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HABITAT O corpo e o espaço na dança e escultura contemporânea – uma aproximação Relatório e reflexão teórica do projecto Autor: Volker Schnüttgen

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HABITAT O corpo e o espaço na dança e escultura contemporânea – uma aproximação Relatório e reflexão teórica do projecto Autor: Volker Schnüttgen Projecto e Relatório submetidos para satisfação parcial dos requisitos do grau de Mestre em Arte Multimédia Projecto e Relatório realizados sob a supervisão da Professora Maria Beatriz Gentil Penha Ferreira Professora Associada do Departamento de Design da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto

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Dedicado a toda equipa envolvida na criação desta obra: Arthur Stäldi, Constantin Popp, Eugénia Rufino, Fernando Almeida, Frieder Weiss, Joana Pires, Martin Bellardi e Renate Graziadei. Agradecimentos: Professora Beatriz Gentil, minha orientadora, pelo apoio desde o primeiro momento até ao fim do projecto; O Espaço do Tempo que nos acolheu e prestou todo o apoio possível para a realização; Galeria Arthobler pela organização da exposição; Kirchhoff Automotive pelo seu apoio logístico. Um abraço especial aos MausHabitos, Raffaela Galdi e Serafina Graziadei.

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Resumo

HABITAT é um projecto transdisciplinar entre a dança e a escultura contemporânea concebido em cooperação com o colectivo de dança LaborGras de Berlim. É planeado para ser tanto uma performance como uma instalação escultural. Um environment de objectos tridimensionais ocupa o espaço da actuação. Cada um desses objectos esculturais tem o seu espaço interior íntimo, que está equipado com um monitor. Estes monitores são uma continuação virtual do espaço real das esculturas e formam palcos virtuais para a coreografia. O espaço virtual permite ao contrário da escultura materializada a dinamização do espaço, alterando e modelando as perspectivas, proporções e pontos da vista. A bailarina actua numa área espacialmente reservada ao lado da zona da ocupação escultural. Os temas da coreografia são os espaços arquitectónicos do environment, tanto do real como do virtual. Apesar da performer actuar fora destes espaços têm consciência das características e limitações deles. A transmissão por vídeo em tempo real ou com um certo atraso (que permite à bailarina um encontro com o seu próprio passado recente) coloca o seu corpo dentro da instalação escultural. Numa certa forma povoa os lugares da instalação com a múltipla clonagem das suas actuações. O espectador pode circular livremente no environment, descobrindo os espaços íntimos dos ‘povoamentos’, ou aproximar-se da performance. Não existe uma distância de um palco entre público e performer. O processo da criação torna-se transparente.

Habitat, Volker Schnüttgen, LaborGras & Guests; O Espaço do Tempo, Montemor-o-Novo; 2008

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Abstract HABITAT is a trans-disciplinary project involving dance and contemporary sculpture. The concept was developed in collaboration with the dance collective LaborGras - Berlin. It has been designed to be as well a performance or a sculpture installation. An environment of three dimension objects fills the performing space. Each sculpture has its small intimate interior space which is equipped with a monitor. These monitors are a virtual extent of the sculptures real space, and form virtual stages for the choreography. Unlike the materialized sculptures, the virtual space allows a different special dynamics, altering and shaping perspectives, proportions and points of view. The dancer perform in a determinate area next to the one occupied by the sculptures. The architectonic environment, real and virtual, becomes the theme of the choreography. The performer acts out of these spaces nevertheless she is conscious of their characteristics and limitations. By transmission of video in real time or with a certain delay (who allows the dancer to communicate with her recent past) her body occupies the sculpture installation. In a certain way she inhabits the localities by multiple clones of her performing. The audience can move freely through the environment, discovering the intimacy of the spaces of ‘settlements’ or getting closer to the performance. There isn’t a gap between a stage, the audience and the performer. The artistic process becomes transparent.

Habitat, Volker Schnüttgen, LaborGras & Guests; O Espaço do Tempo, Montemor-o-Novo; 2008

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Índice 1. Introdução 2. Transdisciplinaridade nas artes 2.1 Introdução de novas tecnologias nas artes performativas 2.2. Do “Gesamtkunstwerk” até à Multimédia 2.3. Film-Dance / Video-Dance 2.4. Multimédia nas artes performativas contemporâneas 3. Exposição do Projecto 3.1. Environment – Performance 3.2. A Coreografia 4. Realização do Projecto 4.1. Preparação do projecto 4.2. Elaboração do conceito artístico 4.3. Execução do environment escultórico 4.4. Criação do espaço virtual 4.5. Ensaios da interligação da coreografia, escultura e vídeo 4.5.1 Setup áudio 4.5.2. Montagem da instalação escultórica 4.5.3. Setup vídeo 5. Conclusão 6. Anexo 6.1. Glossário de adaptações informáticas ao espaço virtual e à coreografia 6.1.1. Keying em tempo real 6.1.2. Máscaras activas por controlo do z-buffer 6.1.3. Organização das layers em função de uma perspectiva correcta 6.1.4. Delay variável 6.2. Calendarização do projecto 6.3. Notas 6.4. Bibliografia 6.5. Links

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1. Introdução O meu interesse para a dança nasceu no início dos anos 80, quando estudava na Universidade de Artes em Bremen. Foi uma época da grande fama do Tanztheater alemão, e o Bremer Tanztheater dirigido pela coreografa Reinhild Hoffmann foi um dos lugares mais inovadoras na dança contemporânea. Quando vi a peça “Kontakthof” (estreia 1978) de Pina Bausch (na. 1940) percebi a proximidade entre a escultura e a dança. Este trabalho de Pina Bausch está caracterizado por cenas muito estatuárias, uma preocupação de definir o espaço pela colocação de corpos, muitas vezes parados ou com movimentos muito lentos. Comparando com a escultura figurativa da mesma época encontra-se facilmente afinidades: Os environments do artista inglês John Davis (na. 1946) pareciam cenografias cristalizadas no tempo, actores parados de um teatro do silêncio. Entre estas marcas culturais da época comecei os meus estudos de escultura, numa escola onde o corpo humano ainda estava no centro das atenções. Partindo de uma fragmentação do corpo desenvolvi uma articulação cada vez mais reduzida e construtiva. Modelando o aspecto arquitectónico da escultura, criei uma linguagem lapidar no sentido da origem da palavra (= que diz respeito a lápide), esculpido nitidamente na pedra, à procura da clareza. Tive o privilégio de ter aulas de desenho durante os ensaios do Bremer Tanztheater. Nesta altura conheci Arthur Stäldi que era bailarino desta companhia. Arthur evidenciava-se dos seus colegas por um profundo interesse e conhecimento das artes plásticas. A nossa amizade baseou-se no nosso interesse de ultrapassar as margens das nossas disciplinas. Em 1989 fundou com a bailarina Rica Blunck a companhia de dança COAX em Hamburgo. Cinco anos mais tarde criou com Renate Graziadei, que vinha da Companhia S.O.A.P. (Frankfurt) de Rui Horta, o Colectivo LaborGras. Em 2000 instalaram um estúdio próprio em Berlim. “Desde a fundação do colectivo os dois trabalham no sentido de um laboratório onde interagem com representantes de outras artes no campo experimental da dança. O interesse do LaborGras é, investigar a dança como uma forma e linguagem de arte própria, e localizar permanentemente novas posições entre a tradição e a contemporaneidade. O seu trabalho concentra-se na

Kontakthof, Pina Bausch – Tanztheater Wuppertal 1978

Sem titulo, John Davies, 1974-77

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pesquisa do movimento, apostando na intuição do corpo, i.e. uma dança que fala por si própria, que vive do momento, esquecendo o seu passado, mas consciente da sua modelação. Para quebrar os limites preconceituosos entre a dança e outros géneros das artes, o LaborGras procura a colaboração com outros artistas. Esta transição de limites pretende não ficar presa à própria estética ou estilo, mas graças a esta confrontação, abrir novos ou outros caminhos. O corpo do bailarino e o seu espaço tornam se um lugar de um intercambio interactivo inovador.” (1) Este pequeno texto programático mostra o conceito transdisciplinar na obra de LaborGras. Consequentemente experimentaram as novas tecnologias nas suas criações sem perder o tema central do seu trabalho: o movimento do corpo no espaço (veja 2.4. Multimédia nas artes performativas contemporâneas) A minha aproximação às novas tecnologias está ligada a um acidente pessoal ocorrido no ano 1999, que me imobilizou durante nove meses. Incapaz de criar esculturas materializadas comecei experimentar ferramentas digitais – sobretudo programas 3D – para a criação de objectos espaciais. A capacidade de animar estas esculturas virtuais foi para mim a primeira tentativa de introduzir o aspecto de movimento no meu trabalho. O projecto HABITAT nasceu de uma longa troca de ideias e conceitos entre LaborGras e o meu trabalho artístico. O espírito experimental do colectivo cruzou-se com o meu impulso – depois de vinte anos de actividade profissional sobretudo na área da escultura – de desenvolver as minhas primeiras experiências nas novas tecnologias como um novo campo da expressão artística. Em 2004, sendo bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, participei numa formação na área de vídeo digital e tecnologia 3D na Akademie CIMDATA em Berlim. Neste contexto criei o videoclip “Three pieces in April” (Berlim 2004) a base de uma peça de dança de LaborGras. Depois deste projecto surgiu definitivamente a ideia de desenvolver uma criação comum. A minha decisão de entrar no curso do Mestrado de Arte Multimédia na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto fez parte deste projecto pois achava necessário aprofundar os meus conhecimentos na área das novas tecnologias, fundamental para concretizar este trabalho.

Drei Stelen für Bertolucci, Volker Schnüttgen, 1988

Escultura virtual, Volker Schnüttgen, 1999

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2. Transdisciplinaridade nas artes 2.1 Introdução de novas tecnologias nas artes performativas A descoberta da fotografia, do vídeo e das tecnologias digitais não só mudou radicalmente as artes plásticas como também as artes performativas. Com o desenvolvimento das tecnologias cinematográficas, da realidade virtual e da capacidade da edição e manipulação do vídeo em tempo real, as novas tecnologias ganham cada vez mais importância na encenação coreográfica. A intervenção das ferramentas digitais não se limita só à utilização de vídeo. Mercê Cunningham (na. 1919), bailarino e coreógrafo americano foi um dos protagonistas na utilização de novas tecnologias nas suas criações coreográficas. A obra “Variations V” do ano 1965, do compositor John Cage (1912 - 1992), e de Mercê Cunningham, em cooperação com muitos mais artistas tornou-se a primeira obra performativa com todos as características multimédia mesmo antes da era digital. Hoje em dia quase não se pode ver um espectáculo de dança contemporânea sem presença das novas tecnologias.

“De facto podemos constatar, que o teatro sempre foi um assunto de técnica e tecnologia. Foi um “médium” no sentido de uma tecnologia específica da representação. Assim as novíssimas tecnologias da média não são mais do que um capítulo novo. O teatro nunca mostrou numa forma ingénua “O Homem” sem aplicar as artes técnicas. Desde a “mechané” da antiguidade até ao teatro da alta tecnologia o prazer do teatro significou também um prazer da mecânica (…). Por esta razão o teatro absorveu sempre imediatamente todas as técnicas e tecnologias – desde a perspectiva até à Internet.” (2) Neste sentido não surpreende nada que o desenvolvimento das artes performativas e especificamente da dança sempre estivesse ligado ás novas invenções e ao pensamento da altura. Já o ballet romântico do século dezanove se aproveitou das novidades da iluminação com luzes a gás e óleo e a utilização de reflectores e filtros para criar as atmosferas luminosas pretendidas. Nos anos quarenta utilizou-se a fotografia para a dança, primeiro meramente para retratos dos actores, mas muito rapidamente também como meio de documentação. Com os estudos cronofotográficos do movimento do corpo de Etienne-Jules Marey (1830 – 1904) e Eadweard Muybridge (1830 – 1904) a dança também entrou no centro do interesse. Já na passagem para o século XX a dança foi objecto dos primeiros trabalhos cinematográficos: os primeiros criadores do cinema perceberam logo a afinidade da sua arte – uma nova tecnologia em pleno crescimento no princípio do século XX - com o dinamismo da dança. Mas o interesse existia também vice versa: inovações nas técnicas da iluminação como projecções de filmes foram utilizadas para criar novos cenários no palco. Neste contexto Loie

Flying Pelican, Etienne-Jules Marey, ca. 1882

Flying Woman walking downstairs, Eadweard Muybridge, fim do século 19

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Fuller (1862 - 1928), bailarina e coreografa de origem americana, foi uma das personagens mais inovadoras. Ela não foi só ícone da Art Nouveau e protagonista da dança moderna como também a “mágica da luz”. Ela utilizou projecções de luz eléctrica com filtros coloridos, substâncias fluorescentes e panos gigantescos de veludo como meio de reflexão para criar ambientes luminosos ainda não conhecidos. Em 1906 produziu, realizou e representou a curta-metragem “Fire Dance” (França), onde simulou fogo através de luz vermelha, projectada por baixo de vidros no chão. Em 1917 Filippo Tommaso Marinetti (1876 – 1944) escreveu no seu “Manifesto da dança futurista”: “Nós Futuristas preferimos Loie Fuller e os cakewalk dos negros porque utilizam luz eléctrica e mecanismo”. O futurismo é sem duvidas o movimento artístico que juntou mais a dança – corpos em movimentos – com as novas invenções tecnológicas da altura. Movimento, dinamismo e velocidade são os valores proclamados. Um credo absoluto num mundo mecanizado, um triunfo da tecnologia. O papel do Homem segundo o Ideal Futurista é a “identificação do Homem com a máquina” (3). Numa forma revolucionária declaram a máquina como protagonista do teatro, substituindo o conceito antropocêntrico. Inspiraram-se no varieté e no music-hall, lugares fora do mundo burguês. Estes foram os sítios dos efeitos técnicos, da luz eléctrica e de um público que não receava intervir activamente no espectáculo. As peças futuristas viviam da simultaneidade da acção e claramente da provocação. O teatro futurista foi o primeiro a apelar à interactividade do público e acabou com a narrativa linear. Numa forma mais formalista Kurt Schmidt, aluno do Bauhaus, pretende no seu "Mechanische Ballett" (1923) criar imagens geométricas em movimento. A função dos bailarinos foi simplesmente mover objectos construtivistas no palco, sendo eles próprios invisíveis para o público. Schmidt planeou substituir esta função por máquinas, que na sua ideia tinham mais potencialidades que actores humanos. Mas já na altura a radicalização na mecanização do ballet e do próprio ser humano teve movimentos contrários, a procura de uma dança de expressão, em harmonia com o corpo humano. As obras cinematográficos de René Clair “A nous la liberté” (França, 1932) com a sua famosa cena do tapete continuo e “Modern Times” (USA, 1932 -1935) de Charlie Chaplin, que se apropriou desta mesma cena, também podem ser interpretadas como crítica ou pelo menos ironia ao dogma da máquina dos futuristas.

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Mas voltando à tecnologia de filme introduzida na dança: A peça “ Relaché” (1924) do Ballet Suédois, conceituado por Francis Picábia (1879 – 1953) e com música de Eric Satie (1866 – 1925) foi talvez a primeira peça onde coreografia e cinema funcionaram lado ao lado. A dança e o filme são compostos por fragmentos, quase de uma forma estroboscópica, que mostra que as técnicas cinematográficas da altura, princípios de corte, colagem e montagem, entraram na dramaturgia do ballet. Estas fortes inovações na área de ballet ou numa forma mais geral no teatro nas primeiras décadas do século XX foram muitas vezes provocadas por artistas plásticos. A continuidade deste desenvolvimento, que teve o seu lugar sobretudo em Paris, mas também na Alemanha, Itália (no caso do futurismo) e na Rússia, foi interrompida de uma forma abrupta pelo aparecimento do fascismo e totalitarismo na Europa e em consequência pela segunda guerra mundial. No próximo capítulo pretendemos mostrar que, paralelamente ás invenções técnicas, já nasceu desde o romantismo a ideia de multimédia – décadas antes da era digital. Mas antes vamos referir uma tecnologia desenvolvida na segunda parte do século XX, que considero importantíssima para a dança moderna: A captação do movimento e a sua manipulação digital (motion capture) O objectivo da motion capture é criar um banco de dados sobre o movimento natural de um corpo humano ou animal para a sua posterior edição. O processo é o de marcar todos os pontos das articulações que tem importância no movimento do corpo (p.e. por pontos brancos, luzes ou sensores) e que são filmados de várias perspectivas com o mesmo código de tempo. Softwares especializados calculam através destas imagens as coordenadas espaciais (x,y,z) ao longo do tempo de cada articulação. Estes dados podem ser editados em software 3D de animação como 3DS Max, Maia, Poser etc. para criar movimentos naturais de caracteres virtuais. Esta tecnologia é muito utilizada nos jogos digitais (p.e. Half-Life 2, 2004; Lara Croft Tomb Rider-Legend, 2006) , filmes de animação (p.e. Madagáscar), 2005, e no cinema (p.e. The Lords of the Rings 2001-3; King-Kong, 2005). A origem pode-se encontrar no trabalho fotográfico de Eadweard Muybridge, especialmente nas suas fotografias em série do movimento de um cavalo em galope. Os settings das câmaras – uma quantidade enorme – 50 instaladas paralelamente ao longo do percurso do cavalo e disparadas pelos seus próprios cascos através de fios – é muito similar com os settings de um estúdio de motion capture hoje em dia. Desenvolveu-se um software especializado para a criação coreográfica: “Lifeforms” (hoje “Danceforms”). Pode-se ver motion capture como uma forma de sampling na música. O coreografo pode criar o seu próprio arquivo de movimentos e editá-los em

Horses in motion, Eadweard Muybridge, 1878

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Lifeforms. Mercê Cunningham já trabalha com Lifeforms desde 1989 e influenciou muito a adaptação desta tecnologia à dança. 2.2. Do “Gesamtkunstwerk” até à Multimédia Existe a história das tecnologias, que influenciaram as artes. Mas antes de mais existe uma história de ideias, pensamentos e visões. Sem duvida algumas invenções na tecnologia mudaram o mundo. Mas muitas novas tecnologias resultavam da existência de uma utopia (4). Neste capítulo quero mostrar, que ao contrário da opinião comum, o desenvolvimento da tecnologia não mudou tanto os conceitos artísticos. Eles já existiam antes. Muitas das ideias avantgardistas não foram concretizadas, ou só de uma forma rudimentar, por falta de ferramentas e tecnologias adequadas. Pode-se criticar a adoração total da máquina pelos futuristas. Mas na época da realidade virtual e de uma sociedade cibernética (5) vivemos hoje quase um século depois as visões futuristas. Na introdução já se falou da obra “Variations V” de Cunningham/Cage, realizada umas décadas antes da era digital, que consideramos absolutamente decisivo para o desenvolvimento das artes performativas. Escolhemos mais alguns exemplos desde o romantismo do século dezanove até hoje, apesar de se poder começar já na antiguidade ou talvez na pré-história. Os exemplos apresentados são uma escolha incompleta e subjectiva. O termo Gesamtkunstwerk (6) foi utilizado pela primeira vez pelo escritor e filosofo Eusebius Trahndorff na sua publicação "Ästhetik oder Lehre von der Weltanschauung und Kunst” (A Estética ou Teoria da Filosofia e Arte) de 1827. Em 1849 aparece este termo novamente na publicação "Die Kunst und die Revolution" (A Arte e a Revolução) do compositor Richard Wagner (1813 – 1883). Richard Wagner pretende no seu Musikdrama (drama musical) unir toda as artes, fala da “colectividade” de todos os artistas. “O grande Gesamtkunstwerk, que envolve todos os géneros da arte, que consume de certo modo cada um dos géneros como recurso, destruindo-os a favor da concretização do objectivo principal, a representação directa e absoluta da natureza humana perfeita, – este grande Gesamtkunstwerk não é realizado como obra arbitrária de um individuo, mas antes, mais como, obra consequente do pensamento do Homem do futuro.” (7) Wagner acreditou na fusão de todas artes como um produto colectivo, onde cada artista entrava, em função de uma obra geral que nasce de uma utopia colectiva, o Gesamtkunstwerk.

Das Rheingold, Richard Wagner, Bayreuth, 1976

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Em 1876 Richard Wagner abriu o Festspielhaus (casa festival) em Bayreuth, com uma ideia de surround-sound, com um palco inspirado pelos anfiteatros gregos, que permitia a atenção máxima da audiência ao palco. Com este conceito aproximou-se da sensação da realidade virtual imersa. O conceito romântico do Gesamtkunstwerk de Wagner encontra o seu equivalente modernista na Bauhaus. A Bauhaus, com os seus representantes, defendeu igualmente uma síntese das artes. Wassily Kandinsky (1866 – 1944) tentou com o seu teatro das sensações, “criar um resultado impressionante ao reforçar um determinado timbre de uma arte com o timbre de uma outra arte.” (8)

Mais longe foi László Moholy-Nagy (1895 – 1946): “ O Teatro da Totalidade com as suas múltiplas complexidades como luz, espaço, planos, formas, movimento, som, recurso humano tem de ser um ORGANISMO.” Ele acabou radicalmente com um pretexto literário para criar um cenário, a sua utopia do teatro eram “construções cinéticas, sistemas de movimento com funções lúdicas e de transporte”. Ele pretendeu acabar com a fronteira entre o actor e o espectador. Inspirou-se igualmente – como os futuristas – nos carrosséis e montanhas russas das feiras populares. Uma nova arquitectura do teatro procurou Anton Weininger, um aluno da Bauhaus, com o seu Teatro Esférico (1926), que tentou acabar com a frontalidade do espaço de um teatro tradicional. Com este projecto procurou uma imersão do espectador no espectáculo. As suas ideais só se encontraram realizadas (aproximadamente) no presente com projecções esféricas cinematográficas. Até os encenadores contemporâneos estão à procura de resoluções espaciais/arquitectónicas (p.e. Rui Horta) que permitam uma maior imersão do público no espectáculo. Apesar do conceito do Gesamtkunstwerk se encontrar em outras culturas, p.e. na obra da Sagrada Família do Antoni Gaudi (1852 -1926), sempre teve uma grande vertente alemã; de artistas como o Dadaista Kurt Schwitters (1987 -1948) com seu Merzbau, até o escritor alemão Hermann Hesse (1877-1962) com seu romance “Das Glasperlenspiel”, editado 1943 na Suiça, ou o artista mais influente da Alemanha pós-guerra Josef Beuys (1921-1986) representaram esta tendência. Curiosamente até os próprios Nazis, apesar de terem liquidado a Bauhaus e toda a arte moderna, adoptaram a ideia do Gesamtkunstwerk. A obra cinematográfica de Leni Riefenstahl (1902 - 2003) “Olympia” (1936/38), pode-se interpretar como uma forma antecipada do Filme-Dance. Porém o seu conteúdo é claramente propaganda de uma ideologia fascista. A obra completa que cumpria todos os atributos de um Gesamtkunstwerk, do Teatro da Totalidade e de uma performance multimédia com todas as características duma

Teatro de Bauhaus, 1924

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produção da actualidade foi conseguida em Julho dia 23, 1965 na Philharmonic Hall no Lincoln Centre, New York City: Variations V

Instrumentação: Qualquer numero de músicos com células fotoeléctricas e pelo menos 13 fontes de som electronicamente amplificadas Duração: não determinado Performers: John Cage, David Tudor, Malcolm Goldstein, Frederick Lieberman e James Tenny (músicos); Robert Moog (equipamento electrónico); Stan VanDerBeek (filmes); Nam June Paik (imagens de televisão destorcidas); Beverly Emmons (luz); Merce Cunningham, Carolyn Brown, Barbara Lloyd, Sandra Neels, Albert Reid, Peter Saul and Gus Solomons Jr. (bailarinos); Billy Klüver (consultor técnico). Dedicado a: Mary Sisler Coreografia: Mercê Cunningham Publicação: Edition Peters 6799 © 1965 by Henmar Press Manuscrito: Partitura (documento escrito a mão, assinado, em tinta - 4 p.); realização, partitura (documento escrito à mão em tinta azul e preta e alguns lápis. 2 p. + 3 cartões de índex com os instruções e timing para as acções; esboços e notas (documento escrito a mão em tinta azul e preta e alguns lápis - 80 p.) todo na New York Public Library. A partitura de Variations V foi feita depois da primeira performance e continha 37 notas sobre performance áudio visual, inclusivamente uma lista dos participantes. A primeira performance foi coreograficamente dirigida por Mercê Cunningham, o sistema de som era desenhado por David Tudor, equipamento da percussão electrónica por Robert Moog, equipamento fotoeléctrico por Billy Klüver, imagens de televisão destorcidas por Nam June Paik, filmagens por Stan VanDerBeek, mistura por Max Mathews, gravação da banda sonora por John Cage, luz por Beverly Emmons, rádios de banda curta e a sua colocação por Billy Klüver e Frederic Liebermann. As fontes da primeira performance foram rádios de banda curta e cassetes com sons gravados como p.ex. do esgoto da cozinha (gravados por John Cage). Fotocelulas reagindo ao movimento dos bailarinos, interruptores por trigger, que ligavam e desligavam o áudio. Max Mathews desenhou a mesa da mistura para controlar o volume, timbre e a distribuição do som entre as seis colunas na sala. Em 1966 a televisão Norddeutscher Rundfunk Hamburg e Sveriges Radio Television produziram a versão para a televisão,

Variations V, New York, 1965

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com Arne Arnbom como director. A duração do filme é de cinquenta minutos. (9) Depois da sua estreia passou a ser apresentado na Europa. “Variations V” foi no sentido wagneriano uma fusão das artes, uma obra perfeitamente colectiva. Partindo da filosofia do happening a linha entre vida e arte foi dissolvida. O som foi controlado pelo movimento dos performers através de um sistema de triggers e células fotoeléctricas que ligaram e desligaram os rádios de banda curta e as cassetes com gravações de ruídos, fragmentos do mundo vulgar. Várias projecções de iluminação e de filmes como televisões no fundo do palco criaram visualmente múltiplas camadas, no meio das quais os bailarinos dançaram. Eles actuaram dentro de um certo plano de actuação mas com liberdade de improvisação. Não existiam hierarquias, o que também não correspondia ao espírito anárquico do Cage e Cunningham. Cada espectáculo foi diferente conforme a filosofia fluxus. Juntou as personalidades mais criativas da época. Foi uma obra musical, visual, performativa, com tecnologia da época, simplesmente uma produção multimédia.

2.3. Film-Dance / Video-Dance Em 1966 com a colaboração do realizador Stan Van Der Beek produziu-se uma versão da Variation V para a televisão. Cunningham percebeu logo que é uma forma diferente trabalhar em frente de uma câmara ou num palco. Ele descobriu as características específicas do filme e percebeu a câmara como ferramenta criativa. Actuar ao vivo é trabalhar coreograficamente o espaço do palco em relação ao público, i.e. para múltiplos pontos da vista; em frente de uma câmara a coreografia encontra-se limitada a um plano só da filmagem, o corpo do bailarino e o seu movimento estão reduzidos a uma projecção meramente de 2D. Em compensação a câmara graças à sua mobilidade e capacidade do zoom, permite aproximações e perspectivas radicalmente diferentes. Nasceu o primeiro filme dance da historia. Vídeo dança, ou filme dança, procura definir-se como um género próprio de arte. A ideia não é de documentar uma coreografia no palco, mas sim criar a coreografia em função da obra cinematográfica e com o movimento da câmara tendo um papel integrante na coreografia. Os movimentos da Dança e da câmara juntam-se, à linguagem cinematográfica (cortes, stills etc.) e finalizam a obra de arte. Alguns dos trabalhos mais radicais criados para a telvisão na área das artes performativas são da autoria de Samuel Beckett:

Variations V, New York, 1965

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“Eh Joe” (1968), “Ghost Trio” (1977), “but the clouds...” (1977), “Quad I + II” (1981), “Nacht und Träume” (1982), “Was wo” (1986). Estas chamadas tele-peças foram especialmente escritas e encenadas para a televisão alemão Süddeutscher Rundfunk (SDR) e a British Broadcasting Cooperation (BBC). “De acordo com Voigts-Virchow (1998:228-33), Beckett explorou os potenciais estéticos do meio audiovisual e, principalmente, desenvolveu uma estética minimalista. O tempo de duração das tele-peças, o uso de locações internas, a diminuição dos objectos de cena e a fragmentação do corpo dos personagens foram importantes para a diminuição gradual de elementos que caracterizam a estética minimalista de suas peças.” (10) Especialmente o trabalho “Quad 1+2”, uma peça em duas variações para “quatro performers, luz e percussão”, esta no centro do nosso interesse. Quatro actores vestidos com hábitos nas quatro cores, vermelhos, verde, azul e branco (“Quad 1”), entram sucessivamente na área de actuação, um quadrado com o centro marcado. A coreografia está baseada num sistema geométrico / triangular à volta do centro, que é cumprido pelos quatro performers com um rigor matemático. A variação “Quad 2” tem os mesmos settings, mas foi filmado em preto e branco; os quatro hábitos são do mesmo tom cinzento. Apesar da coreografia do HABITAT não ter nada haver com a geometrização na tele-peça “Quad 1+2”, este trabalho para mim foi paradigmático para o nosso projecto. Definir um espaço concreto (concreto só na virtualidade) mas invisível na realidade do palco meramente pelo movimento do corpo foi o grande desafio da nossa coreografia. O vídeo dança recebeu impulsos importantes da França, Inglaterra e Alemanha nos anos oitenta, onde as televisões públicas apoiaram produções do novo género. 2.4. Multimédia nas artes performativas contemporâneas Como referimos antes quase já não existem espectáculos de dança sem projecções de vídeo e/ou elementos multimédia. O enorme desenvolvimento do hardware – aumento da velocidade do processamento, grande capacidade de memoria e armazenamento de dados – como do software – cada vez mais específico e eficaz – em conjunto com os preços cada vez mais acessíveis, são uma grande razão da popularidade nas artes performativas. Para muitos, especialmente pequenas companhias, um cenário virtual é muito mais económico e versátil do que um cenário físico. Mas, além das razões pragmáticas, existe uma discussão mais profunda sobre a utilização das tecnologias nos espectáculos. Existem os eufóricos, com uma adoração na boa tradição futurista, os realistas e os cépticos.

Tristan und Isolde. Nicht berühren Jo Fabian, 2001

Quad II, Samuel Beckett, 1981

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As aplicações são múltiplas e é difícil categoriza-las. A forma mais simples é a projecção de um vídeo num plano de fundo, como fez Clara Andermatt no seu duo “Silêncio” (Festival Temps d´Image, Centro Cultural de Belém, 2006). No mesmo festival a coreografa alemã Stephanie Thiersch (1970) mostrou o solo “Beautiful Me”, onde projectou imagens sobre um objecto escultórico, mudando e alterando assim a leitura da forma e materialidade do objecto e integrando nele o corpo da própria bailarina.

Muito diferentes são os settings da peça “Tristan und Isolde. Nicht berühren” (Tristan e Isolde. Não toque) de Jo Fabian (1960). Ele utiliza os computadores como meio de comunicação entre os bailarinos e o público. Fabian desenvolveu a partir de um sistema de movimentos, um alfabeto coreográfico, o seu “Alphasystem”. Ele descreve a sua peça “Ausstellungstück” (peça de exposição), i.e. convida o público não para uma encenação mas para uma exposição. A sua instalação é um cubo de vidro e um teclado. Aqui o espectador pode escrever as suas associações, notas ou perguntas. As palavras aparecem num vídeo-screen enquanto o bailarino responde através do “Alphasystem” em dança. Fica em aberto se através deste sistema se instala uma verdadeira comunicação entre espectador e performer. A capacidade de captação, edição e projecção de vídeo em tempo real abriu novos caminhos de aplicação em espectáculos. A instalação “Telematic dreaming“ (1992) de Paul Sermon (1966), artista multimédia, introduziu settings telemáticos (11) nas artes performativas. Os settings da instalação são os seguintes: Uma câmara instalada por cima de uma cama onde está deitada uma pessoa, manda as imagens para um projector instalado por cima de uma outra cama com uma segunda pessoa numa localização diferente da primeira. Esta projecção por cima da segunda é novamente filmada e projectada para a primeira. Assim cada cama está ocupada por um performer e pela projecção do outro. O primeiro projecto do colectivo LaborGras a investigar novos caminhos da dança em colaboração com artistas multimédia foi a peça “melting point” (2002). Alterando os settings telemáticos de Paulo Serman os bailarinos comunicaram e improvisaram, em diferentes locais geográficos, em conjunto através da Internet. A produção “I, me, and myself again” (2006, Akademie der Künste, Berlim) teve a ideia de uma improvisação com a projecção da própria actuação. O bailarino actuava num espaço pentagonal onde também se encontrava o público. Um dos cinco planos que era monocromo (escuro) servia como fundo da filmagem do performer. As imagens foram projectadas nos restantes quatro planos do pentágono. As particularidades do software permitiam limpar o fundo destas imagens através de chroma-keying em tempo real e projectá-las não só em tempo real mas também com um atraso de até 20 minutos. Foi ainda possível reproduzir várias layers por cima do mesmo plano com

I, me and myself again, LaborGras, Interpretação Romeu Runa, Akademie der Künste, Berlin, 2006

Telematic Dreaming, Paul Sermon, 1992

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atrasos diferentes. Isso permitia ao bailarino improvisar com a sua própria clonagem em tempo real e com os seus múltiplos passados. Uma das personalidades mais emblemáticas na aplicação de multimédia na coreografia é Rui Horta (na. 1958). Coreografo português, estudou e trabalhou nos anos oitenta como bailarino em Nova Iorque. Em 1991 radicou-se em Frankfurt/Main, onde fundou o seu próprio grupo de dança S.O.A.P., que ganhou reputação internacional. Em 2000 voltou para Portugal e criou em Montemor-o-Novo o centro de arte multidisciplinar “O Espaço do Tempo”. Ali iniciou em 2001 o worhshop “Colina”, onde não só convidou criadores e interpretes das artes performativas, como também da multimédia, artes plásticas, literatura etc. Esta iniciativa ganhou tanto dinamismo, que depois de Montemor-o-Novo já foi repetida em Düsseldorf, Newcastle, e Talin. No workshop “Watchout” (12) de Rui Horta (Aveiro, 2006) tive oportunidade de conhecer o seu método de trabalho. Rui Horta trabalha tanto com filmagem em tempo real como com vídeo pré-produzido, mas procura uma ligação directa entre os bailarinos e as imagens projectadas. O software utilizado com o nome “Watchout” tem a capacidade de uma múltipla projecção, que permite criar um cenário espacial, e numa certa forma a imersão do público dentro do espaço do espectáculo. Desenvolve a sua narrativa como uma colagem de cenas coreográficas com fragmentos de imagens do real e até de elementos de banda desenhada. Entende a dança como movimento do corpo no espaço, mas também viaja pelo espaço do corpo. O corpo é projectado mas também utilizado como plano da projecção. Tentámos com alguns exemplos históricos e actuais desenhar a aplicação de multimédia nas artes performativas. A sua aplicação é múltipla: cenários virtuais com a ideia de imersão do público, o dialogo do performer, com a sua clonagem, tecnologia digital como meio de comunicação entre o espectador e performer. Com o desenvolvimento da tecnologia, do espaço virtual, cyberspace, world-wide-web etc. vai haver novos settings com novos e surpreendentes resultados. Existem muitos projectos que estão a trabalhar as novas tecnologias, reflectindo o actor como espectador na nova era digital, mas penso que futuramente a arte digital vai ser vista e utilizada mais como uma ferramenta útil para responder a novos conteúdos com novas imagens. De uma certa forma os futuristas tiveram uma visão a longo prazo, numa outra forma enganaram-se. As artes performativas ganharam um alto grau tecnológico – HighTechTheatre –, mas o corpo humano continua presente como sempre: nu e cru.

Watchout, Workshop com Rui Horta, Aveiro 2006

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3. Exposição do Projecto Desde o modernismo o espaço não é só para o arquitecto o elemento principal na sua criação, mas também para o escultor e para o coreografo. Já no início do século XX este fundamento foi ponto de partida para projectos comuns (p.e. Oskar Schlemmer). Consciente destas afinidades artísticas dos dois géneros – dança contemporânea e escultura contemporânea – o projecto HABITAT pretende investigar tanto a corporeidade escultural e coreográfica como a sua transmissão à tecnologia digital. Pela aplicação desta tecnologia em tempo real consegue-se estabelecer uma ligação entre o espaço real da performance e os espaços das esculturas. O objectivo é no sentido do conceito plástico criar um prolongamento do espaço escultural pelo espaço virtual criando palcos digitais para a dança.

3.1. Environment – Performance HABITAT, um projecto interdisciplinar entre a dança e a escultura contemporânea, apresenta-se tanto como um environment escultural como uma performance de dança. A nossa vivência tem o seu lugar em caixinhas (casas, quartos, carros…), nas quais existem caixinhas mais pequenas (televisão, telefone, computador) que nos ligam ao exterior. A representação do mundo de fora é cada vez mais perfeita. Graças a uma tecnologia digital e a um processamento de dados cada vez mais rápido recebemos imagens em tempo real. A discrepância entre a realidade e a sua imitação ou ilusão desaparece, na mesma forma altera-se o nosso espaço vital. O environment é constituído por um conjunto plástico de formas arquitectónicas, estruturando e interpretando o espaço da actuação de uma forma nova. O conjunto de esculturas será colocado como padrões, elementos de uma ocupação plástica. Cada objecto guarda o seu espaço interior, refúgio íntimo, ‘habitats’ (onde são implantados pequenos monitores). Nestes monitores prolonga-se o espaço real virtualmente. O carácter virtual suspende o peso da escultura materializada e permite modular o espaço, as perspectivas e as proporções dinamicamente. Aqui a dança entra no cenário: Numa área espacialmente separada das esculturas actua a bailarina, observada por três câmaras de vídeo. A transmissão para os monitores das esculturas, em tempo real, coloca o corpo da bailarina dentro da instalação escultural. O software utilizado permite a clonagem das imagens tanto em tempo real como com um certo atraso (que provoca um encontro da bailarina com o seu próprio passado recente). Assim mantêm-se a interpretação coreográfica como registo digital no interior das esculturas, num certo sentido a

Environment - Performance

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actriz povoa os habitats da instalação, sem sequer se colocar neles fisicamente, criando uma unidade entre dança e escultura. 3.2. A Coreografia O espaço escultural condiciona a coreografia. A bailarina, apesar de se encontrar num espaço visualmente separado do environment, actua em consciência do seu habitat: o espaço limitado das esculturas. O seu raio de acção esta condicionado pelo meio do vídeo e pelas condições espaciais das esculturas. Esta limitação exige uma reacção específica ao movimento do corpo do bailarino. A ambivalência do espaço e o seus atributos antagonistas como estreito – largo, vazio – cheio, limitado – amplo, ou real – virtual ou espaço espiritual – espaço físico são temas inerentes da coreografia. Assim o corpo da bailarina ocupa o espaço do ecrã dentro do corpo da escultura – solitário ou em múltiplas clonagens da sua imagem. Ele desenha linhas pela sua presença e seu movimento dentro do espaço predefinido pelas esculturas. O aspecto principal durante a concretização do HABITAT vai ser na discussão da dança em confrontação com a tecnologia de vídeo e do espaço virtualmente aumentado da escultura. A vista pontual da câmara, a limitação do ecrã dentro de um espaço escultórico serve como um guião no movimento do corpo. Ele começa a partir destas condições predefinidas do espaço e investiga as possibilidades da percepção e mobilidade com meios coreográficos. As composições da dança são definidas e elaboradas pelas capacidades da câmara e do setting tecnológico. Eles são desenvolvidos em função da representação fragmentária dentro dos monitores, mas também fazem parte da composição total. O observador tem a possibilidade de recepção da dança real (ao vivo) como também do seu registo fragmentário no espaço artificial. O objectivo não é uma coreografia estruturada mas antes eventos do corpo. A tecnologia de vídeo separa a imagem do corpo do seu original, imaterializa a sua presença e permite a sua clonagem ao longo do tempo. Sentir o tempo, a ocorrência, permanência e simultaneidade é o tema central na modulação do espaço, corpo e imagem. Queremos em colaboração com todos os artistas participantes desenvolver a criação artística e coreográfica através da aplicação da tecnologia digital na produção, reprodução e recepção e da percepção. Porém a tecnologia não é o tema predominante.

Ensaios em frente da câmara

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4. Realização do Projecto Este projecto como já foi referido anteriormente nasceu de uma vontade comum para a experimentação de uma produção colectiva. Depois de ter discutido varias ideias conceptuais cristalizou-se um plano estratégico. Podem-se distinguir cinco fases de realização: 1. Preparação do projecto 2. Elaboração do conceito artístico 3. Execução do environment escultórico 4. Criação do espaço virtual 5. Ensaios da interligação da coreografia, escultura e vídeo

4.1. Preparação do projecto Nesta primeira fase de projecto foi necessário definir os membros da equipa, os parceiros na produção, apoios etc. Conseguimos o apoio do centro nacional de artes transdisciplinares O ESPAÇO DO TEMPO em Montemor-o-Novo, onde tivemos duas residências artísticas, ateliers, estúdio de ensaio, assistência técnica e de produção. Candidatamo-nos a um subsídio do Instituto da Artes, que só não conseguimos por uma razão geográfica (como tenho a minha residência permanente em Sintra, o projecto estava inscrito na zona de grande Lisboa, assim ficando em decimo oitavo na classificação nacional entre dezoito projectos aprovados, fomos penalizados pela localização geográfica não sendo seleccionado em detrimento de outros vindos de outras zonas do país). Mesmo sem as verbas esperadas conseguimos criar uma equipa de “voluntários” de 9 membros: Projecto de Volker Schnüttgen em cooperação com LaborGras & Guests Escultura, Interiores Virtuais, Edição Vídeo – Volker Schnüttgen, Sintra Coreografia, Interpretação – Renate Graziadei, Arthur Stäldi, Berlim Multimédia / Vídeo interactivo – Frieder Weiss, Nuremberga; Martin Bellardi, Weimar Composição Musical – Constantin Popp, Weimar Assistência Artística – Fernando Almeida, Porto Documentação Vídeo – Joana Pires, Montemor-o-Novo Fotografia – Eugénia Rufino, Sintra Um problema fundamental num projecto deste tamanho foi conseguir calendarizar as nossas residências e a estreia de uma forma aceitável para todos os participantes e para o próprio O ESPAÇO DO TEMPO. Como se pode imaginar isso provocou alguns quebra-cabeças e constantes alterações.

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4.2. Elaboração do conceito artístico Paralelamente à organização logística discuti com LaborGras problemas conceptuais do projecto. Desde o início que estávamos conscientes da sua forma híbrida: performance e exposição. Este facto levantou várias questões: Como se consegue unir meios tão distintas como dança e escultura? Como se trabalha o espaço físico do evento? O conceito das artes plásticas sobre o espaço ideal é radicalmente o oposto aos conceitos das artes performativas. Nas artes plásticas o ideal é o white cube, nas artes performativas é a black box. O papel da luz é igualmente fundamental. Num teatro praticamente não existem fontes de luz natural. A luz é trabalhada a partir da escuridão e faz parte inerente da dramaturgia de uma coreografia, é trabalhada de uma forma extremamente dinâmica. Completamente ao contrário está a situação museológica. Apesar de existirem resoluções altamente sofisticadas da iluminação para galerias e museus a luz natural continua a ter um peso fundamental na arquitectura contemporânea de museus. A iluminação perfeita existe quase de uma forma discreta, onde a obra aparece na sua presença perfeita sem sentir a existência da fonte da luz. Este pequeno exemplo mostra as divergências que existem entre uma obra teatral e uma obra plástica. Outra pergunta que se colocou seria a forma de conduzir o público num espaço tão ambíguo. A par das características de um projecto transdisciplinar procuramos um público amplo, juntando espectadores das artes plásticas e das artes cénicas que segundo as nossas experiências são muito distintos. Num espectáculo tradicional o público não se levanta do seu local, um código social que quase sempre é cumprido. O seu papel é muito passivo. O visitante de uma galeria desloca-se livremente, pode comunicar as suas impressões a outros espontaneamente. Curiosamente o papel dos artistas é o inverso: o artista plástico tem o seu processo criativo terminado e cede o terreno ao espectador. O performer, apesar de ter a sua actuação ensaiada tem de reagir ao público presente com todo o risco do imprevisto, criando um acontecimento efémero com espaço para a improvisação e interacção. Entendemos o projecto HABITAT como uma instalação aberta. Os monitores no environment escultural são como janelas, que mostram os seus habitantes. O espectador pode mover-se livremente na instalação e escolher o seu ponto da vista. Pode decidir entre os fragmentos da projecção ou ver a performance da dança ao vivo. Assim define ele próprio a sua posição no habitat, observando o espectáculo como um evento efémero, ou descobrindo os espaços íntimos e escondidos, os habitats das esculturas – até o público participa na povoação do ambiente.

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Não há barreira de um palco. O processo criativo está transparente. Não existe uma narrativa linear ou a representação de uma história, nem existe início ou fim. A leitura é associativa, de acontecimentos de corpos humanos, actos físicos mas fragmentados, corpos que ocupam espaços. As experiências que tivemos posteriormente às duas noites de espectáculo na BlackBox em Montemor-o-Novo mostraram bem as diferenças no público na recepção da peça. Na primeira noite o público foi na grande maioria ligado aos espectáculos e artes performativas. A bailarina (Renate Graziadei) não teve problemas nenhuns em ganhar a sua atenção até o fim da performance. Na segunda noite a situação mudou radicalmente. Um público mais ligado às artes plásticas entendeu a noite como uma “inauguração”, moveu-se muito mais livre, deu muito mais atenção as obras escultóricas, e a performer tinha de “lutar” (comentário do coreografo Arthur Stäldi) pela sua presença.

4.3. Execução do environment escultórico No dia 31 de Julho 2007 carreguei 16 troncos de carvalho em Sellenrade, numa aldeia serrana na Alemanha que chegarem uma semana depois ao meu atelier em Sintra. Consciente da matéria prima disponível comecei trabalhar as maquetas dos elementos escultóricos. Houve várias preocupações predominantes neste processo: 1. Desenvolver os elementos escultóricos/arquitectónicos que modulam o espaço da BlackBox; integrar tanto a zona reservada para a performance (palco) como o próprio público dentro do environment escultórico. Sempre entendi que as esculturas deviam ter uma escala que recolhesse os espectadores de forma a que se sentissem dentro da instalação, dentro do seu “habitat”. 2. Criar espaços interiores apesar de serem de uma escala reduzida mas com capacidade de criar uma coreografia complexa, dando espaço à interpretação da bailarina. Procurei soluções diversas com perspectivas distintas, que obrigam o público que se desloca durante o espectáculo à procura do acontecimento no mundo virtual das esculturas. 3. Apesar de ter elementos escultóricos muito individualizados, procurei uma “grande forma plástica”, isso significa uma unidade do conjunto das formas. 4. Tive uma grande preocupação no tratamento do carvalho e do seu acabamento. Decidi modelar e acabar as peças unicamente com a moto-serra. Procurei a integração da alta tecnologia nas esculturas pelo contraste: uma linguagem “primitiva” e “bruta” na articulação das esculturas, que pretende explicitamente fugir do design tecnocrata da alta tecnologia. Procurei uma interpretação do tema HABITAT numa forma rudimentar e arcaica. Depois de uma fase de trabalhos preparatórios no meu atelier em Sintra (Setembro/ Outubro) consegui executar as esculturas com

Matéria prima: troncos de carvalho

Environment: primeira montagem

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a ajuda do meu assistente artístico Fernando Almeida durante a primeira residência criativa em O ESPAÇO DO TEMPO, Convento da Saudação Montemor-o-Novo (19.11-13.12.2007). 4.4. Criação do espaço virtual No dia 16 de Janeiro começou a minha segunda residência em Montemor-o-Novo. Foi uma fase de trabalhos preparatórios. Consciente que uma residência criativa de apenas duas semanas com a equipa completa (O colectivo de Dança LaborGras chegaram em Montemor-o-Novo 15 dias antes da estreia do HABITAT) obrigou à optimização de todos os trabalhos, que podia executar sozinho. Transformei os monitores TFT, tipo Samsung de 15 polegadas, monitores de segunda mão, em monitores open frame, quer dizer que desmontei tudo o que era plástico. A minha tarefa principal foi a criação dos espaços virtuais. Como já falei anteriormente houve várias condicionantes para cumprir. Em primeiro lugar tinha de escolher a tecnologia na modulação virtual. Originalmente pensei em espaços 3D. Porém percebi que para os fins da coreografia era mais fácil trabalhar com layers, praticamente como os cenários no teatro, que só sugerissem uma tridimensionalidade a partir do ponto de vista do espectador. Muito ao contrário de um espaço 3D, que apesar de existir meramente na virtualidade, está constituído por objectos com expansão espacial dentro de um espaço dos três eixos x, y, z. Esta decisão, como se verificou mais tarde, facilitou muito o nosso trabalho, na criação dos espaços, na aplicação do nosso software em tempo real e na orientação da performer no palco em frente da câmara vídeo. Criei os meus cenários por fotografias digitais de pormenores das esculturas, pela sua fragmentação em layers por máscaras e a sua nova composição. Manipulei o cromado (desaturação e inversão da luminosidade) à procura dum resultado que se aproximasse mais a um desenho a lápis ou carvão do que propriamente a uma imagem fotorealista. O que me preocupou foi a modulação da luz na continuação do espaço real da escultura. Sabia que a tecnologia utilizada – a projecção do vídeo em tempo real – e as limitações tecnológicos (sobretudo em termos do hardware) não permitiam uma projecção cinematográfica ao estilo Matrix. Mas nós também não desejávamos isso. Pretendíamos mais uma linguagem parecida com a banda desenhada, animação ou jogo de computador. Uma representação realista não se integrava no “habitat” arcaico dos troncos de carvalho. Outra questão para resolver foi a da perspectiva dos espaços virtuais. Criei para cada escultura individualizada um ponto de perspectiva que corresponde aproximadamente ao ponto da vista do observador. Na altura faltou-me ainda a experiência da projecção do vídeo da coreografia para dentro do espaço virtual da escultura. Infelizmente não consegui discutir as minhas ideias

Espaços virtuais

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nem com a minha equipa coreográfica nem com a técnica. Encontravam-se num festival de dança em Antuérpia preocupados com outros assuntos. Decidi resolver o problema criando várias alternativas para cada escultura. Mais uma incógnita do projecto foi a introdução da música, ou melhor do som dentro do cenário. A minha experiência de aplicação de som em instalações escultóricas limitava-se ao KickVox, uma instalação sonora interactiva (com Sandra Carneiro e Ricardo Raimundo, Maus Hábitos, Porto 2006). Mas no caso do HABITAT o problema foi muito diferente, um problema espacial. Queria que cada escultura modulasse o seu espaço de som, mas ao mesmo tempo precisávamos de um som que comunicasse com a performer no palco. Imaginei para este projecto uma composição de música concreta. Num workshop em Weimar LaborGras conheceu o jovem compositor Constantin Popp. O seu interesse pela música concreta e composições espaciais foi a razão do convite para o HABITAT.

4.5. Ensaios da interligação da coreografia, escultura e vídeo No dia 27 de Janeiro chegaram Renate Graziadei, Arthur Stäldi (coreografia, performance), e Martin Bellardi, exaustos de uma semana de viagens e espectáculos na Antuérpia e Constantin Popp (composição musical), que vinha de Berlim. Ficamos com menos de duas semanas para desenvolver e montar uma instalação multimédia e criar e ensaiar uma coreografia para os meus espaços virtuais. E faltava o nosso programador que ainda se encontrava na Austrália na produção de um espectáculo para a Opera de Sydney. Nesta fase tive grandes dúvidas de conseguir realizar o HABITAT até à estreia no dia 8 de Fevereiro. 4.5.1 Setup áudio Decidimos de organizar o som na seguinte maneira: Circuito 1: Para os altifalantes das cinco esculturas o Constantin criou uma composição de som permanente e reproduzido em loop, a partir de samplers que ele gravou tocando nas próprias esculturas e troncos de madeira. Criou uma biblioteca de amostras, que com a utilização do software Reaktor 5 transformou numa malha acústica criando um espaço sonoro dentro da instalação. As próprias esculturas através dos altifalantes incorporadas tornaram-se caixas de ressonância. Apesar de ter dois circuitos áudio diferentes o hard– e software utilizado é comum. A composição préproduzida de cinco canais (suround sound (5+1)) foi gravada no disco rígido e reproduzida pela RME Multiface sound card via amplificador para os cinco altifalantes das esculturas (o canal +1 não foi utilizado). O som foi

Fontes sonoras

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controlado pela faderbox, que controlava os parâmetros do software Reaktor 5 através do protocolo MIDI. A vantagem da utilização da faderbox está no manuseamento. Os seus sliders permitem ao operador um controle mais intuitivo e espontâneo do que a interface do programa através do rato. Circuito 2: O segundo circuito áudio servia para o acto musical em tempo real. Além da malha sonora permanente queríamos uma actuação ao vivo que reagia ao acto da performance no palco. Obviamente tinha um carácter de improvisação, parecido com a coreografia. Apesar de existirem espaços esculturais muito determinados a performer sempre manteve a liberdade duma nova interpretação respondendo à situação em diálogo com o público. Com este fim montámos dois microfones direccionáveis na régie (onde operava o Constantin) que serviam como fonte sonora. Ele utilizou vários objectos e matérias, como cubos de calçada, madeira, objectos metálicos etc. para produzir uma gama de sons, que captou pelos microfones, amplificada pela mesa da mistura, transformada e modulada com o seu software Reaktor 5, controlado pela faderbox, passando via RME Multiface sound card, via mesa de mistura e amplificada pelas 4 colunas activas (PA active speakers) penduradas nos cantos da BlackBox. O facto de ter escolhido um compositor de música concreta mostrou-se correcto. A complexidade do som, a sua sobreposição por 9 layers áudio e o improviso de uma actuação em tempo real em diálogo com a coreografia não permitiam uma composição consonante no sentido convencional. Procuramos mais uma malha sonora com uma extensão espacial produzida por várias fontes acústicas. Samplers pré-produzidos entraram num balanço com o acto improvisado do músico durante o espectáculo. 4.5.2. Montagem da instalação escultórica No dia 31 de Janeiro mudei as esculturas do Armazém T (atelier disponibilizado por O Espaço do Tempo para a realizar as esculturas) para a BlackBox. A BlackBox serve para O Espaço do Tempo como um estúdio-teatro. Está equipada por um rigging que cobre uma área de 12 x 9 metros numa altura de 4,50 metros. Pedimos para retirar as bancadas e ganhamos um espaço útil para a instalação e perfomance de aproximado 15 x 10 metros. No fundo da sala existia uma mezzanine, onde montamos a régie. As paredes e o piso inferior da mezzanine foram cobertas por cortinas pretas. Numa zona de 6 x 6 foram montados plataformas tipo Kleu, cobertas com tapete de dança para criar a área da performance em condições adequadas. Como o Armazém T tinha uma escala quase igual à da BlackBox tive oportunidade de experimentar a instalação antecipadamente

Instalação escultórica

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o que facilitou imenso a montagem definitiva. Coloquei o objecto maior (escultura 1), uma grande construção de vigas de carvalho (2,4 x 2,4 x 2,4) na entrada, quase como um “obstáculo”. A função foi separar o espaço exterior do interior. Depois de ter passado este obstáculo, o visitante sentiu-se como habitante da instalação, acolhido pela forma arquitectónica. Outra peça sem aplicação de alta tecnologia foi a escultura 2, plasticamente a forma mais complexa e dinâmica, elemento complementar da peça 1, reforçando o aspecto sugestivo da instalação. Seguiram as esculturas 5 até 7, peças com implantação de monitores TFT open frame e altifalantes. Colocamos e direccionamos as esculturas para criar um percurso, propositadamente de forma a que não se vissem todos os monitores ao mesmo tempo. Pois queríamos obrigar o público a deslocar-se dentro do environment.

4.5.3. Setup vídeo Um dos grandes desafios foi a instalação do setup vídeo. Até hoje a edição de vídeo é uma aplicação que exige todas às capacidades do processamento e da memória de um computador. A edição de vídeo em tempo real vai rapidamente ao limite tecnológico da actualidade. Nós tivemos consciência da limitação do hardware disponível. Juntamos material nosso (cada um trouxe os suas próprias ferramentas digitais), aproveitamos o material da casa (O Espaço do Tempo disponibilizou-nos todo o hardware que possuía), pedimos algum material emprestado e mesmo assim tínhamos muito para adquirir. O nosso projecto baseava-se muito na experiência do LaborGras em espectáculos com aplicação de multimédia. A sua primeira performance de multimédia foi Melting Point (2002) com a utilização da Internet (veja 1.4. As artes performativas contemporâneas). I, Me, and Myself again” (2006, Akademie der Künste, Berlim) foi o primeiro projecto com a colaboração do Frieder Weiss e a utilização do seu software Kalypso, seguido pelo Spiel der Spiele – Play the Game (Berlim 2008), onde entrou Martin Bellardi como operador de multimédia. Basicamente tínhamos de distribuir as imagens captadas pelas câmaras de vídeo para os cinco computadores que alimentaram os cinco monitores embutidos nas esculturas. Faltavam ainda as ferramentas de controlo para o operador na régie e os monitores de controlo visual no palco para a performer. Montamos três câmaras de vídeo, uma lateral à área da dança em cima de um tripé com pouca altura, uma segunda frontal com altura media – ambas as câmaras eram semi profissionais com três chips de captação, a terceira foi montada no rigging por cima do palco. Infelizmente esta era só uma consumer câmara, com um único chip para a representação das três cores RGB. A função deste dispositivo, além da captação das imagens para a escultura 5 (“o poço”), foi o controle da posição da bailarina no

Régie vídeo

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palco (z-buffer). Devido à sua pior qualidade, sobretudo um aumento de ruído, tivemos alguns problemas (veja 6.1.1. Keying em tempo real). A distribuição das imagens para os computadores resolvemos com uma matrix (8in/8out de ligações vídeo composto). A matrix permitia a ligação da qualquer dos três sinais de vídeo para qualquer dos nossos cinco PCs, uma peça chave no nosso setup. Em todos os computadores instalamos Kalypso, o software da exclusiva autoria de Frieder Weiss. Kalypso é um programa de aplicação de vídeo em tempo real programado em Delphi, um Pascal para Windows. Frieder desenvolveu o seu programa ao longo dos anos da sua actividade professional especificamente para performance e instalações interactivas. O seu conceito é criar uma ferramenta “leve”, que permite que aplicações tão complexas e pesadas como a edição de vídeo em tempo real corram em consumer-PCs. Consequentemente a sua maior preocupação como programador é ter um data flow optimizado para o maior rendimento do processamento. No nosso caso específico carregamos um still – os meus espaços virtuais – como imagem do fundo em cada computador e colocamos o vídeostream das câmaras na layer superior. O fundo destas imagens foi tirado através dum processo de keying. As layers foram renderizadas e através de cabos VGA mandados para os monitores TFT. No início da performance cada monitor mostrava as still images dos espaços virtuais. Entretanto a performer ocupava cada escultura, uma por uma. Nós decidimos que depois da ocupação da primeira, que esta cena continuava a ser projectada como vídeo gravado em loop dentro da escultura. Consequentemente pouco a pouco todas esculturas ficavam “habitadas”. Com esta premissa criamos mais uma complicação para o processamento: isso significava tecnicamente que além do processamento da imagem os computadores tinham de gravar os vídeos num ficheiro no disco rígido (inclusivé do calculo do codec para a leitura do loop logo a seguir); tudo em tempo real. Logo nos primeiros ensaios percebemos que a nossa performer, Renate Graziadei, precisava um controle visual da sua actuação no palco. Cada computador teve uma placa gráfica com duas saídas: uma saída VGA e uma DVI-A. Aproveitamos a saída VGA para a reprodução nos ecrãs das esculturas. A segunda tinha de servir tanto para a supervisão da bailarina no palco como para o controle de todo o sistema pelo operador na régie. Obrigou-nos, com mais dois splitters e mais dois switches, a dividir o sinal vídeo para os dois monitores da régie e os dois monitores no palco. Faltava apenas criar condições viáveis para o nosso operador. Era completamente impossível controlar um espectáculo a

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manobrar cinco computadores através de cinco teclados e cinco ratos. Por esta razão Martin Bellardi criou uma interface própria para a instalação através do MAX/MSP num computador master. Criou um sistema de rede (LAN) que conseguiu manipular centralizando todos os parâmetros necessários para conduzir o espectáculo através de um computador só. O setup estava montado. Faltava “só” adaptar o Kalypso ás exigências da performance e dos espaços virtuais. Antes de trabalhar para a área de espectáculos Frieder Weiss, formado em engenharia electrónica elaborou sistema de controlo de qualidade automatizado através de análise de imagens de vídeo. Aplicou esta experiência ao mundo das artes visuais e performance. O desafio deste projecto foi a confrontação com a terceira dimensão. Até esta altura as suas intervenções eram meramente bidimensionais.

Quando percebi que a nossa performer Renate Graziadei e o nosso coreografo Arthur Stäldi entendiam a problemática dos espaços em função da coreografia e software compreendi que o projecto avançava na direcção certa. Renate – com a experiência dos últimos projectos realizados – criou uma grande segurança de trabalhar em frente a uma câmara, sabia comunicar com seu próprio clone e conhecia as capacidades do software. Faltava adaptar o Kalypso à tridimensionalidade. 4.5.5. Ensaio coreográfico “There needs to be a special balance between the pre-recorded image and the live performance." (Frieder Weiss) Encontrar este equilíbrio foi o desafio do nosso projecto, encontrar a sintonia entre a escultura, a imagem preproduzida (dos espaços virtuais) e uma performance ao vivo. Nos primeiros ensaios Renate tentou perceber as particularidades dos espaços virtuais, as possibilidades e limitações, acertando os settings das câmaras e do software. O setting das câmaras foi adaptado ao espaço da BlackBox, tive de remodelar alguns espaços virtuais para dar mais liberdade à coreografia. Limitamos a área de performance a seis por seis metros para não interferir demasiado na instalação. Mas mesmo com a grande angular das câmaras foi difícil enquadrar o corpo inteiro da Renate o que significou mais uma condicionante. Dentro destes parâmetros cristalizaram-se ao longo dos ensaios cinco coreografias individualizadas para as cinco esculturas. Pelo conhecimento dos processos do movimento (repetição, memorização e abstracção) desenvolveu-se uma ‘elasticidade’ da coreografia, a elaboração de estruturas, que permitiam uma interpretação individual e espontânea do tema, seja em forma

Encontrar o equilíbrio entre coreografia, escultura e vídeo

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singular, duplicada ou triplicada. O objectivo foi uma interpretação intuitiva dos espaços predefinidos dos elementos escultóricos, desenvolvendo uma linguagem do corpo em vez de verbal. A sua aprendizagem deu a liberdade da improvisação à bailarina sem perder o contexto dos padrões da instalação. A problemática da performance estava na sua dupla presença, no real e virtual. Ao contrário dos projectos anteriores de LaborGras (“I, me, and myself again” und “Play the play”) onde a imagem real do performer se fundiu com a imagem projectada, tivemos no HABITAT uma real no palco e outra projectada no ecrã da escultura, separada da primeira. A performance só tinha leitura para o público se a Renate conseguisse sugerir pela sua actuação a existência de um espaço – invisível mas claramente definido – dentro do vazio do palco. Penso que este foi o principal desafio coreográfico deste projecto.

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5. Conclusão Conseguimos realizar duas apresentações públicas na BlackBox de O Espaço do Tempo em Montemor-o-Novo (dia 8 e 9 de Fevereio), ambas as vezes esgotadas. Para todos os participantes o projecto pelo seu carácter transdisciplinar foi uma experiência radicalmente nova. Apesar de O Espaço de Tempo ter declarada a primeira apresentação como estreia, o processo criativo para nós ainda não está terminada. LaborGras fala no seu site como “HABITAT - 1st research period”. Entendemos desde sempre que o HABITAT – como é um projecto itinerante – é um projecto progressivo e dinâmico. Pretendemos mostrar o trabalho em mais lugares, ocupar novos espaços e ganhar novos públicos. Novos espaços exigem uma nova adaptação do environment em termos de escala e composição. Uma área de performance maior dá mais liberdade nos settings das câmaras. Queremos aperfeiçoar a iluminação para ganhar mais qualidade na captação da imagem. Esperamos um reforço no nosso equipamento. Um dos meus objectivos do curso do mestrado foi a aprendizagem na aplicação de multimédia no meu trabalho artístico, uma aprendizagem tanto tecnológico como conceptual. Espero que com esta experiência possa abrir novos caminhos. Apesar desta nova “virtude virtual” na minha obra o desenho a lápis não deixar de ser a forma mais directa na expressão do pensamento do artista. Continua a mesma regra de sempre: a eficiência dos meios. Só conseguimos desviar as limitações tecnológicas e financeiras do nosso projecto com a concentração no essencial da produção artística: a simplicidade. A situação do artista plástica é tradicionalmente muito individualista e solitária, muito influenciada pelo mecanismo do mercado da arte. A arte vende-se pelo nome do artista. Este modelo do artista em tempos da arte multimédia torna-se anacronista, pois um projecto multimédia e transdisciplinar é sempre resultado de uma equipa. O conceito de uma criação colectiva é completamente aceite nas artes performativas, nas artes plásticas é excepção. Espero que este processo colectivo, a criação por sinergias de áreas diversas, se repita nos meus futuros projectos.

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6. Anexo 6.1. Glossário de adaptações informáticas ao espaço virtual e à coreografia 6.1.1. Keying em tempo real A tecnologia do chroma key foi já desenvolvida nos velhos tempos do celulóide. A ideia é basicamente filmar uma cena em frente de um fundo monocromo, normalmente azul ou verde. Através de filtros elimina-se a cor padrão e o fundo tornando-se transparente permite colocar um novo fundo – background layer. O método também chamado bluescreen ou greenscreen foi inventado por Larry Butler nos anos 30 para o filme The Thief of Bagdad (Academy Award for Special Effects, 1940). No tempo digital a tecnologia do chroma key avançou com força e é uma ferramenta estandarte em qualquer software de edição de vídeo. O problema continuava a ser um algoritmo “pesado” que exigia altas capacidade de CPU, o que complica a aplicação em tempo real. Kalypso trabalha com uma difference key. A ideia é simples. Compara-se todas as frames com uma frame padrão, no nosso caso uma imagem tirada do palco vazio antes da performance. Esta imagem é subtraída da frame actual, com o resultado de que só restam os pixeis que sofreram uma alteração em relação á frame padrão. No caso concreto só resta a imagem da bailarina. A vantagem desta tecnologia é que se pode trabalhar com um fundo simplesmente escuro, e pequenas diferenças no grau de obscuridade do palco também não interferem no resultado. As dificuldades encontram-se nas sombras e partes escuras do corpo, com a tendência de tornar estas partes também transparentes, zonas que são da mesma luminosidade da imagem padrão (i.e. falta de alteração no valor do pixel). Como a nossa bailarina tinha um cabelo castanho muito escuro, este em algumas situações tornou-se transparente. Outra limitação existe na iluminação do palco. Qualquer alteração exige uma nova imagem padrão, o que é impossível de tirar enquanto a performer se encontra no palco. Isso significava que não podiam existir alterações da iluminação durante o espectáculo. Um meio eficaz para melhorar o processo é criar uma máscara através do filtro threshold antes da execução da própria key. O threshold não é mais do que dividir uma imagem em pixeis brancos e pretos através de um valor prédefinido. Como trabalhamos com um fundo negro, estávamos interessados nos pixeis claros. O cálculo da key limita-se á zona de pixeis brancos. Os pixeis pretos ficam automaticamente fora o que acelera extremamente o processamento da key. O valor do threshold tem

Processo de difference key: Imagem 3 é resultado da subtracção de imagem 1 por imagem 2

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de ser bem escolhido, um valor demasiado baixo faz pouco efeito, um valor alto tira bem ruídos da câmara – pequenas alterações nos valores na captação da luz pela câmara – mas também tira pormenores do corpo, que se tornam transparentes. O threshold tornou-se muito importante para a nossa top câmara. Como era só de um chip de captação as imagens tinham muito ruído. Com um valor bastante alto do threshold conseguimos limpar as imagens. O efeito não desejado de partes transparentes no corpo foi compensado por uma luz mais directa com pouca sombra. 6.1.2. Máscaras activas por controlo do z-buffer Mais um desafio para o nosso programador foi a introdução da terceira dimensão no Kalypso. Queríamos uma passagem espacialmente correcta da performer nos espaços virtuais. Para este fim ligamos uma máscara congruente ás paredes da arquitectura virtual à real time layer: quando a performer se encontrava no fundo do palco, longe da câmara, a máscara era activada; pelo contrário, perto da câmara a máscara ficava desligada. Para medir a distância entre a bailarina e a câmara (eixo z) utilizamos a top câmara. Através da aplicação do threshold conseguia-se calcular o centro de gravidade dos pixeis brancos, que dava a posição da performer. Este valor foi associado a cada frame da real time layer (z-buffer). Definimos um valor correspondente à situação do espaço virtual como limite da activação/desactivação da máscara. Com este processo conseguimos criar a ilusão de um espaço 3D. Mas todo este setup não funcionava sem a capacidade de orientação da Renate. Ela memorizou os espaços virtualmente predefinidos mas inexistentes no palco. O único controlo foram os dois monitores no palco, muitas vezes fora do alcance visual. 6.1.3. Organização das layers em função de uma perspectiva correcta Uma grande virtude do Kalypso è a sua capacidade de multiplicar a real time layer e reproduzir estes clones com um atraso variável. Os limites tanto no delay como na quantidade das layers é dado pela memória do computador. Nos projectos anteriores do LaborGras utilizou-se já a triplicação da real time layer. Porém nestes trabalhos anteriores não houve a preocupação da sobreposição das layers ser perspectivamente correcta. Nas duas imagens vê-se esta situação: Na primeira a real time layer que representa a figura mais pequena sobrepõe-se ás figuras maiores das outras layers. Para resolver este problema precisava-se uma organização dinâmica na hierarquia das layers em função da distância z da performer em relação à câmara. A solução foi novamente o z-buffer, associadas ás frames das layers. A ordem

Filtro threshold 32 Valor equilibrado para esta imagem. Problema no cabelo, torna-se transparente

Organização das layers em função de uma perspectiva correcta: na primeira imagem a real time layer sobrepõe-se ás outras, na segunda a ordem das layers corresponde a uma sobreposição correcta

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das layers foi definida através dos valores z do buffer, frame por frame que corresponde a uma sobreposição correcta. Mais uma vez esta tecnologia só deu um resultado desejado com o máximo controlo da bailarina. Ela tinha de respeitar tanto os limites dos espaços virtuais como evitar cruzar-se com os seus próprios clones. Isso funcionou apenas com uma memorização máxima da coreografia do presente e do passado. 6.1.4. Delay variável Kalypso não consegue apenas representar layers duplicadas com atraso, mas também alterar este atraso dinamicamente. Utilizamos esta capacidade para a escultura 3. Renate começa a comunicar com o seu clone, projectado em espelho, no início sem atraso nenhum. Ao longo da performance a layer duplicada começa a atrasar-se, e de repente nota-se uma diferença significativa nos gestos do original e do clone. Este efeito, tecnicamente simples, funciona subtilmente permitindo a Renate – com um grande repertório de gestos – explorá-lo de uma forma surpreendente.

Delay variável: na primeira imagem a layer duplicada não tem atraso em relação à layer original; ao longo da performance aumentamos o atraso sucessivamente, como se vê na segunda imagem

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6.2. Calendarização do projecto Janeiro – Julho 2007: Elaboração do conceito artístico, constituição da equipa, pedido de um apoio ao Instituto das Artes (IA) 31 de Julho 2007: Carregamento de 16 troncos de carvalho em Alemanha Agosto: Execução da maqueta do projecto Setembro / Outubro Trabalhos preparatórios na matéria prima 19 de Novembro – 13 de Dezembro: Execução do environment escultórico (1. residência no Espaço do Tempo, Convento da Saudação, Montemor-o-Novo) 16 de Janeiro – 25 de Janeiro: Criação dos espaços virtuais (2. residência no Espaço do Tempo, Convento da Saudação, Montemor-o-Novo) 27 de Janeiro – 10 de Fevereiro: Fase final da realização (3. residência no Espaço do Tempo, Convento da Saudação, Montemor-o-Novo) 8/9 de Fevereiro: Apresentação publica na BlackBox, Montemor-o-Novo 19 de Abril – 20 de Maio: Exposição da instalação do HABITAT na Galeria Arthobler, Porto

Bilhete da estreia

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6.3.Notas 1. Ver: http://www.laborgras.com/english/laborgras/laborgras.htm 2. Hans Thies Lehmann: Postdramatisches Theater Frankfurt Main, 1999, p. 413 3. Filippo Tommaso Marinetti: O Homem multiplicado e o império da máquina, 1912 (?) 4. Ver: Utopia, romance de Thomas Morus (1478 – 1535), utilizou o termo para um país imaginário 5. Norbert Wiener (1894 – 1964) definiu Cibernetics como ciência da transmissão de mensagens entre homem e máquina ou entre máquina e máquina 6. Gesamtkunstwerk, um termo que significa “obra de arte total”. O termo representa um conceito fortemente ligado á cultura alemã e não existe uma forma adequada de tradução, consequentemente utilizo o termo na forma alemã. Ver também a exposição da curadoria de Harald Szeemann: Der Hang zum Gesamtkunstwerk (1983) 7. Richard Wagner, Das Kunstwerk der Zukunft, 1849, Kap.5 8. Wassily Kandinsky, Über Bühnenkomposition, em: Der Blaue Reiter, 1912 9. Fontes: Paul van Emmerik: Thema's en Variaties; New York Public Library on-line catalog; William Fetterman: John Cage's theatre pieces: Notations and performances; David Revill: The Roaring Silence 10. citado através Gabriela Borges “En-Quadrando a tele-peça Quad, de Samuel Beckett “, Universidade Mackenzie e Faculdade Faap. CAPES/ MEC. Este artigo foi publicado na revista electrónica AV da Universidade Unisinos, Ano 1, N°1, Nov. 2003, 37-43 11. Telemática, o termo é constituído por telecomunicação e informática e significa a transmissão de imagens digitalizadas por sistemas e redes de comunicação 12. Watchout é o nome do software utilizado por Rui Horta. Com o mesmo nome organizou um workshop na Fábrica – Centro Ciência Viva, Aveiro (2006)

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6.4.Bibliografia Söke Dinkla / Martina Leeker: Dance and Technology – Moving towards Media Production, Alexander Verlag Berlin, 2002 Dieter Krusche: Reclams Filmführer, Philipp Reclam jun., Stuttgart, 1973/1987 James Mónaco: Film verstehen, Rowohlt Taschenbuchverlag, Hamburg, 2004

Randall Packer / Ken Jordan: Multimedia: From Wagner to Virtual Reality, W.W. Norton, New York, 2002

Barbara Lesák: Die Vereinigung der Künste in den Theatervisionen der frühen Moderne:Vom synästhetischen Theater Kandinskys zur mechanischen Schaumaschinerie von El Lissitzky, catalogo: Kunst der Scene, Ars Elektronica Center

6.5.Links

Homepage do projecto HABITAT:

http://www.volker-schnuettgen.com/habitat/index.html

Membros da equipa http://www.frieder-weiss.de/ http://www.laborgras.com/ http://www.popup-studios.de/ http://www.volker-schnuettgen.com/ Co-produção http://www.oespacodotempo.pt/ http://www.arthobler.com/ Patrocinador http://www.kirchhoff-gruppe.de/ Links relacionados ao projecto http://www.charactermotion.com/danceforms/ http://www.deutsches-tanzfilminstitut.de/ http://www.medienkunstnetz.de/ http://www.merce.org/ http://www.aec.at/en/index.asp