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    DOSSI

    150 anos doManifesto Comunista

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    O Manifesto doPartido Comunista:um documento datado eno datado*

    Jacob Gorender**

    Resumo:

    Este artigo situa historicamente o Manifesto do Partido Comunista, de Marx eEngels, apresentando as condies em que surgiu e o que significou nomomento em que foi redigido e publicado. O artigo tambm discute arelevncia do Manifesto frente s mudanas do capitalismo contemporneo.

    Fico muito honrado em estar aqui fazendo esta conferncia. Alm deoutros motivos, acredito que seja a primeira pelo menos neste recinto,na PUC, talvez mesmo em So Paulo a respeito do sesquicentenrio doManifesto do Partido Comunista. Este o ttulo exato do documento,conhecido tambm, simplesmente, como Manifesto Comunista.

    J foi dito aqui, pelo professor Lcio Flvio, que no ano prximo secomemora o sesquicentenrio do lanamento do Manifesto, que atravessoutodo este tempo talvez como o documento polt ico mais difundido nomundo e que se mantm at hoje vivo, palpitante e, em muitos aspectos,extremamente atual. Sendo a primeira conferncia, creio ser minhaobrigao situ-lo historicamente. Em que condies surgiu e o que significouno momento em que foi redigido e publicado?

    O Manifesto Comunista foi lanado em nome de uma organizao que sechamava Liga dos Comunistas. Uma organizao de trabalhadores alemes,principalmente trabalhadores exilados que viviam em Paris e, um pouco,tambm em Londres. A Liga fora antes denominada de Liga dos Proscritos, deLiga dos Justos e acabou se chamando Liga dos Comunistas. Jovens naquelemomento Marx estava nos 30 anos, Engels, nos 28 , eles j eram, entretanto,

    os criadores de uma doutrina posteriormente denominada de materialismodialtico e histrico. Mas no eram ainda figuras com grande projeo.Tornaram-se membros da Liga em meados de 1847, permanecendo nela unsseis meses. Em que circunstncias tal organizao trabalhava?

    Em 1847, j se sentia que se aproximava uma tormenta revolucionria naEuropa, a qual abrangeria os principais pases do continente. No a Inglaterra,

    * Textobaseado emconfernciarealizada naPUC-SP em20/6/96,promovidapelo Ncleode Estudosde Ideologiae Lutas Sociaisda PUC-SP.Transcriodas fitas porClaudiaEsteves eSilvio CesarSilva.

    ** Historiador,autor de O

    escravismocolonial,A burguesiabrasileira,Combate nastrevas eMarcino eLiberatore.

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    que era um pas politicamente estvel, j com sua revoluo burguesa realizada,mas principalmente os pases que viviam sob o jugo de monarquias absolutistas.Desenvolvia-se um movimento fundamentalmente antimonrquico,republicano e democrtico, com algumas tinturas de reivindicaes socialistas,procedentes de uma classe operria que j tinha corpo e materialidadesuficientes para aparecer na cena poltica. Prenunciava-se, portanto, umaturbulncia, que iria abranger a Frana, a Alemanha, a ustria, a Itlia, a Hungriae mais alguns pases, provocando insurreies e guerras civis.

    Torna-se necessrio compreender o que era a classe operria naquelemomento, para que no tenhamos vises anacrnicas, transportando o que a classe operria de hoje para a de 150 anos atrs. Na verdade, uma classeoperria industrial s havia na Inglaterra, a pioneira da Revoluo Industrial.Ali, j existiam fbricas de grande porte onde se aglomerava um proletariado

    industrial. A Frana ainda era um pas de manufaturas, de oficinas um tantoartesanais. Na Alemanha, a classe operria estava em gestao inicial, mas jhavia um proletariado txtil que fazia greves, demonstrando presena einfluenciando o pensamento de Marx e Engels.

    Para se ter uma idia do que era o ambiente, digamos, operrio naquelapoca, basta dizer que a Liga dos Comunistas se compunha de militantesativistas, que enfrentavam a polcia, atuavam clandestinamente, difundiamdocumentos etc. e que foram os pioneiros do socialismo na Alemanha e, decerto modo, tambm na Europa. Mas o grosso dessa Liga era constitudo dealfaiates, quer dizer, de artesos. Afora os alfaiates havia marceneiros ourelojoeiros, ningum de categoria propriamente fabril. Isso tem importnciana caracterizao do momento polt ico, social e revolucionrio em queMarx e Engels iriam elaborar o Manifesto. Eles o elaboraram, em nome

    desta Liga, que realizou um Congresso em novembro de 47 e os incumbiude redigir o documento. Marx e Engels entregaram o texto, j redigido, porvolta de fevereiro de 48.

    importante determo-nos na evoluo de Marx e Engels. (No entrareiem detalhes, certamente nas conferncias posteriores tudo isso seresmiuado.) No momento em que o Manifesto foi redigido, Marx e Engels

    j t inham elaborado a concepo que, mais tarde, veio a se chamar demarxismo, embora Marx tenha dito que ele prprio no era marxista, poisno queria o nome dele vinculado a uma doutrina como algo dogmtico.

    A doutrina j estava, em seu fundamental, elaborada em 47. Considera-se que o marco inicial do marxismo ou como Althusser diria depois, aruptura epistemolgica se encontra em A ideologia alem. Uma obraescrita em 45, mas no editada naquele momento, vindo a pblico quase

    cem anos depois, em 1932. Nesta obra, encontramos a concepo filosficamaterialista dialtica, que aproveita elementos da dialtica de Hegel e domaterialismo de Feuerbach, reelaborados criativamente numa concepocompletamente nova.

    Encontramos, tambm nesta obra, a concepo da historiografia comouma sucesso de modos de produo e de superestruturas ideolgicas,

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    jurdicas e polticas, que decorrem num grau, maior ou menor, desses modosde produo. Em A ideologia alem, h a concepo de que a vida socialtem sua base na produo que os homens realizam, sendo movida pelascontradies entre as foras produtivas e as relaes de produo elementos constitutivos do modo de produo , tendo os seus demaisaspectos uma influncia ou uma determinao nessa base produtiva. Issose far presente, claro, no Manifesto do Partido Comunista, cuja redaoliterria intensamente inspirada, de altssimo nvel, extremamentecomunicativa, expe essa concepo e a torna acessvel aos leitores comuns.No necessria uma cultura universitria para compreender o Manifesto.Da a facilidade que ele teve para se difundir.

    Em A ideologia alem, como nos trabalhos posteriores de Marx e Engelsat o Manifesto Comunista, j se encontram alguns elementos da economiapoltica do marxismo. Marx e Engels uniam elementos extrados dos clssicosda economia inglesa fundamentalmente de Adam Smith e David Ricardoe de alguns de seus predecessores e sucessores a certas idias da alienaohegeliana para elaborar uma nova teoria econmica. Entretanto, a idia deque a classe operria produtora da mais-valia ainda no estava presentenestas obras. Ela s se tornaria realmente clara com a elaborao da mximaobra de Marx, O Capital. Mas, a tese de que a classe operria a classebsica, que sustenta a formao social burguesa, est presente desde Aideologia alem at o Manifesto Comunista.

    Vejamos agora, sucintamente, que relao o Manifesto teve com osacontecimentos 48. Justamente quando Marx e Engels entregavam o texto

    j redigido, a revoluo irrompia em Paris. O monarca Lus Felipe de Orleanse o seu ministrio eram derrubados e se implantava um governo republicano.Tais acontecimentos tiveram imediata repercusso na Alemanha, onde surgiu

    um movimento revolucionrio democrtico-burgus, instalando-se umaAssemblia Constituinte em Frankfurt. Lembremos que a Alemanha aindaera um conjunto de Estados, no existia a Alemanha unificada. O maiorEstado era a Prssia, com um regime monrquico absolutista. Logo depois,tambm irrompia um movimento revolucionrio em Viena, derrubando aditadura monarquista-conservadora do primeiro-ministro Metternich, j hquase trinta anos dominante na polt ica austraca e, podemos dizer, de todaa Europa. Surgiram movimentos insurrecionais na Hungria e na Itlia. Enfim,era um clima revolucionrio que se difundia pela Europa.

    O Manifesto no teve nenhuma influncia nesses acontecimentos. Foipublicado primeiro em alemo, depois em francs e em outras lnguas,porm destitudo de uma influncia imediata nos eventos de 1848.

    Marx e Engels, em particular, assim que surgiu o movimento

    revolucionrio na Alemanha, imediatamente se transferiram da Frana parao seu pas natal. Passaram a atuar, no como membros da Liga dos Comunistas,que no tinha organizao e suficiente estrutura para dirigir um movimentoto grande como aquele, porm como membros do movimentodemocrtico-popular em curso. Logo conseguiram se assenhorear de um

    jornal dirio, A Nova Gazeta Renana, do qual Marx se tornou redator-chefe.

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    Atravs das pginas do jornal, Marx comentava os acontecimentos do dia-a-dia e traava uma ttica e uma estratgia para a classe operria, no processoda revoluo democrtico-burguesa na Alemanha.

    O movimento revolucionrio teve diferentes caractersticas nos vriospases. Apresentou-se mais radical na Frana. Rapidamente, no entanto, asburguesias foram se recompondo e tratando de apaziguar as situaes,temerosas que elas se radicalizassem com a presena da nova classe operriae dos setores populares em geral, que no se contentariam simplesmentecom reivindicaes puramente polt icas.

    Na Frana, em junho de 48, se dava o choque entre os soldados e osoperrios dos chamados ateliers nacionais oficinas de trabalho criadaspelo Estado, o qual, entretanto, pretendia fech-las. As lutas de barricadasse concluram com uma represso violenta dos trabalhadores. Na Alemanha,

    a burguesia no mostrou vigor nem radicalidade suficientes para enfrentaros exrcitos da monarquia prussiana, recuando at que, no final do ano, omovimento tambm estava esmagado.

    Marx e Engels, com a situao irrespirvel na Alemanha, se transferirampara a Blgica, de onde so expulsos e vo se radicar em Londres. Seria oexlio definit ivo. Os dois passariam a residir na Inglaterra e, fora viagenseventuais ao continente, no sairiam mais de l.

    Se no teve influncia direta nos acontecimentos de 48, o Manifestono morreu com eles. Reproduziu-se na lngua original, o alemo, e nasoutras lnguas para as quais foi traduzido. Difundiu-se em russo no Leste daEuropa, depois em polons e tambm nos Estados Unidos. Foi alcanandoassim um grande nmero de pases do mundo e se tornou um documentop e r e n e .

    No posso entrar aqui em detalhes, mas no Brasil, o Manifesto tevetambm numerosas edies, a primeira em 1930. Um estudo sobre atrajetria desse documento no Brasil foi feito pelo Prof. Edgar Carone,historiador aqui presente. Um estudo, sem dvida, primoroso. Certamente,a comemorao do sesquicentenrio dar ensejo a edies aperfeioadas,talvez com um aparelho crt ico mais desenvolvido em relao s ediesanter iores.

    Na trajetria do Manifesto, podemos verif icar o que ele trouxe de novopara a situao em que surgiu e para as situaes posteriores e, tambm, oque faz dele um documento to difundido, to palpitante e vivo. Aquiprecisamos ter em vista a situao mundial em meados do sculo XIX. Eu jme referi ao fato de que a classe operria era ainda incipiente, fora daInglaterra. Enquanto classe operria moderna, existia em alguns ncleos de

    poucos pases. Alm disso, se tomarmos, por exemplo, o continenteamericano, o que tnhamos em 1848? O escravismo florescia no Sul dosEstados Unidos, com cerca de quatro milhes de escravos negros de origemafricana. O Brasil tambm era um pas escravista. Nas Amricas, o trabalhono sentido conceituado no Manifesto ainda no existia, excetoembrionariamente e contraposto ao trabalho escravo predominante. Nas

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    Antilhas tambm. No Haiti, o trabalho escravo havia sido abolido e substitudopor um regime de pequenos camponeses. Na sia, dominavam os regimespr-burgueses. Na Rssia, o capitalismo crescia em um meio dominadopelas relaes feudais.

    Nesse sentido, podemos dizer que o Manifesto um documento quese ala sobre o futuro. Ele fala no presente, mas a sua vitalidade decorre dofato de ter apostado no desenvolvimento da sociedade capitalista juntocom a classe operria, surgida da grande indstria fabril.

    A primeira realizao histrica do Manifesto, a meu ver, consiste emque ele tirou a perspectiva dos trabalhadores principalmente dos operriosindustriais do terreno das utopias para o terreno da luta polt ica concreta.O que era o movimento dos trabalhadores, naquela poca, nos pases maisavanados? Era um movimento dominado por seitas utpicas e conspirativas.

    A prpria Liga dos Comunistas organizao a que Marx e Engels aderirame da qual se tornaram scios era tambm uma organizao utpica econspirativa. O que havia de mais elaborado no pensamento socialista eramas idias de Fourier, Cabet, Proudhon, Owen, e Saint-Simon. Todos elesprojetavam uma sociedade perfeita, igualitria, com uma distribuioharmoniosa dos produtos, em que no haveria explorao, nem misria, eque surgiria pronta e acabada, no se sabe como. Propunham comunidadesideais, como os falanstrios de Fourier, ou a organizao chamada Icria, deCabet, e assim por diante. Algumas dessas comunidades foram tentadas naAmrica do Norte e at no Brasil. Tivemos um falanstrio, uma organizaopretensamente socialista, arquitetada por Fourier, a qual surgiu no Brasilescravista, patrocinada por Dom Pedro II. Numa viagem Europa, nossoimperador foi abordado por partidrios de Fourier e aceitou que algunsviessem ao Brasil para organizar o falanstrio. Este acabou fracassando, como

    seria de se esperar.Marx e Engels transferiram a perspectiva da classe operria para a luta

    polt ica concreta, a luta de classes concreta. A sociedade do futuro, qualdeviam aspirar os trabalhadores, no seria obtida pela graa de filantroposou de governantes, no viria pronta e acabada, mas seria o resultado da lutapolt ica travada durante muitos anos. A luta de classes concreta dostrabalhadores, desde o terreno sindical e reivindicativo at o terreno polt ico,com vistas conquista do poder do Estado.

    Esta, segundo me parece, a grande virada que vem com o Manifesto.Samos da perspectiva utpica e entramos na organizao e na luta concretasdos trabalhadores. Da surgiriam os grandes partidos dos trabalhadores dosculo XIX, os partidos que ento eram chamados de social-democratas. Entreeles, o partido social-democrata russo, o partido de Lenin e seus companheiros,

    que iriam realizar a revoluo de outubro de 1917. Por a, podemos perceberuma linha que estabelece uma conexo do Manifesto Comunista aparentemente, em 1848, sem conseqncias concretas com grandesacontecimentos futuros, que marcaram fundamente o sculo XX.

    interessante como Marx e Engels explicam, no prprio Manifesto, aadoo da designao de comunista. Afirmam que no poderiam adotar a

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    designao de socialistas, porque havia, j naquela poca, uma grandevariedade de socialismos na Europa. Da que faam a crt ica do socialismofeudal, do socialismo conservador, do socialismo pequeno burgus. Diversasvariantes do socialismo j se apresentavam naquela poca, sucintamentecrit icadas no Manifesto e, antes dele, em A sagrada famlia, Aideologiaalem e outras obras. Marx e Engels declararam que a nica designaoque poderia identif icar o que pretendiam e tambm o que deveria ser omovimento dos trabalhadores a designao de comunista. Da seu textose chamar Manifesto do Partido Comunista.

    Marx e Engels tambm definem o papel dos comunistas em relao aosoutros partidos de trabalhadores, aos outros partidos operrios. No colocamos comunistas como uma elite. No h no Manifesto, o termo vanguarda,popularizado com Lenin e, pior ainda, com Stalin. Marx e Engels no dizemque os comunistas devem ser uma vanguarda, que tm o privilgio de servanguarda. Dizem apenas que os comunistas possuem uma viso prpria domovimento geral e de conjunto da histria e da luta dos operrios. Comsemelhante viso das coisas, no pretendem dominar o movimento operrio,mas exercer influncia sobre ele. No h propriamente uma tese organizativade partido no documento. Naquela poca, a concepo de partido notinha chegado elaborao que teria uns cinqenta anos mais tarde, tendosido os operrios pioneiros e at modelares para a prpria burguesia.

    O Manifesto apresenta um programa das transformaes socialistas.Um programa que tambm quer se distinguir das utopias, referidasanteriormente. H ali uma srie de medidas com certo carter gradual,que no pretendem implantar a sociedade socialista de imediato. Aproposta consiste em que o Estado se aproprie de um certo conjunto defbricas, que iriam competir com as fbricas burguesas e venc-las pela

    competio. O programa apresenta vrios itens abolio do direito deherana, emancipao das mulheres, educao universal, desarmamentodos exrcitos organizados, paz universal , alguns deles, hoje, parecemrealizveis at dentro dos limites burgueses. Todavia, naquela poca, eramproposies avanadas e tinham, pelo menos, o mrito de seremconcretas, de no terem a pretenso de fantasiar uma sociedade ideal jcons t i t u da .

    Hoje, passados 150 anos, podemos fazer um balano do Manifesto doPartido Comunista. Um balano que ocorre numa situao de mar baixa,na qual sofremos os efeitos da dissoluo da Unio Sovitica e do naufrgiodos regimes comunistas do Leste Europeu. Queiramos ou no, t ivssemosns simpatia ou no pela Unio Sovitica os que de certo modo, erampartidrios dela e os que eram crt icos , todos nos beneficiamos da fora

    que ela deteve at desaparecer. Toda a esquerda, inclusive a esquerdasocial-democrata e a esquerda trotskista, podia ser levada a srio porquetinha msseis, armamento nuclear, avies, exrcitos e assim por diante.Havia uma superpotncia no campo da esquerda e hoje no h mais.

    As correntes com alguma ligao com o marxismo perderamcredibilidade. No s para os adversrios, mas para as grandes massas, pois

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    fracassou a tentativa concreta da aplicao do marxismo. Podemos dizer,como dizem muitos: mas o marxismo no foi bem aplicado na UnioSovitica, ele foi trado. Lembremos a clebre obra de Trotski, A revoluotrada. Contudo, que outro exemplo temos para contrapor a este? Nenhum.A culpa pode ser atribuda a Stalin, a Kruchev e a Gorbachev, ou aos trs,mas acaba repicando em Lenin e tambm em Marx. Por isso, as ruas quetinham o nome de Marx e de Lenin mudaram de nome em Moscou. Osrussos no querem saber do marxismo e do leninismo. Ainda existe, naRssia, um partido comunista, mas minoritrio e no tem, nem de longe,a expresso que teve quando era o partido nico e detinha o poder demaneira totalitria.

    A primeira frase do Manifesto, um espectro percorre a Europa oespectro do comunismo hoje soa, de certo modo, irnica, como se tivesseum certo fundo falso. O espectro de fato um espectro, no tem substncia, um fantasma, nem d medo. Dava medo em 1848 assim Marx supunha

    , mas hoje j no.

    Ainda h menos de uma semana, aqui mesmo na PUC, foram lanadosos nmeros de duas revistas marxistas, que heroicamente insistem em sereditadas no Brasil. O ato, para o qual as pessoas foram convidadas acomparecer, teria um debate intitulado O marxismo morreu. Viva omarxismo? Mesmo os marxistas declaram que o marxismo morreu e seperguntam se ele pode ressuscitar. Isto reflete bem a conjuntura, o estadode esprito defensivo em que o marxismo se encontra neste momento eque, fundamentalmente, tem suas razes objetivas nas derrotas prticas,concretas, que ocorreram em relao s maiores realizaes do marxismo,neste sculo. Eu repito, no adianta dizer que na Unio Sovitica no seaplicou o marxismo, que este foi trado, que Stalin foi o culpado. Os homens

    comuns no acreditam nisso, porque a prpria burguesia se incumbiu deconvenc-los que ali estava a encarnao do marxismo. difcil negar queestava mesmo. O regime sovitico foi inspirado em quem? Em Adam Smith,em Ricardo, em Keynes? Foi inspirado em Marx, seja atravs de Lenin, sejaatravs de Stalin.

    Gostaria de abordar brevemente alguns aspectos com relao aocontexto do prprio Manifesto. Um dado constante em Marx, que vemdesde o Manifesto e tambm de seus escritos anteriores, a confiana naclasse operria industrial, a classe operria nova, que se formava dentrodas fbricas resultantes da Revoluo Industrial. Trata-se de algofundamental, pois era a classe operria que substitua os artesos daspequenas oficinas e das manufaturas. Era um novo tipo de trabalhadores,com uma nova organizao, que se utilizava de instrumentos recm-criados

    de produo. Nos sucessivos prefcios que vo escrevendo para novasedies e tambm nos seus escritos posteriores como em O Capital, huma confiana fundamental que esta a classe do presente e do futuro,que a sociedade capitalista cresce mas, com ela, cresce tambm a classeoperria industrial. Uma classe que no tinha nada a perder com a revoluo,seno os seus grilhes, que no tinha propriedade, mas vendia sua fora

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    de trabalho em troca de salrio a fim de produzir mais-valia para os donosdas fbricas, para os burgueses.

    A classe operria cresceu com a prpria indstria, tornou-se cada vezmais numerosa, concentrada, como Marx sempre previu e insistiu, massomente at os anos 70 deste sculo. Entretanto, a partir desta data, nosprincipais pases capitalistas, a indstria continuou crescendo, porm no aclasse operria. A classe operria comeou a encolher e continua emprocesso de encolhimento. As novas tecnologias, os novos mtodos deadministrao, a reengenharia, a reestruturao produtiva, todas essasmetodologias estudadas recentemente, vo fazendo com que a produoindustrial exija um nmero cada vez menor de operrios. A contrapartida o aumento do nmero de desempregados. De onde eles vm? Vm dasfbricas que no precisam mais deles, ultrapassando os 10% da populao

    ativa na Frana, na Alemanha, na Espanha, na Itlia e assim por diante. Sonumerosos em todos os pases capitalistas e esto em crescimento no Brasil. o chamado desemprego estrutural.

    necessrio examinar tal questo, que desafia os marxistas. No Brasil,na lt ima vez em que veio ao nosso pas antes de falecer creio que em94, num simpsio em Marlia, do qual tambm participei , Ernest Mandelenfrentou esta questo. Afirmou que no podemos aceitar a definio deque a misso de construir o socialismo cabe a uma classe operria masculinaindustrial. Penso ser isto uma fora de expresso de Mandel, porque Marxnunca falou em classe operria masculina, nem esta mencionada emalgum documento marxista. Mesmo porque na Revoluo Industrial e aindadepois, as empresas empregavam grande nmero de mulheres e tambmde crianas. Com o tempo, a legislao foi protegendo as trabalhadoras,

    proibindo o trabalho feminino, fora de certas condies. Mas, t irando afora de expresso, usada para facilitar a argumentao de Mandel, o queprope em troca? Ele prope substituir o conceito de classe operria pelode classe dos assalariados. Ora, isso tambm no satisfatrio, fugir doproblema porque, hoje, os assalariados so a maioria esmagadora nassociedades capitalistas modernas. Em qualquer pas capitalista avanado,80% ou mais das pessoas ocupadas so assalariados. O que acontece queos assalariados compem segmentos muito diferenciados. Entre osassalariados se incluem os profissionais de especializao avanada, ospesquisadores de laboratrios e departamentos de pesquisa das grandesempresas, altamente remunerados e com uma ideologia em nada parecidacom a dos trabalhadores manuais.

    Entre os prprios trabalhadores manuais, tambm se nota uma

    diferenciao muito grande. H um ncleo minoritrio com empregospermanentes, duradouros ou at vitalcios. E h uma maioria que temtrabalho precrio e temporrio. E h ainda desempregadospermanentemente, que s vezes nem mais procuram emprego, porque jdesanimaram pelas estatsticas, esto na faixa de 12 a 13% na Europaocidental. Na verdade, o nmero maior pois, estatisticamente, so

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    registrados como desempregados apenas os que procuram emprego.Aqueles que desanimam e no mais o procuram, os aposentadosprematuramente, estes no so computados. Portanto, computando osdesanimados e marginalizados, os sub-empregados, os empregados quefazem bicos, o nmero de desempregados em qualquer pas capitalistaseria o dobro do que assinalam as estatsticas.

    Como tratar esse conjunto de segmentos como uma classe, como aclasse dos assalariados? Que comunidade de interesses existe entre setoresto diferenciados? Este um desafio que temos a enfrentar, porque a vidamudou, surgiram fenmenos e acontecimentos a respeito dos quais Marxno podia ter idia.

    No direi que a classe operria vai desaparecer, como alguns jprefiguram. Mas, no momento, o fenmeno do encolhimento da classe

    operria tem o seu reflexo em todas as organizaes que se baseiam nela,dos sindicatos aos partidos polt icos. Em conseqncia disso, temos umagrande retrao em toda parte do movimento sindical, do movimentogrevista, das lutas reivindicativas. Dentro do movimento sindical, cresceram,sobretudo, aqueles setores de trabalhadores assalariados que no so fabris,que esto ocupados em atividades de servios. Setores que, na poca deMarx, no tinham importncia ou tinham importncia pequena como,por exemplo, os trabalhadores da educao, os trabalhadores dos serviosde sade e de lazer e outros. Da que Marx no tenha examinado comsuficiente ateno em O Capital a questo dos servios. Todos essestrabalhadores dos servios so assalariados e muitos ganham baixos salrios,porm no so trabalhadores fabris. Passar por cima desta diferena conduza erros colossais de avaliao.

    A ttulo de subsdio para esse nosso exame, podemos lembrar que Marx

    previu a situao em que quase no seria mais necessrio o trabalho vivopara produzir as coisas. O sistema fabril chegaria a um ponto em que eletrabalharia automaticamente e os trabalhadores s precisariam realizartarefas de superviso e manuteno. Esta foi uma viso realmente genial,proftica, pois Marx no conheceu a eletrnica. Em seu tempo, a prpriaeletricidade tinha um desenvolvimento ainda inicial, ele no podia prever ainformtica, os computadores, os robs. Entretanto, esta viso prefigurauma realidade, que aparece no horizonte e nos surpreende. Como estefuturo j prximo ser enfrentado na sociedade burguesa? Vamos chegar aoponto em que as coisas no tero valor, s tero valor de uso, ainda nasociedade burguesa? O que ser de uma sociedade em que a classe operriano estar mais presente, ou que j ser desnecessria?

    Notemos que so problemas aos quais Marx s se referiu na obra que

    conhecida como os Grundisse, no ttulo alemo. Um rascunho que Marxelaborou em 1859. Quase tudo elaborado nos Grundisse est reelaboradonO Capital, mas o trecho sobre o fim do trabalho criador de valor no teveseguimento, no foi reelaborado.

    Quero terminar me reportando a mais um problema. No h dvida deque Marx e Engels tinham uma viso muito otimista do amadurecimento da

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    sociedade burguesa para a transformao socialista na poca em queviveram. Isso no sou eu s que afirmo. Tambm o faz Istvn Mzros, ummarxista hngaro da escola de Lukcs, que se refere s lacunas de Marx. Euprefiro dizer claramente que foram erros de Marx. Ou seja, Marx jconsiderava a sociedade burguesa pronta, passvel de passar para osocialismo, em 48 do sculo passado. Por que escreveu os Grundisse?Porqueachava que vinha uma nova crise cclica, como de fato veio, e que a revoluoia reproduzir em nvel mais alto o movimento de 48. Marx se apressou emcolocar no papel todas as grandes pesquisas que tinha feito, porqueacreditava que o movimento revolucionrio iria exigir toda a sua energiaprtica, e ele no teria tempo para completar sua obra. Nada disso aconteceu.A revoluo no veio no sculo XIX. Veio no sculo XX, mas fracassou, veiodo jeito que ns sabemos.

    No h no marxismo e nem pode haver em nenhuma cincia social,instrumento metodolgico que nos d a medida de amadurecimento dasociedade burguesa para o socialismo. H uma frase de Lenin que se costumareproduzir: a sociedade est madura para a revoluo quando os de baixono querem mais viver como antes e os de cima no podem mais governarcomo antes. Esta uma frase muito genrica, no pode ser consideradaum termmetro que d preciso a qualquer avaliao. Em geral, osacontecimentos revolucionrios costumam ser imprevistos. A revoluo de17 pegou Lenin de surpresa, quando estava na Sua. Dois meses antes,afirmou, numa conferncia, que no viveria para participar da revoluosocialista.

    Temos toda essa problemtica nossa vista. Como vocs vem, faouma conferncia crt ica ao marxismo, porque depois de tudo o queaconteceu no adianta a gente querer botar culos coloridos e ver as coisas

    rseas, como um novo doutor Pangloss. Precisamos enfrentar, a meu ver,tais desafios com absoluta seriedade e sem afastar os gravssimos problemastericos e prticos. O momento em que estamos vivendo , de fato, dereviravolta, de virada na histria mundial. H indcios de que o triunfo doneoliberalismo est no ocaso. Porm no certo que da venha umatransformao socialista. Mandel tambm no tinha certeza disso. O prprioTrotski, pouco antes de morrer, apesar de todo o seu dogmatismo, chegoua considerar que a classe operria at podia fracassar e demonstrar-secongenitamente incapaz para ser uma classe dominante. Se eles tiveramdvidas, ns as temos mais em nossos dias.

    Espero que as comemoraes do sesquicentenrio do Manifesto doPartido Comunista tenham como motivo inspirador o debate em torno deto srios desafios. S assim, creio eu, que procuraremos, pelo menos,

    estar altura do que Marx e Engels realizaram faz um sculo e meio.