Guanaes, Senilde Alcântara (2001) Nas trilhas dos garimpeiros de serra

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1 Senilde Alcântara Guanaes NAS TRILHAS DOS GARIMPEIROS DE SERRA Garimpo e Turismo em Áreas Naturais na Chapada Diamantina-Ba Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientação do Prof. Dr. Mauro W. Barbosa de Almeida. Este exemplar corresponde à redação final da dissertação defendida e aprovada pela comissão julgadora em 23/05/2001. BANCA Prof. Dr. Mauro W. Barbosa de Almeida (orientador) Profa. Dra. Emília Pietrafesa de Godoi Profa. Dra. Lúcia da Costa Ferreira Maio / 2001

Transcript of Guanaes, Senilde Alcântara (2001) Nas trilhas dos garimpeiros de serra

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    Senilde Alcntara Guanaes

    NNAASS TTRRIILLHHAASS DDOOSS GGAARRIIMMPPEEIIRROOSS DDEE SSEERRRRAA Garimpo e Turismo em reas Naturais na Chapada Diamantina-Ba

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientao do Prof. Dr. Mauro W. Barbosa de Almeida.

    Este exemplar corresponde redao final da dissertao defendida e aprovada pela comisso julgadora em 23/05/2001.

    BANCA

    Prof. Dr. Mauro W. Barbosa de Almeida (orientador)

    Profa. Dra. Emlia Pietrafesa de Godoi

    Profa. Dra. Lcia da Costa Ferreira

    Maio / 2001

  • SenildeAlcntaraGuanaes

    Dissertaode Mestradoapresentadaao Departamentode AntropologiadoInstituto de Filosofia e' CinciasHumanasdaUniversidadeEstadualdeCampinassoba orientaodoProf.Dr.MauroW.BarbosadeAlmeida.

    Este exemplar corresponderedao final da dissertaodefendida e aprovada pelacomisso julgadora em23/05/2001.

    BANCA

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    Prof.Dr.MauroW.BarbosadeAlmeida(orienta

    Profa.Dra.EmliaPietrafesadeGodoi

    Profa.Dra.LciadaCostaFerreira

    Maio/ 2001

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    FICHA CATALOGRFICA

    BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

    Guanaes, Senilde Alcntara Nas Trilhas dos Garimpeiros de Serra: Garimpo e Turismo em reas Naturais na Chapada Diamantina-Ba Senilde Alcntara Guanaes. Campinas, SP: [s. n.], 2001 Orientador: Mauro William Barbosa de Almeida. Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. 1. Garimpeiros. 2. Diamante. 3. Ecologia. 4. Turismo. 5. Bahia. I. Almeida, Mauro William Barbosa. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo

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    RREESSUUMMOO

    Este trabalho trata do modo como os garimpeiros manuais de diamantes da Chapada Diamantina no estado da Bahia percebem, interagem e se reconhecem diante das transformaes que trouxeram novos usos e apropriaes do espao natural, assim como diante do desenvolvimento do turismo ecolgico como a atividade econmica emergente. O garimpo de diamantes em sua forma manual ou artesanal - localmente conhecido como garimpo de serra - representa aqui no apenas uma porta de entrada para o universo de uma pequena, porm representativa, cidade baiana na regio centro-oeste do Estado e seu crescente florescimento turstico mas tambm e principalmente procura situar os garimpeiros como sujeitos centrais na construo desse universo e de suas transformaes. Em outras palavras, os garimpeiros de serra so tratados aqui como guias nas trilhas que nos levam ao Parque Nacional da Chapada Diamantina mas tambm e principalmente como aqueles que nos possibilitaram hoje estar trilhando esses caminhos.

    AABBSSTTRRAACCTT This dissertation is on how the diamond miners or garimpeiros of the Chapada Diamantina in the State of Bahia perceive the transformations which have recently brought in new uses and appropriations of the natural space; on how they interact with these transformations and on how they have come to see themselves through these changes which have introduced among other things the ecological tourism as an emerging economic activity. Diamond mining, in its manual or artisanal form locally known as garimpo de serra, or hill mining is thus not just an entrance door to the world of a small but representative town of the hinterland State of Bahia, and to its bourgeoning tourism, but is also the trail which will lead us to depict the hill miners as central subjects in the construction of this world and of its transformations. In other words, the hill miners are the guides who will take us through the trails leading to the Parque Nacional da Chapada Diamantina the National Park of the Plateau of Diamonds; they are also those who made it possible for us to be following these trails today.

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    Existem tantos diamantes na terra quantas estrelas no cu... Autor Desconhecido

    minha me Nilde Guanaes

    memria de Sebastio Guanaes, meu pai

    todos aqueles que um dia subiram a serra para garimpar estrelas ...

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    AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS

    Primeiramente agradeo Fapesp - Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de

    So Paulo - pelo apoio financeiro e pela contribuio intelectual dada essa

    pesquisa, juntamente com o programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    desta universidade pela interlocuo. Meus agradecimentos especiais s Profas.

    Dras. Emlia Pietrafesa de Godoi e Lcia Ferreira da Costa pelo profissionalismo e

    carinho dedicado a este trabalho durante o exame de qualificao.

    Em seguida, agradeo e tambm ofereo esse trabalho ao Seu Ansio como

    representante da Sociedade Unio dos Mineiros (SUM) e todos os garimpeiros de

    serra da Chapada Diamantina - hoje guias tursticos ou simplesmente garimpeiros

    de estrelas - por terem me iniciado na poesia de um garimpo que se faz diferente.

    Que esse trabalho possa nos auxiliar a olhar esses trabalhadores do serto baiano

    com os olhos de dentro...

    Os agradecimentos seguintes so guiados pelos lugares, ns antroplogos dos

    espaos naturais, das pequenas cidades e vilas, ns imigrantes nordestinos,

    nortistas, sulistas, enfim: ns passantes... ficamos mesmo com os lugares na

    memria, cada pessoa um lugar dentro de ns. Comeando por Lenis, lugar

    onde nasci: agradeo todos os meus parentes que esto por l e que muito

    auxiliaram nessa pesquisa e aos amigos e colegas pesquisadores que tentam contar

    um pouco de um serto das guas onde nascem diamantes.

    Especialmente aos amigos Roy Funch, Josemar, Delmar, Jnio e Ronaldo Senna -

    amigo antroplogo - um mestre no jogo da alteridade to difcil para ns que

    estudamos nossos prprios lugares. Aos meus tios Joo e Alda e primos Nelson,

    Camila e Marcele, meu ncleo familiar em Lenis.

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    cidade de Salvador, lugar onde cresci e conheci pessoas de tantos outros cantos.

    L esto os ex-professores e colegas da Universidade Federal da Bahia que tanto

    tenho a agradecer, especialmente ao Professor Gustavo Falcn, socilogo dos

    diamantes da Chapada Diamantina.

    minha me Nilde Guanaes, doce e querida amiga, que orienta meu caminho seja

    qual for a direo dos ventos; toda a famlia - entre Salvador, Chapada

    Diamantina, Braslia e So Paulo - principalmente meus irmos Alberto

    (Annirhuda Dasa) e Ana Guanaes; meus sobrinhos Ti e Tainan e o meu querido

    Salvinho. Todos eles representam o lugar das guas doces, da praia, do cerrado,

    todos eles guardados na memria de tardes ensolaradas na praia de Itapu: lugar

    do ajuntamento familiar...

    Pocinhos do Rio Verde, um lugar de Minas dentro de mim, especialmente ao

    amigo Fernando Guimares, pelas violas enluaradas, Soninha, amiga flor; ao

    Drcio Marques pelos acordes; Ingrid Weber, parceira desse lugar; amiga

    Ritinha de Caldas; famlia Cauta pela doce acolhida e pela realizao do sonho

    de uma casinha de varanda para ver o sol nascer...; ao antroplogo e amigo

    Carlos Rodrigues Brando, Maria Alice, e seus filhos Luciana e Andr.

    Ao ncleo Rainha das guas de Pocinhos do Rio Verde, lugar de unio e fora,

    principalmente aos queridos amigos Augusto e Iara; Paulo Fernando e a

    conterrnea Cris; ao Mestre Mrio, pelos seus anos de caminhada e sabedoria. Em

    um plano superior agradeo ao Mestre Gabriel, meu querido mestre no caminho

    do sentir, com toda minha admirao e respeito pela sua obra.

    Ao Lar Doce Lar que no carece de paredes e teto comuns para existir e se fazer

    inteiro: a Mariane Magno, coisa mais querida, ao Marcelo Pinta e Renato Ferracini,

    eles que mostram todos os dias como antropologia e teatro se comungam to

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    bem... nossa querida amiga Vilma, que nos ensina com poesia e dignidade a arte

    do bem viver.

    Ao Ncleo Lume Teatro e ao querido Divino Barbosa pelo apoio material e

    logstico durante todo o processo desse trabalho.

    queles que so todos os lugares ao mesmo tempo, que cruzam, desviam,

    interagem e do sentido nossa caminhada e ao nosso sentimento de mundo. Aos

    amigos e amores Juliana Schiel, Isabel Missagia, Mariana Pantoja, Dalila Zanon,

    Marisa Barbosa, Eliza Costa, Roseli, Carlos e toda a famlia Afonso, Eliana Kefals,

    Gabriela e Ivan Vilela. querida Hilde pelo acolhedor abrigo... Ao Fernando

    Vilela, Silvana Jeha e Paulo Lins, eterna amiga Patrcia Pinho. Ao Gilton, pela

    lembrana de uma outra chapada, aos queridos Kai Bredholt e Srgio Carvalho,

    pela inspirao.

    Aos amigos irmos Augusto Postigo e minha querida Adelvane Nia, guardo

    para eles o meu amor e infinitos agradecimentos...

    Ao Demian Reis, pelas trilhas compartilhadas e muito bem guardadas na

    memria... e ao amado Otvio Contatore, pela pacincia, pelo acolhimento na reta

    de chegada e, sobretudo, pela vida semeada ...

    Guardo os agradecimentos finais ao querido amigo e orientador Mauro Almeida.

    Embora essa dissertao seja apenas um exerccio intelectual, fruto do seu

    carinho e pacincia. A ele devo muito pelo apoio material, psicolgico e intelectual

    dado a essa pesquisa.

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    SSUUMMRRIIOO

    INTRODUO

    1. Eles, Os Garimpeiros de Serra .......................................................... 15 2. O Lugar Lenis.................................................................................. 24 3.Eu, Nativa..............................................................................................31

    1. ABRINDO AS TRILHAS: A OCUPAO DA CHAPADA DIAMANTINA

    1.1. Trilhando as Lavras Diamantinas ................................................. 39 Em Busca dos Diamantes ........................................................................ 42 Nasce a Chapada Diamantina ................................................................ 49 1.2. Lenis dos Diamantes ................................................................... 55 Nasce a Vila dos Lenis ......................................................................... 56 A Vida Social na Antiga Chapada........................................................... 58

    2. NAS TRILHAS DA SERRA: GARIMPOS E GARIMPEIROS

    2.1. Uma Antropologia do Garimpo.................................................... 67 Os Outros Garimpeiros............................................................................. 68 2.2. Os Garimpeiros da Chapada Diamantina ................................... 80 Subindo a Serra: O jogo do diabo............................................................ 82 Garimpando Estrelas ................................................................................ 97

    3. O ENCONTRO DAS TRILHAS: GARIMPO E TURISMO EM REAS

    NATURAIS DE CONSERVAO

    3.1. Os Garimpeiros em reas Naturais de Conservao .............. 109 3.2. Os Caminhos do Diamante: O turismo na natureza ................ 123 3.3. O Parque Nacional da Chapada Diamantina A Criao de um Parque Nacional........................................................ 132 Consideraes sobre Unidades de Conservao no Brasil ................ 136

    CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................145

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...........................................................................151

    ANEXOS: Material Etnogrfico...................................................................................155

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    LLIISSTTAA DDEE FFOOTTOOSS

    Capa Mos de jovem garimpeiro lavando o cascalho ..........................................1

    Dedicatria - Poo Encantado em Mucug ...............................................................7

    Captulo 1

    Foto 1 -Vista da cidade de Lenis do alto ..............................................................24

    Foto 2 - Morro do Camelo: Ponto turstico ..............................................................49

    Foto 3 - Vale da Chapada Diamantina .....................................................................51

    Foto 4 Vista da praa Horcio de Matos em Lenis ..........................................58

    Captulo 2

    Foto 5 - Velho Garimpeiro na feira livre em Lenis .............................................67

    Foto 6 - Bateias usadas para "lavar o cascalho" ......................................................79

    Foto 7 - Velho garimpeiro solitrio ...........................................................................80

    Foto 8 - Mos de jovem garimpeiro lavando o cascalho .......................................82

    Foto 9 - Poo Mucugezinho: Ponto turstico .......................................................... 96

    Foto 10 - Imagem do N. Sr. Bom Jesus dos Passos ...............................................106

    Foto 11 - Procisso dos garimpeiros: dia 02 de fevereiro ................................... 109

    Captulo 3

    Foto 12 - Cachoeira da Fumaa: Ponto turstico .................................................. 111

    Foto 13 - Poo Capivara: Ponto turstico .............................................................. 121

    Foto 14 - Turista banhando-se em rio prximo ao garimpo ............................. 126

    Foto 15- Vista da praa Horcio de Matos em Lenis ..................................... 128

    Foto 16 - Poo Capivara: Ponto turstico ............................................................. 132

    Foto 17 Velho garimpeiro em casa abandonada na beira da trilha............... 153

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    IINNTTRROODDUUOO

    11.. EElleess,, OOss GGaarriimmppeeiirrooss ddee SSeerrrraa

    O cume da arte, em cincias sociais, est sem dvida em ser-se capaz de pr em

    jogo coisas tericas muito importantes a respeito de objectos ditos empricos

    muito precisos, frequentemente menores na aparncia, e at mesmo um pouco

    irrisrios. 1

    O garimpo manual de diamantes a atividade econmica fundante da regio

    centro-oeste da Bahia, onde a Chapada Diamantina est localizada, recebendo o

    nome de Diamantina em referncia presena das jazidas de diamantes em seu

    subsolo. O garimpo manual, artesanal ou de serra - nomes usados para designar

    um nico tipo de garimpo - uma atividade tradicional da regio e em especial

    dos municpios de Lenis, Andara e Mucug. um tipo de garimpo que possui

    uma tcnica rudimentar de extrao que dispensa mquinas ou produtos qumicos,

    so utilizados apenas instrumentos manuais como picaretas, ps, enxadas, e

    similares.

    O garimpo manual ou artesanal de diamantes da Chapada Diamantina concentra-

    se quase todo na serra do Sincor, principal rea natural da regio, transformada

    em parque nacional em 1985, h aproximadamente dezesseis anos. A denominao

    "garimpo de serra" foi adotada pelos prprios garimpeiros e inspirada em seu

    trabalho na serra. Entretanto, quando existia apenas o garimpo manual praticado

    quase que exclusivamente na serra, no havia necessidade de acrescentar as

    palavras "manual", "artesanal" ou de "serra" para a identificao do garimpeiro.

    A diferenciao do garimpeiro, assim como o uso de nomes e definies para a

    afirmao da sua identidade foi realada pela chegada do garimpo de draga2 na

    regio - trataremos do fato mais adiante. A ameaa de uma nova e lucrativa forma 1Bourdieu, Pierre. O Poder Simblico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998, p. 20. 2 Dragas so mquinas utilizadas na suco e remoo do solo dos rios. No garimpo, so utilizadas para remover o cascalho do fundo dos rios e trazer superfcie, para em seguida lav-los atravs de bombas d'gua depositadas em caldeires afunilados para onde o diamante corre.

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    de extrao de diamantes representava o fim do garimpo tradicional e a

    substituio dos velhos garimpeiros por homens mais jovens, preparados para

    manipular as rsticas mquinas que pesam toneladas. Houve ento um

    movimento de reconstruo da identidade dos garimpeiros de serra - auxiliado

    pelo movimento ambientalista3 regional - contra os garimpeiros de draga ou

    "novos garimpeiros", como estes passaram a ser chamados.

    Nos primrdios do garimpo na regio costumava-se dizer que o garimpeiro

    "enchia o saco para subir a serra e retornava cidade para encher o saco". Encher o

    saco para ir serra significava "fazer a feira" - comprar mantimentos e provises

    alimentares para o longo perodo de estadia na serra - quando os mantimentos

    acabavam o garimpeiro voltava cidade para fazer novas compras, vender e/ou

    lapidar as pedras encontradas e gastar o dinheiro acumulado com o garimpo. O

    que representa dizer, que no tempo ureo do garimpo a relao do garimpeiro com

    a cidade era praticamente transitria: a cidade era um lugar de passagem onde os

    garimpeiros se abasteciam, mantinham suas famlias e, sobretudo, era o lugar onde

    podiam exibir e comemorar o sucesso obtido na serra.

    Com a decadncia do garimpo de serra essa relao transformou-se muito ao longo

    do tempo. A apropriao e uso dos lugares se inverteu, a serra passou a ser um

    local de passagem e de passeio e a cidade a morada e principal meio de vida dos

    garimpeiros. Essa transformao ser melhor abordada nos captulos seguintes. O

    fato que os garimpeiros enfrentaram muitas dificuldades e desafios ao longo de

    todo esse tempo: a concorrncia das dragas, retiradas apenas em 19964, aps 16

    anos de explorao do diamante em Lenis; as polticas e influncias dos rgos

    ambientais e movimentos ecologistas; e mais recentemente, o chamado turismo

    ecolgico praticado em reas naturais.

    3 Falaremos sobre o movimento ambiental na Chapada Diamantina no captulo 3, onde estar sendo discutido questes mais atuais referentes apropriao dos recursos naturais na regio. 4 As dragas foram retiradas de Lenis em abril de 1996, aps uma violenta interveno da Polcia Federal e do IBAMA.

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    Isso posto, o objetivo central desse trabalho acompanhar a sobrevivncia e

    estratgias de permanncia dos garimpeiros de serra diante desse cenrio de

    conflitos e transformaes. Por outro lado, pretendemos pensar tambm de que

    modo essas estratgias de sobrevivncia e permanncia desses sujeitos

    contribuem para a problemtica do uso e apropriao de espaos naturais

    conservados em mbito geral. Entre o garimpo de serra destacado como uma

    atividade pontuada em um tempo passado e o turismo ecolgico, como um

    empreendimento que caracteriza o futuro; talvez seja possvel contemplar formas

    muito especficas e antagnicas no modo como essas populaes relacionam-se

    com o espao natural; o que de certa maneira poder somar mais questes para a

    reflexo, que se faz to presente nos dias atuais, sobre os modos de interveno e

    de apropriao da natureza e de seus recursos.

    Ao contar a histria do garimpo e dos garimpeiros de diamantes da Chapada

    Diamantina pretende-se alcanar os significados que essa categoria rural confere

    ao espao que ocupa e aos grupos humanos com os quais travam relaes sociais e

    de trabalho, como por exemplo os visitantes e ambientalistas da regio. O recurso

    etnogrfico, condensado em uma narrativa, ora descritiva, ora analtica, est posto

    aqui como uma tentativa de conhecer, compreender e identificar aquilo que seria o

    ethos dos garimpeiros de serra. O resgate da histria do garimpo na regio e do

    seu passado seguido de perto pela histria viva e atuante de suas reminiscncias,

    constantemente revitalizadas e atualizadas atravs do contraditrio processo de

    excluso e incluso social e cultural dos garimpeiros de serra.

    Os garimpeiros manuais constituem hoje cerca de 70 homens em atividade regular

    nas reas de garimpo. Cerca de 150 garimpeiros so associados SUM Sociedade

    Unio dos Mineiros entidade fundada em 1920 com o objetivo de legitimar a

    profisso. Muitos desses garimpeiros associados esto com idade avanada e sem

    condies fsicas de exercer a atividade, mas vivem das lembranas do garimpo e

    da eminncia de voltar serra. So, ainda assim, reconhecidos como garimpeiros,

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    participam das atividades celebrativas da categoria, dos seminrios e encontros

    promovidos para discutir a continuidade do garimpo na regio e no se

    consideram afastados da atividade, esto sempre espera de um bom tempo

    climtico para voltar serra.

    Mesmo os garimpeiros que permanecem ativos no garimpo, no vo mais com

    tanta frequncia serra. A mdia de idade dos ativos situa-se na faixa dos 40 aos

    60 anos, todos eles so homens casados, uma grande parte de origem negra, e tm

    portanto uma forte relao com as religies afro-brasileiras locais. Todos os

    espaos ocupados pelos garimpeiros de serra, tanto no que diz respeito ao

    trabalho, ao campo religioso, ou ainda s esferas econmicas e sociais, sero

    focados nesse trabalho. Entretanto, a prpria fala dos garimpeiros - que retrata

    sua viso de mundo e suas idias acerca do futuro que ser privilegiada aqui, e

    no as relaes traadas com os outros sujeitos envolvidos.

    A Chapada Diamantina bem ampla, compreendendo uma parte considervel da

    regio centro oeste da Bahia quase toda ela serto Entretanto a Chapada

    garimpeira corresponde a aproximadamente 60% desse territrio, desses a maior

    parte corresponde ao garimpo de diamantes e uma pequena frao extrao do

    ouro, resumindo-se dois municpios basicamente: Rio de Contas e Jacobina:

    ambos extremamente importantes para a economia da regio e com fortes

    influncias culturais no interior do estado.

    Contudo, a Chapada Diamantina como o prprio nome indica, foi quase toda ela

    estruturada na economia do diamante, mesmo as cidades que no possuam o

    mineral dependiam direta e indiretamente dos diamantes extrados na regio.

    Entre as cidades que centralizaram a extrao e comrcio do minrio, Lenis

    sempre ocupou lugar de destaque, ao lado de cidades como Mucug e Andara.

    Como Lenis se tornou rapidamente um forte entreposto comercial, concentrando

    a maioria dos pedristas (compradores de diamantes) e boa parte das casas de

    lapidao, muitos garimpeiros escolhiam a cidade como morada - l estabeleciam-

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    se com suas famlias e pequenos negcios. Lenis ento o local privilegiado por

    essa pesquisa, pois onde esto fixados boa parte dos garimpeiros de serra e suas

    famlias.

    O desenvolvimento do turismo tambm coloca a cidade de Lenis em uma

    posio privilegiada com relao aos outros municpios da regio. Sendo assim,

    encontramos nesse municpio as condies necessrias para o desenvolvimento da

    pesquisa: em Lenis esto os garimpeiros de serra com suas famlias, a Sociedade

    Unio dos Mineiros (a entidade dos garimpeiros de serra), os rgos ambientais, e

    o maior nmero de pousadas e hotis de grande porte da regio. Ou seja, o cenrio

    que compe o universo simblico e material dos garimpeiros de serra est todo ele

    concentrado entre as serras que guarda e esconde a cidade de Lenis.

    Lembramos que o presente trabalho abrange apenas a sede do municpio,

    excluindo portanto todos os povoados adjacentes. Embora boa parte desses

    povoados tenham tido um papel relevante na histria do garimpo de diamantes na

    regio e recebam frequentemente visitantes interessados em suas belezas naturais,

    eles no fazem parte do foco da pesquisa. De qualquer modo, constituindo quase

    que uma extenso poltica e geogrfica de Lenis nota-se a presena desses

    povoados, ora pela proximidade, ora pelo intercmbio e dependncia estabelecidos

    com a sede do municpio.

    O distrito de Tanquinho, por exemplo, devido sua localizao geogrfica, tornou-

    se o portal de Lenis: uma passagem obrigatria para quem vai cidade. O

    aeroporto de Lenis, o maior da regio, fica situado no distrito de Tanquinho,

    onde tambm passam os nibus interestaduais que no entram em Lenis. Esses

    fatores contribuem para que o distrito torne-se uma extenso natural da sede do

    municpio, o que muitas vezes o inclui no campo de atuao da pesquisa.

    O objetivo aqui conhecer a regio dos diamantes e a sua natureza exuberante

    atravs daqueles que o construram. Os garimpeiros da Chapada Diamantina so

    vistos, no apenas por essa pesquisa, mas atravs de um reconhecimento social

  • 20

    significativo, como a ponte que une natureza e cultura, trabalho e meio-ambiente, e

    que dessa forma pode ajudar a decifrar as questes ligadas natureza e cultura

    local.

    Aps a paralisao do garimpo mecanizado, que esteve explorando o mineral na

    regio por cerca de quinze anos, os garimpeiros de serra (que no utilizam

    mquinas) tm sofrido uma acirrada presso para parar suas atividades de

    garimpagem na serra do Sincor rea principal do Parque Nacional da Chapada

    Diamantina. Foi elaborada uma Carta de Intenes para relatar esse problema e

    alguns seminrios e eventos foram organizados com o intuito de expor a situao

    dos garimpeiros de serra e mobilizar a populao local para a importncia de um

    acordo ou pacto social com a categoria garimpeira.

    Essa pesquisa insere-se no centro dessas discusses, constituindo-se em mais uma

    face desse processo, com o propsito de acentuar a relevncia do tema e

    principalmente, de instigar esses garimpeiros quanto sua condio social e

    humana. Tentamos ao longo desse estudo no contaminar a pesquisa com posies

    tendenciosas em defesa do garimpo de serra e/ou de alguns grupos em especial.

    Por outro lado, creio que no estamos inteiramente comprometidos com a

    neutralidade, que muitas vezes esteriliza o campo estudado. Em se tratando de

    uma pesquisa sobre um tema caracteristicamente conflituoso e tenso, e inserindo-

    me como parte desse processo, torna-se difcil manter uma posio alheia aos

    diferentes lados.

    A problemtica recortada por essa pesquisa aborda uma situao extremamente

    delicada que envolve questes indissolveis a curto prazo, at porque so questes

    processuais e tensas, como j foi dito, que passam pela propriedade legal, pela

    legalizao de um parque nacional, pelo direito de uso e propriedade dos

    garimpeiros e por fim, por interesses polticos do governo do estado, que vem

    investindo intensamente na indstria turstica local.

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    A dissertao est organizada em trs captulos. O primeiro captulo conta a

    histria de ocupao da Chapada Diamantina, o surgimento das cidades e

    povoados, e procura relatar atravs de uma idealizao do presente aquilo que foi

    a vida social das Lavras Diamantinas em tempos de abundncia e riqueza. No h

    uma preocupao nessa pesquisa em perceber a verdade dos fatos, aquilo que

    realmente ocorreu mas, acima de tudo, o modo como esses fatos so lembrados e

    reconstitudos no presente. Mesmo porque a maior parte desses registros

    formais e jurdicos foram destrudos durante as interminveis invases e lutas

    coronelistas na regio e em quase todo o estado da Bahia no inicio do sculo XX e

    fim do sculo XIX.

    No segundo captulo procuramos fazer uma referncia a alguns estudos

    etnogrficos sobre o garimpo, privilegiando aqueles que situa o garimpeiro como

    sujeitos de uma categoria ligada terra - investigando sua fluida identidade e a

    forma peculiar de se relacionarem com o espao natural - so estudos que buscam

    uma aproximao da figura humana do garimpeiro e da sua difcil condio de

    vida. Tanto na referncia bibliogrfica utilizada quanto na presente etnografia -

    concentrada nesse segundo captulo - h o compromisso em retratar os

    garimpeiros sem classific-los como bons ou maus sujeitos e sim enquanto

    trabalhadores rurais que apresentam srias dificuldades no trato com a natureza e

    com a sociedade que o cerca.

    O estilo etnogrfico sugerido aqui tenta escapar da descrio exaustiva sobre as

    tcnicas de trabalho dos garimpeiros de diamantes, sobre a organizao social do

    grupo ou ainda, de relatos detalhados sobre suas manifestaes culturais e

    religiosas. Entretanto, todos esses elementos esto presentes ao longo do texto. A

    escolha por uma etnografia focalizada na oralidade - nos relatos das experincias

    vividas, no momento presente, e nas idias e sentimentos de velhos garimpeiros de

    serra - deve-se ao fato de que as zonas de garimpo de diamante no tm hoje a

    concentrao social de antigamente. O que significa dizer que h uma

  • 22

    inconsistncia na identificao da categoria enquanto grupo social e

    consequentemente na elaborao de uma etnografia mais clssica.

    No captulo trs tratamos de questes mais atuais relacionadas ao garimpeiro de

    serra e ao espao natural que constitui seu lugar de vida e trabalho: a serra, mais

    precisamente a serra do Sincor - regio envolvida pelo parque nacional. Entre

    essas questes sobressaem duas importantes discusses, necessariamente

    interligadas, a principal delas a presena da indstria turstica na regio, atravs

    de um balano de dez anos de atuao e radicais transformaes procuramos

    retratar o turismo sob a tica dos garimpeiros de serra. A segunda discusso

    enfatiza no a atividade econmica do turismo, e sim a questo ambiental refletida

    pela prtica do ecoturismo e pela criao do Parque Nacional da Chapada

    Diamantina que envolve reas tradicionalmente usadas pelos garimpeiros de serra.

    Tanto a prtica do turismo ecolgico quanto a criao de um parque nacional em

    reas naturais da Chapada Diamantina so elementos importantes nesse estudo,

    pois surgem como causa e efeito de um processo econmico que h mais de dez

    anos tenta substituir a vocao garimpeira da regio por uma atividade mais

    estvel e menos prejudicial sua belezas naturais. Embora o garimpo esteja

    economicamente extinto, com pouqussimas extraes e nenhum lucro, o

    garimpeiro continua ocupando lugar de destaque na configurao atual.

    Eles, os garimpeiros de serra, possuem o conhecimento sobre as reas naturais da

    Chapada Diamantina, esto portanto qualificados no apenas como os melhores

    guias tursticos mas como auxiliares e tcnicos nas expedies cientficas de

    reconhecimento e mapeamento da fauna e flora da regio. Esto tambm no centro

    das discusses e embates a respeito do processo de legalizao do Parque Nacional

    da Chapada Diamantina - situado em grande parte na serra do Sincor - habitat

    por excelncia dos garimpeiros de serra.

    Os grupos locais, representados pelas organizaes governamentais e no

    governamentais engajadas em causas ambientalistas, e o grupo Avante Lenis -

  • 23

    que possui uma linha de ao mais ampla e composto em sua maioria por nativos

    da regio - so citados no terceiro captulo e nas consideraes finais pela estreita

    relao com a entidade de proteo dos garimpeiros de serra - a SUM. No nosso

    objetivo apresentar esses grupos e a discusso trazida por eles pois seria uma outra

    problemtica que no temos condies de contemplar nesse momento.

    Com uma ressalva apenas para o grupo "Avante Lenis", que ser abordado com

    um certo destaque por possuir uma linha de ao mais acoplada associao dos

    garimpeiros de serra, e por frequentemente conjugarem foras com a categoria no

    que se refere questes no campo das reivindicaes polticas e sociais. O grupo

    vem desenvolvendo programas de cidadania cultural e ambiental que visam o

    desenvolvimento social associado permanncia do garimpo de serra.

    As consideraes finais refletem muito das discusses realizadas no terceiro

    captulo, onde permito-me fazer uma reavaliao da atual relao do garimpeiro

    de serra com a regio da Chapada Diamantina como um todo e com a empresa

    turstica e ambiental mais especificamente. Permito-me tambm fazer sugestes

    que no esto sob a minha inteira responsabilidade, mas so frutos de um aparente

    consenso entre nativos e ecologistas da regio. So caminhos apontados pelos

    garimpeiros e inclusive pelos idealizadores do parque, que visam conjugar as

    atividades extrativistas e tursticas, embora paream inconciliveis.

    Nesse sentido a cidade pode estar trazendo uma inovao quando sugere um

    pacto entre predadores e conservadores da natureza. Talvez esse seja o ponto

    conclusivo dessa pesquisa, dado no pelo meu mrito mas pelo interesse dos

    grupos envolvidos em encontrar uma congruncia entre as duas economias

    aparentemente opostas e contraditrias. Se a congruncia sugerida de fato

    funcionar, Lenis ter outros predicados para apresentar outras chapadas,

    outros recantos naturais e contextos naturais conservacionistas.

  • 24

    22.. OO LLuuggaarr LLeenniiss

    Vista da cidade de Lenis do alto

    Partindo de Salvador, capital baiana, para a Chapada Diamantina percorrem-se

    420 km de rodovia intermunicipal totalmente asfaltada, ainda que em condies

    precrias. a BR-324 que depois se transforma na BR-242 medida que entra no

    interior do Estado fazendo a comunicao entre o litoral e a regio centro-oeste da

    Bahia, quase toda ela serto. Ao deixar pr trs Feira de Santana, a cerca de 120 km

    de Salvador, a primeira cidade que se apresenta como Chapada Diamantina

    Itaberaba que fica a aproximadamente 200 km de Lenis e indica que estamos em

    mais da metade do caminho.

    Enfrentando mais duas horas de viagem alcanamos a primeira localidade do

    municpio, um pequeno povoado chamado Tanquinho, menos de trinta minutos e

    chegamos na cidade de Lenis. Bem antes desse momento, logo ao sair de

    Itaberaba, a paisagem das serras recortadas e da vegetao extica j se apresentam

    ao visitante que pretende conhecer a Chapada. Encravada entre as serras, a cidade

    de Lenis parece estar em uma cratera, tudo se eleva diante dos olhos. A cidade

    cresce para o alto, para as encostas das serras que a cercam.

  • 25

    Ainda no alto da serra que se atravessa para chegar a Lenis, possvel avistar

    timidamente entre uma paisagem e outra alguns sinais da cidade que vai se

    revelando aos poucos aos olhos do visitante. Nesse momento muitos ficam

    tentados a imaginar a histria contada pelos mais antigos para explicar a origem

    do nome dado cidade: "... sob os toldos brancos dos acampamentos que, vistos do

    alto da serra, davam a impresso de lenis estendidos margem da caudal."5.

    Hoje j no avistamos as tendas dos garimpeiros mas certamente desfrutamos do

    espetculo das guas brancas e borbulhantes que descem esculpindo as pedras dos

    rios e que sob um olhar mais atento assemelham-se lenis brancos estendidos ao

    sol. So as primeiras imagens do rio Serrnio (ou Serrano), caldeires dgua que

    envolvem a cidade e que tm, quando vistos do alto, o formato do mapa do Brasil.

    Ao chegar em Lenis as guas j se apresentam atravs do rio Lenis que separa

    a cidade ao meio. O rio desce do balnerio Serrnio e suas guas nascem no alto da

    serra, da o nome Serrnio ou Serrano como tambm correto dizer, aps a

    travessia no interior da cidade o mesmo rio recebe o nome de So Jos e vai

    desaguar fora da cidade formando a prainha de Zaidan, lugar de areias de tom

    roseado e guas rasas e tranquilas, local escolhido pelas mes para o passeio com

    as crianas. Hoje o rio So Jos est quase todo assoreado, restando s vezes apenas

    uma areia escura, efeito da eroso causada pelo garimpo mecanizado praticado nos

    baixios do rio Ribeiro, outro rio prximo cidade. 6

    Lenis uma cidade relativamente antiga, fundada em 1856. Possui 144 anos de

    existncia. O censo de 1994 registrou cerca de 10.000 habitantes em todo o

    municpio e 6.000 concentrados na sede, hoje (ano 2000) h uma estimativa de

    5Moraes Walfrido. Jagunos e Heris: A civilizao do diamante nas lavras da Bahia. Salvador-Ba, Edies GRD, 1973, p. 15 5 O garimpo de draga ou mecanizado no deve ser confundido com o garimpo artesanal ou de serra, com o qual forma um contraste. O uso de dragas na garimpagem foi interditado no municpio de Lenis em abril de 1996. 6Os detalhes sobre a criao do Parque Nacional da Chapada Diamantina e seu estado atual vo ser tratados mais frente.

  • 26

    8.000 habitantes na sede e 12.000 no municpio. Em 1976, em reconhecimento ao

    seu conjunto arquitetnico, foi tombada pelo Servio de Patrimnio Histrico e

    Artstico Nacional (SPHAN - IPAC) e em 1985 foi criado um Parque Nacional em

    seus arredores. 7

    A cidade apresenta sempre um clima calmo e pacato, embora receba um nmero

    grande de visitantes durante quase todo o ano. A primeira impresso causada ao

    visitante de abandono, conciliada a um certo charme das cidades que viveram o

    sculo passado com vigor econmico e opulncia. Assemelha-se s cidades

    mineiras de Diamantina, Mariana, Serro e at mesmo Ouro Preto, que tambm

    compem a histria da minerao no Brasil. Tais comparaes sero feitas vez ou

    outra at mesmo pela procedncia da populao lenoense, quase toda ela vinda

    dos lados de Minas Gerais, principalmente da regio norte do estado.

    Lenis no um municpio bem assistido em termos de estrutura bsica e

    administrativa em vista da quantidade de visitantes que recebe por ano. A cidade

    possui apenas um posto de sade, que sempre existiu de forma precria, com

    apenas uma enfermeira responsvel e acaba de ganhar um hospital inaugurado no

    ano passado que vai contar com a assistncia de pelo menos dois mdicos titulares

    e de duas enfermeiras a mais.

    A praa principal, considerada o centro da cidade, abriga uma agncia do Banco

    do Brasil, nico do municpio, o enorme prdio da agncia de correios e telgrafos,

    a farmcia, uma biblioteca municipal, onde tambm funcionam o Ibama e outros

    rgos ambientais do Estado, o prdio do antigo sub-consulado francs - um dos

    edifcios mais apreciados pelos visitantes pela sua beleza e localizao -, e o

    sobrado onde h projetos de funcionamento dos futuros museus do Garimpo, do

    Jar 8 e do Coronelismo. Por enquanto o nico museu da cidade em funcionamento

    8O Jar considerada uma religio de origem africana produzida no serto baiano, principalmente nas zonas de garimpo. Alguns aspectos e elementos dessa religio sero comentados no presente trabalho embora esse no seja nosso tema.

  • 27

    o que dedicado ao escritor Afrnio Peixoto, natural de lenis. Os demais

    prdios da praa so ocupados pelo comrcio: so bares, restaurantes e lojas de

    artesanato voltados para o turismo.

    A praa central, assim como a nica escola primria estadual, recebe o nome de

    Horcio de Matos, chefe poltico e coronel que liderou a poltica e economia da

    cidade no sculo passado - o cl dos Matos, denominao dada pelos historiadores

    do coronelismo na Bahia, contemporneo histria da garimpagem na Chapada

    Diamantina.

    Lenis possui apenas duas igrejas, situadas em lados opostos da cidade. A igreja

    mais importante a do Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos, padroeiro dos

    garimpeiros manuais, que fica logo entrada de Lenis. A outra igreja dedicada

    padroeira da cidade Nossa Senhora da Conceio e conhecida como igreja do

    Rosrio, esta fica em uma praa sutilmente escondida ao primeiro olhar.

    Embora Nossa Senhora da Conceio seja oficialmente a padroeira do lugar,

    notria a pouca popularidade da santa entre os lenoenses - a maior parte da

    populao devota do Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos, padroeiro dos

    garimpeiros -, ao lado das entidades e santos do Jar. Alguns consideram o

    Senhor dos Passos, abreviao bastante usada no local, como o verdadeiro

    padroeiro de Lenis. So igrejas bem simples apesar da riqueza que ali se

    instalou, em nada se comparando, por exemplo, s igrejas mineiras de Ouro Preto,

    sobre as quais escreveu Carlos Rodrigues Brando: ... o sagrado parece ser ali.9

    Aps um breve passeio entre as ruas estreitas e inclinadas de Lenis, caladas

    com pedras da prpria regio, encontram-se as hospedarias prximas ao centro

    que so normalmente modestas casas de famlias transformadas em hotis, abrigos

    e alojamentos. As pousadas maiores e com maior conforto ficam mais afastadas,

    so construes recentes e algumas alcanam o sop das serras que circundam

    9Brando, Carlos Rodrigues. A Cultura na Rua: Ouro Preto. Campinas, manuscrito, s.d.

  • 28

    Lenis. O tombamento no permite novas construes no centro da cidade e de

    todo modo no resta espao fsico para isso, a no ser derrubando os antigos

    imveis, o que se constitui em crime inafianvel contra o Patrimnio.

    A prefeitura um dos edifcios arquitetnicos de grande valor histrico e cultural.

    Em seu interior esto abrigados, alm de todo o sistema administrativo municipal -

    gabinete do prefeito, secretarias e funcionrios -, a cadeia pblica municipal que

    fica no subsolo do prdio. Com exceo do frum e da cmera dos vereadores,

    todos os rgos: pblicos e administrativos, municipais, estaduais ou federais,

    ocupam os sobrados e casas antigas, todas elas tombadas pelo Patrimnio

    Histrico. Ocorre o mesmo com rgos pblicos ambientais como o Ibama -

    Instituto Brasileiro de Meio Ambiente -, bem como outras instituies ambientais

    estaduais e municipais que sero citadas adiante.

    As casas possuem todas alguns traos da arquitetura colonial do sculo passado.

    So sobrados e casas estreitas em sua maioria, cuja extenso evolui para os fundos

    formando longos corredores que interligam os cmodos do imvel. No alto da

    porta, logo na entrada dos sobrados residenciais, e nas esquinas das construes,

    comum a presena de lampies, resgatando um passado de histrias e influncias

    estticas e culturais de diversas partes do mundo.

    Alguns sobrados e casas residenciais se destacam das demais, como os da famlia

    do comerciante Sebastio Guanaes 10, do colecionador e restaurador de objetos

    antigos, Mestre Osvaldo, o da famlia Senna, o de Edgar (antigo sub-consulado

    francs) e o da famlia Andrade: destacam-se como exemplos de arquitetura

    colonial e so privilegiados pela localizao. Todos eles j foram citados em livros

    de folcloristas e romances de escritores locais.11

    10 Trata-se de um imvel pertencente minha famlia. Citado aqui por ser um prdio de grande valor histrico e cultural. 11Ver Gonalves, M. Salete Petroni de Castro. -Garimpo, Devoo e Festa em Lenis-BA-. So Paulo, Escola de Folclore, 1984, p. 27

  • 29

    H duas grandes construes que saltam aos olhos dos visitantes. Uma a ponte

    que une os dois lados da cidade separados pelo rio Lenis. A ponte, embora

    simples em sua arquitetura, tem um enorme valor para os lenoenses pela sua

    fora e importncia histrica, tendo resistido a vrias enchentes. Os moradores

    contam que a ponte, de trs arcos, foi construda pelo escravos toda em pedra,

    usando, como argamassa, leo de baleia e gema de ovos. A construo datada de 1860

    foi rompida ao meio na enchente de 1976, que arrasou com a cidade, deixando

    vrios desabrigados e instaurando estado de calamidade pblica em todo o

    municpio.

    A outra construo importante o mercado municipal, localizado na praa das

    Nags, onde durante muitos anos acontecia a feira pblica, transferida para um

    outro local pela atual prefeitura com a alegao de uma reforma ainda no

    concluda. O mercado possui um estilo barroco bastante acentuado, com enormes

    arcos de pedras, e l desenrolaram-se importantes acontecimentos locais que vo

    desde poltica vida cultural. O mercado foi tambm cenrio do filme Bugrinha:

    Diamante Negro, produzido pelo cineasta Orlando Senna e baseado no romance de

    Afrnio Peixoto.

    Embora o municpio de Lenis seja um local privilegiado pela natureza,

    destacado pela cultura diamantfera que ali se desenvolveu - gerando riquezas e

    fama ao lugar -, o que o faz um lugar privilegiado pela presente pesquisa no

    especialmente seu passado de diamantes ou sua forte histria de guerras e

    conquistas travadas pelos chefes polticos da regio ou ainda a beleza das suas

    reas naturais que desperta a ateno de viajantes de todas as procedncias.

    Acredito que todos esses elementos agrupados transformam Lenis em um rico e

    interessante locus de pesquisa. Ou seja, o que nos interessa de fato a

    representatividade que todas essas coisas tm no cenrio dos conflitos e debates

    sobre as formas de uso e concepo dos espaos naturais. Nesse sentido Lenis

    no apenas um lugar turstico em evidncia que recupera-se do anonimato e

  • 30

    esquecimento provocado pelo efeito cclico de uma economia de subsistncia

    qualquer.

    Mais do que isso, a cidade vem de um passado de reconhecimento mundial pela

    sua economia diamantfera, aps a escassez de suas jazidas conhece o abandono e

    a pobreza, convive com a nostalgia dos tempos da riqueza e do poder poltico,

    permanece sobrevivendo de um garimpo incipiente e estatisticamente ignorado

    pela economia estadual, at ser resgatada pela florescente indstria do lazer que

    alimenta novas formas de explorao econmica e estabelece um outro nvel de

    relao entre a populao e o meio natural do qual parte.

    A histria original e at mesmo adversa da regio da Chapada Diamantina com

    sua singularidade de um passado exclusivamente extrativista, que embora

    perverso com a natureza, se alimenta hoje da sua exuberncia e preservao para a

    sobrevivncia econmica da populao, nos faz acreditar que na Chapada

    Diamantina e especialmente na cidade de Lenis encontramos elementos

    privilegiados para o exerccio de investigao acerca de temas que ganham hoje

    importncia internacional, e nos quais se cruzam a importncia do turismo na

    economia, e a relao entre as populaes ambientais e as unidades de

    conservao.

    O desenvolvimento dessa pesquisa na cidade de Lenis confundiu-se, pelas

    razes expostas na seo seguinte, com a minha histria pessoal. De qualquer

    modo, gostaria de ressaltar que o meu olhar sobre a cidade, e sobre o tema que esse

    trabalho repousa, no foi acentuado apenas pela condio de nativa, mas

    principalmente pela longa histria de envolvimento poltico com a questo

    ambiental atravs da participao em grupos, partidos e associaes ambientais e

    ecolgicas durante muitos anos e at os dias atuais.

  • 31

    33.. EEuu,, NNaattiivvaa

    ... para se estar em estado de operar uma objectivao que no seja a simples viso

    redutora e parcial que se pode ter, no interior do jogo, de outro jogador, mas sim a

    viso global que se tem de um jogo passvel de ser apreendido como tal porque se

    saiu dele. 12

    Comeo com a citao acima porque ela aponta um problema metodolgico que se

    apresentou em diversos momentos desse trabalho. A dificuldade em fazer parte do

    prprio campo de pesquisa e de estar, ao mesmo tempo, fora e dentro desse campo

    fizeram-me pensar sobre a minha posio no interior desse jogo e sobre os limites

    polticos e emocionais das relaes constitudas. Decidi ento contar a minha

    prpria histria numa tentativa de refletir sobre os caminhos que me levaram de

    volta Lenis e sobre as questes focalizadas nessa pesquisa.

    As palavras de Bourdieu em epgrafe refletem de modo muito pertinente o modo

    como me vejo enquanto pesquisadora de um ambiente familiar. Por um lado a

    pesquisa consiste em uma objetivao - o que significa que fui obrigada a me

    distanciar do ambiente que faz parte integrante de minha subjetividade, para v-lo

    como objeto, com uma viso global. Mas por outro lado trata-se de uma

    apreenso de quem saiu dele, como eu.

    Construir dilogos que permitam uma compreenso do sentido do jogo do outro,

    nos aproximar das regras desse jogo ao ponto de conhec-las e compreend-las,

    sem no entanto nos tornarmos aliados de uma ou outra parte sem dvida uma

    tarefa difcil. Entretanto construir a estranheza tambm representa um exerccio

    rduo. Diramos que a questo metodolgica pertinente ao processo de construo

    do campo emprico dessa pesquisa foi a de construir o distanciamento necessrio

    para no apenas enxergar o outro como tambm para me enxergar em relao a

    esse outro.

    12Bourdieu, Pierre. O Poder Simblico: Cap. II - Introduo a uma sociologia reflexiva, pg. 58.

  • 32

    Nasci e passei meus primeiros nove anos de vida em Lenis, na Chapada

    Diamantina. Sou pois filha de famlia tipicamente sertaneja, embora Lenis seja

    considerado o serto das guas: a proximidade com o velho rio So Francisco, com

    as cidades de Irec, grande produtora de feijo, e com Xique-Xique, quase smbolos

    do serto baiano, reafirma o meu pertencimento s terras ridas do serto.

    Minha famlia composta de dois casamentos por parte do meu pai. Tenho sete

    irmos do primeiro casamento - chamamos: parte de pai - e apenas um irmo do

    segundo casamento do qual tambm sou fruto. Minha famliar nuclear era ento

    pequena, composta por mim, meu pai, minha me e meu nico irmo pelos dois

    lados: pai e me.

    O meu pai, Sebastio Guanaes, esteve por pouco tempo quando ainda era jovem

    no oficio da garimpagem, como os garimpeiros mais antigos gostam de dizer.

    Segundo alguns deles, Seu Sebastio saiu do garimpo porque bamburrou 13,

    entretanto no sabemos ao certo se essa informao verdadeira. O fato que a

    maior parte dos homens de Lenis j estiveram de alguma forma envolvidos com

    a atividade mineira. Seja como comerciante de diamantes, como dono de garimpo

    ou simplesmente como garimpeiro.

    De qualquer modo, meu pai sempre foi reconhecido na cidade de Lenis e

    imediaes como comerciante por ter estabelecido um pequeno comrcio de

    tecidos e medicamentos (loja de tecidos, bazar e farmcia ao mesmo tempo) entre

    as cidades de Lenis, o povoado de Estiva e o povoado da Parnaba, no municpio

    de Iraquara. Durante toda a minha infncia estive viajando entre essas pequenas

    localidades em companhia dos meus pais, e o Capo, vale pertencente ao

    municpio de Palmeiras, onde moravam meus avs maternos.

    Morei em Lenis durante toda minha infncia. Lembro-me do meu pai bastante

    envolvido com a poltica da regio, tinha muitos amigos prefeitos, deputados e

    13 Encontro de diamantes grossos e de valor pondervel. Enriquecimento sbito no garimpo. Moraes, Walfrido. Jagunos e Heris. Edies GRD, Salvador, 1973.

  • 33

    estava sempre engajado em campanhas entre os povoados onde tinha comrcio.

    Ser dono de farmcia, lugar onde tinha muitos remdios e portanto a cura das

    doenas, fazia do meu pai um homem muito conhecido e respeitado na Chapada

    Diamantina.

    Meu pai era filiado ao PMDB, na poca oposio partidria ao antigo PDS, em

    Lenis esses partidos eram apelidados respectivamente de Pavo e Jac. Lembro-

    me de momentos tensos em poca de eleio, para uma cidade com forte passado

    coronelista a poltica era uma questo de vida ou morte e sempre envolvia toda a

    famlia. Houve episdios trgicos que envolveram roubos, sequestros e trotes

    violentos entre os candidatos e seus aliados. Em poca de eleies muitas famlias

    tiravam seus filhos da cidade ou simplesmente no deixavam sair de casa sem

    estar devidamente acompanhados.

    Recordo tambm que os homens considerados figuras importantes na regio eram

    normalmente comerciantes de diamantes ou donos de garimpo. A poltica era,

    portanto, muito marcada e at decidida pela opinio dos garimpeiros e pela

    dinmica da minerao. Muitas vezes o momento de comercializao das pedras -

    realizado em bares, dentro de casa ou nos estabelecimentos comerciais - era

    tambm o momento de discusso a respeito dos chefes polticos e de seus ltimos

    atos ou palavras.

    Na loja de tecidos do meu pai tinha sempre algum garimpeiro descendo a serra

    (voltando do garimpo) com uma gema14 em mos, oferecendo ao meu pai e seus

    amigos. Principalmente padrinho Z Senna, grande amigo do meu pai. Z Senna,

    que j foi prefeito da cidade, sempre comprava diamantes ou discutia sobre

    poltica l na loja, onde tambm contava as novidades do Rio de Janeiro, cidade

    onde morava. Por ser meu padrinho estava sempre a me presentear com pequenas

    14Como tambm chamada a pedra de diamante.

  • 34

    pedras de diamantes que quase sempre transformavam-se em anis nas mos dos

    lapidadores.15

    Em Lenis normalmente as pessoas eram presenteadas com pedras de diamantes

    ou jias com diamantes, quando casavam, completavam quinze anos, quando eram

    batizadas, quando formavam-se, ou em qualquer outra data especial. No eram

    diamantes muito valiosos embora fossem muito estimados por aqueles que os

    possuam. Era uma ofensa por exemplo, vender o diamante ganhado ou

    simplesmente no us-lo nas ocasies especiais.

    E assim, entre diamantes, brincadeiras, polticos e poltica, muitos banhos na

    prainha de Zaidan e poucos banhos de cachoeira - os balnerios da Chapada eram

    considerados muito perigosos para as crianas - eu vivi minha infncia em Lenis.

    Em 1979 minha famlia mudou-se para Salvador em busca de uma melhor

    formao escolar para os filhos. Tal deslocamento sempre foi muito comum entre

    as famlias do lugar e ainda hoje prima-se pela formao escolar e acadmica.

    Antigamente o Rio de Janeiro era o local escolhido para a morada dos lenoenses,

    s mais tarde passou-se a valorizar a capital baiana e desde ento o fluxo

    migratrio vm se intensificando.

    Por volta de 1985, ento com quinze anos, comecei a atentar para a movimentao

    turstica e ecolgica que estava acontecendo na Chapada Diamantina. Tomei

    conhecimento ento do movimento ecolgico SOS Chapada16, tive a oportunidade

    de participar de diversas reunies do grupo, mas no me identificava com o

    carter discursivo e terico do grupo. Eu tinha em mente uma ecologia voltada

    15Pessoas que trabalhavam nas casas de lapidao: lugar onde os diamantes eram trabalhados at chegar luz e cor adequadas e em seguida eram transformados em jias pelos artesos. Lenis j possuiu vrias casas de lapidao. 16 O grupo visava chamar a ateno para a proteo do ecossistema da Chapada Diamantina, baseados na idia de que estava na Chapada a nascente do rio responsvel pelo abastecimento de gua da cidade de Salvador. O Grupo tinha a participao de militantes ecolgicos de Salvador.

  • 35

    para a prtica, nos moldes do Greenpeace17, com bastante ao e intervenes

    radicais, embora procurasse acompanhar todos os eventos, reunies e discusses

    dos grupos ambientalistas que conhecia todos eles j atentos e sensibilizados com

    a importncia e fragilidade do ecossistema da Chapada Diamantina.

    Desde ento participei de muitos movimentos ou aes que envolviam a Chapada

    Diamantina: movimentos culturais e ecolgicos, feiras e eventos, cursos e palestras,

    promoes tursticas, entre outros. O destaque maior fica com a militncia e

    filiao ao PV - Partido Verde de Salvador (dos 17 aos 20 anos) para em seguida

    aderir ao PT - Partido dos Trabalhadores. Ambos os partidos, PV e PT, possuem

    comits e uma participao popular ampla em Lenis.

    Creio que a cidadania ecolgica, evidenciada quando os incndios ameaam

    destruir a serra ou quando as queimadas ou assoreamento causado pelo garimpo

    mecanizado danificava a paisagem natural, foi uma das grandes responsveis pelo

    processo de transformao da conscincia poltica local, hoje contagiada por

    associaes, Ongs e movimentos sociais (pequena escala) de todas as espcies.

    O destaque fica para o trabalho de guia turstico, experincia curta (1 ano

    aproximadamente) no entanto bastante proveitosa e instigante. Muitas das

    impresses, das vivncias e das relaes apreendidas durante o trabalho de guia

    estaro colocadas ao longo dessa pesquisa. Creio inclusive que a experincia de

    guia turstico foi o ponto inicial de reflexo para esse trabalho, desde quando os

    temas bsicos que compem a dissertao - o turismo, a ecologia e o garimpo -

    relacionam-se e reconhecem-se no oficio do guia.

    J morava em Salvador quando, por acaso, fiz a minha primeira trilha como guia

    turstico. Estava em Lenis quando encontrei um grupo excursionado por um

    amigo de Salvador que estava fundando uma agncia de viagens. Como a maior

    17Greenpeace uma associao civil sem fins lucrativos, fundada h 28 anos com o objetivo de lutar pela defesa do meio ambiente. Atualmente possui escritrios em 30 pases, inclusive no Brasil, e sobrevive com a contribuio financeira dos seus scios.

  • 36

    parte das agncias, o grupo vinha de Salvador acompanhado por um guia

    responsvel pela excurso, quase que um agente de viagens, chegando na cidade

    procuravam um guia local e faziam seus passeios. Meu amigo no havia reservado

    o guia local com antecedncia (que deveria ser credenciado) e convidou-me para

    guiar o grupo dele.

    Pedi autorizao Secretaria de Turismo - rgo responsvel pela formao e

    organizao dos guias naquela poca - e segui viagem. Fiz todos os passeios

    previstos para um fim de semana e logo em seguida estava contratada para

    trabalhar na agncia. Minha funo seria a de agenciar a viagem desde o momento

    de sada de Salvador, o que compreendia: checar passagens, nmeros de

    passageiros, se a bagagem estava adequada ao passeio, tempo e local das paradas

    no trajeto at Lenis, a organizao no interior do nibus, checar as acomodaes

    no hotel, entre outras coisas.

    Ao chegar em Lenis eu prpria guiava o grupo em todos os lugares, apenas nas

    grutas era exigido um guia especial (guia especialista em cavernas), que era

    treinado e autorizado pela Secretaria de Turismo do municpio em comum acordo

    com os donos das fazendas onde ficam as grutas em visitao. Fiz algumas viagens

    com essa agncia. As excurses sempre saiam de Salvador, embora as pessoas

    fossem de diferentes partes do mundo: Japo, Europa, Estados Unidos da Amrica,

    e o Brasil inteiro, principalmente So Paulo. Normalmente o grupos estrangeiros j

    possuam seus tradutores, que os acompanhavam desde a chegada ao Brasil.

    Ao longo desse trabalho permito-me acrescentar vrias das impresses e

    sentimentos que fui adquirindo ou simplesmente elaborando durante a prtica de

    guia turstico em reas naturais, embora no seja esse o tema proposto aqui.

    Entretanto, til lembrar que naquela poca eu era apenas uma jovem

    secundarista e no uma estudante de Antropologia - minha condio atual. Desse

    modo, todos os comentrios, dados e informaes referentes esse perodo, alm

    de representarem uma viso do senso comum, precisam ser remetidas ao contexto

  • 37

    em questo: ou seja, o olhar subjetivado de uma adolescente nativa, hoje

    contrastado com o olhar antropolgico de uma mulher adulta.

  • 38

  • 39

    11.. AABBRRIINNDDOO AASS TTRRIILLHHAASS:: AA OOccuuppaaoo ddaa CChhaappaaddaa DDiiaammaannttiinnaa

    11..11.. TTrriillhhaannddoo aass LLaavvrraass DDiiaammaannttiinnaass

    " 'Contar muito dificultoso, afirma, num relance, Riobaldo ao interlocutor na

    sua longa travessia narrativa. O esforo est justamente na percepo de que

    'Tudo , e no ', de que a existncia de tudo se produz por ambigidades. Da a

    importncia e preciso do narrador de se mover num campo minado de

    possibilidades, do que se escolher e privilegiar no ato de contar" 18

    O exerccio de contar a histria passada muitas vezes rduo e difcil,

    principalmente quando o que se tem um passado economicamente mais

    favorvel que o presente. A histria de Lenis e de vrias outras cidades da

    Chapada Diamantina histrica19 est marcada por um saudosismo, caracterstico

    de cidades que viveram os surtos de riqueza e a opulncia social das zonas de

    minerao, quando das primeiras descobertas do minrio explorado.

    A noo de trilhas foi a soluo encontrada ao longo dessa pesquisa para lidar

    com a historicidade presente sem precisar ser fiel aos fatos mas ao que as pessoas

    pensam, vivem e sentem sobre esses fatos. As trilhas foram incorporadas tambm

    porque sugerem no apenas algo que est se encaminhando, percorrendo e

    possivelmente se encontrando, como tambm pelo seu significado literal. A

    Chapada Diamantina foi "inventada" em seu sentido cultural e imaginrio - pelos

    garimpeiros em busca de ouro e diamantes; estes foram responsveis pelo

    "verdadeiro desbravamento e colonizao da Chapada Diamantina e seus

    arredores"20 e pelas primeiras trilhas que cruzaram a regio.

    18 Pena, Eduardo Spiller. A Narrativa, a Histria e o "Mido Recruzado". Manuscrito, cerca de 1996. 19 Denominao dada oficialmente ao conjunto de cidades descobertas atravs da minerao de ouro e diamante. 20Bandeira, Renato L. Sapucaia. Chapada Diamantina: Histria, riquezas e encantos. Onavlis Editora, Salvador, 1997.

  • 40

    As expedies dos bandeirantes baianos e paulistas regio central do Estado da

    Bahia representam a primeira etapa de dois momentos distintos do desbravamento

    da Chapada. A segunda etapa, que realmente veio consolidar o desbravamento e a

    colonizao da regio, representada pelos garimpeiros que abriram as trilhas e

    apresentaram o norte da cordilheira do Espinhao ao mundo21. As mesmas trilhas

    so usadas mais de um sculo depois pelos "turistas trilheiros - amantes da

    natureza, caminheiros ou simplesmente, turistas, que percorrem as antigas

    trilhas e abrem novos caminhos, recompondo a histria da Chapada Diamantina.

    H muitas histrias e registros documentais sobre a descoberta e explorao dos

    veios de diamantes na Bahia, encontramos ainda numerosos registros sobre a

    passagem de viajantes e naturalistas pelo Estado. Em quase todos os registros h

    relatos sobre a existncia de pedras preciosas na regio centro-oeste do Estado

    (Chapada Diamantina) que datam do inicio do sculo XVIII. No nos

    concentramos nessa documentao pois no nossa inteno contar a histria da

    minerao na regio centro-oeste e no resto do Brasil, mesmo porque trata-se de

    uma histria por vezes conturbada, onde a ausncia de regras claras e a falta de

    controle poltico permitiam interpretaes e registros muitas vezes alheios

    verdade.

    No espantoso ento que a minerao nessa rea tenha sido legalizada e

    reconhecida um sculo depois quando teve um breve, porm forte, impacto na

    economia baiana. Nos tpicos abaixo relatamos algumas ocorrncias sobre a

    descoberta dos veios diamantferos da Bahia e mais na frente, a dimenso que tal

    descoberta alcanou na vida social das cidades da Chapada Diamantina e na

    economia do Estado.

    Por Chapada Diamantina compreende-se uma rea extensa. Situada na regio

    central do Estado da Bahia, a Chapada Diamantina compe parte da serra da

    21 Chama-se de Espinhaoum conjunto de montanhas que prolonga-se ao norte e que, chegando na regio centro oeste da Bahia, durante o ciclo da minerao, recebe o nome de Chapada Diamantina.

  • 41

    Mantiqueira, que ao chegar na Bahia desdobra-se em duas outras formaes: a

    serra do Espinhao e a serra da Mangabeira. As duas fundem-se na direo sul-

    norte do Estado baiano; no sul ela faz fronteira com Minas Gerais e cruza com as

    zonas agrcolas e pastoris do cacau e do gado. Ao norte, aproxima-se cerca de cem

    quilmetros ao sul do rio So Francisco, na direo oeste-leste do seu percurso.22

    O bloco geogrfico conhecido como Chapada Diamantina divide-se ento em duas

    regies econmica e fisicamente distintas: a regio agropastoril que engloba

    cidades como Seabra, Iraquara, Livramento do Brumado, entre outras; e a regio

    histrica ou lavrista, representada por cidades como Andara, Mucug, Rio de

    Contas, Palmeiras e Lenis. Na Chapada Histrica encontramos outra subdiviso

    que diferencia a Chapada do Ouro da Chapada do Diamante. Sugerimos Rio de

    Contas como a cidade representante da Chapada do Ouro e Lenis como a

    principal referncia para a Chapada do Diamante.

    A regio "lavrista", composta pelo garimpo de diamantes, o entorno que nos

    interessa neste trabalho. Os termos sociedade lavrista, cidade lavrista ou Lavras

    Diamantinas so usados por estudiosos para designar o encontro de correntes

    migratrias e do processo de relaes sociais envolvidos com a economia do

    diamante, ou lavra.

    Faremos uso corrente destes termos de sabor histrico por se tratar de uma

    linguagem comum entre os autores da regio e entre grupos especficos locais

    como bilogos, cientistas sociais, poetas, escritores, professores e polticos. Em

    alguns momentos do texto, para efeito de abreviao, chamaremos a Chapada

    Diamantina simplesmente de Chapada: a inicial maiscula o diferencial

    escolhido para lembrar que estamos nos referindo regio e no classificao

    geogrfica.

    22Senna, Ronaldo de Salles. Jar - Uma face do candombl: manifestao religiosa na Chapada Diamantina. UEFS Editora, Feira de Santana, 1998.

  • 42

    Este captulo tem como objetivo contar um pouco da histria de ocupao da

    Chapada Diamantina. O captulo divide-se em dois tpicos: no primeiro contamos

    a histria da descoberta dos primeiros diamantes na regio da serra do Espinhao,

    no Estado da Bahia. Introduzimos alguns registros histricos importantes que

    ajudam a explicar a procura por pedras preciosas no territrio baiano, inicio do

    sculo XVIII, e o deslocamento da minerao de diamantes do Estado de Minas

    Gerais para Bahia.

    No segundo tpico concentramos na histria de fundao e povoamento do

    municpio de Lenis, uma das principais cidades surgidas durante o garimpo de

    diamante na Chapada Diamantina. A histria de Lenis confunde-se com a

    histria de toda a regio diamantfera. Portanto, em vrios momentos do texto

    permito-me falar da regio tomando como referncia a cidade, na tentativa de

    esboar uma etnografia do passado local, compreendendo como local apenas o

    entorno da sede do municpio de Lenis. Excluindo portanto seus povoados,

    distritos e vilarejos.

    EEmm BBuussccaa ddooss DDiiaammaanntteess

    "Encontram-se diamantes, na provncia de Minas Gerais, ao longo da serra do

    Espinhao, ao norte desta at os limites setentrionais da mesma provncia, e nas

    montanhas, que ficam ao sudoeste do rio So Francisco, e na Bahia, (...) e serras

    meridionais mais prximas ao vale desse rio, e tambm no Sincor (serra situada

    no atual municpio de Lenis) e Chapada (Chapada Velha). 23

    Em decorrncia da proibio - decretada pelo Conde das Galva - da atividade de

    minerao no Estado de Minas Gerais24, vrios outros pontos e localidades do

    23 Imprio do Brazil na Exposio Universal de 1876 em Philadlphia. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1875. 24Sales, Herberto. Garimpos da Bahia. Ministrio da Agricultura - Servio de Informao Agrcola - Documentrio da Vida Rural, Rio de Janeiro, 1955, n. 8.

  • 43

    Brasil passaram a ser explorados, gerando novas descobertas. Embora seja

    impreciso localizar datas, os garimpeiros oriundos principalmente de Gro Mogol

    e Tejuco (regio de Diamantina no norte de Minas Gerais), comearam a chegar em

    aproximadamente 1818 e 1819: datas mais antigas encontradas em arquivos e

    registros sobre a descoberta do diamante na Bahia.

    Os garimpeiros, tropeiros e aventureiros, vindos do norte de Minas Gerais e os

    comerciantes, investidores e seu squito de escravos e empregados, vindos do

    Recncavo baiano - principalmente das cidades de Cachoeira, Santo Amaro e So

    Flix - so as duas correntes migratrias predominantes na ocupao da Chapada

    Diamantina. Embora sejam incertas as datas que remetem descoberta dos

    primeiros diamantes na Chapada Diamantina, h uma reincidncia no fato de que

    a descoberta tenha se dado no ano de 1841. Tambm no se sabe ao certo o local

    onde foi encontrado o primeiro diamante. Provavelmente na regio aurfera de Rio

    de Contas (Chapada do Ouro).

    Normalmente a formao de garimpos, principalmente os informais, um

    processo acelerado e desordenado. Ainda que um indivduo ou um pequeno

    grupo organize-se prioritariamente na explorao de uma determinada rea, assim

    que se alcanam os primeiros resultados positivos o que significa encontrar o

    mineral procurado ou outros minerais que normalmente o acompanham em

    pouco tempo avanam para o local um enorme contigente de pessoas que se

    deslocam em busca do "achado" ou da "nova rea". So centenas de garimpeiros

    explorando desenfreadamente as riquezas minerais em reas comuns e diversas, o

    que dificulta o reconhecimento da autoria e do local da descoberta.

    A atividade extrativa de diamantes no Brasil colonial sempre teve uma relao

    dbia e complicada com o governo da metrpole. Administradores nomeados

    tinham o poder de determinar a quantidade a ser extrada em cada lavra, de

    conceder ou no matrcula aos escravos empregados, de autorizar a residncia das

    pessoas recm-chegadas ao distrito, de regulamentar o comrcio e de gerir outros

  • 44

    aspectos da vida dos garimpos25. No inicio da minerao no Brasil o governo

    permitia a livre extrao com o pagamento do quinto, at 1739, para em seguida

    estabelecer o arrendamento por contrato que durou 32 anos, at 1771 e, por fim, ao

    monoplio direto da extrao.26

    Apesar do acirrado controle e da severidade com o sistema de extrao os

    garimpeiros encontravam meios de driblar o sistema, mantendo os resultados da

    garimpagem e a comercializao das pedras longe do controle da metrpole, o que,

    de certo modo, dificultou o registro de algumas descobertas importantes realizadas

    na Bahia. O ciclo diamantfero da Chapada Diamantina nasceu sob esse clima tenso

    e em consequncia da proibio do garimpo no norte do Estado de Minas Gerais, o

    que explica em parte, a curta trajetria.

    O autor Othon Leonardos - citado por Guimares em Histria da Minerao -conta

    que as minas de Rio de Contas na Bahia foram descobertas por paulistas, entre

    1718 e 1719. J um outro autor transfere o evento para 1731. Contudo, Orville A.

    Derby -- gelogo norte americano -- desloca o acontecimento do achado de

    aluvies produtivos de diamantes no territrio baiano para o sculo XIX, mais de

    cem anos depois.

    Nos primeiros vinte meses ali passaram duas mil almas, das quais quinhentas

    eram garimpeiros. A produo de diamante, alm do ouro, nesses meses foi

    calculada em dez mil quilates, tendo a maior pedra encontrada o peso de dois

    quilates. Logo a seguir foram descobertas as aluvies: do Morro do Chapu,

    aproximadamente em 1841; da Chapada Grande, mais tarde chamada de Serra das

    Aroeiras, pelo padre Queirz, em 1842; do rio Mucug, em 1843; de Xique-Xique,

    Andara, Lenis e serra do Sincor, nos anos seguintes; em localidades dispostas

    em forma circular, cuja regio interior tomou o nome de Chapada Diamantina.27

    25Guimares, J. E. Passos. Eptome da Histria da Minerao. Art Editora - Secretaria de Estado da Cultura, So Paulo, 1981. 26Bandeira, 1997. Op Cit. 27Derby, Orville A. em Guimares, 1981. Op Cit.

  • 45

    Embora Derby afirme que os achados ocorridos antes do sculo XIX tenham sabor

    de lenda, resta uma pergunta: como explicar a proibio da explorao de

    diamantes na Bahia, por ato do vice-rei, datado de outubro de 1732 ?

    De qualquer modo, ponto consensual afirmar que a minerao baiana s tomou

    vulto aps 1844, perodo em que a economia do Estado se reorganizou em torno da

    acelerada produo diamantfera. A descoberta dos veios de diamantes era quando

    possvel silenciada: primeiro, pelo motivo bvio de manter uma explorao

    exclusiva da rea descoberta; segundo, pelos conflitos trazidos por pactos e

    negociaes feitos anteriormente, muito comuns em atividades garimpeiras;

    terceiro, pelo acirrado controle do governo que cobrava altas taxas tributrias

    comercializao das pedras.

    Ou seja, o silncio de alguns garimpeiros, como tambm o "alarme falso" dado por

    outros, so causas preponderantes das dvidas, incertezas e mistrios acerca dos

    primeiros surtos de diamante na Chapada Diamantina.

    provvel que a proibio vinda da metrpole, com a ordem de interditar o

    garimpo de diamantes em Minas Gerais, tenha sido o motivo principal que levou

    os garimpeiros experientes da regio de Gro Mogol e imediaes a seguirem a

    serra do Espinhao e adentrarem no territrio baiano em busca de veios de

    diamantes. O mesmo ato proibitivo tambm responsvel pela produo e

    comrcio clandestino dos diamantes.

    Durante muito tempo os diamantes produzidos na Bahia no foram contabilizados

    na economia do Estado (Falcn 1985), o que impossibilitou o reconhecimento e a

    quantificao de uma parte significativa da produo mineral local. Em seguida, a

    ausncia de registros e de controle sobre o comrcio das pedras preciosas na

    Chapada foi provocada pela escassez dessas pedras. Ainda h uma falta de

    interesse do governo em observar a produo mineral da regio por considerarem

    pouco vultuosa.

  • 46

    A decadncia da minerao de diamantes na Chapada Diamantina foi to rpida

    quanto a sua ascenso. Contudo, devemos considerar que o ciclo diamantfero

    registrado e contabilizado pelos rgos oficiais; de acordo com os relatos,

    descries e documentos; parece ter sido menor do que realmente foi. Alguns

    registros descrevem garimpos de ouro e diamantes naquela regio da Bahia, em

    meados do sculo XVIII. No entanto, nos registros oficiais do Estado encontramos

    referncias ao garimpo a partir do sculo XIX, em 1844 aproximadamente.

    Quando os diamantes ameaavam acabar e as cidades em volta comeavam a

    conhecer o processo de decadncia e deteriorao, surgiu o carbonato (ou

    carbonato, como chamado na Bahia), diamante de cor escura e com maior

    durabilidade do que o outro. Conhecido na regio como "diamante negro" ou

    "diamante bruto" o carbonato -- pouco conhecido no Brasil -- foi amplamente

    usado na indstria para perfurao de rochas e, chapas de ao, entre outras coisas.

    Lenis foi um dos maiores no mercado mundial de produo de carbonato e o

    nico no Brasil a produzir em larga escala e exportar o mineral. Afrnio Peixoto

    (escritor lenoense), orgulhoso do carbonato de Lenis, cita em seu texto Brevirio

    da Bahia:

    "Esse Lenis no tem apenas esses diamantes, com que se lembra, ao lado de

    Diamantina, Tejuco, Salobro, Garas ... e ndia, e Cabo de Boa Esperana ...

    concorrentes a essa ddiva de gemas ao mundo. No, Lenis a nica, mas a

    produzir diamante negro, amorfo, mais duro e inquebrantvel do que o outro. Que

    apenas jia ..."

    O maior diamante carbonato encontrado nas Lavras Diamantinas pesava 3.167,5

    quilates e foi descoberto pelo garimpeiro Srgio Borges de Carvalho em 1895, no

    garimpo Brejo da Lama28. Existem trs tipos de diamantes no mundo: o diamante

    propriamente dito (facetado e com brilho), o bort (tambm chamado de bala e

    encontrado na frica) e o carbonato encontrado nas Lavras Diamantinas.

    28Bandeira, Renato L. Sapucaia. 1997. Op Cit.

  • 47

    O diamante um carbono puro, sob forma cristalizada29. O nome diamante vem

    do grego "adamantos", que significa o ferro mais duro ou ainda, quando usado

    como adjetivo, "indomvel".30 O mineral recebeu esse nome, ainda na antigidade,

    devido sua resistncia evidente ao fogo e sua dureza. Os diamantes nascem do

    processo de cristalizao dos gases de carbono no subsolo. Quando no existem as

    condies necessrias para a transformao dos gases de carbono e para a

    cristalizao perfeita, produzem-se diamantes amorfos ou de cristalizao

    imperfeita; o que ocorre com o bort e o carbonato da Bahia.

    Para alguns mineralogistas, o carbonato diferente do diamante negro -- acreditam

    que este ltimo uma variedade do primeiro. Para os garimpeiros das Lavras

    Diamantinas, no entanto, o carbonato e o diamante negro referem-se ao mesmo

    mineral em processos de formao diferentes.

    "Porque o diamante negro, ou o 'carbonato', mais do que jia, utilidade. Onde

    h pedra a romper, montanha a atravessar por um tnel, entre Sua e Itlia, entre

    Frana e Espanha, por toda parte onde o trnsito humano encontra um obstculo,

    uma mquina de ar comprimido levando na ponta do brao de ferro, um fragmento

    de diamante negro, e a passagem est feita, a pedra rasgada, o caminho frreo, os

    carros e trens passando, a intercomunicao humana (o outro nome da

    civilizao)... se fazendo, graas a Lenis." 31

    Desse modo, a economia diamantfera lenoense que parecia dar seus

    ltimos suspiros, permanece por mais alguns anos atravs da descoberta

    dos carbonatos. Embora os tais diamantes no tenham causado tanto

    alvoroo e nem sequer equiparavam-se ao valor econmico do diamante

    puro, rendeu a Lenis romances e filmes que de algum modo vieram

    contribuir para que a cidade fosse redescoberta, muitos anos depois, pela

    indstria turstica.

    29Sales, Herberto. 1995. Op Cit. 30 Bailly, A. Dictionnaire Grec Franais. Paris, Hachette, 1950. 31Peixoto, Afrnio. Brevirio da Bahia. Manuscrito, s.d.

  • 48

    O romance Bugrinha de Afrnio Peixoto uma das obras que retrata

    Lenis durante o final do sculo XIX e inicio do sculo XX, quando se deu a

    explorao sistematizada do diamante carbonato. O romance escrito em

    1922 inspirou mais tarde o filme Diamante Bruto, do cineasta Orlando

    Senna, filmado em 1977. O cineasta e jornalista Orlando Senna, assim como

    o escritor Afrnio Peixoto, nasceu em Lenis e viveu entre Salvador e o Rio

    de Janeiro, retornando cidade muitos anos depois. Embora pertenam a

    geraes diferentes, havia uma preocupao comum que era contar a

    histria de vida e morte dos garimpeiros tradicionais da Chapada

    Diamantina.

    O cineasta Orlando Senna define a Lenis de 1977, quando filmou

    Diamante Bruto, como uma cidade encastelada, separada do resto do

    mundo, tanto no tempo do fausto, quando na decadncia. No auge de sua

    riqueza, se recusava a obedecer ao Rio de Janeiro e Salvador. Quando o

    diamante acabou, ficou cada vez mais afastada... 32. Os atores do filme e o

    cineasta mudou-se para Lenis antes das filmagens e l ficaram - entre

    pesquisas, filmagens e exibio do filme - durante aproximadamente um

    ano. O filme contou com uma participao intensiva dos moradores da

    cidade, revitalizando a dinmica local e resgatando importantes elementos

    da cultura garimpeira.

    A exibio do filme Diamante Bruto foi um acontecimento para a cidade,

    que pode assistir em primeira mo as imagens representativas de uma terra

    que comea a reconhecer suas tradies garimpeiras tanto pelos de fora

    quanto pela sua populao local. No ano de 1977, quando foi realizada as

    filmagens, as dragas - mquinas usadas na extrao de diamantes em solo

    32 Anexo 3.2: jornal de circulao no estado da Bahia, tpico VII Diamante Bruto, uma histria de amor e morte passada entre garimpeiros.

  • 49

    profundo estavam chegando em Lenis e havia um forte investimento na

    indstria agropecuria local.

    Ainda assim os garimpo manual sobrevivia de uma forma quase mgica,

    com suas histrias msticas e religiosas. O filme tenta abordar esse universo

    mgico e potico dos garimpeiros; homens que acreditam que o diamante

    tem trs D - dono, dia e diamante - em outras palavras o diamante tem o

    dia e o dono certo para ser encontrado. Os garimpeiros de serra acreditam

    nesse tringulo mgico que os colocam em contato com a energia encantada

    da pedra preciosa e os tornam aliados da natureza e de Deus 33.

    NNaassccee aa CChhaappaaddaa DDiiaammaannttiinnaa

    Morro do Camelo: no centro geogrfico da Chapada Diamantina

    Chapada a denominao usada no Brasil para as grandes superfcies, por vezes

    horizontais, e a mais de 600 metros de altura. Segundo registros do IBGE (Instituto

    Brasileiro de Geografia e Estatstica), o termo Chapada Diamantina foi utilizado

    oficialmente pela primeira vez na Resoluo n 124, de 09 de Julho de 1942, da Assemblia Geral do Conselho Nacional de Geografia. Em 1945, a resoluo n143,

    33 Abordaremos esse aspecto mtico dos garimpeiros manuais no captulo 2, no tpico O Jogo do Diabo.

  • 50

    de 13 de Julho, fixava a diviso em "Zonas Fisiogrficas", entre as quais constava a

    "Zona da Chapada Diamantina" que integrava os seguintes municpios: 34

    Andara Lenis Piat

    Barra da Estiva Livramento do Brumado Rio de Contas

    Brotas de Macabas Morro do Chapu Santo Incio

    Ibitiara Mucug Seabra

    Irec Oliveira dos Brejinhos

    Ituau Palmeiras

    Vrias outras subdivises territoriais foram ocorrendo ao longo do tempo, porm a

    composio acima continua sendo empregada at a penltima diviso (1968),

    vlida ainda para o censo de 1980. Uma outra diviso regional do Brasil, baseada

    em Mesorregies e Microrregies Geogrficas, aprovada pelo IBGE atravs da

    resoluo PR51, 31/07/89, adota novos parmetros de identificao e redistribui

    os municpios que englobam a Chapada Diamantina.

    De acordo com o documento a Chapada Diamantina divide-se em duas

    microrregies homogneas: a regio Setentrional e a Meridional. Lenis situa-se

    na Chapada Diamantina Meridional. Na diviso regional em Mesorregio e

    Microrregio, Lenis est localizada na Microrregio de Seabra. Os quadros

    explicativos com as divises encontram-se expostos nas prximas pginas.

    34 Nota Explicativa de Celeste Moreira em Bandeira, Renato L. Sapucaia. 1997. Op Cit.

  • 51

    Diviso do Brasil em Microrregies Homogneas 1968

    CHAPADA DIAMANTINA SETENTRIONAL

    Barra do Mendes Gentil do Ouro Irec Presidente Dutra Cafarnaum Ibipeba Jussara Souto Soares Canarana Ibitit Morro do Chapu Uiba Central

    CHAPADA DIAMANTINA MERIDIONAL

    Abara Contendas do Sincor Ituau Piat gua Quente Ibicoara Jussiape Rio de Contas Andara Ibipitanga Lenis Rio do Pires Barra da Estiva Ibitiara Macabas Seabra Boninal Ipupiara Mucug Tanhau

    Boquira Iramaia Oliveira dos Brejinhos Utinga Botupor Iraquara Palmeiras Wagner Brotas de Macabas Itaet Paramirim

    Vale da Chapada Diamantina sob o crepsculo:cercado de canions

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    Diviso Regional do Brasil -Mesorregies e Microrregies Geogrficas 1989 MESORREGIES MICRORREGIES MUNICPIOS

    Centro-Norte Irec Amrica Dourada Irec Baiano Barra do Mendes Joo Dourado

    Barro Alto Jussara Cafarnaum Lapo Canarana Mulungu do Morro Central Presidente Dutra Gentil do Ouro So Gabriel Ibipeba Souto Soares Ibitit Uiba Iraquara

    Jacobina Morro do Chapu Boquira Boquira Ipupiara

    Botupor Macabas B. de Macabas Novo Horizonte Caturama Oliveira dos Brejinhos Ibipitanga Tanque Novo Ibitiara

    Brumado Brumado Tanhau Ituau

    Jequi Iramaia Centro-Sul Baiano Livramento de N. S. rico Cardoso Paramirim Livramento de N.S. Rio do Pires

    Seabra Abara Lenis

    Andara Mucug

    Barra da Estiva Nova Redeno Boninal Palmeiras Bonito Piat Contendas do Sincor Rio de Contas Dom Baslio Seabra Ibicoara Utinga Itaet Wagner Jussiape

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    A Chapada Diamantina possui um formato geogrfico predominantemente

    tabular, "eleva-se como uma imponente muralha de costas altimtricas superiores

    at 2.000 metros, chegando altitude mxima de 2.033 metros" 35. A regio da

    Chapada entrecortada por uma grande quantidade de rios, chegando a ser

    considerada por alguns estudiosos locais como o "osis do serto baiano".

    Euclides da Cunha em Os Sertes36 cita a Chapada Diamantina no seguinte trecho:

    "Desenterram-se as montanhas. Reponta a regio diamantina, na Bahia, revivendo

    inteiramente a de Minas, como um desdobramento ou antes um prolongamento,

    porque a mesma formao mineira rasgando, afinal, os lenis de grs, e

    alteando-se com os mesmos contorn