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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
HABERMAS E O “OUTRO” DA ESFERA PÚBLICA
Loren Marie Vituri Berbert1
Resumo : Com o fim do modelo socialista e a queda do muro de Berlim no final da década de
1980, as teorias democráticas vem disputando espaço dentro da teoria política: um vasto campo
pode ser mencionado, com contribuições das chamadas democracias liberal, representativa,
participativa, associativa, etc. Entre elas no entanto, a que ganhou mais espaço na década de 1990,
e que até hoje influencia grande parte da discussão é a corrente deliberativa. Este artigo propõe-se
uma crítica centrada na democracia deliberativa de vertente habermasiana, que compreende
princípios de racionalidade e regras gerais para a possibilidade de comunicação e deliberação na
esfera pública. Tal crítica fundamenta-se nos argumentos de feministas como Seyla Benhabib e Iris
Marion Young, a respeito do potencial excludente dos princípios da deliberação como foram
postulados, ou seja, a partir de um modelo de racionalidade que é masculino e que rejeita a
possibilidade de entrada do “Outro” na esfera pública. Problema este que parece se manifestar de
forma sintomática na cojuntura política brasileira atual, que parece viver um momento de
recrudescimento das forças conservadoras, e invisibilizadora das diferenças.
Palavras-chave: Democracia deliberativa, crítica feminista, racionalidade.
Introdução
Dentre os diversos temas abarcados pela teoria política contemporânea, um dos mais
profícuos é, com certeza, os referentes às discussões acerca da democracia. Desde o clássico de
Alexis de Tocqueville, A democracia na América2fruto da viagem do pensador francês aos Estados
Unidos em 1831, o tema tem sido desenvolvido por sociólogos, filósofos e cientistas políticos de
várias matrizes políticas e ideológicas. Alguns trabalhos, como o do próprio Tocqueville, são
focados em análises empíricas da realidade democrática, tanto é que a obra do autor é, além de uma
análise sociológica, um importante documento histórico cujo relato nos fornece um amplo
panorama da sociedade norte americana do século XIX.
Outros trabalhos, como o do cientista político norte-americano Robert Dahl também
amparam sua teoria em análises empíricas das sociedades ditas democráticas3, procurando
definições mais específicas, que possam instrumentalizar avaliações acerca dos diversos regimes
políticos e instituições normalmente considerados democráticos. Dessa forma, a obra de Dahl se
1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia Política da UFSC. 2 Obviamente a cronologia que remonta a Tocqueville não contempla os tratados sobre democracia de Platão ou Aristóteles, que se ocupavam de uma noção de democracia muito diferente daquela com a qual lidamos nos dias de hoje. 3 Poliarquia é o termo utilizado por Dahl para se referir a sociedades que se encontram em um processo amplo de democratização. (DAHL, 2012, p.350-355).
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distancia dos teóricos da democracia ditos normativos, como por exemplo, Jurgen Habermas, autor
da renomada teoria da democracia deliberativa. Como recorda Luis Felipe Miguel:
Há mais de cinquenta anos, no mundo ocidental, a democracia tornou-se o
horizonte normativo da prática e do discurso políticos. Tamanho consenso esconde
uma profunda divergência quanto ao sentido da democracia: como é comum em
relação a palavras que se tornam objeto de disputa política, os diferentes grupos
empenhados em ostentar o rótulo promovem sua ressemantização, adequando seu
significado aos interesses que defendem. (MIGUEL, 2005, p. 5)
Nesse sentido, dizer teoria democrática não quer dizer muita coisa, haja vista a profunda
diferença entre as diversas correntes políticas e perspectivas que se apropriam da questão. Neste
novo cenário, a teoria democrática teve de abrigar desde os liberais mais “procedimentalistas”, até
os democratas participacionistas mais radicais. Essa profusão de interpretações foi, no entanto,
benéfica para a crítica democrática:
Se, de um lado, o valor da democracia como conjunto de regras formais para a
sucessão e autorização de governantes alcançou consensos sem precedentes, de
outro, a subsequente expansão do número de novas democracias e a ausência de
“inimigos” externos que reforçassem posturas defensivas, propiciaram o
alargamento da crítica democrática a emergência de agendas dirigidas a indagar e
questionar a qualidade das velhas e novas democracias. (LAVALLE & VERA,
2011, p. 109)
Em meio a tal cenário, onde a opção socialista não mais se apresentava, começavam a surgir
teorias democráticas as mais diversas, porém, talvez a que mais tenha feito sucesso durante a
década de 1990 foi a teoria da democracia deliberativa, principalmente a de vertente habermasiana.
A terceira via habermasiana
Como apontado anteriormente, o contexto social do final do século XX viabilizou a noção
de que um regime político democrático era aquele a ser alcançado. No entanto, esse “consenso” não
eliminava as brutais diferenças entre as concepções de democracia dos defensores do Estado de
direito e das liberdades individuais, daqueles que colocavam a ênfase democrática na soberania
popular. Tal “controvérsia” não é nova nas discussões políticas, e remonta a falta de conciliação
entre valores liberais e valores republicanos, uma questão famosa dentro do debate político a partir
do discurso proferido por Benjamin Constant em 1819, Da liberdade dos antigos comparada à dos
modernos.
Tal debate seria o ponto de partida inicial para a teorização habermasiana da democracia
deliberativa, que constituiria, segundo o autor, em uma terceira via. O olhar de Habermas sobre os
dois modelos normativos de democracia os descreve da seguinte forma:
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A diferença decisiva reside na compreensão do papel que cabe ao processo
democrático. Na concepção “liberal”, esse processo cumpre a tarefa de programar
o Estado para que se volte ao interesse da sociedade: imagina-se o Estado como
aparato da administração pública, e a sociedade como sistema de circulação de
pessoas em particular e do trabalho social dessas pessoas, estruturada segundo leis
de mercado. A política, sob essa perspectiva, e no sentido de formação política da
vontade dos cidadãos, tem a função de congregar e impor interesses sociais em
particular mediante um aparato estatal já especializado no uso administrativo do
poder político para fins coletivos. Segundo a concepção “republicana”, a política
não se confunde com essa função mediadora; mais do que isso, ela é constitutiva do processo de coletivização social como um todo. Concebe-se a política
como forma de reflexão sobre um contexto de vida ético. (HABERMAS,
2004, p. 277-278)
A partir de tal perspectiva, Habermas se impõe a tarefa de “aprimorar” tais modelos em uma
terceira via complementar, não tornada um oximoro. Ideia parecida é encontrada também na
discussão do autor acerca da “coesão interna entre Estado de direito e democracia”, onde defende a
concepção segundo a qual existiria uma “equiprimordialidade” entre a autonomia pública e a
autonomia privada – ou as liberdades dos antigos e dos modernos, para Benjamin Constant. Assim,
para o autor, os dois elementos fundamentais dos Estados democráticos de direito, qual sejam o
domínio das leis (direitos individuais clássicos) e a soberania popular (direito à participação), são
igualmente importantes e pressupõe-se de forma mútua. (ib., p. 298-301)
A “política deliberativa” como denomina o autor, baseia-se nas condições de comunicação
do processo político, visando resultados racionais. Ou seja, é um modelo de procedimento
democrático que tem como elemento central a “estrutura da comunicação linguística”, onde a
deliberação atua como o principal instrumento de tomada de decisões. Segundo Habermas, assim a
razão prática, ora voltada para os direitos do homem na concepção liberal de política, ora voltada
para a eticidade de uma comunidade particular, no caso republicano/comunitarista, agora é limitada
a regras e normas argumentativas e discursivas. (ib., 2004, p. 286)
Neste aspecto Habermas esvazia a política deliberativa de um conteúdo moral, e coloca a
ênfase na noção de um procedimento democrático capaz de aprimorar a tomada de decisões a partir
de normas que tem na racionalidade e na possibilidade de consenso via comunicação, os elementos
centrais da política. Segundo o autor, em tal teoria do discurso:
(...) procedimento e pressupostos comunicacionais da formação democrática da
opinião e da vontade funcionam como importantes escoadouros da racionalização
discursiva das decisões de um governo e administração vinculados ao direito e à
lei. Racionalização significa mais que mera legitimação, mas menos que a própria
ação de constituir o poder. (...) A opinião pública transformada em poder
comunicativo segundo procedimentos democráticos não pode ‘dominar’, mas
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apenas direcionar o uso do poder administrativo para determinados canais.
(HABERMAS, 2004, p. 290)
Com a opinião pública transformada em poder comunicativo, o potencial da democracia de
levar os interesses generalizáveis dos cidadãos até a as esferas institucionalizadas do poder torna-se
algo mais factível do que em democracias meramente “agregativas” que tem sua principal fonte de
legitimidade nos processos eleitorais. No entanto, a questão referente à crítica que será
desenvolvida no decorrer do artigo é relativa exatamente ao tipo de normas estabelecidas para o
processo de deliberação, baseada na “racionalização” dos interesses e das opiniões.
Para a cientista política Seyla Benhabib, a legitimidade de tal processo democrático deve-se
à pressuposição de que representa uma perspectiva imparcial e no interesse de todos. Assim, um
processo deliberativo seria válido quando apresentasse as seguintes características:
1) A participação na deliberação é regulada por normas de igualdade e simetria;
todos tem as mesmas chances de iniciar os atos de fala, questionar, interrogar, e
abrir o debate; 2) todos tem o direito de questionar os tópicos fixados no diálogo; e
3) todos tem o direito de introduzir argumentos reflexivos sobre as regras do
procedimento discursivo e o modo pelo qual elas são aplicadas ou conduzidas. Não
há prima facie regras que limitem a agenda da conversação, ou a identidade dos
participantes, contanto que cada pessoa ou grupo excluído possa mostrar
justificadamente que são atingidos de modo relevante pela norma proposta em
questão. (BENHABIB, 2007, p. 51)
No artigo Deliberative democracy or agonistic pluralismo (2000), Chantal Mouffe aponta
que para a vertente habermasiana da democracia deliberativa, a possibilidade de tal processo
democrático alcançar resultados racionais (ou razoáveis) depende de sua aproximação com uma
“condição ideal” do discurso, onde os indivíduos livres e iguais encontrarão um ambiente
deliberativo imparcial, que leva a um processo tão “aberto” quanto possível, o que aumenta as
chances de que interesses gerais sejam aceitos por aqueles afetados pela questão de forma mais
relevante.
Para Mouffe, os expoentes de tal corrente deliberativa não negam a existência empírica de
obstáculos para tal situação ideal de discurso, por isso consideram-na como um marco regulatório,
mais do que como uma possibilidade concreta, haja vista as diversas limitações da vida em
sociedade que nos afastam da perspectiva de agirmos de acordo com nosso “eu racionalmente
universal”, deixando de lado nossos respectivos interesses particulares. (MOUFFE, 2000, p. 5-6)
Assim, ainda que tal modelo conte com uma concepção de legitimidade mais sofisticada do
que aquela baseada somente no voto, ao considerar um complexo processo de formação de opinião
pública via deliberação por cidadãos livres e iguais, e a efetiva informação das instâncias
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institucionalizadas do poder a partir da formação de tais “acordos”, ou consensos, é possível
vislumbrar as dificuldades de colocar em operação um modelo de deliberação democrática que, para
que possa resultar em consensos “razoáveis”, deva estar submetido a regras normativas tão
afastadas da realidade. Haja vista a multiplicidade de fatores e relações de poder que dificultam – e
em alguns casos impossibilitam – que o ambiente deliberativo seja considerado imparcial e, mais
ainda, os cidadãos possam de fato deliberar de forma “livre e igual”. Ainda que tal cenário ideal
fosse concretizado, ainda restaria a questão de como munir os cidadãos do “véu da ignorância”4, a
fim de que pudessem fazer política afastando-se de seus interesses particulares.
Habermas e o “Outro” na esfera pública
Ainda assim, algumas das principais críticas referentes à teoria de política deliberativa
desenvolvida por Habermas não se originam em sua difícil aplicabilidade no “mundo real”, mas,
por outro lado, exatamente no tipo de exigências normativas que coloca em evidência. Ou seja, a
pergunta a ser levantada seria: Ainda que tal modelo pudesse ser alcançado, e as condições ideais de
discursos fossem alcançadas, seria tal modelo de democracia o mais adequado na sociedade
contemporânea? Ela de fato reúne os elementos necessários para garantir o acesso da maior parte
dos cidadãos a um contexto de fala onde as argumentações dos sujeitos tivessem todos o mesmo
peso?
A crítica aqui desenvolvida considera que, alcançada a condição ideal do discurso, esta seria,
em si mesma, um tipo de consenso deslocado no processo deliberativo. Pois, ao firmar os critérios
de racionalidade, imparcialidade, neutralidade e universalidade, o intuito democrático de abarcar
diferentes “vozes” que, através do processo deliberativo buscarão um consenso; é diversamente
suprimido por um tipo de consenso a priori, anterior à possibilidade de deliberação. Tal argumento
pretende evidenciar o potencial de exclusão de tal instrumento democrático, “escondido” por trás de
uma retórica estruturada tendo como base a racionalidade e sua pretensa universalidade.
Foram-se os tempos em que os filósofos e cientistas alimentavam a crença nos ideais
iluministas como portadores do “progresso” humano, e colocavam a razão individual em um altar
4 Recurso expositivo originalmente desenvolvido por John Rawls para simular a “posição original” dos indivíduos, onde ainda não se tem uma diferenciação social entre os mesmos. Com o revestimento do “véu de ignorância”, a possibilidade de escolha de um critério de justiça mais “equânime” entre os indivíduos seria maior, já que os mesmos não poderiam acessar suas respectivas posições sociais nesse momento. (RAWLS, 2008, p. 13-26)
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antropocêntrico. Principalmente desde as calamidades levadas a cabo na segunda guerra mundial5,
é possível encontrar diferentes abordagens críticas às pretensões de racionalidade presentes no
pensamento moderno. Tal desconfiança, no entanto, não é compartilhada por Habermas, um
defensor do projeto da modernidade.
Nesse sentido, a racionalidade e a universalidade apregoadas e exigidas como princípio e
também como resultado do processo deliberativo, podem ser analisadas a partir de um discurso
bastante específico: aquele tornado hegemônico pelo projeto de modernidade. Esse discurso,
bastante em voga especialmente no século XIX, teve ampla influência no surgimento da sociologia,
e pode ser observado inclusive nas ideias principais do sociólogo alemão, Max Weber.
Sua vasta obra, tematiza de forma recorrente a questão da racionalização do mundo
moderno. Sua análise sobre o desenvolvimento do capitalismo, em um de seus mais importantes
trabalhos A ética protestante e o espírito do capitalismo Weber desenvolve a hipótese de que a
marca característica do capitalismo moderno seria exatamente sua racionalização, com relação a
modos de produção anteriores. No trecho a seguir o autor afirma a relação intrínseca entre o
capitalismo moderno e a racionalidade ocidental:
À primeira vista, a forma especial do moderno capitalismo ocidental teria sido
fortemente influenciada pelo desenvolvimento das possibilidades técnicas. Sua
racionalidade é hoje essencialmente dependente da calculabilidade dos fatores
técnicos mais importantes. Mas isso significa, basicamente, que é dependente da
ciência moderna, em especial das ciências naturais fundadas na matemática e em
experimentações exatas e racionais. (WEBER, 2001, p. 31)
Em toda a introdução da obra, o autor descreve o capitalismo contemporâneo a partir do
“racionalismo peculiar e específico da cultural ocidental” (WEBER, 2001, p. 32). Assim, é feito o
reconhecimento da familiaridade entre os elementos: ocidental, racional e moderno. No entanto, e
de forma paradoxal, a racionalidade moderna ocidental é entendida como parâmetro
universalizante, por exemplo na deliberação habermasiana. A linguagem necessária para adentrar
em um debate público está baseada em um tipo de postura / identidade muito específica que não
necessariamente contempla todos os sujeitos interessados em partilhar a formação de uma opinião
pública.
Nesse sentido é possível visualizar porque o consenso de Habermas estaria deslocado: as
diferenças e possibilidades de alteridade são suprimidas em um primeiro momento, quando os
indivíduos que não representam o ideal de racionalidade hegemonicamente construído, são
5 Mesmo antes disso, é possível encontrar críticos ferrenhos ao ideal moderno de racionalidade, como por exemplo a crítica de Nietzsche, que descarta a possibilidade de apreensão racional do mundo, e a pretensão de verdades universais postuladas pela modernidade através de um sujeito unificado e alienado de suas paixões. (JARDIM, 2001)
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submetidos a uma dinâmica de poder pouco democrática. Dessa forma, mulheres, negros, indígenas,
portadores de deficiência, LGBTTs, entre outros grupos que não encarnam o tipo de racionalidade
“peculiar e específica” do ocidente moderno não podem esperar que o ambiente deliberativo seja
vivenciado de forma imparcial.
O caso mais emblemático, porque mais debatido na academia nos últimos anos, talvez seja o
da exclusão das mulheres da esfera pública. As análises por parte da teoria feminista apontam tal
fato como uma realidade histórica, que vem sendo superada a cada dia, mas ainda constrange o
acesso de muitas mulheres à esfera pública6. Em O contrato sexual, Carole Pateman, uma das mais
reconhecidas teóricas da democracia participacionista, descreve a contribuição da teoria política
moderna para a manutenção do patriarcado7, a partir da revisão de alguns argumentos dos
contratualistas. Segundo ela:
No turning-point entre o antigo mundo do status e o mundo moderno do contrato
conta-se mais uma história sobre o nascimento político masculino. A história do
contrato original é, provavelmente, a maior narrativa sobre a criação de uma nova
existência política pelos homens. Mas desta vez, as mulheres já foram derrotadas e
declaradas irrelevantes para a política e a reprodução. Agora, o pai está sendo
atacado. O contrato original mostra como o monopólio do poder criador pelos pais
foi tomado e dividido uniformemente entre os homens. Na sociedade civil, todos os
homens, não apenas os pais, podem gerar a vida e o direito políticos. A criação
política não é própria da paternidade, e sim da masculinidade. (PATEMAN, 1993,
p. 60-61)
Dessa forma, ainda que nas sociedades contemporâneas venhamos assistindo a uma
progressiva entrada de mulheres no espaço da política, tal espaço foi pensado sempre a partir de
uma lógica masculina. Tal lógica implica em grande medida nos conceitos de racionalidade e
universalidade presentes na teoria habermasiana da democracia. Luis Felipe Miguel em Democracia
e representação defende que Habermas reproduz as premissas do liberalismo contratualista em sua
visão da esfera pública:
A idealização da esfera burguesa dos séculos XVIII e XIX demonstra uma notável
insensibilidade ao problema da exclusão de grupos sociais. Trabalhadores e
mulheres, para citar os exemplos mais evidentes, estavam ausentes da esfera
pública burguesa. Habermas não deixa de perceber e anotar tal ausência. Mas ela
aparece como contingente e não como estruturadora de características centrais da
esfera pública burguesa setecentista e oitocentista. Trata-se de um equívoco, pois a
abertura para o diálogo e o espírito de fair-play – que parecem comandar as
discussões sobre questões de interesse comum – só são possíveis na medida em que
6 Esfera pública será aqui entendido como oposto ao ambiente privado, doméstico, e especificamente para designar o âmbito da política. 7 Entendido como o “único conceito que se refere especificamente à sujeição da mulher, e que singulariza a forma do direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens. ” (PATEMAN, 1993, p. 39).
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estão eliminados, de antemão, os principais focos de tensão social. (MIGUEL,
2014, p. 69)
A crítica de Miguel é contundente, e fundamenta-se em sua maior parte no caráter utópico e
liberal que Habermas dá à esfera pública. Nesse sentido o autor aponta a divisão liberal entre esfera
privada como âmbito da desigualdade em contraposição ao âmbito da esfera pública, como espaço
da igualdade política. Segundo ele, tal interpretação visa dissimular o fato de que as desigualdades
referentes ao gênero e à economia por exemplo, são profundamente relevantes na esfera política.
Nesse sentido, para ele os cidadãos atuam na esfera pública e discutem “como se fossem” iguais,
vista a impossibilidade substantiva de tal igualdade (MIGUEL, 2014, p. 69).
Além disso, sugere ele, a identidade dos cidadãos, ao contrário do que defende Habermas, é
sim importante no espaço deliberativo. Segundo ele “As diferentes posições na sociedade conferem
diferentes graus de eficácia discursiva a seus ocupantes. ” (Ibidem, p.89). Nesse sentido, é a partir
de uma crítica à dissimulação das desigualdades sociais que Miguel desconfia da proposta
habermasiana, sofisticadamente abstrata, e sem instrumentos suficientes para lidar com a realidade.
Quando o autor aponta os diferentes graus de eficácia discursiva ou a “(...) inferioridade dos grupos
dominados no manejo eficaz das ferramentas discursivas exigidas (...)” (ibidem, p.88) ele pretende
demarcar as relações de poder e dominação que continuam a existir nos espaços de deliberação,
inclusive com relação à própria linguagem a ser adotada.
No entanto, o que não fica evidente é se a crítica de Miguel entende a igualdade na esfera
pública como um objetivo a ser alcançado. Quanto à desigualdade material e de status, é possível
defender que sim, o processo democrático ganharia com a supressão de tais desigualdades. Porém,
uma esfera pública homogênea, que conseguisse de fato minimizar tanto quanto possível as
diferenças entre linguagens e formas de expressão, seria uma esfera pública mais democrática? O
constrangimento da forma não seria, em algum grau, um constrangimento de conteúdo e, nesse
sentido, uma hierarquização das formas de vida?
A cientista política norte-americana Iris Marion Young desenvolve em A imparcialidade e o
Público Cívico uma crítica poderosa à teoria política, e à democracia habermasiana a partir de
argumentos das análises de feministas. Reforçando o posicionamento de Pateman, ela coloca em
xeque a possibilidade de emancipação feminina pela via da política liberal:
Recentes estudos feministas da teoria e prática política moderna cada vez mais
argumentam que os ideais do liberalismo e da teoria do contrato, tais como
igualdade formal e racionalidade universal, acham-se profundamente prejudicados
pelos preconceitos masculinos sobre o que significa ser humano e a natureza da
sociedade. Esses estudos sugerem que se a cultura moderna no Ocidente tem sido
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inteiramente dominada pelos homens, pouca esperança haverá de dar novo aspecto
a esses ideais de modo a possibilitar a inclusão das mulheres. (YOUNG, 1987,
p.67)
Dessa forma, o diagnóstico feministas para os problemas da esfera pública atrelada à política
moderna e, mais especificamente, em Habermas é mais radical e, por tanto, mais complexa. A
inclusão do “Outro” na esfera pública depende de uma profunda crítica às estruturas da política
moderna. Um dos pontos centrais da argumentação da autora por uma “vida pública heterogênea”,
reside na crítica à oposição entre razão e afetividade tanto na política moderna quanto na proposta
de Habermas. Tal divisão é parte dos pares dicotômicos hierarquizados no discurso da modernidade
como razão/ afeto, cultura/natureza, masculino/feminino, universal/particular e etc.
A autora coloca o problema como um elemento de exclusão dos indivíduos do “público
cívico”:
Ao presumir que a razão se opõe a desejo, afetividade e ao corpo, o público cívico
deve excluir aspectos físicos e afetivos da existência humana. Na prática, esse
pressuposto força uma homogeneidade de cidadãos ao público cívico. Exclui do
público aqueles indivíduos e grupos que não se ajustam ao modelo de cidadão
racional que pode transcender corpo e sentimento. Essa exclusão é baseada em
duas tendências que os feministas acentuam: a oposição entre razão e desejo, e a
associação desses traços com tipos de pessoas. (YOUNG, 1987, p. 75-76)
Assim, uma vez que certa categoria de pessoas é identificada como menos “imparcialmente
racionais” do que o ideal, elas são excluídas do público, em favor de uma suposta neutralidade e
universalidades necessárias ao fazer político. Para Young, a ética comunicativa habermasiana de
modelo dialógico superaria o monologismo da razão deontológica. No entanto, ressalta que
Habermas falha ao não definir a razão de forma contextual, mantendo seu compromisso com um
modelo de razão normativamente imparcial (YOUNG, 1987, p. 78-79).
Consequentemente, a necessidade de o sujeito alienar-se de uma identidade individual – que
ao mesmo tempo pode referir-se a pertencimentos de grupo - que pressuponha a conexão com
sentimentos e demandas particulares, continua um pressuposto importante para o modelo de
deliberação de Habermas, uma vez que o consenso almejado por tal processo seria resultado de uma
racionalidade considerada a partir de um ponto de vista imparcial. Tal questão elaborada por Seyla
Benhabib em O outro generalizado e o outro concreto. A autora define os respectivos paradigmas
da seguinte forma:
O ponto de vista do outro generalizado exige que enxerguemos todo e cada
indivíduo como um ser racional habilitado aos mesmos direitos e deveres que
gostaríamos de atribuir a nós mesmos. Ao admitirmos o ponto de vista, abstraímos
a individualidade e a identidade concreta do outro. Presumimos que o outro, como
nós mesmos, é um ser que tema necessidades concretas, desejos e afetos, mas que o
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que constitui a sua dignidade moral não é o que nos diferencia um dos outros, mas
o que nós, como agentes racionais que falam e agem, temos em comum. (...) Por
outro lado, o ponto de vista do outro concreto exige que enxerguemos todo e cada
ser racional como um indivíduo com uma história concreta, identidade e
constituição afetivo-emocional. Ao admitir esse ponto de vista, abstraímos aquilo
que temos em comum. Procuramos compreender as necessidades do outro, suas
motivações, o que ele ou ela procura, e o que ele ou ela deseja. (BENHABIB,
1987, p. 97-98)
A crítica da autora, no entanto, não está sendo dirigida aos pressupostos da democracia
deliberativa, mas acima de tudo à teoria moral universalista de John Rawls. Benhabib é, ela mesma
uma defensora do processo deliberativo, e do que denomina uma “ética comunicativa de
intepretações necessárias”.8Aqui a autora leva a “terceira via” a um outro estágio, que tenha em
conta as histórias concretas dos agentes morais e onde o outro generalizado, essa abstração
fantasmagórica, ganhe “substância” e qualidade intersubjetiva.
Ainda assim, sua crítica a Rawls e sua diferenciação entre a teoria do autor e a abordagem
deliberativa podem ser questionadas, por exemplo, a partir do ponto de vista de Mouffe, que no
artigo mencionado anteriormente apresenta as convergências entre a lógica de Rawls e de
Habermas. Nesse sentido, a autora identifica ambos autores como deliberativistas, ao terem como
elemento específico de suas teorias a promoção de um tipo de racionalidade de dimensão normativa
e não meramente instrumental, e o objetivo de reconciliação entre liberalismo e ideais democráticos
(MOUFFE, 2000, p. 2-3). Assim, para a autora, Rawls e Habermas tem mais em comum do que
pretende a disputa entre os autores, e aspectos fundamentais de ambas as teorias.
Considerações finais
Em When, where and why do we need deliberation, voting, and other means of organizing
democracy? Mark Warren sugere uma abordagem da crítica democrática não voltada para modelos,
mas para os problemas e funções democráticas. Nesse sentido, o autor apresenta a deliberação como
um meio a ser utilizado para alcançar as “funções democráticas”, que seriam a inclusão
empoderada, comunicação e formação de vontade coletiva, e capacidade de decisão coletiva. Para o
autor, os modelos democráticos não deveriam ser entendidos como autossuficientes, mas
considerados a partir dos pontos fortes que apresentam para a efetivação das funções democráticas
(WARREN, 2012).
8 O que não quer dizer que a autora não delimite algumas diferenças entre a sua abordagem da democracia deliberativa daquela habermasiana, como a “implausibilidade” de sua apresentação do “outro concreto”. (BENHABIB, 1987, p.195, nota 33.)
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A partir de tal perspectiva poderíamos considerar que a democracia deliberativa
habermasiana apresenta um elemento interessante de legitimação da política, que supera aqueles
modelos baseados apenas no voto. E que traz o centro do processo democrático para a sociedade
civil, o parece ser um elemento de descentralização do poder e da influência política, das
instituições, para os espaços de formação da opinião pública. No entanto, é preciso persistir na
crítica aos princípios do liberalismo que tornam a democracia deliberativa um dispositivo de
exclusão.
Os argumentos mobilizados nesta discussão, alguns com cerca de trinta anos, continuam a
exercer um importante papel crítico a fundamentos do liberalismo que são também os fundamentos
da democracia deliberativa. A crítica feminista, e também a crítica de teóricos do pós-colonialismo
e da perspectiva decolonial latino-americana9, que apesar de não terem sido apresentados no artigo
também enfatizam os problemas do discurso moderno hegemônico, e sua relação com a reprodução
das desigualdades sociais, e o possível esgotamento de tal projeto de modernidade; continuam
relevantes.
Em um momento histórico onde não parece haver uma alternativa “sustentável” que possa
competir com a democracia liberal, e onde é possível perceber um claro fortalecimento de discursos
que pretendem deslegitimar a entrada de grupos minoritários, ou oprimidos na esfera pública – vide
recente guinada conservadora no cenário político tanto em âmbito nacional quanto internacional- é
imprescindível que tal debate continue em pauta. Nesse sentido, o fortalecimento dos ideais
democráticos depende, mais do que nunca, na ênfase em elementos que possam fazer da esfera
pública um ambiente substancialmente inclusivo e diversificado.
Referências bibliográficas:
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Habermas and the “other” of the public sphere
Abstract: With the end of socialist model and the fall of the Berlin wall at the end of the 1980
decade, the democratic theories are disputing space inside the political theory: a vast field can be
mentioned, with the contributions of the so-called liberal, representative, participative, associative
democracies etc. Among them, however, the one that earned more space in the 1990 decade, and
still influences a big part of the discussion until this day is the deliberative current. This paper
proposes a Habermasian deliberative democracy centered critic, which comprises principles of
rationality and general rules for the possibility of communication and deliberation in the public
sphere. Such critic is based on the feminist arguments as Seyla Benhabib and Iris Marion Young’s,
regarding the excluding potential of the deliberative principles as they were postulated, that is, from
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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
a rationality model that is masculine and rejects the possibility of entry of the “Other” in the public
sphere. Problem which seems to manifest itself in a symptomatic way in current Brazilian political
conjuncture, that appears to live a moment of recrudescence of conservative forces and
homogenizer of differences.
Keywords: Deliberative democracy, feminist critic, rationality.