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  • A VIOLNCIA SIMBLICA NA ESTTICA DE GODARD EM VIVER A VIDA

    Eduardo Portanova Barros

    Resumo: Este trabalho procura observar caractersticas da

    violncia simblica no imaginrio do cineasta franco-suo Jean-

    Luc Godard um autor emblemtico do cinema contemporneo -

    manifestada na esttica de Viver a vida (1962). Imaginrio o

    equilbrio entre pulses subjetivas e coeres objetivas; esttica

    o resultado dessa partilha de emoes (Maffesoli) em que somos

    tambm o outro; e smbolo uma relao natural e no arbitrada

    racionalmente entre pessoa e coisa. No cinema, essas trs noes

    ajudariam a dar os contornos de um gesto da criao (Coelho).

    Palavras-chave: Cinema 1. Imaginrio 2. Esttica 3.

    1. Introduo

    Godard inimitvel. Em 1962, trs anos aps o seu filme de estria, Acossado

    (1959), o diretor franco-suo apresenta Nan (opta-se, aqui, pela grafia em portugus,

    com acento), protagonista do trgico Viver a vida.1 Nem otimista, nem pessimista e,

    tampouco, catastrfico -, o filme um painel do imaginrio do cineasta. Representa, por

    meio da protagonista, um universo de situaes objetivas e subjetivas com a marca

    autoral de Godard. Esse universo mostrado atravs do desejo de Nan em, ao mesmo

    tempo, querer trabalhar no cinema e ser indiferente a esse sonho, o que cria um abismo

    para ela. Godard se vale dessa ambivalncia, prpria de um imaginrio pessoal e

    coletivo (um no existe sem o outro), para justificar a trama.

    bom deixar claro, antes, de que imaginrio se fala. No se trata de v-lo como

    sinnimo de ilusrio ou fantasioso, mas sim como as relaes de imagens entre o que

    pensamos, sentimos e nem sabemos que sentimos e pensamos (algo inerente a uma

    subjetividade) e o que fazemos (prprio de uma concretude, de um ato, de uma

    atitude racional). Imaginrio , antes, uma fora emocional que no se desliga de uma

    tendncia racionalizadora, e vice-versa.

    1 Viver a vida, cujo ttulo original em francs Vivre sa vie, recebeu os prmios do Jri e da Crtica no Festival de Veneza, em 1962, e dedicado aos filmes de Srie B.

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  • Em outras palavras, o imaginrio conjunto de imagens e relaes de imagens produzidas pelo homem a partir, de um lado, de formas tanto quanto possveis universais e invariantes e que derivam de sua insero fsica, comportamental, no mundo e, de outro, de formas geradas em contextos particulares historicamente determinveis. Esses dois eixos no correm paralelos mas convergem para um ponto em comum onde se d a articulao entre um e outro e a mtua determinao de um pelo outro (COELHO, 1997, p. 213).

    O imaginrio como que uma dinmica da criao, conforme Gaston Bachelard.

    Um cineasta como Godard capaz de sonhar um mundo e tambm capaz de viver nele

    tal como o sonhou, fazendo uma analogia com uma idia ainda de Bachelard. No caso

    dele, Godard, o trabalho artstico no se transforma em uma redundncia pobre do

    potencial de criao que inerente a todos ns. Nesse caso, uma obra de arte no se

    separa do sujeito (prefiro falar em pessoa, por ter relao com os diferentes papis que

    ela representa na sociedade e aproxim-la, portanto, etimologicamente de persona, ou

    mscara, conforme Michel Maffesoli). Superar tal dicotomia significa enfatizar muito

    mais o que une do que o que separa, afirma Barros (2002, p. 14). Na opinio de Gilbert

    Durand, com Jung e Bachelard o estatuto do imaginrio se estabelece firmemente na

    reflexo contempornea e a imaginao retoma um lugar central, mediador entre os

    estados de pensamento objetivos (1995, p. 38).

    Imaginrio, assim, conforme um dos principais estudiosos do assunto, o

    conector obrigatrio pelo qual forma-se qualquer representao humana (DURAND,

    1998, p. 41). Por causa dessa fuso entre arte e criao que o imaginrio to

    importante. Bachelard ensina: O devaneio que trabalha poeticamente nos mantm num

    espao de intimidade que no se detm em nenhuma fronteira, espao que une a

    intimidade de nosso ser que sonha intimidade dos seres que sonhamos (1988, p.

    156). Ora, conforme Durand, o imaginrio no exclui a sensibilidade e o sentimento,

    como pretendeu o modelo cartesiano. O cartesianismo assegura o triunfo do signo

    sobre o smbolo. A imaginao, como alis a sensao, refutada por todos os

    cartesianos como a mestra do erro (DURAND, 2000, p. 21).

    o poder potico do smbolo entendido aqui como uma relao natural e no

    arbitrada racionalmente entre pessoa e coisa que define a criao. Isso bom deixar

    bem claro. Para Durand, o smbolo no convencionado como para Charles Peirce, cuja

    semitica o apresenta como um tipo de signo sem aquela relao natural com a coisa

    (ou a representao de um objeto). Se um homem cria novo smbolo, ele o faz por via

    de pensamentos que envolvem conceito, afirma Peirce (1993, p. 130). Ele diz que o

    smbolo aplicvel a tudo aquilo que possa concretizar a idia relacionada com a

    2

  • palavra (1993, p. 129). Durand pensa de outro modo. [...] entendido como o conjunto

    das imagens no-gratuitas e das relaes de imagem que constituem o capital

    inconsciente e o capital pensado do ser humano (COELHO, 1997, p. 12).

    Por imagens no-gratuitas Durand entendia imagens que no so signos (conveno arbitrria que faz a ponte entre um objeto e o significado a ele atribudo, como na concepo de Saussure) mas que, pelo contrrio, de algum modo contm materialmente seu sentido (idem).

    O ser humano experimenta, portanto, uma constante necessidade de equilbrio

    entre as imposies do meio social e a sua prpria subjetividade de natureza simblico-

    antropolgica. Assim, abre-se um espao de criao infinito do qual Godard se inspira e

    a respeito do qual talvez ele mesmo no tenha conhecimento, mas intui: Tenho idias

    demais, e tambm acho que os outros no as tm menos, s que no as mostram o

    bastante (1989, p. 42). Godard ratifica a necessidade do mistrio: Je trouve que les

    gens ne devraient prendre une camra que pour voir quelque chose quils nont jamais

    vu (2004, p. 22)2. Viver a vida aponta para o mistrio da existncia. At podemos sair

    de casa com o dia programado, mas no passamos por esse dia exatamente como o

    programamos. Podemos at visualizar o que estamos por fazer, mas a dinmica daquilo

    que se apresenta jamais da ordem de uma certeza.

    isso o que Godard nos parece dizer nesse filme ao acompanharmos o cotidiano

    de uma mulher antes banal do que fatal. Nan uma pessoa, com toda a riqueza que

    Maffesoli atribui a esse termo em contraposio saturao do sujeito. Pessoa que vive,

    nem sempre de forma herica, como quer Godard. De acordo com Bachelard, como se

    viu, o imaginrio confunde-se com o dinamismo criador, ou seja, a amplificao potica

    de cada imagem concreta (apud DURAND, op.cit, p. 64). O simblico sensvel. Uma

    sensibilidade construda por meio das escolhas de Godard. O cinema o campo

    experimental mais concreto da violncia simblica. Cria, com isso, uma linguagem nica

    porque plural, e essa pluralidade que faz do imaginrio um solo frtil para a

    imaginao. Imaginrio e imaginao no so a mesma coisa.

    O imaginrio a reunio de todo o patrimnio gerado pela imaginao. Entramos

    no reino da aporia, o que habilita Durand a dizer que "o smbolo a epifania de um

    mistrio" (2000, p. 9). Mistrio que Godard aponta, justamente, pelo vis de uma

    imaginao potica que vai ao fundo das aparncias de situaes cotidianas por meio de

    um exerccio da narrativa. por meio da imagem, ao mesmo tempo icnica e simblica,

    que Godard se apresenta ao mundo, e, para isso, tem de (des)orden-la. Se bem ou mal

    2 Eu acho que as pessoas s deveriam utilizar uma cmera para mostrar algo que nunca viram. (Traduo nossa.)

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  • no vem ao caso, pois a verdade, no caso dele, relativa. como na vida, no existem

    regras. De preferncia, fiz filmes como dois ou trs msicos de jazz: a gente escolhe

    um tema, toca e depois a coisa se organiza (GODARD, 1989, p. 34). O imaginrio no

    cabe em um esquema psquico racional. Para Bachelard, toda realidade idealizada. De

    uma imagem isolada pode nascer um universo (BACHELARD, 1988, p. 167).

    2. A fora do simbolismo

    Como ocorre um imaginrio que da ordem de um simbolismo - no sentido que

    Durand e no Peirce d ao termo - na esttica de Godard? Esttica, aqui, alm da forma,

    tambm pode ser entendida no sentido de uma manifestao do imaginrio. No se trata

    de decupar, visualmente, movimentos de cmera, mas sim de, por meio deles, observar

    uma certa aura do filme. Se no fosse assim, estaramos sendo incoerentes com a

    natureza plural do imaginrio. [...] a intuio, o sensvel e a experincia salientam

    principalmente o aspecto esttico da existncia comum (MAFFESOLI, 1997, p. 147). O

    que Maffesoli quer dizer que s nos reconhecemos em relao ao outro, a mais

    algum, ao coletivo. Para ele, a esttica estabelece uma estratgia particular: controla-

    se menos o mundo que no se goza, e esse gozo nada tem de individualista; , por

    definio, partilhado (1997, p. 148). A partilha de Godard a viso que ele tem do

    mundo. Se boa ou m, se vendvel ou no em termos comerciais, no interessa. O

    importante a expresso dele como artista e a necessidade que todo artista tem de se

    expor.

    [...] na ordem da esttica, s posso vivenciar com outros. Mas enquanto a relao funcional sempre direcionada, logo identificvel e analisvel como tal, a emoo comum esgota-se no ato, basta-se a si mesma; da o seu aspecto imprevisvel, polissmico e, particularmente, inapreensvel (MAFFESOLI, 1997, p. 148).

    Estudar o simblico no cinema ir alm e aqum da imagem icnica de um filme,

    ou seja, ir alm e aqum daquilo que nossos olhos vem com o sentido da viso, e no

    com o sentido da alma. Essa prpria de uma imaginao simblica, conforme Durand.

    Denegamos a morte simbolicamente por ser a imagem mais violenta da vida. Vivemos

    em sentido figurado. Vivemos, todos os dias, no cinema da vida e da morte. Cinema o

    imaginrio concreto. Ou melhor, uma viso ordenada das imagens. (Os cineastas sempre

    querem pr ordem na vida, mesmo que essa ordem parea, na tela, desordenada.) O

    smbolo o poder equilibrante por excelncia: lastreia a libido com um sentido e carrega

    a conscincia com uma energia que lhe permite um constante salto para a frente,

    figurativo (DURAND, 1995, p. 37). O simbolismo de Godard elptico. Para ele, a

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  • linearidade circular e o crculo linear. O tempo reversvel. A imagem uma

    lembrana figurativa, assim como o vero, para Bachelard, era a estao do ramalhete.

    atravs do poder de repetio que o smbolo preenche indefinidamente a sua inadequao fundamental. Mas esta repetio no tautolgica: aperfeioante atravs da acumulao de aproximaes. comparvel nisso a uma espiral, ou melhor, a um solenide, que em cada volta define cada vez mais o seu objetivo, o seu centro (DURAND, 2000, p. 13).

    Imagem, aqui, nos remete ao sentido bachelardiano do termo: [...] princpio de

    excitao direta do devir psquico (1988, p. 8). Todo simbolismo, inclusive o da

    violncia, temtica que se sobressai em Godard, no uma idia antes do que um ato?

    Mas, nem por isso, deixa de ser menos penetrante ou contundente. Godard chama a

    ateno, portanto, para a intimidade (como quer Bachelard) das coisas. E essa

    intimidade da ordem do imaginrio. algo que flui, incessantemente, pelo nosso

    psiquismo. A intimidade - idia prpria daquilo que domstico, caseiro - caracteriza

    Godard. No falo nem das experincias concretas com filmes autobiogrficos ao estilo de

    JLG por JLG (1995) e de Histoire(s) du cinma (2001), e sim de um sentimento do que

    lhe caro e do que lhe diz respeito. O filme, para ele, como uma opo moral, e com

    ela no se brinca. Podemos remeter essa postura ao ideal da Poltica dos Autores,

    encabeada por Franois Truffaut, que a de filmar na primeira pessoa, de novo aquilo

    que nos ntimo e que somos intimados, por necessidade, a fazer.

    No ser cineasta violentaria um homem como Godard. H vrias formas de

    violncia, e disso que iremos tratar agora, comeando por Maffesoli. Ele ensina que a

    violncia sanguinria se manifesta quando h impossibilidade de simbolizao, ou

    quando esta imperfeita, e significa o retorno do reprimido (2001, p. 39). Vemos,

    portanto, conforme esse tipo de sensibilidade, que a violncia no se restringe,

    puramente, a uma atitude explcita de, por exemplo, luta corporal. Violncia pode ser

    uma vontade insatisfeita. Violncia, para Godard, seria fazer exatamente igual como se

    ele pudesse - ao que cineastas de gnero (distinguindo-os de autorais) fazem. Godard se

    transformou em cineasta modelo do no-modelo. Isto , por no ocupar espao do

    circuito tradicional de exibies, restringindo-se aos festivais e s mostras de cinema

    alternativo, o diretor franco-suo ratifica o perfil de marginal ( margem de...). Creio,

    porm, que esse aspecto de sua trajetria nada tem a ver com algo orquestrado por

    ele mesmo. conseqncia, eu diria, de um modelo de mercado que se abastece de

    rtulos.

    Um ensasta colombiano, Luis Carlos Restrepo, identifica na sociedade

    contempornea o que chama de violncia sem sangue. esse o ponto que iremos

    analisar antes de nos determos no filme de Godard, propriamente dito. A expresso de

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  • Restrepo destaca o fato de a violncia ser uma ao que procura impedir a expresso da

    singularidade. Assim, no s a violncia explcita (a violncia com sangue, j que a

    violncia mental no menos explcita do que aquela) merece importncia, mas todas

    as situaes cotidianas em que tentamos fazer com que prevaleam nossas idias ou

    atitudes. O leque se amplia. Todas as formas de violncia tm em comum sua

    intolerncia diante da diferena (RESTREPO, 1998, p. 64). Para Restrepo, em alguns

    casos se eliminar fisicamente o diferente com uma arma de fogo; em outros, ser com

    um gesto, uma atitude ou uma manipulao ideolgica (idem). Nisso, a obra de Godard

    singular, como veremos em Viver a vida, cujo ponto fulcral o da violncia simblica.

    Uma violncia sem sangue. Godard est para a violncia simblica assim como Tarantino

    est para a violncia fsica em Ces de aluguel (1991).

    Voltando a Restrepo, o psicanalista observa que vivemos to atulhados de

    imagens identificadas com episdios de sangue que esquecemos a presena das

    violncias sem sangue, prprias da vivncia na intimidade (1998, p. 66). O ponto nodal

    da violncia, no entender de Restrepo, a singularidade humana e a dificuldade que

    temos em lidar com as diferenas. Essa dificuldade ir se manifestar de vrias formas,

    pela idia que temos adversrios e que tais adversrios devam ser eliminados

    fisicamente, gestualmente, ou, ainda, por uma determinada atitude ou manipulao

    psicolgica. Se a violncia for explcita, reconhecemos uma inteno consciente por parte

    do agressor. Se for implcita, segundo Restrepo, nem sempre possvel ver at que

    ponto uma intencionalidade malvola. Como na lgica dos samurais dos filmes de

    Kurosawa. Um verdadeiro samurai antes se defende do que ataca. S age se,

    explicitamente, houver uma inteno perversa, como vimos acima, por parte do

    agressor.

    Em Viver a vida, um dos recursos flmicos utilizados para salientar essa violncia

    simblica (sem sangue) a sonoplastia, ora silenciosa, ora marcada por violinos, ora

    pelo som ambiental da cidade de Paris. Nan, sempre que contrariada, cala. Tambm

    no gosta de falar muito, a menos que queira compreender o significado da vida que ela

    leva, como na conversa com o Filsofo, em um bar, ou pedir dinheiro emprestado para

    Paul, com quem, subentende-se, tem um filho. um filme em que o no-dito to

    importante quanto o que se diz. Nan parece ter sido violentada a cada cena. Sua

    expresso facial a de quem sofre silenciosamente, o que no a impede de querer ou de

    sonhar.

    Poderamos, aqui, fazer uma analogia ao trabalho de Godard. Cineasta

    controverso, Godard fez parte do grupo denominado por jornalistas como Nouvelle

    Vague. Para esses diretores, os artifcios tcnicos eram criados medida que se fazia o

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  • filme. Havia um senso agudo da necessidade de improvisao para dar um certo

    resultado esttico, no sentido de escolha ou recusa de determinados elementos formais,

    ao filme. Em uma das ltimas cenas de Viver a vida, Godard, pass(e)ando de carro,

    filma pessoas que se aglomeram em uma calada sob o cartaz de Jules e Jim, longa-

    metragem, tambm de 1962, do ento amigo Franois Truffaut. Mais tarde, tomariam

    rumos opostos e, conforme diversos relatos, brigariam publicamente, o que no vem ao

    caso aprofundar.

    Esse travelling foi uma homenagem a Truffaut? Talvez, mas o que importa, aqui,

    perceber nessa atitude um cinema do cotidiano. Incluir pessoas comuns no filme no

    era sensato, de acordo com a esttica daquela poca. No esqueamos que Godard e

    Truffaut, entre outros, antes de se tornarem diretores eram crticos de cinema,

    teorizando sobre um jeito de faz-lo diferente do estilo acadmico, que priorizava,

    principalmente, as adaptaes literrias feitas em estdios. O contraponto desse cinema,

    o da Qualidade, representado por cineastas como Julien Duvivier e roteiristas como Jean

    Aurenche, era o que se convencionou chamar de uma Poltica dos Autores. A Poltica dos

    Autores defendeu diretores considerados marginais ou desprezados. assim que Godard

    se sente? O exemplo clssico o de Alfred Hitchcock, s respeitado depois que Truffaut

    o entrevistou e que resultou em um livro no qual o diretor ingls revela seus segredos

    de fabricao. Um respeito mtuo os aproximou. Truffaut e Hitchcock tinham em

    comum o fato de que suas convices (ou personalidades) fossem uma espcie de

    matria-prima do filme. Para Godard, tambm era assim. E tantos outros... Essa forma

    como que umbilical na criao foi que justificou a expresso autoria cinematogrfica.

    Sob esse prima, pois, Nan Godard que Nan. Vejamos como.

    3. As imagens de Godard

    O parattico (dividido em 12 blocos ou atos3) Viver a vida mostra (e no

    demonstra, o que daria um sentido dialeticamente fechado) uma histria trgica, no

    sentido maffesoliano da expresso. O trgico, para ele, no apresenta solues prontas

    da mesma forma que o drama. Para Maffesoli, o trgico integra a morte. o que

    acontece com a personagem Nan, de 22 anos de idade, nascida em Flexburg, uma

    cidade do interior da Frana. Busca no um significado para a sua existncia, mas um

    caminho, o mesmo que a levou para a capital, Paris, e mesmo que no a leve para lugar

    3 Os 12 atos so os seguintes: 1. Um caf. Nan quer deixar Paul. Um balco; 2. A loja de discos. Dois mil francos. Nan segue sua vida; 3. A zeladora. Paul. A Paixo de Joana DArc. Um jornalista; 4. A polcia. Interrogatrio de Nan; 5. A alameda. O primeiro homem. O quarto; 6. Encontro com Yvette. Um caf do subrbio. Raoul. Tiros na rua; 7. A carta. Ainda Raoul. Champs Elyses; 8. Tardes. Dinheiro. Antros. O prazer. Hotis; 9. Um homem jovem. Luigi. Nan questiona se est feliz; 10. A calada. Um cara. A felicidade no

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  • algum em termos de futuro. Mais do que uma leitura dramtica, Godard apresenta, com

    esse filme, uma lgica de sentido que nos remete noo do trgico que Michel

    Maffesoli foi recuperar na obra de Nietzsche. "A tragdia no procura, no espera

    solues" (MAFFESOLI, 2004, p. 28). E, segundo Maffesoli, no tem (re)soluo. De

    acordo com ele, na concepo trgica, no se procura uma eternidade, mas sim o

    presente e o gozo4. Nan vive o presente (atitude que Maffesoli ir chamar de

    presentesta).

    [...] repousa na tenso de elementos heterogneos. [...] esse drama conduz sntese, ao passo que o trgico, para utilizar um neologismo simultaneamente utilizado por Stphane Lupasco e Gilbert Durand, repousa, essencialmente, no contraditorial (MAFFESOLI, 2004, p. 23).

    Nietzsche a traduo de uma filosofia do cotidiano que desconfia do

    individualismo moderno. Foi nele que Maffesoli se inspirou para teorizar sobre a

    emergncia da pessoa e da tribo, sobre o no-racional (paixo, emoo e afeto), que

    diferente do irracional, e, finalmente, sobre a concepo trgica da existncia. Aqui,

    bom abrir parnteses. Esse usufruir o aqui e agora pode ter um contorno festivo, o de

    levar ao limite o prazer por no se ter nada mais que o substitua. Nan tambm, em um

    determinado momento do filme, dana em torno de uma mesa de bilhar, e bastante.

    No so somente, como poder talvez parecer, imagens agradveis e deliciosas o que o artista descobre dentro de si e estuda com absoluta nitidez: tambm o severo, o sombrio, o triste, o sinistro, os obstculos sbitos, as contrariedades do acaso, as expectativas angustiantes, numa palavra, a divina comdia da vida, com o seu inferno, tudo isso se desenvolve aos olhos seus (NIETZSCHE, 2002, p. 41).

    Godard apresenta todos os aspectos que Nietzsche menciona acima e deixa que o

    espectador preencha os claros e os vazios sugeridos no s nesse filme, mas na maioria

    dos que ele dirigiu. Essa a marca (ou o sentido de autoria, palavra que, na

    contemporaneidade, merece novas abordagens) do diretor de Acossado. O cinema dele

    estimula sinapses. Em Viver a vida, o espectador poder, tambm, reivindicar uma certa

    autoria, pelo fato de uma obra no existir sozinha, a no ser na relao que se

    estabelece entre o que foi impresso e o que foi sentido. O sentido nico e coletivo. O

    engraada; 11. Place du Chtelet. Um desconhecido. Nan faz filosofia sem saber; 12. Ainda o jovem. O retrato oval. Raoul negocia Nan. 4 Seminrio Sociologia compreensiva, razo sensvel e conhecimento comum, de 8 a 11 de maio de 2006, na Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre (RS).

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  • eu o outro, j dizia Rimbaud. O que encanta Godard imprimir uma expresso ou

    exprimir uma impresso.

    O que me chama ateno quando vejo meus filmes antigos como dois movimentos distintos, o que se pode chamar de expresso, que consiste em pr para fora alguma coisa, e depois, ao contrrio, a impresso, que consiste em pr para dentro alguma coisa (GODARD, 1989, p. 53).

    Nan ao mesmo tempo expresso e impresso de Godard, que (tanto ele

    quanto ela) procura "a harmonia possvel dentro de uma multiplicidade inevitvel"

    (COELHO, 1995, p. 112). No h caracterstica mais trgica do que essa. Sem muito

    dinheiro, prostitui-se para t-lo e poder abdicar do emprego de vendedora em uma loja

    de discos. Sonha em ser atriz e trabalhar, como Godard, no cinema. Nan parece no ter

    motivos para ser feliz, mas tampouco parece ser catastrofista. A (in)felicidade, alis, a

    temtica godardiana por excelncia, que, ampliada ao cubo pela utopia da comunicao,

    transforma a protagonista em uma espectadora diante da histria. Ns somos os

    espectadores de uma expectativa construda a cada cena. H muitas sutilezas na

    encenao do filme. Uma delas a do rosto de Nan, no primeiro ato, que s visto

    refletido em um espelho. Godard parece comunicar-se de maneira escpica e especular.

    A vida um jogo e a identidade, antes homognea, agora multifacetada. Stuart

    Hall fala em descentramento do sujeito, e pergunta: " possvel, de algum modo, em

    termos globais, ter-se um sentimento de identidade coerente e integral?" (1999, p. 84).

    Sensvel a esse dilema, Godard move sua protagonista ao ritmo da vida, e a vida, todos

    sabemos, complexa. O complexo, nesse caso, admite o contraditorial. O complexo

    palavra-problema, ensina Morin. No palavra-soluo. problema para uma lgica da

    linearidade cara ao cartesianismo reducionista que cr no indivduo apenas

    racionalmente. A ao, por parte de Nan, o aqui e agora. Do futuro, ela pouco espera.

    S resta Viver a vida. Vida sobre a qual no se tem domnio, ou no se tem o domnio

    que imaginvamos ter dela. Vida que flerta com o acaso e o impondervel. Vida cuja

    contradio vivida. Vida cuja linha circular. Vida no mais envergonhada dos

    sentimentos. Vida para alm de uma racionalidade do tipo produtivista como principal

    valor. Vida sedutora. Vida amarrada ao presente. Presentesmo maffesoliano. Vida

    breve, intensa. Um instante que parece eterno. Uma eternidade que parece nica.

    O trgico como violncia simblica na esttica do filme (incluindo o sentido de

    aura dessa esttica, vista como afeto e sentimento, no s como o que observado e

    feito tecnicamente) se apresenta em trs circunstncias: o cotidiano presentesta, os

    jogos de identidade e o instante eterno (um concreto mais extremo, conforme

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  • Nietzsche). No primeiro ato do filme, j possvel identificar essas trs situaes,

    comeando pelo close (de perfil e frontal) de Nan, na contra-luz. A seriedade de Nan

    vazia. Com essas primeiras cenas, Godard d o tom e o tema do filme. a tragdia de

    uma jovem francesa em Paris. J no bar, em companhia de Paul, Nan diz que am-lo

    cansativo: Estou sempre tendo de implorar. Eu tambm existo. O casamento, para ela,

    se transforma em uma priso. As palavras passam a no ter sentido. Achava que era

    importante falar com voc. No acho mais. Quanto mais nos falamos menos as palavras

    significam, afirma Nan. Ela acha que se conseguir alguma coisa da vida no ser

    atravs dele, Paul.

    Nan espera que algum a descubra um dia, mesma esperana de Godard:

    Talvez eu entre para o cinema. O sonho do cineasta, nesse caso, se imbrica com o da

    personagem, corroborando a viagem dele por seu prprio imaginrio, um imaginrio

    que, para Godard, no aceita regras. Nan tambm rebelde e tampouco aceita

    imposies como a do matrimnio. A identidade de dona-de-casa, mulher, me e

    amante do marido no a satisfaz mais. Casar a vitria de um pensamento burgus,

    cuja mentalidade no diz mais respeito ao esprito de nomadismo outra faceta da

    tragdia que Nan pretende experimentar. Ao experimentar como viver o cotidiano

    sem a segurana de um lar, apesar do sonho de ser algum no cinema, no mais faz

    sentido moral crist de uma vida melhor. O melhor j.

    Outra maneira de Godard expressar o sentido trgico da existncia na citao,

    ainda no primeiro ato do filme, que atribui a uma menina de oito anos de idade ao

    descrever seu animal preferido em uma tarefa na escola. Um pssaro um animal com

    interior e exterior. Tire o exterior e fica o interior. Tire o interior e voc v a alma. A

    alma remete ao mistrio da existncia. Ningum sabe, exatamente, como ela , mas

    sabemos o que significa. Alma tem a ver com um sentimento e o sentimento no

    palpvel. o mesmo que termos a conscincia de um corpo que pensa. Ou seja, o corpo

    algo material, grosseiro; o pensamento fruto de uma subjetividade. A mesma

    subjetividade com que Joana DArc, em outra cena do filme, recebe a notcia de que ir

    ser morta. Que morte?, pergunta ela? Na fogueira, responde o padre, que ainda a

    interroga. Como voc pode acreditar que foi enviada por Deus?. Joana DArc: Deus

    sabe aonde ele nos leva. Ns s compreendemos o caminho ao fim da jornada. Sim, eu

    sou a filha Dele. Ento, o padre pergunta qual era a grande vitria de Joana DArc. Ela

    diz: Meu martrio. O Padre: E a libertao?. A morte, responde Joana DArc. Morte

    trgica, como a de Joana DArc na fogueira ou a de Nan nas pequenas circunstncias

    do cotidiano.

    10

  • 4. Consideraes finais

    Dirigir direcionar, da a noo que certos cineastas como Andrei Tarkowski tm

    do diretor como um filtro de elementos variados em um filme. No se trata de rotular

    Godard como sendo ou no autoral ao filtrar suas escolhas. A noo de autoria, nesse

    caso, s serve para reforar a idia de que Godard tem uma relao ntima e sagrada

    com o seu material flmico, cujo resultado no planejado com antecedncia para atingir

    um determinado efeito. No se trata, no caso de Godard, de optar por desenvolver uma

    histria seguindo os passos precisos de um programa de software, mas antes de

    observar como e para onde se dirige uma sensibilidade. A sensibilidade de Godard vem

    do lado dele por ter aperfeioado um gosto, a resposta mais prxima de um sentimento.

    Godard um cineasta maduro.

    O elemento trgico em Godard e em Nan pontuado neste trabalho tem relao

    com o fazer que no se dissocia de um ser interior. Para diretores como Godard, no

    seria possvel fazer cinema de um jeito que no seja o dele. Com Kurosawa era a mesma

    coisa, para o qual a raiz de qualquer projeto cinematogrfico tinha necessidade de

    expressar algo. Em Fellini, as dificuldades de levar adiante um filme nasciam de um

    obstculo de fundo ou de um testemunho sobre si mesmo. Pasolini amou o cinema por

    ser, para ele, uma experincia interior e fsica. Truffaut queria dobrar a mquina

    conforme seu desejo. So todos diretores que no se separavam, racionalmente, do seu

    trabalho. Tinham contato com uma invarincia universal que os unia pelo desejo de,

    individualmente, se projetarem para alm do racionalismo cartesiano.

    Exclusivo no mais significa excluso, e o artista, por isso mesmo, sofre e se

    regozija por estar preso ao seu dom. Godard, para Teixeira Coelho, o poeta da

    imagem que nos pergunta se quando vemos nossa prpria foto no nos consideramos

    uma fico, o poeta que enfrenta a colonizao da imagem, do olhar (2003, p. 94). Se

    por um lado o artista Godard sente a urgncia de expressar-se, por outro ir se deparar

    com uma srie de problemas de ordem material que podem entravar sua liberdade.

    desse equilbrio que ele trata em Viver a vida, um filme que, por isso mesmo, jamais

    ser datado. Godard uma personalidade que se expressa por meio da cmera. um

    autor emblemtico na contemporaneidade por ainda filmar e ter influenciado, nos anos

    60, uma nova gerao de cineastas no s na Frana como tambm em outros pases,

    inclusive no Brasil.

    Para Godard, o cinema, como ele prprio diz por meio do Filsofo, uma

    ressurreio em relao vida. No mesmo dilogo com Nan, o Filsofo afirma que o

    ser humano oscila entre o silncio e a palavra, porque esse o movimento da vida (do

    imaginrio, poderamos dizer). Godard procura no cinema a palavra certa. Godard ama o

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  • cinema para procurar o amor nele mesmo. Godard faz do cinema um exerccio de

    narrativa que extrapola a questo de uma forma concreta, visualmente falando. Godard

    intervm na imagem icnica de uma maneira apaixonada ou pulsional (sem querer

    entrar em uma anlise demasiado freudiano-psicanaltica). Godard faz da imagem (tanto

    visual quanto imaginal) uma particularidade universalista atravs de sua prpria

    histria, de seu prprio conhecimento do mundo e de suas prprias mundivises.

    [...] seria preciso que o amor fosse sempre verdadeiro. Eu digo: eu amo isso. Mas para ser completo com o que se ama preciso maturidade. preciso procur-la. Essa a verdade da vida. Por isso, o amor uma soluo, desde que seja verdadeiro (o Filsofo/Godard, em Viver a vida).

    A seguinte indagao de Bachelard sintetiza o imaginrio de Godard: Como pode

    o homem, apesar da vida, tornar-se poeta? (1988, p. 10). O imaginrio real e o real

    imaginrio. A reversibilidade do imaginrio constante e permanente. O homem produz

    o imaginrio que o produz. Existe como que um deslizamento entre a subjetividade e a

    objetividade da e na pessoa. Diferentemente de ideologia, que tem um cunho

    racionalizante, imaginrio antes um exerccio do afeto. Assim, este trabalho procurou

    dar um contorno de certas imagens (no sentido simblico da linhagem de Bachelard,

    Durand e Maffesoli) em um filme especfico, Viver a vida, de Godard. A escolha tem

    relao com o momento emblemtico do cinema mundial ao valorizar no realizador

    cinematogrfico uma expresso tanto individual quanto coletiva, o que parece se

    sobressair como a principal caracterstica de Godard.

    Referncias

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