Hal Hartley e a ética da confiança

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 Hal Hartley e a ética da confiança *  Suely Rolnik O filme Confiança retrata uma idéia. É o que diz o próprio Hartley, numa entrevista a Bernardo de Carvalho para a Folha de São Paulo, acrescentando que é isso, muito mais do que tentar forjar um naturalismo, o que constitui o verdadeiro realismo. Mas por que considerar que o naturalismo só pode ser forjado? Provavelmente porque, para Hartley, fazer naturalismo é adotar a perspectiva do senso comum, com ele confundir-se, tomá-lo como a natureza das coisas. No oposto, fazer realismo é portanto descolar-se do senso comum, se por à escuta da dissonância dos signos que o excedem e buscar incarná-los - por exemplo, num a idéia sob a forma de filme, de música, de texto, etc. É neste sentido que é possível dizer que o verdadeiro realismo é aquele que retrata uma idéia. Só que aqui "retratar" não tem ver com ilustrar, e sim com encarnar, trazer à existência: é um realismo do acontecimento, daquilo que, embora impalpável, já produziu uma rachadura no falso naturalismo da realidade visível e pressiona para que algo venha lhe dar corpo. É um realismo do invisível, um realismo do virtual. Que idéia nos traz o filme de Hartley? Que procedimentos ele faz funcionar para retratar essa idéia? Hartley procede por uma "estética da banalidade": sucessão de planos de uma existência rigorosamente ordinária, extraídos do cotidiano do universo suburbano de uma cidadezinha norte-americana, mas que poderiam perfeitamente  pertencer a qualquer outro tipo de universo urbano ou suburbano, porque aqui não importa tanto o tipo de cidade ou o tipo de universo recortado na cidade, mas a  banalidade tal como vivida na cidade contemporânea. Logo de cara, no entanto, uma dissonância nesta banalidade nos pega de surpresa: Maria, uma garota de dezessete anos que mora com a família, avisa ao pai que está grávida; furioso, o  pai a chama de puta ; ela dá um tapa na ca ra dele; ele cai duro no chão, e morre. Essa é a cena que inaugura o filme; nela se anunciam os créditos e o tom do que nos espera: da primeira à última imagem, estaremos no plano achatado do senso comum; e, durante todo o filme, esse plano irá sofrer rachaduras, pela  pressão de linhas de fuga que aos poucos tomam corpo na tela e formam outros *  Este ensaio foi publicado em Trafic. Révue de Cinéma no 12:104-114. P.O.L., Paris, outono 1994.

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Artigo de Suely Rolnik

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  • Hal Hartley e a tica da confiana*

    Suely Rolnik O filme Confiana retrata uma idia. o que diz o prprio Hartley, numa

    entrevista a Bernardo de Carvalho para a Folha de So Paulo, acrescentando que isso, muito mais do que tentar forjar um naturalismo, o que constitui o verdadeiro realismo. Mas por que considerar que o naturalismo s pode ser forjado? Provavelmente porque, para Hartley, fazer naturalismo adotar a perspectiva do senso comum, com ele confundir-se, tom-lo como a natureza das coisas. No oposto, fazer realismo portanto descolar-se do senso comum, se por escuta da dissonncia dos signos que o excedem e buscar incarn-los - por exemplo, numa idia sob a forma de filme, de msica, de texto, etc. neste sentido que possvel dizer que o verdadeiro realismo aquele que retrata uma idia. S que aqui "retratar" no tem ver com ilustrar, e sim com encarnar, trazer existncia: um realismo do acontecimento, daquilo que, embora impalpvel, j produziu uma rachadura no falso naturalismo da realidade visvel e pressiona para que algo venha lhe dar corpo. um realismo do invisvel, um realismo do virtual.

    Que idia nos traz o filme de Hartley? Que procedimentos ele faz funcionar para retratar essa idia?

    Hartley procede por uma "esttica da banalidade": sucesso de planos de

    uma existncia rigorosamente ordinria, extrados do cotidiano do universo suburbano de uma cidadezinha norte-americana, mas que poderiam perfeitamente pertencer a qualquer outro tipo de universo urbano ou suburbano, porque aqui no importa tanto o tipo de cidade ou o tipo de universo recortado na cidade, mas a banalidade tal como vivida na cidade contempornea. Logo de cara, no entanto, uma dissonncia nesta banalidade nos pega de surpresa: Maria, uma garota de dezessete anos que mora com a famlia, avisa ao pai que est grvida; furioso, o pai a chama de puta; ela d um tapa na cara dele; ele cai duro no cho, e morre.

    Essa a cena que inaugura o filme; nela se anunciam os crditos e o tom do que nos espera: da primeira ltima imagem, estaremos no plano achatado do senso comum; e, durante todo o filme, esse plano ir sofrer rachaduras, pela presso de linhas de fuga que aos poucos tomam corpo na tela e formam outros * Este ensaio foi publicado em Trafic. Rvue de Cinma no 12:104-114. P.O.L., Paris, outono 1994.

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    planos. E veremos delinear-se uma coreografia de corpos e atitudes, movida pela tenso entre diversos campos de fora: um plo de captura pelo senso comum, que se expressa numa massa de corpos e atitudes pilotados por uma fora de homogeneizao, compondo na tela um plano uniforme e chapado; um plo de deciso - a deciso de destacar-se desse plano, expresso em corpos e atitudes que desenham linhas de fuga pilotadas ora por uma fora de destruio, ora por uma fora de singularizao.

    E o filme vai se fazendo do desenrolar da guerra entre esses diferentes tipos de fora e da variao de sua composio na vida de cada um dos personagens.

    todo um povo que compe o plano homogneo: homens de cara sem

    graa e assustada, de pasta, cachimbo, capa e chapu, que todos os dias saem do trabalho, pegam o trem e chegam pontualmente s cinco e quinze da tarde ou ento homens perversos que s desejam desqualificar, humilhar, dominar, derrubar, especialmente aqueles que ousaram abandonar a cara sem graa e assustada; mulheres casadas que odeiam seus maridos sem nunca ter pensado em no se casar ou ento mulheres szinhas que vagam como zumbis pelo nada, espera de encontrar um marido; mes que odeiam seus filhos ( uma tortura , chega a dizer uma delas), mas que ficam sonhando em engravidar; pais e mes que escravizam seus filhos enquanto reproduzem, em gestos dissociados, clichs de amor paterno e materno ( voc j comeu? , perguntam, mecnicamente, ao longo do filme); pais ressentidos que despejam sua culpa nos filhos ( a culpa minha! , frase que o pai obriga o filho a repetir inmeras vezes; nunca vou te perdoar! , diz a me sua filha, apontando-lhe um faco); esposas ressentidas que despejam sua culpa nos maridos; me ressentida que despeja sua culpa no namorado da filha; pai ressentido que despeja sua culpa na namorada do filho; gente que envenena e envenenada pela culpa, gente intoxicada de ressentimento; histricas mascando chicletes, vestidas sedutoramente para atrair seus perversos, na esperana de que o olhar desse suposto super-outro lhes assegure que valem alguma coisa; perversos sequiosos de um punhado de fascinao histrica que lhes atribua esse suposto lugar de super-outro. , enfim, uma paisagem-telo initerrupta, formada por telas e mais telas de TV ( h TVs por toda parte, no tem escapatria... , diz um dos personagens), pontuada por adesivos de Cape Holiday que se v em todos os carros, de todas as famlias, de todas as frias.

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    A dana do plo da captura perigosa: uma estranha coreografia feita para brincar de eternidade, tentando conjurar a diferena, supostamente mortfera, que se engendra nas misturas do mundo. Mas o preo alto: sem possibilidade de metabolizao - criao de sentido, de modos de ser - comum que se acabe caindo. A queda pode ser fatal. Dana macabra.

    No limite da captura, portanto, paira no ar a ameaa de uma queda: o plano homogneo pode despencar a qualquer momento.

    H no filme uma verdadeira coreografia das quedas. De quando em quando algum cai, sucumbe ao medo do desabamento da cena - desabamento do mundo, desabamento de si - que uma minscula linha de fuga, um punhadinho de caos, perfurando o compacto muro do senso comum, pode vir a provocar; medo de no conseguir mais sustentar o plano ou sustentar-se no plano. Um exemplo disso a queda e a morte do pai na cena inaugural, mas vrios outros se sucedem ao longo do filme: queda do estudante bobalho que ao ouvir de Maria que a engravidou, teme no vencer no rugby e na vida, se casar com me solteira expulsa da escola; queda de um daqueles homens de cara sem graa e assustada, de pasta, cachimbo, capa e chapu, que, interpelado na rua por Maria, morre de medo do que pode lhe acontecer e, desconfiado, desaba; queda da me e da irm de Maria, que diante da exploso da fbrica provocada por Matthew, namorado de Maria, sentem seu mundinho ameaado de desabamento e, pasmas, despencam juntas no cho. O perigo ronda por toda parte, perigo de ser o prximo a tombar.

    Mas a coreografia das quedas no feita s de pessoas; tambm as coisas caem ou so jogadas no cho (leite, panela, roupa...). Matthew, por exemplo, derruba aparelhos de TV por onde passa, como se os arrancasse do plano homogneo e fizesse rasges nesse monnoto telo.

    No plano do senso comum, ningum se sustenta na queda e ningum sustenta a queda de ningum. Ao contrrio, h um prazer em ver o outro cair, perder seu valor. H um dio ao outro, ou melhor um dio a toda ameaa, por mais discreta que seja, uniformidade do plano. Assim o pai de Matthew o derruba no cho, lhe d socos no estmago, o pega pelos cabelos e lhe pergunta: quem voc pensa que ? , dizendo-lhe, aos berros, que est cansado de conhecer sua laia, uma gente que pensa que caga cheiroso, que tem a pretenso de ser especial .

    Mas o plo da captura no soberano: outras foras esto em jogo, e de

    tempos em tempos acabam furando o plano achatado do senso comum. Essas

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    foras vo gerando um outro plo: o plo da deciso, feito de um traado que oscila entre dois tipos de linhas de fuga, dependendo da fora que os pilota: vontade de destruio ou vontade de heterogeneizao.

    Uma granada circula de mo em mo ao longo do filme: nela concentra-se todo o potencial de exploso do plano achatado da banalidade, que pode ser acionado a qualquer momento e em qualquer direo; basta uma simples deciso, a deciso de reagir - no caso, destrutivamente - violncia da fora de homogeneizao.

    A granada comea nas mos do pai de Matthew: o trofu que ele trouxe da guerra da Coria. Emblema do triunfo de uma raa, que no apenas o triunfo da raa americana sobre a coreana, ou da raa do mundo rico sobre a do mundo pobre, mas o triunfo da raa das foras de homogeneizao sobre todo e qualquer estrangeiro ao senso comum, essa laia, essa gente que pensa que caga cheiroso, que tem a pretenso de ser especial . Mas quando tomamos contacto com a granada ela j passou para as mos de Matthew e, com isso, passou tambm do plo da captura ao plo da deciso, e a permanecer at o final do filme. Matthew guarda a granada em seu bolso para utiliz-la, como dir a Maria, em caso de necessidade . Necessidade de reagir ao massacre da diferena, caso esse massacre venha a ultrapassar um certo limiar de suportabilidade.

    A vontade de destruio, no filme, vacila entre dois modos de efetuao: matar aquele que encarna a fora de homogeneizao ou matar-se para destruir em si o triunfo dessa fora, quando parece ser a nica sada para escapar a seu poder de imobilizao (poder que se impe, bsicamente, atravs da culpa). Alis, uma das primeiras vezes que a granada aparece no filme exatamente quando um dos personagens est no meio dessa hesitao, tomado pela dvida: quando Maria diz a Matthew que no sabe se ela deve se considerar assassina ou se quer se matar. (Mais adiante uma terceira alternativa lhe ocorrer: virar freira para no sentir mais nada, numa tentativa talvez de anestesiar os efeitos da culpa. Esta alternativa, Matthew contesta como severa demais, argumentando que freiras tambm sentem e que s mortos que no sentem mais nada. Para dissuadi-la lhe pergunta se ela gostaria de ser como um morto...). Na cena em que Maria confessa que hesita entre sentir-se assassina ou querer se matar, Matthew lhe diz que sabe do que ela est falando - e, para lhe provar, mostra a granada que guarda em segredo. Este alis um dos primeiros atos da aliana entre Matthew e Maria. Por ser uma aliana marcada pela vontade de reagir, ela facilitar a tomada de deciso, que

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    inclusive acaba extrapolando a deciso de destruir, abrindo bifurcaes inditas na existncia de cada um deles.

    Um pouco depois desse episdio, a granada passa para as mos de Maria. Talvez porque ela tambm quer poder utiliz-la em caso de necessidade, ou talvez porque ela no quer que Matthew se destrua. Mas a granada no final acaba voltando para as mos de Matthew: ele a retoma de Maria no momento em que ela lhe anuncia que no quer mais se casar. que ao ver ameaado o campo de possvel que conseguiu criar no encontro com Maria - campo que por enquanto Matthew confunde com o prprio encontro - identifica ali um ponto de inflexo em que o tal limiar foi ultrapassado. Matthew toma sua deciso; ele vai destruir tudo, inclusive a si mesmo. Puxa o pino da granada e s no explode junto com a fbrica porque Maria chega a tempo de atirar a granada para longe. Matthew preso.

    Mas o filme no pra por a, neste suposto triunfo da vontade de

    destruio. H ainda uma ltima cena: Maria observa Matthew indo embora num camburo. O curioso que h em seu olhar uma espcie de serenidade. O que estamos vendo, na verdade, o efeito em seu corpo de um outro tipo de fora: a vontade de singularizao. a fora que traa no filme o segundo tipo de linha de fuga, que ao lado da fora de destruio vai formar o plo da deciso e que, desde o incio, vai se destacando do plano uniforme perverso, ocupando na tela um espao cada vez maior. Como esta a linha mais rara, e como dela a meu ver que Hartley traa seu retrato mais original, proponho rever o filme inteiro e mais minunciosamente, da perspectiva traada por essa linha. Vamos acompanh-la atravs de seus efeitos na vida de Maria e em sua relao com Matthew.

    Maria aparece no incio, como tantas outras, vestida de histrica, movida pela necessidade de atrair o olhar des perversos, de atrair tambm o olhar de mulheres com quem compete pelo trofu da seduo. Seduzir sem parar, fingindo displicentemente no se interessar pelo olhar de ningum. Seu rosto mostra tdio e desprezo. Como tantas outras danarinas do homogneo em sua verso histrica, a nica coisa que parece despertar seu olhar perdido no desvalor de tudo a imagem do casamento, espcie de alucinao salvadora, arma anti-queda. Mas uma circunstncia vai arranc-la dessa posio em que s tem como opo o tdio ou a alucinao: Maria engravida. A famlia a expulsa de casa e o namorado no quer mais saber. Diante disso, num primeiro momento, antes de Maria se dar conta de que o limiar de tolerabilidade foi ultrapassado, como se nada tivesse acontecido

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    ela vai a uma boutique se entulhar de apetrechos para seu guarda-roupa de histrica, tentando reconstituir algo daquele corpo em que se reconhecia.

    Mas aqui comeam a aparecer as primeiras linhas de fuga no corpo, na voz e nas atitudes de Maria. No provador da boutique, ela se olha no espelho, toca seu ventre e se estranha. Daqui para a frente acompanharemos a gnese de uma outra Maria, pontuada e favorecida por uma srie de encontros.

    Primeiro, o encontro com uma enfermeira numa clnica de aborto. Maria experimenta mover-se, embora ainda tmidamente, numa outra cena que no mais a do drama, com um outro personagem, que no mais o da vtima, com um tom de voz que no mais o da lamentao e uma atitude que no tem mais demanda alguma de comiserao: algo nela comea a suspeitar que sua queda pode no ser fatal, que o mundo no desmorona necessariamente com o desmoronamento de sua existncia histrica e que h outros modos de existncia possveis. A escuta da enfermeira sustenta em Maria essa crena e lhe permite comear a entregar-se queda.

    Maria perambula pelas ruas e, meio que imperceptivelmente (espcie de transformao incorporal que o cinema permite captar), vemos seu corpo de histrica comeando a desmanchar-se e seu ar de seduo diluindo-se aos poucos.

    Logo em seguida, quando uma daquelas mulheres de olhar entediado e perdido, sentada ao seu lado num ponto de nibus, lhe dirige a palavra num meloso tom de piedade, Maria d mais um passo em seu aprendizado da desdramatizao: ela experimenta reagir com indiferena a essa tentativa de cumplicidade pela comiserao. E ntido que sua indiferena no como a que impera no plo da captura, feita de um nada de desejo ou de uma desqualificao do outro - ou, pior ainda, do cinismo de um gozo perverso proporcionado por essa desqualificao. A indiferena que comea a esboar-se em Maria feita de um desinteresse por aquilo que, no outro, recusa-se ao devir. Maria j sabe sem saber que o apoio na queda no se faz por um "ter pena de", mas por um "sofrer com", como lhe confirmar mais tarde Matthew. Um "sofrer com" feito ao mesmo tempo de indiferena e de cumplicidade: indiferena em relao a tudo o que cheira vontade de homogeneizao (por exemplo, viver a queda como vtima), mas cumplicidade tambm com todo e qualquer movimento de entrega e de diferenciao.

    Pouco depois, ser o acaso do encontro com Matthew. Os dois esto totalmente perdidos. Demitiram-se do emprego, da escola, da famlia, em suma, demitiram-se de seu modo de existncia. Correm o risco de se demitir da vida. A

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    queda pode ser fatal. de dentro dessa queda e desse risco que eles iro encontrar-se num velho vago abandonado. Seu encontro comea, como qualquer encontro que se d no plano homogneo do tipo de mundo em que vivem, por uma competio para ver quem mais duro, quem vai derrubar quem: lanam-se mutuamente palavras e atitudes como se lanassem pedras para defender-se de um ataque que pode acontecer a qualquer momento. Do fundo de sua desconfiana, Maria arrisca perguntar a Matthew o que ele quer. Para seu espanto, ele responde que no quer nada, e que de qualquer modo, nada adianta. A experincia para Maria indita; esse homem no quer nem seduz-la, nem destru-la, nem qualquer outra coisa do gnero.

    Aqui, de novo, como que imperceptivelmente (a tal magia do cinema), uma sutil mudana de atitude vai operar-se nos dois. Matthew, com uma espcie de delicadeza sbria, aproxima-se de Maria e, como que disposto a ouvir sua queda, agacha-se ao seu lado e lhe diz: Fala . A confiana que se esboa em Maria lhe permite pedir a Matthew um lugar para dormir.

    Matthew a leva para a triste casa onde mora com seu pai. Oferece-lhe sua cama e dorme no cho: no tenta possu-la em troca da guarida. Confirma-se assim que um outro lugar de homem que se anuncia na vida de Maria, um lugar que no o do personagem perverso parceiro de sua cena histrica. Ao acordar, ela conversa com Matthew descabelada e com a maquilagem toda borrada, sem se incomodar com isso. Um campo de confiana est se constituindo diante de ns, no qual possvel mostrar-se para o outro com as marcas de linhas de fuga em seu corpo e sua alma, sem sentir-se ou ser tachado de louco, fraco ou perdedor.

    Maria, logo em seguida, abandona de vez sua vestimenta de histrica: coloca um vestido azulzinho que pertencera me de Matthew e vai embora de cara e cabelos lavados. Depois de aguentar mais uma cena de violncia de seu pai, Matthew tambm vai embora. Leva consigo a granada.

    Na cena seguinte, vemos Matthew entrando num bar onde, sempre no contexto de um realismo do virtual e no da objetividade, aparecem todos os homens que humilharam Matthew e tambm todos os parceiros perversos das cenas histricas de Maria. Matthew golpeia um a um, varrendo todos de cena. Eles so expulsos do filme, de sua existncia e da existncia de Maria. Neste momento, ela o convida para morar na casa de sua me.

    Chegando em casa, vemos Maria desfazendo-se de objetos do cenrio da cartografia que est abandonando: arranca os posters de dolos que forram as paredes de seu quarto, joga fora um monte de bugigangas que lotam sua

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    penteadeira. Deixa o mnimo possvel, como de resto em seu corpo, em seu rosto, em seus cabelos.

    Mais adiante, numa cena memorvel, Maria ir se jogar de costas do alto de um muro, atirando-se nos braos de Matthew numa atitude totalmente inesperada. Ele consegue apar-la. Ela agradece e diz: Confio em voc . O que ela quer experimentar sua confiana em Matthew, e se lhe agradece por ter conquistado essa confiana. Maria vai propor a Matthew que faa a mesma experincia, ela lhe assegura que poder, apesar de seu peso, apar-lo na queda. Ela quer que tambm ele experimente a confiana.

    Nesse momento do filme, pode-se dizer que Hartley prticamente j delineou o retrato da idia de confiana que parece pretender. um momento em que as foras de heterogeneizao esto por cima, o que engendra um novo tipo de relao feito de respeito, admirao e confiana , como o define Matthew, para evitar cham-lo de "amor". que, segundo ele, quando se ama se faz todo tipo de loucura: ficar ciumento, mentir, trapacear, matar-se, matar o outro... . Pois a palavra "amor", tal como usada no plano homogneo - e isto, Matthew sabe muito bem -, quase sempre pilotada por um desejo de completude e de eternidade. Ela implica uma espcie de anestesia aos efeitos das misturas do mundo, num faz de conta de uma existncia estvel, sem quedas. Matthew sente que o que est acontecendo em seu encontro com Maria um outro tipo de relao, um outro modo de subjetivao, um outro mundo neste mundo. Amparar o outro na queda: no para evitar que caia, nem para que finja que a queda no existe ou tente anestesiar seus efeitos, mas sim para que possa entregar-se ao caos e dele extrair uma nova existncia. Amparar o outro na queda confiar nessa potncia, desejar que ela se manifeste. Essa confiana fortalece, no outro e em si mesmo, a coragem da entrega.

    Mais adiante, Matthew ir inclinar-se, por um momento, para o plo da captura. Quer, diz ele, os benefcios sociais como toda pessoa normal. Est disposto a anestesiar seu ntimo atravs da televiso, que considera boa para isso. Assim poder reprimir seus princpios e suportar continuar trabalhando na fbrica, sem incomodar-se com as trambicagens. Maria se decepciona. Mas depois de uma conversa com a enfermeira, que ela reencontra por acaso num bar, reconhece que a fora de singularizao nunca vencedora de uma vez por todas, e que, alis, neste campo nenhuma composio eterna, no h garantia de espcie alguma. Maria se d conta de que h algo em Matthew que ela gosta, que esse algo que ele perigoso e sincero . E fica claro para ela que o fato de ser sincero traz

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    necessriamente um risco permanente de instabilidade. Pois isso leva Matthew a agir sob os efeitos das misturas do mundo em seu corpo, as quais mobilizando diferentes foras, provocam a formao de novas composies. Conversando com a enfermeira, Maria se dar conta de que exatamente porque Matthew perigosamente sincero que ela gosta dele e tomar a deciso de acolh-lo em sua recada.

    Logo em seguida, porm, a me de Maria ir armar-lhe uma arapuca para quebrar sua confiana em Matthew. que, para aquela mulher, conviver com esse modo de subjetivao aberto para a alteridade, instaurado pela relao dos dois, coloca em perigo seu mundinho capturado, que s se sustenta na mesmice. por isso que, em nome da sobrevivncia de seu mundinho, e portanto de sua prpria sobrevivncia, a me ir mobilizar todas as suas foras para destruir a relao: tenta contaminar a filha de ressentimento contra o namorado. Num primeiro momento, ela consegue o que quer: Maria desiste de Matthew. aqui que, desesperado, ele embarca na vontade de destruio, pega a granada na gaveta de Maria e vai para a fbrica. Mas, percebendo o desaparecimento da granada, Maria volta imediatamente a si e sai correndo ao encontro de Matthew.

    Quanto granada, sabemos, tarde demais. Matthew j puxou o pino quando Maria chega. No d mais para evitar a exploso, s d para evitar que sejam atingidos. Matthew preso, Maria fica. No sabemos o que vai acontecer com sua relao, s sabemos do campo de confiana que seu encontro propiciou para cada um deles e isso o que importa: sua existncia deixou de ser dominada pela alternncia entre a vontade de completude, que implica a captura pelo senso comum e a vontade de destruio, como nica sada. H agora uma terceira vontade em jogo nesta guerra permanente que s se interrompe com a morte. E a cena final feita do corpo de Maria suave e firmemente erguido na tela pela fora da confiana que se introduziu em sua vida.

    Hartley faz um cinema duplamente independente: um cinema no

    capturado pelos cdigos de representao e de produo de Hollywood, e que retrata modos de subjetivao independentes, ou seja no capturados pelo senso comum. O que seu filme traz existncia no so identidades alternativas: a do marginal ideologizado em revolta contra a sociedade capitalista, industrial ou de consumo, ou contra o modo dominante de existir e de amar, ou a do marginal desideologizado transgridindo a lei em pequenas ou grandes delinquncias. O que o filme retrata so modos de existncia singulares que se criam a partir da escuta

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    dos estados inditos que se produzem no corpo quando se tem a audcia de abandonar a pele do senso comum. Essas novas formas de existir no so alis apresentadas como investidas de um valor em si-mesmas, como modelos alternativos: seu valor est exclusivamente no fato de serem o efeito de uma afirmao de diferenas, efeito de sua problematizao. Por isso so efmeras por natureza.

    Eu dizia, no incio, que o que est sendo retratado no filme no o universo suburbano mas, atravs dele, algo que acontece no interior de qualquer universo social, de qualquer cidade, de qualquer pas. Posso dizer agora que o que est sendo retratado aqui uma micropoltica, a qual evidentemente se trava no invisvel (o realismo de Hartley): o atrito entre diferentes espcies de homem, diferentes modos de subjetivao, que vai delineando diferentes composies, gerando diferentes figuras que podem pertencer a qualquer universo urbano ou suburbano da atualidade.

    claro que se pode encontrar uma filiao de Hartley ao cinema dos anos 60 que fazia do marginal seu principal personagem. Mas Hartley vai mais longe. Ele puxa linhas de fuga da trama dessa tradio que ele leva para direes inditas: em seu cinema no h qualquer resqucio de glorificao do marginal. No se trata de mais uma saga dos vencidos contra os vencedores, nem da sociedade contra o sistema, nem do homem contra a sociedade. Se h clichs no filme, elementos destinados a um reconhecimento imediato, eles no esto a para facilitar sua digesto, mas para contracenar com as linhas de fuga, numa guerra que constitui a prpria essncia do filme. Os personagens marginais so aqueles que cavalgam as linhas de fuga em luta contra as foras de homogeneizao, montadas pelos clichs. No so personagens que se constroem por oposio a um inimigo - homens, sociedade ou sistema -, mas no desenrolar de sua existncia homens, sociedade e sistema derivam para outro lugar. s quando embarcam na direo "granada" que os personagens tomam como alvo de luta no mais a fora de homogeneizao, e sim a sociedade ou o sistema. Os marginais de Hartley no tem o perfil do clich (nem quando se decidem pela "granada"): no h glamour algum em sua no-adaptao nem o encanto de qualquer ingnua esperana o que os move; e no entanto eles tampouco so desencantados...

    Aqui me parece necessrio fazer uma distino entre "f" e "crena". O

    objeto da f a utopia, uma representao de futuro que implica a idia de completude, de estabilidade, possvel num alm deste mundo, esteja esse alm

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    aqui na Terra, ou em outro lugar qualquer. J o objeto da crena o devir. Examinar o filme da perspectiva dessa distino, pode trazer maior nitidez aos trs tipos de fora que, em seu entrelaamento varivel, compem o filme.

    No plo da captura, onde os personagens so pilotados pela fora de homogeneizao, a f que os move. No plo da deciso, quando a fora de destruio que comanda, que os personagens se tornaram niilistas, perderam a f (no alm, no futuro) sem ter conquistado a crena (no devir), e por isso confundem fim de "um" mundo, com o fim "do" mundo. J quando, no plo da deciso, a fora de singularizao que predomina, a crena move os personagens e dela que nasce a confiana.

    Se as linhas de fuga - tanto a do niilismo como a da confiana - so movidas por uma perda da f, ou seja pelo desencanto com tudo que da ordem da idealizao, da comiserao, da esperana, tambm a partir daqui que elas se distinguem. Para o desencanto da linha niilista no h outro mundo neste mundo, no h sentido possvel para alm do senso comum: o reino de uma vontade de nada que pode eventualmente tornar-se ativa e destruir tudo. J o desencanto da linha da confiana engendra a crena num mundo que no estaria alm deste mundo, mas sim alm do senso comum. O desencanto com as foras da homogeneizao; e esse desencanto ser justamente a nascente das foras da heterogeneizao: perdeu-se a f, acabou-se com as utopias, mas para conquistar a crena. essa crena que sustenta a coragem de tomar a deciso: afirmar o ser em sua heterognese. Esta a vontade que impera nessa linha e ela que Hartley tem especial interesse em retratar.

    O prprio Hartley declara, numa outra entrevista para a Folha de So Paulo, que em seus filmes a tica to importante quanto a esttica e, acresenta, todos os meus filmes falam de pessoas tomando decises . Pudemos ver que a esttica da banalidade de Hartley nada tem a ver com estetizao (como nos filmes ditos cult), sua esttica tem a ver com um sentido que se cria e toma corpo a partir de signos que se consegue escutar quando se toma a deciso de reagir contra a violncia da captura pelo senso comum. Ora, isso indissocivel de uma tica. Da porque Hartley declara que em seu cinema a tica to essencial quanto a esttica.

    Hartley faz uma tica do trgico: em seus filmes se cai toda hora, e a queda inevitvel. D at para captar diferentes movimentos de seus personagens, de acordo com o modo como vo vivendo a queda. s vezes a vivem como vtimas porque acreditam ser possvel evitar de cair; neste caso, quando caem, ou se paralisam de terror ou se destroem. o modo dramtico. Outras vezes, decidem

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    entregar-se queda e problematiz-la, porque sabem que cair inevitvel e que de dentro da queda possvel reerguer-se transmutado, embora no haja qualquer garantia de que isso v de fato acontecer. o modo trgico. No artigo de Bernardo de Carvalho, citado no incio deste texto, Hartley confessa que acha engraado gente caindo, que gosta dessa imagem, mas tambm que lhe fascina a idia da mais completa entrega... Hartley no faz da queda um drama, humor o que ele faz (pelo menos em seus filmes); mas o que o fascina especialmente o momento em que o personagem opta pelo trgico e consegue entregar-se por completo. exatamente para viabilizar sua tica do trgico que Hartley precisa da idia de confiana e da crena que a sustenta. Esta , a meu ver, a idia que seu filme Confiana retrata.