam essas contravenções. O primeiro capítulo fala sobre a profanação de
túmulos dos cemitérios, o segundo sobre as loterias e rifas ilegais, o terceiro
criminaliza as apostas e casas de jogos, e assim sucessivamente, até chegar
ao Capítulo XII, referente aos mendigos e ébrios (já discutido no capítulo
anterior desta dissertação) e finalmente o Capítulo XIII, Dos vadios e capoeiras.
Nesta parte do Código, os “vadios”, aqueles que não possuíam uma ocupação
fixa, são colocados na mesma categoria que os praticantes da chamada
“capoeiragem”, em uma espécie de “ampliação” do capítulo XII. Se um
criminalizava os “ébrios e mendigos”, e o outro, os “vadios e capoeiras”, na
prática a ação do Estado seria mais ou menos a mesma a um grupo cada vez
maior de pessoas:
Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes:
45
TJBA, BRASIL. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil. Ibidem. 46
FOUCAULT, Michel. Op. Cit, p. 177.
86
Pena - de prisão cellular por quinze a trinta dias.47
O parágrafo 1º deste artigo dizia que o infrator sentenciado como vadio ou
vagabundo deveria assinar um termo obrigatório se comprometendo a arranjar
uma ocupação em, no máximo 15 dias após sua liberação. Os menores de 14
anos seriam encaminhados a estabelecimentos disciplinares industriais, onde
poderiam ser mantidos até os 21 anos. Após este período, com a maioridade, o
jovem estaria novamente susceptível a ser preso pelo mesmo crime. Note-se
mais uma vez o “clichê” utilizado para justificar a criminalização e sua
consequente punição na expressão “[...] manifestamente offensiva da moral e
dos bons costumes”.
O artigo 400, por sua vez, complementava o anterior. Dizia que se o termo
fosse quebrado, isto se configuraria como reincidência, e o infrator, caso fosse
brasileiro, poderia ser preso por até três anos em alguma unidade penal
localizada em ilhas marítimas ou em regiões de fronteiras do território nacional,
podendo até serem utilizados os presídios militares localizados nestas regiões.
Caso o infrator fosse estrangeiro, o mesmo seria deportado. Os três próximos
artigos são dedicados à criminalização da prática da Capoeira:
Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal:
Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes.
Paragrapho unico. E' considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta.
Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
Art. 403. No caso de reincidencia, será applicada ao capoeira, no gráo maximo, a pena do art. 400.
Paragrapho unico. Si for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena.
47
TJBA, Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, Cap. XIII, “Dos vadios e capoeiras”.
Ibidem.
87
Art. 404. Si nesses exercicios de capoeiragem perpetrar homicidio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor publico e particular, perturbar a ordem, a tranquilidade ou segurança publica, ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente nas penas comminadas para taes crimes.48
As prisões efetuadas levavam em conta outros fatores além do jogo puro e
simples da Capoeira. Elementos característicos da “capoeiragem”, como o uso
da navalha, a extorsão a comerciantes ou até mesmo sua identificação por
policiais poderiam ser motivos suficientes para que os capoeiras fossem
levados à cadeia. As penas em dobro atribuídas aos “cabeças”, que
certamente seriam as pessoas melhor posicionadas na hierarquia da Capoeira,
remetem às punições impetradas pela justiça do período colonial e imperial aos
líderes de insurreições escravas, a título de exemplo para os demais, com o
intuito de que tais práticas não voltassem a acontecer. Caso tal medida ainda
não fosse suficiente, se ela não tivesse surtido o efeito esperado, os
reincidentes acabariam sendo deslocados a instituições prisionais citadas no
artigo 400. Como não poderia faltar, o artigo 404 apela mais uma vez à ideia de
manutenção da ordem e da tranquilidade pública. O que mais chama atenção
neste artigo é que um ocasional homicídio ou lesão corporal decorrente desta
prática estão colocados no mesmo artigo do ultraje ao pudor público, e do
desrespeito à ordem e moral, fazendo com que o fato de o “delituoso” ser um
“capoeira” torne-se um fator agravante, atuando cumulativamente na decisão
da justiça sobre sua pena.49
Os primeiros anos da República foram de muito trabalho para o Poder
Legislativo. Após um ano de implantação do Código Penal (o primeiro sistema
jurídico republicano), entra em vigor a Constituição Federal, de 24 de fevereiro
de 1891. Este documento preza pela descentralização política e administrativa,
dando uma autonomia maior para os estados federados (que permaneciam
48
Ibidem 49
Carlos Eugênio Líbano Soares possui uma obra vastíssima na qual o mesmo aborda a prática da Capoeira na Corte do Rio de Janeiro. Cf. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, Prefeitura do Rio de Janeiro, 1994; idem. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2ª ed. rev. e ampl. Campinas-SP: Editora Unicamp,
2004. Além destes livros, ver artigo na Revista Afro-Ásia: A Capoeiragem baiana na Corte Imperial (1863 – 1890). In Revista Afro-Ásia n. 21-22 (1998-1999). Disponível em
http://www.afroasia.ufba.br/edicao.php?codEd=38.
88
subordinados ao poder central, sediado no Distrito Federal), quando transforma
as antigas províncias em Estados Unidos do Brasil.
Levando em consideração o caráter laico da República, já que não havia mais
uma religião oficial do Estado, o artigo 11, em seu 2º parágrafo, referente às
disposições preliminares da organização federal, institui que é vedado ao
Estado, assim como à União “estabelecer, subvencionar ou embaraçar o
exercício de cultos religiosos.”50 Assim, nenhum governo poderia criar qualquer
mecanismo que incentivasse ou proibisse a prática de qualquer religião. O que
mais traz elementos que atestam a existência de artigos que supostamente
asseguram a igualdade de direitos a todos os cidadãos brasileiros, bem como
dirimem quaisquer dúvidas a respeito da nova condição do Estado em relação
ao seu posicionamento diante da Igreja Católica é a Seção II, que versa sobre
a Declaração de Direitos. Vejamos alguns dos seus artigos e parágrafos mais
relevantes:
Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 1º - Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
§ 2º - Todos são iguais perante a lei.
A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho.
§ 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum.
§ 4º - A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.
§ 5º - Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos
50
AHPMS – Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Salvador, BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, Título I: Da Organização Federal.
89
religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis.
§ 6º - Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos.
§ 7º - Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados.51
Como se pode observar pelos termos descritos acima, a Declaração de
Direitos significou um considerável avanço jurídico para a maioria da
população, em relação às leis brasileiras anteriores. O fato de acabar com os
títulos nobiliárquicos e dizer textualmente que “todos são iguais perante a lei”
procura acabar com as hierarquias existentes no país desde o período colonial,
marcando, ou melhor, consolidando o fim de leis específicas para determinados
grupos de pessoas (como acontecia em códigos precedentes). Em tese, um ex-
senhor que possuía determinado título de nobreza estaria passível das
mesmas punições previstas em lei que o seu ex-escravo, caso delinquisse. No
que diz respeito à religião, grande parte desses avanços se devem ao
rompimento estatal com a Igreja Católica. Perder o status de Igreja Oficial do
Estado teria colocado em xeque sua hegemonia, uma vez que todas as
manifestações religiosas passaram a ser válidas, os cemitérios, que sempre
foram administrados pelas Santas Casas de Misericórdia ou por alguma outra
instituição vinculada à Igreja também passaram a ser laicas, assim como o
ensino público e a celebração de casamentos.52
Outros parágrafos do mesmo art. 72 garantiam o direito do cidadão a se
associar ou se reunir em ambientes fechados, desde que não ameaçassem a
segurança do país nem atentassem contra a tão falada moral pública, além da
liberdade de expressão do pensamento:
51
Ibidem, Sessão II: Declaração de Direitos. 52
Ao falar sobre a Cemiterada, um movimento popular ocorrido em Salvador em 1836, João José Reis aborda a relação entre os cemitérios e a Igreja Católica. Cf. REIS, João José. A Morte é uma festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
90
§ 8º - A todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas; não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública
[...]
§ 11 - A casa é o asilo inviolável do indivíduo; ninguém pode aí penetrar de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir as vítimas de crimes ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela forma prescritos na lei.
§ 12 - Em qualquer assunto é livre a manifestação de pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido o anonimato.
§ 13 - A exceção do flagrante delito, a prisão não poderá executar-se senão depois de pronúncia do indiciado, salvo os casos determinados em lei, e mediante ordem escrita da autoridade competente.
§ 14 - Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, salvas as exceções especificadas em lei, nem levado à prisão ou nela detido, se prestar fiança idônea nos casos em que a lei a admitir.53
Havia uma discrepância entre a teoria e a prática, isto é, entre o texto da lei e a
ação policial. Apesar da inviolabilidade do lar e do direito à livre associação, a
polícia não mediu esforços para invadir violentamente os terreiros de
Candomblé ou de outras religiões de matrizes africanas e prender quem fosse
encontrado nesses lugares, sendo auxiliada com frequência pela imprensa que,
fazendo o seu papel de “voz da moral e dos bons costumes da sociedade
soteropolitana”, atuou incisivamente “denunciando” a existência destes cultos e
cobrando enérgicas atitudes das autoridades. A ação sempre era justificada
nos autos como uma repressão aos “detratores” dos valores preconizados pela
pátria, como a “ordem” e o “progresso” e não havia nenhum órgão na justiça
que fiscalizasse tais ações, por isso as justificativas não precisavam ser muito
elaboradas. Um exemplo desta violação de direitos está na invasão ao
Candomblé de Nelson José do Nascimento em 03 de outubro de 1939 e sua
decorrente prisão, que veremos detalhadamente no próximo capítulo. O pai-de-
santo foi preso por ser um “conhecido curandeiro” e pela prática da “magia
negra”, e a justiça não lhe ofereceu reais possibilidades de defesa. O processo
53
AHPMS, Op. cit.
91
partiu desde a primeira página pressupondo sua culpa e buscando mais
indícios que servissem como justificativa para sua condenação.54
Paralelamente à Constituição Federal que entrou em vigor no dia 24 de
fevereiro de 1891, alguns meses depois, foi promulgada a Constituição do
Estado da Bahia, em uma data ainda mais simbólica para o povo baiano: o dia
escolhido fora o 2 de julho de 1891, quando se comemorava os 68 anos da
independência do Brasil na Bahia.55 Seus artigos, obviamente, seguiam o que
previa o texto nacional, complementando apenas algumas especificidades. O
Capítulo Único do Título I versava sobre os limites do Estado, bem como
reafirmava sua soberania, sua forma de governo e sua vinculação à União,
formando uma República Federativa. Reconhecia a Bahia como um Estado
soberano, unido aos demais Estados brasileiros e formando com eles uma
República Federativa; garantia também sua fórmula de governo como sendo
democrática e representativa e a soberania do Estado exercitada através de
três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.56
Por sua vez, o Título VII, que dissertava sobre os direitos e garantias do
cidadão, se assemelhava bastante da Constituição Federal, chegando ao ponto
de parecerem ser o mesmo documento. A seguir, alguns dos parágrafos mais
pertinentes:
Art. 136: Esta Constituição assegura aos brazileiros e estrangeiros residentes no Estado a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:
§1º. Todos são eguaes perante a lei;
§2º. Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude da lei;
54
APB, Judiciário. Processo – Crime. Nelson José do Nascimento (réu). Est. 30/ Cx. 1056/ Doc. 17/ 1939. 55
Apesar de o 2 de Julho não ser considerado como a data oficial da independência brasileira, parece-me incoerente falar de “independência da Bahia” separadamente, uma vez que o estado pertence à União. Logo, é complexo falar de uma independência nacional em 1822, quando quase um ano depois ainda se encontrava resistência portuguesa no país. Sobre o assunto, consultar KRAAY, Hendrik. Entre o Brasil e a Bahia: As comemorações do Dois de Julho em Salvador, Século XIX. In Revista Afro-Ásia, n. 23, 2000, p. 52. Disponível em: http://www.afroasia.ufba.br/edicao.php?codEd=37; ALBUQUERQUE, Wlamyra. Algazarra nas Ruas: Comemorações da independência na Bahia (1889-1923). Campinas, SP: Ed. UNICAMP,
1999. 56
TJBA, BAHIA. Constituição do Estado da Bahia. Promulgada a 2 de julho de 1891 pela
Assembléa Constituinte. Bahia: Imprensa Official do Estado, 1915.
92
[...]
§8º. A casa é o asylo inviolável do individuo. Ninguém pode nella penetrar á noite sem consentimento do morador, senão para acudir victimas de crimes ou desastres; nem de dia, senão nos casos e pela forma prescriptos na lei.
[...]
§14. A todos é licito reunirem-se livremente e sem armas, não podendo intervir a policia senão para manter a ordem publica.
[...]
§16. É garantido o direito de associação para fins conhecidos e lícitos;
[...]
§19. A ninguém pode ser prohibido o exercício de qualquer profissão, trabalho, cultura, industria ou commercio, que não seja prejudicial aos bons costumes, á segurança e á saúde dos cidadãos;
[...]
§24. Por motivo de crença ou funcção religiosa nenhum cidadão poderá ser privado dos seus direitos civis e políticos, nem eximir-se do cumprimento de qualquer dever cívico;
§25. Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum;
§26. Nenhum culto ou egreja gosará de subvenção official, nem terá relações de dependência ou alliança com o governo do Estado ou dos municípios;
§27. Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos;
§28. Os cemitérios públicos terão caracter secular e serão administrados pela autoridade municipal.57
Como se pode perceber, as duas Constituições caminhavam na mesma
direção. Entravam em concordância nos principais pontos, como se uma fosse
o complemento da outra. Ao menos na teoria, os direitos do cidadão baiano
estavam amparados por duas constituições, muito embora o pensamento de
alguns setores da elite intelectual soteropolitana conflitasse em vários pontos.
O parágrafo 24 da Constituição Estadual, por exemplo, que garantia o livre
exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial não se coadunava
57
Ibidem
93
com o pensamento da imprensa e de alguns de seus leitores, que criticavam a
presença dos engraxates nas ruas de Salvador, como podemos ver nesta carta
enviada ao jornal Diário de Notícias para a seção “Queixas e Reclamações”:
Os engraxates – Assumpto que recomendamos a ação da policia é a imprudencia dos indivíduos que se dão a semelhante meio de vida.
Dispersos pelos passeios das ruas e praças, impedindo o transito publico, os taes engraxates não se limitam só a importunar os transeuntes com as suas costumadas e amoladoras solicitações, mas chegam ao ponto de se segurar as pernas de pessoas que, distraidamente, por alli passam, como se por meio tão inconveniente podessem induzil-as a dar-lhes o lustro das botinas.
Dentre todos, porém, os mais perniciosos são os que trabalham na praça do Conselho Municpal, os quaes, além de tudo, não raro, se dão á troca de epithetos injuriosos pela rivalidade entre eles existentes com a acquisição de freguezes.
Recomendamol-os, pois, ao senhor tentente policiador do
districto da Sé.58
Devemos salientar mais uma vez que estas atividades não eram exclusivas das
populações negras, embora os jornais constantemente as noticiassem desta
maneira. Palavras como “perniciosas”, “demoníacas”, “atrasadas” etc. eram
utilizadas tanto ao se referir às religiões de matrizes africanas quanto a
algumas ocupações. Além dos engraxates, as demais profissões que possuíam
um prestígio social hierarquicamente menor, eram criticadas com relativa
frequência, como símbolos de “atraso”, a exemplo das vendedoras de acarajé.
As “reminiscências de um passado colonial” comprometiam o “progresso” da
Bahia enquanto estado “civilizado”, como podemos perceber nesta matéria
veiculada pelo periódico “A Tarde”, em novembro de 1926:
A Preta do Acarajé ainda vive! Reminiscências da Bahia antiga que resistem ao progresso A Bahia conserva ainda, apezar de tudo, pronunciada feição de cidade colonial. Typos e cousas existem, aqui, perfeitamente semelhantes ás do tempo do senhor D.João VI- aturdido e acovardado pela ameaça invasora do corso- buscou no território jovem do Brasil o asylo seguro contra as hostes de Junot.
58
APB, “Queixas e Reclamações”. Diário de Notícias, 06 fev.1904. A palavra em negrito é do
documento original.
94
Verdade é que o progresso, pouco a pouco, vae realisando sua obra de reforma, destruindo velharias, a fim de conseguir logar para realisações novas.59
A matéria ainda cita algumas mudanças que ocorreram à medida que o tempo
foi passando, como a cadeirinha carregada por escravos que deu lugar aos
automóveis, por exemplo, e dos lampiões que foram substituídos pelos postes
de iluminação elétrica, mas lamenta que algumas “reminiscências do passado
colonial e escravista” baiano e práticas majoritariamente negras, como é o caso
das “vendedeiras de acarajé” citadas na reportagem, sobrevivam e coexistam
com este espaço urbano e “moderno” que vai se delineando em Salvador na
década de 1920.60
Enquanto isso, o Código Civil continuava sendo elaborado. Ele vinha pra
resolver questões não previstas nas Ordenações Filipinas que ainda vigoravam
no país, bem como complementar o que por ventura ainda não estivesse
presente na Constituição, no tocante aos direitos civis dos brasileiros na
República. Definiu com mais detalhes os assuntos relacionados aos
casamentos, às propriedades e demais questões familiares, assim como aos
direitos da população, de maneira geral. Sua lentidão em ficar pronto foi
motivada por diversos fatores, como a resistência da Igreja, a dificuldade de
legislar sobre a condição jurídica das mulheres e os direitos das populações
negras, que deixaram de ser escravas. Depois de acaloradas discussões e
diversas mudanças no panorama nacional, finalmente, no primeiro dia do ano
de 1916, o presidente Wenceslau Braz sanciona a Lei nº 3.071, que instituía o
Código Civil em todo o território nacional. Entre os seus mais de 1.800 artigos,
os que se destacam em relação ao que vem sendo discutido neste trabalho são
os referentes aos direitos das pessoas. O Capítulo I, “Das pessoas naturais”
descreve quem teria os seus direitos civis garantidos e quem estaria inapto a
gozar destes direitos:
Art. 2. Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil.
59
IGHB. “A Preta do Acarajé ainda vive!”. A Tarde, 13 nov. 1926. Subtítulo em negrito é do texto original. 60
Sobre o assunto, ver FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Quem pariu e bateu, que balance! Mundos femininos, maternidade e pobreza. Salvador, 1890-1940. Salvador,
EDUFBA, 2003.
95
Art. 3. A lei não distingue entre nacionais e estrangeiros quanto à aquisição e ao gozo dos direitos civis.
Art. 5. São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I. Os menores de dezesseis anos.
II. Os loucos de todo o gênero.
III. Os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade.
IV. Os ausentes, declarados tais por ato do juiz.
Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos [...], ou à maneira de os exercer:
I. Os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos.
II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal.
III. Os pródigos.
IV. Os silvícolas.
Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação.
[...]
Art. 9. Aos vinte e um anos completos acaba a menoridade,
ficando habilitado o indivíduo para todos os atos da vida civil.61
O Código Civil não faz referência significativa a questões religiosas nem
menciona qualquer imposição às manifestações culturais e religiosas de
maioria negra, mas apesar de se dizer um código democrático e liberal, ainda
mantém alguns resquícios do tradicionalismo patriarcalista que vigorava no
Brasil Colonial e Imperial, na medida em que as mulheres casadas não
possuíam direitos civis próprios e os índios eram vistos como inaptos. A
maioridade era alcançada aos 21 anos, exceto em alguns casos especiais,
como concessão do pai ou da mãe (caso o pai tenha falecido), por sentença do
61
TJBA, BRASIL. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil: Lei n: 3071, de 1 de janeiro de
1916. A Ferreira Coelho. Rio de Janeiro: Oficinas Graphicas do Jornal do Brasil, 1925.
96
juiz, por casamento, pela efetivação em algum cargo público, pela colação de
grau científico em algum curso de nível superior etc.62
Enquanto isso, na esfera local, a Bahia prosseguiu com sua reestruturação
jurídica no século XX, mantendo os ideais de modernização e “progresso” do
século anterior. Em 1917, é publicado o projeto do Código de Posturas do
Município da Cidade do Salvador, Capital da Bahia, que, em 1921, entrou em
vigor efetivamente. Este código regulamentava diversas normas de
construções no perímetro urbano da capital baiana, bem como estabelecia as
regras de convivência e de comportamento na cidade. Por exemplo, para evitar
as doenças que assolaram a cidade de Salvador além de várias cidades do
interior, o projeto proibia os enterros nos adros das Igrejas, ou em qualquer
lugar que não fosse aquele designado para isso.63
Além destas posturas que coordenavam a utilização do solo e a questão dos
enterramentos citados acima, havia as punições para quem jogasse lixo ou
entulho nas vias públicas. Afinal, era preciso zelar pela aparência da cidade,
que, conforme mencionamos no capítulo anterior, apresentava um aspecto
muito sujo e pouco atrativo para os visitantes de outras localidades.
Este Código de Posturas também reitera a proibição aos festejos do entrudo e
outras festas públicas sem a devida autorização. O mesmo valia para a
utilização de fogos de artifício ou confetes e para aqueles que queriam andar
mascarados. Assim as posturas buscavam organizar os festejos
regulamentando o que poderia ser feito e coibindo o que era considerado
inadequado. A Postura n. 144, por exemplo, proibia o jogo de entrudo e a
venda de objetos utilizados nestas comemorações, como bisnagas, esferas de
cera e lança-perfumes. As Posturas seguintes proibiram também o uso de
máscaras fora dos três dias de carnaval, cobravam uma licença especial para
clubes e casas de diversões públicas ou clubes (carnavalescos ou não) e
vetaram os tradicionais bandos anunciadores de festas públicas. As multas
62
Ibidem. 63
AHPMS, INTENDENCIA MUNICIPAL. Projecto do Código de Posturas do Município da Cidade do Salvador, Capital do Estado da Bahia. Salvador. O Democrata, 1917, p. 18-19
(Ver Anexo III).
97
poderiam variar de 5$000 a 30$000 (de cinco a trinta mil réis), a depender da
infração.64
Desta maneira, a Prefeitura Municipal de Salvador se encarregava de
disciplinar as manifestações populares de lazer. A propósito, outras posturas
foram editadas com o intuito de impedir diversões públicas no meio da rua,
como as brincadeiras de “empinar arraias e papagaios” e jogar futebol. O
futebol, assim como qualquer outra atividade esportiva, só poderia ser
praticado em locais “apropriados e designados pela Municipalidade, mediante
licença da mesma”.65
Como pudemos perceber até agora, analisando este código, o registro parece
ter sido a fundamental estratégia da Prefeitura para promover a “limpeza social”
das ruas de Salvador. E como obter estas licenças não era gratuito, também
seria uma boa oportunidade de arrecadação, principalmente quando cobrava
das pessoas mais pobres (que eram, na maioria das vezes, negras), taxando
sua matrícula, que era obrigatória para realizar alguma atividade ou
desempenhar a sua profissão:
Postura n. 175: São obrigados á matrícula os que se occuparem, d‟ora em diante, em serviços domésticos, a saber: serviços internos e externos de hotéis, casas de pensão e de pasto, hospedarias, casas de cambio, restaurantes, botequins, padarias, confeitarias, pastelarias, mercearias, refinações de açúcar, torrefações de café, barbearias, lavandarias, engommadeiras, amas de leite, vendedores de doces, refrescos, caldos de canna, sorvêtes, queimados, bonbons e enfeites para salas, bijoutarias, tetéas para crianças, plantas vivas ou não, calçados, objetos de chifres, de Flandres, vassouras, leite, hortaliças, peixes, mariscos, e outros gêneros alimentícios, empregados de açougues, de serviço marítimo e terrestre, de carga, descarga e condução de passageiros no porto, nas estações de bondes e estradas de ferro, conductores e vendedores de pão, carroceiros e cocheiros de carro, guiadores de automóveis, e seus ajudantes, ganhadores de fretes nas vias públicas, compradores de garrafas e sacos vasios, condutores e motoreiros de bondes e ascensores, engraxátes, vendedores de jornaes, bilhetes e postaes, carregadores de caixas de mascates, aguadeiros, vendedores de carvão, ovos, galinhas e outras aves, e finalmente, vendedores de outras mercadorias.
Pena: 5$000 a 10$000 de multa.
64
Ibidem. Capítulo XXI – Do Entrudo, mascaras e confetti, espetáculos e fogos de artifício. 65 Ibidem. Capítulo XXIII – Do uso de artefactos de papel e outros, foot-ball.
98
Para tal fim haverá, na secção de Fiscalização Municipal, um livro especial, pagando cada um dos mencionados na presente Postura a taxa de 5$000.
Para se obter a referida a matrícula, deve o pretendente designar sua profissão, e o lugar onde a vai exercer, e exibir sua carteira de identificação.
Para o serviço de amas de leite, a Directoria de Hygiene e Assistência Pública municipal de regerá pelo Regulamento
annexo a este Código.66
As posturas seguintes determinavam que quando os agenciadores de hotéis,
pensões, hospedarias e demais matriculados deixassem o serviço no local
onde eram registrados, o proprietário destes estabelecimentos deveria
comunicar aos órgãos fiscais do município, para que tal fato fosse devidamente
anotado no livro de matrícula. Caso haja alguma queixa quanto a furto ou roubo
de quaisquer objetos, e o responsável tenha sido um dos matriculados, este
perderia sua licença. O matriculado não poderia passar de um estabelecimento
a outro sem exibir ao seu novo patrão o seu atestado, sob o risco de pagar
5$000 de multa. Seriam cassadas as matrículas das pessoas que haviam sido
condenadas por algum crime contra as pessoas e propriedades; dos que
contraíssem moléstias contagiosas e consideradas “repugnantes”, aquelas que
apresentassem alguma deficiência física ou moral, que comprometesse o
desempenho de suas funções; dos menores, sem licença dos pais, ou pessoas
que os tenham sob sua guarda; e, finalmente, das mulheres casadas, sem
autorização de seus maridos, vivendo em companhia deles. No documento da
matricula deveria constar o nome, filiação, naturalidade, estado, idade,
residência, nacionalidade, número de sua carteira de identificação; ficando
obrigado o matriculado a comunicar qualquer alteração relativa ao estado e
residência, para serem feitas devidas anotações na respectiva matrícula e seu
canhoto.67
As taxas de inscrição, assim como as multas no caso de quem fosse pego sem
sua matrícula refletem a preocupação da Prefeitura de Salvador em controlar,
inclusive numericamente a realização de atividades consideradas mais
66 Ibidem. Capítulo XXVII – Da matrícula, sua regularização e obrigatoriedade. 67
Ibidem. Convém lembrar mais uma vez que a prática de matricular os trabalhadores de Salvador já ocorria no século XIX. As posturas foram constantemente reeditadas, até chegarem no século XX, mudando e se adequando aos tempos. Sobre o assunto, consultar MATTOS, Wilson Roberto de. Op. cit.
99
populares e de menor prestígio social. Cobrar cerca de 5$000 ou efetuar uma
multa que poderia chegar a 10$000 era um valor alto, principalmente quando
se tratava de engraxates, vendedores de doces, sorveteiros e as diversas
outras profissões expressas na Postura 175. Como ninguém poderia ficar sem
trabalhar, a saída acabava sendo o mercado informal, mesmo estando sujeitos
às sanções dos órgãos fiscalizadores. A presença das mulheres trabalhando
nas ruas também era algo que não era muito bem visto pela sociedade,
sobretudo pela carga negativa que se atribuía aos freqüentadores deste
espaço. Essas não recebiam o respaldo legal para se sustentarem com
independência, tendo sempre os seus direitos vinculados ao marido, inclusive o
de trabalhar.
Apenas quatro anos depois, o Diário Oficial do Estado da Bahia publica, em 22
de novembro de 1925, o Código Sanitário do Estado da Bahia, sancionado pelo
então governador, Francisco Marques de Góes Calmon. Este código guarda
algumas semelhanças com o Código de Posturas Municipais de Salvador, na
medida em que regulamenta as construções e cria normas para sua execução.
Além das edificações, o Código Sanitário legislava sobre a saúde, sobre as
normas gerais de produção, armazenamento e distribuição de alimentos e
sobre as mais diversas áreas. Na ocasião, foi criado um órgão específico para
fiscalizar e evitar que as doenças contagiosas voltassem a aparecer, a polícia
sanitária. Suas atribuições eram:
Art. 387 – A polícia sanitária constará de inspeção dos prédios, logares e logradouros públicos, da vacinação anti-variólica e da prophylaxia geral e especifica das doenças transmissíveis.
Art. 388 – Essa polícia será executada regular e permanentemente quer nas épocas normais, quer durante o desenvolvimento de epidemias.
Art. 389 – A polícia sanitária tem por fim evitar a invasão e propagação das doenças transmissíveis, prevenir ou corrigir os vícios de construção de prédios, no que disser respeito aos interesses da saúde pública, bem como as faltas de seus proprietários, locatários ou moradores, e descobrir os casos de doença de notificação compulsória.68
68
APB, Código Sanitário do Estado da Bahia. In Diário Oficial do Estado da Bahia, Estados
Unidos do Brasil, 22 nov. 1925.
100
Entretanto, o que mais convém mencionar a respeito do Código Sanitário do
Estado da Bahia diz respeito ao exercício da medicina ou de qualquer prática
curativa. Para realizar qualquer atividade nesse ramo, o médico, farmacêutico,
dentista, parteira etc. deveriam possuir um registro especial que os habilitasse
a exercer esta profissão. Pesadas multas incidiriam sobre os infratores, muitas
vezes dobradas em casos de reincidência:
Art. 1.066 – Somente será permitido o exercício das profissões de médico, pharmacêutico, dentista e parteira:
I – Aos que se habilitarem por título conferido pelas escolas médicas officiais ou equiparadas nas formas da lei.
Art.1.067 – É indispensável para o exercício de qualquer das profissões acima numeradas o registro do respectivo título na Sub-secretaria de Saúde e Assistência Pública.
Pena: multa de 200$000 e o dobro em reincidências.
[...]
Art. 1.074 – Somente será permitido o exercício da arte de curar, em qualquer de seus ramos e por qualquer de suas formas, aos médicos que tenham satisfeito as exigências dos artigos 1.066 e 1.067 e seus números e paragraphos.
[...]
Art. 1.084 – O médico que assumir a responsabilidade de tratamento, ou passar attestado de óbito de pessoa que tenha sido tratada por indivíduo não profissional; firmar attestado gracioso ou sem haver examinado o doente, incorrerá na multa de 500$000 e na suspensão do exercício da profissão durante seis a doze mezes. Si for funccionário do Estado, além dessas penas, será demitido.
[...]
Art. 1.200 – As parteiras, no exercício de sua profissão, limitar-se-ão a prestar cuidados indispensáveis às parturientes e aos recém-nascidos, nos partos naturaes.
Art. 1.201 – Às parteiras é expressamente proibido:
e) receber parturientes ou gestantes em suas residências, ou em outro logar, que venha a ter caracter de maternidade ou enfermaria.
Pena: multa de 500$000, dobrando em reincidências. 69
69
Ibidem.
101
Tais artigos iam de encontro a uma prática comum na Bahia, onde a medicina
convencional coexistia, mesmo que involuntariamente, com a medicina de
herança indígena e africana, representada pela figura da parteira, dos
curandeiros, das rezadeiras e dos benzedores. Muitas vezes poderia ser mais
acessível consultar um destes profissionais informais, pela proximidade que os
mesmos teriam em relação à comunidade e pela propaganda “boca a boca”
feita pelas pessoas que obtiveram êxito na cura de alguma moléstia ou no
nascimento de um filho. Além das camadas mais populares, outras pessoas de
diversas classes sociais recorriam a práticas terapêuticas não oficializadas.
Denílson Lessa dos Santos nos adverte para que não recorramos ao
estereótipo frequente de vincular as práticas alternativas de cura
exclusivamente às pessoas pobres e negras, embora fossem maioria. Santos
ressalta que assim como nem todas as pessoas de poder aquisitivo menor
necessariamente recorriam à medicina considerada ilegal, nem todos os
membros da classe hegemônica procuravam apenas a medicina estatal,
“científica”:
A escolha entre uma e/ou outra arte de curar, dependia das razões, angústias, crenças e tradições que cada um tinha, assim como dos fatores históricos e culturais compartilhados entre os diversos setores sociais. E as soluções para curar o mal poderiam estar tanto em um, quanto no outro modelo etiológico de cura.70
A questão é que a confiança que se tinha nos curandeiros, sobretudo no
interior do estado, onde a presença de médicos era bem mais difícil do que na
capital, foi um elemento complicador para que tais ideias fossem postas em
prática. Apesar de haver clientes de várias classes sociais, alguns setores da
elite ignoravam tal fato e se referiam a estas modalidades de cura como mais
um “africanismo pernicioso” reminiscente do passado colonial brasileiro.
Oficialmente o Brasil já não possuía uma religião oficial, contudo, a julgar pelos
discursos utilizados toda vez que se mencionava publicamente a respeito
destas práticas de cura, que poderiam ser parte integrante de alguma religião
de matrizes africanas ou não, ficava expressa a carga de repulsa e o desejo de
que elas deixassem de existir.
70
SANTOS, Denílson Lessa dos. Op. Cit., p. 81.
102
Até aqui, analisamos o discurso oficial, o que versavam os diversos aparatos
legais brasileiros em todos os âmbitos (federal, estadual e municipal) no que
dizia respeito à sua relação com os “novos tempos” em que o país se inseria.
Mas de que forma estas leis chegaram até a população de Salvador? Seus
direitos e liberdades individuais estavam sendo respeitados, como
asseguravam a Constituição Federal e Estadual de 1891 e o Código Civil de
1916? Ou simplesmente estas foram apenas outras leis que “não pegaram”? A
intenção do próximo capítulo é verificar, através de jornais e documentos
policiais, de que forma algumas destas leis foram postas em prática. Perceber
as estratégias de sobrevivência de práticas mais perseguidas como o
Candomblé e a medicina não-oficial a partir da promulgação do Código Penal
de 1890, que, conforme Ana Schritzmeyer, teria sido o primeiro instrumento
jurídico da República a tratar de forma mais específica a respeito da
oficialização da medicina científica do país.71
71
SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. “Sortilégio de Saberes”. Curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros (1900-1990.). São Paulo: FFLCH-USP, 1994. (Dissertação de mestrado) pp. 86-90 apud SANTOS, Denílson Lessa dos, ibidem, p. 91.
103
CAPÍTULO III
O NEGRO NA MIRA DA IMPRENSA E DA POLÍCIA
3.1. NO CAMINHO DO “PROGRESSO”: REPRESENTAÇÕES SOBRE O NEGRO DE UM PAÍS EM TRANSIÇÃO.
Já abordamos neste texto as aspirações modernizadoras que tomaram conta
do país e chegaram com força em Salvador. Agora investigaremos os
periódicos das primeiras décadas republicanas na Bahia, a fim de perceber de
que maneira pensavam os editores e jornalistas do período, e qual o seu
posicionamento sobre a presença das populações negras em trânsito na
cidade e a expressão pública de seus costumes, no contexto dos projetos
modernizadores tão largamente discutidos. Convém, entretanto, mencionar que
os jornais possuíam interesses próprios e buscavam a todo custo atuar como
“formadores de opinião”. Como havia vários interesses em jogo, não
necessariamente um jornal concordaria com seu concorrente, pois o
pensamento em voga não era homogêneo. Assim, era possível encontrar
algumas notícias com um tom mais crítico ou mais ameno em relação ao
sistema vigente, a depender das circunstâncias. Os periódicos pesquisados
são jornais de grande circulação na cidade e no estado, comercializados
diariamente e cujas matérias repercutiam na sociedade, por ser o principal
veículo de informação da época.
Meire Lúcia Alves dos Reis, em seu excelente trabalho a respeito do discurso
jornalístico sobre o negro nas primeiras décadas da República (1888-1937), faz
uma análise minuciosa dos principais jornais em circulação em Salvador. Em
sua pesquisa, uma nota emitida pelo jornal A Tarde corrobora com a ideia de
que nem sempre o discurso da imprensa era tão explicitamente ofensivo:
Quantos podem affirmar em consciencia a virgindade do seu sangue da mescla do sangue negro? Numa terra de mestiços, mais ou menos disfarçados, mais ou menos esbranquiçados, mais ou menos alvejados ou branquejados,
104
quantos poderão fazer da limpeza de raça padrão de glória ou título de superioridade?1
Tal argumento anti-racista estaria relacionado a uma tentativa de agregar a
todos, brancos, negros, indígenas e mestiços, como pertencentes a uma
origem comum. Como já foi discutido anteriormente, seria a forja por um
sentimento de nacionalismo que teoricamente equipararia toda a população
sob o pavilhão nacional, ideias que vão crescer na década de 1930, sobretudo
com Gilberto Freyre e o mito da “democracia racial”.2 Mas notícias como essa
eram minoria dentro de um universo de denúncias, ironias e palavras
preconceituosas proferidas pelos periódicos, inclusive o próprio A Tarde. Meire
Reis percebeu duas vertentes predominantes no trato dos jornais em relação
às notícias sobre os negros. Uma seguia a tendência da época, apelando para
o discurso científico acerca da suposta inferioridade biológica dos negros e
outra mais relacionada aos aspectos culturais destas pessoas.3
Sobre o posicionamento político dos jornais pesquisados, pudemos perceber
que as opiniões dos editores variavam muito de acordo com o período e com
os interesses envolvidos. O Diário da Bahia, de 1856, por exemplo, se
declarava neutro, mas a partir de 1868 e até 1880, o jornal pertenceu a um
grupo ligado ao Partido Liberal, no qual o Conselheiro Dantas liderava
paralelamente as duas instituições. Após esse período, o Diário da Bahia
continuou ligado a grupos políticos, tendo feito campanha contra o então
governador Luís Vianna e posteriormente sendo administrado pelo sucessor de
Viana no Governo do Estado, Severino Vieira entre 1901 e 1917, ano de sua
morte.4
O Diário de Notícias, fundado em 1º de março de 1875 e principal concorrente
do Diário da Bahia naquele momento, criticava a ideia de uma imprensa
“neutra” e se considerava “independente”, apesar de defender abertamente
1 A Tarde, 08/10/1921. In REIS, Meire Lúcia Alves dos. A cor da notícia: discursos sobre o
negro na imprensa baiana (1888-1937). Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, Salvador-BA, 2000. 2 O “mito da democracia racial” é a crítica feita às obras de Gilberto Freyre, notadamente, Casa
Grande e Senzala. Nestas obras, o autor procura “abrandar” a violência da escravidão e das relações inter-raciais no Brasil, afirmando que não existiam grandes conflitos. Cf. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1998. 3 REIS, Meire Lúcia Alves dos. Ibidem, p. 28.
4 Ibidem, p. 21.
105
Luís Viana, assim como o novo governador Severino Vieira, fato que não durou
muito tempo, talvez pela ligação do governador com o Diário da Bahia, talvez
por alguma outra motivação política.
O jornal A Tarde, que se consolidou em meados do século XX como o principal
jornal baiano, foi fundado por Ernesto Simões Filho, em outubro de 1912 e
também manteve relações constantes com o poder. Seu fundador foi deputado
federal no governo de Góes Calmon e havia apoiado seu antecessor, José
Joaquim Seabra, embora esta aliança não tenha durado todo o mandato.5
A partir da abolição e da queda do regime monárquico, com sua posterior
substituição pelo regime republicano de governo no Brasil, objetiva-se
especificar quem era e quem não era “cidadão” na nova Nação que se
instaurava.6 “Progresso”, “Civilização” e “República” eram palavras de ordem
nos jornais deste período, inclusive na Bahia. O momento de transição política
que o Brasil vivia precisava de uma constante afirmação, principalmente para
que a população se conscientizasse da importância e do impacto que tal
evento poderia ter no desenvolvimento do país. Isto é perceptível pela
linguagem utilizada nas matérias e nos diversos anúncios que os compunham,
nos quais os anunciantes procuravam usar como principal instrumento para
levantar suas vendas, a relação de seu produto com o “progresso” e com a
“civilização”:
A. Chuchu
Para expiação do arrojo que teve em querer introduzir no nosso
Brazil uma nova industria, voltou ao cepo, estabelecendo uma
nova loja que nada tem de commum com o seu antigo
estabelecimento[...]7
Este era o anúncio de uma loja de armas e artefatos de metal. Aqui podemos
perceber a exaltação ao “novo” e ao processo modernizatório que tomou conta
do país e chegou com força em Salvador. A loja, reconstruída, já não possuía
5 Ibidem, p. 24-25.
6 Para uma discussão mais aprofundada sobre cidadania no pós-abolição, consultar Hebe
Maria Mattos; Gladys Sabina Ribeiro; Wlamyra Albuquerque; José Murilo de carvalho, entre outros. 7 IGHB, Diário da Bahia, 05 set. 1901.
106
mais nenhuma característica que lembrasse seu passado monarquista, sendo
agora totalmente nova e republicana. Sua reconstrução simboliza uma
mudança na percepção do proprietário, que com isso demonstra publicamente
estar de acordo com as transformações políticas e sociais que vão
acontecendo em Salvador. Outro exemplo de anúncio publicitário que reforça
esse ideal progressista é o de um famoso suplemento alimentar, que, em tom
provocativo, afirma que não seria uma atitude “civilizada” ignorar os seus
benefícios:
Outra importante declaração – vivemos, como sabem os
leitores, num século de grande progresso. Ignorar um dos
principaes meios de salvaguardar e prolongar a vida não é de
certo digno de um povo civilisado. A Emulsão Scott tem
salvado muitos[...]8
Aliados à maneira sutil dessas propagandas, havia também alguns anúncios
mais diretos em que os anunciantes se declaravam abertamente republicanos.
Neste contexto, o ideal de civilização, como pudemos perceber no capítulo
anterior, estava relacionado ao modelo branco, republicano e católico. O negro
era representado nos jornais baianos de maneira semelhante ao que Lilia
Schwarcz mostrou em Retrato em Branco e Negro. Era a “raça inferior”, o
“violento”, o “imoral”, o “degenerado”, entre outras coisas.9 A cor passou a ser
um elemento fundamental na análise da sociedade, “onde os termos raciais
indicavam não apenas a cor da pele, mas também um signo de status na
organização da sociedade e na distribuição do poder”.10 Dessa forma, o negro
simbolizava também a pobreza e o atraso. Era freqüentemente desqualificado
pelos atributos dirigidos a ele, a partir da vivência e das observações feitas
sobre os negros pobres de Salvador, que, tornados naturais, referendavam
essa imagem do negro como desigual e inferior. Parte dessa desvalorização
imposta ao negro pela imprensa tinha como referência básica o Candomblé,
8 IGHB, Diário da Bahia, 08 set. 1901.
9 Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em Branco e Negro. Jornais, escravos e cidadãos em
São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 10
BACELAR, Jeferson. A Hierarquia das Raças: Negros e brancos em Salvador. Rio de
Janeiro: Pallas, 2001, p. 87.
107
mostrado como a origem de todos os problemas e raiz de todos os males de
Salvador:
Num candomblé – as coisas do feitiço – Demência e morte.
Hontem, à tarde, quando se diverttia em um candomblé, na
estrada do Rio Vermelho, foe repentinamente atacado de uma
syncope, que o prostrou por terra, sem sentidos, o cidadão
Antonio Ernesto Soares. Retirado para a sua residência, o
infeliz, após incessante e penosissima agonia, veio a falecer
cerca de meia-noite, sendo baldados todos os esforços para
salva-lo. – Antonio Ernesto Soares fôra há tempos official de
polícia, tendo sido aposentado em virtude de seu estado de
demência proveniente de sua iniciação em coisas de
feitiçaria.11
Ao mencionar “as coisas do feitiço” ainda no título, a nota, que não informa os
motivos que levaram a vítima Antonio Ernesto Soares a óbito, provavelmente
por não saber sua causa, procura uma hipótese para tal. O que mais chama a
atenção no texto, contudo, é o motivo da aposentadoria do ex-oficial de polícia:
ele teria ficado “demente”, mentalmente incapaz, após ter ingressado no
Candomblé. A religião era sempre a razão de ser de determinados fatos, como
doenças, infortúnios ou qualquer mal que acometesse as pessoas, e os seus
praticantes, principalmente se fossem negros, eram associados a criminosos,
mesmo que não houvesse evidências que comprovassem o delito, como
veremos na matéria a seguir:
Mulher de candomblé...
Talvez que o “santo” a conduzisse ao furto
Maria Augusta da Silva, conhecida por “Alzira” em toda a zona da Estrada da Liberdade, é tida ali como candomblezeira e, de primeira vista, logo se vê que a mesma é “filha-de-santo” pelo turbante e pela vestimenta que usa.
O “Chauffeur” Arnaldo Pereira, na noite de São João foi à
estrada da Liberdade divertir-se um pouco e, tomando seu genipaposinho em comemoração á data, poz um isqueiro, um relógio laminado com “chatelaine” e uma cédula de 100$000 no quarto da “Alzira”. No outro dia quando procurou seus objetos,
11
IGHB. “Num candomblé – as coisas do feitiço – Demência e morte”. In Gazeta do Povo. 16 ago. 1905.
108
só achou a metade do dinheiro; isto é: rasgaram a cédula inutilizando-a!
A Inspectoria da Ordem Social prendeu Maria Augusta da Silva, “Alzira”, accusada por Arnaldo.
Até escrevermos esta nota, nada havia sido descoberto; todavia, fácil não será a polícia descobrir se a mesma é ou não ladra, pois, está sendo habilmente interrogada em aquella repartição.12
Nota-se que a filha-de-santo denominada Maria Augusta da Silva, conhecida
popularmente por “Alzira” é, ao mesmo tempo, única acusada e diretamente
responsabilizada pelo desaparecimento dos objetos pessoais da “vítima”,
simplesmente por pertencer ao Candomblé, como sugere sarcasticamente o
título. O repórter afirma nada ter sido concluído até o fechamento da matéria,
mas a acusada já começaria o interrogatório com a suspeita de culpa recaindo
sobre si. As reticências ao final do título “mulher de candomblé...” denotam que
a criminalidade da mulher negra e frequentadora de terreiro, era algo que já
deveria ser esperado pela sociedade, já que alguém que cultua o Candomblé
poderia supostamente ser capaz de qualquer coisa, inclusive roubo. O subtítulo
ridiculariza os orixás do culto afro-baiano, na medida em que dá a entender que
o delito foi praticado por “ordem do santo”, dando, assim, um tom de comédia
ao artigo, talvez se antecipando à assertiva de que a acusada utilizaria o fato
de ser regida por um santo para se livrar da culpa, transferindo-lhe a
responsabilidade.
Aos libertos, o Estado respondeu com o Código Penal de 1890 e a Constituição
do ano seguinte, que, apesar de garantirem, a liberdade de culto e os direitos
civis a todos de igual maneira, ainda preservavam as punições nos casos de
“magia, espiritismo e seus sortilégios”. Essa medida acabava não
especificando com clareza o que poderia ser considerado como religião, além
do modelo cristão católico conhecido e normalmente aceito. As práticas
religiosas de matrizes africanas poderiam, desta forma, ser facilmente
confundidas com “fetichismo”, ”curandeirismo” e “desordem pública”. A
imprensa atuava explicitamente no sentido de levar o ideal de progresso aos
lares das famílias soteropolitanas e de denunciar estas práticas religiosas,
12
IGHB. “Mulher de candomblé...” In O Estado da Bahia, 19 jul 1934.
109
mantendo sempre presentes as teorias científicas sobre o negro, tornando
estas idéias acessíveis à parcela da sociedade que acompanhava suas
notícias e contando com seu apoio, como se pode comprovar através desta
carta de um leitor endereçada a um dos líderes do movimento republicano na
Bahia, Lellis Piedade, no Jornal de Notícias, em 22 de maio de 1897:
Amigo Sr. Lellis Piedade – Esta é a segunda carta que tenho a
honra de dirigir-vos, esperando de vosso não desmentido
patriotismo chamar a atenção de quem de direito for para o
desaparecimento dessas cenas religiosas praticadas pelo
fetichismo africano, que dia a dia mais se enraíza aqui nesta
terra, enervando e embrutecendo o espírito popular que, levado
pela superstição, só pode é degenerar em vez de se elevar aos
altos destinos a que é chamado e de mais quantos desgostos
no centro das famílias têm produzido estes pais-de-santo e
mães-de-santo. – Um Patriota.13
Na mesma edição, o leitor de pseudônimo “Um Patriota” recebeu do já citado
republicano Lellis Piedade, do Jornal de Notícias uma resposta no mesmo tom:
De fato: o povo não tem ainda a educação completa; preso a
desídia do passado, o seu espírito não está bastante iluminado
ainda para repelir falsas crendices que lhe entram no coração
como um veneno, que pouco a pouco vai se estragando.
Compete ao poder público, compete especialmente ao honrado
Sr. Dr. Chefe da Segurança dar caça a essa malta de fanáticos
e curandeiros de fetiche que fazem danças macabras nos
terreiros e vão até abusar da boa fé dos inexperientes
prometendo curá-los dos maus olhados e outras afecções de
que se dizem os únicos conhecedores.14
Destarte, parecia haver se estabelecido um vínculo entre grande parte dos
jornais e parte dos seus leitores, uma relação de confiança e de interesses em
13 IGHB, “Cartas”. In Jornal de Notícias, 22 mai.1897. 14 Ibidem.
110
comum. Através do discurso “moralizador” dos jornais baianos, a classe média
mais tradicional se viu representada e utilizou-se deste espaço, de grande
abrangência em todo o Estado, para defender seus valores e conclamar a
população a se posicionar e também fazer parte disso. O poder da palavra
impressa enquanto formadora de opinião ajudava a “delinear identidades
culturais e políticas”,15 ou seja, contribuía para manter sempre presentes os
valores éticos, morais e religiosos da sociedade baiana.
As religiões de matrizes africanas, sobretudo o candomblé, se constituíam no
grande entrave colonial a ser derrubado pela elite baiana. O negro “subvertia a
ordem” e, através do candomblé, criava um foco de resistência contra-
aculturativa diante da sociedade,16 que almejava transformar a Bahia em um
reflexo da Europa, principalmente da França, que, a partir da República, se
tornará o país europeu mais influente na cultura e nos valores “democráticos”
do Brasil.17 Neste sentido, a repressão policial, assim como os discursos
jornalísticos, eram instrumentos que sustentariam o poder da classe
dominante.
A Igreja Católica também tinha sua posição bastante definida sobre a questão,
e no ano da primeira lavagem da Igreja do Bonfim em tempos republicanos, em
1890, o arcebispo Luís Antônio Santos proibiu terminantemente esta
celebração, que culminou com o confisco, pela Guarda Cívica, das vassouras e
vasos de barro das devotas, que “ousaram” se indispor contra estas
determinações.18 Ferreira Filho complementa dizendo que a Igreja “talvez tenha
pensado que já era hora de desvencilhar-se de vez do lado profano que suas
celebrações religiosas insistiam em manter, quase que alheias às prédicas
romanizantes das autoridades eclesiásticas.”19 A imprensa fazia questão de
atender a este discurso de separação entre o culto afrobrasileiro e o
catolicismo, exaltando as festividades católicas como símbolos de “civilização e
15 MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra, imagem e poder. O surgimento
da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 07-08. 16 BRAGA, Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia.
Salvador, EDUFBA, 1995, p. 20. 17 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. Cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Cia.
das Letras, 1996. 18 FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Op. Cit, p. 95-96. 19 Ibidem.
111
ordem”, como nesta nota: “Mais uma vez a população da capital deu
testemunho eloqüente de seu amor à ordem, sábado e domingo passados, nas
festas de Reis”.20 Esta reportagem demonstra que havia uma preocupação
muito grande com a manutenção da “ordem pública”, fato justificado,
provavelmente, por ser uma celebração eminentemente católica, não havendo
nenhuma manifestação religiosa afrobrasileira presente naquele momento de
festa.
Apesar de o Brasil Republicano ser um Estado laico,21 ou seja, não possuir
uma religião oficial, os jornais costumavam tratar o Catolicismo como se este
ainda o fosse. O temor pelo futuro da religião também é uma hipótese a ser
considerada, pois a liberdade de culto, assegurada pelas Constituições de
1891(tanto a Federal quanto a Estadual), poderia fazer com que a Igreja
perdesse fiéis. Com uma freqüência praticamente diária, se noticiava sobre
eventos realizados na Igreja:
Conferências Catholicas
Na igreja Cathedral realisou-se ante-hontem a 5ª Conferência
do Padre Júlio Maria, perante notável e numeroso auditório em
que se viam representadas as classes sociais mais distintas da
Bahia.22
Durante as primeiras décadas do século XX, foi prática comum no jornal A
Tarde, uma sessão denominada “Religião Catholica.” Nesta sessão aparecia o
santo do dia, quem foi este santo antes de ser canonizado, os locais onde
estariam sendo celebradas missas ou outros eventos relacionados à Igreja
Católica etc. Dificilmente outra religião cristã era representada e, ao menos no
período pesquisado, não foi encontrada nenhuma sessão neste periódico que
se dedicasse a fazer o mesmo pelo Candomblé. Aqui temos um exemplo desta
sessão:
20
IGHB, Diário da Bahia, 13 jan.1903. 21 CARONE, Edgard. A Segunda República (1930-1937): Corpo e Alma do Brasil. Rio de
Janeiro – São Paulo: DIFEL, 1978, p. 197. 22
IGHB, “Conferências Catholicas”. In Diário da Bahia, 03 set.1901.
112
Religião Catholica
Santo do dia de hoje: São Bento.
Em 480, quatro anos após a queda do Império Romano, nascia em Nurcia, na Camponia, aquelle cuja obra ia exercer extraordinária influencia. Chamava-se Benedictus, Bento diz seu Biographo, e este nome exprimia bem a benção de Deus, que estava com elle[...]23
Ao se referir às celebrações das religiões de matrizes africanas, no entanto, o
tom irônico e a denúncia estão presentes em grande parte dos jornais. Esta se
configura como uma das principais funções da imprensa baiana em relação ao
assunto. Os jornais serão os instrumentos de poder responsáveis por “auxiliar”
os poderes públicos na localização destes candomblés, para que a polícia
pudesse “dar um jeito” na situação; a exemplo do que foi publicado pelo jornal
Diário da Bahia, de 12 de dezembro de 1896, na qual procurava associar ao
Candomblé práticas como a prostituição e o abuso de menores:
‟Os batucajés do Engenho Velho”. Somos informados de que há muitos dias reinam os batucajés num dos terreiros do Engenho Velho, incomodando a vizinhança, com os estrondosos ruídos dos tabaques e chocalhos, a vozeria dos devotos que em número extraordinário a eles concorrem, e as desordens que não raro surgem por questões de ciúme aguardentado dos ogans e outras dignidades que ali vão assistir aos votos feitos pela ventura, que uma multidão de mulheres de toda a casta vai ali tomar da mão dos respectivos papais.
O que mais existe ali é a negociata dos papais e das mamães-de-terreiro, que exploram a toleima dos que lhes crêem nos
sortilégios, filando grossas quantias, tirando os melhores proventos para instituição da larga clientela que os alimenta, e com isso a prática de atos lúbricos que desembaraçadamente de contínuo se exercem; nos quais é sacrificado o pudor de pobres moças, a quem o desleixo dos pais ou as trapaças do feiticeiro arrastam e atiram na promiscuidade dos mais variados costumes libertinos para satisfação da cupidez insaciável dos ogans lassos, mas nunca fartos.24
23
IGHB, “Religião Catholica” In A Tarde, 21 mar. 1930. 24 Diário da Bahia, 12 dez. 1896, apud RODRIGUES, Raimundo Nina. Op. Cit. p. 241.
113
Em 18 de novembro de 1905, o Correio da Tarde publicou a seguinte nota a
respeito do que chamou de “fetichismo”:
Fetichismo. Deveras deponente do grau do nosso adiantamento intelectual é a condescendência criminosa, para a prática constante e diária de candomblés, no seio desta capital e em suas circunvizinhanças, onde se multiplicam estes antros de fanatismo e perdição.
Nas imediações do Dique, distrito de Brotas, funcionam muitos terreiros, dia e noite, com o atrevimento que concede a garantia ou o descuido policiais. De ordinário, tais centros atraem pessoas de reprovável comportamento, o que origina conflitos e toda sorte de fatos atentatórios da moral. [...] Fica assim noticiado nosso protesto25
Já no A Tarde de 12 de novembro de 1926, podia-se ler o seguinte:
A Dansa dos feiticeiros
O som do batuque guiou os passos da Polícia
O “candomblé” é ainda uma instituição na Bahia.
Dir-se-ia que elle tem parentesco com esses bonecos teimosos que não ficam nunca deitados, a não ser que a gente o obrigue, à força.
Porque o candomblé, tanto que a polícia desvia delle sua mão repressora, surge, de novo a accordar os echos com a banilheira infernal dos seus ritos nagôs.
De há muito que a imprensa não falava a seu respeito. Estava morto ao que parecia. Todos julgavam-no assim.
Mas, lá num recanto escuro e distante da cidade, o batuque atordoava confundindo-se com a gritaria nervosa e possessa de crentes no terreiro de “Pae Crescêncio”: o candomblé vivia, malgré tout!26
Podemos depreender desta última matéria acima o quanto o Candomblé
resistia às pressões da imprensa e às perseguições da polícia. Como as
incursões policiais eram constantes, os praticantes da religião procuravam
refúgio nos locais mais periféricos, se afastando dos riscos que o centro da
25 IGHB, ”Fetichismo”. Correio da Tarde, 18 nov. 1905. 26
IGHB, “A Dansa dos feiticeiros” In A Tarde, 12 nov. 1926.
114
cidade podia oferecer. Por ser muito longa, a matéria não será transcrita
integralmente, contudo, é importante falar um pouco mais sobre ela. A
reportagem do jornal A Tarde acompanhou a polícia em todo o processo de
aproximação e batida no terreiro de “Pai Crescenço”. Descreveu toda a ação
que culminou com a prisão de todos os presentes. Um fato interessante,
considerando-se toda a repressão que havia por parte da polícia neste
momento é que, ao ser inquirido pelo delegado Frederico Sena, o pai-de-santo
explicou-se dizendo que aquilo “era uma festinha com licença do
subdelegado”.27 O motivo para que o subdelegado autorizasse o Candomblé
pode estar ligado a uma vinculação da autoridade à Casa ou a um possível
pagamento realizado pelos membros do terreiro para que este pudesse
funcionar sem sofrer interrupções externas. “Pai Crescenço” deixa essas
hipóteses no ar quando fala sobre os frequentadores de seu templo: “gente boa
– soldados de polícia que caem no santo e gente que vem de automóvel de
todo o canto da cidade”.28 A reportagem conclui dizendo que os objetos do
terreiro foram apreendidos e levados ao museu do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia, o IGHB, “como reminiscências do africanismo”. Jornais
como O Estado da Bahia, além de denunciar as ações “incomodativas” em
pontos diversos da cidade de Salvador, ainda investigam e cobram das
autoridades as providências cabíveis. É o caso das duas notícias seguintes,
nas quais o referido jornal, em pouco mais de um mês, se refere duas vezes ao
mesmo candomblé. Em 17 de julho de 1934, a seguinte matéria foi publicada:
O que a Polícia não vê!...
Os candomblés no Rio Vermelho funcionam noite e dia.
A zona do Rio Vermelho, principalmente no logar denominado Bogum, é rica em “candomblés” e “batucadas”. Essas diversões, sobremodo incommodativas, funcionam todos os dias até altas horas da noite.
As famílias pobres ali domiciliadas não podem conciliar o somno, porque o barulho é infernal.
Ao lado dos “batuques”, surgem as desordens, abalando por toda a redondeza.
27 Ibidem. 28 Ibidem.
115
No Bogum, como fomos informados, na casa dum velho se pratica o jôgo de cartas até alta madrugada. Paes de família ali deixaram dinheiro, que no outro dia, serveria para o pão dos filhinhos.
E a polícia, que cuida do bem-estar da população deve tomar providencias, a fim de pôr termo aos factos acima referidos.”29
Já no dia 21 de agosto, o jornal questiona a razão da demora de providências
mais efetivas da polícia:
Que é do policiamento do Garcia?
Os candomblés funcionam dia e noite.
Já tivemos a opportunidade de noticiar o funcionamento de candomblés, batucadas etc... na zona do Rio Vermelho, districto do Garcia.
No domingo ultimo e ontem (segunda-feira, 20 de agosto de 1934) durante dia e noite, conforme fomos informados por moradores da redondeza, varias casas onde se desenvolve dia a dia, o incommodativo batuque, estavam repletas de clientes, que são inimigos da tranqüilidade. Ao lado das “macumbas” se acham os jogos de azar, e os delictos freqüentes.
A polícia da 1ª Circumscripção, de certo, tomará providências, no sentido de evitar tais occurrencias.30
Os dois textos, a começar pelos respectivos títulos, se assemelham tanto que
dão a impressão de ser a mesma matéria. No primeiro, o jornal se limita a
informar a existência do candomblé no Rio Vermelho, sugerindo que a polícia
talvez não o tenha visto. Adota um discurso moralista e apelativo, ao inferir que
o barulho dos “batuques” não permitem que as famílias pobres residentes no
local consigam dormir, além da acusação de que os “pais de família” deixam o
dinheiro que seria para o sustento da mesma no jogo de cartas, fato que se
repetirá em outros jornais e que dá a entender que as pessoas que
frequentavam aquele espaço eram “ingênuas” e influenciadas pela má fé dos
líderes espirituais das casas. O segundo texto já faz uma exigência mais direta,
ao questionar, no título, onde estaria a polícia, que, decorrido mais de um mês
das primeiras reclamações, ainda não tinha tomado nenhuma atitude enérgica
no sentido de coibir as manifestações religiosas. Ambos fazem questão de
29
IGHB, “O que a Polícia não vê!...” In O Estado da Bahia, 17 jul. 1934. 30
IGHB, “Que é do policiamento do Garcia?” In O Estado da Bahia, 21 ago. 1934.
116
“lembrar” o papel da polícia, “cuidar do bem-estar da população”, e concluem
no mesmo tom de cobrança, colocando, na última frase dos respectivos artigos
a expressão “tomar providências”, não especificando quais “providências”
seriam essas.
Já que a liberdade de culto era um direito assegurado a todos, o jornal adotou
uma nova tática. A associação dos cultos afros com a “desordem pública” e
com a marginalidade tornou-se a justificativa mais usada para que o candomblé
fosse extinto, como pôde ser conferido nas duas reportagens anteriores. O
Candomblé deveria deixar de existir, não por ser um culto “fetichista”, “inferior”
ou “colonial”, mas sim porque seus “batuques” constantes incomodavam o
sossego dos moradores vizinhos. Além disso, as regiões próximas ao
Candomblé eram frequentadas por pessoas que passavam o tempo realizando
“jogos de azar”, ludibriando os “cidadãos honestos”, que por ali transitavam, e
realizando pequenos delitos. Desta forma, não era a religião em si, apenas,
mas a desordem e a marginalidade que compartilhavam deste mesmo local.
A próxima notícia reforça o tom irônico utilizado pelos jornais soteropolitanos.
Desta vez, a matéria do jornal A Tarde, de 27 de outubro de 1927, ao se referir
a um grupo de bombeiros que cultuavam o Candomblé, aludia “sutilmente” a
uma suposta falta de ocupação dos soldados, que, talvez por esta razão, se
dedicavam a deixar um ebó:
“Quando não há incêndio a apagar...
Um cabo e duas praças de bombeiros privam com Exu.
Isso foi ali pelas Quintas da Barra, no logar denominado Alto Formoso. Quatro horas da manhã, o repórter expontâneo de “A Tarde” sorvia a largos haustos o ar fresco que chegava do mar, quando um grupo numeroso se aproximou.
Eram homens e mulheres uniformemente vestidos: os homens de alvo; as mulheres de blusa verde e saia branca.
O nosso informante acompanhou o farracho quando descobriu o que aquilo era. E grande foi seu espanto quando verificou a missão que levava o grupo aquellas bandas em hora tão matinal: iam fazer um despacho.
Sem ter lido Sherlock, não foi, no entanto, muito difícil ao investigador adquirir a certeza de que era aquilo bando auctor
117
de um tremendo candomblé, cujos batuques e gritos obscenos acordavam, todas as noites, os moradores das Quintas.
O seu queixo, porém quasi vae abaixo no momento em que reconheceu no chefe do farracho e em seus secretários um cabo e dois praças do Corpo de Bombeiros!”.31
Observa-se o espanto do informante do jornal ao perceber o que aquelas
pessoas faziam tão cedo, mas o que chamou mais atenção, e este parecia ser
o motivo principal da matéria, era a identificação de membros do Corpo de
Bombeiros com o Candomblé. Por ser um órgão oficial, a sociedade esperaria
uma determinada norma de conduta, de acordo com a padronização cultural e
religiosa hegemônica na cidade, daí o “espanto” da pessoa que espionava as
celebrações. Em outra maneira de descaracterizar ou desqualificar o
Candomblé, alguns jornais buscaram “diminuir” a importância da participação
das populações negras na realização de determinadas festas, em uma
tentativa de “europeizá-las”, retirando-lhes, assim, seu significado original,
como fez o A Tarde do dia 06 de fevereiro de 1930 ao falar da festa de
Iemanjá, a única grande festa religiosa baiana que não tem sua origem no
sincretismo com a religião católica, sendo totalmente idealizada no âmbito do
Candomblé:
O culto da “Mãe d‟Água”, ou melhor, da “Sereia do Mar” remonta aos tempos mythologicos.
Eram mulheres formosíssimas que, de corpo humano, só tinham a cabeça, o collo para terminar com a forma de peixe. Segundo Homero, eram sedutoras pela beleza do rosto e, sobretudo pelo perigo de seus cânticos maravilhosos, que atrahiam os homens para perde-los no fundo do oceano.
Desde então, até nossos dias, o culto religioso da filha predilecta de Neptuno com Amphitrite se tem mantido com fervorosa devoção, seja pelos pescadores das costas da Sicília, até a nossa gente ingênua, que herdou essa modalidade de fé quando dão advento dos primeiros africanos que aportaram á Bahia.
Aqui predomina o sentimento cultural sob processos genuinamente selvagens, visto como acaba sempre por grandes bailados africanos ditos „candomblés‟.32
31
IGHB, “Quando não há incêndio a apagar...” In A Tarde, 27 out. 1927.
118
O referido jornal, com esta notícia, demonstra sua visão a respeito de
“Janaína”, Iemanjá para o “povo-de-santo”,33 atribuindo-lhe características
totalmente europeias, e apelando até mesmo ao historiador grego Homero, na
busca de reconstituir miticamente sua origem. O orixá acaba aparecendo mais
como uma personagem da mitologia greco-romana do que um símbolo de
qualquer prática religiosa que faça referência à África. Percebe-se a diferença
no tratamento que a matéria dá aos “fervorosos pescadores da Sicília” e à
“nossa gente ingênua”. Apesar de grande parte das pessoas que a cultuam
tanto na Itália quanto na Bahia desempenharem a mesma função econômica (a
pesca), os sicilianos não são considerados tão “ingênuos” como os baianos.
Apenas a influência cultural africana sobre a Bahia já serve de motivo para que
o culto a Iemanjá em Salvador seja considerado “selvagem”. O discurso sobre
a “ingenuidade” desta crença continua na sua descrição, feita na mesma
reportagem:
Ora, todos os annos, nesta época, os pescadores e maritimos vão levar presentes e lembranças “á princeza encantada” que preside os destinos de marujos, como de quantos tem fé e acreditam nos bons fados que ella proporciona aos amorosos como aos que desejam boa fortuna.
Dahi o seu que de encantadora ingenuidade quando, embarcações empavezadas cheias de presentes de flores, fructos, mel de abelhas, perfumes, lenços, espelhos, jóias e moedas formando um círculo em frente á ponta de Mont Serrat todos cantam atrahindo a querida protetora:
“Dona Janaína
Princeza do Mar
Filha das águas claras
Netta de Yô Manja”
32
IGHB, A Tarde, 06 fev.1930. A historiógrafa do Arquivo Público do Estado da Bahia e professora assistente de História da Educação na FACED/UFBA Antonietta de Aguiar Nunes escreveu um artigo sobre a festa de Iemanjá, que pode ser conferido no seguinte link: http://www.faced.ufba.br/~dept02/calendario/yemanja.html 33 PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p. 378. “Povo-
de-santo” é a terminologia utilizada para designar as pessoas que são adeptas do Candomblé.
119
Feito silêncio profundo, e após a entrega das dádivas, os que se dizem auditivos escutam a voz suave e subtil da “Encantada do Mar” responder:
“Já recebi, adeus, adeus
Que já vou embora
Adeus meu povo todo
Até outra hora”
E mais:
„Adeus, adeus
Eu já vou embora
Eu vou com Deus
E Nossa Senhora‟34
Mesmo reconhecendo a beleza da cerimônia, fica expresso o caráter
inferiorizante assumido pelo jornal, ao utilizar o termo “encantadora
ingenuidade”, referindo-se ao ritual de jogar presentes ao mar. Apesar de ser
uma festa “encantadora”, não deixava de ser uma festa “ingênua”. Utilizando-se
de uma linguagem racista e sarcástica, ao se referir às mulheres presentes à
festa como “nereidas catingosas e cor de ébano”, o final desta longa
reportagem procura reforçar o lado violento e “selvagem” das populações
negras, quando as jangadas e saveiros que haviam saído para entregar os
presentes à Iemanjá retornaram ao Porto de Sant‟Anna, no Rio Vermelho:
A cerimônia no local do “Mar Sagrado” decorreu com as formalidades do stylo, sendo grande a profusão de presentes notadamente rosas frescas- “brancas-de-neve”.
Ao entardecer fez-se o regresso com o entusiasmo da partida, porém desembarcados que foram, organisaram ruidoso samba ao lado do forte e fronteiro ao peso do peixe no Rio Vermelho.
A festa barulhenta e primitiva esquentou muito com as libações de cachaça dos devotos de Baccho de sorte que, a certa altura degenerou em tremendo borborinho com pancadaria grossa, facas e revólveres fora tendo sido ouvidos vários tiros.
34 Op. Cit.
120
Conseqüência: A polícia compareceu ao local, quando a cousa estava mesmo preta, nada conseguindo fazer, porque os desordeiros cahiram n‟água....
Tudo porque um delles disse uma gracinha a uma das “nereidas” catingosas e cor de ébano do grupo de festeiros da „Mãe d‟Água‟.35
Neste trecho da reportagem está a síntese de grande parte do que se falava
sobre o negro nos jornais: festas barulhentas e “primitivas”, excesso no
consumo de bebidas alcoólicas, violência, exacerbação de sua sexualidade e o
racismo sarcástico ao comparar as nereidas, figuras mitológicas gregas, com
as mulheres negras presentes à festa, sugerindo que elas exalavam mau
cheiro.
A descrição dos rituais de Candomblé era o método de escrita mais comum
utilizado pela imprensa, em um discurso que alternava indignação e ironia pela
presença constante da religião, que parecia sobreviver a todas as tentativas de
neutralizá-la. Sua narrativa adquiria um tom de exotismo na medida em que se
buscava levar ao leitor a realização de cultos “bárbaros e fetichistas”
perpetrados pelas camadas economicamente mais baixas da população
soteropolitana. Na notícia a seguir, um repórter do jornal O Estado da Bahia se
“infiltrou” em um terreiro na Quinta da Barra para acompanhar de perto as
cerimônias do dia. Seu nome não foi divulgado pelo periódico, fato, aliás,
recorrente em quase todos os jornais pesquisados:
Uma visita ao candomblé de “Pae Vivi”
“O Candomblé na cidade prolifera desafiando a punição das autoridades policiaes e augmentando, assim, a crença dos ignorantes ao culto selvagem que deveria desapparecer de uma cidade cujo progresso dia a dia vae se levando.
Até na Barra, nos seus logares mais humildes impera a bruxaria revoltante.
Ontem, devido às queixas que temos recebido, tivemos a opportunidade de verificar a verdade das informações.
35 Ibidem.
121
Na Quinta da Barra, bem no alto de uma ladeira, em um chalet, o Servilho de Menezes Rosa, conhecido como “Pae Vivi” explora a ignorância dos moradores locaes, com um candomblé arreliado onde assistimos factos que, segundo apuramos, são registrados ali diariamente.
Quando ali entramos já o candomblé estava no auge.
Soldados, modestos funcionários públicos, operários e pessoas de várias classes lá estavam assistindo aquellas dansas exóticas emquanto os tabaques soavam alto, batidos pelas mãos possantes de dois “caibras” musculosos.
No meio da sala uma morena de longos cabellos sapateava loucamente emquanto a assistencia assim cantava:
“Oi, oi, oi
Oi que já cheguei
Oi, oi, oi,
Tupinabá é cabôco rei.”
E a morena continuava rebollando os quadris sob a assuada ensurdecedora dos batuques.
De repente todos os presentes, subiram nas cadeiras e mesas para assistir a queda da morena, que em poucos segundos, cabellos desalinhados quase louca rolava ao solo.
Foi um momento de puro silêncio.
A moreninha tinha sido “atacada” pelo “santo” e o “pae do terreiro” carrega-a e leva-a para o “Pegy” onde é implorado o Protector para a retirada, do corpo da morena, do “Jamaina” ou “Ogum gelê”.
E assim terminou o candomblé.
Já uma mulata de turbante amarelo e saia da mesma côr, que deveria fazer o papel de serva do “Pae Vivi” collocava nos seu logares os objectos do rito para o candomblé do dia seguinte.
Um facto interessante que merece registro. Alguém por pilhéria gritou:
-Lá vem a polícia!
A pilhéria não produziu resultado.
Um dos presentes pessoa íntima da macumba do Servilho, então retrucou:
“Que puliça que nada! Nós pága a Delegacia Auxilia qui nos dá o consentimento de batê o candomblé.”
Será isso verdade?
122
O facto é que a pilhéria “lá vem a polícia!” nem ao menos assustou um só assistente.
Acharam graça e nada mais.36
A narrativa feita pelo jornalista parece a de um livro de ficção ou o roteiro de
uma peça teatral. O empenho exagerado nas descrições, a revolta do início da
matéria, a surpresa pelo fato de a polícia não ter feito nada para coibir os
“batuques”, tudo isso corrobora para a análise de alguns dos jornais de
Salvador daquele período como tendenciosos e servidores de um limitado
grupo social, apesar de haver pessoas de diversas classes no Candomblé.
Longe de relativizar os costumes culturais diferentes dos eleitos como
socialmente aceitos, os periódicos vão pela via inversa, exigindo seu
“desaparecimento” de uma cidade onde o “progresso” estava começando a se
estabelecer. Percebe-se também a referência à presença de “soldados” e o
questionamento acerca da veracidade de um possível suborno, pago à polícia
para que o candomblé pudesse funcionar sem interferências. A possibilidade
de envolvimento dos policiais com o Candomblé, especificamente com o de
Servílio de Menezes Rosa, o “Pai Vivi” fica mais explícita em outra matéria
publicada pelo O Estado da Bahia sobre o mesmo terreiro. Nela, publicada
cerca de dois anos depois da citada acima, o periódico acusa o primeiro
suplente de comissário da polícia de interferir na ação policial, avisando a Pai
Vivi sobre a iminente invasão:
O Candomblé ia ser acabado
Mas o suplente de comissário, às pressas, avisou tudo
“O Estado da Bahia”, por várias vezes, tem publicado reclamações a respeito dos candomblés da Quinta da Barra, com seus endiabrados atabaques, todas as noites arrastando para o terreiro mulatinhas, cabrochas, caboclinhas etc.
A polícia, ontem à noite, quando o candomblé de “papae Vivi” estava no auge, ia fazer a apreensão dos apetrechos, conduzindo toda aquella gente para o xadrez, inclusive os adeptos freqüentadores da macumba.
O “candomblé” avisado em tempo
36 IGHB, “Uma visita ao candomblé de Pai Vivi” In O Estado da Bahia, 10 jul.1934.
123
O 1º suplente de comissário de polícia do distrito da Barra, sr. José Gomes Ferreira, conhecido pela alcunha de “Alexandre” ou “Juiz de Menores”, procurou ontem às pressas, ao Sr. Servilio de Menezes Rosa, o “Pae de Santo”, avisando-o para não bater ontem o seu candomblé, como desejava “papae Vivi”, porque a polícia ia ao seu terreiro.
O repórter ouviu tal afirmação do próprio “papae Vivi”, quando ontem, foi ele pedir providências ao Sr. Maximiliano Machado, comissário do distrito do Rio Vermelho.
Levamos o caso a conhecimento do Capitão João Facó, Secretário da Segurança Pública, para que se apure como um auxiliar daquela repartição está fornecendo aos contraventores as medidas da polícia repressora de tais práticas condenadas.37
A insistência do jornal com esse terreiro, bem como a iniciativa de assumir o
caso quase como uma “questão de honra”, uma verdadeira “cruzada” contra o
Candomblé que já durava alguns anos, nos permite refletir no quanto a
permanência de terreiros como o de Pai Vivi incomodavam a equipe do
periódico, que sempre recorria ao argumento de estar prestando um serviço de
utilidade pública, atendendo aos “clamores de uma sociedade indignada”.
Parece que mesmo depois de tantas denúncias e apelos, o terreiro da Quinta
da Barra continuava existindo e resistindo. A mesma “sorte” não teve o jovem
pai-de-santo Nelson José do Nascimento, protagonista do único processo-
crime registrado como “feitiçaria e uso ilegal da medicina” encontrado para
Salvador no período coberto por nossa pesquisa (1890 – 1939) no Arquivo
Público do Estado da Bahia, que analisaremos a seguir.
Foi graças à contratação do etnólogo Édison Carneiro pelo jornal O Estado da
Bahia, em 1936, que o discurso agressivo da imprensa pôde ser abrandado,
muito embora as perseguições ainda continuassem, principalmente a partir da
publicação de uma série de reportagens que o mesmo organizou sobre os
Candomblés da Bahia e suas festividades.38
Em 1937, realiza o Congresso Afro-Brasileiro da Bahia, juntamente com outros
intelectuais que pesquisavam sobre o negro, que culminou com um Memorial
dirigido ao governador do Estado, com o intuito de que as religiões de matrizes
37
IGHB, “O candomblé ia ser acabado”. In O Estado da Bahia, 13 fev. 1936. 38 BRAGA, Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia.
Salvador, EDUFBA, 1995, p. 24.
124
africanas fossem reconhecidas como legítimas. Alguns trechos podem ser
destacados, dada a sua relevância para a compreensão da temática em
questão:
I. Cada povo tem a sua religião, a sua maneira especial de
adorar a Deus – e é o candomblé a organização religiosa dos
Negros e dos Homens de Cor da Bahia, descendentes dos
negros escravos, que lhe deixaram, como herança intelectual,
as várias seitas africanas em que se subdividem as formas
religiosas trazidas da África. Essa herança intelectual, mesmo
fracionada e subdividida, tem direito à vida, como expressão
dos altos sentimentos de dignidade humana que desperta entre
aqueles sobre que influi.
II. Como têm provado, suficientemente, os mais argutos
observadores, notadamente Nina Rodrigues e Artur Ramos, e
os Congressos Afro-Brasileiros já realizados tanto no Recife
(1934) quanto na Bahia (1937), nada há dentro das seitas
africanas, que atente contra a moral ou contra a ordem pública
(art. 113 da Constituição Federal). Ao contrário, tanto Nina
Rodrigues e Artur Ramos quanto os intelectuais que
colaboraram nos citados Congressos, todos, sem exceção, tem
reclamado a liberdade religiosa dos Negros como uma das
condições essenciais para o estabelecimento da justiça entre
os homens[...].
III. Somente a religião dos Negros está, no particular, em plano
inferior, dependendo diretamente, para o exercício das suas
funções sociais, das autoridades policiais do Estado. A
desigualdade – que só pode se justificar, em parte, como
resultado da política seguida, desde muitos anos, pelos
governos antecedentes – não passará despercebida ao alto e
esclarecido espírito de V. Ex.ª, estando essa desigualdade,
como está, em desacordo com o estatuído na Constituição de
16 de julho de 1934.
Tais razões, exmo. Sr. Governador, que nos levam a sugerir a
V. Ex.ª o reconhecimento da maioridade das deitas africanas
do Estado e o seu conseqüente direito a se dirigirem por si
mesmas.39
39 RAMOS, Artur. O Negro na Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1971, p. 199-200 apud DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco. Usos e
abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988 p. 190-191.
125
Fortemente influenciado pelo pensamento de Nina Rodrigues e Artur Ramos,
Édison Carneiro utiliza como argumento para a legitimação do candomblé o
fato deste ser efetivamente uma religião, discurso de defesa constante de Nina
Rodrigues aos Candomblés da Bahia. Rodrigues já o havia feito, alguns anos
antes, ao considerar que a fase “fetichista” do Candomblé baiano havia sido
superada e se transformado em uma religião de fato, embora não seja cristã40.
O deslocamento gradativo dos terreiros para a periferia de Salvador,
característica que se mantém até os dias de hoje, também foi uma das
estratégias de resistência do povo-de-santo. Esta prática se revelou
extremamente eficaz na política de preservação dos bens religiosos, tais como
o templo e os objetos sagrados do culto, além do fato de possuir um terreiro
mais afastado do centro sair mais em conta para mantê-lo funcionando, e seria
mais benéfico para os rituais que os terreiros se localizassem próximos a uma
mata ou a um rio.41 O candomblé, assim, mostra as várias faces de sua
resistência aos ataques constantes de determinados setores insatisfeitos da
sociedade, que, de maneira explícita, o consideram um culto “ingênuo” e
“selvagem”, ou condenam os “batuques” e os “marginais” que freqüentavam
seus arredores, desejando que o candomblé deixasse de existir.
3.2. O ARTIGO 157 FINALMENTE ENTRA EM AÇÃO: O CASO DE NELSON
JOSÉ DO NASCIMENTO
Apesar de o Código Penal de 1890 prever no seu artigo 157 punições para
aqueles que praticassem o “Espiritismo, magia e seus sortilégios”, e o artigo
158 condenar “o ofício denominado curandeiro”, como já foi posto no capítulo
anterior, e mesmo considerando todas as denúncias a respeito da existência de
Candomblés por toda a cidade efetuadas pelos jornais, dificilmente as
incursões policiais resultavam em processo-crime formal por este motivo. Fato
40
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 7ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1988. p. 05. 41 BRAGA, Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia.
Salvador, EDUFBA, 1995, p. 28.
126
que comprova tal tese é a escassez de processos-crime tipificados como
“Feitiçaria”, “Espiritismo” ou “Curandeirismo”. De todo acervo documental
disponível no APB, apenas 3 processos-crime foram catalogados como
Feitiçaria. Destes, apenas um é em Salvador, em 1939, estudado por Júlio
Braga em Na Gamela do Feitiço e que também analisaremos, dialogando com
o autor sempre que possível.42 Os outros dois casos ficam, um em Canavieiras,
cujo réu é Antônio Sebastião dos Santos, em 1912 e o outro em Jequié, tendo
Adalgisa Ribeiro da Silva como ré em 1935.43
Como crime de Curandeirismo, dos 5 processos encontrados, apenas 2 são em
Salvador, ambos na década de 1960 (1965 e 1967). O único que contempla o
período desta pesquisa (1924) fica em Campo Formoso, interior do Estado.
O caso de Nelson José do Nascimento durou mais de dois anos e seu
processo ocupou 82 páginas, incluindo fotos dos objetos apreendidos, que
estão nos anexos deste trabalho. Essa história começa no dia três de outubro
de 1939, através do preenchimento do sumário de culpa do acusado:
Juízo de Direito da 1ª Vara Crime da Comarca da Capital da Bahia
Sumário de Culpa
A Justiça Publica Nelson José do Nascimento
Art. 157 C.L.P. [Consolidação das Leis Penais]
Ano de mil novecentos e trinta e nove, aos três dias do mês de novembro do dito ano, em meu cartório faço a autuação da petição de denúncia e documentos que se seguem. Do que, para constar, lavro o seguinte termo. Eu, Reynaldo Mattos, Escrivão, que o escrevi.44
Após esse contato inicial com o acusado, vem a portaria expedida pelo
delegado da 3ª Circunscrição Policial, A. de Andrade Teixeira. No documento,
42
Cf. BRAGA, Júlio. Na gamela do feitiço. Repressão e resistência nos candomblés da Bahia.
Salvador: EDUFBA, 1995. 43
APB, Judiciário. Processo-Crime. Antônio Sebastião dos Santos (réu). Est. 37/Cx. 1333/ Doc. 1/ Ano 1912; APB, Judiciário. Processo-Crime. Adalgisa Ribeiro da Silva (ré). Est. 27/Cx. 1004/ Doc. 1/ Ano1935, respectivamente. 44
APB, Judiciário. Processo-Crime. Nelson José do Nascimento (réu). Est. 30/ Cx. 1056/ Doc. 17/ Ano 1939. Este documento também foi analisado por Júlio Braga na obra citada.
127
o delegado solicita a emissão do mandado de busca e apreensão dos bens de
Nelson que tivessem alguma ligação com o Candomblé:
Delegacia da 3ª Circunscrição Policial
Portaria
Tendo chegado ao meu conhecimento que na casa onde reside Nelson José do Nascimento, sita (sic) a Avenida Cendon, á Rua da Imperatriz, distrito dos Mares desta Circunscrição Policial, se pratica o culto da magia negra (feitiçaria), onde o referido Nelson José do Nascimento recebe pessoas, a quem dá consultas e receitas, praticando assim a falsa medicina, ordeno ao Sub-escrivão Otoniel Beserra da Silva, no impedimento ocasional do titular efetivo Gilberto Gordilho de Faria, que a esta lavre mandado para efetuar-se uma busca na referida casa, apreendendo todo e qualquer material que ali seja encontrado, tendente ao citado fim, de tudo se lavrando os competentes autos, termos e certidões da LEI.
CUMPRA-SE
Bel. A. de Andrade Teixeira
Delegado.45
Interessante perceber o tom abstrato desta portaria, no que diz respeito aos
objetos que se esperava serem encontrados pela polícia nesta batida. Como os
policiais saberiam os objetos que deveriam ser apreendidos, se no documento
não havia nenhuma indicação precisa do que procurar? Isto indica, como Júlio
Braga sugeriu, que os policiais, que pertenciam, em sua maioria, às classes
sociais mais pobres, locais onde a incidência de Candomblés costumava ser
maior, teriam uma certa familiaridade com os objetos do culto, ainda que por
ventura não acreditassem ou não tivessem alguma relação mais íntima com a
religião. Acreditamos, porém, que o fato de o delegado não especificar os
objetos a serem apreendidos pode expressar uma falta de conhecimento do
que poderia ser encontrado, oferecendo, assim, o beneplácito aos soldados
incumbidos de tal missão de recolherem qualquer material considerado
“estranho” ou “exótico”.
Depois disso, segue a formulação da queixa pelo promotor público. O promotor
apresenta o réu como sendo Nelson José do Nascimento, solteiro, natural
45 APB, Judiciário. Processo-Crime. Nelson José do Nascimento (réu). Est. 30/ Cx. 1056/ Doc.
17/ Ano 1939, p. 04.
128
deste estado, maior, contando vinte e dois anos de idade, auxiliar de comércio
e residente à Avenida Cendon, nº 3.46 O restante do texto segue:
Do inquérito policial que o presente acompanha, verifica-se que o denunciado conhecido como curandeiro e pai de santo praticava em sua residência á Avenida Cedron, n. 3, Distrito dos Mares, desta cidade, além da magia negra e seus sortilégios a falsa medicina, inculcando aos seus clientes a cura de moléstias curáveis e incuráveis a fim de fascinar a credulidade pública. E como assim procedendo, haja o denunciado cometido o crime previsto no art. 157 da Consolidação das Leis Penais, esta promotoria oferece a presente denúncia para que julgada provada, seja o mesmo punido com as penas do artigo citado. Pede-se que tenha início a formação da culpa, observadas as formalidades legais.
Testemunhas:
Alípio Magalhães. Avenida Bastos, n. 23;
José Paulo de Salles. Garcia, nº 10;
Agrário Ramos Bacelar. Barão de Cotegipe, n. 39.47
O texto da promotoria transcreve, com pequenas alterações, o artigo 157 do
Código Penal de 1890, ainda vigente no ano em que este processo se
desenrolava. Não há nesta queixa, nenhuma informação de caráter pessoal em
relação ao delito cometido por Nelson. Provavelmente, utilizar o texto oficial da
Lei neste momento dos autos, ao invés de descrever o delito de maneira mais
detalhada, daria maior possibilidade de êxito na formulação da queixa pelo
promotor. No mesmo dia o auto de busca e apreensão é apresentado:
Em seguida, presente o doutor Delegado comigo escrivão de seu cargo abaixo nome assinado, na casa de residência de Nelson José do Nascimento, a Avenida Cendon, na rua da Imperatriz, ahi intimei o mesmo para que me franqueasse a casa para uma busca; depois de lhe ter lido o mandado de busca e apreensão que retro se vê, o mesmo Nelson José do Nascimento abriu-me a porta onde encontrei com as testemunhas Felinto Bezerra Filho, Agrário Ramos Bacelar os objetos seguintes: (2) nichos, contendo duas imagens; uma de Nossa Senhora das Candeias e outra do Menino Jesus; um livro de assentamento; um quadro de Senhor dos Passos; duas imagens de Cosme e Damião, em um só pedestal; uma
46
A grafia no nome desta avenida aparece de diversas maneiras,e, como não há precisão de qual seria a forma correta, todas serão transcritas da mesma maneira que aparecem no documento original. 47
Ibidem.
129
imagem de Santo Onofre; uma bacia e doze pratos de louça. Dentro da primeira onde tem uma tigela em duas pedras, que representam o Santo “Oxum”, (Nossa Senhora das Candeias); uma tigela com quatro pedras, que representam “Inhansan” (Santa Bárbara); um alguidar de barro com um caqueiro cheio de azeite de dendê, farofa amarela, que representa o assentamento de “Eixú” (Diabo), na farofa estão enfiadas três lanças de ferro; cinco buzos do mar, que representam o santo “Obaluaê” (São Lázaro, pai da bexiga); uma faca pertencente ao assentamento de Exú do Diabo; uma talha pequena para água de Inhansã; uma garrafa de azeite de luz para os santos; quatro bonecas de pano; duas gamelas para pedra dos santos; doze tranças de cabelos de mulher; um livro com orações escritas e duas outras pequenas cadernetas; diversos jarros com flores, vestimentas, enfeites, rosários de contas, e outros pequenos objetos. E como nada mais houvesse, mandou o Doutor Delegado lavrar este auto que lido e achado conforme, rubrica e assina com o dono da casa acima referido, e no poder de quem foram apreendidos os objetos acima mencionados, tudo na presença das testemunhas citadas no começo deste, da que Otoniel Bezerra da Silva sub-escrivão lavrou e escreveu.48
Na descrição do material apreendido, nota-se uma livre associação entre o
Candomblé e o Catolicismo, quando orixás como Obaluaê são ligados ao santo
católico São Lázaro, Iansã a Santa Bárbara, Oxum a Nossa Senhora das
Candeias etc. O que nos parece difícil acreditar é que o pai-de-santo tenha
feito esta associação, inclusive a do orixá Exú com o Diabo, como normalmente
pensam as pessoas que não pertencem ou não possuem uma compreensão
mais apurada acerca do Candomblé. Como foi prática recorrente entre as
populações negras, sobretudo durante a escravidão, vincular suas divindades
aos santos católicos para desviar a atenção dos senhores sobre suas crenças
e evitar sua proibição, o sincretismo desempenhou esta função durante muito
tempo. Contudo, como já foi abordado, a visão das religiões de matrizes
africanas tem sua própria cosmogonia, que não passa pela dualidade Deus X
Diabo, como na religião cristã, e já não era mais necessário este subterfúgio,
pois do ponto de vista legal, nenhuma religião seria considerada criminosa.
Nelson do Nascimento, na condição de pai-de-santo e de acusado,
provavelmente não forneceria provas contra si próprio, inteligente e perspicaz
que era em suas palavras, como veremos mais adiante, no seu depoimento,
colhido ainda no dia em que o auto de busca e apreensão foi lavrado e depois
que o acusado já havia feito o reconhecimento de seus pertences: 48
Ibidem, p. 08.
130
Auto de perguntas feitas a Nelson José do Nascimento
Perguntado: em que trabalha? Respondeu: que está desempregado.
Perguntado: se o respondente é pai-de-santo da seita africana denominada candomblé? Respondeu: que o vulgo a quem denomina pai-de-santo o lugar que ocupa na referida seita.
Perguntado: se o respondente praticava em sua residência sita a Avenida Cendon atos referentes à seita africana? Respondeu: que praticava atos sem nunca ter feito mal a pessoa alguma; que trabalhava em seu próprio benefício.
Perguntado: se o respondente praticava atos em benefício de pessoas estranhas? Respondeu: que sim.
Perguntado: quais eram esses benefícios? Respondeu: que doentes feridos que procuravam o respondente afim de se tratarem; que os benefícios da seita praticados pelo respondente era por intermédio de banhos.
Perguntado: quanto o respondente cobrava por cada consulta que lhe faziam? Respondeu: que três mil e quatrocentos réis.
[...]
Perguntado: se os nomes constantes nos livros que foram apreendidos na casa do respondente, conforme termo de apreensão, são de seus clientes? Respondeu: afirmativamente.
Perguntado: por que o respondente tinha bonecas de pano, vestidas: de noiva, de luto, de soldado? Respondeu: que as referidas bonecas lhe foram levadas para trabalho que não foram executados pelo respondente; que era pra resolver casamentos atrapalhados.
Perguntado: que significação têm os cabelos de mulher que foram encontrados na casa do respondente? Respondeu: que são de vestimenta de caboclo.
Perguntado: que significação tem o azeite, digo, a farofa de azeite de dendê, dentro de um caqueiro, onde estão enfiadas lanças de ferro? Respondeu: que o santo “Eixú” anjo inferior guarda da casa.
[...]
Perguntado: se as bonecas referidas na pergunta acima, servem para feitiçaria; desencaminhamento de senhoras casadas, morte de pessoas e outros males? Respondeu: que serve, porém, não nas suas mãos do respondente, que nem delas se serviu, como já disse antes. [...]49
49
Ibidem, p. 09.
131
O interrogatório segue como se fosse uma “aula”, na qual o pai-de-santo
demonstra ter domínio sobre o assunto, mesmo tendo apenas 22 anos de
idade, claro, se relevarmos a situação em que o mesmo se encontrava e a
pressão das autoridades policiais sobre ele. No processo não consta se os pais
de Nelson eram adeptos do Candomblé. Consta apenas o nome de seu pai,
José Tomé do Nascimento, mas não informa se havia casos precedentes na
família. Mas o fato de um jovem de 22 anos ter tanto conhecimento sobre a
utilidade de cada um dos objetos do terreiro, bem como o respeito e
reconhecimento de diversas pessoas a ponto de possuir um livro de clientes,
comprova que Nelson José do Nascimento iniciou-se no Candomblé muito
cedo, talvez ainda na infância. E como esta autonomia para escolher a religião
certamente não partiria dele, supomos que ele vinha de uma família que já
vinha de certa tradição dentro da religião.
Pelo que se pode compreender a partir das respostas dadas por Nelson, ele
realmente acreditava estar prestando um serviço de utilidade pública, cuidando
do bem-estar de seus clientes, bem como desempenhando uma atividade
profissional que lhe renderia lucros complementares ao seu emprego de
auxiliar de comércio (embora no interrogatório ele tenha se declarado
“desempregado”). Demonstra ser ético na realização dos seus trabalhos ao
dizer que não fazia mal a pessoa alguma, mesmo considerando que alguns dos
objetos poderiam ser utilizados para estes fins. Entretanto, apesar de suas
“boas intenções”, para a Justiça, ele havia cometido a infração prevista pelo
Código Penal, não só pelo artigo 157, como também pelo artigo 158, que
condenava o ato de ministrar ou prescrever para meio curativo qualquer
substância, fazendo ou exercendo o ofício denominado curandeiro, como foi
discutido no capítulo anterior. Como ele só foi denunciado pelo artigo 157, sua
pena poderia não ser a mesma, ou seja, poderia ser menor do que seria se ele
tivesse sido acusado de infringir os dois artigos.
A etapa seguinte no processo foi o interrogatório das testemunhas na presença
do indiciado, conduzido de maneira bastante tendenciosa:
Aos quatro dias do mês de outubro de mil novecentos e trinta e nove, nesta cidade do Salvador e na Delegacia da Terceira Circunscrição, onde presente se achava o Doutor A. de
132
Andrade Teixeira, Delegado, comigo Sub-escrivão de seu cargo abaixo nomeado e assinado, compareceram as testemunhas que serão inquiridas [...] na presença do acusado, Nelson José do Nascimento [...]
Primeira Testemunha
Alipio Magalhães, com trinta e quatro anos de idade, filho de Virgílio Magalhães, solteiro, carpinteiro, natural deste Estado, residente à Avenida Bastos, número treze, na rua Rio de Contas, Mont Serrat, sabendo ler e escrever, aos costumes disse nada; testemunha juramentada na forma da lei, prometeu dizer a verdade e sendo inquerida a respeito do fato constante da portaria de folhas que lhe foi dada, disse que no dia três do corrente mês, estava o depoente na rua da Imperatriz quando viu que retiravam de uma casa na Avenida Cendon vários objetos pertencentes ao culto de candomblés, que viu o dono de todos os objetos, e reconheceu ser o mesmo, bem reconhecido de vista, residente na referida casa, e que seguindo voz geral na rua da Imperatriz, o mesmo é “pae de santo”; e mais não disse. Perguntado se conhecia o indiciado presente, respondeu: que conhece, embora não tenha com o mesmo intimidade; que é o indiciado presente o pae de santo referido da linha acima referido pelo depoente, e da casa de quem foram retirados os objetos apreendidos e que se destinavam à magia negra, seita africana vulgarmente denominada candomblé. Perguntado se o indiciado presente batia o candomblé em sua residência respondeu que nunca ouviu o indiciado presente bater candomblé; que sempre via o indiciado na janela da casa do mesmo todas as noites até as vinte e três horas. Perguntado se sabe ou ouviu dizer que o indiciado presente praticava a falsa medicina, isto é, se curava ou tratava pessoas doentes ou feridas por meio de receitas de feitiçarias, conforme manda o referido culto africano respondeu que sabe por ter ouvido o próprio indiciado presente dizer, quando da ocasião da apreensão, lhe foi perguntado o que queria dizer os nomes das pessoas que estavam escritos nos livros que foram encontrados na residência do indiciado, que eram nomes de pessoas que se tratavam ou se trataram com o respondente. Perguntado se o respondente sabe ou ouviu dizer o que foi apreendido na casa do indiciado presente? Respondeu: - que sabe, que foi material de candomblé, ou melhor, da seita africana, pertencente a feitiçaria, que tanto servia para o bem como para o mal; que o apreendido foi mais ou menos o seguinte: um caqueiro cheio de farofa com azeite de dendê, com três lanças enfiadas; pedras representando “santos”, bonecas de pano vestidas de noiva e soldado; sino para chamar o “caboclo”, imagens e santos, um biombo, atrás de onde ficavam o beliche onde estava a quartinha contendo água para “santos”, pó denominado Pemba Branco, vestidos para os “santos”, buzos, garrafas de azeite de dendê, facão do cabo e outros objetos que não se recordava; que tudo que o depoente disse, tem certeza porque viu. E nada mais havendo, deu-se por findo este depoimento, que lido e achado conforme vai rubricado e assinado pelo Delegado, testemunha e pelo
133
indiciado presente que antes declarou, após lhe ser dada a palavra, que nada tinha a contestar. Eu, Manoel Bezerra da Silva, sub-escrivão que o escrevi.50
Algumas questões chamam a atenção neste depoimento. Primeiro: se Alípio
Magalhães não conhecia muito bem o seu vizinho, como ele poderia afirmar
que o observava todas as noites até as 23h em sua janela? O que ele estaria
fazendo para poder indicar com tanta precisão e periodicidade? Outra coisa a
ser destacada: a maneira como o depoimento da testemunha foi registrada é
diferente da maneira registrada no interrogatório de Nelson José do
Nascimento. No auto de perguntas e respostas do acusado, as questões estão
transcritas na íntegra, o que nos possibilita ter a noção exata do que foi
perguntado e, consequentemente, das respostas dadas por Nelson. No caso
de Alípio Magalhães, as perguntas estão descritas de maneira indireta. Desta
forma, não se pode precisar se a associação feita entre o Candomblé e a
chamada “magia negra” ou “seita africana vulgarmente denominada
candomblé”, foi feita pelo depoente ou se foi uma pergunta induzida da polícia,
como ficaria mais explícito no depoimento das outras testemunhas.
Além disso, o depoente não acrescentou nenhuma informação que já não
tenha sido expressa pelos autos ou confessada pelo réu. Sabia que Nelson era
pai-de-santo pela “voz geral” da rua em que morava e só confirmou que o
acusado fazia uso da medicina ilegal por tê-lo ouvido dizer. Não queria se
comprometer com afirmações, talvez pelo constrangimento por estar na frente
de seu vizinho com a função de depor contra ele, medo de alguma represália
ou possivelmente suas informações a respeito de não ter intimidade com o
mesmo não foram totalmente verídicas. Sua descrição detalhada do que
reconheceu ter sido retirado da casa de Nelson nos indica a possibilidade de o
depoente ter conhecimento do que se tratava a função desempenhada por ele.
A frase fundamental para tal hipótese é “[...] tudo que o depoente disse, tem
certeza porque viu”. As descrições são minuciosas demais para alguém que
não tem nenhum contato ou afinidade com o Candomblé. Convém lembrar que
50
Ibidem, p. 11-13.
134
em nenhum momento o indiciado contestou as informações prestadas por
Alípio Magalhães.
A segunda testemunha a ser interrogada foi José Paulo de Sales, “[...] com
trinta e dois anos de idade, filho de José de Sales, casado, servente de
pedreiro, natural deste Estado, residente no Garcia número (10) dez, não
sabendo ler nem escrever [...]”. Seu depoimento também não apresenta
elementos novos ao que já foi apresentado, por isso não o transcreveremos
aqui. José Paulo de Sales não afirma nada de maneira categórica. A partir de
sua leitura, percebe-se que o tom tendencioso das perguntas prossegue
quando o delegado o questiona se o mesmo sabia que Nelson do Nascimento
tratava pessoas doentes por meio de “feitiçaria, seita africana”. O tom do
interrogatório segue esta linha, com o intuito de conseguir provas mais
contundentes que atestem o delito do acusado.
A terceira testemunha intimada foi José Martins do Rego. Como ele não foi
localizado, o delegado sugeriu a intimação de Agrário Ramos Bacelar. Assim,
no dia doze de outubro de 1939, Agrário, de 38 anos, morador da rua Barão de
Cotegipe, número 39, casado, guarda municipal número 211, foi inquirido
basicamente com o intuito de confirmar as versões anteriores. As perguntas
foram basicamente as mesmas feitas às outras duas testemunhas e, como não
poderia deixar de ser, as respostas variavam muito pouco. As únicas coisas
diferentes que tinham no depoimento da terceira testemunha são as perguntas
sobre as visitas que Nelson recebia e sua periodicidade. Agrário Bacelar afirma
que o pai de santo recebia visitas diariamente. Além disso, lhe foi perguntado
se o acusado praticava atos de Candomblé ou “magia negra”, “feitiçaria”, entre
outros “sinônimos” atribuídos pela polícia à religião em sua residência e o
depoente afirmou que não ouvia bater o Candomblé, mas que ouvia rezas
quase todas as noites.
Esta foi a última testemunha interrogada sobre este caso antes que o caso
seguisse os trâmites para a formalização da culpa do indiciado. No relatório
assinado pelo delegado A. de Andrade Teixeira no dia 26 de outubro de 1939,
consta um resumo do que as três testemunhas disseram na frente do acusado,
que não manifestou nenhum protesto durante todo o processo de
135
interrogatório. Como Nelson do Nascimento estava cooperando com a polícia,
ao reconhecer todos os objetos apreendidos como seus, foi desnecessária a
realização de uma perícia mais apurada. No relatório, o delegado ainda sugere
mais testemunhas, caso seja útil para reforçar a acusação.
A partir daí, segue-se uma avalanche de ofícios, intimações, despachos (com o
perdão da ambiguidade, aqui me refiro aos despachos judiciais) e outros
depoimentos, que percorreriam todo o ano de 1940 e adentrariam no ano de
1941, culminando com a expedição do mandado de prisão para Nelson José do
Nascimento. Primeiro através de uma notificação:
Bahia, 23 de janeiro de 1941
Ao Réu Nelson José do Nascimento
Notifico-vos que a vossa prisão é motivada pelo despacho de pronuncia exarado nos autos de processo crime pelo Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da 1ª Vara Crime, processo este ao qual o Sr. responde.
Como se trata de delito afiançável, foi a repetiva fiança arbitrada em tresentos (sic) mil réis, que o Sr. prestará querendo.
Peço ciente.
O Escrivão.
Reynaldo Mattos.51
Em seguida, o mandado de prisão, “expedido para ser cumprido na forma e
sob as penas da lei”:
Eu, o Dr. DOMINGOS BANDEIRA VIEIRA TOSTA, Juiz de Direito da 1ª Vara Crime da Comarca da Capital do Estado da Bahia, seu Termo e etc.
MANDO aos oficiais de justiça deste Juízo, que vendo o presente por mim assinado, prendam onde for encontrado e recolham à Cadeia Pública, o réu Nelson José do Nascimento, natural deste Estado, solteiro, com 22 anos de idade, auxiliar do comércio, e residente à rua da Imperatriz, n. 3, zona da Penha desta cidade, pelo fato de haver sido pronunciado por este Juízo, como incurso nas penas do Artigo 157 da Consolidação das Leis Penais, por ter sido encontrado na prática da Magia Negra e seus sortilégios e o exercício ilegal
51
Ibide, p. 76.
136
da falsa medicina. E que por se tratar de delito afiançável, fora a respectiva fiança arbitrada em tresentos(sic) mil réis (300$000), que prestará querendo. O que cumpram na forma e sob as penas da Lei. Bahia, 23 de Janeiro de 1941. Eu, Aníbal Oscar Vital Carnaúba, sub-escrivão, que o escrevi. E eu, Reynaldo Mattos, escrivão, que o subscrevi.52
De forma surpreendente, já que houve colaboração do acusado durante todo o
longo e desgastante período em que o processo correu, a polícia não
conseguiu efetuar a prisão de Nelson, devido ao fato de o mesmo “estar
foragido em lugar ignorado”, conforme a certidão expedida no dia seguinte ao
mandado de prisão. Nelson desapareceu sem deixar rastros e nem um edital
expedido em 19 de maio de 1941, notificando-o e exigindo sua reapresentação
à Justiça no prazo máximo de 10 dias pareceu intimidá-lo. A fuga de Nelson no
último momento do processo, quando a sua inocência parecia ser
definitivamente impossível de ser comprovada, representa o fim de sua crença
em uma justiça terrena, na qual uma vida honesta de trabalho e prestação de
serviços à comunidade, sem nenhum objetivo de prejudicar a ninguém, é
punida com a prisão, simplesmente por não pertencer à religião hegemônica de
um Estado que se declarara laico na sua Constituição.
52
Ibidem. Note-se que a idade de Nelson continua constando como 22 anos, idade que o mesmo tinha informado no início do processo, quase dois anos antes. No momento da condenação, o réu já contava quase 24 anos de idade.
137
CAPÍTULO IV
“CUBRA-SE QUE VOU LHE CORTAR!”: RESISTÊNCIA NEGRA E
TRANSGRESSÃO DA ORDEM EM SALVADOR
4.1. OUTROS “DETRATORES DA MORAL PÚBLICA” E A AÇÃO POLICIAL
Como já foi mencionado anteriormente, o caso de Nelson José do Nascimento
foi o mais elaborado processo-crime sobre a violação do Art. 157 do Código
Penal de 1890 encontrado no APB para Salvador, no momento histórico
delimitado pela nossa pesquisa. Contudo, outros documentos apontam a
incidência de prisões pelo mesmo motivo, embora estes não sejam tão
detalhados como os processos. Já tivemos a oportunidade de observar as
portarias expedidas pelas diversas Subdelegacias de Polícia de Salvador, nas
quais as prisões por “desordem” ou “desacato e ofensas à moral pública”
predominavam. Raramente estes documentos variavam na classificação destes
crimes, mas foi possível encontrar alguns casos onde o motivo alegado para
que as pessoas fossem presas era o de “curandeirismo” e “prática de feitiçaria”.
Assim, em 1º de novembro de 1915, a Subdelegacia do Distrito da Lapinha
expediu o seguinte documento:
O Carcereiro da Cadeia de Correção recolhe à mesma cadeia, a disposição desta Subdelegacia, o individuo de nome Tertuliano da Silva, com 65 annos de edade natural deste Estado, capturado neste districto, nesta data, por estar na prática de feitiçarias.
Bahia, 1º de Novembro de 1915.1
A idade avançada não salvou o senhor Tertuliano da Silva da prisão por
feitiçaria. Além deste caso, em seis de julho de 1922, a Subdelegacia do bairro
de Plataforma emitiu uma portaria para a prisão de Maria Theresa de Jesus, de
42 anos de idade. Segundo o documento, a acusada se dava à prática de
1 APEB. Sessão Republicana. Correspondências enviadas e expedidas. 6444/2/1890 –
Recolhimento a Cadeia de Correção e Liberdade
138
feitiçarias na localidade de São Bartholomeu, inclusive “aliciando moças para
tal fim”. Ainda houve mais um caso localizado no Arquivo Público do Estado da
Bahia, cujas informações básicas, como a localização da subdelegacia e a data
em que a portaria foi expedida, não estão devidamente anotados. Entretanto, a
julgar pelo maço em que o documento foi encontrado, supomos que o mesmo
data da década de 1920. Mediante esta portaria, Arthur dos Reis, de 38 anos
de idade, foi preso por curandeirismo.2
Seguem agora alguns exemplos de outras prisões realizadas pela polícia na
década de 1920:
SUBDELEGACIA DE POLÍCIA DO DISTRITO DE PLATAFORMA
PORTARIA
Em 11 de Junho de 1921
O Carcereiro da Cadeia de Correção recolhe à mesma cadeia, a disposição desta Subdelegacia, a individua de nome Maria de Senna Oliveira, com 32 annos de edade natural deste Estado, capturada neste districto, nesta data, por estar promovendo a desordem em estado de embriaguez, além de faltar com respeito a moral pública.
Bahia, 11 de Junho de 1921.
SUBDELEGACIA DE POLÍCIA DO DISTRITO DA SÉ
PORTARIA
Em 13 de Abril de 1921
O Carcereiro da Cadeia de Correção recolhe à mesma cadeia, a disposição desta Subdelegacia, a individua de nome Dejanira Araújo Góes e Thomazia dos Santos, com 20-21 annos de edade naturaes deste Estado, capturadas neste districto, nesta data, por estar vagando pela rua sem destino, desobediência dentro do posto e atrevimento.
Bahia, 18 de Julho de 1921
2 Ibidem.
139
SUBDELEGACIA DE POLÍCIA DO DISTRITO DA LAPINHA
PORTARIA
Em 17 de Janeiro de 1924
O Carcereiro da Cadeia de Correção recolhe à mesma cadeia, a disposição desta Subdelegacia, o individuo de nome Gonçalo dos Santos, com 38 annos de edade natural deste Estado, capturado neste districto, nesta data, por desrespeito á moral pública.
Bahia, 17 de Janeiro de 1924.3
Nas três portarias acima, a ideia de “respeito à moral pública” estava muito
presente. Logo, andar pela rua bebendo, fazendo barulho ou exercendo
qualquer atividade condenável aos “bons costumes” seriam casos de prisão.
Vale ressaltar que nestas portarias não havia indicação da cor da pele do
acusado. Apenas este registro básico contendo nome, idade, naturalidade e
motivo da prisão, ainda assim, sem muitos detalhes. Nem sempre estas prisões
resultavam em inquéritos maiores.
Em 21 de maio do mesmo ano, o alferes Affonso Pedro Vieira, registrando o
movimento da freguesia nesta data, anotou o seguinte:
Estação da Sé, em 21 de maio de 1890
Ao Ilustre Cidadão Tenente Coronel Commandante do Corpo Militar de Policia
Parte
Declaro-vos que durante as vinte e quatro horas decorridas no policiamento feito nesta freguesia deram-se as seguintes occurrencias:
A disposição do Cidadão Subdelegado da Sé acham-se recolhidos nesta Estação os indivíduos de nome Thomaz dos Santos, por provocar desordem as 11 horas da noite, na rua direita do Palácio e Arcebispo Macêdo, por vagar alta noite sem destino. [...]
Foram destribuídas as patrulhas na forma do costume, fazendo todo o serviço do policiamento sem maior novidade.
Affonso Pedro Vieira
Alferes.4
3 Ibidem.
4 Ibidem.
140
Como se pode depreender dos documentos apresentados até agora, além das
detenções habituais por desordem que já discutimos, havia também as prisões
por “vadiagem” ou simplesmente pelo fato de as pessoas estarem “vagando
sem destino”, como o caso de José Martinho e Arcebispo Macêdo, em 1890, e
o de Dejanira Araújo Góes e Thomazia dos Santos em 1921. Esta medida
arbitrária de efetuar prisões apenas por este motivo já havia gerado um mal-
estar entre a Diretoria Geral de Saúde Pública da Bahia e a polícia em 1912,
quando um funcionário do distrito sanitário do Rio Vermelho foi preso
arbitrariamente e exposto a humilhações e maus tratos por andar pela rua até
altas horas da noite, culminando com a exigência de punições exemplares pelo
diretor daquela instituição, o Dr. Pinto de Carvalho:
DIRECTORIA GERAL DE SAÚDE PÚBLICA
Em 22 de outubro de 1912
Ilmº Exmº. Sr. Dr. Chefe de Policia
Tenho o desgosto de levar ao vosso conhecimento, que o sr. Antonio Queiroz, chefe da turma do serviço especial extraordinário, que trabalha no 11º Districto Sanitário, Rio Vermelho, foi hontem preso pelo sargento da guarda policial desse local, exclusivamente pelo facto de estar na rua depois das 10 horas da noite. O abuso subiu de ponto, quando obrigaram o pobre rapaz a dormir no posto policial e fazer fachina [sic] pela manhã, sob os maus tratos policiaes.
Sendo o sr. Queiroz um bom empregado, e trabalhador, conforme a informação do dr. Inspector do 11º Districto, estou convencido de que houve ahi grande abuso, para o qual vos solicito e espero que não tarde o necessário castigo.
Cordeaes saudações
Dr. Pinto de Carvalho.
Percebemos através deste documento o que estas prisões arbitrárias poderiam
proporcionar. Prender alguém simplesmente pela sua circulação na rua em
determinado horário, certamente, acarretaria em apreensões injustas ou
injustificáveis. Este caso só se tornou público devido ao fato de Antonio
Queiroz ser “chefe da turma do serviço especial extraordinário”, ou seja,
141
alguém de procedência reconhecida e com relativo prestígio dentro da Diretoria
de Saúde Pública da Bahia. Para cada caso excepcional como esse, quantas
pessoas sem a mesma “sorte” do Sr. Antonio Queiroz não devem ter sido
presas, sem o mesmo alarde e sem a mesma intervenção das autoridades?
Contudo, um dos grupos sociais tradicionalmente apontados como
“desordeiros” são os capoeiristas. Antônio Liberac Cardoso Simões Pires
possui diversos trabalhos a respeito da relação entre a Capoeira, a sociedade e
a polícia, e explora bastante a questão da criminalidade e das autuações de
capoeiras tanto no Rio de Janeiro quanto em Salvador e Recôncavo Baiano.5
Seus estudos são fundamentais para a pesquisa sobre a Capoeira no início da
República, devido à escassez de trabalhos mais detalhados acerca da
temática, bem como a dificuldade de encontrar documentos que tratem
abertamente sobre a Capoeira, assim como acontece quando pesquisamos
sobre o Candomblé. O autor catalogou uma série de documentos policiais e
chegou aos nomes dos capoeiristas deste período se valendo de registros
preservados pela tradição dos praticantes, através das listas de diversos
mestres e escritores, a exemplo de Mestre Noronha, Mestre Pastinha, Mestre
Bimba, Jorge Amado, Manuel Querino, Antônio Vianna e outros, bem como
através de matérias de jornais. 6
As listas de capoeiras pesquisadas por Antônio Liberac Pires foram
fundamentais para que pudéssemos identificar a presença destas pessoas no
cotidiano de Salvador. A partir de tais informações, pudemos localizar no
Arquivo Público do Estado da Bahia, diversos processos-crime referentes a
elas.
Um fato bastante significativo é a ausência de processos que tenham como
motivação os artigos entre o n. 402 e 404 do Código Penal de 1890, que
criminalizavam a prática de “capoeiragem” nas ruas e praças públicas,
5 Sobre a prática da Capoeira no Rio de Janeiro, Cf. PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões.
A Capoeira no jogo das cores: Criminalidade, cultura e racismo no Rio de Janeiro (1890 – 1937). Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 1996. Sobre a relação entre a Capoeira e as classes trabalhadoras na Bahia, Cf. Idem. A Capoeira na Bahia de Todos os Santos. Um estudo
sobre cultura e classes trabalhadoras (1890 – 1937). Tocantins/Goiânia-GO: NEAB/Grafset, 2004 6 Idem. A Capoeira na Bahia de Todos os Santos... p. 25.
142
conforme já discutimos no segundo capítulo. Normalmente, apesar de os réus
serem notadamente capoeiras, a maioria de suas prisões é por lesões
corporais, Artigo 303 deste mesmo Código, oriundas de conflitos casuais, rixas
pessoais ou até mesmo provenientes da prática da Capoeira entre o réu e a
vítima; alguns destes casos de lesões corporais se agravaram tanto que
chegaram até o homicídio. Outro indício fundamental para a identificação de
capoeiras nos crimes por lesão corporal é o uso da navalha ou da faca, armas
que aparecem várias vezes na maioria dos processos. Pires adverte,
entretanto, que apenas o uso da navalha não basta para que se possa afirmar
que os indiciados eram praticantes da Capoeira. As circunstâncias da utilização
e o seu contexto nos ajudam a chegar a dados conclusivos.7
Passemos então a analisar alguns processos-crime envolvendo acusados que
foram identificados como praticantes de Capoeira, ainda que esta identificação
não esteja descrita textualmente nos documentos. O primeiro a ser abordado é
o de Agripino Marques de Oliveira, que, em 31 de janeiro de 1915, foi preso em
flagrante após esfaquear Olegário Pereira dos Santos:
O Promotor Público com exercício nesta Circunscrição, usando de uma das suas atribuições legais, vem, com o inquérito policial anexo, denunciar Aggripino Marques de Oliveira, que pelas vinte horas do dia 31 de janeiro do corrente ano, no lugar denominado “São Gonçalo”, do 3º Distrito de Santo Antônio, nesta cidade, vibrou uma facada em Olegário Pereira dos Santos, produzindo-lhe a lesão corporal descrita no auto de exame pericial [...]8
Ao que o processo indica, Agripino foi preso pelas próprias testemunhas do
crime, que provavelmente estavam jogando com ele, como ficará mais explícito
mais adiante, no depoimento do réu. Apresentaram-se como testemunhas,
inicialmente, o responsável pela prisão, Bonifácio José Caetano, solteiro, 30
anos de idade, sabendo ler e escrever, vigia das “Docas do Porto” e residente
ao Cabula, além de Eustáquio Manuel da Paixão e Manoel João dos Santos.
Bonifácio José Caetano afirmou na delegacia que, por volta das 20 horas do
dia 31 de janeiro de 1915, Agripino estava causando distúrbios e agredindo as
pessoas na rua e, posteriormente, “vibrou uma facada no peito esquerdo de
7 Ibidem, p. 170, nota 59.
8 APB, Judiciário. Processo-Crime. Agripino Marques de Oliveira (réu). Cx. 28/Doc. 7/1915, P.
02.
143
Olegário Pereira dos Santos, deixando-o por terra, quase mortalmente ferido”.
Então, Bonifácio teria também entrado em conflito com Agripino, tomando-lhe a
faca, quebrando o cabo e levando o autor da facada até as autoridades
policiais. Os lavradores Eustáquio Manoel da Paixão, de 35 anos, e Manoel
João dos Santos, de 20, depuseram em seguida, confirmando a versão de
Bonifácio José Caetano. Ainda afirmaram que auxiliaram Bonifácio a conduzir o
réu até a delegacia, logo após o mesmo ter cometido o crime, para que este
pudesse ser preso em flagrante.
Depois do depoimento das testemunhas, Agripino Marques de Oliveira é
finalmente ouvido pelo delegado, e é a partir do seu depoimento que surgem
elementos mais incisivos que apontam para a prática da Capoeira. De acordo
com o relatório, Agripino morava no bairro de Mata Escura do Retiro, tinha 35
anos de idade e trabalhava como ganhador. Não sabia ler nem escrever.
Quando perguntado sobre as circunstâncias do crime que culminaram com sua
prisão, o réu afirmou que estava no bairro de São Gonçalo “vadiando no meio
da rua com um rapaz cujo nome ele respondente não sabe”, por volta das 19
horas, quando outro rapaz, cujo nome ele também ignorava, sacou de um
punhal para ele. Diante disso, Agripino corre até a casa de José Cypriano, em
uma rua próxima, e o pede uma faca que ele havia deixado guardada lá, sem
ter dito o motivo de tal pedido. José Cypriano o entrega a faca e Agripino volta
“[...] armado com a dita faca e dirige-se ao ponto de São Gonçalo onde ele
respondente estava brincando”. Ao ver que ele estava armado, as demais
pessoas presentes pedem que ele entregue a faca ou se retire, mas ele se
nega. Segue-se uma confusão e luta, na qual tentam desarmá-lo. Neste
momento, Agripino enfia a faca no peito de Olegário e tenta fugir, mas é
capturado por pessoas que ele, pra variar, não sabia os nomes, sendo, então,
levado até as autoridades policiais. 9
Perguntado sobre os motivos que o levaram a esfaquear Olegário Pereira dos
Santos, Agripino afirma não ter nenhuma rixa pessoal com ele, o qual conhecia
de vista, e que a facada foi no intuito de se defender, quando quiseram tomar a
faca de sua mão. O réu reconheceu a faca que foi apresentada à polícia como
sua e se disse arrependido do delito cometido. 9 Ibidem, p. 07-09
144
Olegário, a vítima do processo, apresenta uma versão diferente em seu
depoimento. Afirma que Agripino estava “agredindo e provocando transeuntes”
indiscriminadamente, quando resolveu atacar “Balbino de Tal”, que também
morava no bairro onde tudo ocorreu. Nisso, Olegário tentou interceder por
Balbino, mas foi derrubado e esfaqueado por Agripino. O único fato que
aparece igual em todas as versões dos depoentes é a luta que se seguiu até
que se conseguisse desarmar o acusado e levá-lo até a delegacia. Há uma
pequena contradição no depoimento de Olegário, quando ele afirma “não ter
amizade nem conhecimento algum com Agripino”, mas ao ser questionado
sobre a razão de ter sido agredido desta maneira, ressalta que o réu agia
assim costumeiramente, o que dá a ideia de que Olegário já devia ter
presenciado atitudes parecidas outras vezes. Contrasta até mesmo com o
depoimento do acusado, que disse conhecê-lo “de vista”, mesmo não tendo
nenhum sentimento de amizade ou rixa. Olegário ignora se Agripino tem o
hábito de beber, mas reconhece que ele costuma provocar as pessoas.10
No dia seguinte, o sumário de culpa de Agripino estava pronto:
Subdelegacia de Polícia do 3º Distrito de Santo Antônio, em 1º de fevereiro de 1915.
Nota de Culpa feita a Aggrino Marques de Oliveira
O Capitão Antônio Theodoro Coelho, Subdelegado de Polícia do 3º Distrito de Santo Antônio:
Faz saber a Aggripino Marques de Oliveira, que o mesmo acha-se preso em flagrante delito, está sendo processado e vai ser recolhido à cadeia da Casa de Correção pelo crime de ferimento feito a faca na pessoa de Olegário Pereira dos Santos; e, serão testemunhas todas as pessoas que souberam e presenciaram o referido fato criminoso.
Eu, Rodrigo de Araújo, escrivão, que o escrevi e dou fé.
O Subdelegado
Antônio Theodoro Coelho11
Agripino permaneceu preso, à medida que o exame de corpo delito de Olegário
foi apresentado e anexado aos autos. No dia 26 de fevereiro de 1915, o
10
Ibidem, p. 10-11. 11
Ibidem, p. 12.
145
subdelegado Antônio Theodoro Coelho convoca as testemunhas a depor
novamente. Não há muito a se acrescentar entre o primeiro e o segundo
depoimento de cada um dos presentes. Convém destacar as questões a
respeito do procedimento do réu, considerado “provocante” por um, e “refinado
desordeiro” por outro, e do réu, sempre retratado como alguém de boa índole,
“bom chefe de família”, pacato etc. Outro fato importante nos depoimentos é a
confirmação de que todos estavam jogando Capoeira quando o delito ocorreu,
de acordo com uma das testemunhas arroladas, Gonçalo Manoel dos Santos.
Gonçalo afirma ter visto Agripino “[...] brincando de capoeira com Manoel de
Tal” horas antes, e que, posteriormente, viu o réu correndo e retornando com
uma faca, que originou toda esta celeuma. Contudo, a prisão de Agripino não
durou muito. Em 13 de abril do mesmo ano, pouco mais de dois meses após
sua prisão, o Major Cosme de Farias – um grande defensor dos capoeiras, que
aparece com frequência em diversos processos − intercede a seu favor no
tribunal com um pedido de habeas corpus, e, no dia seguinte, Agripino
Marques de Oliveira foi posto em liberdade e o caso foi arquivado.12
O próximo capoeira a ser estudado é Alfredo Martins Teixeira, vulgo
“Caboclinho”, conhecido da polícia e dos jornais pelas suas diversas
passagens pelas delegacias, principalmente por lesões corporais. Alfredo tinha
18 anos na sua primeira autuação, era marítimo, filho de Maria Dorothéa de
Souza, solteiro, analfabeto e residente ao Taboão, número 33. Vejamos dois de
seus processos.
O primeiro processo se inicia em 8 de maio de 1909. Nesta data, “Caboclinho”
foi preso em flagrante, acusado de agredir e ferir o cabo de esquadra do 1º
Corpo Policial, Emílio Messias de Souza, na Ladeira do Taboão. Conta a vítima
que, enquanto patrulhava a região com outros praças, Alfredo Teixeira,
12
Cosme de Farias foi um homem de origem humilde, nascido em São Thomé de Paripe,
subúrbio de Salvador. Apesar de não ter concluído o ensino fundamental, foi vereador,
deputado estadual, major e atuou como advogado de milhares de réus das classes populares,
sobretudo capoeiristas. Para mais informações sobre Cosme de Farias, consultar OLIVEIRA,
Josivaldo Pires. Cosme de Farias e os Capoeiras da Bahia: um capítulo de história e cultura
afro-brasileira. In Sankofa: Revista de História da África e de estudos da Diáspora Africana.
Link: http://sites.google.com/site/revistasankofa/sankofa4/cosme-de-farias, acessado em 25
fev. 2011, às 23:35.
146
juntamente com outros indivíduos, apedrejaram a força policial, logo que esta
chegou ao local, e o acusado desferiu um golpe de faca em seu braço direito.13
Em seu depoimento, Alfredo preferiu não se manifestar, dizendo não saber a
razão de ter apedrejado os policiais, nem mesmo como ferira o cabo Messias,
contudo, a versão do agredido procura explicar o fato, apesar de não oferecer
tantos detalhes sobre o que teria motivado a briga. Emílio Messias de Souza
disse que estava de guarda no posto policial do distrito da Rua do Paço,
quando foi chamado por populares a socorrer seus colegas que já se
encontravam lá no meio do conflito. Chegando à rua Silva Jardim, onde os dois
grupos se enfrentavam, o cabo deu voz de prisão ao capoeira, que resistiu e
partiu pra cima dele com uma faca, rasgando-lhe seu fardamento e ferindo seu
punho direito. Mesmo após ter resistido e lutado, Caboclinho foi finalmente
dominado pelos policiais e levado à delegacia.14
No dia 13 de junho de 1909, novamente Cosme de Farias se apresenta como
defensor, assim como no caso de Agripino e no de inúmeros outros capoeiras,
pagando a fiança provisória de Caboclinho. O caso foi reaberto cerca de um
ano depois, com novos depoimentos, diversas testemunhas, idas e vindas ao
tribunal etc., e só no dia 21 de junho de 1910 é que o caso se encerra de fato,
com a decisão final do júri absolvendo Alfredo Martins Teixeira.15
O segundo caso do Caboclinho que iremos analisar ocorreu cinco anos depois
dos conflitos na ladeira do Taboão. Em 21 de março de 1915, ele foi
novamente preso em flagrante, dessa vez, por esfaquear José Felipe Nery, no
Cais Dourado. Neste segundo processo, o acusado já tem 22 anos e informa
ser saveirista. A primeira página do auto de prisão em flagrante delito dizia o
seguinte:
13 APB, Judiciário. Processo-Crime. Alfredo Martins Teixeira (réu). Cx. 21, Doc. 19, 1910. 14
Antonio Liberac Simões Pires, ao analisar o mesmo caso, infere que a briga teria sido motivada por disputas territoriais, e que o grupo de Caboclinho não queria dar sinais de fraqueza. Assim, como demonstração de força, enfrentou os policiais. Cf. PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões. A Capoeira na Bahia de Todos os Santos. Um estudo sobre cultura e classes trabalhadoras (1890 – 1937). Tocantins/Goiânia-GO: NEAB/Grafset, 2004, p. 75. 15 APB, Judiciário. Processo-Crime. Alfredo Martins Teixeira (réu). Cx. 21/ Doc. 19/ 1910.
147
Aos vinte e dois dias do mês de março de mil novecentos e quinze, nesta capital e no Posto Policial do Distrito do Pilar, onde se achava o subdelegado em exercício, Doutor José Sebastião Alves Peixoto, comigo escrivão adiante declarado, aí compareceu o guarda civil Antônio Aleixo dos Santos [...] que declarou que, há poucos instantes, cerca de doze e meia horas, prendeu no Cais das Docas, Alfredo Martins Teixeira, que era perseguido por populares, que o acusaram de ter ferido, no Cais Dourado, a José Felipe Nery, e por esse motivo, trazia à presença da dita autoridade, acompanhado das testemunhas presentes neste Posto Policial, que auxiliaram a prisão do conduzido.16
Este auto demonstra uma indignação das pessoas presentes pela agressão
perpetrada por Caboclinho, quando relata que o mesmo foi “perseguido por
populares”, algo semelhante ao que aconteceu com Agripino Marques de
Oliveira, neste mesmo ano, quando foi preso pelas próprias testemunhas de
sua punhalada em Olegário Pereira dos Santos. Isto pode estar relacionado a
um código de ética entre os capoeiristas, no qual até a violência no jogo da
Capoeira precisa ter limites. Quando estes limites são transpostos pelas facas
e navalhas, algumas testemunhas, descontentes com tal atitude, resolvem
levar o transgressor às autoridades. Voltando ao caso, quando questionado
sobre o que teria a dizer em sua defesa, Alfredo afirma ter cortado José Felipe
Nery “por brinquedo”. Perguntado em que lugar foi preso, o acusado disse que
após ter cortado José Felipe, correu até as Docas, onde a guarda civil já se
encontrava e efetuou a prisão.
A vítima José Felipe Nery tinha 25 anos de idade, era solteiro, trabalhava como
ganhador e morava na rua do Pilar, nº 14. Não sabia ler nem escrever. Ao ser
inquirido sobre o que teria provocado o ferimento e a queixa, José Felipe
respondeu que “estava conversando com um camarada quando chegou o
conduzido e foi dizendo „cubra-se que vou lhe cortar!‟, e quando ele ia
procurando defender-se, recebeu um talho de navalha.” A única explicação
possível que o agredido conseguia imaginar para que o Caboclinho fizesse tal
ato de covardia em ferir um homem desarmado, segundo a própria vítima, seria
sua “perversidade”. A julgar pela frase atribuída a Caboclinho – e que serviu
16 APB, Judiciário. Processo-Crime. Alfredo Martins Teixeira (réu). Cx. 28/ Doc. 2/ 1915, p. 03.
148
como inspiração para o título deste capítulo – e pela própria declaração do réu,
que afirma ter cortado José Felipe “por brinquedo”, podemos exemplificar
melhor as afirmações feitas anteriormente. A impressão que temos é que
houve um excesso de violência ou de métodos pouco convencionais na
“brincadeira” de Alfredo, que acarretou no ferimento na perna de José Felipe.
Ao mandar a vítima “se cobrir”, ou seja, se proteger, Alfredo já teria advertido
que iria atacar, cabendo ao seu adversário revidar à altura e se esquivar dos
golpes. Como consequência, lá estava Caboclinho preso novamente. Segundo
o exame de corpo delito, o ferimento “ganhava a região glútea esquerda, indo
terminar na região posterior da coxa”.17
Este processo contém as outras passagens do réu pela polícia, incluindo uma
por ter invadido uma casa e ferido seu morador, em 18 de outubro de 1911; por
ter apedrejado a Sociedade dos Marinheiros, em 22 de fevereiro de1915; pelo
caso a que estava sendo processado no momento (a facada em José Felipe),
além de ter sido omitida, por alguma razão, a contenda envolvendo seu grupo e
os policiais na ladeira do Taboão, em 8 de maio de 1909, como vimos em seu
processo anterior. Como se pode ver, Alfredo não era uma pessoa de
temperamento fácil. Seu nome era visto frequentemente nos jornais e sua
presença nas delegacias também era muito constante. A “brincadeira de mau
gosto” com José Felipe lhe rendera sete meses e quinze dias de reclusão na
Penitenciária do Estado.18
Outro caso envolvendo a violação do Artigo 303 do Código Penal de 1890 por
um capoeira foi registrado em 10 de janeiro de 1921. Nesta data, Ângelo
Pereira de Oliveira, conhecido como “Mata Escura” ou “Caneco”, com 20 anos
de idade, feriu a faca o garimpeiro de 28 anos Flaviano Geraldo da Silva,
depois de terem discutido e partido para as vias de fato em um restaurante
situado na Rua da Calçada, nº 4. De acordo com Eduardo Martins −
proprietário do Restaurante Bonfim, onde aconteceu o conflito – os dois se
encontraram por volta das dez e meia da noite e logo depois passaram a
discutir asperamente. Então, um freguês, cujo nome a testemunha não
recordava, os convidou a se retirar do estabelecimento. Assim que eles saíram
17
Ibidem, passim. 18
Ibidem, p. 53.
149
do restaurante, Ângelo sacou uma faca que ele mantinha guardada e enfiou
“traiçoeiramente” na perna de Flaviano Geraldo, fugindo do local em seguida e
sendo perseguido e preso pela polícia.19
Ângelo, ou “Mata Escura”, ou ainda “Caneco”, de constantes passagens pela
polícia, era conhecido por arranjar confusões e por ter fama de “valente”, termo
muito utilizado para designar os praticantes da Capoeira entre o final do século
XIX e começo do XX. Uma semana depois, no dia 18 de janeiro de 1921, o
acusado foi posto em liberdade sob fiança.20
No dia seguinte à libertação do acusado, a vítima, Flaviano Gomes da Silva, foi
depor na delegacia. Perguntado sobre o que teria acontecido, Flaviano
confirma a versão de que ambos teriam discutido, mas não entra em detalhes
sobre o motivo. Ângelo, então, teria saído primeiro e aguardado que a vítima
saísse. Quando ambos estavam do lado de fora do botequim, Ângelo bate no
rosto de Flaviano e, quando este se prepara para revidar, é atingido pela faca
do “Mata Escura”. Afirma ainda que eles não eram inimigos, pelo contrário,
eram até camaradas.
Um resumo do ocorrido é anexado ao processo em fevereiro e nos ajuda a
compreender melhor o desentendimento:
Neste inquérito foram ouvidas cinco testemunhas, de cujos depoimentos se averigua o seguinte: na noite de 10 de janeiro último, num botequim da rua da Calçada, nº 31, se encontravam alguns indivíduos a fazer libações alcoólicas ao som de repetidas modinhas, acompanhadas a violão. Entre eles se achavam Ângelo Pereira de Oliveira e Flaviano Geraldo da Silva que, em momento dado, entraram a discutir atirando-se insultos irritantes e pesadas provocações. Devido à intervenção de alguns dos presentes, deixaram os dois contendores de ali mesmo experimentar as forças. Pouco depois, porém, se viram frente a frente na rua e então travando-se a luta antes evitada, aconteceu que Ângelo Pereira de Oliveira, também conhecido pelas alcunhas de Caneco e Mata Escura, estando armado de faca, produziu em Flaviano
19 APB, Judiciário. Processo-Crime. Ângelo Pereira de Oliveira (réu). Est. 215/ Cx. 31/ Doc. 13/
1921. 20
Para entender melhor a relação entre o termo “valente” e os praticantes da Capoeira, Cf. OLIVEIRA, Josivaldo Pires. No tempo dos valentes: os capoeiras na cidade da Bahia. Salvador: Quarteto, 2005; QUERINO, Manoel. Bahia de outrora. Salvador: Progresso, 1946 e
PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões, op. cit. A identidade de capoeira de “Mata Escura” é confirmada por Waldeloir Rego, na obra Capoeira Angola. Ensaio Sócio-Etnográfico. Salvador:
Itapoã, 1968.
150
Geraldo da Silva o ferimento constatado no exame de corpo de delito de fls. ... a que foi submetido o ofendido, que também foi ouvido em auto de perguntas. O escrivão remeta estes autos ao Exmº Dr. Juiz de Direito da 6ª Circunscrição Criminal para os fins legais. Bahia, 15 de fevereiro de 1915 Arthur Lustosa de Aragão21
Depois deste resumo, podemos perceber que a briga foi motivada por exagero
na bebida alcoólica, o que não carece de tantas explicações mais
aprofundadas. Provavelmente, por não haver rixas nem inimizades anteriores
entre ambos, o motivo da briga foi algum desentendimento banal no calor do
samba que acontecia na Calçada do Bonfim. O caso prosseguiu durante anos,
e as testemunhas e o acusado foram intimados a depor diversas vezes. As
intimações começaram a ficar difíceis de serem entregues entre 1923 e 1924,
devido às viagens de “Mata Escura” para o interior do Estado “em lugar não
determinado”, além das mudanças e falecimentos de algumas das
testemunhas.22
O processo continuou correndo de forma extremamente lenta e em 15 de abril
de 1924, o juiz considerou procedente a queixa contra Ângelo Pereira de
Oliveira pela facada em Flaviano Geraldo da Silva, ordenando sua prisão e
estipulando a fiança em duzentos mil réis (200$000rs). O processo parece não
estar completo no APB, pois se encerra com o pedido do Ministério Público de
aplicação da pena máxima (que seria de um ano para os casos de lesão
corporal, sem contar as possíveis agravantes), mas não relata o julgamento do
réu.
Paralelamente ao processo por lesão corporal, Mata Escura também estava
sendo processado pelo homicídio de Manoel Fagundes da Paixão, o
“Caveirinha”:
O Adjunto dos Promotores, abaixo firmado com exercício pleno de promotor desta Circunscrição Criminal, usando de uma das atribuições que a lei lhe confere, vem perante V. Ex. denunciar de Ângelo Pereira de Oliveira, vulgo “Mata Escura”, com vinte e dois anos de idade, solteiro, natural deste Estado, − o fato
21 APB, Judiciário. Processo-Crime. Ângelo Pereira de Oliveira (réu). Est. 215/ Cx. 31/ Doc. 13/
1921, p. 20. 22
Ibidem, p. 27.
151
criminoso que passa a narrar. [...] Verifica-se que, por volta das sete e meia horas da noite de 13 do mês de fevereiro último, ao Beco do Silva, na Baixa do Fiscal, distrito do Pilar desta cidade, no interior da casa de nº 6 da referida rua, o denunciado Ângelo Pereira de Oliveira, vulgo “Mata Escura”, conhecido desordeiro, após forte discussão travada com o não menos desordeiro Manoel Fagundes da Paixão, vulgo “Caveirinha”, por motivo de jogo, vibrou-lhe com a faca de que se achava armado, os ferimentos descritos no auto de exame cadavérico, ferimentos estes que foram a causa da morte de “caveirinha”.
E como assim procedendo haja o denunciado incorrido na violação do art. 294, § 1º do Código Penal [...] esta promotoria oferece a presente denúncia a fim de que, instaurado o sumário de culpa, julgada provada, seja o denunciado punido com as penas do citado artigo. [...]
Bahia, 20 de março de 1922
Eugênio Teixeira Leal23
Durante todo o processo, tanto o acusado quanto a vítima são considerados
“criminosos”, “desordeiros”, “transgressores” etc. A circunstância em que o
assassinato aconteceu – em um jogo clandestino de cartas – serviu para
reforçar a ideia de criminalidade dos presentes; uma espécie de “acerto de
contas” oriundo de desentendimentos motivados pela jogatina. “Mata Escura” e
“Caveirinha”, juntamente com outros indivíduos, jogavam baralho em uma casa
numa viela do bairro da Baixa do Fiscal, quando passaram a discutir de
maneira áspera, trocando insultos e partindo para a agressão física.
Caveirinha, sem que ninguém esperasse, acertou vários socos em Mata
Escura que, enfurecido pelo jogo e pelos socos, apelou para a faca que sempre
andava com ele, vide o processo anterior, e acertou Caveirinha em cheio. Um
golpe fatal que lhe tirou a vida. Foi preso em flagrante delito e levado à
delegacia. A maioria das testemunhas que depuseram no processo preferiu se
isentar, afirmando que apenas souberam do fato por “ouvir dizer”. Isto não
passou despercebido pela defesa do acusado, que, entre outras questões,
aponta a conivência da polícia com a realização destes jogos proibidos,
23 APB, Judiciário. Processo-Crime. Ângelo Pereira de Oliveira (réu). Est. 196/ Cx. 2/ Doc. 6/
1922, p. 02-03. O art. 294 do Código Penal de 1890 se referia ao crime de homicídio.
152
deixando implícita, desta forma, a hipótese de um possível suborno, e
questionando sua competência:
Em defesa do acusado
A denúncia de fls. 2, se quisesse obedecer rigorosamente aos preceitos do Direito Processual, deveria ser julgada improcedente, por estar saturada de imperfeições, cada qual mais significativa e grosseira.
A polícia, eterna conivente da jogatina desenfreada que campeia nesta cidade, falha e manca de meios, forgicou [sic] o auto de flagrante de fls., procurando arrastar o infeliz signatário da presente, atirando-o ao cárcere negro e cruel. Não apurou, porém, sua responsabilidade. Nenhuma prova diz. Daí os indícios ligeiros em torno dos quais se formou a culpa.
O sumário onde as oito testemunhas arroladas pelo Dr. Promotor Público, só depõem de pleno acordo com sua consciência e por ouvir dizer, será analisado simplesmente por amor ao debate.
Assim, discutiremos a prova produzida para demonstrar que, de acordo com o depoimento das testemunhas, o acusado deve ser impronunciado por isso que agiu em legítima defesa.24
E a partir daí, a versão da defesa do acusado se propõe a explorar a tese de
legítima defesa, contra-argumentando através de uma retrospectiva do que
tinha sido apurado até aquele momento. Infere que Caveirinha era um marginal
conhecido da polícia e do “povo miúdo desta cidade” e que fazia do jogo
clandestino um hábito. Mata Escura estaria de passagem pelo local e decidiu
fazer uma partida apostando o valor de trezentos réis, aposta recusada por
Caveirinha, que, ao que tudo indica, era o responsável pelo jogo. Mata Escura
teria tentado convencê-lo a deixar jogar, mas foi recebido “a bofetadas”, fato
confirmado pelas testemunhas do caso. A legítima defesa, tanto da integridade
física quanto da honra do acusado, se justificaria, pois, ao ser insultado e
agredido, Mata Escura teria sido humilhado perante os presentes e não tinha
como saber se ele não teria morrido em lugar da vítima. O documento ainda
cita a criminologia italiana sobre o direito à legítima defesa, diz que o homicídio
24
Ibidem, p. 87.
153
foi acidental e conclui apelando para que a Justiça levasse em consideração o
sofrimento da mãe do acusado, que não iria suportar viver longe do filho.25
Os argumentos da defesa parecem ter sido convincentes, pois Mata Escura
acabou absolvido. A promotoria recorreu da sentença em 27 de outubro de
1922, alegando não ver nenhum motivo plausível para a absolvição do réu,
mas não obteve êxito.
Entretanto, apesar de ter sido posto em liberdade, a história de Mata Escura
não teve final feliz. Cerca de dois anos depois da absolvição pelo crime de
homicídio, ele próprio teria sua vida interrompida. Em 27 de junho de 1924,
depois de resistir a mais uma prisão por lesão corporal, Ângelo foi morto pelo
Major Manuel Abílio de Jesus, 38 anos, casado e residente ao bairro de São
Caetano, distrito de Santo Antônio. De acordo com os autos, ao passar com o
praça Manuel da Silva pela Rua do Oriente, também conhecida por “Alto do
Peru”, bairro onde residia, o Major reconheceu Mata Escura, que já estava
sendo novamente procurado pela polícia, e lhe deu voz de prisão. O procurado,
então, teria se negado a seguir os policiais até o posto policial e empunhou um
arpão que trazia, partindo pra cima das autoridades. Como o Major se sentiu
ameaçado pelos constantes ataques, sacou sua pistola e atirou em Mata
Escura, que não resistiu aos ferimentos e morreu. O Major Abílio de Jesus
alega que tinha o intuito de “amedrontar” a vítima, e não de “ofendê-lo
fisicamente”, como veio a acontecer. A versão do réu é confirmada pelas
diversas testemunhas do fato. 26
Mata Escura é novamente retratado como uma pessoa de má índole, violento e
ameaçador. O caso de assassinato do “não menos terrível „Caveirinha‟” foi
citado como mais um argumento que comprovava seu gosto pela violência.
Segundo o documento, a população do bairro de São Caetano teria ficado
“aliviada” com sua morte, devido aos transtornos que causava, mas essa é
apenas a versão oficial constante nos autos.27 Acreditamos que talvez pudesse
haver outros meios para que a legítima defesa fosse observada, pois acertar
25 Ibidem, p. 87-89. 26
APB, Judiciário. Processo-Crime. Manuel Abílio de Jesus (réu). Est. 193/ Cx. 85/ Doc. 2/ 1924, passim. “Arpão” é um instrumento metálico pontiagudo, semelhante a uma lança. É utilizado na pescaria para fisgar peixes. 27
Ibidem, p. 42-43.
154
seu adversário mortalmente com apenas um tiro parece mais com execução.
Será que o Major Manuel Abílio não conseguiria acertar sua vítima em um local
que não comprometesse sua vida, como um braço ou perna? Provavelmente
teria o mesmo efeito – desarmar ou conter os ataques do agressor – sem que
seu adversário viesse a óbito. Neste caso, a justiça que não pôde ter sido feita
nos tribunais, foi resolvida à bala.
A seguir, temos o célebre Pedro José Vieira, mais conhecido como “Pedro
Mineiro”, um dos capoeiras mais conhecidos da Bahia, lembrado em músicas e
versos até os dias de hoje. Pedro Mineiro também teve diversas passagens
pela polícia e se envolvia constantemente com prostitutas e em brigas pela
região do cais do porto de Salvador. Vejamos algumas das confusões em que
Pedro Mineiro se meteu. 28
Em 29 de agosto de 1909, Pedro Vieira deu entrada na Subdelegacia de
Polícia no Distrito do Pilar, por portar uma faca de ponta e um cacete, armas
consideradas proibidas pela justiça, e de ter tentado matar Cândido Britto, no
prédio número 22, à Rua do Pilar. Ao ser interrogado, o acusado disse ser
natural do Estado de Minas Gerais, ter 22 anos e morar na Rua do Julião, nº 28
e afirmou ser verdadeira a versão do policial que o prendeu. O pivô da tentativa
de homicídio, Maria Francisca de Jesus, prestou depoimento três dias depois,
dizendo ter dezesseis anos, solteira, modista e natural deste Estado. Convém
salientar, contudo, que era comum utilizar o termo “modista” para mascarar a
prática da prostituição. 29
Confirmou que Pedro Mineiro estava armado de faca e cacete e que travou
uma briga com Cândido Britto, acertando-lhe uma cacetada, em um botequim
que funcionava no mesmo local em que a mesma morava, causando grande
28
Sobre Pedro Mineiro, além da já citada obra de Antônio Liberac Cardoso Simões Pires, consultar também DIAS, Adriana Albert. A Malandragem da Mandinga. O cotidiano dos
capoeiras em Salvador na República Velha. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, Salvador-BA, 2004. Ver também o artigo da mesma autora na Revista Afro-Ásia, n. 32 (2005) intitulado Os “fiéis” da navalha: Pedro Mineiro, capoeiras, marinheiros e policiais em Salvador na República Velha. 29
APB, Judiciário. Processo-Crime. Pedro José Vieira (réu). Est 206/ Cx. 226/ Doc. 9/ 1909.
155
barulho. Pedro Mineiro teria sido, então, preso em flagrante, e Maria Francisca,
assustada com a confusão, se trancou no quarto.30
Na versão do acusado, o motivo da briga foi o fato de ter encontrado Maria,
chamada por ele de “mulher de vida fácil”, no quarto com Cândido, fato que o
teria desagradado. Perguntado da razão de ter invadido a casa com tamanha
raiva, e se Maria de Jesus era sua amásia, Pedro Mineiro disse que não
morava lá, mas manteve relações sexuais com Maria por diversas vezes; disse
não ter nenhuma indisposição anterior contra Cândido. 31
O depoimento da vítima não foi muito diferente da versão de Pedro e de Maria
de Jesus (também chamada de Maria da Conceição pelos dois interrogados).
Cândido Britto inferiu que estava em um quarto, no endereço já mencionado,
com Maria − que seria mesmo prostituta, segundo ele − e deixou a porta
aberta, quando de repente, Pedro Mineiro invadiu o quarto e passou a agredi-lo
com um pé de cadeira, e depois sacou uma faca para tentar cortá-lo, sendo
preso em flagrante pelo sargento Carvalho e pela patrulha. Como o caso não
teve consequências mais graves, Pedro Mineiro acabou solto após pagamento
de fiança, em 29 de outubro de 1909. O acusado provavelmente não se
conformou em ver a garota com quem ele mantinha relações constantemente
sendo tocada por outro homem. Há a possibilidade de Maria ser sua favorita na
casa, que ele freqüentava assiduamente; ainda que ela não fosse sua amásia
de fato, ele achava possuir direitos exclusivos sobre ela, culminando em uma
explosiva crise de ciúmes.
Um mês depois, Pedro Mineiro seria preso em flagrante mais uma vez. Agora,
por ter ferido o policial Francisco de Assis Alves da Fonseca, quando este o
tentava prender por outro crime de lesão corporal ao qual estava sendo
acusado. Ao receber a incumbência de prender Pedro Mineiro onde quer que o
encontrasse, o praça Francisco da Fonseca saiu à sua procura, finalmente
encontrando-o em um botequim no Cais Dourado, discutindo com outra pessoa
por causa de um furto de que também estava sendo acusado. Neste momento,
o policial teria interrompido a discussão e dado voz de prisão a Pedro Mineiro,
30 Ibidem, p. 8. 31 Ibidem, p. 10.
156
que reagiu sacando sua inseparável navalha, contra o policial e contra o seu
colega com quem discutia. Francisco da Fonseca ia se desviando como podia
das navalhadas de Pedro Mineiro, até que o foragido entrou em um prédio na
Rua Silva Jardim, nº 44. A essa altura, o reforço policial já tinha chegado, mas
isso não o intimidou. O anseio pela liberdade e pela resistência à prisão, ou sua
coragem em desafiar as autoridades, fizeram de Pedro Mineiro um verdadeiro
“exército de um homem só”. Após as tentativas com a navalha, Pedro acertou
vários golpes com um cacete na cabeça do policial, e ainda teve fôlego para
atirar diversas pedras nos demais. Finalmente prevaleceu a superioridade
numérica e Pedro Mineiro acabou dominado e preso, mas, apesar de toda essa
confusão, acabou sendo absolvido e o processo arquivado.32
Em setembro 1910, encontramos mais um processo envolvendo Pedro Mineiro
e suas confusões com mulheres. No caso em questão, ele foi acusado de
espancar uma menor com quem tinha um relacionamento. Isaura Maria da
Silva, quinze anos de idade, natural de Sergipe e empregada doméstica,
explicou que, por volta das 21 horas, quando se preparava para ir dormir no
prédio onde morava, nº 27, 1º andar, situado na Rua do Taboão, encontrou
Pedro e o questionou a respeito de um lenço, que este teria dado a ela, mas
que pertencia a uma tal Brasiliana, que acabou acusando Isaura de tê-lo
furtado; Isaura então teria contado à suposta dona que o lenço foi um presente
de Pedro Mineiro. Ao saber disso, o acusado ficou tomado de raiva e espancou
sua amásia com um pedaço de fio elétrico. Na versão do réu, o motivo da
agressão foi o fato dele ter sido alvo de “calúnias”, pois não havia roubado
lenço nenhum. Nega ter agredido Isaura com um pedaço de fio, dizendo que
deu apenas “dois tapas”; continua boa parte do seu depoimento afirmando que
Isaura estava mentindo a seu respeito, tanto em relação ao furto do lenço
quanto ao seu espancamento. Em 13 de dezembro de 1911, Cosme de Farias,
o sempre presente defensor dos capoeiras, intercede por Pedro Mineiro lhe
pagando a fiança. O processo ainda continuou por alguns meses, mas não teve
maiores consequências.33
32 APB, Judiciário. Processo-Crime. Pedro José Vieira (réu). Est. 215/ Cx. 3/ Doc. 20/ 1909, p.
7. 33
APB, Judiciário. Processo-Crime. Pedro José Vieira (réu). Est. 215/ Cx. 21/ Doc. 18/ 1910.
157
Assim como sua vida, a morte de Pedro Mineiro foi envolta em confusões,
brigas e envolvimento com mulheres. No dia 26 de dezembro de 1914, no bar
de “Galinho”, por volta das 8 da noite, Pedro Mineiro, juntamente com
Sebastião de Souza e Antônio José Freire, vulgo “Branco" entraram em conflito
com marinheiros do navio Piauhy, que havia ancorado no porto de Salvador,
vindo do Rio de Janeiro. Os marinheiros estavam jantando e foram
surpreendidos pelos capoeiras. O motivo da briga não foi devidamente
explicado, mas a maioria dos indícios apontam que tudo foi motivado pelo
envolvimento de um dos tripulantes do Piauhy com uma suposta amante de
Pedro Mineiro. Outra versão infere que o grupo de marinheiros já havia entrado
em confronto com o grupo de capoeiras na noite anterior. O que não resta
dúvidas é o intenso tiroteio que se seguiu, fazendo duas vítimas fatais: os
marujos José Domingos dos Santos e Francisco Holanda Wanderley. Após a
contenda, os marinheiros conseguiram fugir de volta para o navio, mas o grupo
de capoeiras acabou sendo preso.34
Na sessão de depoimentos realizada no dia seguinte, Pedro Mineiro negou o
envolvimento na morte dos tripulantes do destroyer e afirmou ser um “secreta
da polícia”; apenas buscava se defender dos ataques desferidos pelos marujos.
Os outros dois colegas interrogados seguiram a mesma linha de defesa nos
seus depoimentos, fato que desagradou um dos marinheiros presentes,
fazendo com que este surpreendesse a todos e, em pleno prédio da Secretaria
de Segurança Pública, disparasse diversos tiros contra Pedro Mineiro, que
ficou gravemente ferido e veio a falecer no dia 15 de janeiro de 1915.35
O atentado feito por um militar dentro de um prédio da polícia demonstra o
quanto havia divergências diplomáticas entre as duas forças, além da falta de
credibilidade em um julgamento justo, o que levou o marinheiro a buscar a
justiça com as próprias mãos. Pedro Mineiro, de vida conturbada,
marginalizada e violenta, se transformou em um mártir, cantado em diversas
ladainhas pelo Brasil e tendo sua história passada através das gerações.
34 DIAS, Adriana Albert. Os “fiéis” da navalha: Pedro Mineiro, capoeiras, marinheiros e
policiais em Salvador na República Velha. In Revista Afro-Ásia, n. 32 (2005), p. 272-273. 35
Ibidem, p. 275.
158
4.2. MUNDOS QUE SE CRUZAM: OS CASOS DE JOSÉ CYRIACO E
ALEXANDRE RAMOS
Passados de geração a geração, a Capoeira e o Candomblé, assim como os
sambas, batuques etc., trazidos pelos diversos povos africanos que aportaram
no Brasil – sobretudo na Bahia – foram adaptados à nova realidade em que
seus praticantes viviam, não sem alguma oposição de alguns setores da
sociedade, como já foi amplamente discutido neste texto. Tais costumes,
anteriormente utilizados para afastar a saudade de sua terra natal,
sobreviveram através dos tempos e de seus descendentes como plenas
representações de uma resistência cultural, mesmo em condições não
favoráveis. Assim, não é incomum, até mesmo nos dias de hoje, que exista
uma ligação forte entre os adeptos do Candomblé e os capoeiristas. Ou que
uma roda de Capoeira, depois de algum tempo, se transforme em uma roda de
samba. São experiências intrínsecas e indissociáveis.
Nas primeiras décadas republicanas, a marginalidade atribuída a este conjunto
de ações não havia se alterado tanto em relação ao período imperial, servindo,
muitas vezes, como justificativas para a efetuação de prisões, ou agravantes
no julgamento de determinado acusado de algum delito, pelo fato de essas
pessoas frequentarem praticamente os mesmos lugares. Assim, tomando como
referência os diversos processos-crimes localizados por Antônio Liberac Pires,
através de suas consultas às listas de capoeiras registrados por grandes
mestres, optamos por dois homens que viviam entrecruzando estes mundos:
José Cyriaco da Silva e Alexandre Ramos de Assis, por apresentarem, em
seus respectivos processos, elementos que comprovam este trânsito.36
O primeiro processo que encontramos tendo José Cyriaco como réu data de 21
de março de 1926, por lesão corporal grave e tentativa de assassinato a
Eutychio Alves da Silva. Na denúncia apresentada às autoridades, a
Promotoria pede que sua prisão seja decretada imediatamente, por se tratar de
36
Cf. PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões Pires. Op. cit. Segundo o autor, José Cyriaco, além de capoeira, era também “pai de santo” (p. 127).
159
crime inafiançável, por José Cyriaco ter fugido do local logo após o crime e por
não ter uma profissão.37
O crime aconteceu no Areal das Docas, próximo à Associação Comercial,
distrito da Conceição da Praia, por volta das nove horas da manhã, e segundo
a vítima, que tinha 22 anos e trabalhava como carregador, o acusado jogava
búzios com outras pessoas − traço relevante no que se refere às religiões de
matrizes africanas – quando de repente foi ao seu encontro, acusando-o de ter
alertado a “Antônio Boca de Porco”, outro respeitado capoeira da época com
diversas passagens pela polícia, sobre o suposto plano de José Cyriaco de
“dar no filho dele”. Logo depois, Eutychio recebe o profundo golpe de navalha e
cai, sendo socorrido posteriormente pela Assistência Pública; perguntado se
conhecia o seu agressor, Eutychio respondeu que não, e que não tinha
nenhuma desavença pessoal com ele. Eustáquio de Santana, colega de
profissão da vítima, revela em seu depoimento que vinha conversando com ele,
quando se ausentou pra comprar cigarros, deixando Eutychio e José Cyriaco
conversando. Ao retornar, encontrou seu colega com a mão no ventre, pedindo
socorro, e José Cyriaco havia desaparecido. Questionado sobre o motivo da
agressão, a testemunha disse que não sabia; sobre o proceder do acusado,
Eustáquio afirma que ele era um conhecido desordeiro e dado à prática de
furtos.38
A segunda testemunha, o também carregador Felipe Lopes de Carvalho,
entretanto, apresenta uma versão diferente. Infere que, por volta das dez da
manhã, conversava com José Cyriaco e outros, no já referido Areal das Docas,
perto do quiosque em que Eutychio e Eustáquio conversavam. Cyriaco se
queixava de ter sido agredido por Eutychio dias antes. Ao reconhecê-lo, José
Cyriaco foi ao seu encontro, onde tiveram uma breve discussão, seguida da
navalhada de Cyriaco sobre sua vítima. Lamentavelmente, no APB, este
processo está com algumas páginas faltando, inclusive a conclusão do
depoimento de Felipe, o resultado do exame de corpo delito e todo o
depoimento da terceira testemunha. Isto não inviabiliza a análise do processo,
já que as testemunhas depuseram novamente em outros momentos; só nos
37 APB, Judiciário. Processo-Crime.José Cyriaco (réu). Est. 214/ Cx. 45/ Doc. 9/ 1926, p. 02. 38
Ibidem, p. 07.
160
priva de alguns detalhes, que podem ser (ou não) importantes para o desfecho
do caso.
Após ter sido apontado como autor do crime pelas quatro testemunhas
arroladas, José Cyriaco foi intimado a depor algumas vezes, mas havia fugido
de Salvador e as intimações não podiam ser entregues. Só no dia 20 de maio
ele se apresenta à justiça, exatos dois meses após o ocorrido; afirmou ter 19
anos, ser alfaiate e morar na estrada do Cabula; confessou ter dado o golpe de
navalha em Eutychio, mas reverteu a acusação feita por ele: ao invés de ter
feito o que fez por ter sido delatado pela facada ao filho de Antônio Boca de
Porco, teria sido o contrário; Eutychio teria sido o autor da tal facada e
supostamente pôs a culpa em José Cyriaco, que, em represália à calúnia
respondeu daquela forma. A Promotoria pede mais uma vez sua prisão
preventiva, prontamente aceita pelo Dr. Constâncio Augusto Godinho, Juiz de
Direito da 2ª Vara Crime de Salvador:
Mando ao oficial de justiça deste juízo a quem este for apresentado, que vendo o presente por mim assinado, prenda e recolha à Casa de Correção desta capital o denunciado de nome José Cyriaco Silva, incurso nas penas do art. 294§2 do Código Penal [...] por ter, no dia 21 de março do corrente ano, às 9 ¹/² horas no Areal das Docas desta Capital tentado matar ferindo com uma navalha à Eutychio Alves da Silva [...] o que cumpra nas formas e sob as penas da Lei.
Bahia, 25 de Maio de 1926.39
Testemunhas novas são ouvidas e as testemunhas anteriores são interrogadas
novamente. De significativo nestas audiências, temos o depoimento do
engraxate Eduardo Pereira da Silva, que conhecia os dois. Eduardo disse que
ambos eram amigos e não tinham nenhuma rixa anterior, pelo menos que ele
soubesse e confirmou ainda que Eutychio também era capoeirista, assim como
José Cyriaco. As versões dos depoentes se contradizem o tempo todo, ora
colocando um, ora colocando o outro como o provocador da briga. Enquanto a
Promotoria exigia sua condenação, a defesa de José Cyriaco adotava como
justificativas para sua absolvição a carência de provas concretas de sua culpa
e a legítima defesa, tanto de sua integridade física quanto de sua honra. O
39
Ibidem, p. 27.
161
ataque só teria acontecido porque Eutychio trazia um copo de café em uma
mão e uma navalha na outra; que discutiu e provocou o tempo todo, enquanto
que José Cyriaco tentava demovê-lo dessa ideia; e só após ter sido ameaçado
é que usou a faca que estava em seu poder, já que ele fazia uma refeição
naquele momento. Para criar dúvidas sobre o caráter de Eutychio, o mesmo é
apontado pela defesa como “capoeirista e brigador contumaz”, como se a
identidade de “capoeirista” por si só denotasse um aspecto negativo, um
sinônimo de marginalidade. Após outra seção de interrogatórios, o caso foi
arquivado em julho de 1926.40
Mais um caso em que o mundo da Capoeira se relacionou outras
manifestações culturais majoritariamente negras ocorreu no réveillon de 1929.
Nas primeiras horas do ano novo, acontecia um “baile”, literalmente ao som
dos atabaques, na Avenida Curuzu, local conhecido historicamente por ter uma
das maiores concentrações de negros e negras de Salvador e do Estado, de
maneira geral. Na saída desta festa, que não é descrita com detalhes por
nenhum dos arrolados, podendo perfeitamente ser um samba que terminou em
roda de Capoeira ou vice-versa, Alexandre Ramos de Assis havia ferido
gravemente a José Gregório do Bonfim com um canivete que estaria amarrado
a um barbante. Alexandre foi preso em flagrante, no que deve ter sido, sem
sombra de dúvidas a primeira prisão efetuada no ano de 1929 na cidade. No
auto de prisão em flagrante, o guarda civil Luiz Bispo da França, oficial que a
efetuou, disse que:
Estando em casa cerca das 4 para 5 horas da manhã quando foi chamado por três rapazes para ir urgentemente prender um indivíduo que naquele momento havia dado [sic] uma canivetada em um rapaz na porta do baile e que o ferimento era grave, ele respondente dirigiu-se ao local acompanhado dos três rapazes. Lá chegando, não encontrou mais o indivíduo, e eles seguiram em perseguição, encontrando-o bem distante, onde eles prenderam em nome da autoridade do Distrito.41
40
Ibidem, passim. Como já informado antes, o art. 294 do Código Penal de 1890 se refere ao homicídio. Ao que parece, a acusação considera a tentativa passível da mesma punição que o homicídio propriamente dito. 41 APB, Judiciário. Processo-Crime. Alexandre Ramos de Assis (réu). Est. 214/ Cx. 57/ Doc. 12/
1929, p. 05.
162
Após conseguirem capturar o fugitivo e prestarem socorro à vítima, o policial
voltou ao local do crime com os três rapazes que o tinham ajudado na
“missão”, e encontrou o canivete com o cabo amarrado por um cordão. As três
testemunhas também foram ouvidas em sequência. O primeiro a testemunhar
foi Francisco de Assis Souza, de 21 anos, residente no Curuzu, distrito da
Lapinha. Sobre o caso, Francisco afirmou que estava com José Gregório do
Bonfim e mais dois camaradas, João Batista de Santana e Manoel Souza,
quando Alexandre chegou ao local pedindo para tocar o atabaque que estava
sendo conduzido por José Gregório. Tocou um pouco e saiu, voltando mais
tarde e, usando de palavrões, mandou que Gregório não o tocasse mais, pois
não sabia tocar. Desafiado em sua honra, Gregório se levanta e parte pra cima
de Alexandre, que coloca a mão no bolso e puxa o tal canivete amarrado com
um barbante e o joga em Gregório, cortando-lhe a barriga; logo em seguida,
Alexandre joga o canivete no chão, como se nada tivesse acontecido. O fato
aconteceu muito rápido e a destreza de Alexandre devia ser mesmo muito boa,
pois, assim que deixou o canivete cair, ele mostrou as mãos aos presentes e
disse não ter sido o autor, sustentando esta versão, inclusive em seu
depoimento. A segunda testemunha, João Batista de Santana, de 22 anos,
segue mais ou menos o mesmo raciocínio de Francisco de Assis. Assim
também falou Manoel Souza, 25, a terceira testemunha. Foram unânimes na
afirmação de que Alexandre teria provocado Gregório, dizendo que ele não
sabia tocar, e o chamando de “filho da puta”. As demais testemunhas não
sabiam do fato com clareza, apenas seguiram o burburinho e foram sabendo
do acontecido aos poucos.42
O acusado foi ouvido logo em seguida. Confirmou que pediu para tocar o
atabaque, mas negou ter sido o autor da canivetada em José Gregório, dizendo
estar desarmado e repetindo o que dissera no momento da confusão: que não
possuía canivete nenhum. Na sua versão, a discussão não teria sido apenas
com José Gregório, mas com “uns 5 ou 6”. No meio desta confusão
generalizada, alguém teria acertado Gregório com o canivete, mas todos o
acusavam, então ele, com medo, saiu escondido e tentou fugir, sendo preso
42
Ibidem, p. 06-09.
163
pelas testemunhas que tinham acabado de depor e pelo guarda civil; não sabia
quem poderia ter sido o autor da agressão.43
Dois dias depois, no dia 3 de janeiro de 1929, após uma leve melhora, José
Gregório pôde finalmente dar a sua versão dos fatos. Com 21 anos e residente
no mesmo bairro que todos os envolvidos, a vítima afirmou que estava fazendo
festa com seus camaradas na madrugada do dia 1º do ano e tocava seu
atabaque, quando Alexandre chegou e pediu pra tocar. Gregório deixou que ele
tocasse, mas ele não demorou muito, saindo do local pouco depois. O acusado
voltou novamente em seguida, provocando a vítima e dizendo que ele não
sabia tocar. Gregório teria perguntado: “isto é comigo?” e Alexandre
prontamente respondeu: “é com você mesmo, seu filho de uma puta!” e, dito
isso, tirou o canivete amarrado por um cordão branco, atingindo-o sem chance
de defesa. O processo traz uma figura retirada do exame de corpo delito,
descrevendo o local onde o canivete teria sido enfiado.44
Alexandre ficou livre pra responder ao processo pouco tempo depois, o que
irritou a Promotoria. De acordo com o Promotor Afonso de Castro Rebelo Filho,
que pedia a prisão preventiva do acusado, a polícia não havia lavrado o auto
de prisão em flagrante corretamente, como mandam as formalidades, o que
permitiu que Alexandre ficasse solto, apesar de sua responsabilidade criminal
estar comprovada pelos depoimentos das testemunhas. O pedido da
Promotoria foi aceito e no dia 8 de fevereiro, Alexandre voltou à prisão.45
O inquérito prosseguiu seguindo os trâmites normais de um processo-crime,
com diversas idas e vindas das testemunhas, da vítima e do acusado aos
tribunais. Após o júri analisar isoladamente vários aspectos do caso, como o
ferimento causado pelo canivete, o fato de o ferimento ter causado danos de
saúde por mais de 30 dias à vítima, o crime ter sido cometido por motivo frívolo
e o réu estar em superioridade de armas; Alexandre Ramos não conseguiu se
livrar da culpa, e foi condenado a dois anos e seis meses de prisão com
trabalho na Penitenciária do Estado.
43 Ibidem, p. 09-10. 44
Ibidem. P. 16. 45
Ibidem, p. 32-33.
164
Estes dois processos aqui apresentados – o caso do pai-de-santo e capoeira
José Cyriaco e a ação movida contra Alexandre Ramos depois de uma briga
ocorrida em um batuque – servem para que possamos perceber que as
diversas práticas culturais negras estiveram constantemente interligadas, ainda
que suas particularidades permanecessem. Não que fosse regra transitar entre
as diversas áreas, pois uma mesma pessoa poderia perfeitamente gostar de
apenas uma destas manifestações; mas o fato de possuírem uma origem
comum, como se fossem filhos diferentes de uma mesma mãe, possibilitou que
a Capoeira, o Candomblé e o samba, entre outros, mantivessem o respeito e a
simpatia das populações negras, além de terem conseguido adeptos de outras
populações com o passar do tempo.
165
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A formação cultural da cidade de Salvador esteve constantemente relacionada
às influências das populações oriundas das diversas nações africanas,
aspectos que conseguiram atravessar as barreiras dos séculos e sobreviveram
às desconfianças e perseguições de alguns setores da sociedade, da imprensa
e da polícia. O anseio pela modernização das estruturas impulsionou a
tentativa de exercer uma “limpeza social” que teria como principal alvo as
populações negras e sua resistente presença nas ruas.
Desta forma, todo o conjunto de teorias e leis que vigoraram no Brasil e
especialmente na Bahia neste período transitório teve como premissa básica
manter as estruturas de poder inalteradas, sustentando a hegemonia branca e
eurodescendente nos anos que se seguiram à Abolição e à proclamação da
República. Havia o temor de um possível estado de caos que poderia se
instalar no país com a presença de toda uma massa de libertos ao mesmo
tempo nas ruas e, aliando o discurso científico de inferioridade do negro aos
rigores da Lei, buscou-se garantir a manutenção do status quo, reprimindo
suas principais manifestações culturais e condenando suas práticas religiosas
nas primeiras décadas republicanas.
A imprensa também teve sua participação enquanto principal porta-voz dos
interesses das classes detentoras do poder na Bahia, condenando as práticas
que objetivavam a projeção do negro nesta sociedade, e atuando de forma
incisiva nas denúncias feitas quase diariamente à polícia e aos demais poderes
públicos. Em seu discurso, durante muito tempo considerado como única
verdade possível, o negro estava excluído dos planos de modernização,
ficando constantemente no caminho da “ordem” e do “progresso”, com seus
batuques e seus orixás, com suas oferendas e seus costumes que interferiam
no cotidiano das classes mais abastadas de Salvador. As matérias em tom de
denúncia e o perfil criminoso atribuído aos homens e mulheres negros e negras
que não se submeteram integralmente aos costumes hegemônicos não foram
suficientes para impedir que estas pessoas se manifestassem ao seu modo. A
Capoeira, que hoje é um esporte reconhecido enquanto patrimônio cultural do
166
Brasil, e o Candomblé, que possui adeptos das variadas classes sociais e se
tornou, com o passar dos anos, uma das principais expressões da cultura
baiana foram os meios de vida em que os seus praticantes conseguiam se
sentir socialmente aceitos; um dos espaços onde os negros poderiam ser os
protagonistas, cantados e reverenciados pelos seus descendentes.
O signo do atabaque nos pareceu bastante oportuno para compreendermos as
imbricações das diversas expressões da cultura negra soteropolitana. Mais que
um instrumento musical ou litúrgico, o atabaque é um símbolo da permanência
de determinados valores, da transmissão dos conhecimentos essenciais
através das gerações. A presença destes valores no cotidiano pôde ser
percebida nas práticas sociais dos personagens apresentados aqui:
trabalhadores ou “vadios”; violentos ou “desordeiros”; o lugar da diversão e o
lugar das rixas. Mulheres que não recebiam o valor que mereciam e eram
tratadas como objetos ou partiam para a rua em busca de sustento, em um
espaço substancialmente masculino e carregado de variadas formas de
preconceito.
Buscamos neste trabalho trazer os diversos documentos jurídicos republicanos
para o campo da prática, sobretudo em Salvador, onde várias realidades
entravam em conflito e as leis se contradiziam. Às vezes os próprios agentes
da lei se envolviam em crimes ou em práticas condenáveis pelos setores mais
conservadores da sociedade; outras vezes, permitiam por iniciativa própria que
algumas manifestações proibidas ocorressem, talvez por identificação pessoal,
talvez por suborno. Contudo, o mais usual era que a polícia e a justiça
condenassem tais práticas e levassem os transgressores à cadeia.
167
ANEXOS
ANEXO I: O Código Penal de 11 de outubro de 1890, que entrou em vigor
através do chamado decreto n. 847 do Governo Provisório:
168
Os crimes contra a saúde pública seguem descritos no Capítulo III. Assim,
qualquer prática terapêutica sem o devido registro seria apontada como crime:
169
A contradição deste Código pode ser percebida nos artigos como no Capítulo
III, que punia as perseguições religiosas:
170
O Capítulo XIII trata da condenação aos “vadios” e “capoeiras”:
171
Fonte: APB, BRASIL. Decretos do Governo Provisório dos Estados Unidos do Brasil. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1890. Décimo Fascículo, de 1 a 31 de outubro de 1890.
172
ANEXO II: “Policiais agredidos” foi como o Diário de Notícias abordou o
confronto do capoeira Alfredo Martins Teixeira, o “Caboclinho” e a polícia no
Taboão.
Fonte: APB, Diário de Notícias. 27 set. 1911.
173
ANEXO III: Uma das centenas de portarias de prisão por desordem em
Salvador.
Fonte: APB. Secretaria de Segurança Pública. Recolhimento a Cadeia de Correção e
Liberdade. 6444/2/1890.
174
ANEXO IV: Carta do Dr. Pinto de Carvalho ao Chefe de Polícia criticando a
prisão arbitrária de Antônio Queiroz, funcionário da Diretoria geral de Saúde
Pública, por estar andando na rua até altas horas da noite.
Fonte: APB. Secretaria de Segurança Pública. Correspondências Expedidas e
Enviadas. 6449/1/1890-1925.
175
ANEXO V: O início do longo processo de Nelson José do Nascimento por
“feitiçaria e culto da magia negra”. Este processo foi de 1939 a 1941, quando,
após ser condenado, Nelson fugiu antes de ser preso.
Fonte: APB, Judiciário. Processo-crime. Nelson José do Nascimento (réu). Cx.
1056/Doc. 17/ 1939.
176
ANEXO VI: Foto dos objetos apreendidos no Candomblé de Nelson José do
Nascimento e anexada aos autos.
Fonte: APB, Judiciário. Processo-crime. Nelson José do Nascimento (réu). Cx.
1056/Doc. 17/ 1939.
177
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