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Gabriel Resgala “Comprei jujuba!” Crônicas, contos e reflexões 3ª edição - 2013

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Gabriel Resgala

“Comprei jujuba!” Crônicas, contos e reflexões

3ª edição - 2013

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Edição e capa Gabriel Resgala

Foto do autor Carla Resgala

Revisão Gisele Lopes

Revisado conforme o novo acordo ortográfico da Língua Portuguesa.

Leitura recomendada para maiores de 12 anos.

3ª edição – fev/2013

Catalogação na Publicação (CIP)

Ficha Catalográfica elaborada pelo autor

R433c

Resgala, Gabriel “Comprei Jujuba!”: crônicas, contos e reflexões / Gabriel Resgala – 3. ed. – São Paulo: Perse, 2013. ISBN 978-85-8196-232-0 (impresso) ISBN 978-85-8196-233-7 (e-book) 1. Crônicas. I. Título.

CDD: B869.8 CDU: 821.134.3(81)

Esta obra está licenciada sob uma licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode

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Publicação: PerSe

Rua Turiassú, nº 390, 17º andar, conj. 176. Perdizes, São Paulo-SP. CEP 05005-000.

Contato: [email protected] www.perse.com.br

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Sumário

Humanando ..................................................................................................... 9

Menininha no ônibus ................................................................................. 13

Peripécias do Pedrão ................................................................................. 15

Vestido ............................................................................................................. 21

Pedra e mar .................................................................................................... 25

Natália .............................................................................................................. 29

Amarelona ...................................................................................................... 39

Demônios ........................................................................................................ 43

À Dhara ............................................................................................................ 47

Ainda que... ..................................................................................................... 51

A casinha ......................................................................................................... 53

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Teste Avançado de Chatice ...................................................................... 57

Preconceito e Prestobarba ...................................................................... 61

Cenáculo .......................................................................................................... 65

Maria, Maria ................................................................................................... 67

Os papéis de meu pai ................................................................................. 73

Conto de Natal .............................................................................................. 77

O grande Iceberg ......................................................................................... 89

Natal de José .................................................................................................. 91

“Comprei Jujuba!” ..................................................................................... 107

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Agradecimentos

A Luiz Paulo, Gisele, Rafael, Fernanda, Michelle, Gu, Tathi, Carla, Mi, Luis, Pedrão, Alda, Gracinha, Ivete, Idenir, Laurici, Eufrásia, Lúcia, Júnior, Marília, Ronaldo, Begma, tia Marilene, vó Maria, MUR, e a absolutamente todos os que, alguma vez, já me incentivaram a escrever. Aos meus pais, princípio de tudo.

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À minha May, especialista nas jujubas da vida.

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Humanando

Sim, eu gosto do meu nome. Bonito, sonoro, chama a

atenção... “Gabriel”: “força de Deus”!

Mas... Devo alertá-los, futuros papais e mamães que

também gostam deste nome e que desejam colocá-lo em seu

filho...

Cuidado!

Pois vocês correm o risco de estar traçando uma

expectativa angelical demais pro seu pimpolho.

Principalmente se as pessoas cismarem, como aconteceu

comigo, que além de nome ele tem cara de anjo.

É, eu sei... Sei que muitos, no fundo, querem é isso

mesmo, né? Querem que o filho seja um anjinho... Com auréola,

asinha, carinha de santo...

Mas lamento informar: seu filho – independentemente

do nome –, se Deus quiser, será humano.

Assim como eu!

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“Comprei Jujuba!”

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Não, não estou defendendo o direito de sair por aí

fazendo de tudo, de pintar o sete, ou de ser “do mal”. Muito

pelo contrário... Até porque anjo também faz isso, lembram do

tal de Lúcifer? Pois é...

Só estou defendendo o ser humano. Com todas as

fraquezas, as forças, os defeitos e as qualidades de todo ser

vivo que anda ereto e se agacha com o berrô que o gato deu.

Que tem dente do siso e amídalas, para diversão de alguns

seres da mesma espécie que adoram tirá-los dos outros. E que

ainda tem um monte de coisa esquisita, daquelas que cada

bicho-homem no mundo tem de diferente dos outros, e que os

tais dos psicólogos chamam de “personalidade”. Cada humano

tem uma (ou várias, dependendo do sujeito...).

Ser humano dá medo. E como! A gente é jogado numa

vida doida pra burro e tem que aprender a dar conta de tudo!...

Tem uns que conseguem, “se viram” que nem frango assado

em televisão de cachorro, e parece que dá certo... Tem outros

que não conseguem, talvez por serem quadrados demais. Tem

outros que se espremem, vira daqui, vira de lá... e parece que

conseguem, mas aí quando a coisa aperta, quando vai ver, já

era - não conseguiram foi nada...

Mas acho que o melhor que podemos fazer, já que

estamos nesse corpo ereto (ou meio corcunda) com esse

cérebro gigantesco (que nem sempre é usado como deveria, é

verdade...), é sermos humanos. Com tudo de bom que temos.

Deus gostou do que fez, porque a gente insiste em se negar?

Vamos ser humanos. Sem pensar que estamos no céu

(embora tenhamos todo o direito de querer ir pra lá, um dia...).

Sem querer que alguém daqui, de carne e osso, seja um anjo.

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Gabriel Resgala

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Os aladinhos têm lá os problemas deles (os “da guarda” que o

digam!), que nós tenhamos os nossos. Acho que foi Paulo quem

disse que, se a gente se virar direitinho por aqui, um dia vai até

mandar nos tais “aureolados”...

E foi no intuito de ver se consigo enfrentar melhor toda

essa “humanidade” (que exala do meu ser como aquele odor

marcante pós-almoço de peixe assado) que resolvi escrever.

Na verdade escrevo desde que fui alfabetizado, e desde aquela

época sentia que aquilo vinha de dentro, brotando lá do fundo

como uma acne chata. Mas nem sempre eu espremia. Diz que

tem que esperar amadurar, secar, pra então sair...

E então, após três décadas de vida, achei que já dava pra

espremer alguma coisa disso tudo. Quem sabe, espremendo os

limões, surja uma limonada – ao mesmo tempo azeda e doce,

ácida e relaxante, simples mas cheia de vitaminas. Já que não

tenho asas, vou indo, tentando aproveitar as pernas que Deus

me deu.

Eis-me aqui, então, dando-lhe a oportunidade de se

deparar com mais um bicho-humano – e, como todo bicho, tem

gente que gosta, tem gente que não...

Que bom, né? Já pensou se todo mundo gostasse do

ornitorrinco?...1

OBS.: Neste livro, os textos escritos em 1ª pessoa são histórias reais, ocorridas como descrito; já as narrativas em 3ª pessoa são fictícias.

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Menininha no ônibus

_ Clarinha… Segura firme, se não você cai!

_ Mamãe…

_ Sim, meu anjo!

Foi hoje à tarde. Estava muito calor. Eu estava muito

cansado. E ainda não estava indo pra casa… Tinha ainda uma

reunião num bairro distante.

_ Mamãe, dentro da sua barriga tem uma… uma

sementinha?

_ Tem sim…

_ Que foi… que foi o papai que colocou, né?

_ Foi.

_ E vai crescer e crescer… e virar o meu irmãozinho!!

Ela não aceitou o acento que ofereci. Não a Clarinha, mas

sua mãe. Recusou, disse que o ponto em que iam descer estava

próximo. Recusou. Mesmo carregando a sementinha na

barriga.

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Deveria ter insistido mais. Com toda a certeza. Mas nem

foi o cansaço que me impediu; foi a falta de jeito mesmo,

perante a simpatia daquela mãe. O cansaço já tinha ido

embora. Ou melhor, ainda estava lá… Mas o sorriso daquela

menina deixou-o muito mais leve, e – por que não? –

prazeroso…

_ Segura, meu anjo! Segura firme!

É nessas horas que eu gostaria de conseguir ser um

pouquinho mais extrovertido com estranhos, insistir em algo

que é óbvio: aquele lugar não era meu, era daquelas duas que

estavam ali em pé, espremidas no ônibus cheio, e do

garotinho-semente que, apesar de provavelmente estar mais

confortável que todos nós ali, também merecia sacudir um

pouco menos. Mesmo que os lugares reservados para grávidas

estivessem lá na frente, ocupados por estudantes que

conversavam, animadas. A barriga ainda estava pequena, vale

dizer; provavelmente só eu, enxerido ouvindo a conversa

alheia, havia percebido que tinha uma “sementinha” ali

dentro…

Mas não deu tempo de pensar muito mais. Clarinha logo

desceu com sua mãe, me deixando um sorriso no rosto, e um

pequeno peso nos ombros por não saber como retribuí-lo…

O mínimo que poderia fazer, pensei depois, é tentar

passá-lo pra frente. Não vai ser a mesma coisa, mas pelo

menos é uma tentativa.

Vamos lá?

Juiz de Fora, nov/2009

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Peripécias do Pedrão

Foi numa segunda. Estava eu chegando a Juiz de Fora,

voltando de viagem do Rio, carregando uma mala de rodinhas

pelas calçadas esburacadas do bairro, além de uma mochila

com um peso considerável nas costas. Foi um daqueles dias

cheios, mas um dia bom. Por isso mesmo, decidi economizar o

dinheiro do táxi e pegar um ônibus pra ir da rodoviária pra

casa, afinal só teria que andar um pequeno pedaço a pé. Estava

um começo de noite bonito, tranquilo… o que custava andar

um pouco?

Foi quando eu pude relembrar o lado cômico de São

Pedro.

Começou com uns pingos d’água, aqui e ali. Procurei

marquises, algo bastante improvável num bairro residencial.

Correr não podia: andar rápido era o máximo que meu corpo

cansado e as rodinhas da mala suportavam. Os pingos

rapidamente engrossaram, percebi que o Pedrão tava a fim de

curtir uma chuva de verão básica, daquelas “visita de sogra”:

surgem do nada, fazem um estrago danado e depois vão

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embora tranquilas, como se nada tivesse acontecido. Era

preciso pensar rápido.

Procurei uma pequena árvore na calçada, raciocinei que

pelo menos por alguns minutos eu ali estaria abrigado. Foi eu

me esconder da chuva, que ela de repente foi ficando mais

violenta, como se quisesse me pegar de qualquer jeito. Logo

depois, porém, estiou um pouco. Pensei: “é agora, falta pouco

pra chegar em casa; acho que se eu for rápido não me molho

muito”. Mas caí que nem um patinho: a chuva só estava

esperando eu sair pra engrossar de novo.

Corri até a próxima árvore, e a bendita chuva estiou de

novo. Então esperei ela ficar ainda mais fraca, pra assegurar, e

ameacei enfrentá-la mais uma vez. Juro: foi eu botar o pé pra

fora da segunda árvore, e a chuva voltou a engrossar. Juro pela

sogra do Pedrão (aquela que Jesus curou, lembra?).

Só me restou correr pra baixo da terceira árvore, e

esperar. Não havia mais onde me abrigar, e a chuva

engrossando, as folhas logo não iriam mais segurar a água…

Nisso vieram uns adolescentes correndo pra debaixo da árvore

também. Ficaram alguns segundos, perceberam que não ia

adiantar muita coisa ficar ali, e então tomaram coragem e

saíram correndo e rindo pela rua, debaixo daquele aguaceiro

todo. Ah, que inveja. E eu que tinha acabado de rever

“Cantando na Chuva”. Se não estivesse com tanta bolsa…

Nisso, ouço uma vozinha me chamar: “Quer entrar

aqui?” Era um garotinho de uns oito ou nove anos, na varanda

da casa em frente a mim. Como bom mineiro, minha primeira

resposta foi automática: “Não, ’brigado, vou ficar aqui mesmo,

logo a chuva passa!” Mas logo constatei que a última oração da

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Gabriel Resgala

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minha frase era uma inverdade. E acabei cedendo ao convite

do menininho simpático, ante sua insistência.

Entrei e fiquei ali na varanda/garagem. Era grande,

deviam caber uns três carros, mas não havia nenhum. Não ouvi

barulho de gente lá dentro. Estaria o menino sozinho em casa?

_ Quer um cafezinho? – perguntou.

_ Não, ’brigado!

_ Quer uma água? Quer entrar?

_ Não, valeu! Eu fico por aqui mesmo…

_ Tem certeza?

Imaginei a cena: eu, um rapaz nos seus quase 26 anos,

entrando na casa do garoto, pingando água pelo chão, me

apresentando pra sua mãe: “Boa noite, seu filho me achou

perdido aí fora na chuva. Hum… tem Tódi, ou só café mesmo?”

Nisso me lembrei de ligar pro meu irmão. Eu estava só a

uma esquina de casa, não custava ele vir me pegar com um

guarda-chuva.

_ Não quer nem uma água, não?

_ Não, valeu!

_ Você tá vindo de onde?

_ Do Rio.

_ Do Rio? Poxa, lá é quente, né?

_ É, bem quente.

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_ Eu estive lá uns dias atrás… fiquei uns 15 dias lá. Na

casa da minha tia Inês. Conhece?

_ Ela mora aqui no bairro?

_ Não, lá no Rio! É uma de cabelo curtinho.

_ Não, não conheço…

Liguei pro meu irmão, enquanto prendia o riso. Que

bom, ele estava em casa, e viria logo!…

_ Não quer água mesmo não?

_ Não, valeu…

_ Um dia ainda quero morar no Rio.

_ Você gosta de lá?

_ Lá é muito bom! É quente, tem praia… é bonito…

Não resisti a provocar o estereótipo:

_ Mas é violento também, né?…

_ Ô! Rapaz… lá, se você colocar a cabeça na janela e não

ouvir tiroteio, você não tá no Rio… Quando eu tava lá, minha

tia foi buscar a filha na escola um dia, e aí…

“Que garoto!”, ri por dentro. Será que eu era assim na

sua idade? Não, eu era bem mais tímido… Com certeza…

_ …por que será que as pessoas são tão violentas assim?

Por que elas matam, roubam?…

Pronto. Uma pergunta de criança, daquelas que deixam

qualquer adulto sem saber o que dizer. Sim, já fiz muitas delas

quando criança. Muitas... Mas agora eu era o “adulto”. E fiquei

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Gabriel Resgala

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pensando no que sabia sobre o assunto… Já fiz vários

trabalhos sobre violência quando era bolsista de psicologia

social, gosto de ficar filosofando pelos cantos sobre a natureza

humana, brincando de formular conceitos antropológicos,

éticos, teológicos. Mas eis que vem uma pergunta simples, feita

por alguém a quem se deve dar uma resposta simples… E

agora?

Ele, porém, foi mais rápido:

_ Não sei por que. Eles não ganham nada com isso. Só

dinheiro.

Taí. Naquela hora entendi por que Jesus botava as

crianças no colo e dizia que o Pai revelava-lhes grandes

segredos, ocultando-os dos sábios e entendidos…

Meu irmão chegou, com dois guarda-chuvas. O garoto

ainda nos ofereceu mais um copo d’água, antes de nos

despedirmos:

_ A gente se esbarra por aí!

Fomos embora aproveitando a chuva, agora um pouco

mais fraca. Meu irmão se distraiu e não conseguiu proteger a

mala embaixo do guarda-chuva, enquanto dava seus passinhos

de dança no meio da água (“poxa, que pena que você tava

pertinho de casa, nem deu pra eu me molhar direito!”). O que

molhou foram uns certificados de congressos – alguns que

nem eram meus –, textos do mestrado, um CD-ROM e um livro

de capa bonita que eu tinha acabado de comprar. Ficou tudo

com as pontas amassadas, enrugadas por causa da água que

entrou no bolso lateral da mala, naquele curto trajeto entre a

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esquina e a nossa casa. Depois de tanta luta pra não molhar

nada, Pedrão finalmente venceu.

Tudo bem. Só pra não dizer que o dia foi perfeito...

Juiz de Fora, nov/2008

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Vestido

_ Por que as mulheres se exibem tanto? Não, não estou

falando de ficar bonita, de se produzir... A beleza não precisa

ter explicação, faz parte da vida; e o que é bonito é, sim, pra se

mostrar – só não bote essa frase na boca de um cantor de axé

ou de funk, por favor!

Ela sorriu. Ele continuou falando, inquieto.

_ A beleza de uma pessoa, seja interna, externa ou tudo

isso junto, deixa qualquer ambiente melhor... Mas por que

raios as mulheres não conseguem diferenciar beleza de

sensualidade? Sim, veja só. Um belo decote, um vestido leve,

um cabelo milimetricamente cuidado... tudo isso pode parecer

não ter “nada demais”, mas em certas mulheres é mais sedutor

do que se estivessem nuas. Aliás, a nudez completa, gratuita,

nem é tão sensual assim. Tem mulher que, com um belo

vestido, deixa qualquer homem mais excitado que muita

Playboy da vida. Aí me lembro de uns religiosos fanáticos que

dizem que as mulheres só podem usar vestido, porque calça

seria “muito sensual”. Não sabem nada de sensualidade...

“A sensualidade está na pessoa, o que ela veste só reflete

isso. Tem umas que até tentam, mas não têm jeito pra coisa:

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quanto mais sensuais procuram ser, mais vulgares ficam. O

máximo que conseguem é transmitir ao homem a mensagem:

“sou fácil, vem logo se tiver coragem”. Outras, não: sabem

exatamente como seduzir. Há mulheres que simplesmente

exalam sensualidade por onde passam.

“E isso não é sempre bom, sabia? Sério! Às vezes

desconcerta a gente. É engraçado, pois parece que no fundo

tudo o que nós, homens, queremos é sexo. É ficar louco por

uma mulher. É não resistir quando ela olha e nos deixa

bambos, sem ação. Não vou negar que essa sensação é boa,

mas tem limite. É complicado, por exemplo, num ambiente de

trabalho, quando você tem que levar as coisas a sério e uma

mulher tenta te seduzir pra levar vantagem em algo, fazer

você pensar menos antes de agir. Quantos casos eu conheço de

homens que deram grandes mancadas na vida por causa de

uma mulher sedutora...

“É claro, o oposto também é verdade. Tem muito homem

conquistador que deixa qualquer mulher na mão, quando

quer. Mas o meu ponto é: as mulheres, muitas vezes, fazem

isso sem perceber. Elas acham que estão só ficando bonitas,

“bem apresentáveis”, mas não: estão se vestindo pra seduzir. É

inconsciente. Acham que estão sendo simpáticas, mas não:

estão mostrando seu poder de conquista. É claro, se lhe

perguntam, coram e juram que não tem nada a ver, é só seu

jeito de ser... Nem elas sabem o que fazem. Acham que estão se

produzindo para “outras mulheres”, com aquele papo de que

homem no fundo não sabe apreciar tanto a beleza feminina...

Bobagem. Não há tantas lésbicas no mundo. O que elas

querem, no fundo, é competir com as outras. Querem

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Gabriel Resgala

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intimidar a concorrência. E pra que tanta competição? Ora, só

pode ser pelo macho. Acho que entre os mamíferos, o ser

humano é o único animal em que as fêmeas gostam mais de

competir pelo macho que vice-versa. Fala que é mentira!”

Ela riu.

_ Ok, basta beber um pouquinho que já falo demais... Mas

tudo bem, o que eu penso é isso aí mesmo, minha consciência

está perfeita... Digamos que só estou um pouco mais falante,

com coragem de botar tudo pra fora...

_ Achei interessante.

_ Sério? Não vai me trucidar? Chamar as feministas?...

_ Não... só gostaria...

Pausa.

_ De lhe fazer uma pergunta.

Ele mudou a posição na cadeira, atento. Os olhos dela,

até então baixos, se viraram para os dele.

_ E comigo? Você acha que é assim também? Que estou

sempre seduzindo, sem perceber?... Seja sincero!

Ele sorriu, fez um gesto, parou, pensou. Botou a mão no

queixo, olhou pra cima, enquanto ela sorria, discretamente.

Fez menção de falar algo, sorriu, ela retribuiu. Por fim, falou.

_ Não sei...

_ “Não sei”... isso não seria uma resposta tipicamente

feminina?

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_ Está querendo me enrolar, moça? – riram. – Ok... Mas

falando sério... Acho que não, você não parece ser assim. Taí:

acho que você é uma exceção à regra.

_ Nem inconscientemente?

_ Ao menos não demonstra.

_ Hum... quer dizer então que não sou sensual?

_ Não é isso. Digamos que você não esbanja seu charme,

seu poder de conquista. Hum... talvez você seja uma daquelas

pessoas que compartilham sua beleza com o mundo, sabem

deixá-lo mais belo com seu sorriso, mas guardam seu jogo, sua

sedução, para a hora que realmente importa. Não brincam

com os homens ao redor, não jogam pérolas para os porcos.

_ Uau! Então eu sou tudo isso?

_ Creio que sim.

_ Então sou uma peça valorizada. Feliz o homem que

merecer minha sedução...

_ Será um escolhido entre mil.

_ Nem tanto. Não conheço tanta gente assim.

_ Pois então trate de conhecer.

_ Não preciso.

_ Por quê?

Os olhos, até então oscilantes, mergulharam nos dele.

_ Estou de vestido. Não percebeu?...

Juiz de Fora, jan/2011

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Pedra e mar

_ Por que o medo?

É madrugada. Sozinho no terraço de casa, silêncio, chuva

fina. Mais alto que os fios, mais baixo que as árvores. Lá

embaixo o barulho da pequena fonte da praça, a rua molhada,

o gramado orvalhado. Estou acordado e todos dormem, todos

dormem, todos dormem. Lá em cima aquele céu vermelho de

quando a cidade não deixa a escuridão entrar. Lá na frente o

morro, a mata, as luzes. Lá atrás os vizinhos, as casas, as

camas… Tanta gente ao redor, tantas vidas, tantos sonhos.

_ “O medo de altura não é o medo de cair; é o medo de

saber que nada te impede de se jogar lá de cima”, dizia

alguém…

Boto o pé no parapeito. É bom se apoiar, ficar mais

próximo da pequena imensidão da vista do terceiro andar. Ver

melhor tudo o que me circunda, lembrar que sou pouco.

_ “Do alto da pedra eu busco impulso pra saltar”, dizia

uma música que não me saía da cabeça…