Globalização, transnacionalidade e sustentabilidade.

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CRUZ, Paulo Márcio e BODNARD, Zenildo. Globalização, transnacionalidade e sustentabilidade. Itajai: Univali, 2012.

Transcript of Globalização, transnacionalidade e sustentabilidade.

  • Reitor Prof. Dr. Mrio Csar dos Santos

    Vice-Reitora Prof. Dr. Amndia Maria de Borba

    Procurador Geral Vilson Sandrini Filho, MSc.

    Secretrio Executivo Prof. Mrcio Jacobsen, MSc.

    Pr-Reitora de Ensino Prof. Dr. Cssia Ferri

    Pr-Reitor de Pesquisa, Ps-Graduao, Extenso e Cultura

    Prof. Dr. Valdir Cechinel Filho

    Organizador Lucas de Melo Prado

    Autores Paulo Mrcio Cruz

    Zenildo Bodnar

    Reviso Lucas de Melo Prado

    Projeto Grfico Leonardo Silva Lima

    Diagramao Alexandre Zarske de Mello

    Comit Editorial E-books/PPCJ Presidente

    Dr. Alexandre Morais da Rosa

    Diretor Executivo Alexandre Zarske de Mello

    Membro Jos Everton da Silva

    Membro Dr. Liton Lanes Pilau Sobrinho

    Membro Clvis Demarchi

    Membro Srgio Ricardo Fernandes de Aquino

    Crditos Este e-book foi possvel por conta da

    Editora da UNIVALI e a Comisso Organizadora composta pelos

    Professores Doutores: Paulo Mrcio Cruz e Alexandre

    Morais da Rosa e pelo Editor Executivo Alexandre Zarske de

    Mello

    Endereo Rua Uruguai n 458 - Centro - CEP:

    88302-202, Itaja - SC Brasil - Bloco D1 Sala 427, Telefone: (47) 3341-7880

    C889g

    Cruz, Paulo Mrcio Globalizao, transnacionalidade e sustentabilidade [recurso eletrnico] / Paulo Mrcio Cruz, Zenildo Bodnar ; participao especial Gabriel Real Ferrer ; org. e rev. Lucas de Melo Prado. - Dados eletrnicos. - Itaja : UNIVALI, 2012.

    Livro eletrnico. Modo de acesso: World Wide Web:

    Incluem referncias.

    ISBN 978-85-7696-094-2 (e-book)

    1. Direito. 2. Globalizao. 3. Sustentabilidade. 4. Democracia. I. Bodnar, Zenildo. II. Ferrer, Gabriel Real. III. Prado, Lucas de Melo. IV. Ttulo.

    CDU: 340(07)

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central Comunitria UNIVALI

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    Paulo Mrcio Cruz Zenildo Bodnar

    GLOBALIZAO, TRANSNACIONALIDADE E SUSTENTABILIDADE

    Itaja 2012

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    Os Autores

    Paulo Mrcio Cruz

    Ps-Doutor em Direito do Estado pela Universidade de Alicante, na Espanha, Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Instituies Jurdico-Polticas tambm pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC. Coordenador e professor do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Cincia Jurdica da Universidade do Vale do Itaja UNIVALI em seus cursos de Doutorado e Mestrado em Cincia Jurdica. Foi Secretrio de Estado em Santa Catarina e Vice-reitor da UNIVALI. professor visitante nas universidades de Alicante, na Espanha, e de Perugia, na Itlia. E-mail: [email protected]

    Zenildo Bodnar

    Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Professor dos Programas de Doutorado e Mestrado na Universidade do Vale do Itaja (SC) - UNIVALI (SC, Brasil). Juiz Federal em Santa Catarina. E-mail: [email protected].

    Participao especial: Prof. Dr. Gabriel Real Ferrer Professor Catedrtico de Direito Ambiental e Administrativo da Universidade de Alicante Espanha. E-mail: [email protected]

    Organizador e Revisor

    Lucas de Melo Prado

    Mestrando em Cincia Jurdica do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Cincia Jurdica da Universidade do Vale do Itaja PPCJ/UNIVALI. Bolsista CAPES.

  • AGRADECIMENTOS E REGISTROS ESPECIAIS

    Agradecer a todos que, de forma direto ou indireta, colaboraram para a elaborao da presente obra.

    Agradecer o apoio recebido pelas faculdades de direito das universidades de Perugia, na Itlia, de Alicante, na Espanha, e do Minho, em Portugal.

    Registrar o apoio da Universidade do Vale do Itaja - UNIVALI, atravs da Pr-Reitoria de Pesquisa, Ps-Graduao, Extenso e CULTURA PROPPEC, do Centro de Cincias Jurdicas e Polticas e do Curso de Ps-Graduao Stricto Sensu em Cincia Jurdica PPCJ/UNIVALI.

    Registrar ainda o apoio da Fundao Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), por conta das bolsas de Ps-Doutorado e de Estgio Snior no Exterior recebidas pelos autores e fundamentais para as investigaes levadas a efeito em Portugal, Espanha e Itlia, e das Bolsas para Professores Estrangeiros Visitantes, concedidas aos professores doutores Maurizio Oliviero (Perugia/Itlia), Gabriel Real Ferrer (Alicante/Espanha) e Mrio Monte (Minho/Portugal), que estiveram atuando como professores estrangeiros visitantes nos Cursos de Mestrado e Doutorado em Cincia Jurdica da UNIVALI.

  • SUMRIO

    AGRADECIMENTOS E REGISTROS ESPECIAIS 4

    SUMRIO 5

    PREFCIO 8

    APRESENTAO 11

    CAPTULO I 15

    A CRISE, CAPITALISMO E TRANSNACIONALIDADE DEMOCRTICA 15

    1.1 A(S) CRISE(S) DO CAPITALISMO 15 1.2 A(S) DEMOCRACIA(S) 25 1.3 O FENMENO DA TRANSNACIONALIZAO 32 1.4 A DEMOCRATIZAO DO CAPITALISMO GLOBAL 34

    CAPTULO II 39

    O NOVO PARADIGMA DO DIREITO NA PS-MODERNIDADE 39

    2.1 A LIBERDADE ENQUANTO PARADIGMA DO DIREITO NA MODERNIDADE 41

    2.2 O PARADIGMA DO DIREITO NA PS-MODERNIDADE 45 2.3 CRISE, SUPERAO E COABITAO DE PARADIGMAS 46 2.4 A SUSTENTABILIDADE ENQUANTO NOVO PARADIGMA INDUTOR DO DIREITO 48

    CAPTULO III 55

    A POSSIBILIDADE DA JUSTIA TRANSNACIONAL NA GLOBALIZAO DEMOCRTICA 55

    3.1 A PARTIR DE UM NOVO PARADIGMA PARA O DIREITO: JUSTIA PARA A SUSTENTABILIDADE 59

    3.2 JUSTIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAO 60 3.3 A POSSIBILIDADE DA JUSTIA ECONMICA PARA DISTRIBUIO DA RIQUEZA 62 3.4 JUSTIA HUMANITRIA DE SOLIDARIEDADE 65

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    3.5 A JUSTIA E O NOVO PARADIGMA DO DIREITO 67

    CAPTULO IV 75

    OS NOVOS CENRIOS TRANSNACIONAIS E A DEMOCRACIA ASSIMTRICA 75

    4.1 DEMOCRACIA E GLOBALIZAO 81 4.2 A DEMOCRACIA OBSOLETA 84

    4.3 DEMOCRACIA, SOLIDARIEDADE E PARTICIPAO 91 4.4 A POSSIBILIDADE DA DEMOCRACIA TRANSNACIONAL 95

    4.5 A DEMOCRACIA PARA DEPOIS DA MODERNIDADE 99

    CAPTULO V 106

    A SUSTENTABILIDADE POR MEIO DO DIREITO E DA JURISDIO 106

    5.1 DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL SUSTENTABILIDADE 107 5.2 APROXIMAO CONCEITUAL E CONTEDO JURDICO DA SUSTENTABILIDADE 111 5.3 A DIMENSO GLOBAL DA SUSTENTABILIDADE: DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA

    A ORGANIZAO POLTICA E JURDICA 117 5.4 SUSTENTABILIDADE E JUSTIA INTERGERACIONAL 120

    CAPTULO VI 124

    A SOLIDARIEDADE POR MEIO DA JURISDIO AMBIENTAL 124

    6.1 O DIREITO DO AMBIENTE COMO EXPRESSO DA SOLIDARIEDADE 125 6.2 SOLIDARIEDADE: UMA NOVA TICA PARA O HOMEM 127 6.3 A SOLIDARIEDADE ENQUANTO VALOR ESTRUTURANTE DA TERCEIRA DIMENSO

    DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 129

    6.4 O PAPEL DA SOLIDARIEDADE 131

    CAPTULO VII 133

    CLIMA, TRANSNACIONALIDADE E GOVERNANA 133

    7.1 A NECESSIDADE DA GOVERNANA TRANSNACIONAL PARA O AMBIENTE 133 7.2 O CLIMA COMO DEMANDA TRANSNACIONAL 136 7.3 TRANSNACIONALIDADE E AMBIENTE 138

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    7.4 GOVERNANA TRANSNACIONAL E A QUESTO DO CLIMA 144

    CAPTULO VIII 150

    A GOVERNANA TRANSNACIONAL AMBIENTAL NA RIO + 20 150

    8.1 EVOLUO DO ESTADO CONSTITUCIONAL MODERNO PARA A SUSTENTABILIDADE GLOBAL 151

    8.2 NECESSIDADE DE NOVAS E EFETIVAS ESTRATGIAS POLTICAS E JURDICAS DE GOVERNANA TRANSNACIONAL AMBIENTAL 155

    8.3 OS DESAFIOS ECOLGICOS GLOBAIS COMO FUNDAMENTO DA GOVERNANA TRANSNACIONAL 165

    8.4 AVANOS E RETROCESSOS NO TEMA DA GOVERNANA TRANSNACIONAL NA RIO+20 169

    REFERNCIAS 175

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    PREFCIO

    Prefcios costumam trazer consigo uma elevada carga de responsabilidade, seja pelas pessoas envolvidas, pelo objeto em questo e/ou pela relao que se espera inaugurar. Mas h uma msica que canta a possibilidade das coisas parecem fceis se vista de outro jeito.

    Ao receber o convite do Prof. Dr. Zenildo Bodnar e Prof. Dr. Paulo Mrcio Cruz para apresentar esta obra pensei, de imediato, na minha insignificncia para tal mnus acadmico e, por conseguinte, na existncia de dezenas de pessoas mais habilitadas. Eis que a lio de Slavoj Zizek surge como momentnea soluo: diante do desafio a tempera surge na viso em paralaxe.

    A qualidade dos argumentos suscitados, construdos e desconstrudos neste livro impede que eu me aventure nas teses de globalizao, transnacionalidade e sustentabilidade. Ainda que tenha dedicado espao para estes fenmenos que invadem o paradigma moderno e liberal do Direito, necessito reconhecer que consequncia das lies proferidas pelos autores, professores e amigos.

    Por isso, julgo que este livro representa parte, apenas uma parte, do hercleo esforo, empenho e dedicao dos autores em criarem na seara acadmica brasileira um espao cada vez maior de discusso responsvel e coerente sobre globalizao, transnacionalidade e sustentabilidade. Desta forma, nada melhor que discorrer sobre o quanto ns, os alunos, somos beneficiados com a consolidao das pesquisas acerca da globalizao, transnacionalidade e sustentabilidade.

    A Universidade do Vale do Itaja, especialmente no mbito do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Cincia Jurdica (cursos de Mestrado e Doutorado), mediante a regncia do Dr. Paulo e do Dr. Zenildo, embora muitos sejam parceiros desta empreitada, desponta como ncleo de destaque na pesquisa dos referidos fenmenos no contexto global. A contnua recepo de mestrandos e doutorandos estrangeiros, os vrios convnios com IES

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    estrangeiras e as lies dos Professores Visitantes Estrangeiros provam as mencionadas informaes. No posso deixar de comentar, por oportuno, da verticalizao destes trabalhos alm do Mestrado e Doutorado, o curso de graduao em Direito goza de iguais benefcios.

    Recordo que nos idos de 2008, quando ainda estava na graduao (e tinha como objetivo ser orientado na monografia pelo Dr. Zenildo Bodnar, sem nunca imaginar, mesmo nos mais surreais momentos, apresentar alguma obra de sua maestria), j se lia muito sobre transnacionalidade e sustentabilidade. Muitos argumentos de autoridade cientfica. Pude acompanhar ao longo do mestrado e agora no doutorado a capilaridade que tais assuntos obtiveram em nossas dissertaes, monografias de qualificao e teses. Ao passo em que os principais trabalhos de curso so oxigenados por tais institutos, nossas demais produes acadmicas seguem igual norte, inclusive com espao de destaque nos principais eventos cientficos e polticos do mundo, vide nossa participao na Conferncia Rio+20.

    Graas ao rigor terico dos professores Paulo e Zenildo discutimos, argumentamos e assumimos responsabilidades acadmicas sobre globalizao, transnacionalidade e sustentabilidade no bojo das mais diversas especialidades da Cincia Jurdica: da Teoria do Estado Governana; do Direito Constitucional ao Direito Internacional; Do Direito Penal ao Direito Tributrio; Do Direito Empresarial Arbitragem; do Direito Ambiental ao Direito Martimo e Porturio; do Direito Educacional aos Juizados Especiais; do Direito Previdencirio Fraternidade...

    Ouso escrever que as relaes construdas a partir da globalizao, transnacionalidade e da sustentabilidade promovem nossa unidade. No uma unidade redutora, encapsulada, excludente. Pelo contrrio, apta a fornecer subsdios s mais sortidas pesquisas em sede de Cincia Jurdica.

    Registro enfim que cada orao que segue nas prximas pginas propicia novos instrumentos produo, interpretao e aplicao do Direito. Ns, os alunos, estamos convictos e agradecidos por termos sidos despertados para a necessidade do dilogo e confronto de qualquer instituto jurdico com a globalizao, transnacionalidade e sustentabilidade. Particularmente, reconheci

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    tal exigncia na (paralaxe) estada em Perugia; mesmo com um tema de tese a primeira vista distante, reconheci a pertinncia dos processos de globalizao do Direito no sistema dos Juizados Especiais Federais.

    Tudo isso torna este livro dos Profs. Drs. Zenildo Bodnar e Paulo Mrcio Cruz mais indispensvel ainda. De igual sorte, desejamos que nos assuntos aqui abordados no se coloque um ponto final, talvez, no mnimo reticncias...

    Uma tima e proveitosa leitura!

    Mrcio Ricardo Staffen

    Doutorando e Mestre em Cincia Jurdica UNIVALI, Pesquisador Projeto CNJ Acadmico, representando todas as orientandas e orientandos dos professores

    doutores Paulo Mrcio Cruz e Zenildo Bodnar

  • APRESENTAO

    Por mais tradicional que possa parecer a antiga frmula poder/poltica/direito, ela pode ser aplicada tranquilamente para se justificar a possibilidade de existncia de espaos transnacionais de governana com base em Direito Transnacional de quarta gerao, lembrando o intenso debate atual sobre a matriz transnacional dos Direito Humanos, do Direito Ambiental, das finanas globais, da segurana mundial, entre tantos outros temas que transcendem as fronteiras nacionais e no podem ser abrangidos pelo Direito Internacional, por suas caractersticas e insuficincias j sobejamente discutidas.

    A globalizao capitalista acabou por criar novos tipos de poder que no so alcanados pelos direitos nacional e internacional. Esse fato gera a desconfortvel sensao de desamparo sentida por grande parte da populao global nessa segunda dcada do Sculo XXI. Apesar das assimetrias culturais, econmicas e sociais, a humanidade caminha clere em direo aos mnimos de integrao.

    Porm, sem uma efetiva republicanizao da Globalizao, no ser possvel superarmos o individualismo nacional moderno, que acabou aumentando as assimetrias acima mencionadas, protagonizadas por poderes transnacionais praticamente no regulados pelo direito nacional ou internacional. Esses novos poderes devem e esto sendo objeto de debates nas mais diversas reas do conhecimento, em especial na Cincia Poltica, o que essencial para a politizao desse tema. O debate poltico em torno dos novos poderes criados pela globalizao essencial para a fase seguinte, que dever ser a criao de direitos efetivos e eficazes para a submisso desses poderes aos interesses globais gerais, entre eles os processos que levaro a humanidade Sustentabilidade.

    O presente livro uma coletnea de artigos escritos pelos professores doutores Paulo Mrcio Cruz e Zenildo Bodnar nos ltimos 04 (quatro) anos, nos

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    quais expressam suas inquietudes, observaes cientficas e propostas tericas para a Democracia, para o Direito e para o Estado no Sculo XXI.

    Os captulos OS NOVOS CENRIOS TRANSNACIONAIS E A DEMOCRACIA ASSIMTRICA e A SOLIDARIEDADE POR MEIO DA JURISDIO AMBIENTAL contaram com aportes fundamentais do professor doutor Gabriel Real Ferrer, catedrtico de Direito Ambiental e Administrativo da Universidade de Alicante.

    A publicao dessa coletnea de artigos, em forma de e-book, pretende permitir o acesso geral e gratuito aos mesmos por alunos e pesquisadores em geral.

    No primeiro captulo, denominado A CRISE, CAPITALISMO E A TRANSNACIONALIDADE DEMOCRTICA, os autores tratam de discutir os problemas vividos na atualidade causados pela grave situao financeira internacional que se arrasta desde 2008/2009, abordando o tema sob o referente de ser a mesma mais um sinal evidente de insuficincia do modelo terico moderno. Como parte da crise do prprio Estado Constitucional Moderno.

    No segundo captulo, denominado O NOVO PARADIGMA DO DIREITO NA PS-MODERNIDADE so tratados assuntos referentes emergncia de novos cenrios globalizados e transnacionais e do esgotamento da liberdade, enquanto paradigma do direito da modernidade. Nele os autores assinalam a necessidade de se discutir o estabelecimento de alguns elementos cientficos e tericos sobre o surgimento de um novo paradigma para o Direito. Eles trabalham a possibilidade de que, na era ps-moderna, a sustentabilidade se consolide como o novo paradigma indutor do Direito, coabitando com a liberdade, pois, alm da sua vocao para ser aplicado em escala planetria, apresenta destacada flexibilidade e operacionalidade para comportar a dialtica das vrias foras sociais, articulando numa via discursiva harmonizadora os mais diversos valores e interesses legtimos.

    J o terceiro captulo, denominado A POSSIBILIDADE DA JUSTIA TRANSNACIONAL NA GLOBALIZAO DEMOCRTICA, discutida a

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    conjugao de fatores que impe tratar-se da globalizao da justia em seus sentidos mais abrangentes. Ou seja, abordar aspectos dessa nova era que vm para conviver com a ltima modernidade e que, fatalmente, influencia e influenciar o Direito em seus diversos aspectos, tratando da necessidade de que seja um modelo que diferencie e conscientize, efetivamente, o ser humano, inteligente, criativo, dos demais seres vivos, tornando-o o grande promotor da preservao da natureza, ao contrrio do que acontece atualmente.

    O quarto Captulo, escrito com a participao fundamental do professor doutor Gabriel Real, intitulado OS NOVOS CENRIOS TRANSNACIONAIS E A DEMOCRACIA ASSIMTRICA, trata de enfrentar o tema da Democracia e suas possibilidades para existir nos novos ambientes transnacionais das sociedades complexas de risco, considerando o carter assimtrico de sua representatividade e, como urgente, o debate sobre uma reavaliao dos seus atuais modelos, para que atendam de maneira adequada s atuais demandas por participao.

    No quinto captulo, denominado A SUSTENTABILIDADE POR MEIO DO DIREITO E DA JURISDIO os autores analisam a evoluo histrica do desenvolvimento sustentvel, alm de apresentarmos aproximaes conceituais da sustentabilidade enfatizando a importncia do seu contedo jurdico. Destaca a sua dimenso global e os desafios e perspectivas para a organizao poltica e jurdica e, ao final, a necessidade da construo vnculos ticos e jurdicos consistentes com o futuro por intermdio da justia inter-geracional.

    Escrito majoritariamente pelo professor doutor Gabriel Real e revisado e ampliado pelos autores da presente obra, o sexto captulo, cujo ttulo A SOLIDARIEDADE POR MEIO DA JURISDIO AMBIENTAL, analisa a solidariedade enquanto valor fundamental e irradiante, numa perspectiva filosfica, sociolgica e principalmente jurdica. Demonstra-se a necessidade de ampla juridicizao deste princpio, inclusive por intermdio das decises do Poder Judicirio. Esse captulo discute a assertiva de que a solidariedade, enquanto princpio jurdico estruturante da jurisdio ambiental deve ser o

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    marco referencial axiolgico para a consolidao de uma nova tica para o homem que vive nestes tempos de tecnologia insensvel e desterritorializada.

    J o stimo e captulo, denominado CLIMA, TRANSNACIONALIDADE E GOVERNANA, trata da importncia do debate sobre a questo climtica analisada sob a tica da governana transnacional como necessidade para enfrentar os desafios ps Conferncia Mundial do Clima de 2009. Esse captulo parte da premissa que no possvel o estabelecimento de uma poltica regulatria efetiva para a questo climtica que no leve em conta a governana transnacional, entendida esta como forma de articulao entre o poder local e o global, baseada na cooperao e na solidariedade.

    O oitavo e ltimo captulo, intitulado A GOVERNANA TRANSNACIONAL AMBIENTAL NA RIO + 20, analisa as profundas mudanas ocorridas com a intensificao do fenmeno da globalizao, que alteraram de maneira irreversvel a configurao do Estado Constitucional Moderno, em especial a sua pretenso de soberania. Esse captulo busca demonstrar que os novos desafios sociais, econmicos e ecolgicos; a complexidade e a amplitude das novas demandas transnacionais, em plena escalada progressiva de surgimento, tambm colocam prova e denunciam as limitaes de capacidade resolutiva do modelo de organizao poltica e jurdica estatal territorializado hoje existente.

    Essa obra tambm reflete as participaes dos autores, ao longo dos ltimo quatro anos, em eventos cientficos no Brasil, Portugal, Itlia e Espanha, nesse pases, principalmente com os j citados professores doutores Maurizio Oliviero, Gabriel Real e Mrio Monte.

    Desejamos uma produtiva leitura a todos!

    Os editores

  • CAPTULO I

    A CRISE, CAPITALISMO E TRANSNACIONALIDADE DEMOCRTICA

    Os problemas vividos na atualidade, principalmente a grave situao financeira internacional que se arrasta desde 2008/2009, significam mais um sinal evidente de insuficincia do modelo terico moderno. Talvez sustentem a prpria crise do Estado Constitucional Moderno. Alguns exemplos recentes parecem comprovar tal crise: o complexo de indstrias mundiais de alimentos que arrasa sementes tradicionais acabou por criar uma situao de desequilbrio alimentar no planeta. Alm disso, fatos como a comercializao mundial do petrleo, o monoplio da comunicao e a realidade virtual manipulvel demonstram que a internalizao do Poder Pblico da modernidade provavelmente ceder espao para a transnacionalizao desse mesmo Poder Pblico.

    Repensar, pois, a Democracia neste momento fundamental, principalmente em sua vertente transnacional. Todo o mundo acordado e afetado pela globalizao faz-se cada vez mais certo que o nico poder legtimo o poder com investidura decidida pela maioria, que se constitui a partir de instrumentos democrticos efetivos.

    1.1 A(s) crise(s) do capitalismo

    Enquanto o texto que forma este captulo discutido, o mundo do capitalismo globalizado e suas pretenses hegemnicas ainda so sacudidos por uma das maiores crises financeiras da histria, fato que merece uma profunda reflexo. , provavelmente, mais uma comprovao dos riscos apontados por Ulrich

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    Beck1. Como o espao pblico transnacional ainda est em fase de construo terica, as naes assistem perplexas crise vexatria do grande cassino global montado pelos Estados Unidos e seus parceiros europeus. Os pases da Europa, que se esbaldaram jogando nesse cassino, afundam junto com a pretensa credibilidade e solidez do sistema financeiro norte-americano.

    Os Estados Unidos e o mundo certamente sairo diferentes dessa crise, at em termos ideolgicos. Paulatinamente so adotados mecanismos mais rgidos de controle financeiro. No obstante, essas necessrias transformaes provavelmente no abordaro o problema de maneira consistente caso se limitem a incorporar mecanismos que pretendam dotar de maior segurana o sistema e seus operadores. Mas esquecendo que em sua raiz se encontra um modo de entender as relaes econmicas baseadas exclusivamente no interesse individual ou corporativo, alimentando um desaforado af de lucro e ignorando totalmente o interesse geral ou da maioria. A globalizao das finanas definitivamente no se transformou num movimento solidrio e republicano.

    Ainda que o tsunami financeiro, de modo imediato, haja afetado diretamente um bom nmero de operadores econmicos que basearam suas atividades e expectativas de benefcio em movimentos especulativos, certo que tal onda est atingindo setores essenciais da economia real. Esse fato alterou de maneira muito negativa o modo de vida e a possibilidade de desenvolvimento pessoal e social de centenas de milhes de pessoas no planeta. Entre outros efeitos, a crise financeira gerou demisses poder implicar em 20 milhes de pessoas desempregadas em todo o mundo at meados da segunda dcada do Sculo XXI, conforme afirmou o diretor geral da OIT (Organizao Internacional do Trabalho), Juan Somava, em uma entrevista coletiva imprensa. Com a recidiva do segundo semestre de 2011, comea-se a especular que seus efeitos sero muito mais intensos que o antes imaginado.

    1 Essa questo abordada nas obras La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad;

    Liberdade ou capitalismo; Qu es la globalizacin; Falacias del globalismo, respuestas a la globalizacin de Ulrich Bech e tambm na obra Modernizao reflexiva: poltica tradio e esttica na ordem social moderna, esta escrita em co-autoria com GIDDENS, Antony e LASH, Scott.

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    Segundo as estimativas da OIT apresentadas em 2009 por Somava, o nmero de desempregados poderia subir de 190 milhes em 2007 para 210 milhes no final de 2009, e inclusive ser maior se a crise se agravar. Agora, os nmeros das estimativas j beiram os 230 milhes de desempregados. No h, portanto, como no se discutir com profundidade terica essa crise, especialmente no mbito do Direito e da Teoria do Estado e, em geral, do Direito Pblico, pois essa a nica perspectiva que permitir que os interesses gerais estejam presentes na nova ordem que preciso construir.

    O mundo acadmico foi incapaz de prever essa crise e deve, ao menos, discuti-la na medida de sua gravidade. Ainda que seja uma ideia que aparece de modo recorrente quando se discutem problemas globais, nunca esteve to evidente a necessidade de se criar um espao regulatrio transnacional. No que compete mais especificamente problemtica em discusso, um estado que submeta o capital ao interesse da maioria dos habitantes do planeta.

    A era do capitalismo individualizado e da liberdade como paradigma do direito necessitam ser questionados como ideologia dominante sem o debate j esvaziado do socialismo como contraponto. Diante disso, a possibilidade da globalizao ser republicanizada deve ser, sem dvida, uma questo central do grande debate que se avizinha e, portanto, um timo comeo de discusso. Mas o papel da Democracia o assunto que melhor representa as consequncias possveis para essa crise que transformou as bolsas de valores em pesadelos dirios para as instituies financeiras e para parte significativa dos habitantes do planeta.

    Assim, as principais perguntas s quais se quer ajudar a responder com o presente captulo so: como ser e que papel ter a Democracia Econmica no sculo XXI, j que esta uma das formas tericas de Capitalismo Democrtico? Adianta-se que os requisitos que podem satisfazer um projeto de democratizao das relaes econmicas so de dois matizes: primeiro, apresentar um desenho global da capacidade de persuadir aquelas pessoas que reconheam valor nas polticas de inovao (de identidade e de solidariedade). Segundo, prever benefcios materiais que os indivduos possam

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    perceber imediatamente ou calcul-los com facilidade (incentivos materiais e individuais).

    Os programas de Democracia Econmica podem, ento, desenvolver a dupla funo de mobilizar as paixes e os interesses, seus dois matizes. Neste sentido, importante a investigao que foi realizada por Domenico Nuti2, professor da Universidade de Roma La Sapienza, que parte da hiptese de que as diferentes acepes de Democracia Econmica no so alternativas, mas sim instrumentos complementares Democracia como valor. As pesquisas do autor italiano concluem que o processo de Democracia Econmica se desenvolve atravs de uma pluralidade de dimenses, que vo desde o econmico, passando pelo social e chegando ao fundamental fator ambiental. E que a correo do funcionamento espontneo do mercado atravs de polticas de interveno do Poder Pblico a partir da constituio de instituies regulatrias de Governo Transnacional e valorizao de diferentes mbitos de Democracia Micro-Econmica fundamental.

    Alm de Domenico Nuti3, outros autores apontam, de modo geral, que a Democracia Econmica pode ser associada a algumas dimenses. Uma destas estaria relacionada com a superao dos modelos de industrialismo. Segundo esta viso, os programas de Democracia Econmica tero dificuldades para alcanarem xito se no forem abertos maioria dos trabalhadores e cidados. Considerando-se o modelo socialdemocrata sueco, que funciona como uma espcie de paradigma, a Democracia Econmica deve ser considerada a terceira etapa no desenvolvimento da Democracia e dever assinalar a evoluo desde as democracias poltica e social (que j esto razoavelmente discutidas, mas no completamente implantadas, principalmente nos pases ditos emergentes, como o Brasil) at a Democracia Econmica. A questo est, pois, ligada a todas as tentativas para ampliar e qualificar a cidadania. claro que um novo modelo de Poder Pblico, superados os conceitos clssicos de Soberania, Diviso de Poderes e Democracia Representativa, constituir um fundamental meio de cultura para os projetos de Democracia Econmica.

    2 NUTI, Domenico Mario. Democrazia econmica: mercato, poltica econmica e

    participazione. p. 76 3 NUTI, Domenico Mario. Democrazia econmica: mercato, poltica econmica e

    participazione. p. 77.

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    J a outra dimenso est vinculada com as reformas e funcionamento das relaes industriais. O processo, muito provavelmente, ser multidisciplinar, e aqui, no caso, economistas e administradores pblicos e privados devem estar convencidos da premncia da mudana, at para a prpria sobrevivncia da espcie humana. Na maioria dos pases, existe uma crise crnica e desorientadora dos modelos clssicos do pluralismo e do neocorporativismo. As relaes empresariais mais eficazes so aquelas que combinam um bom grau de concentrao com margens de descentralizao, de regulao rigorosa com elementos de flexibilidade. O rol de empresas interessadas s poder se consolidar se estiverem presentes propostas de aumento de qualidade e a participao nos seus resultados e nas suas funes de coordenao e administrao.

    Como se consegue perceber preciso ir fundo nas propostas de reforma dos fundamentos do Capitalismo. Caso no haja o que convencionou chamar de republicanizao da globalizao e o processo seja controlado pela Sociedade, qualquer tipo de tentativa de desenvolvimento de modelos de Poder Pblico Transnacional ser efmero, infrutfero. E o nico modo talvez de convencer os centros de comando capitalistas demonstrar que o futuro da humanidade e o do prprio capitalismo depende dessa mudana de concepo, fazendo convergir Democracia, sustentabilidade, lucro e interesse social transnacional para o bem comum.

    Colocar esse tipo de questo pouco tempo depois de derrubado o mundo comunista pode soar como provocao ou um convite duvidoso predio. Mas, mesmo que ningum duvide que a queda do Muro de Berlin tenha marcado o final de uma poca, deve-se precisar qual a poca que terminou para se poder medir o verdadeiro alcance deste acontecimento e suas repercusses.

    Os otimistas defendem que a poca terminada comeou em 1945. Em nome do combate pela Democracia, havia-se derrotado Hitler. E, no se pode esquecer, a derrota s se deu com a ajuda de Stalin, que cobrou uma conta bastante alta por isso: a servido de metade da Europa ao comunismo. Quarenta e cinco anos mais tarde a vitria foi completa. D a impresso que foi

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    ganha a batalha das ideias. Mas se sabe que o fim da dicotomia Liberalismo/Socialismo empobreceu o debate poltico e permitiu que o capitalismo se globalizasse e fugisse de qualquer tipo de controle mais efetivo pelas sociedades por ele atingidas.

    Quem hoje recorreria a Lnin para questionar Montesquieu? Ou quem recorreria a Leon Trotski para questionar Immanuel Kant? Isso, para preocupao daqueles que se ocupam das pesquisas sobre o tema, passou a ser coisa do passado, pois a evoluo das ideias polticas havia alcanado sua ltima fase, e a Repblica Liberal, herdeira do sculo XVIII e da filosofia ilustrada, representaria a forma mais adequada de organizao humana. A liberdade burguesa havia triunfado e se estaria perto do fim da histria, se verdade que a histria, apesar de tudo, a batalha das ideias. Francis Fukuyama e seu The end of history and the last man parecia ter razo.

    Os pessimistas denunciaram essa interpretao, que julgaram simplista e ingnua. Para eles, o perodo que termina no comeou em 1945, mas sim em 1917. O parntesis ideolgico da revoluo bolchevique estava encerrado e no se estaria assistindo ao final da histria, mas sim ao retorno das naes. Nossa triunfante modernidade estaria ameaada por um retrocesso histrico. Estar-se-ia obcecado pelo sculo XIX.

    diferente a percepo que se tem sobre essa interposio de pocas, j que este captulo enseja uma hiptese muito mais ampla. O ano de 1989 no encerra uma poca iniciada em 1917 ou em 1945. Graas a 1789 e seus entornos revolucionrios, 1989 encerra o que se institucionalizou como a era do Estado Constitucional Moderno Soberano e sua vocao para a endogenia jurdica, no sentido de sua auto-suficincia normativa interna. A era da modernidade poltico-jurdica caracterizada pela justificao do poltico. Logo, o problema passou a ser que o mbito do poltico transbordou inquestionavelmente dos estreitos limites do Estado Constitucional Moderno, mudando radicalmente.

    Assim, depois de realizada uma reviso histrica de certas alteraes poltico-econmicas, tornou-se inevitvel verificar a obsolescncia das instituies modernas e descobrir que, entre a era em que estamos entrando e as

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    construes da Era das Luzes h mais diferenas do que entre esta e a era patrimonial que a havia precedido. Todavia, ainda ser muito difcil admitir o esgotamento do Estado Constitucional Moderno, assim como ser difcil abandonar o seu barco capitalista que parece estar deriva e com srias avarias, pois seria exagerado dizer semi-naufragado. O desafio se coloca porque no se trata de mais nada diferente das categorias Democracia Representativa, Tripartio dos Poderes, Liberdades Individuais e Polticas, Igualdade Formal e Direito de Propriedade, as quais ainda definem os horizontes do pensamento. Por outro lado, j no h segurana em conhecer significados de categorias cuja adeso deriva mais de um ato reflexo que da reflexo, propriamente dita.

    Luigi Ferrajoli4 j escreveu sobre isso, mostrando que se vive hoje e, parece que todos j esto tomando conscincia disso, uma crise histrica no menos radical do que a que aconteceu com as revolues burguesas do Sculo XVII. A potncia destrutiva das armas nucleares, as agresses cada vez mais catastrficas contra o ambiente, o aumento das desigualdades sociais, a exploso dos conflitos tnicos fazem com que o equilbrio planetrio seja cada vez mais precrio e, portanto, que se torne mais difcil a conservao da paz em sua definio mais ampla. E agora, temos mais a crise financeira iniciada em 2008, que teima em no ir embora.

    Est-se chegando concluso de que os herdeiros da Era das Luzes so apoplcticos: as leis se converteram em receitas, o Direito em mtodo e o Estado Constitucional Moderno em meros espaos jurdicos incapazes de enfrentar os desafios transnacionais. A grande questo a ser respondida se isso suficiente para assegurar o futuro da Democracia. Tem-se que perguntar, hoje, como ser a Democracia sem soberania nacional. O grande edifcio da era moderna perdeu seus alicerces e flutua livre de todas as amarras, abandonado a si mesmo, feito papel carregado pelo vento, como tambm escreveu Ferrajoli5.

    4 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantas: la ley del ms dbil. p. 116.

    5 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantas: la ley del ms dbil. p. 116.

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    Por outro lado, parece ser um engano ver com temor o fim desta era. Seria um enorme erro ver o Estado Constitucional Moderno como um fim em si mesmo. A organizao poltica herdada da Idade das Luzes representa s um episdio da histria humana, o meio que foi encontrado, numa certa etapa de seu desenvolvimento, para fundamentar a liberdade numa ordem poltica e, posteriormente, numa ordem jurdica como seu paradigma.

    No momento atual a Sociedade Mundial est carente de um upgrade civilizatrio. As ltimas geraes humanas so devedoras de um efetivo novo avano do que se pode chamar de um mundo solidrio e humanizado. A modernidade caracterizou um significativo avano, apesar de um avano baseado no individualismo. O mundo atual extremamente complexo para seus obsoletos paradigmas tericos.

    Deve-se compreender que esta nova era no deve ser combatida seria trabalho intil e sim ser objeto de novas teorizaes, que possam conduzir a humanidade ao seu episdio seguinte, sempre com a perspectiva de uma evoluo positiva.

    O ser humano, dono de inteligncia e diferente dos outros animais, est no planeta, provavelmente, para provar que pode sobreviver sem estar no estado de natureza. Que possvel a maioria dos humanos viver em organizaes polticas democrticas adstritas aos paradigmas de participao, da poltica de tolerncia, da distribuio da riqueza, da utilizao sustentvel do meio ambiente, da solidariedade e da diversidade, no necessariamente nessa ordem. Mas importante considerar, principalmente, a Sustentabilidade, tratada em captulo prprio, mais adiante, como novo paradigma do direito a coabitar com a Liberdade.

    Para isso preciso entender que o capitalismo solto, desteorizado e desterritorializado e, por isso, despolitizado formou uma tecno-estrutura que uma rede global que nada tem a ver com livre mercado, j que esse novo capitalismo est baseado em um sistema mundial assentado sobre cinco monoplios: I - O monoplio das finanas, baseado no padro dlar dos Estados Unidos da Amrica e nas polticas do Banco Mundial e do Fundo Monetrio Internacional. O monoplio das finanas faz da economia financeira

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    especulativa um vrus que est destroando ou j destroou - as economias produtivas, fazendo com que os trilhes de dlares que circulam diariamente nos principais centros financeiros superem em mais de duas vezes as reservas dos bancos centrais dos pases que compem a Organizao para Cooperao e Desenvolvimento Econmico OCDE. Mesmo com o Euro, importante dizer, essa realidade permanece praticamente intacta, j que a moeda europeia sofre com a crise e ameaas de secesso; II - O monoplio tecnolgico, que atua, principalmente, sobre as patentes e direitos de propriedade, atentando gravemente contra a biodiversidade das espcies. O complexo de indstrias mundiais de alimentos controla cada vez mais as variedades de alto rendimento e arrasa as culturas de sementes tradicionais; III - O monoplio energtico, que atua sobre os recursos naturais e, especialmente, sobre o petrleo, atravs de sua comercializao mundial e por meio dos pases intermedirios. Desta maneira, os preos do petrleo podem ser controlados e o dinheiro utilizado na sua compra recuperado via mercado financeiro para investimentos nos pases ricos; IV - O monoplio da comunicao, que faz com que, cada vez mais, a realidade seja virtual e manipulvel, j que, atravs dos meios de informao, podem convencer a todos de que a verdade a verdade que lhes convm; V - O monoplio militar, que, como foi demonstrado nas guerras do Golfo e nas invases do Afeganisto e do Iraque, tem relao intrnseca com os monoplios citados anteriormente, formando uma estrutura integrada. Por estes conflitos, pode-se exemplificar tanto a capacidade de violncia fsica como sua relao com os monoplios de recursos naturais, comunicativos, tecnolgicos e financeiros, e suas lgicas relaes internas.

    Caso no se possa, terica e praticamente, ajustar o Poder Pblico de modo que ele possa atuar para impedir que esta tecno-estrutura mundial concentre riqueza e ameace a prpria vida no planeta, o futuro estar ameaado. E o risco aumentado. Villasante diz que a internalidade do Poder Pblico da modernidade provavelmente ceder passo ao processo de transnacionalizao deste mesmo Poder Pblico. Caso contrrio, a debilidade do Estado Constitucional Moderno poder conduzir a civilizao a perigosas posies de confronto e autodestruio.

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    Est-se vivendo uma acelerada etapa de transio a novas formas de organizao, em escala planetria. importante ter-se conscincia de que, na configurao da nova ordem mundial, pelas pesquisas levadas a efeito e pelos ltimos acontecimentos em diversas partes do mundo, a Democracia, como valor, poder desempenhar um papel mais importante que o Estado Constitucional Moderno, mesmo que, algumas vezes, parea ser o contrrio.

    Esse novo papel permite antever que a globalizao do mercado e das tecnologias da informao dever estar acompanhada de uma globalizao poltica e social, na qual os valores democrticos tenham um claro protagonismo. Esta parece ser a nica via, se a inteno tratar de uma globalizao que beneficie a todos e que no seja meramente quantitativa, mas principalmente qualitativa. Uma globalizao que seja assumida como uma nova maneira de estar no mundo e que implique, portanto, em novo estilo de vida. Um estilo para todos, com comunho de civilizaes e no o choque delas, na expresso usada por Samuel Huntington6 no ttulo de um de seus livros.

    A globalizao s ter sentido e ser verdadeiramente universal se for capaz de estruturar e criar um conjunto de relaes de um novo tipo. Um mundo globalizado pressupe novas relaes de interdependncia, novas necessidades e, por que no, novos problemas. Pressupe ainda novos sujeitos capazes de fazer frente aos desafios globais. A reconstruo da Sociedade ps Estado Constitucional Moderno passa pela reabilitao do poltico, do social e do cultural contra a hegemonia da razo econmica. Isso implica uma redefinio ou, mais exatamente, um redescobrimento do bem comum, de um saber-viver juntos e de um novo sentido para a aventura de viver.

    possvel que haja o entendimento de que isso seja uma utopia. Tambm no se est pensando que tratar de um assunto com esta capacidade para gerar polmica ser fcil. Mas o que certo que no se pode continuar por mais tempo nessa racionalidade irracional em que est mergulhado o mundo atual. Est-se diante de uma singular oportunidade histrica: configurar um Poder

    6 HUNTIGTON, Samuel P. Choque de civilizaciones? p. 52.

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    Pblico que possa ser aplicado ao local, ao regional e ao mundial, que seja sensvel ao ser humano e propenso a incluir todas as pessoas a um mnimo de bem-estar.

    Urge perceber que a ausncia do poltico na globalizao est permitindo que as grandes corporaes multinacionais levem a cabo, na prtica, uma autntica tomada do poder, um verdadeiro controle do mundo margem da poltica. Sob o vu de uma pretensa racionalidade econmica e por trs de uma aparncia formal de apoliticidade, est-se desenvolvendo, na prtica, com extraordinria fora, um novo tipo de poltica, que pode ser qualificada como parapoltica.

    Essa atividade parapoltica, gerada a partir dos centros financeiros, est permitindo que as corporaes globais ocupem os centros materiais vitais da Sociedade, de forma imperceptvel, sem revoluo, sem mudanas na lei nem nas constituies, atravs do simples desenvolvimento da vida cotidiana. Por consequncia, os cidados esto sendo jogados a um mundo de redes annimas, no qual as empresas multinacionais se transformam no modelo de conduta.

    A nova utopia prev, por outro lado, a existncia de uma integrao entre o mercado da informao e o da comunicao, graas s redes eletrnicas e de satlites, sem fronteiras, funcionando em tempo real e de forma permanente.

    Assim, a globalizao pode ajudar em trs sentidos: poder fazer evidente a interdependncia, ter despertado o pluralismo da diversidade e ter ampliado para vrias camadas da populao mundial a sensao de pertencer a uma realidade transnacional e, tambm, transestatal, capaz de despertar os vnculos de solidariedade imprescindveis para a emergncia de uma sociedade global, algo a que a humanidade nunca assistiu.

    1.2 A(s) democracia(s)

    O sistema mundial atual um produto do capitalismo industrial transnacional que integra em si tanto setores pr-industriais como setores ps-industriais.

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    Ento, a utopia de uma Sociedade mais justa e de uma vida melhor somente poder prosperar com a insero dos princpios democrticos nas prticas capitalistas; uma ideia que, sendo utopia, to necessria quanto o prprio capitalismo.

    Em que pese o desaparecimento das fronteiras que separavam os sistemas polticos em funo de sua adeso a modelos econmicos antagnicos, continua tendo uma elevada dose de atualidade o problema da relao entre Democracia e economia de mercado. O problema est na possvel incompatibilidade entre a autodeterminao do Estado como reflexo terico, por sua vez, da vontade da maioria popular soberana e o poder financeiro e econmico das grandes corporaes empresariais. Essa dialtica ganha maior intensidade se considerado esse muito comentado fenmeno denominado globalizao, que vem confirmar a subordinao do Estado Constitucional Moderno s decises adotadas nos circuitos econmicos que formam as grandes multinacionais e os mercados financeiros, nos quais o protagonismo est a cargo de instituies bancrias com um considervel nvel de independncia com relao aos ambientes democrticos.

    Esta realidade est na pauta da doutrina mais avanada que entende serem necessrios esforos para democratizar o capitalismo e torn-lo solidrio, superando a ideia de acumulao individual, ou de grupos, em detrimento do conjunto da Sociedade global.

    Repensar a Democracia7 neste momento histrico significa faz-lo a partir de um pluralismo que possui duas vertentes: a pluralidade de atores que disputaro a governabilidade transnacional e que rompero o paradigma da endogenia estatal moderna, e a pluralidade de culturas que exigem que a liberdade seja vivida a servio da incluso social e que a igualdade seja vivida a servio da diferena. Isto implica, claramente, ir muito mais alm do modelo de Democracia representativo liberal.

    7 Sobre este assunto ver: CRUZ, Paulo Mrcio. Repensar a democracia. Universidade Gama

    Filho. Revista de Cincias Sociais, v. 15. 2009, p. 25-44.

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    A teoria da Democracia no tem que ser necessariamente reinventada, mas, certamente, tem de se reorientar. O termo repensar deve ser entendido como um intento para captar e centrar os novos problemas de uma histria que virou uma pgina e que volta a comear. Trata-se de algo diferente do fim da histria. Ao contrrio do que sustenta Fukuyama8, est-se diante de um futuro denso de incgnitas e seguramente muito distinto do presente que se conhece. Para tanto, ser necessria uma boa dose de valentia e esperana diante de um futuro que, em boa medida, estar nas mos daqueles que se proponham a teorizar um novo Poder Pblico, para depois do Estado Constitucional Moderno.

    Seja como for, e seja qual for o cimento das vidas em comunidades polticas comuns lngua, costume, cultura, religio ou, at, etnia o mundo do Sculo XXI j no cr na legitimidade que no seja verdadeiramente democrtica.

    Hoje, embora sua gravidade no seja totalmente reconhecida, est-se presenciando uma crise profunda no deste ou daquele setor, mas do prprio modelo de civilizao da modernidade.

    importante destacar que as premissas bsicas dos revisionistas democrticos falharam: a elite no defende valores democrticos, mas antes instituies oligrquicas; mais frequentemente do que o seu apoio s elites autoritrias, os movimentos de massa defendem direitos democrticos e mudanas que contrariam os interesses das elites (direitos civis, femininos, ecologia, trabalho). James Petras9 assinala, a propsito, que sociedades complexas so mais dificilmente compreendidas por elites que defendem conjuntos estreitos de interesses privados.

    Assim, importante destacar que, para a Democracia funcionar no ambiente atual, preciso rever mentalidades10 e atitudes e no mtodos ou procedimentos. Como escreve Arnaldo Miglino11, a Democracia no pode ser apenas uma forma de se proceder. Ela , acima de tudo, um valor que

    8 FUKUYAMA, Francis. O fim da histria e o ltimo homem. p. 71.

    9 PETRAS, James. Neoliberalismo: Amrica Latina, Estados Unidos e Europa. p. 171.

    10 MIGLINO, Arnaldo. Revista Archivo Giuridico. Uma comunidade mundial para a tutela do

    ambiente (para Paulo Mrcio Cruz). p. 162. 11

    . MIGLINO, Arnaldo. Democracia no apenas procedimento. p. 72 .

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    pressupe a aplicao de outros princpios, como o da liberdade de expresso e opinio, o da liberdade de obteno de informao imparcial e correta e o da publicidade dos fatos que se referem esfera pblica. Considerando-se que um dos momentos fundamentais da Democracia a escolha dos governantes, seria impossvel, de maneira eficaz, que o povo pudesse fazer uma escolha do gnero sem gozar da liberdade intelectual e sem poder dispor de informaes sobre a realidade.

    A categoria Democracia no utilizada aqui no sentido da teoria sistmica, na esteira do que pensa Friedrich Mller12, mas no do Direito Pblico e da Teoria do Estado. Diz respeito, portanto, a todas as normas, estruturas, objetivos e valores essenciais de um Estado ou de um espao pblico transnacional - que se possa denominar democrtico. Tambm importante esclarecer que a categoria Excluso Social no diz apenas respeito pobreza ou marginalizao, mas conhecida e fatal reao em cadeia da excluso, que se materializa pela excluso econmico/financeira e at pela excluso jurdica (negao da proteo jurdica e dos direitos humanos, etc.), passando pela excluso social, cultural e poltica. So valores que, ao contrrio, impedem que um Estado possa ser denominado de democrtico. E, principalmente, impedem a consecuo da sustentabilidade, pois se sabe que esse tipo de excluso letal ao ambiente e sem o ambiente preservado e/ou recuperado no h qualquer critrio de sustentabilidade minimamente adequada.

    Enquanto os critrios da sustentabilidade no forem percebidos como demandas democrticas, a prpria Democracia no estar livre do perigo da destruio da autodestruio. Isso porque a Democracia encontra-se, paradoxalmente, em contradio com a necessidade desse sentimento de pertencer ao centro dos valores do mundo globalizado. A Democracia Representativa Moderna um sistema frio. Est constituda por princpios, regras e instituies. Mas sua existncia depende do esforo e do engajamento do cidado. Assim, o inimigo mortal que ameaa a Democracia a indiferena e a passividade do cidado, a impotncia dos indivduos frente ao universo

    12 MLLER, Friedrich. Que grau de excluso social ainda pode ser tolerado por um

    sistema democrtico? p. 12.

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    kafkaniano do poder transverso do Estado Constitucional Moderno e do poder insensvel do mercado e da economia.

    Percebe-se que, neste contexto complexo, h quem trate de buscar diagnsticos mais ou menos definitivos e solues de emergncia, que operam, no raro, a partir da simplificao arbitrria do complexo. Sempre surgem comentaristas e interessados que, dispostos a ignorar a magnitude e o alcance de muitos dos problemas, encontram fceis receitas milagrosas ou frmulas salvadoras capazes de regenerar o edifcio da Democracia Representativa.

    Sendo assim, para evitar o erro de simplificar arbitrariamente o complexo, sem cair na armadilha de complicar arbitrariamente o simples, o que se tem procurado fazer analisar o impacto de todo esse conjunto de transformaes histricas sobre o modelo de representao poltica. E sobre o prprio modelo do prprio Estado Constitucional Moderno, tendo como hipteses a insuficincia de ambos os figurinos polticos.

    O longo perodo de estabilidade vivido no ps Segunda Guerra Mundial comeou a ver-se afetado a partir da dcada de oitenta, por um discurso mais ou menos difuso de mal estar civil, atravs do qual, de maneira ambgua, foram projetados diversos tipos de argumentos crticos contra o sistema representativo vigente. Isso se faz notar atravs de um de apoliticismo difuso, conectado com o apogeu da Sociedade Civil, de um regeneracionismo mecanicista de vis utpico, de uma lgica sensao de marginalizao de certas minorias ou grupos de opinio, at demandas no concretas de um maior controle sobre a poltica.

    Pode-se especular, ento, que o grande desafio para o sculo XXI ser a construo de uma Sociedade Democrtica transnacional, respeitadora das diferentes concepes humanas, baseada na paz, na preservao da vida, na justia social, no acesso de todos ao bem-estar. Enfim, uma sociedade emptica, como sugere Jeremy Rifkin13. O objetivo ser construir um modelo de organizao social, poltica e jurdica que supere e substitua o atual modelo

    13 RIFKIN, Jeremy. La civilizacin emptica: La carrera hacia una conciencia global en un

    mundo en crisis, pp. 123 e seguintes.

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    de excluso e de concentrao de riquezas - prprio do capitalismo que tutor do Estado Constitucional Moderno - por outro modelo de Poder Pblico, Democrtico, capaz de tornar realidade essas necessidades vitais e que as transforme em desejos. No sendo assim, seria, ento, um Estado que nenhum democrata poderia mais tolerar.

    Por isso, preciso, antes de qualquer coisa, que a comunidade cientfica dedicada cincia e teoria do estado pelo menos boa parte dela esteja atenta tese da necessidade de se teorizar uma alternativa ao Estado Constitucional Moderno e Democracia representativa. Antes disso, qualquer proposio ser tida como devaneio e acusada de ingnua, romntica ou utpica.

    Na tentativa de rever a teoria de estado, alguns doutrinadores insistem em refundar o Marxismo e o Anarquismo, que padecem dos mesmos anacronismos que acometem o Liberalismo Capitalista, o Estado Constitucional Moderno e a Democracia Representativa. Pode-se dizer que foram reaes ao Estado Constitucional Moderno. E, assim, acabam sendo o prprio espectro antittico do Estado Constitucional Moderno em uma relao dialtica.

    O Estado, lato sensu, importante sempre ressaltar, como centro imanente do Poder Pblico, no est em causa. Tanto assim que, como se poder perceber adiante, parte-se sempre da constatao da existncia futura de uma organizao destinada a exercer o Poder Pblico. Assim, a caracterizao clssica do Estado, como existncia de populao, governo e capacidade decisria e autnoma, e no mais soberana, estar hgida, o que nos impele a olhar na direo do Poder compartilhado, globalizado, com um capitalismo solidrio e democrtico, provavelmente em espaos transnacionais de governana. Estas questes levantadas so fruto de pesquisas cientficas, que permitem especular uma espcie de re-teorizao do Estado, o que, de certa forma, indica a superao dimensional do Estado Constitucional Moderno.

    Os elementos que se podem recolher da doutrina mais avanada sugerem que preciso ser produzido intenso debate terico sobre a possibilidade de superao de algumas das categorias secularizadas da modernidade, algumas delas j citadas pginas atrs: Liberalismo, Socialismo, Capitalismo Liberal,

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    Welfare State, Social-Democracia. Todas esto contaminadas pelo conjunto de teorias que idealizaram o Estado Constitucional Moderno e a Democracia Representativa. A grave crise econmica iniciada em 2009 reflexo evidente desse momento de transio coabitada da modernidade e da nova era que se inicia.

    Deste conjunto, deve-se chamar ateno para o Capitalismo Liberal. Ele sim o vrus contaminador de todo o modelo representado pelo Estado Constitucional Moderno. A crise financeira internacional, que provavelmente matar milhes de pessoas por suas consequncias, no pode ser combatida eficazmente pelos instrumentos disponveis atualmente. A complexidade mandarinesca do sistema financeiro internacional desorienta os setores produtivos, enquanto as reaes espasmdicas dos tomadores de decises do governo contribuem para a sensao prevalente de anarquia. O sistema poltico, ziguezagueando erraticamente de dia para dia, complica enormemente a luta de nossas instituies sociais bsicas para a sobrevivncia.

    As ltimas duas dcadas do Sculo XX e a primeira do Sculo XXI registraram um estado de crise praticamente permanente. uma crise complexa, multidimensional, cujas facetas afetam todos os aspectos de nossa vida a sade e o modo de vida, a qualidade do meio ambiente e das relaes sociais, a economia, a tecnologia e a poltica. uma crise de dimenses intelectuais, morais e espirituais. Uma crise de escala e premncia sem precedentes na histria da humanidade. Pela primeira vez, temos que nos defrontar com a real ameaa de extino da raa humana e de toda a vida no planeta.

    O ecossistema global e a futura evoluo da vida na Terra esto correndo srio perigo e podem muito bem resultar num desastre ecolgico em grande escala, como acontece agora com a economia global. A deteriorao de nosso meio ambiente tem sido acompanhada de um correspondente aumento nos problemas de sade dos indivduos. Enquanto as doenas nutricionais e infecciosas so as maiores responsveis pelas mortes no Terceiro Mundo, os pases industrializados so flagelados pelas doenas crnicas e degenerativas apropriadamente chamadas de doenas da civilizao, da civilizao do Estado Constitucional Moderno.

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    por se prever um futuro assim to catico que se faz urgente o investimento em pesquisas inovadoras que possa civilizar e republicanizar a globalizao.

    1.3 O fenmeno da transnacionalizao

    O problema maior da economia e das finanas globalizada, derivado das entranhas da modernidade, emerge da base da sua filosofia de liberdade poltica: emerge do capitalismo e do liberalismo econmico, como escreveu Friedrich Mller14. Tem-se a sensao de que se est saindo de um ciclo poltico que dominou os ltimos dois sculos, mas a falta de alternativa est levando o mundo a uma crise multidimensional sem precedentes; e no h evidncias capazes de sugerir, ainda, quais sero os termos futuros da confrontao poltica . O espao ainda no explorado pela poltica e criado pela globalizao do capitalismo demonstra a necessidade de um locus de poder pblico entre os estados nacionais.

    Nesse sentido importante destacar a proposta do socilogo alemo Ulrich Beck15 com relao substituio das relaes internacionais de conflito e/ou disputa por relaes transnacionais de solidariedade e cooperao.

    O autor alemo aponta que a globalizao pe o tema da compreenso e organizao da Sociedade novamente na ordem do dia dentro do debate pblico, e isto com uma urgncia que no se conhecia desde o marxismo e as disputas sobre a luta de classes.

    Em outras palavras, a Sociedade em rede conectada e cada vez mais on line, formada a partir da globalizao promovida pela hegemonia capitalista consolidada a partir de 1989, remete a um mundo novo, uma espcie de continente no investigado que se abre a uma terra de ningum transnacional, a um espao intermedirio entre o nacional e o local. Como consequncia,

    14 MLLER, Friedrich. Que grau de excluso social ainda pode ser tolerado por um

    sistema democrtico? p. 16.

    15 BECK, Ulrich. Falacias del globalismo, respuestas a la globalizacin. p. 66.

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    Beck indica o surgimento de uma faixa de ao prpria das sociedades mundializadas. Isso pode ser percebido na relao dos estados nacionais com as empresas multinacionais, o que acaba vinculando um possvel futuro Direito Transnacional. Essa previso se justifica pela persecuo da criminalidade transnacional, pelas possibilidades de realizao de uma poltica cultural transnacional, pelas possibilidades de ao dos movimentos sociais transnacionais e, principalmente, em funo da vital questo ambiental.

    A discusso sobre um Estado Transnacional, trazido por Beck, uma das possveis matrizes para a discusso terica a partir do fenecimento do Estado Constitucional Moderno e da crise financeira internacional. Beck aponta ainda que h uma racionalizao subjacente: o Estado Constitucional Moderno apesar de ser antiquado para as demandas transnacionais, ainda irrenuncivel como espao pblico garantidor das polticas internas e internacionais de transio. O Estado Constitucional moderno far parte da organizao de espaos transnacionais de governana e participar da configurao poltica do processo de globalizao.16

    Como j anotado, no h dvidas de que hoje se est diante de uma formidvel crise das bases tericas do Estado Constitucional Moderno, agravada pelo colapso das finanas globais, crise que pode traduzir-se (ou que j se traduz) em aumento do nvel de rejeio das instituies por parte dos cidados. justo perguntar-se, j que uma possvel via de sada vem indicando uma integrao entre as diversas tendncias tericas que tratam do futuro do Estado no ambiente globalizado, se as tecnologias de informao podem ajudar-nos a propor, teoricamente, o necessrio espao pblico transnacional do sculo XXI. difcil responder a essa pergunta, mas seguramente elas permitiriam uma associao mais imediata dos cidados nas fases da proposta, da deciso e do controle.

    Parece claro que o capitalismo globalizado vai fazer de tudo para atenuar a atual crise financeira, sempre impondo maiores sacrifcios aos menos abastados. Mas, mesmo que haja xito, as sequelas sero muitas e grandes.

    16 BECK, Ulrich; GIDDENS, Antony; LASH, Scott. Modernizao reflexiva: poltica tradio e

    esttica na ordem social moderna. p. 172.

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    Desemprego, aumento da pobreza e da misria, intensificao da concentrao da riqueza, mais degradao do meio ambiente, entre outras.

    Os espaos pblicos e, por consequncia, qualquer espao pblico transnacional ou so de interesse de todos e pertencem a todos ou no fazem sentido. Ou o excludo que tem direitos como todos e deve ser considerado em todas as atitudes e movimentos tem a ver com a mundializao econmico-financeira (e tambm com os possveis espaos pblicos transnacionais), ou se estar desenvolvendo um puro diletantismo, que interessar apenas s empresas multinacionais, descompromissadas com o equilbrio vital do planeta. Este o grande desafio: possibilitar a esses excludos se reconhecerem e atuarem como cidados globalizados. Que o local e o global se complementem.

    Para isso, a Democracia Econmica deve servir, antes de tudo, para que a Sociedade evolua, para que a diversidade de opes polticas e no polticas (culturais, relacionais, territoriais, sindicais, tnicas, de idade, etc.) possa se movimentar o mais livremente possvel, enriquecendo a complexidade da comunidade. Isto implica diversos mecanismos e instrumentos de validao, adaptados s peculiaridades de cada iniciativa, segundo o mbito e o momento determinado. Os movimentos livres de iniciativas culturais e sociais definem melhor uma Democracia que quer avanar, sem o jogo moderno da soberania do Estado Constitucional, que tende a bloquear iniciativas discrepantes.

    1.4 A democratizao do capitalismo global

    A democratizao do capitalismo, no sentido da distribuio da riqueza num capitalismo sustentvel, condio fundamental para qualquer possibilidade de se impedirem novos desastres financeiros globais que possam corroer ainda mais a combalida qualidade de vida no planeta.

    A economia est destinada a produzir riquezas. A poltica se dedica, ainda que nem sempre seja assim, distribuio ou redistribuio destas riquezas. E so

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    as distribuies as que podem ser declaradas de direita ou de esquerda. Mas, em todo caso, a poltica pode distribuir riqueza somente se a economia a produz. Se a economia no funciona, a poltica j no tem nada que redistribuir e acaba por distribuir pobreza. A autonomia e prioridade da produo da riqueza, sobre a distribuio, so procedimentais. Pode-se, muito bem, dizer que a distribuio mais importante que a gerao da riqueza. Mas a prioridade procedimental continua sendo a mesma. Caso no tenha o que comer, s se pode dividir a fome. E essa no uma opo interessante.

    Assim, considerado o procedimento lgico descrito acima, concebido por Giovanni Sartori, o caminho seria a democratizao do capitalismo, ou seja, que a comunidade possa participar da deciso do que e como ser produzido. E do como e onde ser distribudo, principalmente pelo acesso ao crdito, atravs de polticas publicas distributivas e atravs de um sistema tributrio transnacional, cujo conceito e caracterizao devero ser objeto de trabalhos cientficos futuros.

    Em princpio, uma economia de mercado compatvel com qualquer sistema poltico que conceda liberdade a esse mesmo mercado. Portanto, teoricamente, mercado e ditadura podem acoplar-se, como j se observou durante as ditaduras sul-americanas das dcadas de 70 e 80. Mas est claro que a realidade hoje outra. No h como escapar do contgio democrtico, o que torna, na atualidade, praticamente impossvel aquele acoplamento. A vitria da Democracia como princpio de legitimidade permite prever que o xito do mercado se converter, cada vez mais, numa demanda da Democracia. Com a condio, bem entendido, de que o mercado tenha xito e de que verdadeiramente produza Bem Estar.

    As democracias representativas atuais esto carentes de uma estrutura tica concebida a partir de valores democrticos conectados com as necessidades da Sociedade globalizada. Os valores que foram impostos so os valores do mercado, enquanto que o modelo de conduta o das estratgias empresariais que se movem pelo lucro, deixando de lado outros padres ticos e de valores totalmente indispensveis para a convivncia, como so os da gratuidade e da generosidade. Assim, a nica poltica possvel parece ser a da lgica que o

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    sistema econmico proporciona. Esta colonizao da vida pblica pela economia fez com que os estatutos de defesa do consumidor (e sua lgica) fossem se afirmando sobre os direitos de cidadania, supondo a mercantilizao da vida poltica, que fica eclipsada. Deve-se recordar, nesse sentido, que o mercado, mesmo com a pretenso descabida de ser um dos paradigmas da liberdade, produz desigualdade e no ajuda a configurar o exerccio responsvel da liberdade. Isso ocorre porque o mercado, ao proporcionar modelos de discusso privados em lugar de pblicos, impede as pessoas de falarem como cidads sobre as consequncias de nossas aes em comum.

    O conceito de bem comum parece ter passado para a histria. Hoje prevalecem os interesses particulares, parciais, o que tem muito a ver com a progressiva tendncia de se estruturar o sistema de representao de interesses atravs de organizaes especializadas ou competncias estruturadas em torno de critrios setoriais. Isto, junto prpria incapacidade transnacional intrnseca da mquina estatal, vem ajudando a debilitar a capacidade de resposta das estruturas do Estado Constitucional Moderno ante a cidadania.

    Alguns recentes e importantes debates, que esto acontecendo principalmente no plano acadmico, do qual esto participando tericos do ps-liberalismo at autores como Robert Dahl17, que em seu livro La democracia y sus crticos, reclama uma terceira transformao na Democracia, ou seja, o desenvolvimento de uma Democracia avanada, capaz de levar os mtodos e procedimentos da Democracia esfera econmica.

    Tem-se a impresso que, caso isso no seja providenciado, a magnitude das dificuldades econmicas que afetam, na atualidade, tantos pases, ter inevitveis consequncias polticas. Poder haver um agudizamento dos antagonismos sociais de todo tipo, intensificando a luta pelo bem estar econmico e fazendo mais insuportvel o custo da derrota. possvel que haja estmulo da migrao econmica, o que, por sua vez, poder suscitar, nos pases mais desenvolvidos, a hostilidade contra os imigrantes e a exigncia de que o Estado se converta numa fortaleza. Basta notar a atitude tomada pela

    17 DAHL, Robert A. Despus de la revolucin. p. 131.

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    Dinamarca, em 2011, diante dos problemas da imigrao, j que passou a defender o fim do espao Eschengen, que considera comuns as fronteiras exteriores em boa parte da Europa. Como se pode perceber, a depresso econmica torna muito mais difcil a consecuo do ideal de igualdade cidad e provoca uma perda de confiana na capacidade dos governos democrticos para solucionar problemas sociais. Os sistemas democrticos mais robustos podem, talvez, resistir a estes choques, enquanto que as democracias mais recentes, que necessitem de panorama mais favorvel para consolidar-se, podem sofrer danos irreparveis. Mas mesmo os todos poderosos Estados Unidos, com o rebaixamento da nota de seu rating soberano no ms de agosto de 2011, acusou ainda mais o golpe da crise iniciada em 2009. Alis, iniciada pelos prprios Estados Unidos. Mas esse um tema para os especialistas em poltica econmica internacional.

    No dever ser surpresa, portanto, se em futuro prximo for discutida a criao de espaos pblicos entre os estados e que aqueles perpassem estes, a fim de regular e democratizar os mercados, tornando-os distribuidores de riquezas e evitando as cclicas crises do capitalismo que no sustentvel. Em tal sentido, a criao de novas instituies transnacionais mundiais democrticas capazes de regular e controlar com efetividade a atividade econmica e financeira dos mercados dever ajudar a ajustar a padres humanitrios esse grande cassino em que se converteu o atual mercado financeiro.

    As desigualdades em todo o mundo chegaram a propores sem precedentes. Somente vinte por cento da humanidade usufrui das riquezas, enquanto oitenta por cento vive em condies muito precrias.

    Para se alcanar um mnimo de justia social preciso, portanto, que se teorizem e em seguida se apliquem instrumentos de governana transnacional sobre a produo global e sobre o sistema financeiro que j transnacionalizado, sendo este um primeiro passo necessrio para uma redistribuio radical de riqueza e poder. E importante anotar que s a redistribuio da riqueza no seria suficiente. Seria preciso considerar a adoo de novas relaes de classe e propriedade, fora e alm daquelas teorizadas pela modernidade. O local e as relaes de propriedade tm

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    implicaes globais. Redes de interdependncia ligam o local ao global, na linha de raciocnio adotada por Ulrich Beck18.

    18 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. p. 68.

  • CAPTULO II

    O NOVO PARADIGMA DO DIREITO NA PS-MODERNIDADE

    Em funo da emergncia de novos cenrios globalizados e transnacionais e do esgotamento da liberdade, enquanto paradigma do direito da modernidade clara a necessidade de se discutir o estabelecimento de alguns elementos cientficos e tericos sobre a necessidade de se considerar o surgimento de um novo paradigma para o Direito. Na era ps-moderna, provvel que a sustentabilidade se consolide como o novo paradigma indutor do Direito, coabitando com a liberdade, pois, alm da sua vocao para ser aplicado em escala planetria, apresenta destacada flexibilidade e operacionalidade para comportar a dialtica das vrias foras sociais, articulando numa via discursiva harmonizadora os mais diversos valores e interesses legtimos.

    Com base neste objetivo, este captulo, com a ressalva de que a pretenso a de apenas contribuir para o debate, foi elaborado sobre pesquisas destinadas coletar elementos para a discusso de como se podero estabelecer elementos cientficos e tericos sobre a necessidade de se considerar o surgimento de um novo paradigma para o Direito, em funo dos novos cenrios globalizados e transnacionais atuais. cada vez mais claramente perceptvel, atualmente, a crise do paradigma moderno que nasceu com a cincia moderna e determinou o modo de ser e agir do ser humano, nos sculos XIX e XX. Paradigma moderno este que comeou a tomar vulto com o Iluminismo. Antes deste modelo, como consabido, a matriz disciplinar ocidental era a da teologia da Idade Mdia que remetia ao transcendente e metafsica a explicao de tudo.

    A modernidade jurdica, que comeou com as revolues burguesas, teve e tem como paradigma a liberdade em seu sentido polissmico, pois a mesma pode ser entendida de vrias maneiras. Mas, assim como fatores pr-modernos determinaram a superao do feudalismo e do absolutismo, vrios fatores modernos e ps-modernos conjugados esto determinando a consolidao de um novo paradigma para o direito ps-moderno. Importante

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    ressalvar que para o escopo do que se est tratando nesse captulo, a relao entre o paradigma moderno e ps-moderno, a seguir discutidos, no ser como de substituio, mas como de coabitao ou de convivncia, caso prefiram esse segundo termo.

    O novo paradigma que surge coma obsolescncia da modernidade se justifica pela necessidade capital da preservao da vida no planeta. Isso implica, evidentemente, a adoo de um novo paradigma geral para as cincias e, por consequncia, para o direito. Afinal de contas, a liberdade justificou a desigualdade material da modernidade, sendo notria a degradao ambiental produzida pela pobreza e pela misria resultado dessas desigualdades. At a dcada de 60, do sculo passado, alcanar nveis superiores de liberdade era o mximo almejado pelo ocidente capitalista liberal com sua lgica judaico-crist. Dentre os fatores que determinaram a crise da era da liberdade, ou seja, da modernidade, foi o fenecimento do modelo de Estado e de direito pautado pelas fronteiras nacionais. O fim do contraponto socialista e a hegemonizao do capitalismo liberal erodiram sua principal caracterstica, ou seja, a soberania herdada da paz da Westflia.

    A partir da dcada de 80 do sculo passado, o homem deu-se conta, pela primeira vez, que poderia destruir a vida no planeta. Esse fato, junto com o fenmeno da globalizao, acabou por criar uma nova realidade que se convencionou denominar de transnacional. A era moderna entrou em exausto quando seu paradigma, baseado na liberdade, deixou de ser o valor fundamental de orientao ao modo de vida do acidente. Isso como consequncia do surgimento de novos poderes e riscos agora globais.

    A liberdade foi perdendo espao, enquanto paradigma, desde a implantao do Estado Social de Direito, maior legado da disputa capitalismo versus comunismo, protagonizada durante a guerra fria. Mas o auge desse processo de relativizao da liberdade foi o avano da questo ambiental, fermentado pelos novos cenrios transnacionais tpicos da sociedade de risco.

    Dessa forma, passou a ganhar consistncia, alavancado pela preocupao pertinente com a preservao da vida no planeta, um novo paradigma que indica a sobreposio de valores, acompanhando o surgimento de uma nova

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    era, pautada pela explorao sustentada dos recursos naturais. Este movimento deu-se em direo ao que se convencionou chamar de questo vital ambiental.

    Deve-se levar em conta tambm que o cenrio transnacional da atualidade pode ser caracterizado como uma complexa teia de relaes polticas, sociais, econmicas e jurdicas, no qual emergem novos atores, interesses e conflitos, os quais demandam respostas eficazes do Direito. Estas respostas tambm dependem de um novo paradigma do Direito que melhor oriente e harmonize as diversas dimenses implicadas. A partir desse contexto de insuficincia da liberdade, enquanto paradigma do direito moderno para o enfrentamento dos novos riscos globais, o que se prope a anlise da sustentabilidade enquanto novo paradigma indutor do direito na ps-modernidade em coabitao com a liberdade.

    2.1 A liberdade enquanto paradigma do direito na modernidade

    A modernidade foi construda a partir da busca por liberdade. Portanto, lgico que seus vrtices econmicos, sociais e jurdicos acompanhassem essa concepo original, o que foi, registre-se, um grande avano para a humanidade. Naquela poca no se falava sobre preservao do ambiente e, muito menos, sobre os possveis riscos que a destruio do mesmo poderia causar. A revoluo industrial representou o incio da utilizao, em grande escala, dos recursos naturais. Dessa evoluo surgiu o uso do petrleo em larga escala como fonte de energia substitutiva do vapor, o que levou a modernidade a ficar conhecida como a civilizao do petrleo. H que se ter em conta que a exausto dessa matriz energtica, quer seja pela sua finitude mas tambm pelo elevado potencial poluidor, acompanha a crise da prpria modernidade.

    A liberdade, enquanto paradigma do direito moderno ou foi - produto de um conjunto especial de relaes polticas que emergiu na Europa. Aquela liberdade, desejada no ambiente burgus, foi teorizada em forma de

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    liberalismo, num primeiro momento e como liberalismo democrtico num segundo momento e tambm ficou compreendido que aquela liberdade s poderia ser real e permanente caso fosse traduzida em normas jurdicas por intermdio do direito.

    Mais adiante, a liberdade como paradigma do direito moderno, durante sua fase de consolidao, ganhou muitas caracterizaes. Talvez a mais emblemtica seja aquela expressa pelo ingls John Stuart Mill1. Para ele, a liberdade individual deveria ser exaustivamente perseguida e s poderia ser permitida a interveno da sociedade na liberdade de outrem em caso de autoproteo, ou seja, quando houvesse a invaso dos mbitos de liberdade de outrem.

    A liberdade moderna foi uma conquista do liberalismo preocupado, enquanto corrente doutrinria, com a limitao do poder e por via de consequncia com o grau de interferncia dos outros e do Estado na vida das pessoas, como ressalta Celso Lafer2, citando Benjamin Constant, na apresentao da obra de Mill acima citada. A liberdade, enquanto direito diversidade, sustentada por Mill, seria compatvel com o seu critrio de igualdade formal moderna, ou da igualdade dos pontos de partida almejada pela doutrina liberal, com fundamento na capacidade.

    Portanto, onde no houvesse direito diversidade, no haveria liberdade. A liberdade, como paradigma do direito moderno, passou a consistir em no se estar sujeito restrio e violncia por parte de outras pessoas, o que no pode ocorrer quando no h Estado de Direito em sua concepo kantiana, que agrega o democrtico ao termo. A modernidade pode ser compreendida, por este diapaso, como diferenciao racional entre a religio, a poltica, a moral e o direito. Com este ltimo sendo o garantidor dos mbitos de liberdade.

    Importante enfatizar que o liberalismo, e a liberdade como paradigma do direito, como concepo poltico-ideolgica dessa corrente de pensamento que se consolidou a partir das revolues burguesas do sculo XVIII e que ensejou a modernidade jurdica, caracterizaram-se por defender as maiores cotas

    1 MIIL, John Stuart. Sobre a liberdade. pp. 13 a 24.

    2 MIIL, John Stuart. Sobre a liberdade. pp. 13 a 24.

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    possveis de liberdade individual frente ao Estado, que deve procurar ser neutro. Passou-se a postular uma filosofia tolerante da vida como modelo social que conseguisse substituir o antigo regime e cujos contedos se constituram em fundamento jurdico e poltico das constituies democrticas . A criao do Direito Pblico, pelos modernos, a sua maior prova, j que se constitui num grande leque de proteo com relao ao Estado.

    O liberalismo ganhou fora social de modo gradual na medida em que as zonas mais desenvolvidas da Europa Ocidental e suas colnias passaram a orientar suas estratgias econmicas em direo economia de mercado e a necessitar de uma nova concepo do mundo que no criasse obstculos nova realidade socioeconmica emergente. Dito de outra forma, seria a liberdade em seus diversos aspectos. Para isso, o direito e a liberdade como seu paradigma foram fundamentais.

    Por consequncia, com a afirmao das ideias de liberdade burguesas, principalmente durante o sculo XIX, ocorrem mudanas significativas nos valores sociais dominantes at ento. O cidado, e no outra entidade qualquer, passou a ser o centro das atenes. As propriedades privadas, individuais, operavam como um smbolo de prosperidade, com os pobres representando os incapazes, que no conseguiam aproveitar as inmeras oportunidades oferecidas pela livre iniciativa.

    O liberalismo se consolidou como uma filosofia de progresso econmico, social e tcnico, ao propor, essencialmente, uma liberao total das potencialidades dos indivduos, com suas premissas bsicas assentadas na liberdade como paradigma do Direito, como anota Jean Touchard3, e na individualidade, com uma viso positiva e otimista do homem, que era visto como um ser individualmente autnomo, materialista e dotado de razo. Razo essa que lhe permitiria lograr sua meta principal, ou seja, a de ser feliz na medida em que pudesse desenvolver suas capacidades individuais sem obstculos que o intimidassem.

    3 TOUCHARD, Jean. La historia de las ideas politicas. p. 116.

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    Claro que, baseados nestas premissas, os liberais repudiavam qualquer tipo de privilgios e defendiam, em contrapartida, a igualdade para todos os homens livres perante a lei. Liberdade para atuar no mercado capitalista e ser possuidor de bens que garantissem a sua liberdade. Todos seriam formalmente, e no materialmente, iguais porque o homem possui alguns direitos naturais indiscutveis. Cada homem poderia fazer de sua vida privada o que bem entendesse ou pudesse. Inclusive admitindo e estimulando a alienao, por contrato de trabalho, de parte de sua liberdade, em troca de recompensa pecuniria.

    Completo o caminho histrico percorrido pelo direito moderno, ou seja, a mudana dos conceitos aplicados ao exerccio do poder ocorreu a politizao da discusso sobre esse novo poder atravs das teses liberais e a inevitvel criao de um novo direito, denominado direito moderno. Os ordenamentos jurdicos modernos passaram a atuar como instrumento de coero legitimados pelo seu paradigma: a liberdade, e a combater quaisquer tentativas de limitao dessa liberdade. Da que toda produo do Direito, na modernidade, foi orientada pelo paradigma liberdade, o que foi natural pela prpria histria de formao do direito moderno. Os autores liberais contemporneos, pertencentes s correntes mais avanadas do liberalismo, passaram a defender que o objetivo da liberdade o de se alcanar uma autntica igualdade de oportunidades ou chances vitais para cada indivduo, j numa concepo muito prxima do Estado de Bem-Estar visto atravs da lente neoliberal.

    dessa mudana no objetivo do paradigma do direito moderno que comeam a surgir as teses sobre a possibilidade de limitao do exerccio da liberdade em funo de valores novos, como o caso da questo vital ambiental, emblemtica para as discusses nesse sentido e que permite especular a coabitao de valores paradigmticos indutores do direito, principalmente nas ltimas dcadas do sculo XX e nas primeiras dcadas do sculo XXI.

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    2.2 O paradigma do direito na ps-modernidade

    importante, mesmo que em apertada sntese, que se faa um exerccio de caracterizao e conceituao para o que seria um paradigma para o Direito.

    importante observar que as cincias, tanto naturais como sociais, desenvolveram-se historicamente a partir de determinados paradigmas. A expresso paradigma, no possui um conceito unvoco e, no mbito das cincias sociais, como o caso do Direito, tambm sofre influencias ideolgicas e at mesmo socioculturais. A primeira vez que o termo foi utilizado com maior cuidado e rigor cientfico, foi em 1962, por Thomas Kuhn4. Nesta obra Khun defendeu que as revolues cientficas constituem episdios de desenvolvimento no cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo total ou parcialmente substitudo por um novo, incompatvel no todo ou em parte com o anterior. O uso da expresso paradigma surge em substituio ao termo verdade, tendo em vista a grande dificuldade em definir o que pode ser considerado cientificamente como verdadeiro.

    Nesta obra, Kuhn5 caracteriza paradigma como sendo aquilo que os membros de uma comunidade partilham. Reconhece que a cincia um discurso que se legitima pela aceitao do grupo. Quanto ideia de paradigma, defende que este, enquanto modelo compartilhado segue uma matriz composta por: a) generalizaes simblicas; b) crenas em determinados modelos heursticos; e c) valores exemplares.

    Apesar das dificuldades conceituais, no mbito das cincias sociais, a noo de paradigma fundamental, seguindo a linha de raciocnio adotada por Edgar Morin6, quando assinala que essa categoria possui o mrito de se sobrepor ou dominar as teorias. Para Morin, no mbito das cincias sociais, um paradigma deve conter, para todos os discursos realizados em seu mbito, os conceitos fundamentais e as categorias mestras de inteligibilidade, assim como as relaes lgicas existentes entre esses conceitos e categorias. Exatamente

    4 KUHN, Thomas Samuel. A estrutura das revolues cientficas. 78

    5 KUHN, Thomas Samuel. A estrutura das revolues cientficas. 78

    6 MORIN, Edgar. O mtodo 4: as idias. 261.

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    como acontece com a evoluo da cientificizao da questo vital ambiental. Especificamente no campo da Cincia Jurdica, com o Direito como seu objeto, por paradigma deve-se entender o critrio de racionalidade epistemolgica reflexiva que predomina, informa, orienta e direciona a resoluo dos problemas, desafios, conflitos e o prprio funcionamento da sociedade. Trata-se de um referente a ser seguido e que reitora o caminho para a produo e aplicao do Direito.

    2.3 Crise, superao e coabitao de paradigmas

    A crise da liberdade como paradigma do Direito moderno se iniciou com as lutas pelo Estado Social, no final do Sculo XIX e no comeo do Sculo XX. Foram as ideias e as aes socialistas que pressionaram as sociedades europeias a admitir a flexibilizao dos paradigmas do Estado Liberal e do direito moderno. As sociedades ocidentais passaram conferir um evidente equilbrio entre os dois conceitos: Estado de Liberdade e Estado de Igualdade.

    A liberdade passou a ser inconcebvel sem um elevado grau de solidariedade e de igualdade social, e, por outro lado, o progresso social, o combate s desigualdades, o desenvolvimento econmico e a proteo das classes mais desfavorecidas, fundam-se no respeito aos novos valores emergentes, que j apontavam tambm para uma nova dimenso de direitos difusos. Neste momento, observam-se os primeiros movimentos por solidariedade. Porm, a crise da liberdade como paradigma da modernidade se localizou no tratamento contrrio dos valores fundamentais que passaram a duelar a partir da consolidao das concepes socialistas: a liberdade individual e a igualdade social. Foi formada ento uma das maiores dades da sociedade ocidental, com o liberalismo e o socialismo representando suas expresses ideolgicas, que impulsionava e legitimava as mudanas nas concepes de sociedade e de Estado.

    O Estado de Bem-Estar passou a desenvolver aes acompanhadas de uma crescente incluso, nas Constituies, no s de previses de regulao

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    estatal, das relaes contratuais, mas tambm de comandos aos poderes pblicos para que passassem a prover ou financiar uma srie de prestaes de servios, em geral pblicos e gratuitos, aos cidados. Os esforos para garantir a igualdade de oportunidades e certa distribuio de renda, derivada de algumas aes do prprio Estado, completaram esta nova dimenso do Direito que este modelo ideolgico de Estado passou a representar, criando uma facilmente identificvel eroso na condio da liberdade moderna como seu paradigma.

    A mundializao e a progressiva interdependncia das relaes esto configurando, de fato, a formao de um novo mbito de interesse geral, que se situa em fronteiras transnacionais e que, agora, comeam a se concretizar de maneira muito intensa na defesa dos direitos humanos. S ser vivel a universalidade dos direitos humanos a partir da superao dos limites estatais modernos da Democracia.

    Caso se queira estar apto a uma nova compreenso do Direito, a qual possa fornecer uma resposta ao novo conjunto de demandas ligadas aos novos cenrios transnacionais, preciso superar a construo terica da modernidade liberal, apesar de se saber que o perodo que vir conviver com o atual. O Direito que adviria de um ambiente poltico-jurdico transnacional seria forjado, muito provavelmente, com base em princpios de incluso social e proteo ao meio ambiente. A sustentabilidade e a solidariedade passariam a ser dois dos principais itens do debate jurdico.

    A constatao de que a preservao e recuperao do ambiente e sua utilizao racional, o que geraria a necessria sustentabilidade, sugere a reinveno da tenso entre Direito e liberalismo capitalista. Isso para que uma nova concepo de Direito possa contribuir para que o mundo seja cada vez menos confortvel para o capitalismo predatrio e que um dia se possa ter uma alternativa ou, ao menos, um capitalismo sustentvel. Boaventura de Sousa Santos chega a dizer que se tivesse hoje em dia que definir o socialismo seria a sustentabilidade no seu conceito mais amplo.

    Sabe-se perfeitamente das assimetrias existentes entre as regies do nosso planeta e entre os pases que as formam. Isso indica a necessidade de

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    coabitao entre o paradigma moderno e o ps-moderno do Direito, entre a busca por mbitos cada vez mais amplos de liberdade e a limitao desta mesma liberdade em funo de se promover a sustentabilidade. , mutatis mutandis, o que chamamos de republicanizao da globalizao, com uma efetiva busca pela distribuio da riqueza e reequilbrio ambiental. O grande desafio do ser humano ser provar que conseguir evoluir do individualismo liberal, passando pelas experincias de igualdade relativa dos estados de bem estar e alcanar sustentabilidade em suas trs dimenses. Provar que no um elemento estranho e inadaptvel ao planeta Terra, mas que pode no s conviver em harmonia como melhorar as condies gerais de vida.

    2.4 A sustentabilidade enquanto novo paradigma indutor do direito

    A proteo do meio ambiente uma pauta axiolgica reconhecida e valorizada em escala global. Hoje no mais um desafio exclusivo para a Cincia Jurdica, a