GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA ......GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA REABILITAÇÃO RrC\RDO...

10
GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA REABILITAÇÃO RrC\RDO L. L. B.-\RROC\ * RESUMO Abordam-se, aqui, dois aspectos da reabilitação do pensamento de Giordano Bruno. O proble- ma da reabilitação se justifica porque, após a condenação e morre de Bruno, seus contemporâneos silenciaram a seu respeito. Tal se deu apesar da contribuição metafísica e da possibilidade epistemológica rcantes. Um dos aspectos citados implica o que Bruno assimila ao amor heróico que tende para o seu _roprio objeto. Algo aqui concerne à concepção bruniana do infinito. Esboçamos a este respeito o que erá aprofundado num próximo trabalho. No outro aspecto, consideram-se os autores que reconhecem sofreram a influência da obra de Bruno na filosofia como na ciência. A linha de influência vem de escarres até Hegel. Citamos também Alexander Koyré, Vitor Matos e Sá, Kurt Lewin e Lacan, segun- o Lucien Favard. Palavras-chave: Giordano Bruno; Filosofia; Ciência; Psicologia; Epistemologia; Infinito. IORDANO BRUNO IN A REHABILITATING PERSPECTIVE ABSTRACT One approaches here two aspects of the rehabilirarion of Giordano Bruno rhoughr. Mer his condamnation and death, contemporary aurhors resrrain from commenting on his remarkable co ntributio n to Philosophy and Science. This contribution may be considered both as metaphisical and epistemological. That is why rhis rehabilitation is required. The first aspect concerns what Bruno attributes to heroic love as ir tends to its own object. Something here is related to Bruno's conception of infinity wich is intended to be treated carefully in anorher paper. The econd aspect refers to the authors who sustain or undergo the influence of Bruno's rroughr. Ir concerns philosophy from Des- cartes to Hegel on one hand, and on the other, Alexander Koyré Viror 1aws e Sá, Kurt Lewin and Lacan as commented by Lucien Favard. Key words: Giordano Bruno; Philosophy; Science; Psychologies; Epistemology; Infin ity. * Professor Adjunto IV do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Mestre em Psicanálise. Doutorando em Psicologia. Leciona as disciplinas Teorias e Sistemas Psicológicos Ie 11. Coordenador do Círculo de Pesquisas sobre Lógica e Epistemologia das Psicologias (UFC). 9 REVISTA DE PSICOLOGIA, FORTALEZA, Y.20(1), P. 9-18, JAN.lJUN.2002

Transcript of GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA ......GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA REABILITAÇÃO RrC\RDO...

Page 1: GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA ......GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA REABILITAÇÃO RrC\RDO L. L. B.-\RROC\ * RESUMO Abordam-se, aqui, dois aspectos da reabilitação do pensamento

GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DEUMA REABILITAÇÃO

RrC\RDO L. L. B.-\RROC\ *

RESUMO

Abordam-se, aqui, dois aspectos da reabilitação do pensamento de Giordano Bruno. O proble-ma da reabilitação se justifica porque, após a condenação e morre de Bruno, seus contemporâneossilenciaram a seu respeito. Tal se deu apesar da contribuição metafísica e da possibilidade epistemológica

rcantes. Um dos aspectos citados implica o que Bruno assimila ao amor heróico que tende para o seu_roprio objeto. Algo aqui concerne à concepção bruniana do infinito. Esboçamos a este respeito o queerá aprofundado num próximo trabalho. No outro aspecto, consideram-se os autores que reconhecem

sofreram a influência da obra de Bruno na filosofia como na ciência. A linha de influência vem deescarres até Hegel. Citamos também Alexander Koyré, Vitor Matos e Sá, Kurt Lewin e Lacan, segun-

o Lucien Favard.

Palavras-chave: Giordano Bruno; Filosofia; Ciência; Psicologia; Epistemologia; Infinito.

IORDANO BRUNO IN A REHABILITATING PERSPECTIVE

ABSTRACT

One approaches here two aspects of the rehabilirarion of Giordano Bruno rhoughr. Merhis condamnation and death, contemporary aurhors resrrain from commenting on his remarkableco ntributio n to Philosophy and Science. This contribution may be considered both as metaphisicaland epistemological. That is why rhis rehabilitation is required. The first aspect concerns what Brunoattributes to heroic love as ir tends to its own object. Something here is related to Bruno's conceptionof infinity wich is intended to be treated carefully in anorher paper. The econd aspect refers to theauthors who sustain or undergo the influence of Bruno's rroughr. Ir concerns philosophy from Des-cartes to Hegel on one hand, and on the other, Alexander Koyré Viror 1aws e Sá, Kurt Lewin andLacan as commented by Lucien Favard.

Key words: Giordano Bruno; Philosophy; Science; Psychologies; Epistemology; Infin ity.

* Professor Adjunto IV do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Mestre em Psicanálise. Doutorandoem Psicologia. Leciona as disciplinas Teorias e Sistemas Psicológicos I e 11.Coordenador do Círculo de Pesquisas sobreLógica e Epistemologia das Psicologias (UFC).

9REVISTA DE PSICOLOGIA, FORTALEZA, Y.20(1), P. 9-18, JAN.lJUN.2002

Page 2: GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA ......GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA REABILITAÇÃO RrC\RDO L. L. B.-\RROC\ * RESUMO Abordam-se, aqui, dois aspectos da reabilitação do pensamento

Tentamos esboçar, aqui, dois aspectos da re-abilitação do pensamento de Giordano Bruno. Oprimeiro implica o que, no livro Dos furores he-róicos, ele assimila ao "amor heróico, quando tendea seu próprio objeto" (BRUNO apud FAVARD,1994, p. 72). Algo, aí, atina para sua concepçãodo infinito. O segundo aspecto - este será poronde começaremos - é o dos autores que se po-dem citar dentre os que sofreram ou reconhecema influência de Bruno na filosofia como na ciên-cia. Estes vêm desde a Idade Moderna até hoje. Éo que se verá mais adiante.

Nosso intento concerne, outrossim, ao pro-blema de como ler Giordano Bruno dada a suapolivalência. Na Introdução ao livro de BrunoAcerca do infinito, do universo e dos mundos, VictorMatos e Sá diz:

Com efeito, será preciso referir ao po-der de conjugar, na vida, o homem depensamento e o homem de ação e, nadoutrina, as dimensões do artista e dofilósofo - e ter em conta a intensidadee a versatilidade com que o fez - parase compreender como não flifácil, nempara os contemporâneos nem para osvindouros, o discernimento (e muitomenos a visão unitária - de intençãoou de perspectiva) das múltiplas facetaspor que essepoder se exprimiu: ora nofrade impaciente e rebelde perante osimperativos externos da disciplina oudos estudos e os limites internos da suavocação de regular; ora no políticoatento às oportunidades da ação e ávidode unidade temporal, entre as divisõesdospoderes; ora no ousado comediógrafo,desmascarado r e satirizador de supers-tições e hipocrisias (religiosas e mun-danas); ora no filósofo inspirado epolêmico, sensível ao conflito das he-ranças e das vigências culturais e todoentregue, com heróico furor, à verti-gem de uma convergência doutriná-ria nos abismos abertos à razãodiscursiva e às intuições do espírito(MATOS e SÁ, in Introdução aBRUNO, 1984, p. XX).

10

Optamos, aqui, pela perspectiva metafísicado pensamento de Bruno em que tentamos situar,numa primeira abordagem e de um ponto de vistafreudiano, o que Bruno chamou de amor heróico.

Koyré não considera a polivalência de Bru-no, e julga sua obra. Assim diz aquele:

Giordano Bruno (. ..) não é um bomfilósofo, (. . .) ele é mais, um péssimoflsico, não compreende as matemáticas ea concepção que ele tem dos movimentoscelestes é estranha. (. ..) A concepção domundo de Bruno é mágica e vitalista.(. ..) Entretanto, sua visão do Universoé tão poderosa e profttica, tão racionalepoética, que não sepode senão admirá-10 (KOYRÉ, 1973, p. 77-78).

Em Estudos galiláicos, assevera Koyté:

Isolar a noção de sistema fisico, tal foi aobra de Bruno. Obra desigual, 'semdúvida, tumultuosa e até bem confosa; eviciada - do ponto de vista científico queaqui é o nosso - pelo animismo profondodo seu pensamento. E no entanto, estepensamento obscuroeconfosodesempenhouum grande papel na história da ciência.Papelpositivo porque, por uma intuição degênio, Bruno compreendera o infinitismoda nova astronomia. E, assim, tinha, comuma audácia insuperável, oposto à visãomedieval do cosmos ordenado e finito asua própria intuição do universo infinito.Papel negativo também, porque, ligandoas suas teses metaflsicas e cosmológicas(pluralidade dos mundos eaté dos mundoshabitados) à da astronomia, e portantoda fisica, novas, ele tinha tornado estassolidárias - aos olhos da Igreja - daquelas,e assim foi a causa oculta mas real dacondenação de Copérnico. E de Galileu(KOYRÉ, 1986, p. 211-212).

Em nota de rodapé, Koyré acrescenta:

A influência exercida por Bruno pare-ce-nos ter sido muito maior do que seadmite habitualmente e que nãotransparece nos textos. Assim, parece-nos

REVISTA DE PSICOLOGIA, FORTALEZA, V.20(l), P. 9-18, jAN./jUN.2002

Page 3: GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA ......GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA REABILITAÇÃO RrC\RDO L. L. B.-\RROC\ * RESUMO Abordam-se, aqui, dois aspectos da reabilitação do pensamento

certo que Galileu o conhecia perfeita-mente; se dele nunca fala, não épor ig-norância, mas por prudência. Evita,assim, cuidadosamente realçar - mes-mo para a combater - a interpretaçãobruniana dada por Matheus Washer e,aliás pelo próprio Kepler, das descober-tas expostas no Nuntius Sidereus, cLKepler, Dissertatio cum u nt ioSidereo, Opere, v. 111, 1, pp. 105 esego (KOYRÉ, 1986, p. 212).

° que diz Koyré, acima, indica que a con-tribuição de Bruno é metafísica. Não concorda-mos com Koyré quando este diz que a concepçãobruniana do mundo é mágica. Não é certo,tampouco, dizer que Bruno somente compreen-'dera o infinitismo da nova astronomia. Na verda-de, Bruno a fomentou e tanto, que é Koyré mesmoquem diz que, com Bruno, "o cosmos medievalestá destruído", haverá, desde então, "lugar vagopara uma «ciência nova»" (KOYRÉ, 1986, pp.224). Retomaremos este assunto mais tarde.

Para Victor Matos e Sá,

Bruno de modo algum foi um cientistasegundo os modelos e os métodos decertificação e verificação inspirados norenascimento científico - pois «se o co-locarmos entre Copérnico e Galileu, osseus contributos para a ciência parecembem pequenos» (L. CICUTTINI,Giordano Bruno, capo lI. p. 62-1370)-, e as suas concepções infinitistas inse-rem-se mais no plano metafísico e naslinhas tradicionais da especulaçãocosmológica do que nos dados da astro-nomia e na sua mediação matemática(P.-H. MICHEL, La cosmologie deGiordono Bruno, pp. 27-30, 32-43 e165-168. Ver também -A. R. HALL,The Scientific Revolution (1500-1800), e The Formation of t h eScientific Attitude, London-NewYork-Toronto, 1954, p. 104). Toda-via, isso não impediu Bruno de trans-por para a realidade física a linguagemmatemática de Copérnico - generali-zando a sua hipótese heliocêntrica ao

nível da especulação filosófica sobre o.infinito - a partir de uma intuição «tãoprofunda e tão vasta que permitiu aKepler e a Galileu orientar suas inves-tigações e seus telescópios e forneceu aNewton o enquadramento indispensá-vel ao princípio da inércia, i. e., um uni-verso infinito sem centro nem direçãoprivilegiada» (E. NAMER, GiordanoBruno, p. 33-47, esp. p. 42) (MATOSe sÃ, in Introdução a BRUNO, 1984,p. XXXIX, Nota de roda pé).

A perspectiva que interessa da intuição brunianaque orienta Galileu, Kepler e Newton, além demetafísica, pode ser vista como epistemológica. Elafomentou o que Kurt Lewin - psicólogo neogestaltistaalemão - chama de homogeneização do mundo físi-co. Voltaremos a este assunto posteriormente. in-tuição de Bruno implica também o reconhecimentode que o saber obtido pelos sentidos é limitado en-quanto só o intelecto pode atinar para o infinitocuja concepção não pode ser senão lógica.

Para Bruno,

Não existe sentido que veja o infinito,nem sentido a que sepossa pedir esta con-clusão, porque o infinito não pode ser ob-jeto dos sentidos; por isso, quem quisessever com os olhos a substância e a essên-cia; e quem a negasse por não ser sensí-vel, ou visível, viria a negar a própriasubstância e o ser. Por conseguinte, devehaver cautela em recorrer ao testemunhodos sentidos, que só admitimos em rela-ção a coisas sensíveis, e ainda com certadúvida, se não concorressem, juntamen-te com a razão, para o juízo. Ao inte-lecto compete julgar e dar razão dascoisas afastadas no tempo e no espaço(BRUNO, 1984, p. 28).

° que Bruno diz se mostra evidente, seidentificarmos o intelecto como um efeito do queé Deus para Bruno: "Deus todo o infinito implí-cita e totalmente, enquanto o universo [que] estátodo em tudo (se de qualquer modo se pode afir-mar a totalidade onde não existe parte nem fim)"(BRUNO, 1984, p. 40).

11REVISTA DE PSICOLOGIA, FORTALEZA, Y.20(l), P. 9-18, JAN.lJUN.2002

Page 4: GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA ......GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA REABILITAÇÃO RrC\RDO L. L. B.-\RROC\ * RESUMO Abordam-se, aqui, dois aspectos da reabilitação do pensamento

Segundo Matos e Sá, Bruno

considera um universo infinito atualcomo conseqüência natural do poder di-vino infinito e criador (no qual «vonta-de e intelecto, potência e ato, estãoindijerenciados»), poder a que chamouainda «O Absoluto» e o «Uno» e que,em De Ia causa, principio e uno é ana-lisado metafisicamente, em termos de«causa transcendente e princípioimanente», de «matéria eforma», de «po-tência e ato». Aliás, importaria aindater em conta De gli eroici furori, ondeBruno dá expressão afetiva e intelectualàs repercussões éticas do conceito de urnanatureza infinita, «celebrando a respos-ta do homem à divindade, na naturezae nele próprio» de o que, no diálogo Delinfiniro, constitui «um hino à glóriado universo objetivo» (MATOS e SÁ,in Introdução a BRUNO, 1984, pp.V-VI).

Segundo Michele Frederico Sciacca,

afilosofia de Bruno pode chamar-se filo-sofia do infinito ( ..) Bruno suprime a es-fera das estrelas fixas, conservada porCopérnico, e alarga o universo ao infini-to. O mundo não tem limite nem refe-rência absoluta (Cusano'} e,portanto, asvárias imagens dele são relativas: qual-quer ponto é centro eperiferia. Infinida-de e relatividade: eis os dois primeiroscaracteres do universo bruniano. (..) ONolano/ dá sobre a infinidade do mundoduas provas: uma deduzida da consciên-cia humana, a outra da infinidade dacausa. O nossopensamento tem apossibi-Lidade de sempre ter novas intuições, podesempre acrescentar número a número,grandeza a grandeza. A esta infinita pos-sibilidade do pensamento correspondeuma infinita possibilidade do mundo ex-terno. Por outro lado, Deus como causa

do mundo é infinito. O universo, pois,como efeito de uma causa infinita, nãopode conceber-se senão como infinito. Isso,porém, não significa que a causa se iden-tifique com o efeito, nem que esteja sujei-ta a um desenvolvimento no tempo. Deus,imutável e infinito, é atividade causado-ra de um efeito infinito, que é contínuodevir da infinidade nas coisas finitas(SCIACCA, 1968, p. 430).

Além da influência exercida sobre Galileu,Kepler e ewron, há que iruar aquela que implicaalguns filósofos ainda. Para ictor Matos e Sá, talfaz parte de uma 'reabilitação". Por quê? A Igrejanão tardou a sentenciar a morre de Giordano Bru-no. Julgado réu pela Inquisição, inculpado de here-sia tenaz e obstinada, ele foi queimado vivo no dia17 de fevereiro de 1600, na Praça Campo dei Fioriem Roma.

Ao peso da sua condenação se deverá,certamente, o silêncio quase total doscontemporâneos, quaisquer que fossemas suas razões - «alguns por medo, ou-tros por remorso» - e as formas exter-nas de que se revestiram: e que vãodesde versões piedosamente «atenua-das» do suplício (e não menos empe-nhadas em justificá-Io) à remoção donome de Frei Giordano «dos registrosda Ordem de S. Domingos» e das Uni-versidades e Academias em que tinhaensinado. Silenciaram também ofatoda sua morte, com unânime cumpli-cidade, não só «os escritores da histó-ria profana» - que não deixaram,porém, de relatar as condenações deoutros heréticos «daquele fim de sé-culo» - como ainda «os da históriaeclesiástica» e até os que, em vida, oprotegeram, lhe deram hospitalidadee partilharam da sua amizade (MA-TOS e SÁ, in Introdução a BRU-NO, 1984, p. XXI).

~ Sciacca refere-se aqui a Nicolau de Cusa em cujo pensamento Bruno se inspira.Bruno nasceu em Nola, Cidade italiana vizinha a Nápolis.

12REVISTA DE PSICOLOGIA, FORTALEZA, Y.20(I), P. 9-18, jAN./jUN. 2002

Page 5: GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA ......GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA REABILITAÇÃO RrC\RDO L. L. B.-\RROC\ * RESUMO Abordam-se, aqui, dois aspectos da reabilitação do pensamento

Há que se interrogar sobre as razões político-econô-micas desta condenação infame, aliás criminosa.

Segundo Victor Matos e Sá, Giordano Bru-no foi,

politicamente, anti-espanhol (a par deanti-reformista) - fato bem visível na«mensagem política do Spaccio», ao ex-primir a «amizade da França à Inglater-ra perante o perigo da reação católica,representado pela Espanba, que ameaça-va tanto o rei francês, cercado pela LigaCatólica (de instigação espanhola), comoa rainha inglesa, constantementeameaçada por «intrigas Papais» de insti-gação espanhola (MATOS e sÁ, in In-trodução a BRUNO, 1984, p. XLVI).

Estas intrigas favoreciam a influência da ali-ança política entre a Espanha e a Igreja que à luzdo Evangelho que dizia pregar era, pelo contrá-rio, ela mesma herege, pertinaz e obstinada aoassujeirar a seu favor. Influência no Velho e no

ovo Mundo que acabava de ser descoberto (se-gundo dizem). Espanha que precisava de novasconversões neste Novo Mundo colonizável. Estasconversões eram requeridas para compensar asperdas causadas pela Reforma como a ameaça daciência incipiente. É neste sentido que diz Jean-Pierre Winter:

nos séculosXVI e XVII, na aurora da eracientífica, época dos Copernico, Newton,Galileu, Descartese Spinoza, o cristianismotriunfa no momento em que sua morte seanuncia. Mas, para que estetriunfo não cor-ra o riscode serposto em questãopelo avançoda Ciência,forma nova dopaganismo parao cristianismo: os missionários massacrarãoou converterão,aosmilhões, estesnovos«idó-latras» até então desconhecidos: os índios(WINTER, 1998, p. 77).

É preciso lembrar, também, que desde 1492- pouco mais de um século antes da morte de Bru-no - para unificar um país em que florescera uma

cultura onde coabitavam cristãos, judeus e muçul-manos, os reis católicos da Espanha Isabel I eFerdinando II fizeram ressurgir a Inquisição com aanuência papal. Esta época coincide com a quedados derradeiros mouros de Granada, a expulsão dosjudeus de origem ibérica - os sefardim, e as chacinasrepetidas, a partir de então, contra os anussirni, ouseja, os cristãos-novos que haviam sido forçados àconversão e que judaizavam em segred04.

Segundo Michel de Certeau, a história dos sé-culos XVI e XVII, na Espanha, como aliás em outraspartes da Europa, implica, além da pobreza de certos es-tratos da população e da intolerância religiosa, a "recessâosocio-econômica, [a] marginalização, ruínas pelas guer-ras" (CERTEAU, 1982, p. 37). Presumimos que, di-ante desta situação, a reação anti-espanhol eanti-reformista de Giordano Bruno era, antes de tudo,ética. Está claro que, para ele, não se devia nada aosnovos Césares.

A REABILITAÇÃO DE BRUNO PELOSFILÓSOFOS

A reabilitação do pensamento de Bruno deque falamos com Victor Matos e Sá visou, entre

. . .outras coisas, a restituir

ao plano documental e crítico osproble-mas da existência e da reputação de Bru-no (emface das tradições que lhe negavama existência ou o suplício na fogueira ou oacusavam de ateísmo), empreendendo,nesse mesmo plano, o exame da sua posi-ção na história da filosofia, tanto à luzdosprecursores como dos que viriam a re-ceber a sua influência. E é assim que, aonível do enquadramento biográfico donolano, se consagram as obras de umChristian Bartholmess, de um DomenicoBerti e de um 1. Frith, que tiveram o seucoroamento, já no nosso século, na obrade Spampanato. Por outro lado, no planodo estabelecimento crítico e editorial dasobras latinas e italianas de Bruno, os es-

3 Este termo significa forçados em hebreu.4 Há ampla bibliografia do que concerne a tal no Brasil. Citamos, por exemplo e apenas, as pesquisas de Anita Novinsky, José

G. Salvador, e o inesquecível Flávio Mendes Carvalho, morto tragicamente. Um ancestral seu cearense é de origem sefardita.

13REVISTA DE PSICOLOGIA, FORTALEZA, Y.20(l), P. 9-18, J .IJUN. 2002

Page 6: GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA ......GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA REABILITAÇÃO RrC\RDO L. L. B.-\RROC\ * RESUMO Abordam-se, aqui, dois aspectos da reabilitação do pensamento

forços incipientes de um Adolfo Wágner ede um P. de Lagarde, quanto às obras emlíngua vernácula, tiverem o seu coroamento(. . .) nas bem conhecidas Opere italianeeditadas e anotadas por Gentile - enquan-to a edição de Gfrorer e Felice Tocco (. ..) asexpôs e confrontou com as obras em ver-náculo, a par da sua atividade de intér-prete da filosofia nolana.

No plano da reposição deBruno na históriada filosofia, a Bartbolmess se deve, antes demais, a reconstituição (já empreendida noséc. XVIII) das linhas de deturpação da fi-losofia e da pessoa do nolano - desde a acu-sação de ateísmo por Bayle (envolvendo nãosó Bruno como Spinoza) até à reabilitadoracarta de jacobi a Mendelssobn, sobre afilo-sofia de Spinoza e de cuja importânciaSchelling ainda se faz eco no seu diálogoBruno. A Bartbolmess se deve ainda aintegração de Giordano Bruno na linha dePitágoras, PIa tão, PIo tino e Proclo,Raimundo Lullo e Copérnico - além da suareposição como precursor de Spinoza - pa-ralela, aliás, da integração que MoritzCarnêre desenvolve ao sublinhar a impor-tância histórico-filosófica da concepçãobruniana da «transcendência e imanênciade Deus», e ao situar Descartes, Leibniz,Kant e Hegel na linha de influência da filo-sofia de Bruno, chegando a considerd-lo «su-perior a Spinoza na sua doutrina dainfinidade da substância e acima de Leibnizna sua exposição da teoria das mônadas».

A esteperíodo sepodem ainda arti-T obra de Clemens - pondo em eui-

s re ções entre Bruno e Nicolaude C - ~ de Brunnhoffer, reivindicado rda : -ú./incia de Bruno, cuja distân-cia no tem o não justificaria, porém, aomissão do SnJ conceito da unidade douniverso, da a; a numa vida em todososplanam ~ ü1ii.a de conexão entre osprocessos do espirito e do corpo». Aintegração da filosofia de Bruno nas linhasnoéticas e éticas de qzufoi mediadora, en-

14

controu também os seus estudiosos no se-gundo período da reualorização crítica dofilósofo. Com efeito, bastará recordar asobras de um Sarau; de um Cassirer, de umMondolfo ou de um Corsano - entre mui-tas outras que, na copiosa Bibliografia deSalvestrini, se nem sempre merecem estarpresentes, nela têm, pelo menos, o seu lu-gar numérico" (MATOS e sÁ, in Intro-dução a BRU O, 1984, p. XXII-XXVIII).

Nós supomos que se pode traçar também, se-guindo o raciocínio de Bartholmess acima citado,uma linha de influências entre Platão, Bruno, Des-cartes e Husserl. Nós tentamos situar, assim, o pa-pel de Bruno no que Husserl chama de "«viragens»decisivas para o progresso da Filosofia". Para Husserl,aquelas são a "socrárico-plarônica, ( ... ) nos princípi-os da época moderna, as reações contra a Escolástica,nomeadamente a viragem cartesiana [que se reno-va] com violência mais radical na Crítica da RazãoPura de um Kant", e a viragem que opera o próprioHusserl. Ele intenta fundar uma Filosofia comoCiência de Rigor (HUSSERL, MCMLXY, p. 5).Discorremos sobre tal alhures.

A INFLUÊNCIA EPISTEMOLÓGICADE BRUNO NAS PSICOLOGIAS E PSI-CANÁLISE

Num texto escrito em 1942, Kurt Lewin -psicólogo alemão de inspiração gestaltista - diz quea história da psicologia está marcada por dois mo-dos conflitantes de pensamento, De certa forma,estes seguem a linha do desenvolvimento do quese operou na física. Tal como nesta, na psicologiahá um modo de pensamento aristotélico que vemsendo substituído por outro que Lewin chama degaliléico. Uma das características desta transição éa homogeneização do mundo físico. Com efeito,para Lewin,

as perspectivas de um Bruno, um Keplerou um Galileu foram determinadas pelaidéia de uma unidade abrangente domundo fisico. A mesma lei rege os cursosdas estrelas, a queda das pedras e o vôodos pássaros. Esta homogeneização do

REVISTA DE PSICOLOGIA, FORTALEZA, V.20(l), P. 9-18, JAN.lJUN.2002

Page 7: GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA ......GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA REABILITAÇÃO RrC\RDO L. L. B.-\RROC\ * RESUMO Abordam-se, aqui, dois aspectos da reabilitação do pensamento

mundo físico, com respeito à validade dalei,priva a divisão de objetosfísicos em clas-sesrígidas, abstratamente definidas, daque-le significado crítico que tal divisão tinhapara afísica aristotélica, quando aperten-ça a uma certa classeconceptual era consi-derada determinante da natureza física deum objeto (LEWIN, 1975, p. 21).

A própria noção de Gestalt compreendidacorno forma ou unidade concreta per se e que seimpõe à percepção, noção da Gestalttheorie 5 queinfluencia Lewin, remonta ao que, em Bruno, pre-cede o conceito de mônada leibniziano. Desenvol-'emos tal, alhures.

Segundo Lewin ainda, o maior avanço, nahistória da transição acima citada, ocorreu

na psicologia sensorial, e especialmente naóptica e acústicapsicológicas;mais recente-mente, também no domínio do olfoto. Masa tendência para essamudança também éevidente em outros campos,por exemplo, nodo sentimento. Em especial,a doutrina deFreud - efoi esseum dosseusmaioresserviços-contribuiu imensopara a aboliçãodasfon-teirasentreo normal e opatológico,o ordiná-rioeo incomum, epromoveu ainda mais,porconseguinte,a homogeneizaçãode todososcam-pos da psicologia. Este processoainda está,por certo, muito longe de completo, mas éinteiramente comparável ao que foi intro-duzido na física moderna e pelo qual osprocessos celestes e terrenos foram unidos(LEWIN, 1975, p. 32).

A idéia da homogeneização do espaço físico ésinônomo do que Koyré chama de geometrizaçãocompleta do espaço. Decorre do que Bruno conce-bera como infinidade do espaço. Com Bruno,

já não é só a terra que é assimilada aosplanetas num «mundo» aumentado mastodavia limitado: o próprio Sol, que emCopérnico ocupava o centro do universo,perdeu o seu lugar privilegiado. Conser-va, sem dúvida, a posição central no nos-

so mundo; mas o nosso mundo, o sistemasolar, é apenas uma «máquina» entre umainfinidade de outras «máquinas» que pre-enchem o infinito do universo de Bruno.Por conseguinte o Sol não está no «cen-tro» do universo, pois neste universo infi-nito, onde uma infinidade de astros - deoutros sóis - se move segundo leis eterna-mente determinadas, não há centro nemcircunferência. Nada limita a infinidadedo espaço.Nada há, portanto, de mais ri-dículo que a tentativa de Aristóteles debasear o seu infinitismo cosmológiconumapretensa análise QU classificação dos mo-vimentos. Movimento para cima! Movi-mento para baixo! Para Bruno, «alto» e«baixo» são conceitospuramente relativos,tão relativos quanto «direita» e «esquer-da». Tudo está à esquerda ou à direita dealgo, tudo está embaixo ou em cima, comose queira. Quanto ao movimento circu-lar, «à volta do centro», qualquer pontodo espaçopode ser tomado como «centro»,pois nenhum o é realmente; todos ospon-tosdo espaçoinfinito seequivalem, e qual-quer habitante de cada um dos astros sepode julgar no centro do universo. E, por-tanto, imóvel. (. ..) Fica-se confundidoperante a audácia e o radicalismo dopen-samento de Bruno, que opera uma trans-formação - verdadeira revolução - daimagem tradicional do mundo e da reali-dade física. Infinidade do universo, uni-dade da natureza, geometrização do espaço,negaçãodo lugar, relatividade do movimen-to: estamos muito perto de Newton. O cos-mosmedieval estádestruido.pode-se dizer quedesapareceuno vazio, arrastando consigoafísica de Aristóteles e deixando lugar vagopara uma «ciência nova» que Bruno, to-davia, não serácapaz defundar (KOYRÉ,1986, p. 220-221 e 224).

Contrariamente a Koyré, não procuramos, emBruno, o que ele não desenvolveu. O que se chama-

5 Referimo-nos à Escola de 8erlim composta por Max Wertheimer, Kurt Koffka e Wolfgang K6hler.

15REVISTA DE PSICOLOGIA, FORTALEZA, Y.20(I), P. 9-18, JAN.lJUN.2002

Page 8: GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA ......GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA REABILITAÇÃO RrC\RDO L. L. B.-\RROC\ * RESUMO Abordam-se, aqui, dois aspectos da reabilitação do pensamento

rá de ciência física só virá trinta anos após a morredeste. Avancemos três séculos depois, porque, alémda influência indireta de Bruno em Freud, esta quemostra Lewin acima, há o que se pode situar emLacan igualmente. Segundo Favard,

trata-se de um achadopequeno e banal; denada, que sepõe a ordenar a contusão, evem confirmar que a evocaçãodesteheréti-co, no momento do retorno a Freud; nãofoiefeito do acaso.<<Acoisafreudiana» data denovembro de 1955, Os furores heróicosforam publicadospela primeira vez, emfran-cês,em 1954. A atualidade editorial é algoque conta bastante na obrade Lacan - quemquer que lide com ela,pode atestd-lo. Lacanseapóia muito freqüentemente no que aca-ba de aparecer - para que sepossa afirmarque· ele leu tal então. O interessedestepe-queno achado, o que mostra que de foto éum, é o que elepossa engendrar. LitÚJ.naperspectiva dO furores heróicos, torna-sepatente que A coisafrrodÚZ1Ulou o Senti-do do retorno a Frrod. se inspira. aí, in -(Traie literalmente.

Uma rápida exposição permite, porexemplo, extrair as pistas desta inspira-ção nos múltiplos acenos que Lacan en-dereça àqueles em quem se inspira:Copérnico (p. 40/) - pro pnére (p.401): «osprofitas com quem seupaís nãose manteve totalmente surdo», a obra he-róica de Freud (p. 401) - a disciplinado comentário (p. 404): esta mesma aque se dedica Bruno em suas longas glo-sas - o adversário (p. 405): como Bru-no, Lacan se remete a um adversário, aoAdversário, este que não quer saber nadasobre a verdade, a pomba da verdade (p.406): em Bruno, o passarinho é o seusímbolo, os cães (p. 411), o herrnetismo(p.411), Areon (p. 412), a heresia (p.414), os pedantes (p. 416): a epístoladedicatória da obra de Bruno nos revelatodo o mal que ele atribui aos «pedantesgramáticos» que constituem, em toda asua obra, o adversário por excelência, etc.

16

Entretanto, esta enumeração não se mos-tra suficientemente evidente para estabe-lecer,somente nela, tal inspiração. «A coisafreudiana» se inspira sobretudo no seutom, no que profire veemente, no seu es-tilo enfático, no seu acento polêmico, noseu tema: a uerdade, na sua retórica: oapólogo dopúlpito ea prosopopéia; na suaposição: a proficia (o retorno a Freud dequem me foço o anunciador), na poesiahermética; enfim, na sua heresia fonda-mental. O que leva Lacan a dizer, em1975, Joyce é como eu um herético, ori-ginar-se-ia aí? (..) Que tipo de herético éentão Giordano Bruno? Por onde apreendeele a verdade? Herético, é-o no «bom senti-do»?Cabefazer estapergunta? (FAVARD,1999, p. 73-75).

Aproximar Bruno, Lacan e Joyce enquantoheréticos não é fácil. Isso implica perguntar se, comoLacan, os outros dois eram histéricos. Parece que opequeno achado de Lacan em Bruno, achado de nada,como diz Favard acima. algo que haure num impos-í .e1de on em po- ibilidade , remete ao obje-

ma ausa do desejo. Poi ó um hi térico pode, alémdo objeto do desejo, conceber a falta que o causa.Falar em objeto, aí, requer a lógica do recalque origi-nário, o que está numa preto-história pelo Outroparental. Requer, também, que não se confunda ohomem histérico com o paranóico, e gue se distingaentre o histérico e o obsessivo. O que dizer de Brunohistérico? Como, com ele, não há centro nem cir-cunferência absolutos, o que resta de todas as varia-ções possíveis do que poderíamos chamar de pontoscardeais do pensamento será sempre isso de que ossentidos não podem apreender o que somente o in-telecto pode conceber. Bruno situa, aí, o infinito.

Reconsideremos a formulação com que Brunodiferencia os sentidos e o intelecto. O que não se podever, Bruno remete a outros olhos, os de um ver inte-lectual. Ele só aceita o que se testemunha pelos senti-dos com dúvida e cautela. Para ele, repetimos,

não existe sentido que veja o infinito, nemsentido que possapedir esta conclusão,por-que o infinito não pode ser objeto dos sen-tidos; por isso, quem quisesse ver com osolhos a substância e a essência; e quem a

REVISTA DE PSICOLOGIA, FORTALEZA, V.20(l), P. 9-18, JAN.lJUN.2002

Page 9: GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA ......GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA REABILITAÇÃO RrC\RDO L. L. B.-\RROC\ * RESUMO Abordam-se, aqui, dois aspectos da reabilitação do pensamento

negasse por não ser sensível, ou visível,viria a negar a própria substância e o ser.(. . .) Ao intelecto compete julgar e dar a"razão das coisas afostadas no tempo e noespaço" (BRUNO, op. cit., p. 29).

Entendemos por intelecto - e atinando paraa palavra latina intellegere: colher entre - uma razãodo que (a)preende o sujeito histérico na fronteiraentre saber e gozo. Retomamos, aqui, uma articula-ção que esboçamos no artigo "A questão do gozoem Lacan e o conceito de carne em Merleau-Ponry",in Revista de Psicologia, Fortaleza, 19(1/2), jan./dez.2001. Ademais, a dedução do infinito por Bruno,além de lógica, remete à questão da relação indiretado homem com o gozo que o último Lacan cha-mou de suplementar. Tal relação Freud já concebe-ra com outro nome, e sem falsos mistérios. Não há,aí, foraclusão nem mesmo abjuração da castração

\erleugnung). É a douta ignorância o que fomentaa concepção do infinito em Bruno. A doura igno-rância - efeito da sublimação pelo histérico - antea insatisfação do seu desejo, é o que vem de Sócratespor Nicolau de Cusa, mestre reconhecido por Bru-no. Em suma, Bruno fomenta, para a Idade Moder-na, o traço mais essencial do que compete à filosofiacomo à ciência: saber não dogmático que nasce deuma interrogação e remete ainda ao que não se sabe.Esta razão é mesmo o que em Lacan concerne aoobjeto causa do desejo? Em que é que o efeito dointelecto, assim compreendido, pode ser herético?

Cabe perguntar, ainda, sobre que sentido dar aotermo heresia em Bruno, Lacan e Joyce. Decerto, osentido é aquele da "ação de quem escolhe [de quemtem livre-arbítrio]. Os escritores gregos emprega\"aIll ovocábulo para designar uma doutrina especial, sem li-gar sentido desfavorável algum. Mas os escritores ecle-siásticos o tomaram sempre em mau sentido, dedoutrina oposta à fé da Igreja" (NASCENTES, 1932,p. 399). Fora da perspectiva de quem pôs a obra deBruno no seu Index de condenação até 1963, deduzi-mos, então, que o herético é quem pode desdenhar detodas as pretensas justiças distributivas de cabrestos.

As perguntas feitas acima implicam tambémo que Lacan chamou de sinthôme em Joyce(traduzido por sinthoma no vernáculo): "senti-mental, (... ) o sentimento de um risco absoluto"(LACAN, Séminaire: Le Sinthôme, Curso do dia 16

de dezembro de 1975). ° risco absoluto é o queteme o histérico. Para Nasio,

o histérico éfondamentalmente um ser demedo que, para atenuar sua angústia, nãoencontrou outro recurso senão manter in-cessantemente, em suas fontasias e em suavida, o doloroso estado de insatisfação.Enquanto eu estiver insatisfeito, diria ele,ficarei protegido do perigo que me esprei-ta. Mas de que perigo se trata? De que ohistérico tem medo? (...) Há apenas umperigo essencial que o ameaça, um perigoabsoluto, puro, sem imagem nem figura,mais pressentido do que definido, a saber,o perigo de viver a satisfação de um gozomáximo. Um gozo tal que, se o vivesse,ele oforia enlouquecer, dissolver-se ou de-saparecer (NASIO, 1991, p. 15).

Noutro artigo, tentamos abordar este temana perspectiva que é siruável em Freud.

Por enquanto, deixemos de lado Lacan e Joyce,e investiguemos tal risco em Bruno. Para Lucien Favard,o amor heróico em Bruno implica algo de "furioso(...) em busca da verdade" (FAVARD, 1994, p. 72).Mas há, ai, um heróico furor também. Segundo Favard,o termo italiano forore,

no século XVI, tem o valor de loucura(folie). Remete ao estado tÚ quem é aco-metido de um favor, de uma paixãodeuoradora cuja verdade lhe queima. Esteforor tÚsigna todo ímpeto do espinto queexcede a razão, foror amoroso ou guerrei-ro, delirio, ftenesi, loucura; éfrito de ilu-minação oforor divinus; o ímpeto da almaquando remonta ao Uno épropriamente oque Marsílio Ficino (em que se inspiraconstantemente Bruno) chama de foror(FAVARD, 1994, p. 90, nota de rodapé).

Bruno compara seu amor heróico ao destino deAteon. Em seu livro Dos heróicosforores, diz:

assim descrevem-se os caminhos do amor he-róico, quando tende a seu próprio objeto, asaber o soberano bem, e do intelecto herói-co, quando se desvirtua para atingir seupró-prio objeto que é a verdade primeira ou overdadeiro absoluto (..): Nas florestas, ojo-

REVISTA DE PSICOLOGIA, FORTALEZA, Y.20(1), P. 9-18, jAN'/jUN.2002

Page 10: GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA ......GIORDANO BRUNO NA PERSPECfWA DE UMA REABILITAÇÃO RrC\RDO L. L. B.-\RROC\ * RESUMO Abordam-se, aqui, dois aspectos da reabilitação do pensamento

vemAteon, quando o destino o engaja numcaminho duvidoso e imprudente, solta mas-tins egalgose os lança napista dos animaisselvagens.Ora, eisque no espelhodas águas,Ateon vê o mais belo busto, a mais belafoceque possa ver o olho mortal ou divino - vi-oleta, alabastro e ouropuro. Porque viu tal,o grande caçador tornou-se caça. O cervoque para ospastos mais espessoscorria maisleve,foi tão logodevoradopela matilha nu-merosade seuscães.Assim, eu lanço osmeuspensares sobreapresa sublime, e meuspen-saresvoltados contra mim, mefozem mor-rer sob seus dentes cruéis (BRUNO apudFAVARD, 1994, p.90).

Trata-se, em Bruno, de lucidez acerca de seuspensares? Percebe ele que estes concernem ao riscoabsoluto de que falamos acima? Há, aí, algo dostnthoma joyciano? Estas perguntas e as tantas ou-tras que nos fizemos e não aprofundamos aqui se-rão tratadas proximamente.

BIBLIOGRAFIA

BRUNO, Giordano. A causa, o principio e ouno.Trad. Attílio Cancian. São Paulo: Nova StellaEditorial, 1988.

__ --'o Acerca do infinito, do universo e dos mun-dos. Introdução de Vitor Matos e Sá, Trad., no-tas e bibliografia de Ana Monrenegro. Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.

CERTEAU, Michel de. La foMe mystique. 1: À'VI-éme - À'\ 1I-eme siêcl». Paris: Gallimar . 19 _.

18REVISTA DE PSICOLOGIA, FOlllAl..l'.L!\" , ,~_~~

FAVARD, Lucien . "Giordano Bruno: l'expériencetragique de l'insensé". Littoral: Pléthore de Sens, n.39, 1994, p.69-91.

HUSSERL, Edm undo. A filosofia como ciência derigor. Prefácio de Joaquim de Carvalho. Trad.Albin Beau. Coimbra: Adântida, MCMLXV.

KOYRÉ, Alexander. Du monde elos à l'uniuersinfini. Paris: Gallimard, 1973.

__ --'o Estudos galilaicos. Trad. Nuno Ferreira daFonseca. Lisboa: Dom Quixote, 1986.

LACAN, Jacques. Le sinthôme. Seminário publica-do em vários números da revista Ornicar? Cita-mos, aqui, um trecho da cópia do texto que estádisponível na Biblioteca da Association FreudienneInrernationale em Paris.

LEWIN, Kurt. Teoria dinâmica da personalidade.Trad. Álvaro Cabra!. São Paulo: Cultrix, 1975.

MATOS E SÁ, Victor. Introdução 'f BRUNO,Giordano: acerca do infinito, do universo e dosmundos. Trad., notas e bibliografia de AnaMontenegro. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1984.

NASCENTES, Anrenor. Dicionário etimológico dalíngua portuguesa. Prefácio de W. Meyer Lübke.Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1932.

NASIO, Juan-David. A histeria: teoria e clínica. Trad.Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

SCIACCA, Michele Frederico. História dafilosofia: do humanismo a Kant, 11. Trad. LuísWashington Vi ra. São Paulo: Mestre Jou,1968.

\XlI TTER, Jean-Pierre. Les errants de la chair: étudessur l'hystérie masculine. Paris: Calmann-Lévy,

199 .