Heródoto história antiga

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HistóriaHeródoto (484 A.C. - 425 A.C.)

Traduzido do grego porPierre Henri Larcher (1726–1812)

Fontes digitais desta ediçãoDigitalização do livro em papel

Volumes XXIII e XXIVClássicos Jackson

W. M. Jackson Inc.,Rio, 1950Versão para o português de

J. Brito Broca

Les Deux Terres2terres.hautesavoie.net

site consacré à l'ÉGYPTOLOGIEcom o texto integral de Larcher: Hérodote Histoire tome I et II, Charpentier, Paris, 1850.

L'Antiquité Grecque et Latinede Philippe Remacle, François-Dominique Fournier, J. P. Murcia e Thierry Vebr

[Texte Numérisé et mis en page para François-Dominique Fournier]remacle.org

Perseus Digital Library - Tufts Universitywww.perseus.tufts.edu

Los Nueve Libros de la HistoriaTradução do Pe. Bartolomé Pou, S. J. (1727-1802)

Ed. eBooksBrasil - Agosto 2006

Versão para eBookeBooksBrasil

Trechos colocados entre [ ] correpondem a trechos ininteligíveis na fonte digitalizada completados com a traduçãoem espanhol

CapaLéonidas aux Thermopyles

Jacques-Louis David (1748-1825)Musée du Louvre, Paris

Versão para eBookeBooksBrasil

USO NÃO COMERCIAL * VEDADO USO COMERCIAL© 2006 — Heródoto

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Nota Editorial

Começo com uma advertência, dirigida principalmenteaos estudandes de História: esta edição não passa de umaperitivo. O verdadeiro repasto está na edição francesa, integral,que pode ser encontrada na web. Lá, sim, estão todas as notasda edição original de Larcher, não incluídas nem aqui, nem naedição digitalizada, base desta — naquela, com certeza, poreconomia de papel; nesta, por preguiça mesmo.

Para me redimir um pouco deste pecado capital, cáforam inclusos a Nota do Editor de 1842, a “A Vida deHeródoto” e o “Plano da História de Heródoto” com que Lacheriniciava sua tradução.

Algumas discrepâncias entre a edição de Lacher e aversão para o português da fonte digitalizada foram dirimidascom a consulta ao texto original da tradução de Lacher “enligne” e com o original, original mesmo, disponível em Perseus.Bons tempos em que, no antigo Clássico, em colégiosselecionados (no Culto à Ciência em Campinas, p.ex.) se podiater umas tinturas de grego! Mas agora, os que virão, terãoFilosofia e Ciências Sociais. Pelo que vale...

Sobre a importância de se beber nas fontes, remeto oeventual leitor à discussão, sobre as traduções, travada naConferência de Levi Carneiro, em 1938, que pode serencontrada nas estantes virtuais: “O Problema do LivroNacional - Levi Carneiro”.

Este livro, como outros recém colocados na web, fazparte de uma fornada de eBooks feitos para gáudio próprio,como parte de merecidas releituras. Vai-se lendo, estudando,consultando... e formatando. Rende! Mas é provável quetenham passados muitos gatos; perdoem-lhes os miados.

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Mas por que deixar no meu HD e não libertá-los, paraque sigam em frente, servindo a outros? É essa a idéia básica daweb e, agora, do Scribd. É por isso que estão sendo colocadosantes no Scribd. À frente, talvez, em outros formatos noeBooksBrasil.

Boa leitura!

Teotonio SimõeseBooksBrasil

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HISTÓRIA

HERÓDOTO

(484 A.C. - 425 A.C.)Traduzido do grego por

Pierre Henri Larcher(1726 D.C. - 1812 D.C.)

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Nota do Editor

Mais de meio século escoou desde a publicação doHeródoto de Larcher, e durante este meio século o sucessodesta obra não cessou de crescer. É hoje um livro clássico, e ospróprios sábios lhe deram o justo lugar, assinalando-o como omonumento durável de um grande trabalho que absorveu a vidainteira de seu autor.

Quando Larcher publicou esta tradução, creu necessáriojuntar-lhe um grande número de notas tiradas das fontes as maissábias, e úteis seja para o estabelecimento do texto, seja para ainteligência dos fatos. Estas notas encheram quatro volumes desua primeira edição, e seis de sua segunda. Era muito, erademais, sem dúvida; e entretanto Larcher preparava umaterceira edição, que vimos, à qual juntara um bom número denovas notas.

Acusaram-no com razão deste luxo desenfreado deerudição; e Volney, sábio notável, e ademais homem de gosto,expressou o desejo que uma mão amiga se encarregasse dedesbastar este cipoal da ciência, sob o qual a árvore vigorosa deHeródoto ficava como que embalsamada. O objetivo seriaeclarar e não sufocar o historiador.

É este trabalho que oferecemos hoje ao público;tentámos realizar o voto de Volney, de suprimir a erudiçãoinútil, acolher os esclarecimentos indispensáveis, e reunir emum muito pequeno número de notas, emprestadas de outroscomentadores, tudo o que pudesse facilitar o estudo do pai dahistória, ou, como o chamava o douto Sainte-Croix, do granderival de Homero.

L. AIMÉ-MARTIN.

26 de maio de 1842

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Vida de Heródotopor Larcher

Heródoto, nascido em Halicarnasso no anode 4230 do período juliano, 484 anos antesde nossa era, era Dório de extração, ilustrede nascimento. Teve por pai Lixas e pormãe Drio, que tinham um lugar de destaqueentre seus concidadãos. Paniasis, poetacélebre, ao qual alguns escritores adjudicamo primeiro posto após Homero, emboraoutros o coloquem após Hesíodo eAntímaco, era seu tio por parte de pai ou demãe; nada há de certo a respeito.

Paniasis nasceu, se déssemos crédito a Suidas, na 78a.olimpíada, isto é, no ano 4247 do período juliano, 407 anosantes da era vulgar. Não posso compartilhar esta opinião,porque se seguiria que Heródoto, seu sobrinho, seria 17 anosmais velho do que ele. Não ignoro que há tios mais jovens queseus sobrinhos: tenho exemplos.

Também insisto menos nesta razão do que sobre otempo em que faleceu Paniasis, embora não possa ser fixada demaneira certa. Mas sabemos que Ligdamis, tirano deHalicarnasso, foi derrubado no anos 4257 do período juliano,457 anos antes de nossa era. Ter-se-ia pois que fazer morrer estepoeta no mais tardar em 4.256 do período juliano, 458 anosantes da era vulgar.

Se a asserção de Suidas fosse verdadeira, Paniasis teria

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no máximo 9 anos quando faleceu. Como, com esta idade,poderia ter feito sombra ao tirano? como poderia ter compostoestas obras que lhe deram tão grande reputação? Prefiro, poresta razão, colocar seu nascimento na 68a. olimpíada. Teria pois50 anos quando Ligdamis o mandou matar, e teria tido tempopara compor este grande número de obras que o imortalizaram.Ademais, o próprio Suidas admite que há autores que o fazemmais velho. Paniasis era conhecido pelo Heracleiade e peloIônicos. O Heracleiade era um poema heróico em honra aHércules; nele o poeta celebrava as conquistas deste herói, emcatorze livros contendo nove mil versos.

Diversos escritores o mencionam com distinção. IsaacTzetzès em seus Prolegômenos sobre a Cassanda de Licofron,Proclus em seu Chrestomatia, Suidas na palavra Paniasis,Pausanias, que até lhe cita dois versos, e o escoliasta dePíndaro, que menciona um do terceiro livro. Quintiliano, bomjuiz nestas questões, nos diz que ele não igualava em eloqüêncianem Hesíodo nem Antimaco, mas que ultrapassava o primeiropela riqueza de seu tema, e o segundo pela disposição que lhedera. Denis de Halicarnado, que não se destacava menos nacrítica do que na história, nos traz também o mesmo juízo.Atenho-me a estas autoridades, às quais poderia juntar as dediversos outros autores, tais como Apolodoro, santo Clementede Alexandria, Ateneu, etc.

O mesmo Paniasis tinha escrito em versos pentâmetrosum poema sobre Codrus, Neleu e a colônia iônia, que sechamava Os Iônicos. Este curioso poema, do qual nunca seriademais lamentar a perda, porque entrava em uma infinidade dedetalhes históricos sobre esta colônia, compreendia sete milversos. Só nos restou deste poeta dois pequenos pedaços deversos com um fragmento, em que Paniasis celebra o vinho e osprazeres da mesa tomados com moderação. Stobeu e Ateneu osconservaram para nós. Podemos encontrá-los em diversascoletâneas, e muito mais corretamente na dos poetas gnômicos,

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publicada em 1784 em Strasburgo por Brunck, crítico cheio degosto e de sagacidade. Há ainda cinco versos deste poeta que sepodem ler em Étienne de Bizâncio, na palavra TremÛlh.Suspeito que são do Heracleida. Brunck não julgou apropriadolhes dar um lugar em sua coletânea.

Nestes belos séculos da Grécia, tomava-se um cuidadoparticular na educação da juventude, formando-lhes o coração,cultivando-lhes o espírito. É de se presumir que a educação deHeródoto não tenha sido negligenciada, embora ignoremosquais foram seus mestres. Não podemos sequer duvidar, quandoo vemos empreender em uma idade pouco avançada longas epenosas viagens, para aperfeiçoar seus conhecimentos e paraadquirir novos.

A descrição da Ásia por Decideu, a história de Lídia, deXantus, as da Pérsia de Helanicos de Lesbos e Charon deLampsaco, gozavam então a mais alta reputação. Estas obrasagradáveis, interessantes, foram sem dúvida devoradas porHeródoto nesta idade em que se é ávido por conhecimentos, elhe inspiraram o vívido desejo de percorrer os países cujasdescrições o haviam encantado. Não era contudo uma vagacuriosidade que o levava a viajar; ele se propunha umafinalidade mais nobre, a de escrever história. O sucesso doshistoriadores que o haviam precedido não o amedrontou; pelocontrário, serviu para inflamá-lo; e embora Helanico de Lesbose Charon de Lampsaco tivessem tratado em parte do mesmoassunto, longe de ser desencorajado, ele ousou lutar contra eles,e não se esforçou em vão em superá-los. Ele se propunhaescrever, não a história da Pérsia, mas somente a da guerra queos Gregos tiveram que sustentar contra os Persas. Este assunto,simples na aparência, lhe forneceu a ocasião de fazer entrar nomesmo quadro a história da maioria dos povos com que osGregos tinham relações íntimas, ou que lhes importavaconhecer. Sentia que, para executar este plano, deveria recolhermateriais, e adquirir um exato conhecimento dos países dos

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quais se propunha fazer a descrição. Foi com isto em vista queempreendeu suas viagens, que percorreu a Grécia inteira, oÉpiro, a Macedônia, a Trácia; e, segundo seu própriotestemunho, não se pode duvidar que tenha passado da Tráciaaos Citas, para além de Íster e do Boristeno. Por toda parte,observou com olhar curioso os sítios, as distâncias dos lugares,as produções dos países, os usos, os costumes, a religião dospovos; fuçou em seus arquivos e em suas inscrições os fatosimportantes, a seqüência dos reis, as genealogias dospersonagens ilustres; e por toda parte ligou-se aos homens maisinstruídos, e dedicou-se a consultá-los em todas as ocasiões.Talvez tenha se contentado nesta primeira viagem em visitar aGrécia, e que, em seguida rumou para o Egito, passando daípara a Ásia na Cólcida, à Cítia, à Trácia, à Macedônia,retornando a Grécia pelo Épiro. Seja como for, o Egito, quemesmo hoje em dia ainda desperta o espanto e a admiração dosviajantes inteligentes, não poderia deixar de entrar no plano deHeródoto. Hecateu já havia viajado para ali antes dele e, portodas as aparências, tinha feito uma descrição do Egito. Porfíriopretende que este historiador tenha se apropriado, do Viagem daÁsia deste escritor, da descrição da fênix e do hipopótamo, coma caça do crocodilo, e que apenas fez algumas mudanças; mas otestemunho de Porfírio é mais que suspeito, pois Calímacoatribui esta Viagem da Ásia a um escritor obscuro. Acrescento,com Walckenaër, que se o historiador tivesse sido culpado desteplágio, Plutarco, que compôs um tratado contra ele, não teriadeixado de denunciá-lo. Não temos nenhum escritor, sejaantigo, seja moderno, que tenha dado deste país uma descriçãotão exata e também curiosa. Ele nos faz conhecer sua geografiacom uma exatidão que nem sempre tiveram geógrafos deprofissão, as produções do país, os costumes, os usos e areligião de seus habitantes, e a história dos últimos príncipesantes da conquista dos Persas, com particuliaridadesinteressantes sobre esta conquista, que teriam sido para sempreperdidas que ele não as tivesse transmitido à posteridade.

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Se crêssemos que nosso autor nada mais fez querecolher rumores populares, erraríamos grosseiramente. Nãosaberíamos imaginar os cuidados e as penas que tomou para seinstruir, e para não apresentar a seus leitores nada além docerto. Suas conferências com os padres do Egito, afamiliaridade que desfrutou entre eles, as precauções que tomoupara que não lhe impusessem nada, são garantias seguras do queele afirma. Um viajante menos circunspecto teria se contentadocom o testemunho dos sacerdotes estabelecidos em Mênfis. Maseste testemunho, respeitável sem dúvida, não lhe pareceusuficiente. Foi a Heliópolis, e daí para Tebas, a fim deassegurar-se, por conta própria, da veracidade do que lhehaviam dito os sacerdotes de Mênfis. Consultou os colégios desacerdotes estabelecidos nestas duas grandes cidades, que eramos depositários de todos os conhecimentos; e só depois deachá-los perfeitamente conformes com os sacerdotes de Mênfisacreditou-se autorizado a dar os resultados de seus encontros.

A viagem que Heródoto fez a Tiro nos oferece outroexemplo não menos patente da exatidão de suas pesquisas.Soubera no Egito que Hércules era um dos doze deusesnascidos dos oito mais antigos, e que estes doze deuses tinhamreinado no Egito 17.000 anos antes do reino de Amasis. Talassertiva seria bem capaz de confundir todas as idéias de umGrego que não conhecesse outro Hércules que o de sua nação,cujo nascimento não datava senão do ano 1.384 antes de nossaera, como o provei em meu Essai de chronologie, capítulo XIII.Como esta assertiva estava abalizada pelos livros sagrados epelo testemunho unânime dos sacerdotes, ele não podia ou nãoousava contestá-la. Entretanto, como queria conseguir apropósito uma certeza maior, se fosse possível, foi a Tiro paraver aí um templo de Hércules que se dizia ser muito antigo.Contaram-lhe nesta cidade que este templo fora erigido há2.300 anos. Viu também em Tiro um templo de Hérculessobrenomeado Tasiano. A curiosidade o levou a Thasos, ondeencontrou um templo deste deus, construído pelos Fenícios que,

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correndo os mares sob o pretexto de procurar Europa, fundaramuma colônia nesta ilha, cinco gerações antes do nascimento dofilho de Alcmene. Ficou então convencido que o Hérculesegípcio erá muito diferente do filho de Anfitrião; e ficou tãopersuadido que o primeiro era um deus e o outro um herói, quediz lhe parecerem agir sabiamente os Gregos que ofereciam aum Hércules, que chamavam de Olímpico, sacrifícios como aum imortal, e que faziam ao outro oferendas como a um herói.

Suas excursões na Líbia e na Cirenaica precedem aviagem a Tiro. A descrição exata da Líbia, desde as fronteirasdo Egito até o promontório Soloeis, hoje cabo Spartel,conforma-se em tudo ao que nos dizem os viajantes maisestimados, e o doutor Shaw em particular, não permitindodúvida de que tenha visto este país por si mesmo. Somos aindatentados a crer que tenha estado em Cartago; seus encontroscom um grande número de cartaginenses autorizam estaopinião. Ele voltou sem dúvida pela mesma rota ao Egito, e daíenfim passou a Tiro, como já disse.

Após alguma estada nesta soberba cidade, visitou aPalestina, onde viu as colônias que Sesostris aí tinha feitoedificar; e sobre estas colônias salientou o emblema quecaracterizava a lassidão de seus habitantes. Daí foi à Babilônia,que era então a cidade mais magnífica e a mais opulenta queexistia no mundo. Sei que muitas pessoas esclarecidas, e desVignoles entre outras, duvidam que Heródoto tenha viajado àAssíria. Não posso responder melhor a este respeitável sábioque me servindo dos próprios termos de um outro sábio que nãoo é menos do que aquele, isto é, o presidente Boudhier. Eiscomo ele se exprime: “Embora as passagens de Heródoto quefizeram muitos crerem que ele tenha realmente estado naBabilônia não sejam muito claras, é quase impossível duvidarque ele não a tenha visto, se nos dermos ao trabalho deexaminar a descrição exata que faz nestas passagens de todas assingularidades desta grande cidade e de seus habitantes. Só

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mesmo um testemunho ocular poderia falar com tanta precisãosobretudo em um tempo em que nenhum outro grego haviaescrito a respeito. E mais, atente-se à maneira pela qual fala deuma estátua de ouro maciço de Júpiter Belus, que estava naBabilônia, e que tinha doze côvados de altura. Ao se dizer queele não a viu, porque o rei Xerxes a havia feito transportar, nãoé insinuar tacitamente que ele teria visto todas as outras coisasque disse ter visto nesta grande cidade? É forçoso tambémreconhecer por diversas outras passagens de sua obra, que eletinha conferenciado nestes lugares com Babilônios e Persassobre o que dizia respeito a sua religião e sua história. Além domais, não é admissível que um homem que tinha percorridotantos países diferentes para se instruir de tudo o que pudesselhes concernir, tivesse negligenciado de ir ver uma cidade quepassava por ser então a mais bela do mundo, e onde poderiarecolher as memórias mais seguras para a história que preparavada alta Ásia, sobretudo tendo estado tão perto dela.“

A Cólcida foi o último país da Ásia que percorreu.Queria assegurar-se pessoalmente se os Cólcidos eram deorigem egípcia, como lhe tinham dito no Egito, e se eramdescendentes de uma parte do exército de Sesostris que tinha seestabelecido neste país. Da Cólcida passou pelos Citas e osGetos, daí à Trácia, da Trácia à Macedônia; e enfim voltou àGrécia pelo Épiro. Se não tivesse conhecido tão bem todos estesdiferentes países, como poderia ter dado uma descrição exata,falar com clareza da expedição de Dario entre os Citas, e da deXerxes à Grécia?

De volta à sua pátria, aí não se demorou. Ligdamis, filhode Pisindelis, e neto de Artemisa, que tinha se distinguido najornada de Salamina, era o tirano. E havia mandado matarPaniasis, tio de nosso historiador. Heródoto, não crendo suavida em segurança sob um governo suspeitoso e cruel, buscouasilo em Samos. Foi neste doce retiro que colocou em ordem omaterial que tinha trazido, que fez o plano de sua historia e

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compôs os primeiros livros. A tranqüilidade e os desvelos deque desfrutava não extinguiram contudo nele o gosto daliberdade. Este gosto, inato por assim dizer nos Gregos, unidoao poderoso desejo de vingança, inspirou-lhe o desejo decombater Ligdamis. Com isso em vista ligou-se aosdescontentes, e sobretudo com os amigos da liberdade. Quandosentiu a hora azada, reapareceu de súbito em Halicarnasso; e,colocando-se à frente dos conjurados, bateu o tirano. Esta açãogenerosa não teve outra recompensa que a mais negraingratidão. Era preciso estabelecer uma forma de governo queconservasse a igualdade de todos os cidadãos, este direitoprecioso que todos os homens trazem de nascença. Mas isso nãoera possível em uma cidade dividida em facções, onde oscidadãos imaginavam ter, por seu nascimento e por suasriquezas, o privilégio de governar, e excluir de honras a classemédia, ou mesmo de vexá-la. A aristocracia, a pior espécie detodos os governos, era seu ídolo favorito. Não fora o amor pelaliberdade que os havia armado contra o tirano, mas o desejo dese atribuir sua autoridade e de reinar com o mesmo despotismo.A classe média e o povo, que tinham tido pouca coisa areclamar do tirano, acreditaram ter perdido com a troca, vendo ogoverno nas mãos de um pequeno número de cidadãos dosquais era preciso absorver a avidez, temer os caprichos emesmo as suspeitas. Heródoto tornou-se odioso a uns e a outros:a uns porque o viam como o autor de uma revolução que semostrara desvantajosa para eles; a outros porque o viam comoum ardente defensor da democracia.

Espremido entre as duas facções que partilhavam oEstado, disse um eterno adeus à sua pátria, e partiu para Grécia.Celebrava-se então a 81a. olimpíada. Heródoto se apresentouaos jogos olimpicos: querendo se imortalizar, e ao mesmotempo fazer sentir aos seus cidadãos quem era o homem quetinham forçado a se expatriar, leu nesta assembléia, a maisilustre da nação, a mais esclarecida de houve, o começo de suaHistória ou, talvez, os trechos mais apropriados para inflar o

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orgulho de um povo que tinha tantos motivos para se crersuperior aos demais. Tucídides, que não tinha então senãoquinze anos, mas no qual já despontava o brilho de seu belogênio, que foi um dos mais brilhantes ornamentos do século dePéricles, não pôde conter as lágrimas à leitura desta História.Heródoto, que o percebeu, disse ao pai do jovem: Olurus, vossofilho queima de desejo por conhecimentos.

Detenho-me um momento para provar foi na 81a.olimpíado que Heródoto leu uma parte de sua Historia à Gréciareunida. É certo que Heródoto, tendo abandonado Halicarnassoe desejando fazer seu nome, foi a Olímpia, e que leu uma partede sua História, que foi de tal modo apreciada, que se deu aosnove livros que a compunham o nome de Musas. Luciano o dizda maneira mais clara e mais formal. De outro lado, Marcelinonos informa que Tucídides verteu lágrimas ao ouvir esta leitura,e que Heródoto, testemunha da sensibilidade deste rapaz,endereçou a seu pai as palavras que mencionei. Tucídidesnasceu no primeiro ano da 77a. olimpíada, na primavera, e porconseqüência no ano 4.243 do período juliano, 471 antes danossa era. Tinha pois quinze anos e alguns meses quandoassistiu a esta leitura. Poderia já ser sensível às delícias doestilo: mas esta sensibilidade não era menos surpreendente emuma idade tão tenra, e fazia conceber grandes esperanças. Sesupusermos que este acontecimento pertence à olimpíadaprecedente, torna-se ainda mais maravilhoso, para não dizerinacreditável. Se, ao contrário, recuarmos à 82a. olimpíada,Tucídides tendo então 19 anos e alguns meses, sua sensibilidadenão teria tido nada de surpreendente, e não se teria feito notar. Épreciso pois constar, com Dodwell, que este historiador tinhaentão quinze anos. O padre Corsini, clérigo regular de Escolaspias, é também deste parecer em seus Fastes Attiques, e cita,para prová-lo, Luciano no tratado sur la Manière d’écrirel’histoire, embora não fosse questionado nesta obra. Este sábio,contudo, não tinha sobre o fato idéias bem definidas, uma vezque, na página 213 do mesmo trabalho, recua esta leitura ao

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primeiro ano da 84a. olimpíada, quer dizer doze anos, o que mefaz crer que ele confunde aí a leitura feita nos jogos olímpicoscom a que fez o mesmo historiador nas Panatenéias, emboraesta festa preceda a 84a. olimpíada em mais de 15 dias.

Voltemos ao nosso assunto. Encorajado pelos aplausosque recebera, Heródoto emprega os doze anos seguintes acontinuar sua História e em aperfeiçoá-la. Foi então que viajoupor toda a Grécia, que até então só tinha percorrido, queexamina com a mais escrupulosa atenção os arquivos de seusdiferentes povos, e que se assegura dos principais trechos de suahistória, bem como as genealogias das mais ilustres casas daGrécia, não apenas percorrendo seus arquivos, mas lendo suasinscrições. Porque nestes tempos antigos transmitia-se àposteridade os acontecimentos mais interessantes, como os maisremarcáveis, por meio de inscrições gravadas sobremonumentos duráveis, ou sobre tripés que eram conservadoscom o maior zelo nos templos. Estas inscrições continham osnomes dos que tinham tomado parte nestes acontecimentos,com os de seus pais e de suas tribos; de modo que váriosséculos após era impossivel se equivocar, malgrado a identidadedos nomes que se notavam às vezes nestes monumentos.

Em uma destas excursões foi a Corinto, onde recitou, sedermos fé a Dion Crisóstomo, a descrição da batalha deSalamina, com as circunstâncias honoráveis para os Coríntios, esobretudo para Adimanto que os comandava. “Mas, continua osofista no discurso que endereça aos Coríntios, Heródoto tendovos pedido uma recompensa, e não a tendo obtido, porquevossos ancestrais desdenhavam colocar preço na glória, mudouas circunstâncias desta batalha, e as conta de maneira que vos édesfavorável.” Um fato de tal natureza, se fosse provado,revelaria uma alma vil; e, longe de procurar justificar Heródoto,contentando-me em admirar o escritor, abandonaria o homemao justo desprezo que mereceria. Mas a resposta me parecemuito fácil. 1.º Se não tivesse tido duas opiniões muito

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constantes sobre a conduta que os Coríntios tiveram na jornadade Salamina, Heródoto não teria se exposto narrando-as, com orisco de ser desmentido pela maior parte da Grécia, de queprocurava captar a benevolência, e que era então aliada e amigados Coríntios; 2.º Dion Crisóstomo viveu mais de cinco séculosdepois desta batalha, enquanto que nosso historiador nasceraquatro anos antes que ela se desse. O primeiro não poderiaconhecer as particuliaridades senão pela história e pelosmonumentos, enquanto que o outro estava instruído não sópelos monumentos, mas também pelo testemunho de umainfinidade de pessoais que ali estiveram. 3.º A autoridade destesmonumentos não é tão grande nesta ocasião quanto é na maioriadas outras; porque o próprio Heródoto conta que muitos povos,ao se mostrar a sepultura em Plateia, vergonhosos de não teremido a combate, tinham erigido cenotáfios com terra amontoada,a fim de se fazerem honrar na posteridade. Os Coríntios podemter feito o mesmo após a jornada de Salamina. 4.º Os versos queSimonides fez em honra aos Coríntios e Adimanto, seu general,não parecerão jamais uma prova conclusiva aos queconhecerem a cupidez deste poeta, e a que ponto prostituía suapena à melhor oferta. 5.º Se o fato relatado por Dion Crisóstomotivesse sido verdadeiro, Plutarco, que não deixou escaparocasião alguma para mostrar sua animosidade contra Heródoto,não teria deixado de fazer a respeito as mais cruéis críticas,porque confessadamente o detestava, porque este historiadortinha dito verdades sobre seus compatriotas que não lhes eramvantajosas. Ele pretende, é verdade, que os Coríntioscomportaram-se valentemente na jornada de Salamina e queHeródoto suprimiu seus elogios por malignidade. Entretanto,longe de as suprimir, ele relatou o que os Gregos contavam demais ufanosos para este povo; mas, como fazia profissão deimparcialidade, não acreditou dever passar em silêncio o quediziam também os Atenienses. Aqui seria o lugar para refutar oque diz Plutarco para provar que os Coríntios se cobriram deglória nesta batalha; mas como isso me levaria muito longe, eque provavelmente muitos poucos leitores teriam interesse nesta

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discussão, creio dever deixá-la de lado inclusive porque estadigressão já está um pouco longa.

Doze anos após ter lido uma parte de sua História nosjogos olímpicos, Heródoto leu outra em Atenas, na festa dasPanatenéias, que se celebravam em 28 de hecatombaeon, isto éem 10 de agosto. A leitura aconteceu no ano 4.270 do períodojuliano, 444 anos antes de nossa era, e no primeiro ano da 84a.olimpíada. Os Atenienses não se limitaram a elogios estéreis:fizeram-lhe presente de 10 talentos, por um decreto propostopor Aninto e ratificado pelo povo em assembléia, como o atestaDiilo, historiador muito estimado. É sem dúvida destarecompensa que é preciso entender o que disse Eusébio, nolugar que citei, que Heródoto foi honrado pelos Atenienses.

Parece que esta acolhida teria devido fixá-lo em Atenas.Entretanto ele se juntou à colônia que os Atenienses enviaram aThurium no começo da olimpíada seguinte. O gosto que tinhapelas viagens foi superior, talvez, ao reconhecimento quedeveria aos Atenienses; mas talvez também não cresse ele queabandonasse Atenas ao acompanhar um tão número deAtenienses, entre os quais havia muitos distinguidos. Lísias,então com somente 15 anos, que se tornaria depois um grandeorador, estava entre os colonos. Heródoto tinha então quarentaanos; porque havia nascido no ano 484 antes de nossa era, e noprimeiro ano da 74a. olimpíada. O autor anônimo da Vida deTucídides coloca também este historiador no número doscolonos. Mas como é o único escritor que o menciona, épermitido duvidar-se.

Ele fixa seu domicílio em Thurium; ou, se daí saiu, foisó para fazer algumas excursões pela grande Grécia, quero dizernesta parte da Itália que estava povoada por colônias gregas, eque foi assim nomeada, não porque fosse mais considerável queo resto da Grécia, mas porque Pitágoras e os pitagóricos lhederam uma grande celebridade. Há muita aparência que ele

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passou o resto de seus dias nesta cidade, e parece certo que foipor esta razão que se lhe dá às vezes o sobrenome de Heródotode Thurium. Strabrão o diz positivamente. Eis como se exprimeeste sábio geógrafo ao falar da cidade de Halicarnasso: “Ohistoriador Heródoto era desta cidade. Chamaram-no depoisThurien, porque estava entre os que foram enviados em colôniaa Thurium.” O imperador Juliano não o chama de outra formano fragmento de uma carta que Suidas nos conservou: Se oTuriano parece a qualquer um digno de fé, etc. A coisa foimesmo levada tão longe, que Heródoto tendo começado suaHistória com estas palavras: Publicando suas pesquisas, Heródode Halicarnasso, etc.; Aristóteles, que cita este começo, mudouesta expressão pela de Herodoto de Thurium. Este sábio não é oúnico a fazê-lo; porque Plutarco obsera que muitas pessoashaviam feito a mesma mudança.

O lazer que gozou nesta cidade lhe permitiu retocar suaHistória, e fazer algumas adições consideráveis. É assim que épreciso entender esta passagem de Plínio: Urbis nostraetrecentesimo anno.... auctor ille (Herodotus) Historiam condiditThuriis in Italia; porque é certo que ele havia lido uma parte desua História em Atenas antes de partir para Thurium, e quedoze anos antes havia lido outra nos jogos olímpicos. Estapassagem de Plínio induziu em erro o sábio des Vignoles. Nãovou me dar o trabalho de refutá-lo, o presidente Bouhier já o fezcom sucesso no capítulo primeiro de seu Recherches etDissertations sur Hérodote.

Não se pode duvidar que ele tenha acrescido muitascoisas durante sua estadia em Thurium, pois relata fatos que sãoposteriores à sua viagem à grande Grécia. Alguns sábiosnotaram antes de mim, e sobretudo Bouhier e Wesseling. Entreeles: 1.º a invasão que os Lacedemônios fizeram na Ática noprimeiro ano da guerra do Peloponeso, invasão na qual este paísfoi devastado, exceto Deceléia, que pouparam porreconhecimento a uma boa ação dos Decélienses; 2.º a sorte

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funesta dos embaixadores que os Lacedemônios enviaram àÁsia no segundo ano da guerra do Peloponeso, e no ano 430antes de nossa era; 3.º a defecção dos Medas sob Darius Nothus,que este príncipe colocou pouco depois novamente sob jugo.Este acontecimento, que Heródoto conta, e que é certamente da93a. olimpíada, do 24.º ano da guerra do Peloponeso, e de 408antes de nossa era, prova que Heródoto teria acrescido este fatoem uma idade bem avançada. Ele tinha então 77 anos.

O presidente Bouhier colocou também após a viagem deHeródoto à grande Grécia a retirada de Amirtéia para a ilha deElbo, de que fala Heródoto. Este sábio, enganado por Syncelle,supunha que este príncipe ter-se-ia refugiado nesta ilha no 14.ºano da guerra do Peloponeso, e no ano 417 de nossa era.Dodwell e Wesseling tinham bem visto que a revolta deAmirtéia tendo começado no segundo ano da 79a. olimpíada, ofim desta revolta foi no segundo ano da olimpíada seguinte, epor conseqüëncia anterior em 14 anos à partida de nossohistoriador para a grande Grécia. Não relatarei aqui as provas,já o tendo feito de maneira bem ampla em meu Essay sur laChronologie.

Foi também nestas viagens que aprendeu diversaspeculiaridades sobre as cidades de Rhégium, de Géla, deZancle, e sobre seus tiranos; particuliaridades que transmitiu àposteridade.

Acabamos de ver que nosso historiador tinha 77 anosquando acrescentou à sua História a revolta dos Medas.Ignora-se até que idade levou sua carreira, e em que país aterminou. É verossímil que morreu em Thurium; e temos, paraapoiar esta pressuposição, o testemunho positivo de Suidas, quenos conta também que foi enterrado na praça pública destacidade. O que pode nos fazer duvidar, é que o mesmo escritoracrescenta que alguns autore o fazem morrer em Pella naMacedônia. Mas como ignoramos até mesmo o nome destes

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autores, não sabemos que têm qualquer autoridade, e qual ograu de confiança que merecem.

Marcelino escreveu, em Vie da Thucydide, que se ve,entre os monumentos de Cimon em Coelé, perto das portasMélitides, o túmulo de Heródoto. Poder-se-ia concluir destapassagem que Heródoto morreu em Atenas, e é esse osentimento do presidente Bouhier. Quem nos garante porém quefosse um verdadeiro túmero e não um cenotáfio? Se foi erigidoao nosso historiador um monumento no lugar destinado àsepultura da casa de Cimon, é porque partindo para Thuriumobteve em Atenas o direito de cidade, e que foi provavelmenteadotado por alguém desta casa, uma das mais ilustres destacidade: porque sem esta adoção não lhe teriam erigido ummonumento neste lugar, onde não era permitido inumarninguém que não fosse da família de Miltíades. É o que muitobem provou Dodwell.

Resta entretanto ainda alguma incerteza: a inscriçãorelatada por Étienne de Byzance a faria desaparecer, se fosseassegurado que tivesse sido encontrada em Thurium; porque oprimeiro verso desta inscrição atesta que as cinzas de nossohistoriador repousariam sob esta tumba. Creio que não possomelhor terminar sua Vida que por este epitáfio, que relataÉtienne de Byzance: “Esta terra encobre em seu seio Heródoto,filho de Lixas, Dório de origem, e o mais ilustre doshistoriadores iônios. Ele se retirou para Thurium, que via comouma segunda pátria, a fim de se colocar a coberto das mordidasde Momus.”

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PLANO DA HISTÓRIA DE HERÓDOTO

Heródoto não se propunha, como o diz ele mesmo nocomeço de sua História, senão celebrar os feitos dos Gregos edos Persas, e desenvolver os motivos que haviam levado estespovos a se fazerem a guerra. Entre as causas desta guerra, ashavia distantes e próximas. As distantes eram os raptosrecíprocos e algumas mulheres da Europa e da Ásia, que, tendodado azo à guerra de Tróia, haviam ulcerado os corações dosAsiáticos contra os Gregos. As causas próximas eram ossocorros que os Atenienses haviam dado aos Iônios em suarevolta, a invasão da Iônia e o incêndio de Sardes pelosAtenienses. Os Persas, irritados com estas hostilidades,resolveram praticar uma vingança fragorosa. Os Persas atéentão eram pouco conhecidos dos Gregos. Era pois necessáriofazê-los conhecer esta nação, contra a qual haviam lutado comtanta glória. Para chegar a este fim, Heródoto tomou este povoem sua origem, e nos fez ver por que meios havia sacudido ojugo dos Medas; e, como isso não teria dado aos leitores idéiasbem claras e bem nítidas, foi preciso lhes apresentar umvislumbre rápido da história dos Medas. Esta história estava, elamesma, tão ligada com a dos Assírios, dos quais os Medastinham sido súditos, que foi preciso instruir os leitores damaneira pela qual romperam o jugo, e dar-lhes igualmente umasúmula da história da Assíria. Estas três histórias não são poissenão aperitivos. Não se pode desvendar uma sem tirar daobscuridade as duas outras; e se se suprime todas as três, não seterá senão um conhecimento muito imperfeito das dificuldadesque os Gregos tiveram de suplantar.

Ciro, tendo subjugado a Média, marcha de conquista emconquista. Esse poderio formidável dá inquietude a Creso. Ele a

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quer reprimir, e ao fazê-lo atrai sobre si as armas de Ciro; foibatido, e seu país conquistado. É ocasião para dar a conhecer osLídios. Heródoto não a deixa escapar, dando ao menos umesboço destes príncipes que tinham submetido a maioria dosGregos estabelecidos na Ásia. Contudo, como não perdia jamaisde vista o plano de sua História, não diz senão duas palavrassobre a origem do reino da Lídia, de seus progressos e de suadestruição. Ciro, após esta conquista, deixa a seus generais ocuidado de submeter os Gregos asiáticos; marcha em pessoacontra os Babilônios e os povos de sua dependência, e ossubjuga. Heródoto só se detém alguns instantes sobre os objetosos mais importantes e os mais interessantes. Assim não fala nemdos Báctrios nem dos Sácios, que Ciro havia subjugado. Se seestende sobre os Masságetas, é porque a guerra que lhes fezCiro lhe foi muito funesta, e porque pereceu em um combateque lhes deu.

Cambises, seu filho, sucedeu-o. Confiante em seupoderio, marchou contra o Egito. Este pais era então o maiscélebre que havia no mundo; e os Gregos começavam a viajarpara lá, mais por interesse comercial do que por curiosidade epelo desejo de se instruir, embora estes dois últimos motivostambém existissem. Era pois de última importância dar-lhesconhecimento deste país singular, de suas produções, costumese religião de seus habitantes, com uma relação sucinto de seusreis. Heródoto dedica a isso seu segundo livro. Submetido oEgito, Cambisses marcha contra os falsos Esmérdis, que haviamse revoltado contra ele; perece por um acidente. Pouco tempoapós sua morte, descobre-se a trapaça do mago Esmérdis; elefoi massacrado, e elegem por rei Dario. Este príncipe volta asubjugar os Babilônios que se haviam revoltado, e, como eramuito ambicioso, quer sujeitar os Citas. Estes povos só eramconhecidos por seus vizinhos, e pelos Gregos estabelecidos nascidades limítrofes à Cítia. Os Citas eram então para os Gregosobjeto de curiosidade tanto mais espicaçante à medida em quejá havia na Trácia e nas bordas do Ponto Euxino, quer na

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Europa como na Ásia, colônias gregas. Se nosso historiador nãose estendeu sobre estas povos com a mesma complacência quesobre os Egípcios, ao menos o faz com extensão suficiente paradar aos Gregos uma idéia da forma de seu governo e de seuscostumes, com uma descrição sucinta de seu país. Estadescrição é tão exata, que se encontra confirmada na maioria deseus pontos pelos relatos daqueles entre os modernos queviajaram pela Bulgaria, Moldávia, Bessarábia, Czernigow,Ucrânia, Criméia e os Cossacos do Don. Dario viu-se obrigadoa voltar vergonhosamento aos seus Estados. Os Iônios, que nãosabiam nem ser livres nem ser escravos, se revoltaram.

Levantam-se contando com o socorro dos Ateniensesque, entretanto, não só o deram medíocres. Com estes socorros,apossaram-se de Sardes e a incendiaram. Dario, compreendendoa parte que os Atenisenses tinham tido na tomada e no incêndiodesta cidade, jura vingar-se. Começa por colocar novamente sobjugo os Iônios. Submetidos os Iônios, envia contra osAtenienses um exército formidável. Os Persas foram batidos emMaratona. Com esta notícia, Dario, furioso, fez preparativosainda mais consideráveis. Nestes entretantos, tendo o Egito sesublevado, era necessário reduzi-lo. A revolta do Egito apenassuspendeu a vingança de Dario. Logo que este país foisubmetido, retomou o desejo de castigar os Atenienses; mas suamorte, que sobreveio logo depois, suspendeu sua execução.Xerxes, seu filho e sucessor, que não era nem menos ambiciosonem menos vingativo que seu pai, bão contente de castigar osAtenienses, queria também subjugar o resto da Grécia. Resolutoa marchar em pessoa contra os Gregos, levantou o exército maisnumeroso e mais formidável de que se ouviu falar. Equipouuma frota considerável, e durante diversos anos não se ocupousenão em fazer transportar para as cidades fronteiriças daGrécia os trigo e os víveres necessários à subsistência destamultidão inumerável de homens. Sofreu logo uma derrota nasTermópilas. Tendo sua frota a seguir sido batida em Salamina,voltou vergonhosamente à Àsia; mas, tendo deixado Mardônio

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na Grécia com a elite de suas tropas, este general, vencido naPlateia, pereceu na ação com a maioria de seu exercito. Nomesmo dia da batalha de Plateia, livrou-se em Mícale, na Cária,um sangrante combate. Os Gregos tiveram aí uma vitóriasignificativa.

É aqui que Heródoto termina sua História. Vê-se, poresta curta exposição, que há em todas as partes desta bela obrauma ligação íntima; que não se pode destrinçar nenhuma semtirar a obscuridade de outras; que nosso historiador caminhacom rapidez, e se pára às vezes pelo caminho, é só paraadministrar (ménager) a atenção de seus leitores, e parainstrui-los agradavelmente de tudo o que lhe é importante saber.

LARCHER

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Larcher

Pierre Henri Larcher (1726–1812), francês, foi umarqueólogo e erudito do século XVIII, nascido em Dijon. Apóster freqüentado um colégio de jesuítas na juventude, seus pais odestinavam a uma carreira na magistratura, mas ele se orientoupara as línguas e os escritores da antiguidade.

Apesar de anônima, sua tradução de Callirhoe, deChariton, em 1763, assinalou-o como um exclente eruditogrego. Seu ataque à Filosofia da história, que Voltaireescrevera sob o pseudônimo de Abbé Bazin, suscitouconsiderável interesse à época. Seu arqueológico e mitológicoMemoire sur Venus, de 1775, foi comparada a trabalhossimilares de Heyne e Winckelmann.

Traduzido um certo número de obras antigas de autoresgregos, tais como Eurípides e Xenofonte. Pela qualidade deseus trabalhos e o renome que adquirira nos estudos clássicoas,foi incorporado à Académie des Inscriptions et belles lettres.

Após a fundação da Universidade Imperial, foi indicadocomo professor de literatura Grega (1809) tendo Boissonadecomo seu assistente.

Seu trabalho mais memorável foi a tradução deHeródoto (1786), que levou 15 anos para completar e na qualtrabalhou até o fim de seus dias, acrescentando-lhe notas ecomparando-a com outras traduções.

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ÍNDICE DO 1.º VOLUME

LIVRO I — CLIO

OS PERSAS — OS MEDOS — BABILÔNIA — CRESO — CANDOLO E GIGÉS— SEMÍRAMIS — TÓMIRIS

LIVRO II - EUTERPE

EGITO — ÍSIS — O ORÁCULO DE DODONA — SESÓSTRIS — RAMPSINITO— HELIÓPOLIS — ELEFANTINA — O NILO — EMBALSAMAMENTOS —SEPULTURAS — OS DOZE REIS — PSAMÉTICO — VEGOS — PSÁMIS —ÁPRIES — AMÁSIS

LIVRO III - TÁLIA

EGITO — A PÉRSIA — CAMBISES — MÊNFIS — O BOI ÁPIS — A ETIÓPIA— POLÍCRATES — AMÁSIS — O FALSO ESMÉRDIS — DARIO — O CERCODE BABILÔNIA — ZÓPIRO

LIVRO IV - MELPÔMENE

A CÍTIA — HÉRCULES — OS GRIFÃOS — OS HIPERBÓREOS —DESCRIÇÃO DA TERRA — O POVO DE CÍLAX — COSTUMES DOS CITAS —ANACÁRSIS — A EXPEDIÇÃO DE DARIO — O PONTO EUXINO — ASAMAZONAS — OS TRÁCIOS — OS GETAS — A LÍBIA — O CULTO DO SOL

ÍNDICE DO 2.º VOLUME

LIVRO V - TERPSÍCORE

CONTINUAÇÃO DA HISTÓRIA DE DARIO — ATENAS E ESPARTA — OSPISISTRÁTIDAS — CLEÓMENES — AS ESTÁTUAS DE EGINA — ORIGEM DAINIMIZADE ENTRE OS ATENIENSES E OS EGINETAS — CÍPSELO, TIRANO DECORINTO — HÍPIAS — TOMADA DE SARDES PELOS IÔNIOS E PELOSATENIENSES — DARIO LANÇA UMA FLECHA CONTRA O CÉU, PEDINDO AOSDEUSES QUE O VINGUEM DOS ATENIENSES — TODAS AS CIDADES DOHELESPONTO, DA IÔNIA E DA EÓLIA SUBMETIDAS PELOS PERSAS, ETC.

LIVRO VI - ÉRATO

DARIO APODERA-SE DE MILETO — O POETA FRINICO — DARIO MANDAPEDIR TERRA E ÁGUA AOS POVOS DA GRÉCIA — PRERROGATIVAS DOSREIS DE ESPARTA — TOMADA DE ERÉTRIA PELOS PERSAS — CLEÓMENES— SUA MORTE — OS PERSAS ATACAM ATENAS — A BATALHA DEMARATONA — MILCÍADES — OS ESPARTANOS SÓ CHEGAM DEPOIS DA

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VITÓRIA — MILCÍADES DIANTE DE PAROS — O MALOGRO DE SUAEXPEDIÇÃO — CONDENADO A UMA MULTA — OS PELASGOS — LEMNOS

LIVRO VII - POLÍMNIA

A MORTE DE DARIO — XERXES SUCEDE-O NO TRONO — SUBMETE OEGITO — QUER VINGAR-SE DOS GREGOS E FAZER DA TERRA UM SÓIMPÉRIO — REÚNE UM CONSELHO — RESOLVIDA A GUERRA CONTRA AGRÉCIA — MANDA PERFURAR O MONTE ATOS — PÍTIO — UMA PONTELANÇADA SOBRE O MAR — O EXÉRCITO DESFILA DIANTE DE XERXESDURANTE SETE DIAS E SETE NOITES SEM INTERVALO — ENUMERAÇÃO ÀMANEIRA DE HOMERO — PASSANDO EM REVISTA A FROTA — XERXESCONSULTA DEMARATO — O ARAUTO DE ESPARTA DIANTE DE XERXES —TEMÍSTOCLES — EMBAIXADA A GÉLON — AS TERMÓPILAS — LEÔNIDAS— DIENECES — INSCRIÇÃO NAS TERMÓPILAS

LIVRO VIII - URÂNIA

TEMÍSTOCLES — COMBATE NAVAL PERTO DE ARTEMÍSIO — OS GREGOSSE RETIRAM — OS PERSAS ATINGIDOS POR UM RAIO PERTO DO TEMPLO DEDELFOS — A BATALHA NAVAL DE SALAMINA — XERXES ASSISTE ÀBATALHA — ARISTIDES NA FROTA — A CORAGEM DE ARTEMISA —DISCURSO DE MARDÔNIO A XERXES — DESASTRE DOS PERSAS —TEMÍSTOCLES DETÉM-SE NA PERSEGUIÇÃO AO INIMIGO — XERXES GANHAO HELESPONTO E RETIRA-SE PARA A ÁSIA — MARDÔNIO PERMANECE ÀFRENTE DE TREZENTOS MIL HOMENS — ATENAS E ESPARTA REPELEM ASPROPOSTAS DE PAZ

LIVRO IX - CALÍOPE

MARDÔNIO APODERA-SE DE ATENAS PELA SEGUNDA VEZ — OSATENIENSES ENVIAM EMBAIXADORES A ESPARTA — LÍCIDAS ÉTORTURADO — MORTE DE MASÍSTIO, GENERAL PERSA — TISÂMENOTORNA-SE CIDADÃO DE ESPARTA — BATALHA DE PLATEIA — MORTE DEMARDÔNIO — SAQUE DO ACAMPAMENTO — OS GREGOS MARCHAMCONTRA TEBAS PARA VINGAR-SE DA TRAIÇÃO DOS SEUS HABITANTES —BATALHA NAVAL DE MÍCALE, GANHA NO MESMO DIA DA BATALHA DEPLATEIA — CERCO DE SESTO — FUGA DOS PERSAS — ARTAÍCTESCONDENADO À MORTE

Notas

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LIVRO I

CLIOOS PERSAS — OS MEDOS — BABILÔNIA — CRESO —

CANDOLO E GIGÉS — CIRO — SEMÍRAMIS — TÔMIRIS,ETC.

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Ao escrever a sua História, Heródoto de Halicarnassoteve em mira evitar que os vestígios das ações praticadas peloshomens se apagassem com o tempo e que as grandes emaravilhosas explorações dos Gregos, assim como as dosbárbaros, permanecessem ignoradas; desejava ainda, sobretudo,expor os motivos que os levaram a fazer guerra uns aos outros.

I — Os Persas mais esclarecidos atribuem aos Fenícios acausa dessas inimizades. Dizem eles que esse povo, tendo vindodo litoral da Eritréia para as costas do nosso país, empreendeulongas viagens marítimas, logo depois de haver-se estabelecidono país que ainda hoje habita, transportando mercadorias doEgito e da Assíria para várias regiões, inclusive para Argos.Esta cidade era, então, a mais importante de todas as do paísconhecido atualmente pelo nome de Grécia. Acrescentam quealguns fenícios, ali desembarcando, puseram-se a vendermercadorias, e que cinco ou seis dias após sua chegada, quaseconcluída a venda, grande número de mulheres dirigiu-se àbeira-mar. Entre elas estava a filha do rei. Esta princesa, filhade Inaco, chamava-se Io, nome por que era conhecida pelosGregos. Quando as mulheres, postadas junto aos barcos,compravam objetos de sua preferência, os fenícios, incitandouns aos outros, atiraram-se sobre elas. A maior parte delaslogrou fugir, mas Io foi capturada, juntamente com algumas desuas companheiras. Os fenícios conduziram-nas para bordo efizeram-se à vela em direção ao Egito.

II — Eis como, segundo os Persas — nisto pouco deacordo com os Fenícios — Io veio parar no Egito. Essa questãofoi o início de todas as outras. Acrescentam os Persas que,pouco depois, alguns gregos, cujos nomes não gravaram, vierama Tiro, na Fenícia, e raptaram Europa, filha do rei. Eram, semdúvida, Cretenses. Ficaram, assim, quites os dois povos, mas osGregos tornaram-se depois culpados de uma segunda ofensa.Dirigiram-se num grande navio a Aea, na Cólquida, sobre o

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Faso, e, ultimados os negócios que ali os levaram, arrebataramMedéia, filha do rei, e tendo esse príncipe enviado umembaixador à Grécia para exigir a entrega da filha e a reparaçãoda injúria, responderam-lhe que, como os Colquidenses nãohaviam dado nenhuma satisfação pelo rapto de Io, eles não odariam absolutamente pelo de Medéia.

III — Dizem ainda os Persas que na geração seguinte,Páris, filho de Príamo, tendo ouvido falar no caso, quis tambémraptar e possuir uma mulher grega, persuadido de que se outrosnão foram punidos, não o seria também. Raptou, então, Helena;mas os Gregos resolveram, antes de qualquer outra iniciativa,enviar embaixadores para exigir a devolução de Helena e pedirsatisfações.

Os Troianos, além de invocar aos Gregos o rapto deMedéia, ainda os censuraram por exigirem satisfações, uma vezque eles não as tinham dado aos outros e nem entregue a pessoareclamada.

IV — Até então, não houvera de uma parte e de outramais do que raptos; mas depois do acontecido, os Gregos,julgando-se ofendidos em sua honra, fizeram guerra à Ásia,antes que os asiáticos a declarassem à Europa. Ora, conquantolícito não seja raptar mulheres, dizem os Persas, é loucuravingar-se de um rapto. Manda o bom senso não fazer caso disso,pois sem o seu próprio consentimento decerto não teriam asmulheres sido raptadas. Asseguram os Persas que, emboraasiáticos, ainda não haviam tido conhecimento de casossemelhantes, naquela parte do mundo. Entretanto, os Gregos,por causa de uma mulher lacedemônia, equiparam uma frotanumerosa, desembarcaram na Ásia e destruíram o reino dePríamo. Desde essa época, os Persas passaram a encarar osGregos como inimigos, pois julgam que a Ásia lhes pertencetanto quanto as nações bárbaras que ocupam, enquantoconsideram a Europa e a Grécia como formando um continente

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à parte.

V — Tal é a maneira pela qual os Persas narram essesacontecimentos. À tomada de Tróia atribuem eles a causa doseu ódio aos Gregos. No que concerne a Io, os Fenícios nãoestão de acordo com os Persas. Dizem não ter havido rapto; queapenas a conduziram ao Egito com o seu próprioconsentimento. Vendo-se grávida, a princesa, receando a cólerados pais, entrou em entendimento com o comandante do naviofenício, em Argos, com ele partindo, a fim de ocultar suadesonra. Eis aí como Persas e Fenícios narram os fatos. Quantoa mim, não pretendo absolutamente decidir se as coisas sepassaram dessa ou de outra maneira; e depois de ter narrado oque conheço sobre o primeiro autor das injúrias feitas aosGregos, prossigo minha história, na qual tratarei tanto dospequenos Estados como dos grandes. Os outrora florescentes,encontram-se hoje, na sua maioria, em completa decadência, eos que florescem hoje, eram outrora bem pouca coisa.Persuadido da instabilidade da ventura humana, estou decididoa falar igualmente de uns e de outros.

VI — Creso era lídio por nascimento, filho de Aliata erei das nações banhadas pelo Hális, no seu curso. Este rio, corredo sul, atravessa os países dos Sírios e dos Paflagônios, edesemboca ao norte, no Ponto Euxino. Pelo que me é dadosaber, foi o príncipe o primeiro bárbaro a forçar uma parte daGrécia a lhe pagar tributo e não ter-se aliado com a outra.Submeteu os Iônios, os Eólios e os Dórios estabeledos na Ásia,e fez aliança com os Lacedemônios. Antes do seu reinado, todosos gregos eram livres. A expedição dos Cimerianos contra aJônia, anterior a Creso, não fez mais do que arruinar as cidades,pois não passou de incursão seguida de pilhagem.

VII — Eis como o poder soberano, tendo pertencido aosHeraclidas, passou para a casa dos Mermnadas, a que pertenciaCreso. Candolo, a quem os Gregos chamavam Mirsila, reinou

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tiranicamente em Sardes. Descendia de Hércules por Alceu,filho desse herói; Agron, filho de Nino, neto de Belos e bisnetode Alceu foi o primeiro dos Heraclidas a reinar em Sardes, eCandolo, filho de Mírsus, o último. Os reis desse país,anteriores a Agron, descendiam de Lídus, filho de Átis, de ondeo nome de Lídios dado a todos os povos da região, outroraconhecidos por Meonianos. Finalmente, os Heraclidas,descendentes de Hércules e de uma escrava de Jardanus, e aosquais esses príncipes haviam confiado o poder, obtiveram oreino em virtude de um oráculo, reinando de pai a filho, peloespaço de quinhentos e cinco anos, através de vinte e duasgerações, até Candolo, filho de Mírsus.

VIII — Era tal a loucura que esse príncipe devotava àesposa, que julgava possuir nela a mais bela de todas asmulheres. Obcecado pela paixão, não cessava de exagerar-lhe abeleza a Gigés, filho de Dascílus, um dos guardas a quem muitoestimava e fazia confidente dos seus mais importantes segredos.Pouco tempo depois, Candolo (não podia evitar sua desgraça)assim falou a Gigés: “Parece-me que não acreditas no que tedigo sobre a beleza de minha mulher. Os ouvidos são menoscrédulos do que os olhos. Faze, pois, o possível de vê-la nua”.“Que linguagem insensata, senhor! — exclamou Gigés —Refletis no que dizeis? Ordenar a um escravo que veja nua suasoberana? Esqueceis que uma mulher desfaz-se do seu pudorquando se despe? Entre as grandes máximas formuladas hámuito pelos homens e que nos cumpre adotar, uma das maisimportantes é a de que não devemos olhar senão o que nospertence. Estou convencido de que possuís a mais bela de todasas mulheres, mas não exigi de mim, peco-vos, uma coisa tãodesonesta”.

IX — Assim Gigés recusava a proposta do rei, receandoque acontecesse alguma desgraça. “Tranqüiliza-te, Gigés; —disse-lhe Candolo — nada tens a temer de mim. Não estouabsolutamente armando um laço para te experimentar, nem tão

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pouco tua rainha; ela não te fará nenhum mal. Arranjarei ascoisas de maneira que ela nem mesmo saberá que a viste.Ocultar-te-ei atrás da porta do nosso quarto de dormir. A portaficará aberta. À entrada do quarto há uma poltrona, onde arainha, ao recolher-se ao leito, depositará as vestes à medidaque as for tirando. Assim terás muito tempo para apreciá-la.Quando, da poltrona, ela se encaminhar para o leito, terá devoltar-te as costas. Aproveitarás então o momento para escaparsem ser visto.”

X — Gigés, não podendo fugir à situação, declarou-sepronto a obedecer. Candolo, à hora de dormir, conduziu-o aoquarto, para onde a rainha não tardou a se dirigir. O guardaviu-a despir-se, e enquanto ela lhe voltava as costas paraalcançar o leito, esgueirou-se para fora do aposento; mas arainha percebeu-lhe a presença. Compreendeu o que o maridohavia feito e suportou o ultraje em silêncio, fingindo nada ternotado, mas decidindo, no fundo do coração, vingar-se deCandolo; pois entre os Lídios, como entre quase todos os povosbárbaros, constitui um opróbrio, mesmo para um homem, omostrar-se nu.

XI — A rainha permaneceu assim tranqüila e sem deixartransparecer seu pensamento; mas logo ao romper do diaassegurou-se das disposições dos seus mais fiéis oficiais emandou chamar Gigés. Longe de imaginá-la a par de tudo, eleatendeu-lhe a ordem, como estava habituado a fazer, sempreque ela o chamava. Quando chegou, a princesa disse-lhe:“Gigés, eis aqui dois caminhos que te dou a escolher; decide-teimediatamente: obtém pelo assassinato de Candolo minha mãoe o trono da Lídia, ou a morte te impedirá de ver, de ora emdiante, por uma cega obediência a Candolo, o que te é vedado.É preciso que um dos dois pereça: o que te deu essa ordem, outu, que me viste nua, desprezando todas as conveniências”. Antetais palavras, Gigés permaneceu suspenso por alguns instantes.Depois suplicou à rainha que não o expusesse à contingência de

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tão dura escolha. Vendo a impossibilidade de dissuadi-la e aurgência absoluta de eliminar o soberano ou decidir-se a morrer,preferiu poupar a si próprio.

“Já que me forçais — disse ele à rainha — a matar omeu senhor, dizei-me como deverei fazê-lo”. “— Será nopróprio lugar onde me viste nua que te lançarás sobre ele;deverás atacá-lo durante o sono”.

XII — Traçados os planos, ela tomou suas providênciaspara evitar que o escravo pudesse, por qualquer meio, escapar àsituação. Um dos dois teria de perecer: ou ele ou Candolo. Aocair da noite, a rainha introduziu-o no quarto, armado de umpunhal, e escondeu-o atrás da porta. Mal Candolo haviaadormecido, Gigés avançou sem ruído e apunhalou-o,apoderando-se, assim, da esposa e do trono. Arquíloco de Paros,que vivia nesse tempo, faz referência a esse príncipe numpoema composto em versos jâmbicos trimétricos.

XIII — Gigés subiu, assim, ao trono, e ali foiconfirmado pelo oráculo de Delfos. Os Lídios, indignados coma morte de Candolo, haviam, a princípio, pegado em armas, masconcordaram com os partidários de Gigés que, se o oráculo aeste reconhecesse como rei, a coroa ficaria mesmo com ele; deoutra maneira, ela voltaria para os Heraclidas. O oráculopronunciou-se favoravelmente a Gigés, ficando-lhe asseguradaa posse do trono. Todavia, a pitonisa acrescentou que osHeraclidas seriam vingados na quinta geração do príncipe. Nemos Lídios, nem os seus reis tiveram em conta semelhanteadvertência até ser ela justificada pelos fatos. E foi assim que osMermnadas se apoderaram da coroa, arrebatando-a aosHeraclidas.

XIV — Gigés, senhor da Lídia, fez a Delfos váriasoferendas, das quais grande parte em dinheiro. Acrescentoumuitos vasos de ouro aos já existentes no templo, bem comoseis crateras de ouro, com o peso de trinta talentos, dádiva cuja

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memória merece ser conservada. Essas oferendas estãoincluídas no tesouro dos Coríntios, embora, a bem dizer, essetesouro não pertença absolutamente à república de Corinto, masa Cípselo, filho de Etion. Gigés foi, depois de Midas, filho deGórdio, rei da Frígia, o primeiro dos bárbaros conhecidos afazer oferendas a Delfos. Midas tinha presenteado o templo como trono no qual costumava fazer justiça. Esse trono constituiobra digna de ser vista. Está colocado no mesmo lugar onde seencontram as crateras de Gigés. De resto, os habitantes deDelfos chamam as oferendas em ouro e prata de “gigeados”, donome daquele que as fez.

Quando o príncipe viu-se senhor do reino, organizouuma expedição contra as cidades de Mileto e Esmirna, eapoderou-se da de Cólofon. Todavia, como nada mais realizoude notável durante um reinado de trinta e oito anos,contentamo-nos em reportar esse fato, não falando mais em talreinado.

XV — Passemos agora ao seu filho Árdis. Este príncipe,sucedendo ao pai, subjugou o povo de Priena e entrou com umexército no território de Mileto. Sob o seu reinado, os Cimérios,expulsos do país pelos Citas nômades, vieram para a Ásia etomaram Sardes, com exceção da cidadela.

XVI — Árdis reinou durante quarenta e nove anos eteve por sucessor o filho Sadiata, que reinou por doze anos.Aliata sucedeu Sadiata. Fez guerra aos Medos e a Ciaxares, netode Déjoces; expulsou os Cimérios da Ásia; assenhoreou-se dacidade de Esmirna, colônia de Cólofon, e atacou tambémClasomene, levantando, porém, o cerco, bem contra a vontade,depois de haver sofrido duro revés. Praticou ainda, durante seureinado, outros feitos. Vou referir-me aos mais memoráveis.

XVII — Tendo seu pai desistido da guerra contra osMilésios, ele a continuou e atacou Mileto, da maneira que vounarrar: Quando os frutos da terra tinham amadurecido, partiu

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em campanha. O exército marchava ao som das charamelas, dasharpas e das flautas masculinas e femininas(1). Ao chegar àsterras dos Milésios, o príncipe não permitiu que se destruíssemas quintas, nem que a elas ateassem fogo ou lhe arrancassem ascancelas; deixou-as permanecer no estado em que se achavam;mas cortou as árvores e devastou os trigais, depois do que seretirou, pois, sendo os Milésios senhores do mar, era inútilbloquear a cidade com um exército. Quanto às casas, Aliata nãoas fez destruir, para que os Milésios, tendo onde alojar-se,continuassem a semear e a cultivar suas terras, e ele tivesse oque devastar numa segunda invasão.

XVIII — Fez-lhes, dessa maneira, guerra durante onzeanos. No decurso dessas campanhas, os Milésios sofreram duasderrotas consideráveis: uma em batalha travada no próprio país,num lugar denominado Limeneion; outra na planície deMeandro. Dos onze anos de luta, seis pertencem ao reinado deSadiata, filho de Árdis, que naquele tempo ainda reinava naLídia. Foi ele quem reativou a guerra, entrando à frente de umexército no país de Mileto. Aliata continuou-a com vigor noscinco anos seguintes, como dissemos atrás. De todos os iônios,foram os de Quios os únicos a socorrer os habitantes de Mileto.Enviaram-lhes tropas, em retribuição ao socorro deles recebidona guerra que sustentaram contra os Eritreus.

XIX — Afinal, no décimo segundo ano, tendo osexércitos de Aliata ateado fogo aos trigais, aconteceu que aschamas, impelidas por forte vento, atingiram o templo deMinerva, denominado Assessiavo, reduzindo-o a cinzas. Osinvasores não deram, a princípio, nenhuma atenção a esseacidente; mas Aliata, de volta a Sardes com seus exércitos,tendo caído enfermo e vendo a moléstia prolongar-se, enviou aDelfos delegados para consultar o oráculo sobre o caso, ouporque tivesse tomado essa resolução por si mesmo, ou porqueela lhe houvesse sido sugerida. Em Delfos, a pitonisa declarouaos delegados que nenhuma resposta daria à consulta enquanto

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não reerguessem o templo de Minerva, por eles queimado emAssessos, na terra dos Milésios.

XX — Ouvi dizer, entre os habitantes de Delfos, que ascoisas se passaram dessa maneira; mas os Milésios acrescentamque Periandro, filho de Cípselo, amigo íntimo de Trasibulo,tirano de Mileto, ao inteirar-se da resposta do oráculo a Aliata,enviou um correio a Trasibulo, a fim de instruí-lo comantecedência sobre a decisão dos deuses, tomando medidas deacordo com as circunstâncias. Eis como, dizem os Milésios, seteriam passado as coisas.

XXI — Aliata, assim que recebeu o oráculo, enviou àspressas um arauto a Mileto, para negociar uma trégua comTrasibulo e os Milésios, até a reconstrução do templo. Enquantoo arauto se achava a caminho de Mileto, Trasibulo, beminformado de tudo e não ignorando, absolutamente, os desígniosde Aliata, percebeu a manobra. Mandou que todo o trigo quehavia em Mileto, tanto em seus celeiros como nos dosparticulares, fosse levado à praça pública, e ordenou, emseguida, aos Milésios, que bebessem e se entregassem aexpansões de alegria a um sinal por ele dado.

XXII — Trasibulo divulgou essas ordens, para que oarauto, vendo tão grande quantidade de trigo e os habitantesentregues a tamanho regozijo, fosse relatar o fato a Aliata, o quenão deixou de acontecer. O arauto, testemunhando a abundânciareinante em Mileto, voltou a Sardes, logo depois de havercomunicado a Trasibulo as ordens do rei da Lídia. Foi isso,como tive notícia, a causa única do restabelecimento da pazentre esses dois príncipes. Aliata estava persuadido de que aescassez de víveres era grande em Mileto e que o povo seachava reduzido a extrema penúria. Ficou pois surpreendido aosaber, pelo seu arauto, da fartura ali existente. Algum tempodepois, os dois príncipes assinaram um tratado, cujas condiçõesforam a de viverem como amigos e aliados. Em lugar de um

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templo, Aliata construiu dois a Minerva, em Assessos, erecuperou a saúde. Assim passaram-se as coisas na guerra queAliata fez a Trasibulo e aos Milésios.

XXIII — O Periandro de que falei há pouco e quecomunicou a Trasibulo a resposta do oráculo, era filho deCípselo e reinava em Corinto. Os habitantes da cidade contamhaver acontecido nesse tempo um fato realmente extraordinário,e os Lesbianos são os primeiros a confirmá-lo. Dizem que Ariãode Metimna, o mais hábil tocador de cítara então existente e oprimeiro, que eu saiba, a fazer e a dar nome ao ditirambo, foicarregado nas costas de um delfim até Tenara.

XXIV — Eis como se conta o fato: Arião, depois dehaver permanecido por longo tempo na corte de Periandro, tevevontade de navegar para a Sicília e a Itália. Havendo acumuladono país muitos bens, resolveu retornar a Corinto. Aprestou-separa deixar Tarento e alugou um navio coríntio, por confiarmais nesse povo do que em qualquer outro.

Quando se instalou no navio, os coríntios tramaram-lhea perda; combinaram atirá-lo ao mar para se apoderarem de suasriquezas. Arião, percebendo-lhes o propósito, ofereceu-lhesseus bens, pedindo-lhes para lhe pouparem a vida. Mas, longede se comoverem com tais súplicas, os coríntios ordenaram-lheque se suicidasse, se queria ser enterrado, ou se lançasseimediatamente ao mar. Levado a tão terrível dilema, Ariãosuplicou-lhes que, já que lhe haviam decidido a perda, lhepermitissem vestir os seus mais belos trajes e cantar notombadilho, prometendo matar-se logo em seguida. Naexpectativa de ouvir o mais hábil dos músicos, seus captoresretiraram-se da popa para o meio do navio. Arião adornou-secom seus mais ricos trajes, tomou da cítara, subiu aotombadilho e entoou uma ária ortiana(2). Ao terminá-la,atirou-se ao mar, tal como se encontrava. Enquanto o naviovelejava na direção de Corinto, um delfim, dizem, recebeu

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Arião nas costas e o conduziu a Tenara, onde o cantor pulou emterra, encaminhando-se para Corinto, sem trocar de roupas econtando a todos sua aventura. Periandro, não podendo dar fé ànarrativa, manteve-o sob custódia, aguardando a chegada dosmarinheiros. Logo que os soube na cidade, fê-los vir a suapresença e pediu-lhes notícias de Arião. Responderam-lhe que ohaviam deixado com boa saúde em Tarento, na Itália, onde asorte lhe era favorável. Arião apareceu, de repente, diante deles,tal como o tinham visto precipitar-se no mar. Tomados deassombro ante aquela aparição, não ousaram negar o crime. OsCoríntios e os Lesbianos contam assim essa história, e existe emTenara uma pequena estátua de bronze representando umhomem sobre um delfim, erguida em homenagem a Arião.

XXV — Aliata, rei da Lídia, faleceu algum tempodepois de terminar a guerra contra Mileto, tendo reinadocinqüenta e sete anos. Foi o segundo príncipe da dinastia dosMermnadas a enviar presentes a Delfos, depois de haverrecuperado a saúde: uma cratera de prata e um piresadamascado, a mais preciosa de todas as oferendas que se viamem Delfos. Era obra de Glauco de Quios, descobridor da arte desoldar o ferro.

XXVI — Morrendo Aliata, seu filho Creso subiu aotrono, com a idade de trinta e cinco anos. Éfeso foi a primeiracidade grega a ser atacada por esse príncipe. Seus habitantes,vendo-se cercados, colocaram-na sob a proteção de Diana,ligando as muralhas ao templo da deusa por meio de uma corda.Depois de haver feito guerra aos Éfesos, Creso atacousucessivamente os Iônios e os Eólios, alegando motivos graves,quando podia encontrá-los, ou, em caso contrário, pretextosfrívolos e desarrazoados.

XXVII — Tendo subjugado os gregos da Ásia,obrigando-os a pagar-lhe tributos, pensou equipar uma frotapara atacar os gregos insulares. Tudo estava pronto para a

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construção dos navios, quando Bias de Priéne ou, segundooutros, Pitacus de Mitileno, veio a Sardes. Perguntando-lheCreso se havia na Grécia algo de novo, sua resposta fez cessaros preparativos. “Príncipe, — disse-lhe ele — os insulares,estão adquirindo grande quantidade de cavalos, com o propósitode vir atacar Sardes e combater-te”. Creso, julgando ser istoverdade, redarguiu: “Possam os deuses inspirar aos insulares odesejo de atacar os Lídios com cavalaria!” “Parece-me, senhor,— volveu Bias — que desejais ardentemente dar-lhes combatea cavalo, no continente, e vossas esperanças são fundadas; maslogo que souberem que preparais uma frota para atacá-los,aprestar-se-ão imediatamente para surpreender os Lídios nomar, pois outra coisa não aspiram senão vingar em vós osgregos do continente, por vós reduzidos à escravidão”. Creso,encantado com esta observação, que lhe pareceu muito sensata,abandonou o projeto e fez aliança com os Iônios das ilhas.

XXVIII — Em seguida, subjugou Creso quase todas asnações aquém do rio Hális (exceto os Cilicianos e os Licianos),a saber: os Frígios, os Misianos, os Mariandinianos, osChalibas, os Paflagônios, os Trácios da Ásia (os Tínios e osBitínios), os Cários, os Iônios, os Dórios, os Eólios e osPanfílios.

XXIX — Todos esses povos, submetidos e incorporadospor Creso à Lídia, tinham tornado Sardes florescente e rica. Acidade atraiu os maiores sábios gregos da época, entre os quaisSólon, o Ateniense. Depois de haver dado leis aos compatriotasque lhas haviam pedido, Sólon viajou durante dez anos, com opretexto de observar os usos e costumes de diferentes nações,mas, na realidade, para não ver-se constrangido a revogaralgumas das leis que elaborara, pois os Atenienses não tinhampoderes para isso, obrigados como estavam, por juramentosolene, a cumprir, durante dez anos, as leis que lhes fossemimpostas.

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XXX — Sólon, tendo saído de Atenas por esse motivoe, também, para satisfazer a curiosidade, dirigiu-seprimeiramente ao Egito, à corte de Amasis, e de lá a Sardes, àde Creso, que o recebeu com distinção e o alojou no própriopalácio real. Três ou quatro dias depois de sua chegada, foiconduzido, por ordem do príncipe, ao tesouro, onde Creso lhemostrou todas as suas riquezas. Quando Sólon já tinha visto eobservado bem tudo, o rei falou-lhe nestes termos: “A notíciade tua sabedoria e de tuas viagens chegou até nós; e não ignoroabsolutamente que, percorrendo tantos países, não tens outrofim senão o de instruir-te sobre as suas leis, seus costumes eaperfeiçoar teus conhecimentos. Quero que me digas qual ohomem mais feliz que viste até hoje”. Naturalmente, o soberanolhe fazia esta pergunta por julgar-se o mais feliz dos mortais. “ÉTelo de Atenas” — tespondeu Sólon sem lisonjeá-lo e semdisfarçar a verdade. Ante essa resposta, volveu Creso: “Por quejulgas Telo tão feliz?” “Porque, residindo numa cidadeflorescente, — continuou Sólon — teve dois filhos lindos evirtuosos, e cada um lhe deu netos, que viveram muitos anos, eafinal, depois de haver usufruído uma fortuna considerável emrelação às do nosso país, terminou os seus dias de maneiraadmirável: num combate dos Atenienses com seus vizinhos deEleusis. Saindo em socorro dos primeiros, pôs em fuga osinimigos e pereceu gloriosamente. Os Atenienses ergueram-lheum monumento por subscrição pública, no próprio local ondeele tombou morto, e lhe tributaram grandes honras”.

XXXI — Um tanto decepcionado diante da revelação deSólon sobre a felicidade de Telo, Creso voltou a perguntar-lhequem, depois desse ateniense, considerava ele o mais feliz doshomens, não duvidando, absolutamente, que o segundo lugarlhe pertencia. “Cléobis e Biton” — respondeu Sólon. “Eramárgios e desfrutavam as rendas de pecúlio honesto. Eram, poroutro lado, tão fortes, que haviam ambos conquistado prêmiosnos jogos públicos. Conta-se sobre eles o seguinte caso: OsÁrgios celebravam uma festa em honra de Juno. A mãe desses

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dois jovens tinha absoluta necessidade de ir ao templo numcarro, e os bois tardavam a chegar do campo. Os rapazes, vendoo tempo passar, puseram-se eles mesmos sob a canga, epuxando o carro, no qual ia a mãe, conduziram-no assim, numadistância de quarenta e cinco estádios, até o templo da deusa.Depois dessa bela ação, testemunhada por grande número depessoas, terminaram seus dias da maneira mais ditosa,pretendendo a divindade, com isso, mostrar que é maisvantajoso para o homem morrer do que viver: Os Árgios,reunidos em torno dos dois jovens, louvaram-lhes oprocedimento, enquanto as mulheres felicitavam a sacerdotisapor possuir tais filhos. Esta, no auge da alegria, cumulada deelogios, de pé, junto à estátua, pediu à deusa que concedesseaos dois jovens, Cléobis e Biton, que a tinham honrado tanto, amaior felicidade que pode alcançar um mortal. Terminada aprece, depois do sacrifício e do festim solene, os rapazesadormeceram no próprio templo, para não mais despertar. OsÁrgios ergueram estátuas a ambos e os consagraram a Delfos,como homens perfeitos”.

XXXII — Sólon concedia, com esse discurso, o segundolugar a Cléobis e Biton. “Ateniense, — replicou Creso colérico— fazes tão pouco caso da minha felicidade, que me julgasindigno de ser comparado com homens comuns?” “Ó Creso, —volveu Sólon — perguntais-me o que penso da vida humana;poderia responder-vos de outra maneira, eu que sei como adivindade tem ciúme da ventura dos seres humanos e como seapraz em perturbá-la. Numa longa peregrinação pela terravemos e sofremos muitas coisas desagradáveis. Dou a umhomem setenta anos como o mais longo tempo de vida. Essessetenta anos fazem vinte e cinco mil e duzentos dias, omitindoos meses intercalados; mas se a cada seis anos acrescentardesum mês, para que as estações caiam precisamente no tempocerto, em setenta anos tereis doze meses intercalados, menos aterça parte de um mês, perfazendo trezentos e cinqüenta dias, osquais, acrescentados aos vinte e cinco mil e duzentos, darão

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vinte e cinco mil quinhentos e cinqüenta dias. Ora, entre essesvinte e cinco mil quinhentos e cinqüenta dias, perfazendosetenta anos, não encontrareis um que não traga umacontecimento semelhante a outros. É preciso convir, senhor,que o homem não é senão vicissitudes. Possuís certamenteriquezas consideráveis e reinais sobre um grande povo, mas nãoposso responder à vossa pergunta sem saber se terminareis osvossos dias na abundância; pois o homem cumulado de riquezasnão é superior àquele que possui o necessário, a menos que aboa sorte o acompanhe e que, gozando de todas essas espéciesde bens, termine venturosamente a existência. Nada maiscomum do que a desgraça na opulência e a ventura naobscuridade. Um homem imensamente rico mas infeliz temapenas duas vantagens sobre o feliz, enquanto que este contacom grande número delas sobre o rico infeliz. O homem ricoestá mais em condições de satisfazer seus desejos e de suportargrandes perdas, mas se o outro não pode resistir a essas perdas,nem contentar os desejos, sua felicidade o põe a coberto deumas e de outros. Aliás, admitindo que ele esteja no uso detodos os seus membros, goze de boa saúde, não sofra nenhumdesgosto e seja feliz com os filhos; se a todas essas vantagensacrescentardes a de uma morte gloriosa, aí tereis o homem queprocurais. Ele, sim, merece a classificação de feliz. Mas, antesda morte, evitai julgá-lo; não lhe deis esse nome; considerai-osomente bem aquinhoado.

“É impossível um homem reunir as condiçõesnecessárias à felicidade da mesma maneira que nenhum paíspossui todos os bens de que necessita. Se conta com uns, estásempre privado de outros; o melhor será o que possuir maiornúmero deles. Assim acontece com o homem: não há um que sebaste a si mesmo. Se possui algumas vantagens, outras lhefaltam. Quem reúne maior número e o conserva até o fim dosdias, deixando tranqüilamente a vida, este, senhor, merece, naminha opinião, ser chamado feliz. Devemos considerar otérmino de todas as coisas e ver que nisso se encontra a única

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saída; pois Deus, depois de entremostrar a felicidade a certoshomens, costuma destruí-la por completo de um momento paraoutro.”

XXXIII — Assim falou Sólon. Nada dissera deagradável a Creso e não lhe havia testemunhado a menorestima. Por isso, foi logo despedido. Provavelmente, tratou-sede ignorante um homem que, sem dar importância aos benspresentes, queria que em tudo se encarasse sempre o fim.

XXXIV — Depois da partida de Sólon, a vingança dosdeuses caiu de maneira terrível sobre Creso, em punição, comose pode conjecturar, por julgar-se ele o mais feliz dos homens.Um sonho, nessa ocasião, anunciou-lhe os infortúnios quepesavam sobre um dos seus filhos. Creso possuía dois filhos,um dos quais vitimado por uma desgraça de nascença: erasurdo-mudo. O outro, de nome Átis, mostrava-se em tudosuperior aos jovens de sua idade. O sonho anunciou que Átispereceria numa ponta de ferro. Ao despertar, o soberanoentregou-se a profundas reflexões. Temendo pelo filho,escolheu-lhe uma esposa e afastou-o do exército, à frente doqual costumava enviá-lo. Mandou retirar os dardos, as lanças etoda espécie de armas usadas na guerra, dos alojamentos dossoldados, onde, segundo o costume, eram suspensas na parede,e guardá-las em depósito, temeroso de que uma delas caíssesobre o filho.

XXXV — Enquanto Creso se ocupava das núpcias dojovem príncipe, chegou a Sardes um infeliz, cujas mãosestavam impuras. Tratava-se de um frígio, em cujas veias corriasangue real. Dirigindo-se ao palácio, pediu a Creso parapurificá-lo, no que foi atendido. As expiações entre os Lídiosassemelham-se muito às praticadas na Grécia. Depois dacerimônia, Creso quis saber de onde vinha aquele homem equem era. “Estrangeiro, — disse-lhe ele — de que parte daFrígia vieste para sentar em tom suplicante à minha lareira?

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Que homem, que mulher mataste?” “Senhor, sou filho deGórdio e neto de Midas. Chamo-me Adrasto. Matei meu irmão,sem o querer. Expulso por meu pai e despojado de tudo, vimprocurar aqui um asilo”. “Descendes de uma família que muitoestimo — volveu Creso. — És meu amigo; nada te faltará emmeu palácio enquanto aqui permaneceres. Suportando comresignação tua infelicidade, muito lucrarás com isso”. Adrastoficou, então, vivendo no palácio de Creso.

XXXVI — Nesse ínterim, apareceu em Mísia um javalide grandes proporções, o qual, descendo do Monte Olimpo,começou a fazer enormes estragos pelos campos. Os Mísios jálhe tinham dado caça várias vezes, mas sem êxito algum,enquanto a fera continuava a causar-lhes inúmeros danos. Emvista disso, foi enviada uma delegação à presença de Creso.“Senhor, — disseram os delegados — apareceu em nossasterras um terrível javali, que devasta os nossos campos, e,apesar de todos os nossos esforços, ainda não conseguimoseliminá-lo. Vimos pedir-vos para enviar em nossa companhia opríncipe, vosso filho, à frente de uma escolta de jovensescolhidos, juntamente com a vossa matilha, a fim de livrar-nosdo flagelo”. Creso, lembrando-se do sonho, respondeu: “Nãome falem mais de meu filho; não posso enviado com vocês.Recém-casado, ele não se ocupa agora senão da esposa; masdar-lhes-ei minha equipagem de caça, com a elite da juventudelídia, à qual recomendarei que se empenhe com ardor paralivrá-los do javali”.

XXXVII — Os Mísios retiraram-se satisfeitos com aresposta, mas Átis, tendo escutado o pedido e testemunhado arecusa de Creso, entrou logo depois, dirigindo-se ao rei: “Meupai, as ações mais nobres e as mais generosas me eram outrorapermitidas; eu podia me adestrar na guerra e na caça, mas vósme afastais hoje de uma e de outra, embora não tenhais notadoem mim nem covardia nem fraqueza. Quando eu for à praçapública ou dali voltar, com que olhos me verão? Que opinião

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farão de mim os nossos concidadãos? Que idéia formulará ajovem princesa que acabo de desposar? A que homem se julgaráela unida? Permiti-me, pois, ir a essa caçada com os Mísios, ouprovai ser mais conveniente fazer o que desejais”.

XXXVIII — “Meu filho, — volveu Creso — se agidessa forma, não foi por haver notado em ti a menor covardiaou alguma outra coisa que me desagradasse; mas uma visão, emsonho, há pouco tempo, me fez sentir que perecerias ferido poruma arma de ferro. Por esse motivo, apressei-me em casar-te, epor isso não te enviei a esta expedição; e continuo tomando todasorte de precauções para afastar, pelo menos enquanto viver, omal que te ameaça. Não tenho senão a ti como filho, já que ooutro, privado de ouvir, não existe para mim”.

XXXIX — “Meu pai, — replicou o jovem príncipe —se assim é, vejo que velais por mim. Parece-me, todavia, quenão interpretastes bem esse sonho. O que não compreendeis, oque nele vos escapou, devo explicar-vos. O sonho, dizeis, vosrevelou que eu deveria morrer ferido por uma ponta de ferro.Mas um javali tem mãos? Está ele armado com o ferroperfurante que tanto temeis? Se o sonho vos advertisse que devomorrer nas garras de um javali ou de maneira semelhante,teríeis motivo para tomar as providências que tomastes.Observai, porém, que se trata de uma ponta de ferro. Já que nãoirei combater homens, permiti-me tomar parte nessaempreitada”.

XL — “Meu filho, — redarguiu Creso — tuainterpretação é mais justa do que a minha, e como meconvenceste, mudo de propósito e permito que partas para acaçada”.

XLI — Logo em seguida mandou Creso chamar o frígioAdrasto, a quem se dirigiu nestes termos: “Estavas sob o signoda desgraça, Adrasto (que o céu me preserve de censurar-te); eute purifiquei, eu te recebi no meu palácio, onde tens vivido

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confortavelmente. Creio, pois, que sou, pelos meus benefícios,merecedor de uma retribuição tua. Meu filho parte para a caça.Confio-te a guarda de sua pessoa; protege-o dos bandidos quepoderão atacá-lo pelo caminho. Aliás, cumpre-te buscar umaocasião para te distinguires; teus pais te prepararam para isso, eo vigor de tua idade o permite”.

XLII — “Senhor, — respondeu Adrasto — não fora tãojusto motivo eu não iria absolutamente a essa caçada, poispreferiria, dada minha atual situação, abster-me de me imiscuircom homens de tão reto procedimento e felizes. Mas, já queassim o desejais, estou pronto a obedecer-vos. Os vossosbenefícios vos fizeram merecedor de toda a minha gratidão.Podeis ficar tranqüilo. Vosso filho, cuja guarda me confiais,voltará são e salvo, se isso depender de mim”.

XLIII — Após essa breve entrevista, o príncipe eAdrasto partem com um grupo de jovens de elite e a matilha dorei. Chegando ao Monte Olimpo, procuram o javali,encontram-no, cercam-no e o atacam. Então, Adrasto, oestrangeiro purificado da prática de um homicídio, lança umdardo, que, errando o javali, vai atingir mortalmente o filho deCreso. Realiza-se, assim, o tão temido sonho: Átis perecetraspassado por um ferro agudo. Imediatamente um correiodespachado para Sardes leva ao soberano a notícia do trágicodesfecho da caçada.

XLIV — Creso, atordoado por tão grande desgraça,sentiu-se ainda mais infeliz e culpado, por haver purificado deum homicídio o causador de sua desdita. Abandonando-se à suaimensa dor, invocava Júpiter, tomando-o como testemunha domal que lhe havia feito aquele estrangeiro; invocava-o comoprotetor da hospitalidade, porque, concedendo a Adrasto umabrigo em seu palácio, alimentava, sem saber, o assassino deseu filho; invocava-o como deus da amizade, porque haviaencarregado Adrasto da guarda do filho e encontrara nele o pior

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inimigo.

XLV — Algum tempo depois, chegaram os Lídiostrazendo o cadáver de Átis, seguido daquele que o matara.Adrasto, de pé diante do cadáver, as mãos estendidas paraCreso, roga-lhe que o sacrifique sobre o corpo inanimado dofilho, uma vez que a vida se lhe tornara odiosa, desde que, aoseu primeiro crime, acrescentara um segundo, matando o filhode quem o tinha purificado. Apesar do luto que cobria a família,Creso não pôde ouvir o discurso do estrangeiro sem sentir-setocado de compaixão.

“Adrasto, — disse-lhe ele — condenando-te a ti mesmoà morte, satisfazes plenamente minha vingança. Não te culpodesta morte, pois ela foi involuntária. Não acuso senão o deusque há tempos a previu”. Depois de cumprir os últimos deveresao filho, Creso ordenou que os funerais fossem realizados deacordo com a sua categoria. Terminada a cerimônia, completosilêncio reinou em torno do túmulo. Então Adrasto, filho deGórdio, neto de Midas, assassino do próprio irmão, assassinoinvoluntário do filho daquele que o havia purificado,sentindo-se o mais infeliz dos homens, pôs termo à vida sobre acampa de Átis.

XLVI — Creso chorou dois anos a morte do filho. Masa crescente ameaça que vinha constituindo ao seu reino oimpério de Astíages, filho de Ciaxares, destruído por Ciro, filhode Cambises, e dos Persas, que ganhava, dia a dia, maiordesenvolvimento, pôs termo àquela dor. Começou ele a nãopensar em outra coisa senão em reprimir esta potência, antesque ela se tornasse mais forte. Inteiramente absorvido porsemelhante idéia, resolveu consultar os oráculos da Grécia e oda Líbia. Enviou delegados a diversos lugares, uns a Delfos,outros a Abes, na Fócida, outros a Dodona; alguns ao oráculode Anfiaraus; outros a Trofônio e aos Branquidas, na Milésia.Estes foram os oráculos da Grécia que Creso fez consultar.

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Despachou também emissários para a Líbia, com destino aotemplo de Júpiter Ámon. Esses delegados eram enviados com ofito de experimentar o acerto e a legitimidade dos oráculos daGrécia e da Líbia. Se suas respostas fossem exatas,consultá-los-ia uma segunda vez, para saber se devia ou nãofazer guerra aos Persas.

XLVII — Deu ordem aos delegados para sondar osoráculos e consultá-los no centésimo dia a contar da partida dosmesmos de Sardes, perguntando-lhes o que ele, Creso, filho deAliata, rei da Lídia, fazia naquele dia, e de trazer-lhe por escritoa resposta de cada um. Conhece-se apenas a resposta do oráculode Delfos, ignorando-se a dos demais. Logo que entraram notemplo, os enviados lídios, cumprindo as instruções recebidas,fizeram à pitonisa a pergunta previamente combinada. Aresposta veio prontamente: “Conheço o número dos grãos deareia e a medida do mar; compreendo a língua do mudo, ouço avoz do que não fala. Meus sentidos acusam o cheiro de umatartaruga que está sendo cozinhada, com a carne de umcordeiro, num caldeirão de bronze; o bronze estende-se sobreela, o bronze recobre-a”.

XLVIII — Anotando cuidadosamente a resposta dapitonisa, os emissários partiram de regresso a Sardes. Quandoos demais delegados, enviados a diversos países, regressaramtambém com as respostas dos outros oráculos, Creso abriu-as eexaminou cada uma em particular. Algumas não condiziam coma realidade, mas ao ler a resposta de Delfos, Creso reconheceu-acomo verdadeira e adorou o oráculo persuadido de que esse erao único certo, pois indicara com exatidão o que, no momento,ele fazia. Realmente, depois da partida dos delegados, atentandopara o dia combinado, imaginara a coisa mais impossível deadivinhar-se e de conhecer-se. Tendo ele próprio cortado empedaços uma tartaruga e um cordeiro, cozinhara-os juntos numvaso de bronze, cuja tampa era do mesmo metal. Foiexatamente isso o que dissera a pitonisa de Delfos.

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XLIX — Quanto à que receberam os lídios no templo deAnfiaraus depois das cerimônias e dos sacrifícios prescritos,ignoro-o por completo. Sabe-se apenas haver Creso reconhecidotambém a justeza desse oráculo.

L — O príncipe tratou, em seguida, de captar as boasgraças do deus de Delfos por meio de suntuosos sacrifícios, nosquais se imolaram três mil animais pertencentes a todas asespécies cuja imolação às divindades é permitida. Fez, depois,queimar, numa grande fogueira, leitos dourados e prateados,vasos de ouro, roupas de púrpura e outras vestes, imaginando,com isso, tornar o deus mais favorável. Concitou também osLídios a imolarem todas as vítimas de que dispunham.Mandando fundir, depois desse sacrifício, prodigiosaquantidade de ouro, fez cento e dezessete plintos, os maislongos, de seis palmos, e os menores, de três, por um deespessura. Havia, também, quatro de ouro fino, com o peso deum talento e meio, e outros de ouro fosco, pesando doistalentos. Mandou modelar, igualmente, um leão de ouro fino,com o peso de dez talentos. Esse leão, foi, em seguida, colocadosobre os plintos, de onde mais tarde caiu, quando o templo deDelfos foi queimado, encontrando-se agora incluído no tesourodos Coríntios. Atualmente não tem o mesmo peso, porque noincêndio do templo se fundiram três talentos e meio.

LI — Terminadas essas obras, Creso enviou-as a Delfos,juntamente com muitas outras oferendas, tais como duasenormes crateras, uma de ouro e a outra de prata. A primeira foicolocada à direita na entrada do templo, e a segunda à esquerda.Retiraram-nas, também, dali, depois do incêndio. A cratera deouro encontra-se hoje no tesouro dos Clasomênios. Pesa oitotalentos e meio. A de prata está no ângulo do vestíbulo dotemplo. Esta contém seiscentas ânforas. Os Delfenses alimisturam água com vinho nas festas denominadas Teofânios.Dizem que essas valiosas peças foram confeccionadas porTeodoro de Samos, e assim o creio, por me parecerem trabalhos

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delicadíssimos. Além dessas dádivas, o soberano envioutambém ao templo quatro moedas de prata, hoje agregadas aotesouro dos Coríntios, e duas bacias para água lustral, sendouma de ouro e outra de prata. Na de ouro acha-se gravado onome de Lacedemônios, os quais pretendem, sem razão, teremsido os autores dessa oferta, pois o que é certo é que elasconstituem um presente de Creso. A inscrição foi ali posta porum habitante de Delfos para lisonjear os Lacedemônios.Omitirei o nome do autor da façanha, embora o saiba muitobem. A essas dádivas Creso acrescentou muitas outras de menorvalor.

LII — Quanto a Anfiaraus, em retribuição ao querevelou o oráculo sobre as virtudes e as desgraças do rei, estelhe consagrou um escudo de ouro maciço, com uma lançaigualmente de ouro maciço. No meu tempo, viam-se ainda, ume outro, em Tebas, no templo de Apolo Ismênio.

LIII — Os lídios encarregados de levar esses presentesaos oráculos de Delfos e Anfiaraus tinham ordem deperguntar-lhes se Creso devia fazer guerra aos Persas e juntar aoseu exército tropas aliadas. Chegando ali, apresentaram asofertas e consultaram os oráculos nestes termos: “Creso, rei dosLídios e de outras nações, persuadido de que sois os únicosverdadeiros oráculos existentes no mundo, vos envia estespresentes que julga dignos de vossa sapiência, e vos pergunta sedeve marchar contra os Persas e reunir às suas forças tropasaliadas”. Os dois oráculos concordaram nas respostas.Predisseram, um e outro, ao soberano, a guerra contra os Persase a conseqüente destruição de um grande império,aconselhando-o a procurar a amizade dos Estados da Grécia quelhe parecessem mais poderosos.

LIV — Ao ter conhecimento dessas respostas, Cresoexperimentou imensa alegria, e alimentando a esperança dearrasar o império de Ciro, enviou novos emissários a Delfos

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com a finalidade de presentear cada um dos habitantes (osoberano sabia o número exato deles) com duas balanças deouro. Os Delfenses, em reconhecimento, concederam a Creso eaos Lídios a prerrogativa de consultar, em primeiro lugar, ooráculo, imunidades e prioridade, e o privilégio perpétuo de setornarem cidadãos de Delfos, quando o desejassem.

LV — Tendo enviado esses presentes aos Delfenses,Creso consultou o deus pela terceira vez, pois desde quereconheceu-lhe a veracidade não mais cessou de a ele recorrer.Perguntou-lhe se seu reinado seria de longa duração, recebendoesta resposta: “Quando um asno for rei dos Medos, então foge,lídio efeminado, para as margens do Termo pedregoso; nãopenses em resistir e nem te envergonhes da covardia”.

LVI — Essa resposta agradou a Creso mais do que todasas outras. Persuadido de que não se veria jamais no trono dosMedos um asno, concluiu que nem ele nem os seusdescendentes perderiam o império. Procurou, então, saber quaisos povos mais poderosos da Grécia, no propósito de fazeramigos, chegando à conclusão de que os Lacedemônios e osAtenienses estavam em primeiro lugar: uns, entre os Dórios,outros, entre os Iônios. Essas nações eram, realmente, outrora,as mais poderosas, pertencendo, uma, ao ramo pelásgico e aoutra ao helênico.

LVII — Que língua falavam então os Pelasgos, é umponto sobre o qual nada posso afirmar. É-nos permitido suporque esses povos, outrora vizinhos dos Dórios e habitando aregião atualmente denominada Tessaliótida, assim como os quefundaram Plácia e Silacé, no Helesponto, e que viveram com osAtenienses, falavam uma língua bárbara. Se assim era, segue-seque os Atenienses, pelasgos de origem, esqueceram sua línguaao se tornarem helenos, aprendendo a desse povo.

LVIII — Quanto à nação helênica, desde a origemadotou ela a mesma língua. Pelo menos é o que me parece.

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Fraca a princípio, separada dos Pelasgos e partindo de débilorigem, foi-se desenvolvendo até constituir-se em grandenúmero de povos — principalmente depois que várias naçõesbárbaras a ela se incorporaram. Foi isso que, na minha opinião,impediu o desenvolvimento dos Pelasgos, que eram bárbaros.

LIX — Soube Creso que os Atenienses, um dessespovos fragmentados em diversos grupos, se achavam sob o jugode Pisístrato, filho de Hipócrates, então tirano de Atenas.Hipócrates era um simples particular. Deu-se com ele, certafeita, nos Jogos Olímpicos, um fato memorável: Estava eleoferecendo um sacrifício aos deuses, quando as caldeiras, pertodo altar, cheias de vítimas e de água, começaram a ferver semfogo, e a água extravasou. Quílon, da Lacedemônia, que poracaso estava presente, testemunhando o milagre, aconselhouHipócrates a não desposar uma mulher fecunda, ou então, se jáera casado, a repudiar a esposa, e se nascesse um filho, não oreconhecesse. Hipócrates repeliu os conselhos de Quílon.Algum tempo depois, nasceu Pisístrato, que na questão entre osParálios, habitantes do litoral, comandados por Megacles, filhode Alcmeon, e os habitantes da planície, chefiados por Licurgo,filho de Aristolaides, suscitou, para abrir caminho à tirania, aformação de um terceiro partido. Organizou esse partido sob opretexto de defender os habitantes da montanha. Eis a manobraque forjou: Tendo ferido a si próprio e a seus animais de carga,arrastou seu carro até a praça pública, como se houvesseescapado das mãos do inimigo. Conjurou os Atenienses a lheconcederem uma guarda, lembrando-lhes a glória com que secobrira à frente dos seus exércitos contra os Megários, a tomadade Niséia, e citando-lhes vários outros exemplos de valor. Opovo, ludibriado, deu-lhe por guarda certo número de cidadãosescolhidos, que o escoltavam armados de maças de madeira.Pisístrato sublevou-os e apoderou-se, dessa maneira, dacidadela. Desde então, tornou-se senhor de Atenas, mas semperturbar o exercício das magistraturas e sem alterar as leis. Pôsem ordem a cidade e governou-a sabiamente, segundo os

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costumes tradicionais. Pouco tempo depois, as facções reunidasde Megacles e de Licurgo expulsaram o usurpador.

LX — Assim, Pisístrato, tendo-se tornado senhor deAtenas, foi despojado da tirania, que ainda não tivera tempo delançar raízes profundas. Os que o expulsaram reiniciaram,dentro em pouco, suas antigas disputas. Megacles, acossado detodo lado pela facção contrária, mandou propor a Pisístrato, porum arauto, restabelecê-lo no poder, se ele quisesse desposar-lhea filha. Pisístrato aceitou a proposta, e empenhando-se nocumprimento da condição, imaginou, de acordo com Megacles,para sua reintegração no poder, um meio tanto mais ridículo, ameu ver, quanto na antigüidade os Gregos sempre sedistinguiram dos bárbaros como mais instruídos e despidos detolas credulidades — e os autores desta trama tratavam comAtenienses, povo que gozava da reputação de ser o maisespiritual da Grécia.

Havia em Peônia, burgo da Ática, certa mulher de nomeFia, com aproximadamente quatro côvados de altura e dotada degrande beleza. Armaram essa mulher, dos pés à cabeça, efazendo-a subir num carro, depois de instruírem-na sobre opapel que deveria desempenhar, conduziram-na à cidade.Levavam à frente arautos que, à chegada, puseram-se a gritar,de acordo com as ordens recebidas: “Atenienses, acolheifavoravelmente a Pisístrato; Minerva, que o honra mais do quea todos os outros homens, está conduzindo-o, ela própria, àcidade”.

Os arautos iam de um lado para outro, repetindo amesma proclamação. Logo divulgou-se a notícia de queMinerva conduzia Pisístrato, e os habitantes da cidade,persuadidos de que aquela mulher era realmente Minerva,prosternaram-se para adorá-la e acolherem Pisístrato.

LXI — Tendo, por essa maneira, recuperado asoberania, Pisístrato desposou a filha de Megacles, segundo o

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compromisso firmado entre ambos; mas como já possuía filhoscrescidos, e como os Alcmeônidas passavam por atingidos demaldição, não querendo filhos da nova mulher, teve com elaapenas contatos contra a natureza. A princípio, a jovem esposasuportou em silêncio tal ultraje, mas depois o revelou à própriamãe, espontaneamente ou premida pelas perguntas desta. A mãecomunicou o caso a Megacles, seu esposo, que, indignado coma afronta do genro, reconciliou-se, na sua cólera, com a facçãooposta.

Informado do que se tramava contra ele, Pisístratoabandonou a Ática, dirigindo-se para a Erétria, onde pediuconselhos a seu filho Hípias. Este aconselhou-o a recuperar otrono, sendo o alvitre aceito. As cidades às quais Pisístrato tinhaprestado outrora algum serviço cumularam-no de presentes.Várias deram-lhe somas consideráveis, mas foram os Tebanosos que mais se distinguiram pela sua liberalidade. Pouco maistarde, tudo estava pronto para o regresso do tirano. DoPeloponeso foram enviadas tropas árgias mercenárias, e umnáxio de nome Ligdâmis acorreu cheio de zelo, com homens edinheiro para a empresa.

LXII — Partindo da Erétria para entrar na Ática, depoisde uma ausência de onze anos, Pisístrato e suas tropasapoderaram-se primeiramente de Maratona, onde ergueramacampamento. Sabedores do seu regresso, seus partidários e deseu filho Hípias acorreram em grande número ao seu encontro,uns de Atenas, outros dos burgos — todos preferindo a tirania àliberdade.

Os Atenienses seus adeptos nenhuma importância lhederam enquanto estivara ocupado em levantar dinheiro para asua volta, e mesmo depois que se tornou senhor de Maratona;mas, ante a notícia de que ele avançava desta cidade paraAtenas, foram, com todas as suas tropas, reunir-se a ele.Entrementes, Pisístrato e os seus, tendo partido de Maratona

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num só corpo de exército, aproximavam-se de Atenas.Chegando defronte do templo de Minerva Palenide, aliacamparam. Um adivinho chamado Anfilito, inspirado pelosdeuses, veio apresentar-se a Pisístrato e transmitir-lhe esteoráculo: “As redes foram lançadas; à noite, ao luar, os atunsacorrerão em cardumes”.

LXIII — Pisístrato, aceitando o augúrio, pôs-seincontinênti em marcha com o seu exército. Os cidadãos deAtenas já haviam feito o repasto, e enquanto uns se divertiamjogando dados, outros entregavam-se ao sono. Foi quandoPisístrato, caindo sobre eles com as suas tropas, os pôs em fuga.A fim de evitar que os fugitivos se concentrassem novamentepara oferecer-lhe resistência, o tirano serviu-se de engenhosomeio: Mandou que seus filhos montassem a cavalo eordenou-lhes que tomassem a dianteira. Alcançando estes osfugitivos, exortaram-nos, da parte do pai, a ficar tranqüilos e aretornar às suas casas.

LXIV — Os Atenienses obedeceram, e Pisístrato,tornando-se senhor de Atenas pela terceira vez, consolidou atirania por meio de suas tropas auxiliares e de grandesquantidades de prata, que retirava, em parte, do próprio país, e,em parte, do rio Estrímon. Firmou-se ainda no poder devido àsua conduta para com os atenienses que não haviam fugido.Amparou-lhes os filhos, enviando-os a Naxos, pois haviaconquistado também essa ilha e confiado o seu governo aLigdâmis. Por outro lado, purificou a ilha de Delfos, seguindo aordem dos oráculos. Eis como foi feita essa purificação: Emtodos os lugares de onde se avistava o templo, mandou eleexumar cadáveres e transportá-los para outro cantão da ilha.Pisístrato teve ainda menos trabalho para consolidar a tiraniasobre os Atenienses, porque muitos dos que a ele se opunhamhaviam sido mortos em combate, enquanto que outros tinhamabandonado a pátria, desertando em companhia de Megacles.

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LXV — Tal era a situação em que se encontravam osAtenienses, segundo a informação recebida por Creso. Quantoaos Lacedemônios, disseram-lhe que, depois de haverem sofridoperdas consideráveis, estavam, afinal, levando a melhor naguerra contra os Tegeatas. Realmente, no reinado de Leão e deAgasicles, os Lacedemônios, vitoriosos em outras guerras,tinham fracassado somente contra os Tegeatas. Este povo era,outrora, o menos civilizado entre os Gregos, e não faziamnenhum comércio com os estrangeiros e nem mesmo entre elespróprios; mas, depois, passaram, da maneira que vou contar, apossuir melhor legislação. Licurgo gozava em Esparta da maisalta estima. Chegando certa vez a Delfos para consultar ooráculo, assim que entrou no templo ouviu estas palavras dapitonisa: “Eis que vens ao meu templo, amigo de Júpiter e doshabitantes do Olimpo. Hesito em declarar-te um deus ou umhomem; creio-te, antes, um deus”. Acrescentam alguns que foi apitonisa quem lhe ditou a constituição ora vigente em Esparta;mas como julgam os próprios Lacedemônios, Licurgo trouxe asreferidas leis de Creta, no reinado de Leobotas, seu sobrinho, reide Esparta. Realmente, logo que assumiu a tutela desse jovempríncipe, reformou as leis antigas e tomou medidas contra atransgressão das novas. Regulamentou, em seguida, o queconcernia à guerra, os enomotios, os tricados e os sissitos, einstituiu, além disso, os éforos e os senadores.

LXVI — Assim vieram os Lacedemônios a possuir umgoverno bem organizado. Depois da morte de Licurgo,ergueram-lhe um templo, ao qual tinham grande veneração.Habitando um país fértil e densamente povoado, sua repúblicanão tardou a prosperar e a tornar-se florescente; mas entediadoscom o repouso e julgando-se superiores aos Arcadenses,consultaram o oráculo de Delfos sobre a conquista da Arcádia.A pitonisa respondeu: “Pedis-me a Arcádia? O pedido éexcessivo; não posso satisfazê-lo. A Arcádia possui guerreirosfortes e decididos, que repelirão vosso ataque. Todavia, parasatisfazer vossa cobiça ofereço-vos a Tegéia, com suas extensas

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planícies.”

Ante essa resposta, os Lacedemônios renunciaram àArcádia e, munidos de grilhões, marcharam contra os Tegeatas,considerando-os já escravos seus e confiantes num oráculo umtanto duvidoso. Sofreram, porém, tremenda derrota, e todos osque caíram vivos nas mãos do inimigo foram postos sob ospróprios grilhões que traziam e compelidos a trabalhar nasterras dos Tegeatas. Esses grilhões, ainda os vi pendentes dasparedes do templo de Minerva Aléia.

LXVII — Os Lacedemônios haviam sido continuamentemal sucedidos em suas primeiras guerras contra os Tegeatas;mas no tempo de Creso, no reinado de Anaxandrido e deAriston, em Esparta, conseguiram sobrepujá-los pelos meiosque passo a expor. Desejosos de vingar as passadas derrotas quelhes infligiu aquele povo, mandaram perguntar ao oráculo deDelfos a que deus deviam recorrer para conquistarem o triunfo.A pitonisa respondeu-lhes que triunfariam se levassem com elesos ossos de Orestes, filho de Agamémnon. Como nãoconseguiam descobrir o túmulo de Orestes, dirigiram-senovamente ao oráculo para perguntar-lhe em que lugarrepousavam os restos do herói, obtendo esta resposta: “Nasplanícies da Arcádia fica situada uma cidade denominadaTegéia, varrida por dois ventos que sopram em direçõescontrárias, e o mal está sobre o mal. É ali que o seio fecundo daterra guarda o filho de Agamémnon. Se levardes seu esqueleto aEsparta, vencereis Tegéia”.

Ante essa resposta, os Lacedemônios se entregaram commaior ardor às suas buscas, cavando o solo em toda parte, atéque afinal, Licas, um espartano da classe dos argaturgos. fez agrande descoberta. Denominam-se argaturgos os cavaleirosmais velhos, já reformados. Todos os anos reformam-se cinco, equando deixam as fileiras, realizam excursões por toda parte,antes de gozarem o repouso merecido.

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LXVIII — Nesse número estava incluído Licas, o autorda descoberta do túmulo de Orestes. O acaso e habilidade deLicas cooperaram para a importante revelação. Encontrando-seem Tegéia, entrou ele, certo dia, na oficina de um ferreiro, ondeviu malhar o ferro. Percebendo a admiração que isso lhecausava, o ferreiro interrompeu seu trabalho e, voltando-se paraele, disse-lhe: “Lacedemônio, ficarias bem mais espantado sevisses a maravilha que eu vi, tu, para quem o trabalho de umaforja é motivo de surpresa! Cavando um poço neste pátio,encontrei um caixão de sete côvados de comprimento. Comonão podia admitir que existissem, outrora, homens maiores doque os de hoje, abri-o. O corpo que ali descobri era do tamanhodo esquife. Medi-o e depois cobri-o novamente de terra”. Licas,refletindo sobre a narrativa do ferreiro, pensou logo na hipótesede ser aquele o corpo de Orestes, indicado pelo oráculo.Observou também a confluência dos ventos opostos no local,enquanto que o ferro, batido sobre a bigorna, pareceu-lhe atradução das palavras do oráculo: “o mal sobre o mal”, pois oferro não havia sido descoberto senão para a infelicidade doshomens.

Com o espírito absorvido por essas conjecturas, retornaele a Esparta e relata sua aventura aos Lacedemônios. Estesfazem-lhe uma acusação simulada, e ele passa por banido. Licasvolta a Tegéia, conta sua desgraça ao ferreiro e empenha-se,com todas as forças, para que ele lhe alugue o pátio. Aprincípio, o ferreiro recusa-se a atender ao seu pedido, masacaba concordando. Licas ali se instala, abre o túmulo e retira oesqueleto de Orestes, levando-o para Esparta. A partir daí, osLacedemônios alcançaram grandes sucessos em todos oscombates que travaram contra os Tegeatas. Aliás, a maior partedo Peloponeso já lhes estava submetida.

LXIX — Creso, informado de todos esses fatos, enviouembaixadores a Esparta, com presentes, para solicitarem aaliança dos Lacedemônios. Seguindo as instruções recebidas,

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assim se expressaram esses emissários: “Creso, rei da Lídia e devárias outras nações, nos enviou aqui para transmitir-vos estamensagem: “Ó Lacedemônios; ordenando-me o deus de Delfosa contrair amizade com os Gregos, dirijo-me a vós, de acordocom o oráculo, porque sei que sois o primeiro povo da Grécia edesejo vossa aliança, sem fraude nem má fé”. OsLacedemônios, que não ignoravam a resposta dada a Creso pelooráculo, regozijaram-se com a chegada dos lídios e fizeram comeles um tratado de amizade e aliança, tanto mais que haviamrecebido, antes, alguns benefícios de Creso, entre eles oseguinte: Tendo os Lacedemônios enviado delegados a Sardespara comprar o ouro a ser empregado na estátua de Apolo, quehoje se contempla no monte Tornax, na Lacônia, Creso fez-lhespresente do que pretendiam comprar.

LXX — Tanta generosidade e a preferência que o reilídio lhes dava sobre todos os Gregos, determinaram a aliança,dispondo-se eles a atender a qualquer apelo de Creso, paraquem já estavam fabricando uma cratera de bronze, emretribuição à dádiva recebida. A cratera era constituída de trêsânforas e ornada exteriormente até as bordas por muitas figurasde animais em alto-relevo. Todavia, essa cratera não chegou àsmãos de Creso, por motivos sobre os quais correm duas versões,uma das quais é dada pelos Lacedemônios, que afirmam ter sidoela roubada nas costas de Samos pelos habitantes, que,informados da viagem, vieram em grandes embarcações assaltaros portadores. Por sua vez, os habitantes de Samos sustentamque os lacedemônios, tendo sido informados, em caminho, daprisão de Creso e da tomada de Sardes, venderam-na em Samos,a particulares, que a ofertaram ao templo de Juno. Por essemotivo, os que a venderam declararam, de regresso a Esparta,terem sido assaltados.

LXXI — Não conseguindo apreender o sentido dooráculo, Creso dispôs-se a marchar em direção à Capadócia, naesperança de deitar por terra o poderio de Ciro e dos Persas.

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Enquanto se preparava para essa expedição, um lídio de nomeSadânis, famoso pela sua sabedoria e que veio a tornar-se aindamais célebre entre os Lídios pelo conselho que deu a ele, Creso,falou-lhe nos seguintes termos: “Ó rei, vós vos dispondes afazer guerra a povos que se vestem apenas de peles e que sealimentam, não do que desejariam ter, mas do que têm, porqueo país é estéril; a povos que bebem somente água, por lhes faltaro vinho; que não conhecem o figo e outras boas coisas queregalam a vida. Vitorioso, que podereis arrebatar dessa gentedesprovida de qualquer riqueza? Vencido, considerai os bensque ides perder. Se eles experimentarem uma vez a doçura donosso país, não quererão mais renunciar a ela; nenhum meioencontraremos para expulsá-los. De minha parte, rendo graçasaos deuses por não haverem inspirado aos Persas o desejo deatacar os Lídios”. Creso, porém, não se deixou convencer. Noentanto, o que Sadânis dizia era a pura verdade. Os Persas, antesda conquista da Lídia, não conheciam nem o luxo nem ascomodidades da existência.

LXXII — Os Gregos dão aos Capadócios o nome deSírios. Antes da dominação persa, tais sírios eram súditos dosMedos, mas estavam sob a obediência de Ciro, porque o rioHális separava os estados dos Medos dos pertencentes aosLídios. O Hális desce de uma montanha da Armênia (o Tauros),atravessa a Cilícia, e dali, continuando seu curso, banha, àdireita, a terra dos Macinianos, e, à esquerda, a dos Frígios.Depois de haver passado entre esses dois povos, corre para onorte, envolvendo, de um lado, os Sírios Capadócios, e dooutro, os Paflagônios. Assim, esse rio separa quase toda a ÁsiaMenor da Alta Ásia, desde o litoral, defronte de Chipre, aoPonto Euxino. O país inteiro forma um estreito, que pode serpercorrido em apenas cinco dias por um bom caminhante.

LXXIII — Creso partiu com seu exército para aCapadócia, com o propósito de anexá-la aos seus estados, eanimado, sobretudo, pela confiança no oráculo e pelo desejo de

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vingar Astíages, seu cunhado. Astíages, filho de Ciaxares, reidos Medos, tinha sido vencido e feito prisioneiro por Ciro, filhode Cambises. Eis como esse príncipe se tornou cunhado deCreso: Uma sedição havia obrigado uma tropa de citas nômadesa retirar-se secretamente para as terras da Média. Ciaxares, queentão reinava sobre os Medos, recebeu-os primeiro combenignidade, como suplicantes, chegando depois a dedicar-lhestanta estima que lhes confiou os filhos, a fim de que estesaprendessem a língua cita e a arte de atirar com o arco. Ao cabode algum tempo, os citas, acostumados a caçar e a trazer caçatodos os dias, voltaram, certa vez, com as mãos vazias.Vendo-os assim, Ciaxares, dotado de temperamento violento,tratou-os com toda rudeza. Os citas, indignados com esseprocedimento que julgavam imerecido, decidiram entre si cortarem pedaços um dos filhos do rei, cuja educação lhes havia sidoconfiada, e prepará-los da maneira pela qual costumavampreparar os pratos, servindo-os depois ao soberano como caça,depois do que deveriam retirar-se para Sardes, para junto deAliata, filho de Sadiata. O plano foi executado. Ciaxares e osconvivas comeram o que lhes foi servido, e os citas, perpetradaa vingança, fugiram, colocando-se sob a proteção de Aliata, doqual se tornaram suplicantes.

LXXIV — Ciaxares reclamou-os. Ante a recusa,acendeu-se a guerra entre os dois soberanos. Durante cincoanos, os Medos e os Lídios obtiveram, alternadamente,vantagens, e no sexto ano de luta aconteceu algo extraordinário,que motivou o término das hostilidades. Durante um combateem que os triunfos se equivaliam de parte a parte, o diatransformou-se inesperadamente em noite. Tales de Miletohavia predito aos Iônios esse fenômeno, fixando a data em quese verificaria. Os lídios e os medos, vendo a noite tomarinopinadamente o lugar do dia, cessaram de combater eprocuraram, o mais depressa possível, fazer as pazes. Sinésio,rei da Cilícia, e Labineto, rei da Babilônia, foram osmediadores; apressaram o tratado e asseguraram-no por um

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casamento; fizeram Aliata dar a mão de sua filha Ariénes aAstíages, filho de Ciaxares, convencido de que, sem um laçoforte, as convenções não têm nenhuma solidez. Esses povosobservam em seus tratados as mesmas formalidades que osGregos, mas costumam ainda fazer ligeira incisão nos braços esugar reciprocamente o sangue que daí verte.

LXXV — Ciro mantinha prisioneiro Astíages, seu avômaterno, por ele destronado, pelas razões que exporei nodecorrer desta história. Creso, irritado contra Ciro por talprocedimento, mandara consultar os oráculos para saber sedevia fazer guerra aos Persas. Veio-lhe de Delfos uma respostaambígua, por ele julgada favorável e em virtude da qualresolveu invadir o território dos Persas. Ao chegar às margensdo Hális, fez, segundo se afirma, passar seu exército pelaspontes que ainda ali existem, mas, a dar crédito à maioria dosgregos, foi Tales de Mileto quem lhes facultou a passagem.Creso, dizem os Gregos, ao alcançar a margem do rio viu-se emgrande embaraço para transpô-lo com seu exército, pois aspontes ainda não existiam. Tales, que se achava noacampamento, desviou para a direita das forças expedicionáriaso curso do rio, procedendo da seguinte maneira: Fez cavar umcanal profundo em forma de meia lua, atrás do acampamento,de modo a envolver a retaguarda do exército, e o rio, saindo doantigo leito, entrou pelo novo, retornando, em seguida, aoantigo, depois da passagem das tropas. Dividido o rio em doisbraços, tornou-se facílimo vadeá-lo, devido ao desvio daságuas. Afirmam alguns que o canal ficou depois inteiramenteseco, mas não creio que assim tivesse sido. De fato, como Cresoe seu exército poderiam atravessar o rio quando voltaram?

LXXVI — Transpondo o Hális, Creso e suas tropaschegaram à região da Capadócia denominada Ptéria. A Ptéria, ocantão mais poderoso do país, fica perto de Sinope, cidadesituada sobre o Ponto Euxino. O soberano ali ergueuacampamento e devastou as terras dos Sírios. Ocupou a cidade

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dos Ptérios, reduzindo os habitantes à escravidão. Apoderou-setambém de todos os burgos vizinhos, deu caça aos Sírios efê-los transportar para lugares distantes, conquanto eles não lhetivessem dado motivo de queixa. Entretanto, Ciro reuniu seuexército, convocou todos os homens que pôde encontrar nocaminho, e marchou ao encontro do invasor. Antes, porém, delançar suas tropas em campo, enviou arautos aos Iônios,concitando-os a revoltar-se contra Creso. Não conseguindopersuadi-los, veio acampar à vista do inimigo. Os dois exércitosmediram forças em Ptéria; o choque foi terrível. Afinal, a noiteseparou os combatentes, sem que a vitória se decidisse para umlado ou para o outro. Assim terminou a primeira batalha.

LXXVII — Censurando a si próprio por não ter evitadoa desproporção das forças — suas tropas eram muito menosnumerosas do que as de Ciro — e vendo que no dia seguinte opríncipe não tentaria novo ataque, Creso retornou a Sardes, coma intenção de pedir socorro aos Egípcios, de acordo com otratado concluído com Amasis e anterior ao firmado com osLacedemônios. Propunha-se, também, a solicitar auxílio aosBabilônios, igualmente seus aliados e que tinham por soberanoLabineto, e pedir às tropas lacedemônias que se dirigissem aSardes dentro do tempo determinado. Contava passar o Invernotranqüilamente e, então, à entrada da Primavera, marchar contraos Persas com as forças de todos esses povos reunidas às suas.

Assim conjecturando, logo que retornou a Sardesmandou arautos convocar os aliados, com instruções para viremao seu encontro no quinto mês. Em seguida, despediu as tropasestrangeiras que tinha a soldo e que se haviam medido contra osPersas, deixando-as dispersar-se para todos os lados, longe deimaginar que Ciro, não havendo conseguido vantagens atéentão, planejava fazer avançar seu exército até Sardes.

LXXVIII — Enquanto Creso se entregava à elaboraçãode seus planos, a parte extra-muros da cidade enchia-se de

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serpentes, e os cavalos, abandonando as pastagens, corriam adevorá-las. Esse espetáculo, de que Creso foi testemunha,pareceu, aos olhos do soberano, algo de sobrenatural, e, de fato,o era. Creso mandou logo consultar os adivinhos de Telmesse, eos emissários foram informados da significação daquelefenômeno, não chegando, porém, a comunicá-la ao soberano,pois, ao regressarem por mar, souberam-no já derrotado eprisioneiro. A resposta era que Creso veria um exército deestrangeiros no seu reino e que estes subjugariam os naturais dopaís, já que a serpente não passava de uma filha da terra, e ocavalo, de um inimigo, de um estrangeiro. Creso já seencontrava prisioneiro quando divulgaram essa resposta, masignorava-se ainda a sorte de Sardes e o destino que seria dadoao soberano.

LXXIX — Quando Creso, depois da batalha de Ptéria,retirou-se, Ciro, informado do propósito do rei inimigo dedispensar as tropas estrangeiras, julgou vantajoso marchar semdemora para Sardes, antes que os Lídios reunissem novasforças. Tomando essa resolução, executou-a sem demora, efazendo avançar seu exército sobre a Lídia, levou, ele próprio, aCreso, a notícia de sua marcha. Embora inquieto por ver suasintenções malogradas, Creso, ainda assim, lançou os Lídios emcombate. Não havia, então, na Ásia, nação mais valente nemmais belicosa. Os Lídios combatiam a cavalo, com longaslanças, e eram excelentes cavaleiros.

LXXX — Os dois exércitos encaminharam-se para aplanície situada além dos muros de Sardes, planície extensa eestéril, atravessada pelo Hilos e por outros riachos quedesembocam no Hermus, o maior de todos eles. O Hermusdesce de uma montanha consagrada à deusa Cibele e vaidesaguar no mar, perto da cidade de Focéia.

À vista do exército lídio em ordem de batalha nessaplanície, Ciro, receando a cavalaria, seguiu o conselho do medo

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Hárpago. Reunindo todos os camelos que transportavam osvíveres e as bagagens na retaguarda das forças,desembaraçou-os da respectiva carga e mandou seus homensmontá-los, como cavalerianos, com ordem de investir assim, àfrente das tropas, contra a cavalaria de Creso. Ordenou, aomesmo tempo, à infantaria, que seguisse os camelos, colocandotoda a cavalaria atrás da infantaria. Dispondo dessa maneira asforças, deu instruções aos soldados para que matassem todos oslídios que encontrassem pela frente, poupando apenas a Creso,mesmo que ele ainda oferecesse resistência depois decapturado. Tais foram as ordens de Ciro. Opôs ele os camelos àcavalaria inimiga, por saber que os cavalos receiam os camelos,não podendo nem vê-los nem suportar-lhes o cheiro. Daí haverimaginado esse recurso astucioso visando inutilizar a cavalarialídia, na qual Creso depositava a esperança de uma vitóriaretumbante.

Mal os dois exércitos avançaram para o choque, oscavalos dos lídios, sentindo a presença dos camelos, recuaram,pondo por terra as esperanças de Creso. Os lídios, contudo, nãose desconcertaram com isso. Percebendo o estratagema,desceram dos cavalos e combateram a pé. Por fim, depois deperdas consideráveis de parte a parte, bateram em retirada,encerrando-se atrás das muralhas da cidade, onde os persas ossitiaram.

LXXXI — Iniciado o cerco, Creso, julgando que este seprolongaria por muito tempo, enviou da cidade novosemissários em busca dos aliados. O encontro das tropas aliadasem Sardes só teria lugar no quinto mês, como fora combinado,mas como o soberano estava cercado, deviam os emissáriossolicitar socorro urgente.

LXXXII — Os embaixadores dirigiram-se aos diversospovos aliados e, particularmente, aos Lacedemônios.Justamente nessa ocasião sobreviera uma disputa entre os

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Espartanos e os Árgios, por causa de uma região denominadaTiréia. Este cantão fazia parte da Argólida, mas osLacedemônios o tinham cercado de muros e dele se apropriado.Toda a região para o ocidente até a Maléia pertencia tambémaos Árgios, tanto em terra firme como no mar, inclusive a ilhade Citera e outras menores. Os Árgios, tendo vindo em socorrodo território arrebatado, fizeram um acordo com osLacedemônios, segundo o qual fariam combater trezentoshomens de cada lado, ficando o vencedor de posse do territóriocontestado. Os dois exércitos não estariam presentes aocombate; retirar-se-ia cada qual para o respectivo país, a fim deque o grupo derrotado não pudesse ser socorrido pelos seuscompatriotas.

Retiraram-se, realmente, os dois exércitos, depois desseacordo, ficando em campo somente os guerreiros escolhidos deum lado e do outro. Combateram ambas as partes numa talequivalência de forças, que, dos seiscentos homens, apenas trêssobreviveram: Alcinor e Cromius, do lado dos Árgios, eOtríades, do lado dos Lacedemônios, tendo sido aindanecessário que a noite chegasse para separá-los. Os dois árgioscorreram a Argos a anunciar a vitória. Enquanto isso, Otríades,o guerreiro lacedemônio, despojou das armas os árgios mortosem combate, levando-as para o seu acampamento, e manteve-sefirme no seu posto. No dia seguinte chegavam os dois exércitos.Instruídos sobre os acontecimentos, cada qual atribuía a si avitória; os Árgios, porque ficaram com superioridade numérica;os Lacedemônios, porque os combatentes árgios se haviamretirado, enquanto que seu representante se mantivera no postoe despojara os adversários mortos na peleja. A disputaacalorou-se, e os dois exércitos engalfinharam-se, levando osLacedemônios a melhor, depois de perdas consideráveis departe a parte.

Desde essa ocasião, os Árgios, que até ali usavamcabelos compridos, passaram a raspar a cabeça; criaram uma lei

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regulamentando o assunto e decretaram maldições contra todoárgio que deixasse crescer o cabelo e contra as mulheres queusassem ornatos de ouro, até que retomassem Tiréia. OsLacedemônios, até então de cabelos curtos, impuseram a siPróprios uma lei contrária, isto é, a de usarem cabeloscompridos. Quanto a Otríades, o sobrevivente dos trezentoslacedemônios, dizem que, com vergonha de retornar a Espartadepois da perda dos companheiros, matou-se no campo debatalha, no território da Tiréia.

LXXXIII — Era essa a situação dominante em Espartaquando chegou de Sardes o emissário de Creso, solicitandosocorro urgente para o soberano sitiado. Os Espartanos nãohesitaram em enviá-lo. As tropas já se achavam prontas e osnavios equipados, quando chegou outro correio trazendo anotícia de que a capital dos Lídios havia sido tomada e Cresofeito prisioneiro. Tristes ficaram os Espartanos com a notícia, econsiderando já inútil o seu auxílio, suspenderam a remessa dastropas.

LXXXIV — Vejamos como se deu a captura de Sardes.No décimo quarto dia do cerco, Ciro mandou anunciar por todoo acampamento que daria uma recompensa a quem subisse, emprimeiro lugar, as muralhas. O exército, depois disso, fezdiversas tentativas de assalto, sem êxito algum, e mantinha-seem repouso, quando um homem da terra dos Mardas, de nomeHiroeade, procurou escalar certo ponto da cidadela, onde nãohavia sentinela. Os Lídios nunca recearam que a praça fossetomada por esse lado. Escarpada, inexpugnável, essa parte dacidadela era a única por onde Meles, antigo rei de Sardes, nãolevara o leão que recebera de uma concubina. Os adivinhos deTelmesse haviam predito que Sardes tornar-se-ia inexpugnávelse se fizesse passar o leão em torno das muralhas. Ante apredição, Meles conduziu o animal por toda parte onde oinimigo pudesse tentar o ataque e forçar a cidadela. Todavia,considerou desnecessário levá-lo ao lado fronteiro ao monte

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Tmolus, por acreditá-lo inacessível. Hiroeade percebera navéspera um lídio descendo da cidadela por aquele ponto, a fimde apanhar uma moeda que lhe escapara das mãos, e o virasubir, em seguida, pelo mesmo caminho. Esta observaçãoimpressionou-o e fê-lo refletir. Subiu, ele próprio, por ali,acompanhado de outros persas. Seguia-o, pouco mais atrás, umagrande quantidade de soldados. Assim foi tomada Sardes, e acidade inteira entregue à pilhagem.

LXXXV — Quanto a Creso, eis qual foi sua sorte: Tinhaele um filho surdo-mudo, de quem já fiz menção. Na época deprosperidade, Creso empregara todos os recursos para curá-lo, eentre outros meios recorrera ao oráculo de Delfos, tendo-lhedito a pitonisa: “Lídio, rei de vários povos, insensato Creso, nãoprocureis ouvir no vosso palácio a voz tão desejada do vossofilho. Melhor será para vós não ouvi-la nunca; ele começará afalar no dia em que começar a vossa desgraça”.

Depois da tomada de Sardes, um persa, que nãoconhecia Creso, investiu contra ele para matá-lo. O soberanoviu o movimento do agressor, mas, abatido pelo peso de seuinfortúnio, não tentou evitá-lo, pouco lhe importando perecerentão. O jovem príncipe mudo, à vista do persa que se lançavacontra o pai, sentiu-se apoderado de tão grande terror que, numesforço para gritar, recuperou a voz: “Soldado! — exclamou ele— Não mates Creso!” Foram estas suas primeiras palavras, eaté o fim de seus dias conservou ele a faculdade de falar.

LXXXVI — Assim os Persas se apoderaram de Sardes efizeram Creso prisioneiro. Este reinara pelo espaço de quatorzeanos, havendo sustentado um cerco de quatorze dias, e tendo,por fim, destruído seu próprio império. Os Persas, depois deaprisioná-lo, levaram-no a Ciro. Este fê-lo subir, carregado deferros e cercado de quatorze jovens lídios, a uma grandefogueira erguida para sacrificar a alguns deuses as primícias davitória, ou para cumprimento de um voto, ou, talvez, para

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comprovar se Creso, cujo espírito piedoso era tão proclamado,seria preservado das chamas por alguma divindade. Já sobre afogueira, o rei dos Lídios, apesar da dor cruciante queexperimentava, lembrou-se das palavras de Sólon, de que“nenhum homem pode dizer-se feliz enquanto respirar”,palavras que então lhe pareciam inspiradas por um deus. A essepensamento, assegura-se ter ele, com um longo suspiro, saídodo silêncio em que se vinha mantendo, exclamando por trêsvezes: “Sólon!” Ciro, ouvindo-o, perguntou por intermédio dosintérpretes a quem invocava o prisioneiro. Creso, a princípio,nada respondeu; mas, compelido a falar, disse-lhe: “É umhomem cujo convívio eu preferiria às riquezas de todos os reis”.Parecendo aos persas obscura aquela resposta, eles ointerrogaram de novo. Vencido pela insistência, Cresorespondeu afinal, declarando que certa ocasião Sólon, deAtenas, viera à sua corte, e tendo contemplado todas as suasriquezas, nenhuma importância lhes dera. Tudo acontecera,porém, como Sólon previra, embora seu discurso não tivessesido dirigido especialmente ao rei dos Lídios, pois era antesuma advertência a todos os homens em geral e, sobretudo, aosque se julgam felizes. Assim falou Creso. O fogo já havia sidoateado e a fogueira já começava a arder pelas extremidadesquando Ciro, recebendo pelos intérpretes a resposta do soberanovencido, arrependeu-se do seu gesto. Lembrou-se de quetambém era um ser humano e que, não obstante, estava fazendoqueimar um seu semelhante, que não se julgara menos feliz doque ele. Por outro lado, temia a vingança dos deuses; erefletindo sobre a instabilidade das coisas humanas, mandouapagar imediatamente a fogueira e fazer descer Creso e seuscompanheiros de infortúnio. Todavia, os maiores esforços jánão conseguiam debelar a violência das chamas.

LXXXVII — Então Creso, segundo relatam os Lídios,informado da deliberação de Ciro e vendo aquela multidãoaçodada, tentando extinguir o fogo sem consegui-lo, invoca emaltos brados a proteção de Apolo, suplicando-lhe que, se suas

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oferendas lhe foram agradáveis, o socorra e o salve de tãoiminente perigo. Essas súplicas eram acompanhada de copiosaslágrimas. De súbito, num céu límpido e radioso, nuvenspardacentas se aglomeram; desaba uma tempestade, e a chuva,caindo em abundância, apaga o fogo. Tão prodigioso fato veiomostrar a Ciro o quanto Creso era querido pelos deuses por suasvirtudes. Fazendo-o descer da fogueira, falou-lhe nestes termos:“Ó Creso, quem te aconselhou a invadir minhas terras com umexército, declarando-te meu inimigo em vez de buscares aminha amizade?” “Teu destino feliz e a má sorte me arrastaram,senhor, a esta malfadada empresa — respondeu Creso. — Odeus dos Gregos foi o culpado de tudo; ele, somente ele,persuadiu-me a atacar-te. É preciso ser muito insensato parapreferir a guerra à paz. Na paz, os filhos sepultam os pais; naguerra, os pais sepultam os filhos. Enfim, aprouve aos deusesque as coisas assim se passassem”.

LXXXVIII — Em seguida, Ciro, mandando libertarCreso dos ferros, fê-lo sentar-se a seu lado e tratou-o com todaconsideração, não podendo, ele e toda a corte, encará-lo semespanto. Creso mantinha-se silencioso, entregue a profundasreflexões. Momentos depois, volvendo os olhos, viu os persasocupados em saquear a cidade de Sardes. “Senhor, —exclamou, dirigindo-se a Ciro — é-me permitido dizer o quepenso, ou minha situação obriga-me a calar?” Ciro disse-lhe quepodia falar com franqueza. “Pois bem, — volveu Creso — essamultidão, que faz ela com tanto ardor?” “Saqueia tua capital ecarrega-lhe as riquezas”. “Não, senhor, não é, absolutamente, aminha cidade que eles saqueiam; não são as minhas riquezasque eles estão pilhando. Nada disso me pertence mais. Elesagora se apoderam do que é teu”.

LXXXIX — Chocado com a observação, Ciro ordenaaos presentes que se retirem e pergunta a Creso qual a medidaque deveria tomar em semelhante contingência. “Senhor, —responde-lhe Creso — como os deuses me tornaram teu

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escravo, julgo-me no dever de advertir-te sobre o que maisvantajoso me pareça, quando o percebo melhor do que tu. OsPersas, indisciplinados por índole, são pobres. Se permites queeles pilhem esta cidade e retenham os despojos, é provável quequem lograr o melhor quinhão se disponha à revolta. Seaprecias meus conselhos, ordena a alguns dos teus guardas quese coloquem à entrada da cidade e exijam de tuas tropas osdespojos, sob o pretexto de que é preciso consagrar a décimaparte a Júpiter. Por esse meio não atrairás o ódio dos soldados,embora privando-os do produto da pilhagem; e quando elessouberem que não queres nada para ti, obedecerão de muito boavontade.

XC — Aquela observação agradou enormemente a Ciro.Considerando o conselho muito sensato, cumulou seu autor delouvores, e depois de haver dado aos soldados as ordenssugeridas por Creso, dirigiu-se novamente a este: “Creso, —disse-lhe — já que tuas palavras e tuas ações provam que estásdisposto a conduzir-te como um rei sábio, podes pedir-me o quete agradar; obtê-lo-ás imediatamente. “Senhor, — respondeuCreso — o maior favor que me poderás prestar será permitir-meenviar ao deus dos Gregos, aquele entre todos os deuses a quemmais louvei, estes ferros, com a ordem de lhe perguntarem se élícito enganar alguém que sempre se houve no sentido de muitolhe merecer”. Ciro perguntou de que se lamentava ele e qual omotivo do seu pedido. Creso pô-lo a par dos planos que traçara,das oferendas que fizera e das respostas dos oráculosanimando-o a fazer a guerra contra os Persas, terminando porsolicitar-lhe novamente permissão para mandar apresentar suasqueixas ao deus. “Concedo-te — disse-lhe Ciro, rindo-se — nãosomente essa permissão, como tudo que desejares de ora emdiante”. Obtida a permissão, Creso enviou emissários lídios aDelfos, com ordem de colocar os ferros nos umbrais do temploe perguntar ao deus se ele não se envergonhava de havê-lo, pormeio de oráculos, incitado à guerra contra os Persas, naesperança de arruinar o império de Ciro; e mostrando as

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correntes, únicas primícias que podia oferecer-lhe daquelaexpedição, perguntar se os deuses dos Gregos tinham o costumede ser ingratos.

XCI — Os lídios, havendo executado as ordens deCreso, dizem que a pitonisa lhes respondeu: “É impossível,mesmo a um deus, evitar a sorte determinada pelo destino.Creso está sendo punido pelo crime do seu quinto ancestral,que, simples guarda de um rei da dinastia dos Heraclidas,cedendo às instigações de uma mulher astuta, matou seusoberano e apoderou-se do trono ao qual não tinha direitoalgum. Apolo queria afastar de Creso a desgraça de Sardes enão fazê-la cair senão sobre seus filhos, mas as Parcasmostraram-se intransigentes. Com o máximo que elas lheconcederam, ele já contemplara o soberano: adiou de três anos atomada de Sardes. Que Creso saiba ter sido feito prisioneiro trêsanos mais tarde do que lhe estava reservado pelo destino. Emsegundo lugar, Apolo socorreu-o quando ele ia perecer vítimadas chamas. Sobre o oráculo ainda, Creso não tem razão de selamentar. Apolo predissera-lhe que, fazendo guerra aos Persas,destruiria um grande império. Se, ante essa resposta, Cresotivesse demonstrado maior iniciativa, teria mandado perguntarao deus se se tratava do império dos Lídios ou do de Ciro. Nãotendo, nem apreendido o sentido do oráculo, nem interrogadode novo o deus, não deve queixar-se senão de si mesmo.Finalmente, Creso não compreendeu também a resposta deApolo com relação ao asno. Ciro era esse asno, por pertenceremos autores de seus dias a duas nações diferentes, sendo o pai deorigem menos ilustre que a mãe; esta, natural da Média e filhade Astíages; o outro, persa e súdito da Média. Embora inferiorem tudo, havia desposado a soberana”.

Tomando conhecimento da resposta da pitonisa, Cresoreconheceu ter sido exclusivamente sua a culpa, e não do deus.Eis aí o que concerne ao reinado de Creso e à primeirasubmissão dos Iônios.

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XCII — As oferendas de que falei não são as únicas queCreso fez aos deuses; vêem-se ainda várias outras na Grécia. Osoberano deu de presente a Tebas, na Beócia, um tripé de ouro,consagrado a Apolo Ismênio; a Éfeso, novilhas de ouro e amaior parte das colunas do templo; a Minerva Pronaia, emDelfos, um grande escudo de ouro. Essas dádivas subsistiamainda no meu tempo e muitas outras se perderam. Quanto aopresente que deu aos Branquidos, no país dos Milésios, era, aoque pude saber, em tudo semelhante ao que deu a Delfos e tinhao mesmo peso. Os presentes a Delfos provinham dos própriosbens do príncipe; os outros, ao contrário, vinham dos bens deum inimigo, que formara um partido contra Creso antes dasubida deste ao trono, empenhando-se com ardor para dar aPantaleão a coroa da Lídia. Pantaleão era filho de Aliata eirmão de Creso, mas de outra mãe. Logo que se viu de posse dacoroa, transmitida pelo pai, Creso mandou matar — retalhandocom espinhos — o que ousara levantar-se contra ele, enviandoos bens do morto aos templos dos deuses amigos, como vimos.

XCIII — A Lídia não oferece, como outros países,maravilhas dignas de figurarem na história, exceto as palhetasde ouro arrancadas do Tmolus. Vê-se, entretanto, ali, uma obrabem superior às que admiramos em outras partes (salvo,naturalmente, os monumentos do Egito e da Babilônia): otúmulo de Aliata, pai de Creso. A base é composta de grandespedras, e o resto, de argamassa. Foi construído às expensas denegociantes, artistas e cortesãs. Cinco placas, colocadas no altodo monumento, subsistiam ainda no meu tempo, assinalando,por inscrições, a contribuição de cada uma das três classes paraa ereção do grande monumento. Segundo uma dessasinscrições, a contribuição das cortesãs foi a mais considerável,pois todas as jovens, na Lídia, se entregavam à prostituição.Com isso formavam o dote e continuavam no negócio atécasarem-se, cabendo-lhes o direito de escolher o esposo. Aolado do monumento existe um lago que nunca seca, segundoafirmam os Lídios. É o lago Gigéia, como o denominam.

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XCIV — As leis dos Lídios muito se assemelham às dosGregos, exceto no tocante à prostituição das jovens. De todos ospovos dos quais temos conhecimento, foram os Lídios osprimeiros a cunhar moedas de ouro e de prata, e também dosprimeiros a se dedicarem à profissão de revendedor.Atribuem-se-lhes a invenção de diversos jogos atualmente emuso, tanto entre os naturais do país como entre os Gregos,afirmando-se que, na ocasião em que tais jogos foraminventados, enviou-se uma expedição à região hoje ocupadapela Tirrênia, para a formação, ali, de uma colônia. Eis como senarra o fato: No reinado de Átis, filho de Manes, toda a Lídia seviu flagelada pela fome, suportada com paciência durantealgum tempo. Vendo, porém, que a situação não melhorava, opovo começou a procurar um remédio para minorá-la, cada umimaginando-o à sua maneira. Nessa ocasião foram inventados osdados, o jogo da péla e todas as outras espécies de jogos, excetoo das damas, do qual os Lídios não se consideram os autores.Vejamos o uso que os habitantes fizeram de tais invenções paraenganar a fome cada vez mais premente. Jogavamalternadamente durante um dia inteiro, a fim de distrair avontade de comer, e no dia seguinte comiam e não jogavam.Assim continuaram pelo espaço de oito anos; mas o mal, emvez de atenuar-se, mais se agravava. O rei, então, dividiu osLídios em dois grupos e mandou-os tirar a sorte; um deveriapermanecer, e o outro retirar-se do país. Aquele a quem coube asorte de ficar tinha por chefe o próprio rei, enquanto que seufilho Tirrênio se pôs à frente dos emigrantes.

Banidos da pátria, os lídios dirigiram-se primeiramentepara Esmirna, onde construíram navios, dotando-os de todo onecessário, e neles embarcaram para procurar víveres em outrasterras. Depois de haverem costeado diversos países aportaram àÚmbria, onde ergueram cidades, habitadas por esse povo atéhoje. Trocaram, porém, o nome de Lídios pelo de Tirrênios, emhomenagem a Tirrênio, filho do rei e que viera como chefe dacolônia.

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XCV — Vimos os Lídios submetidos pelos Persas; mas,quem era esse Ciro que destruiu o império de Creso? Como osPersas conseguiram a soberania na Ásia? São detalhes dos quaisme ocuparei no decorrer desta narrativa. Tomarei por baseinformações de alguns persas que procuravam antesengrandecer as ações de Ciro, do que dizer a verdade, muitoembora eu não ignore haver sobre o príncipe várias outrasopiniões.

Havia quinhentos anos que os Assírios eram senhores daAlta Ásia, quando os Medos, que se encontravam sob o seudomínio, se rebelaram; e com tal ardor se empenharam naconquista da liberdade, que conseguiram sacudir o jugo etornar-se independentes. As outras nações seguiram-lhes oexemplo.

XCVI — Todos os povos desse continente, libertos dadominação assíria, regeram-se durante algum tempo ainda pelassuas próprias leis, mas acabaram recaindo sob o poder de umúnico soberano, da maneira que passo a narrar: Havia entre osMedos um sábio de nome Déjoces, filho de Fraorte. EsseDéjoces, seduzido pela idéia de realeza, imaginou, paraconsegui-la, um plano assaz inteligente. Os Medos viviamdispersos em burgos. Déjoces, gozando de grande consideraçãono seu burgo, distribuía a justiça com muito zelo e aplicação,embora as leis fossem menosprezadas em toda a Média e elesoubesse que a justiça tem na injustiça um inimigo terrível. Oshabitantes do seu burgo, testemunhando-lhe a sabedoria,haviam-no escolhido para juiz. Aspirando à realeza, comodissemos, Déjoces procurava manifestar em todas as ações amaior retidão e um profundo senso de eqüidade. Esta condutavalia-lhe os maiores elogios por parte dos seus concidadãos. Oshabitantes de outros burgos, até então oprimidos por injustassentenças, sabendo que Déjoces era o único a julgarrigorosamente de acordo com as regras da eqüidade, começarama afluir ao tribunal onde ele distribuía a justiça, não querendo

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ser julgados senão por ele.

XCVII — O número de solicitantes aumentava dia a dia,pois todos achavam que os processos só chegavam a termo nasmãos dele. Quando Déjoces se reconheceu o único responsávelpor tantas sentenças, negou-se a voltar ao tribunal, renunciandoformalmente às respectivas funções. Pretextou os prejuízos quecausava a si mesmo abandonando os próprios negócios,enquanto passava dias inteiros a liquidar questões alheias. Obanditismo e a desordem passaram a imperar como nunca nosburgos. Os Medos reuniram-se em conselho para tratar dasituação. Aproveitando a oportunidade, os amigos de Déjoces,segundo se informaram, dirigiram-se à assembléia nos seguintestermos: “A situação está se tornando calamitosa, não nospermitindo mais habitar em sossego este país. Por isso, devemosescolher um rei. Estando a Média governada por boas leis,poderemos cultivar em paz nossos campos, sem o temor dainjustiça e da violência”. Este discurso persuadiu os Medos aaceitar um rei.

XCVIII — Deliberaram logo sobre a escolha. Todos oslouvores e sufrágios reuniram-se em torno de Déjoces,conseguindo ele ser eleito por unanimidade de votos. Mandou,então, construir um palácio de acordo com a dignidade real epediu guardas para sua segurança pessoal. Os Medos acederam.Construíram-lhe, no local por ele designado, um edifício amploe bem fortificado, e permitiram-lhe escolher livremente, emtoda a nação, uma guarda de sua inteira confiança.

Ao ver-se no trono, Déjoces obrigou igualmente os seussúditos a construir uma cidade, a ornamentá-la e a fortificá-la,sem se preocupar com as outras praças. Os Medos, dóceis atudo, edificaram essa cidade fortificada e imensa, conhecidahoje pelo nome de Ecbatana, cujos muros concêntricosfecham-se uns nos outros, e são construídos de maneira quecada plataforma não ultrapasse a vizinha senão na altura das

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ameias. O local, em forma de bacia e elevando-se numa colina,facilitou o sistema. Havia ao todo sete plataformas, ficandosituados na última o palácio e o tesouro real. A superfície daplataforma maior quase igualava a de Atenas. As ameias quecircundavam a primeira eram pintadas de branco; as dasegunda, de preto; da terceira, da cor de púrpura; da quarta, deazul; da quinta, de cor alaranjada; e das últimas, de cor prateadae dourada.

XCIX — Foi essa a cidade mandada construir porDéjoces. A população recebeu ordens para instalar-se aos pésdas barreiras. Concluídos todos os edifícios consideradosnecessários, Déjoces proclamou como regulamento queninguém poderia entrar nos aposentos reais; que todos osnegócios seriam tratados por meio de mensagens, e que o reinão seria visível para nenhum estranho. Ordenou também queninguém risse ou escarrasse na sua presença, bem como napresença de qualquer outra pessoa, considerando indigno evergonhoso tal procedimento.

Instituiu Déjoces um cerimonial imponente, para que aspessoas da sua idade e com as quais fora educado, e aqueles dedescendência tão elevada quanto a sua e nada inferiores, nemem bravura nem em mérito, não lhe tivessem inveja e nãoconspirassem contra ele. Acreditava que, tornando-se invisívelaos súditos, passaria por possuir outra natureza aos olhos deles.

C — Estabelecidas essas regras e consolidada aautoridade real, Déjoces pôs-se a fazer justiça com todaseveridade. Os processos lhe eram enviados por escrito; ele osjulgava e os devolvia com a sentença. Tal o seu método quantoaos processos. Com referência ao resto, se tinha conhecimentode que alguém havia proferido uma injúria, mandava prendê-loe aplicava-lhe uma pena proporcional ao delito. Para isso tinhaem todos os seus estados emissários vigiando as ações e aspalestras de seus súditos.

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Cl — Déjoces reuniu todos os Medos numa só nação,reinando sobre eles. Essa nação compreende vários povos: osBúsios, os Paretacênios, os Estrucatas, os Arizantes, os Búdiose os Magos.

CII — Por sua morte, depois de um reinado de cinqüentaanos sucedeu-o no trono seu filho Fraorte. O reino da Médianão bastou à ambição deste último. Atacou primeiramente osPersas, submetendo-os ao seu domínio. Formando assim duasnações, ambas poderosas, subjugou, em seguida a Ásia,marchando de conquista em conquista até sua malogradaexpedição contra os Assírios e a porção desse povo quehabitava Nínive. Embora os Assírios, outrora senhores da Ásia,estivessem, então, sozinhos e abandonados pelos aliados, aindase achavam em próspera situação. Fraorte pereceu nessa sortida,com grande parte do seu exército, depois de haver reinado vintee dois anos.

CIII — Com a morte desse príncipe, subiu ao trono seufilho Ciaxares, neto de Déjoces. Dizem ter sido este soberanoainda mais belicoso do que o pai e o avô. Um dos seusprimeiros atos ao subir ao poder foi dividir os diversos povos daÁsia em diferentes corpos de tropa, separando os lanceiros dosarcheiros e dos cavaleiros, ordens que outrora formavam ecombatiam em comum. Foi ele quem fez guerra aos Lídios etravou com eles uma batalha durante a qual o diatransformou-se subitamente em noite. Foi ele, ainda, que,depois de haver submetido toda a Ásia para cima do rio Hális,reuniu todas as forças do império e marchou contra Nínive,decidido a vingar o pai com a destruição dessa cidade. Já haviaderrotado os Assírios em batalha campal e cercava Nínive,quando se viu assaltado por um grande exército de Citas, tendoà frente Mádias, o rei, filho de Protótios. Expulsando da Europaos Cimérios, os Citas haviam penetrado na Ásia; a perseguiçãoaos fugitivos conduzira-os até o país dos Medos.

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CIV — De Palos-Meótis ao Faso e à Cólquida levatrinta dias de viagem quem caminha com muita rapidez. Paraquem se dirige da Cólquida para a Média, o trajeto não é longo,pois entre esses dois países encontra-se apenas a terra dosSaspiros. Atravessando-a, chega-se logo ao território dosMedos. Os Citas, entretanto, não penetraram desse lado;fizeram-no bem mais adiante, por uma estrada muito maislonga, deixando o Cáucaso à direita. Foi ali que os Medos,terçando armas com os Persas e sendo derrotados, perderam oimpério da Ásia, que passou para os Citas.

CV — De lá, os Citas marcharam para o Egito, masquando chegaram à Síria, Psamético, rei do Egito, veio-lhes aoencontro, e, à força de presentes e de súplicas, conseguiudemovê-los de ir adiante. Retornaram eles pelo mesmo caminhoe passaram por Ascalão, na Síria, sem causar nenhum dano,com exceção de algumas pilhagens no templo de Vênus Urânia,feitas por alguns dos que seguiam na retaguarda. Esse templo,ao que pude saber pelas informações colhidas, é o mais antigode todos os dedicados à deusa, tendo servido de modelo ao deCipro, segundo declararam os próprios Cíprios. O de Citera éobra dos Fenícios, originários da Síria. Irada com a ação dossoldados citas, a deusa enviou uma doença para aqueles quehaviam saqueado o templo de Ascalão, e o castigo estendeu-se atoda sua posteridade. Os Citas acreditam ser essa doença umapunição pelo sacrilégio, e os estrangeiros que viajam pelo paíspodem observar o estado daqueles a quem os habitanteschamam de “enareus”.

CVI — Conservaram os Citas, durante vinte e oito anos,o império da Ásia, mas arruinaram tudo pela violência e pelanegligência. Além dos tributos ordinários, exigiam ainda decada particular um imposto arbitrário; e, não satisfeitos comisso, percorriam a região pilhando e arrebatando a cadahabitante o que bem lhes convinha. Ciaxares e os Medos, tendoconvidado para uma visita a maior parte deles,

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massacraram-nos, depois de os haverem embriagado. Dessaforma recuperaram os Medos seus estados e o domínio sobre opaís que já tinham outrora possuído. Em seguida, tomaram acidade de Nínive. Sobre a maneira pela qual realizaram essafaçanha, falarei em outra ocasião. Finalmente, submeteram osAssírios, com exceção do país da Babilônia. Algum tempodepois desses acontecimentos, Ciaxares morreu, havendoreinado quarenta anos, compreendendo o tempo que durara odomínio dos Citas.

CVII — Astíages, seu filho, sucedeu-o no trono. Teveesse príncipe uma filha, à qual deu o nome de Mandane. Certodia sonhou que ela urinava com tal abundância que inundava acapital do reino e toda a Ásia. Comunicando o sonho aos magosque se dedicavam a interpretações desse gênero, ficou de talforma aterrorizado com os detalhes da explicação, que, quandoa filha cresceu, não quis dar-lhe por esposo um meda digno pelalinhagem; fê-la desposar um persa chamado Cambises, o qual,embora filho de importante família e de muito bons costumes,ele o considerava inferior a um meda de condição medíocre.

CVIII — No primeiro ano do casamento de Cambisescom Mandane, Astíages teve outro sonho; pareceu-lhe ver sairdo seio da filha uma videira que se estendia, cobrindo toda aÁsia. Tendo consultado novamente os magos, mandou vir daPérsia Mandane, prestes a dar à luz. Logo que ela chegoucolocou-a sob vigilância, com a intenção de eliminar a criançaque estava para nascer, pois os magos lhe haviam predito queessa criança devia reinar algum dia no lugar dele. Tendotomado todas as providências, Astíages, logo que Ciro nasceu,mandou chamar Hárpago, seu parente e aquele, dentre todos osMedos, em quem mais confiava. “Hárpago, — disse-lhe ele —executa fielmente a ordem que te vou dar, sem tentarenganar-me, pois se o fizeres estarás cavando tua própria ruína.Toma esta criança que acaba de nascer de Mandane, leva-a paratua casa e faze-a perecer, enterrando-a em seguida como

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julgares conveniente”. “Senhor, — respondeu Hárpago —sempre procurei vos ser agradável e farei todo o possível paranunca vos ofender. Se quereis que a criança morra, obedecereirigorosamente vossas ordens, em tudo que depender de mim”.

CIX — Tramada a sorte da criança, foi ela entregue,toda enfeitada para a morte, às mãos de Hárpago. Este voltoupara casa com lágrimas nos olhos e, dirigindo-se à esposa,revelou-lhe a odiosa ordem de Astíages. “Qual a tuaresolução?” — inquiriu ela. “Não executarei absolutamente asordens de Astíages, — replicou ele — ainda que me tornepassível da sua ira. Não me prestarei, de forma alguma, a tãonefando crime. Não farei isso por várias razões: primeiro,porque sou parente da criança. Segundo, porque Astíages estáem idade avançada e não tem nenhum filho varão. Se depois dasua morte a coroa passar para a princesa, sua filha, cujo filhoele quer que eu hoje mate, não estarei eu ante a perspectiva demaior perigo? Para minha segurança atual é preciso que orecém-nascido pereça, mas isso deverá acontecer pelas mãos dagente de Astíages e não pelas minhas mãos”.

CX — Dizendo isso, enviou sem perda de tempo umrecado a um dos boiadeiros de Astíages, que sabia encontrar-sepastoreando o gado nas montanhas mais freqüentadas poranimais ferozes. Esse boiadeiro chamava-se Mitrídates. Suamulher, escrava de Astíages, respondia, como o marido, pelonome de Spaco, que na língua dos Medos significa o mesmoque Sino na dos Gregos, isto é, “cadela”. As pastagens ondeMitrídates fazia guarda ao gado do rei ficavam ao pé dasmontanhas ao norte de Ecbatana e na direção do Ponto Euxino.Daquele lado, a Média é um país de terras altas, cheio demontanhas e coberto de florestas, enquanto que o resto do reinoé plano e úmido. Quando o boiadeiro chegou, disse-lheHárpago: “Astíages ordena-te que tomes esta criança e aexponhas no lugar mais deserto dos montes, a fim de que elavenha logo a perecer. Ordenou-me também a dizer-te que se

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não a fizeres morrer, se lhe salvares a vida de qualquer forma,condenar-te-á ao suplício mais cruel. Ainda mais: quer que eume certifique de que cumpriste à risca as suas ordens”.

CXI — Mitrídates tomou o recém-nascido e seguiu parasua cabana pelo mesmo caminho. Enquanto tinha vindo àcidade, sua mulher, que se encontrava em adiantado estado degravidez, deu à luz um filho, por desígnio especial dos deuses.Quando o boiadeiro recebeu o chamado de Hárpago, ficaramambos, marido e mulher, muito inquietos; ele, por estar ela emvésperas do parto; ela, porque Hárpago nunca o chamava. Logoque ele regressou, a mulher, como se já não esperasse revê-lo,foi-lhe ao encontro, pressurosa, querendo saber o motivodaquele chamado urgente e imprevisto. “Minha mulher, —disse-lhe ele — mal ali cheguei, vi e ouvi coisas que eu bemdesejaria não ter visto nem ouvido. Toda a família de Hárpagoestava em prantos. No interior da casa, deitada no chão, vi umacriancinha chorando e esperneando. Estava coberta com tecidosde ouro e envolvida em faixas de diversas cores. Assim que meviu, Hárpago ordenou-me que levasse prontamente a criança e aexpusesse no lugar da montanha mais freqüentado por animaisferozes. Assegurou-me ter sido o próprio Astíages a dar-lhe essaordem e me fez as maiores ameaças se eu deixasse deexecutá-la. Tomei, pois, a criança, e trouxe-a comigo,convencido de que se tratava de alguém de sua casa, nãoacreditando fosse ele o verdadeiro pai. Fiquei, entretanto, muitoespantado ao ver a criança coberta de ouro e de panos tãopreciosos, e toda a família de Hárpago em prantos. Afinal, nocaminho, vim a saber pelo criado que me acompanhou até forada cidade, que o recém-nascido era filho de Mandane e deCambises, tendo Astíages ordenado que o matassem. Ei-loaqui”.

CXII — Assim falando, Mitrídates descobriu a criança emostrou-a à mulher. Encantada pela graça e beleza daquelepequenino ente, ela lançou-se aos pés do marido, suplicando-lhe

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com lágrimas nos olhos que não o sacrificasse. Ele declarou-lheque não poderia deixar de fazê-lo, pois os espiões de Hárpagoiriam observá-lo, e, se não obedecesse, pereceria da maneiramais cruel. Spaco, vendo baldadas suas súplicas, disse-lhe: “Jáque não poderei demover-te desse intento, e já que és obrigadoa expor uma criança na montanha, fâze, ao menos, o que te voudizer: Acabo de dar à luz uma criança morta; leva-a à montanhae passemos a criar a da filha de Astíages como se fosse nossa.Dessa forma, não poderão provar que desobedeceste a teussenhores, e, quanto a nós, teremos tido este proveito: nossofilho morto terá uma sepultura real, e o outro não perderá avida”.

CXIII — Aceitando as justas considerações da mulher,Mitrídates não hesitou em seguir-lhe o conselho. Entregou-lhe acriança e, tomando o filho morto, colocou-o no berço do jovempríncipe, com todos os enfeites, indo abandoná-lo na montanhamais deserta. Três dias depois, tendo confiado a guarda docorpo a um de seus ajudantes, dirigiu-se à cidade,apresentando-se a Hárpago e declarando-se pronto a mostrar-lheo cadáver da criança. Hárpago, certificando-se por intermédiode guardas fiéis enviados ao local, do cumprimento da missão,mandou sepultar o que acreditava fosse o neto de Astíages. Estetornou-se depois conhecido pelo nome de Ciro, embora Spacolhe tivesse dado outro nome naquela ocasião.

CXIV — Quando contava dez anos de idade, a criançateve uma aventura que revelou sua verdadeira identidade. Certodia, na aldeia onde se achavam os rebanhos e as manadas do rei,o menino brincava na rua com alguns companheiros da mesmaidade, quando estes o elegeram rei, a ele, conhecido como o“filho do boiadeiro”. A uns, Ciro ordenou, então, que lheconstruíssem um palácio; a outros, nomeou-os seus guardas; aeste, seu vigia; àquele, seu mensageiro. A cada um, Ciro davauma função. O filho de Artembares, homem importante entre osMedos, brincava no grupo. Tendo-se recusado a cumprir as

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ordens do “rei”, Ciro ordenou aos outros que o segurassem e lheaplicassem um castigo corporal. Revoltado com semelhanteprocedimento, tão ofensivo à sua linhagem, o menino foi àcidade apresentar queixa ao pai contra Ciro. Naturalmente, nãolhe deu esse nome, pois Ciro ainda não o possuía; chamou-oapenas “o filho do boiadeiro de Astíages”. Cheio de indignação,Artembares dirigiu-se ao rei, em companhia do filho,cientificando-o do ultraje que havia recebido. “Senhor, — disseele, descobrindo os ombros do filho — eis como nos ultrajouum dos vossos escravos, o filho do vosso boiadeiro”.

CXV — Ante a acusação e os sinais que atestavam suaveracidade, Astíages, querendo vingar o filho de Artembares emconsideração ao pai, mandou chamar Mitrídates e o menino àsua presença. Logo que eles chegaram, disse o príncipe a Ciro,encarando-o fixamente: “Como, sendo de origem tão humilde,tiveste a audácia de tratar de maneira tão indigna o filho de umdos grandes da minha corte?” “Assim o fiz, senhor, por ummotivo justo. As crianças da aldeia, entre as quais ele seencontrava, escolheram-me, por simples brincadeira, para seurei, por eu lhes parecer o mais digno. Todos executavam asminhas ordens. O filho de Artembares recusou-se aobedecer-me, e, por isso, eu o castiguei. Se esse procedimentomerece alguma punição, eis-me pronto a sofrê-la”.

CXVI — Enquanto o menino falava, Astíages, atentandopara os seus traços fisionômicos, que lhe pareceramsemelhantes aos seus; para a sua resposta adequada à naturezade um homem livre, e para a sua idade, que correspondia àépoca em que mandara matar o filho de Mandane, julgoureconhecer nele o neto que ele próprio sacrificara. Tãoimpressionado ficou com essa súbita revelação, que se quedouinteiramente mudo durante alguns momentos. Recuperando,finalmente, o domínio de si mesmo e querendo sondarMitrídates em particular, dirigiu-se a Artembares: “Tua queixa,Artembares, não tem, como vês, nenhum fundamento.”. Em

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seguida, ordenou aos seus oficiais que conduzissem Ciro parafora da sala. Ficando a sós com Mitrídates, perguntou-lhe quemera aquela criança e quem lha confiara. Este respondeu que eraseu filho, mas o soberano, convencido de que ele estavaocultando a verdade, ameaçou-o, dizendo-lhe que, já que ele semantinha em atitude negativa, ver-se-ia compelido a mandartorturá-lo. Dizendo isso, chamou os guardas para que oprendessem. Vendo que ia ser levado à tortura, Mitrídatesconfessou a verdade, relatando toda a história daquela criança ede como ela veio ter ao seu poder, terminando por suplicar aAstíages que o perdoasse.

CXVII — Senhor da verdade, Astíages decidiu nãopunir Mitrídates, mas tomado de ira contra Hárpago, mandouincontinênti chamá-lo e o inquiriu nestes termos: “Hárpago, deque maneira eliminaste o filho de Mandane que te entregueinaquela ocasião?” Vendo Mitrídates ali presente, Hárpagocompreendeu que de nada lhe valeria mentir, e tudo confessou.“Senhor, — respondeu — quando recebi a criança, pus-me arefletir como poderia cumprir vossas ordens sem faltar ao deverpara convosco e sem tornar-me culpado de um crime perantevós e a princesa, vossa filha. Assim, mandei chamar Mitrídatese entreguei-lhe a criança, cientificando-o do vosso desejo. Comisso, não contrariei, absolutamente, a vossa vontade, pois meordenastes a fazê-la perecer de qualquer forma. Entregando-lhea criança, obriguei-o a expô-la numa montanha deserta e apermanecer junto a ela, até vê-la morta, ameaçando-o com asmais terríveis torturas, caso não fosse rigorosamente obedecido.Informando-me da sua morte e, portanto, do inteirocumprimento das vossas ordens, enviei ao local os mais fiéisdos meus servidores para constatar a verdade, fazendo-os, emseguida, sepultar o corpo. Eis aí, senhor, como as coisas sepassaram e a sorte que teve a criança”.

CXVIII — Hárpago nada dissimulou na sua narrativa,mas o soberano, ocultando seu ressentimento, repetiu-lhe

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primeiramente toda a história contada por Mitrídates,informando-o, depois, que a criança ainda vivia e que ele,Astíages, estava satisfeito com isso. “Devo confessar, —acrescentou ele — que fiquei muito penalizado com o destinoque lhe reservara, e as lamentações de minha filha muito mesensibilizavam. Já que a fortuna nos foi favorável, envia teufilho para fazer companhia ao jovem príncipe restituído aonosso convívio e não faltes à ceia desta noite; quero oferecer,pela conservação do meu neto, sacrifícios aos deuses, aos quaisesta honra pertence”.

CXIX — A estas palavras, Hárpago prosternou-se diantedo rei e voltou para casa satisfeito com o feliz desenlacedaquele triste caso e por haver sido, além disso, convidado paraa ceia. Chegando ao lar, chamou seu filho único, de treze anos,e enviou-o ao palácio de Astíages, ordenando-lhe que fizessetudo que o jovem príncipe mandasse. Em seguida,transbordando de contentamento, relatou a aventura à esposa.

Logo que o filho de Hárpago chegou ao palácio,Astíages mandou degolá-lo e cortá-lo em pedaços, fazendoassar uns, fritar outros e preparando tudo com muito cuidado. Àhora da ceia, os convivas dirigiram-se para a mesa e Hárpago nacompanhia deles. A Astíages e a outros comensais foi servidacarne de carneiro, e a Hárpago, o corpo do filho, com exceçãoda cabeça, das mãos e dos pés, que o rei havia colocado à parte,num cesto aberto. Quando pareceu ao soberano que Hárpago jáhavia comido bastante, perguntou-lhe se estava satisfeito com arefeição, ao que ele respondeu: “Muito satisfeito”. Logo depois,os criados traziam-lhe, no cesto aberto, a cabeça, as mãos e ospés do filho, dizendo-lhe para descobri-lo e servir-se do pedaçoque mais lhe agradasse. Hárpago obedeceu, e descobrindo ocesto viu ali os restos do filho. Todavia, não se perturbou,aparentando absoluta serenidade e calma. Astíagesperguntou-lhe se sabia que animal havia comido. Respondeu eleque sim, e que tudo quanto seu soberano fazia lhe agradava

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sempre. Terminada a ceia, Hárpago voltou para casa com osrestos do filho, juntando-os e dando-lhes sepultura.

CXX — O rei, tendo-se vingado de Hárpago, mandouchamar os mesmos magos que haviam interpretado os sonhos damaneira a que nos referimos, a fim de indagar deles a sortereservada a Ciro. Chegando os adivinhos, perguntou-lhes seainda se recordavam da interpretação que haviam dado outroraao sonho que tivera, ao que eles responderam: “Se a criançaainda vive, há-de reinar fatalmente”. “O menino vive e passabem — volveu Astíages. — Foi criado no campo. Seuscoleguinhas da aldeia elegeram-no seu rei e ele fez o que fazemos verdadeiros reis: instituiu um corpo de guardas, oficiais,porteiros, mensageiros, numa palavra, dispôs criteriosamentesobre todos os cargos. Que julgais possa isso pressagiar?”

“Como o menino vive — replicaram os magos — ereinou sem nenhum desejo premeditado, podeistranqüilizar-vos, senhor, nada mais tendes a temer; não reinaráele uma segunda vez. Há oráculos cujo cumprimento se reduz aum ato frívolo qualquer, e sonhos que se realizam com bempouca coisa”. “Sou também dessa opinião — tornou Astíages.— Já tendo o menino trazido o nome de rei, o sonhorealizou-se, e, portanto, julgo já fora de propósito os meusreceios. Não obstante, peço-vos que reflitais bem sobre o caso eque me deis o conselho que julgardes mais vantajoso para aminha e para a vossa segurança”. “Senhor, — declararam osmagos — a prosperidade e a estabilidade do vosso reino nosimporta muito, porque, afinal, o poder vindo cair nas mãosdessa criança, que é persa, passará para outra nação; e os Persas,encarando-nos como estrangeiros, não nos terão nenhumaconsideração, e hão-de tratar-nos como escravos, ao passo quevós, senhor, sois nosso compatriota, e enquanto ocupardes otrono poderemos contar com os vossos favores e participar dovosso reinado. Nosso interesse obriga-nos a zelar pela vossasegurança e do vosso império. Se de agora em diante

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pressentirmos algum perigo, teremos o cuidado de logo vosadvertir. Já que a solução do vosso sonho foi destituída deimportância, estamos tranqüilos e vos exortamos atranqüilizar-vos também. Afastai de vós essa criança,mandando-a de volta para a Pérsia, para junto daqueles que lhederam o ser”.

CXXI — Encantado com a resposta, Astíages mandouchamar Ciro. “Meu filho, — disse-lhe — tratei-te de maneirainjusta por causa de um sonho vão, mas, enfim, teu destino felizconservou-te a vida. Fica tranqüilo; partirás para a Pérsia,escoltado por aqueles que te darei como guardas, e ali verás teupai e tua mãe, bem diferentes do boiadeiro Mitrídates e da suamulher”.

CXXII — Astíages enviou Ciro para a Pérsia, ondeCambises e Mandane, sabendo da sua vinda, receberam-no comtodo carinho, pois há muito que o haviam dado como morto.Perguntaram-lhe como se tinha salvo, e ele respondeu que atéali tinha vivido na ignorância de tudo e que foram seus guardasquem, em caminho, lhe revelaram toda a verdade sobre o caso.Até então julgava-se filho de um boiadeiro de nome Mitrídates,cuja mulher, Sino (Spaco) o tratara com muito carinho ebondade. Servindo-se do nome dessa mulher, a quem Ciro nãocessava de louvar, seus pais procuraram persuadir os Persas deque ele fora preservado pela vontade dos deuses e que umacadela o amamentara quando abandonado na montanha.

CXXIII — Chegando à idade viril, Ciro tornou-se omais valente e, ao mesmo tempo, o mais dócil dos jovens.Hárpago, que desejava ardentemente vingar-se de Astíages,enviava-lhe presentes, simulando-lhe confiança e veneração. Nasua condição de plebeu, não via meios de vingar-se, poriniciativa própria, do soberano; mas observando que Ciro, àmedida que crescia, lhe trazia a possibilidade dessa vingança,identificava-se com a sorte do jovem e ligava-se a ele de

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maneira muito particular. Já havia tomado algumas medidas eaproveitara-se do tratamento muito rigoroso que o rei infligiaaos Medos para insinuar-se no espírito dos grandes epersuadi-los a tirar a coroa de Astíages e dá-la a Ciro.

Urdida a trama e tudo preparado, Hárpago quis revelar aCiro o plano, mas como o jovem príncipe se achava na Pérsia eos caminhos eram guardados, lançou mão de engenhosoexpediente para dar-lhe a notícia: Obtendo uma lebre, abriu-lheo ventre sem arrancar a pele e ali colocou uma carta, ondeexpunha tudo detalhadamente. Recoseu o ventre do animal econfiou-o a um dos seus servos mais fiéis, encarregando-o delevá-lo à Pérsia como um presente a Ciro, devendo, porém,dizer de viva voz ao príncipe que abrisse a lebre sem nenhumatestemunha.

CXXIV — Recebendo a lebre, Ciro abriu-a e encontroua carta, redigida nestes termos: “Filho de Cambises, os deusesvelam por vós; de outra maneira não teríeis tanta sorte.Vingai-vos de Astíages, que pretendia matar-vos e que tudo fezpara isso. Se viveis, é aos deuses e a mim que o deveis. Jásoubestes, naturalmente, de tudo que ele maquinou para voseliminar e do que eu sofri por vos haver entregue a Mitrídates,em lugar de vos assassinar. Se quiserdes seguir agora mesmo osmeus conselhos, todos os estados de Astíages serão vossos.Convencei os Persas a sacudirem o jugo do tirano e vinde àfrente deles atacar os Medos. A empresa será coroada de êxito,quer Astíages me dê o comando das tropas que enviar contravós, quer confie ele esse comando a outro dos mais distintosentre os Medos. Os grandes da nação serão os primeiros aabandoná-lo; reunir-se-ão a vós e farão os maiores esforços paradestruir-lhe o poderio. Tudo está disposto para a execução doplano. Fazei o que vos sugiro e fazei-o prontamente”.

CXXV — Depois de ler a carta, Ciro pôs-se a pensarsobre os meios mais propícios para levar os Persas à revolta. Ao

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cabo de muitas reflexões, decidiu-se pelo seguinte: forjoucuidadosamente uma carta e leu-a na assembléia dos Persas.Essa carta trazia a notícia de que Astíages o nomeavagovernador desse povo. “Agora, — disse ele — ordeno-vos avirem aqui, cada um com uma foice”.

Tais foram as determinações de Ciro. As triboscomponentes da nação persa são muito numerosas. Ciroconvocou algumas dentre estas tribos e concitou-as a rebelar-secontra o domínio dos Medos. Eram as que maior influênciatinham sobre todos os outros persas, a saber: os Pasargadios, osMaráfios e os Maspianos, sendo os primeiros os maiscivilizados de todos. Os Aquemênidas, dos quais descendem osreis persas, constituem um ramo da tribo dos Pasargadios.

CXXVI — Quando se apresentaram todos, armados defoice, Ciro, levando-os a certo cantão da Pérsia, de dezoito avinte mil estádios, inteiramente coberto de cardos, ordenou-lhesque o limpassem num só dia. Terminado esse trabalho, deviambanhar-se no dia seguinte e apresentar-se, em seguida, a ele,Ciro. Entrementes, mandou conduzir ao mesmo lugar todos osrebanhos do pai, tanto cabras quanto carneiros e bois, fez matartodos esses animais e prepará-los, como para um lautobanquete. Fez vir também grande quantidade de vinho e asiguarias mais finas para regalar os soldados. No dia seguinte, ospersas chegaram; o príncipe fê-los sentar sobre a relva eofereceu-lhes um grande festim. Terminado o repasto,perguntou-lhes qual das duas situações preferiam; se a presenteou a da véspera. Todos exclamaram que era enorme a diferençaentre ambas: no dia anterior haviam sofrido mil penas, enquantoque naquele momento usufruíam toda sorte de regalos. Ciroaproveitou-se dessa resposta para lhes revelar seus planos.“Persas, — disse-lhes — tal é agora a contingência em que vosencontrais: se quiserdes obedecer-me, gozareis desses bens e deuma infinidade de outros ainda, sem submeter-vos a trabalhosservis; se, ao contrário, não quiserdes seguir os meus conselhos,

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não deveis esperar senão penas sem número e semelhantes àsque sofrestes ontem. Tornar-vos-ei livres se me obedecerdes,pois pareço ter nascido por um desígnio especial dos deuses,para vos proporcionar todas as vantagens. Aliás, não vosconsidero em nada inferiores aos Medos, tanto no que concerneà guerra, como em qualquer outro terreno. Sacudi, pois, o maiscedo possível, o jugo de Astíages”.

CXXVII — Os Persas, há muito inconformados com odomínio dos Medos, encontrando um chefe aproveitaram aocasião para libertar-se. Astíages, tendo tido conhecimento dasmanobras de Ciro, mandou chamá-lo com urgência. Ciroencarregou o portador de dizer ao soberano que iria ter com elebem mais depressa do que ele desejava. Ante a resposta,Astíages ordenou a todos os Medos que pegassem em armas, e,como obedecendo a uma sentença dos deuses, confiou ocomando do exército a Hárpago, sem lembrar-se da maneirapela qual o havia tratado. Os Medos, entrando em campanha,enfrentaram os Persas. Todos os que não estavam a par do planode Hárpago se bateram com denodo. Quanto aos outros, umaparte passou para o lado dos Persas, enquanto a outra, ao bradode guerra, abandonou a corte, fugindo.

CXXVIII — Informado da derrota vergonhosa dosMedos, Astíages prorrompeu em ameaças contra Ciro. “Não, —disse ele — Ciro não terá motivos para regozijar-se”. Issodizendo, mandou, sem demora, crucificar os magos que lhehaviam aconselhado a deixar partir o neto. Em seguida, fezpegar em armas todos os Medos que ainda restavam na cidade— jovens e velhos — e conduzindo-os contra os Persas,deu-lhes novamente combate. Foi derrotado e caiu, ele próprio,nas mãos dos Persas.

CXXIX — Cheio de júbilo por ver Astíages vencido esob ferros, Hárpago apresentou-se diante dele e insultou-o, eentre outras palavras mordazes, lembrou-lhe o repasto em que o

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rei prisioneiro lhe servira a carne do filho, perguntando-lhe quegosto achava ele agora na escravidão e se a preferia à coroa.Astíages perguntou-lhe, por sua vez, se ele atribuía aquelaempresa a Ciro, replicando Hárpago que se considerava cominteira justiça o autor da mesma, pois fora e1e que a preparara,escrevendo a Ciro. Astíages chamou-o o mais incoerente e omais injusto dos homens; o mais incoerente porque, se naverdade provocara aquela revolta, podendo fazer-se rei, pusera acoroa na cabeça de outro; e o mais injusto porque, vingando-seda morte do filho e da afronta que sofrera, reduzira os Medos àescravidão. Se realmente era necessário dar a coroa a outro, e seHárpago não queria guardá-la para si mesmo, seria mais justocolocá-la na cabeça de um meda do que na de um persa. O quefizera, afinal, fora submeter sua pátria à servidão, tornando osPersas, até então escravos dos Medos, senhores destes.

CXXX — Astíages perdeu assim a coroa, depois de umreinado de trinta e cinco anos. Os Medos, tendo possuídodurante cento e vinte e oito anos o império da Alta Ásia até orio Hális, sem incluir o tempo em que reinaram os Citas,passaram para o jugo dos Persas por causa da desumanidadedaquele soberano. É verdade que deles se libertaram mais tarde,no reinado de Dario, mas novamente vencidos, em combate,foram de novo subjugados. Ciro e os Persas, revoltando-secontra os Medos, como acabamos de ver, ficaram com odomínio de quase toda a Ásia. Quanto a Astíages, Ciro o reteveao seu lado até a morte, não lhe havendo feito outro mal. Poucodepois dessa sua ousada empresa, Ciro derrotou a Creso, quelhe movera uma guerra injusta, tornando-se, assim, senhor detoda a Ásia.

CXXXI — Entre os usos e tradições observados pelosPersas, vale ressaltar os seguintes: não costumavam erguerestátuas, nem templos, nem altares; tratavam, ao contrário, deinsensatos os que assim procediam; e isso, na minha opinião,porque não acreditam terem os deuses forma humana. Fazem,

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todavia, sacrifícios a Júpiter no alto da montanha e dão o nomedesse deus à abóbada celeste. Fazem ainda sacrifícios ao Sol, àLua, à Terra, ao Fogo, à Água e aos Ventos, e juntam a isso oculto de Vênus Urânia, que herdaram dos Assírios e dos Árabes.Os Assírios dão à deusa o nome de Milita; os Árabes, o deAlita, e os Persas chamam-na de Mitra.

CXXXII — Eis aqui os ritos que os Persas observam aosacrificarem aos deuses a que me referi: Não erguem altares,não acendem fogo, não fazem libações e não se servem nem deflautas, nem de ornamentos sagrados, nem de aveia misturadacom sal. Quando um persa quer oferecer um sacrifício, conduz avítima a um lugar puro e, com a cabeça coberta por uma tiara,ordinariamente de mirto, invoca o deus. Não é permitido aquem oferece o sacrifício fazer votos apenas para si; deverápedir pela prosperidade do rei e de todos os outros Persas emgeral, pois a sua própria pessoa se inclui nesse voto comum.Depois de cortar a vítima em pedaços e cozinhar-lhe a carne,estende no chão uma erva muito delgada, de preferência o trevo,coloca ali os pedaços da vítima, arrumando-os com muitocuidado, feito o que um mago, que se acha presente (sem magonão há sacrifício), entoa uma teogonia, reputada, entre eles,como o mais poderoso motivo de encantamento. Em seguida, oque ofereceu o sacrifício leva as carnes da vítima e dispõe delascomo julgar melhor.

CXXXIII — Sentem-se os Persas no dever de festejarseu aniversário de nascimento, mais do que qualquer outra data,pondo nesse dia as melhores iguarias à mesa. Os ricos fazemservir um cavalo, um camelo, um asno e um boi inteiros eassados ao forno. Os pobres se contentam com um cardápiomais modesto. Os Persas comem poucos alimentos sólidos, masmuitas gulodices na sobremesa. Isso os leva a dizer que osGregos satisfazem logo o apetite porque depois da refeição nãolhes servem nada de bom; se lhes servissem, não deixariam decomer. São muito dados ao vinho, e não lhes é permitido

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vomitar nem urinar na presença de outrem. Observam aindahoje tais costumes. Têm o hábito de deliberar sobre os negóciosmais sérios depois de beberem muito; mas no dia seguinte, odono da casa onde estiveram reunidos traz novamente à baila aquestão, antes de começarem a beber de novo. Se aprovam, elapassa; se não, abandonam o assunto Às vezes, entretanto, dá-seo contrário: o que decidiram antes de beber passam a discutirnovamente durante a embriaguez.

CXXXIV — Quando dois persas se encontram na rua,sabe-se logo se são da mesma condição, pois se o foremsaúdam-se beijando-se na boca; se um é de origem um poucoinferior ao outro, beijam-se somente nas faces; se a condição deum é muito inferior à do outro, o inferior prosterna-se diante dosuperior. As nações vizinhas são as que eles mais estimam; àsvezes mais do que seu próprio país. Em segundo lugar vêm asque confinam com as vizinhas; e vão regulando assim a estima,proporcionalmente ao grau de afastamento. Aos mais afastados,quase nenhuma importância dão. Isso porque, julgando-se emtudo de um mérito superior, pensam que a maioria dos homenssó se torna virtuosa em conseqüência da aproximação deles,devendo, portanto, os mais afastados, que menos recebem essainfluência, recair na maldade. Quando do domínio dos Medos,havia uma ordem de subordinação entre os diversos povos. OsMedos governavam a todos, bem como os mais próximosvizinhos. Estes comandavam os que com eles confinavam, osquais, por sua vez, dirigiam os outros vizinhos, e assim pordiante. Os Persas, cujo império e administração se estenderamnum raio de amplitude imensa, adotaram a mesma atitude comrelação aos povos que dominavam.

CXXXV — Os Persas assimilam facilmente oscostumes estrangeiros. Dominados os Medos, começaram aadotar os trajes destes por considerá-los mais belos do que osseus. Nas guerras, envergam couraças à maneira egípcia.Entregam-se com ardor aos prazeres de todo gênero, de que

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ouvem falar, e adquiriram com os Gregos o amor aos jovens.Desposa, cada um deles, em casamento legítimo, diversasmulheres, o que não impede de possuírem ainda váriasconcubinas.

CXXXVI — Depois das virtudes guerreiras, encaramcomo grande mérito o ter muitos filhos. O rei gratifica todos osanos os casais mais prolíficos. A razão dessa tendência parauma prole numerosa está em considerarem os Persas que a forçaviril é demonstrada pelo grande número de filhos. Estes elescomeçam a instruir aos cinco anos de idade, e daí até os vinte sólhes ensinam três coisas que consideram as mais importantes:montar a cavalo, atirar com o arco e dizer a verdade. Antes decompletar cinco anos, um filho não se apresenta ao pai;permanece sempre junto à mãe e sob os cuidados dela. Adotamesse costume para que, no caso do filho morrer muito criança, aperda não cause desgosto ao pai.

CXXXVII — Tal costume me parece louvável. Aprovotambém a lei que não permite a ninguém, nem mesmo ao rei,mandar matar um homem por um só crime, nem a nenhum persapunir rigorosamente um dos seus escravos por uma só falta. Sedepois de refletido exame o senhor achar que as faltas do servosão em maior número e mais consideráveis do que os serviços,pode então dar expansão à sua cólera. Asseguram os Persasnunca ter alguém, entre eles, matado o pai ou a mãe, pois todasas vezes que se tem notícia de um tal crime, descobre-se, depoisde rigorosas pesquisas, que o filho criminoso, ou era suposto ouadulterino. Isso porque os Persas não podem admitir apossibilidade de um homem matar o verdadeiro autor dos seusdias.

CXXXVIII — Não lhes é permitido falar das coisas quenão podem fazer. Nada lhes parece mais vergonhoso do que amentira, e depois da mentira, contrair dívidas; isso por váriasrazões, mas sobretudo porque quem possui dívidas mente por

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força. Um cidadão contaminado da lepra branca não pode entrarna cidade e nem ter qualquer espécie de contato com o resto dosPersas, pois vêem nisso uma prova de haver o indivíduo pecadocontra o Sol. Todo estrangeiro atacado desse mal é afastado dopaís; e, pela mesma razão, não podem tolerar os pombosbrancos. Não urinam nem escarram nos rios; ali não lavam nemmesmo as mãos e nem permitem que alguém o faça, poisadotam o culto dos rios(3).

CXXXIX — Têm eles também algo de singular que nemeles mesmos percebem e que, no entanto, não nos escapou: Seusnomes, derivados dos atributos do corpo e das qualidades doindivíduo, terminam pela mesma letra a que os Dóriosdenominam san e os Iônios sigma; e se prestardes atenção,vereis que os nomes dos Persas terminam todos da mesmamaneira, sem exceção de um só.

CXL — Sobre o que acabo de expor, posso falar cominteira segurança; mas o que se segue é assunto privado e não sebaseia na mesma certeza: Não se enterra, absolutamente, ocorpo de um persa, sem ter sido ele, antes, estraçalhado por umpássaro ou cão. Quanto aos magos, estou seguro de queobservam esse costume, pois praticam-no à vista de todos. OsPersas untam de cera os mortos e enterram-nos em seguida.

Os magos diferem muito dos outros homens eparticularmente dos sacerdotes do Egito. Estes têm as mãossempre puras do sangue de animais e não matam senão os queimolam aos deuses. Os magos, ao contrário, matam com aspróprias mãos toda espécie de animais, com exceção do homeme do cão; vangloriam-se mesmo de matar igualmente asformigas, as serpentes e outros animais, tanto répteis comovoláteis. Deixemos, todavia, esse costume, tal como tem sidoadotado, e retomemos o fio de nossa história.

CXLI — Mal os Lídios haviam sido subjugados pelosPersas, e já os Iônios e os Eólios enviavam embaixadores a

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Ciro, em Sardes, pedindo-lhe para acolhê-los no número dosseus súditos, nas mesmas condições em que o foram de Creso.O príncipe respondeu a essa proposta com este apólogo: Umtocador de flauta, tendo percebido peixes no mar, pôs-se atocá-la, imaginando que eles viriam à terra. Vendo malogradoseu intento, lançou à água uma rede e retirou-a com grandequantidade de peixes, depositando-os no chão; e vendo-ossaltar, disse: “Cessai, cessai agora de dançar, pois não quisestesvir a mim ao som da minha flauta”.

Deu essa resposta aos Iônios e aos Eólios porque, tendooutrora concitado os primeiros, por intermédio deembaixadores, a abandonar o partido de Creso, não conseguiraconvencê-los, e agora via-os dispostos a obedecer-lhe somenteporque vencera. Diante disso, os Iônios fortificaram suascidades e reuniram-se todos no Panionium, com exceção dosMilésios, os únicos com os quais Ciro fez um tratado nasmesmas condições a eles concedidas por Creso. Nesse conselhodos Iônios ficou unanimemente resolvido o envio de um pedidode socorro a Esparta.

CXLII — Os Iônios, aos quais pertence o Panionium,construíram suas cidades nas regiões mais agradáveis queconheço, quer pela beleza do céu, quer pelo clima. Com efeito,os países que circundam a Iônia, ao norte ou ao sul, a leste ou aoeste, não podem absolutamente comparar-se com ela; uns,sujeitos às chuvas e aos rigores do Inverno; outros, ao calor e àseca. Os Iônios não falam todos o mesmo dialeto; suas palavrastêm quatro espécies de terminação. Mileto é a primeira de suascidades ao sul, vindo em seguida Mionte e Priena, que ficam naCária e onde a língua é a mesma. Éfeso, Cólofon, Lébedo, Teos,Clazômenas e Focéia ficam situadas na Lídia. Estes povosfalam entre si um mesmo idioma, mas que não é entendido nasprimeiras cidades a que me referi. Há ainda três outras cidadesiônias, das quais duas ficam nas ilhas de Samos e Quios, e aterceira, Eritréia, no continente. A língua dos habitantes de

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Quios e da Eritréia é a mesma; mas os de Samos possuem umidioma particular, deles somente.

CXLIII — Entre os Iônios, apenas os habitantes deMileto, para se porem a coberto de todo perigo, conseguiramfazer um tratado com Ciro. Quanto aos insulares, não tinham,no momento, nada a temer, uma vez que os Fenícios ainda nãoestavam submetidos aos Persas, e estes não possuíam marinha.Os Milésios, de resto, se haviam separado dos outros Iônios,porque se todos os gregos reunidos ainda eram muito fracos, osIônios o eram ainda mais e não gozavam de nenhumaconsideração. Realmente, com exceção de Atenas, nenhuma dascidades da Iônia se tornou célebre. A maioria dos Iônios e dosAtenienses não queria que os chamassem de Iônios; o nomedesagradava-os, e até hoje quase todos se envergonham detrazê-lo. As doze cidades de que acabo de falar fizeramconstruir um templo, a que chamavam de Panionium, etomaram a resolução de excluir dele as outras cidades iônias. OsEsmírnios foram os únicos que solicitaram e tiveram ingressoali.

CXLIV — A mesma resolução adotaram os Dórios dePentápolis, outrora chamada Hexápolis. Não admitem notemplo triópico nenhum dório da vizinhança; e se alguém daprópria Pentápolis viola as leis do templo, é dele excluído. Nosjogos celebrados em honra a Apolo Triópico concediam-setripés de bronze aos vencedores, não sendo, porém, a estespermitido retirá-los do templo; deviam consagrá-los aos deuses.Um habitante de Halicarnasso, de nome Agasicles, tendoconquistado um prêmio nesses jogos, levou o tripé para casa,desprezando a proibição. As cinco cidades dórias: Lindo, Iáliso,Camiro, Cós e Cnido puniram Halicarnasso, que era a sexta,excluindo-a da comunidade.

CXLV — Os Iônios estão, creio eu, divididos em dozecantões e não querem admitir maior número em sua

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confederação, pois no tempo em que habitavam o Peloponeso seachavam repartidos em doze grupos, da mesma maneira queainda o são agora os Aqueus, que os expulsaram. Pelena é aprimeira cidade dos Aqueus, do lado de Cicione. Encontramos,em seguida, Egira, Ege, — banhada pelo Crátis, que nunca secae que deu seu nome a um rio da Itália — Bure, Hélice — ondeos Iônios se refugiaram depois de derrotados pelos Aqueus —Égio, Ripe, Patras, Fáris e Oleno, banhada pelo Pírus, rio degrande volume de água. Temos ainda Dimo e Tritéia, as únicassituadas na zona central.

CXLVI — Os doze cantões, hoje habitados pelosAqueus, pertenciam outrora aos Iônios, e foi isso que levouestes a construir doze cidades na Ásia. Seria rematada toliceacreditar que esses Iônios são superiores ou de linhagem maisilustre do que os outros, porquanto os Abantes da Eubéia estão,em parte considerável, mesclados com esses povos e nada têmde comum com os habitantes da Iônia, nem sequer o nome. OsAtenienses consideram como os mais nobres e mais ilustres dosIônios os que saíram do Pritaneu(4). Quando os Pritanes foramfundar sua colônia, não levaram mulheres consigo, masdesposaram mulheres carianas, cujos pais haviam matado. Essasmulheres, furiosas com o massacre de seus pais, maridos efilhos, e pelo fato de os Pritanes as terem, depois disso, tomadopor esposas, impuseram a si próprias uma lei: a de nuncafazerem suas refeições em companhia do marido e de jamaislhes dar esse nome, lei essa que juraram observar e transmitidaaos seus descendentes. Foi em Mileto que isso se passou.

CXLVII — Os Iônios elegeram como reis, uns osLícios, descendentes de Glauco, filho de Hipóloco; outros, osCuacones Pílio, descendentes de Codro, filho de Melantres;outros, enfim, recorreram a ambas as raças. Estou de acordocom os que afirmam que os Iônios estão mais identificados comesse nome do que o resto da nação e que são eles os puros, osverdadeiros Iônios; mas convém que se saiba que todos os que

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se originaram de Atenas e que celebram a festa das Apatúriassão também Iônios.

CXLVIII — O Panionium é um lugar sagrado, no monteMícale, dedicado pelos Iônios, em comum, a Netuno Helicônio.Acha-se voltado para o norte. Mícale é um promontório docontinente, estendendo-se para oeste, na direção de Samos. OsIônios de todas as cidades reúnem-se ali para celebrar uma festadenominada Paniônia. Os nomes das festas dos Iônios terminamsempre pelas mesmas letras, tendo elas isso em comum com asdos Gregos e com os nomes próprios dos Persas.

CXLIX — Eis o que eu tinha a dizer sobre as cidadesdos Iônios. As dos Eólios são: Cimo, também chamadaFricónis, Larissa, Neontico, Temnos, Cila, Nócio, Egirusa,Pitanéia, Egéia, Mirina e Grínia. Aí estão as onze antigascidades dos Eólios. Eram doze as cidades, espalhadas nocontinente, mas os Iônios lhes arrebataram Esmirna. O país dosEólios é mais fértil do que o dos Iônios, entretanto de climabem diferente.

CL — Vejamos como os Eólios vieram a perderEsmirna. Os Colofônios, tendo fracassado numa sedição, foramobrigados a expatriar-se. Os habitantes de Esmirna deram-lhesasilo. Algum tempo depois, os fugitivos, observando que o povode Esmirna celebrava fora da cidade uma festa em honra aBaco, fecharam os portões e apoderaram-se da praça. Os Eóliosvieram todos em socorro, mas acabaram transigindo, ficandoconvencionado que eles deixariam os captores de posse dacidade, desde que estes lhes entregassem todos os móveis. OsEsmírnios, tendo aceito a condição, foram distribuídos pelasonze cidades eólias, que lhes concederam direitos de cidadania.

CLI — Além dessas cidades situadas no continente, osEólios possuem ainda cinco núcleos urbanos na ilha de Lesbos.Havia um sexto núcleo denominado Arisba, cujos habitantesforam reduzidos à escravidão pelos Metimneus, embora

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houvesse entre eles laços de consangüinidade. Os Eóliospossuem também uma cidade na ilha de Tênedos e outra nasCem Ilhas. Os Lésbios e os Tenédios não tinham, então, nada atemer, e muito menos os do ramo iônio que habitavam as ilhas;mas os habitantes das outras cidades resolveram seguir osIônios para toda parte, para onde quer que eles os quisessemconduzir.

CLII — Os embaixadores dos Iônios e dos Eólios, tendoido a Esparta em diligência, escolheram, logo ao chegar, umfócio de nome Pitermo para falar em nome de todos. Pitermovestiu um traje de púrpura, a fim de que, ante aquela novidade,os Espartanos acorressem em grande número à assembléia.Adiantando-se para o meio deles, Pitermo exortou-os, com umlongo discurso, a tomar-lhes a defesa; mas os Lacedemônios,sem levar em consideração esse pedido, resolveram não lhesconceder nenhum auxílio. Os Iônios retiraram-se. Embora nãoatendessem àquele apelo, os Lacedemônios decidiram enviarem um navio de cinqüenta remos, emissários para observar oestado em que se encontravam os negócios de Ciro e da Iônia.Chegando a Focéia, os deputados enviaram Lacrines, o maisilustre dentre eles, a Sardes, para dizer a Ciro, em nome dosLacedemônios, que não procurasse causar dano a nenhumacidade da Grécia, pois Esparta não poderia tolerar isso.

CLIII — Tendo Lacrines executado as ordens, dizemhaver Ciro perguntado aos gregos presentes que espécie dehomens eram os Lacedemônios e qual o número deles parausarem daquela linguagem. Recebendo a resposta, dirigiu-senestes termos ao arauto dos Espartanos: “Nunca temi essa genteque possui no centro da sua cidade uma praça onde se reúnepara enganar uns aos outros por meio de juramentos recíprocos.Se os deuses me conservarem a saúde, encontrará tal povo maismotivos para comentar a própria desgraça do que os Iônios”.Ciro lançou essas palavras ameaçadoras contra todos os Gregos,pois se referia às feiras livres que eles mantêm nas suas cidades.

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Os Persas não adotam o costume de mercadejar nas praçaspúblicas, não existindo nas suas cidades nenhum mercado.

Confiando o governo de Sardes a um persa de nomeTabalo e encarregando o lídio Páctias de transportar para aPérsia os tesouros de Creso e dos outros lídios, o príncipevoltou para Ecbatana, levando o soberano vencido em suacompanhia, pouco caso fazendo dos Iônios para pensar emmarchar primeiramente contra eles. Babilônia, os Bactros, osSácios e os Egípcios constituíam maiores obstáculos aos seusdesígnios. Resolveu ir combater em pessoa esses povos e enviarum outro general contra os Iônios.

CLIV — Mal Ciro partiu de Sardes, Páctias sublevou osLídios contra o príncipe e Tabalo. Como tinha nas mãos todasas riquezas da cidade, desceu até o litoral, contratou tropasmercenárias, concitou os habitantes da zona costeira acoadjuvá-lo na luta e marchou contra Sardes, atacando Tabalo,que se retirou para a cidadela.

CLV — Tendo tido em caminho conhecimento dainsurreição, Ciro assim se dirigiu a Creso: “Qual será o fim desemelhante aventura? Pelo que vejo, os Lídios não deixarão decriar-me dificuldades, provocando-as eles próprios. Quem sabese não seria mais vantajoso reduzi-los à escravidão? Parece-meque agi como alguém que houvesse poupado os filhos de umapessoa a quem matou. Eras para os Lídios mais do que um pai;levo-te prisioneiro e entrego-lhes a cidade. Não me causaespanto vê-los rebelar-se”. Essa declaração exprimia a maneirade pensar do príncipe; e Creso, receando que ele destruísseinteiramente a cidade de Sardes, tornou a palavra: “O queacabas de dizer é justo, mas não te abandones à cólera e nãodestruas, de forma alguma, uma cidade antiga, que não temculpa das perturbações passadas e nem das de hoje. Fui a causadas primeiras e sofro as conseqüências. O culpado agora éPáctias, a quem confiastes o governo de Sardes; que seja ele

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punido. Perdoa aos Lídios, e para evitar que no futuro se tornemperigosos e se sublevem, proíbe-os de trazer armas, ordena-lhesa usar túnicas sob os seus mantos, a calçar sapatos de salto alto,a ensinar as crianças a tocar cítara, a cantar e a comerciar. Poresse meio, senhor, verás logo os homens transformados emmulheres e não haverá mais receio de revolta da parte deles”.

CLVI — Creso deu-lhe esse conselho, que lhe pareceumais vantajoso para os Lídios do que serem vendidos como visescravos. Sentia que sem alegar boas razões não faria Ciromudar de resolução. Além disso, receava, no caso dos Lídiosescaparem do atual perigo, a tentativa de uma nova revolta,capaz de atrair sobre eles a ruína total. A sugestão foi muitobem recebida por Ciro. Passado o momento de cólera,pareceu-lhe acertado seguir o conselho de Creso. Mandouimediatamente chamar um meda de nome Mazarés,ordenando-lhe que transmitisse aos Lídios a decisão sugeridapor Creso e reduzisse à servidão todos os que se haviam aliadopara cercar Sardes, trazendo-lhe, principalmente, Páctias vivo.Dando essas ordens, continuou a viagem para a Pérsia.

CLVII — Páctias, informado de que o exército quemarchava contra ele se aproximava de Sardes, sentiu-se tomadode pânico e fugiu para Cimo. Entretanto, Mazarés chegou aSardes com uma pequena parte das tropas de Ciro, e não tendoencontrado Páctias, deu cumprimento às outras ordens de Ciro.Os Lídios submeteram-se e mudaram sua antiga maneira deviver. Em seguida, Mazarés mandou intimar os habitantes deCimo a entregar-lhe Páctias. Reunindo-se em conselho, osCímios deliberaram consultar o oráculo dos Branquides sobre opartido a tomar. O local em que se encontrava esse oráculo, aque os Iônios e os Eólios costumavam recorrer, estava situadono território de Mileto, acima do porto de Panorma.

CLVIII — Os Címios, por meio de delegados,perguntaram aos Branquides como deveriam proceder com

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relação a Páctias, a fim de se tornarem agradáveis aos deuses. Ooráculo respondeu ser necessário entregá-lo aos Persas. Diantedisso, os Címios resolveram satisfazer a exigência de Mazarés,entregando-lhe Páctias. Todavia, embora fosse essa a opinião damaioria dos Címios, Aristódico, filho de Heraclides, homemilustre e gozando de grande consideração entre seuscompatriotas, opôs-se à resolução, impedindo que a tomassemantes de fazer nova consulta ao oráculo, na qual ele figurariaentre os delegados, certamente porque desconfiava dainfidelidade destes ou do próprio oráculo.

CLIX — Logo que os deputados chegaram aosBranquides, Aristódico, tomando a palavra, consultou o deusnestes termos: “Grande deus, o lídio Páctias veio procurar asiloentre nós, para fugir à morte de que o ameaçam os Persas. Elesnos intimam a entregá-lo, mas, embora lhes receemos o poder,decidimos não cumprir a ordem sem que primeiro soubéssemosde vós, com segurança, o que devemos fazer”. O oráculorespondeu da maneira que fizera antes, ordenando-lhes queentregassem Páctias aos Persas. Diante disso, Aristódicodirigiu-se, com premeditado propósito, em torno do templo eretirou os pardais e todas as outras espécies de pássaros que alifaziam ninho. Conta-se que, enquanto assim procedia, uma voz,vinda do santuário, invectivou-o: “Ó celerado, tens a audácia dearrancar do meu templo os meus suplicantes?”, ao queAristódico, sem se perturbar, replicou: “Então, grande deus,socorreis os vossos suplicantes e ordenais aos Címios queentreguem ao inimigo o deles?” “Quero que assim seja; —volveu a voz — e para que, tendo cometido uma impiedade, nãoincorras no risco de perecer, aconselho-te a não vir maisconsultar o oráculo para saber se deves ou não entregarsuplicantes”.

CLX — Ante a nova resposta dos delegados, os Címiosenviaram Páctias a Mitilene, não desejando, nem expor-selibertando-o, nem serem sitiados continuando a dar-lhe asilo.

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Tendo Mazarés exigido dos Mitilênios a devolução de Páctias,eles se dispuseram a entregá-lo mediante uma certarecompensa, que não ouso, entretanto, precisar, pois o acordonão se realizou. Os Címios, sabedores da intenção dosMitilênios, enviaram a Lesbos um navio, que transportouPáctias para Quios.

Os habitantes dessa ilha arrancaram-no do templo deMinerva Polioucos e o entregaram a Mazarés com a condiçãode este lhes dar Atarnéia, país da Mísia, defronte de Lesbos.

Quando os Persas tiveram Páctias nas mãos,guardaram-no com a maior segurança, para apresentá-lo a Ciro.Depois desse acontecimento, os habitantes de Quios levarammuito tempo sem ousar, nos sacrifícios, espalhar sobre a cabeçada vítima a aveia de Atarnéia, nem oferecer a qualquer deusbolos feitos com farinha desse cantão, excluindo dos templostudo que dali provinha.

CLXI — Mal os habitantes de Quios entregaram Páctias,Mazarés marchou contra os que se haviam unido ao rebeldepara cercar Tabalo. Reduziu os Priênios à servidão, fez umaincursão na planície do Meandro e permitiu aos soldadossaquearem tudo. Tratou da mesma maneira Magnésia, depois doque, caindo doente, morreu.

CLXII — Hárpago sucedeu-o no comando do exército.Era meda de nascimento, como Mazarés, e, por causa de umarefeição abominável que lhe oferecera Astíages, auxiliara Ciro aapoderar-se do trono da Média. Logo que Ciro o nomeougeneral, passou ele para a Iônia e tomou as cidades por meio deentrincheiramentos: assim que encurralava os habitantes pordetrás das barreiras, reduzia estas últimas, erguendo terraços aonível das muralhas. Focéia foi a primeira cidade conquistada.

CLXIII — Foram os Fócios os primeiros entre osGregos a empreender longas viagens marítimas e a conhecer o

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mar Adriático, a Tirrênia, a Ibéria e Tartesso. Não se serviam deembarcações redondas, mas de navios de cinqüenta remos.Tendo chegado a Tartesso, caíram nas graças de Argantônio, reidos Tartéssios e que governou durante oitenta anos, tendovivido cem anos. Souberam, de certo, fazer-se estimar por essesoberano, que lhes aconselhou a deixar a Iônia e a seestabelecerem na região do Tartesso que mais lhes conviesse;mas não conseguindo persuadi-los e tendo sabido por eles queas forças de Creso aumentavam cada vez mais, deu-lhes certasoma de dinheiro para cercarem sua cidade de muralhas. Essaquantia devia ser considerável, pois eles ergueram um círculode muralhas de grande amplitude, todas de pedras enormes eagregadas com arte.

CLXIV — Aproximando-se dessa praça, Hárpagoestabeleceu o cerco, mandando dizer, ao mesmo tempo, aosFócios, que ficaria satisfeito se eles demolissem apenas uma desuas ameias e consagrassem uma casa. Como não podiamsuportar a escravidão, os Fócios pediram um dia para deliberarsobre a proposta, comprometendo-se, depois disso, a dar suaresposta. Pediram-lhe também para retirar as tropas da frentedas muralhas enquanto se mantinham em conselho. Hárpagorespondeu-lhes que, embora não ignorasse suas intenções, nadafaria para impedi-los de deliberar. Enquanto o meda retiravasuas tropas, os Fócios lançaram seus navios ao mar, nelescolocando as esposas, os filhos, os móveis e, além do mais, asestátuas e as oferendas que se achavam no templo, excetoquadros e as obras de bronze e de pedra, depois detransportarem tudo para os navios, embarcaram e abriram velaspara Quios. Os Persas, encontrando a cidade abandonada, delase apoderaram.

CLXV — Vendo que os habitantes de Quios nãoqueriam vender-lhes as ilhas Enussas com receio de que eleslhes prejudicassem o comércio, os Fócios retirantes rumarampara Cirne, onde vinte anos antes haviam construído a cidade de

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Alalia em obediência a um oráculo. Aliás, Argantônio tinhamorrido nesse intervalo. Antes porém de aportarem a Cirne,retornaram a Focéia, massacrando a guarnição deixada porHárpago. Dirigindo, em seguida, as mais terríveis imprecaçõescontra os que se haviam separado da frota, atiraram ao mar umpedaço de ferro em brasa, formulando o juramento de nãoretornarem jamais a Focéia enquanto o pedaço de ferro nãovoltasse à tona. Todavia, quando se achavam em caminho paraCirne, mais da metade deles, com saudades da pátria e dosvelhos lares, violou o juramento e regressou a Focéia. Osoutros, mais religiosos, continuaram a rota, deixando para trásas ilhas Enussas.

CLXVI — Ao chegarem a Cirne, ergueram templos eresidiram pelo espaço de cinco anos com os colonos que ostinham precedido; mas como devastavam e saqueavam osvizinhos, os Tirrênios e os Cartagineses lançaram-se ao mar, decomum acordo, em sessenta navios, para dar-lhes combate. OsFócios, por sua vez, equipando um número correspondente deembarcações, foram-lhes ao encontro no mar da Sardenha.Conseguiram uma vitória cadmiana(5) pois perderam quarentanavios, ficando os outros inutilizados. Retornaram a Alalia, ereunindo as mulheres, os filhos e tudo mais que puderamarrecadar do resto dos seus bens, abandonaram Cirne, rumandopara Régio.

CLXVII — Os Cartagineses e os Tirrênios repartirampor sorteio os Fócios que haviam aprisionado, ficando ossegundos com maior número. Levaram-nos, então, para terra,massacrando-os com pedradas. Desde essa ocasião, nem gado,nem animal de carga, nem mesmo os homens, numa palavra,ninguém que pertencesse aos Agilenses pôde mais atravessar ocampo onde os Fócios haviam sido aniquilados, sem ter osmembros deslocados ou tornar-se disformes, estropiados ouparalíticos. Os Agilenses mandaram delegados a Delfos paraexpiarem o seu crime. A pitonisa ordenou-lhes realizar

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suntuosas cerimônias fúnebres às suas vítimas e instituir em suahonra jogos gímnicos e corridas de carro. Os Agilenses realizamainda hoje essas cerimônias.

Tal foi a sorte desses Fócios. Quanto aos que serefugiaram em Régio, partindo dali construíram nos campos daEnótria a cidade hoje conhecida por Hiléia. Isso fizeram aconselho de um habitante de Possidônia, que lhes dissera havera pitonisa ordenado em resposta a uma consulta, oestabelecimento de uma colônia na ilha de Cirne e a ereção deum monumento ao herói de Cirnos.

CLXVIII — Os Teienses conduziram-se mais ou menoscomo os Fócios. Realmente, mal Hárpago ocupara suasmuralhas por meio de um terraço improvisado, fizeram-se aomar, passando-se para a Trácia, onde construíram a cidade deAbdera. Timésios de Clazômenas já a tinha fundado antes, masos Trácios o expulsaram de lá. Os Teienses de Abderarendem-lhe hoje culto como a um herói.

CLXIX — Esses povos forarn os únicos entre os Iônios,que preferiram abandonar a pátria a suportar o jugo doestrangeiro. É verdade que o resto dos Iônios, com exceção dosde Mileto, lutaram contra Hárpago, a exemplo dos que haviamdeixado a Iônia, e deram provas de valor defendendo cada qualsua pátria; mas vencidos e caindo em poder do inimigo, foramcompelidos a permanecer no país e a submeter-se ao vencedor.Quanto aos Milésios, tinham eles, como já disse antes, prestadojuramento de fidelidade a Ciro, ficando em perfeitatranqüilidade. A Iônia foi, assim, reduzida à escravidão pelasegunda vez. Os Iônios habitantes das ilhas, receando destinosemelhante ao que Hárpago impusera aos do continente,renderam-se voluntariamente a Ciro.

CLXX — Embora acabrunhados por esses reveses, osIônios não deixavam de reunir-se no Panionium. Bias de Prienedeu-lhes, como dissemos, um conselho útil, que os tornaria os

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mais felizes de todos os Gregos se o tivessem seguido:Exortou-os a embarcar, todos juntos, numa mesma frota edirigir-se para a Sardenha, e ali fundar uma única cidade paratodos os Iônios. Fez-lhes ver que por esse meio poderiamescapar à escravidão e que, habitando a maior de todas as ilhas,as outras lhes cairiam nas mãos, enquanto que, sepermanecessem na Iônia, não teriam nenhuma possibilidade derecobrar a liberdade. Tal foi o conselho dado por Bias ao Iôniosdepois do desastre destes últimos; mas antes de eles haveremrecaído na servidão, Tales de Mileto, cujos ancestrais eramoriginários da Fenícia, fez-lhes outra excelente sugestão: a deestabelecerem em Teos, no centro da Iônia, um conselho geralpara toda a nação, sem prejudicar o governo das outras cidades,as quais continuariam seguindo seus usos e costumesparticulares, como se fossem outros tantos estados separados.

CLXXI — Hárpago, tendo subjugado a Iônia, voltou-secontra os Cários, os Cáunios e os Lícios, com um reforço detropas fornecido pelos Iônios e Eólios. Os Cários, que passaramdas ilhas para o continente, tinham sido outrora súditos deMinos. Eram então conhecidos pela designação de Lelegos.Habitavam as ilhas e não pagavam nenhuma espécie de tributo— pelo menos assim depreendo das suas mais antigas tradições—, mas todas as vezes que Minos deles precisava, atendiamprontamente com seus navios. Enquanto esse príncipe, feliz naguerra, ampliava suas conquistas, os Cários angariavam maiorcelebridade do que todos os povos conhecidos de então. A elesse devem três invenções adotadas mais tarde pelos Gregos.Foram, com efeito, os Cários os primeiros a colocar penachosnos capacetes, a ornar de figuras os escudos, a acrescentar umaalça de couro a essa arma e a manejá-la por meio de umtalabarte de couro, passado pelo pescoço e pelo ombroesquerdo. Muito tempo depois, os Dórios e os Iôniosexpulsaram os Cários das ilhas, e assim passaram estes para ocontinente. Eis o que os Cretenses contam dos Cários; mas esteshistoriam de maneira diferente a própria origem. Dizem ser

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originários do continente, acreditando não haverem jamais tidonome diferente do que hoje trazem. Mostram também emMilassa um antigo templo dedicado a Júpiter Cário, onde sóadmitem a presença dos Milésios e dos Lídios, em razão daafinidade que possuem com esses povos. Dizem que Lido eMiso eram irmãos de Caro, de onde a aproximação entre essespovos.

CLXXII — Quanto aos Cáunios, parece-me serem elesautóctones, embora se digam originários de Creta. Se moldaramsua língua pela dos Cários, ou se estes moldaram a sua peladeles, é coisa que não posso afirmar com segurança. Possuem,entretanto, costumes bem diferentes dos dos Cários e de todosos demais povos. Constitui entre eles ato muito honesto oreunirem-se para beber, homens, mulheres e crianças, pelaordem da idade ou grau de amizade. Prestavam culto aos deusesestrangeiros, mas, mudando de sentimento, resolveram não maisse dirigirem a nenhuma divindade senão às do país. Todos osjovens cáunios, munidos de armas e terçando no ar as lanças,arrastaram até as fronteiras as estátuas dos deuses estrangeiros,proclamando que os estavam expulsando.

CLXXIII — Os Lícios, originários de Creta, remontam àmais alta antigüidade. Desde os tempos mais recuados, a ilhainteira se achava completamente ocupada pelos bárbaros.Sarpédon e Minos, filhos de Europa, disputaram entre si asoberania. Minos levou a melhor e Sarpédon foi expulso comtodos os seus partidários, indo ter à Milíada, cantão da Ásia —o país que hoje habitam os Lícios chamava-se outrora Milíada,e os Mílios tinham o nome de Sólimos. Durante o tempo em queSarpédon reinou sobre eles, eram chamados Térmilos; mas,tendo Lico, filho de Pandíon, sido expulso de Atenas pelo seuirmão Egeu e procurado refúgio entre os Térmilos, junto aSarpédon, esse povo passou a chamar-se, com o tempo, Lícios,por causa do nome do referido príncipe. Seguem os Lícios, emparte, os costumes de Creta, e em parte, os da Cária. Possuem

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um, entretanto, que lhes é muito peculiar: adotam o nome damãe em lugar do do pai. Se perguntarmos a um Lício a quefamília pertence, ele dá-nos a genealogia da mãe e dosantepassados da mãe. Se uma mulher de condição livre desposaum escravo, os filhos são considerados nobres. Se, ao contrário,um cidadão, mesmo da mais elevada categoria, desposa umaestrangeira ou uma concubina, os filhos são espúrios.

CLXXIV — Os Cários foram submetidos por Hárpagosem nada terem feito de memorável. E não somente eles. Todosos Gregos que habitavam esse país coisa alguma fizeram que osdistinguisse. Figuram ainda nesse número os Cnídios, colonosda Lacedemônia, cujo país, voltado para o mar, forma umpromontório chamado Triópio, onde começa a Bibássia. Toda aCnídia, excetuando uma pequena nesga, é cercada pelo mar: aonorte, pelo golfo Cerâmico; ao sul, pelo mar de Sima e deRodes. Foi essa estreita faixa de terra, cuja extensão não ia alémde cinco estádios, que os Cnídios, querendo, para sua maiorsegurança, isolar seu país do continente, transformando-o numailha, puseram-se a cavar enquanto Hárpago se achava ocupadocom a conquista da Iônia. Empregaram grande número detrabalhadores nessa empresa, mas os estilhaços de pedracomeçaram a feri-los de um modo tão extraordinário nasdiferentes partes do corpo e, principalmente, nos olhos, quepareciam revelar uma intervenção divina. Mandando perguntara Delfos que força se opunha aos seus esforços, a pitonisarespondeu-lhes nestes termos: “Não cavai e nem fortificai oistmo. Júpiter teria feito de vosso país uma ilha, se tal tivessesido a sua vontade”. Ante essa resposta, os Cnídios deixaram decavar, e quando Hárpago se apresentou diante deles,renderam-se sem combater.

CLXXV — Os Pedásios habitam uma região central, aonorte de Halicarnasso. Todas as vezes que esses povos e seusvizinhos são ameaçados por uma desgraça, uma longa barbacresce na sacerdotisa de Minerva. Esse fato extraordinário

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aconteceu três vezes. Os Pedásios foram os únicos povos daCária a resistir durante muito tempo a Hárpago, causando-lheinúmeros embaraços com a fortificação da montanha de Lida,mas acabaram sendo subjugados.

CLXXVI — Os Lícios foram ao encontro de Hárpagologo que ele apareceu à frente do seu exército nas planícies deXanto. Embora não fossem mais do que um punhado de homensem relação ao inimigo, bateram-se valorosamente; masperdendo a batalha e vendo-se forçados a entrincheirar-se nasmuralhas, levaram para a cidadela suas riquezas e, reunindo asmulheres, os filhos e os escravos, fizeram uma fogueira ereduziram a praça a cinzas com tudo o que ali se achava. Tendo,depois disso, selado um pacto pelo juramento mais terrível,realizaram uma sortida contra o invasor e pereceram todos emcombate. Assim, a maior parte dos Lícios que existem hoje edenominados Xântios é composta de estrangeiros, com exceçãode oitenta famílias que, por se acharem afastadas da pátria,escaparam à ruína comum. Assim foi tomada a cidade de Xanto.Hárpago apoderou-se da de Cauno quase da mesma maneira,pois os Cáunios seguiram, em grande parte, o exemplo dosLícios.

CLXXVII — Enquanto Hárpago devastava a ÁsiaMenor, Ciro, em pessoa, subjugava todas as nações da ÁsiaSuperior, sem exceção de nenhuma. Nada direi sobre a maioriadelas, contentando-me em falar das que lhe deram mais trabalhoe mais merecedoras de um lugar na história. Quando o príncipecolocou sob o seu domínio todo o continente, pensou em iratacar os Assírios.

CLXXVIII — A Assíria possui várias cidadesimportantes, mas Babilônia é a mais célebre e a mais forte detodas. Ali os reis do país haviam fixado residência desde adestruição de Nínive. A cidade, situada numa grande planície,forma um quadrado com cento e vinte estádios de cada lado. É

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de uma tal magnificência, que não conhecemos outra capaz decom ela comparar-se. Um fosso largo, profundo e cheio de águacircunda-a, erguendo-se adiante uma muralha de cinqüenta“côvados de rei” de espessura (o côvado de rei é três dedosmaior do que o comum).

CLXXIX — Vem a propósito acrescentar ao que acabode dizer, o emprego que se deu à terra retirada do fosso circulare de que maneira foi construída a muralha. À medida que osconstrutores cavavam o fosso, convertiam a terra em tijolos, equando já haviam reunido uma grande quantidade destes,levaram-nos ao forno. Em seguida, à guisa de cimentoutilizavam o betume quente, e de trinta em trinta camadas detijolos punham redes de caniços entrelaçados. Construíramprimeiramente, por esse processo, as bordas do fosso. Passaram,em seguida, para as muralhas, construindo-as da mesmamaneira. No alto e nas bordas da muralha ergueram-se torres deum único andar, umas diante das outras, entre as quais haviaespaço suficiente para dar passagem a um carro puxado porquatro cavalos. Cem portas de bronze maciço completavam amonumental obra. A oito dias de Babilônia fica a cidade de Is,situada à margem de um pequeno rio do mesmo nome e quedesemboca no Eufrates. Esse rio arrasta em suas águas grandequantidade de betume, o mesmo utilizado para cimentar osmuros de Babilônia.

CLXXX — O Eufrates corta a cidade pelo meio,dividindo-a em dois quarteirões. O rio é grande, profundo erápido; vem da Armênia e desemboca no mar Eritreu. Algumasdas muralhas formam verdadeiros cotovelos sobre o rio, e édesse ponto que parte um muro de tijolos, bordejando oEufrates. As casas são de três a quatro andares e as ruas retas ecortadas por outras que vão ter ao rio. Frente a estas últimasabriram-se no muro que corre ao longo do rio, pequenas portas,por onde se desce até as margens. Há tantas portas quantas ruastransversais.

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CLXXXI — O muro exterior serve de defesa; o interiornão é menos resistente, porém mais estreito. A parte central dosdois quarteirões é digna de nota: no primeiro encontra-se opalácio do rei, cujo recinto vasto se acha bem fortificado; nooutro, o templo consagrado a Júpiter Belo, cujas portas debronze ainda hoje subsistem. É um quadrado com dois estádiosde largura, no meio do qual se ergue uma torre maciça de umestádio de comprimento por outro de largura. Sobre essa torreeleva-se outra, e sobre essa segunda, outra ainda, e assim pordiante até completar oito. Do lado de fora construiu-se umaescada em caracol, que dá acesso às oito torres. Essa escada éprovida de postos de parada, com cadeiras para descanso dosque sobem. Na última torre encontra-se uma grande capela, enesta um amplo e bem guarnecido leito, tendo ao lado umamesa de ouro. Não se vêem estátuas. Ninguém ali passa a noite,a menos que seja alguma filha da terra, eleita pela divindade,como dizem os Caldeus, sacerdotes dessa divindade.

CLXXXII — Esses sacerdotes afirmam que o deus vemem pessoa à capela e repousa no leito, o que não me parececrível. Coisa idêntica se dá em Tebas, no Egito, a acreditar noque dizem os Egípcios, pois ali também se deita uma mulher notemplo de Júpiter Tebano. Dizem que tanto esta como aquelanão têm relações com nenhum homem. Ainda o mesmoacontece em Pátaros, na Lícia, quando o deus honra a cidadecom a sua presença. A sacerdotisa encerra-se durante a noite notemplo, e não se dão oráculos enquanto o deus ali permanece.

CLXXXIII — Na parte inferior do templo de Babilôniahá outra capela, onde se vê uma grande estátua de ourorepresentando Júpiter sentado. Ao lado, uma grande mesa deouro. O trono e o escabelo são do mesmo metal. Tudo isso,segundo informações dos Caldeus, pesa oitocentos talentos deouro. Vê-se também, fora da capela, um altar de ouro, e ao ladodesse, outro de grandes dimensões, onde se sacrifica o gadoadulto, pois no de ouro só é permitido sacrificar cordeiros ainda

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não desmamados. Os Caldeus queimam também no grandealtar, todos os anos, por ocasião das festas em honra do deus,mil talentos de incenso. Havia ainda naquele templo, no recintosagrado, uma estátua de ouro maciço de doze côvados de altura.Não a vi, contentando-me, portanto, a repetir o que dizem osCaldeus. Dario, filho de Histaspes, forjou um plano paraapropriar-se dela, mas não ousou executá-lo. Xerxes, filho deDario, matou o sacerdote que a ele se opôs nessa empresa eapoderou-se da estátua. Tais são as riquezas do templo, onde sevêem também muitas oferendas particulares.

CLXXXIV — Babilônia teve um grande número de reis.Em minha “História da Assíria” mencionarei os queembelezaram as muralhas e os templos, e, entre outros, duasmulheres. A primeira precedeu de cinco gerações a outra echamava-se Semíramis. Foi ela quem mandou construir osdiques colossais que contêm o Eufrates no leito, impedindo-o deinundar os campos, como acontecia outrora.

CLXXXV — A segunda rainha, Nitócris, era maisprudente que a primeira. Entre as suas obras memoráveis,destaca-se a seguinte: Tendo notado que os Medos, tornando-sepoderosos, não podiam permanecer inativos e iam conquistandocidades após cidades, inclusive Nínive, resolveu fortificar, tantoquanto possível, seu reino, prevenindo-se contra qualquerataque. Foi assim que, como primeira medida de defesa,mandou abrir canais ao norte de Babilônia, de que resultoutornar-se o Eufrates, que atravessa a cidade pelo meio, oblíquo etortuoso, a ponto de passar três vezes por Arderica, burgo daAssíria; e, ainda agora, os que descem o rio em direção aBabilônia passam pelo referido burgo três vezes em três dias.

Nitócris mandou erguer em seguida, de cada lado dacidade, uma cerca monumental, tanto pela largura como pelaaltura. Mais distante, ao norte da Babilônia, a pequena distânciado rio, mandou cavar um lago destinado a receber o excesso das

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águas do Eufrates nas cheias. Esse lago media quatrocentos evinte estádios de circunferência, e quanto à profundidade,sabe-se que cavaram até encontrar água. A terra retirada daliserviu para elevar as ribanceiras do rio. Terminada a abertura dolago, revestiram-lhe as margens de pedras. Essas duas obrastinham por fim tornar mais lento o curso do rio, quebrando-lheo ímpeto por um grande número de sinuosidades, e obrigar osque se dirigiam a Babilônia por via fluvial, a fazer várias voltas,forçando-os ainda, no fim do trajeto, a seguir o vasto contornodo reservatório. Realizou Nitócris esses trabalhos naquela partede seus estados mais exposta às incursões dos Medos e do ladoonde eles dispõem de caminho mais curto para penetrar naAssíria, a fim de que, não mantendo comércio com os Assírios,eles não pudessem tomar conhecimento dos seus negócios.

CLXXXVI — Concluídas essas obras, atirou-se a rainhaa nova iniciativa: Babilônia está dividida em duas partes, e oEufrates corta-a pelo meio. Nos reinados anteriores, quando sequeria ir de um lado a outro da cidade era necessário atravessaro rio de barca, o que não deixava de ser muito incômodo.Atendendo a isso, Nitócris, terminada a construção do lago,empreendeu uma obra digna de admiração. Fez talhar grandespedras e, quando estas estavam prontas, desviou as águas doEufrates para o lago. Enquanto este enchia, o rio secava.Mandou então revestir as margens de tijolos, assim como asrampas que iam das pequenas portas ao rio, servindo-se domesmo processo empregado na construção das muralhas.Mandou erguer também, no centro da cidade, uma ponte depedras ligadas com ferro e chumbo. Durante o dia, passava-sesobre peças de madeira quadradas, que eram retiradas à noite,para evitar que os habitantes, andando na escuridão, roubassemuns aos outros. Desviadas para o lago as águas do rio, teveinício a construção da ponte. Terminada esta, a corrente foidevolvida ao seu antigo leito. O terreno cavado tornou-se umverdadeiro pântano, cuja utilidade os Babilônios reconheceramconstruindo também uma ponte sobre ele, para utilizá-lo como

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julgassem necessário.

CLXXXVII — Eis a manobra imaginada ainda por essarainha: Mandou erguer um mausoléu sobre um dos portões maisfreqüentados da cidade, com a seguinte inscrição: “Se a algumdos reis que me sucederem em Babilônia vier a faltar dinheiro,abra ele este sepulcro e lance mão de quanto desejar; mas deveevitar abri-lo por outros motivos, pois, se não tiver do dinheirogrande necessidade, poderá arrepender-se disso”.

O túmulo permaneceu intacto até o reinado de Dario.Este príncipe, indignando-se por não haver ninguém, até ali,feito uso da porta e de não ter lançado mão do dinheiro emdepósito (os habitantes não se serviam da porta para não passarsob um cadáver), mandou abrir o sarcófago, encontrando apenaso corpo de Nitócris com esta inscrição: “Se não fossesinsaciável de dinheiro e ávido de ganho inconfessável, nãoterias aberto o túmulo dos mortos”.

CLXXXVIII — Foi contra o filho de Nitócris que Cirolançou suas tropas. Era o primeiro rei da Assíria e chamava-se,como o pai, Labineto. O grande rei não se pôs em marcha semlevar consigo grande quantidade de víveres e gado. Levoutambém um carregamento de água do Choaspe, que corre emdireção a Susa, pois não bebia outra. A água, fervida edepositada em jarros de prata, era transportada em carros dequatro rodas, puxados por mulas.

CLXXXIX — Ciro, marchando contra Babilônia,chegou às margens do Gindo. Este rio nasce nos montesMacianos, e depois de atravessar o país dos Dardaneus deságuano Tigre, que passa ao longo da cidade de Ópis e desemboca,por sua vez, no mar de Eritréia. Enquanto Ciro procuravaatravessar o Gindo (não pôde fazê-lo em barcas), um dos seuscavalos brancos, considerados sagrados, impelido pelo ardor,saltou na água e esforçou-se por ganhar a margem oposta; mas aforte correnteza arrastou-o, afogando-o. Ciro, indignado com a

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afronta do rio, ameaçou-o de torná-lo tão fraco que, dali emdiante, até as mulheres poderiam atravessá-lo sem molhar osjoelhos. Assim dizendo, suspendeu a expedição contraBabilônia, dividiu o exército em dois corpos, traçou com umacorda, ao longo do rio, cento e oitenta canais em diversossentidos, fazendo, em seguida, cavá-los pelas tropas. Conseguiurealizar tão vultosa empresa por haver empregado um númeroimenso de soldados, mas isso lhe ocupou as tropas durante todoo Verão.

CXC — Tendo-se vingado do Gindo cortando-o emtrezentos e sessenta canais, continuou a marcha para Babilôniaao anunciar-se a segunda Primavera. Os Babilônios, pondo suastropas em campo, esperaram de pé firme. Mal o inimigoapareceu nas vizinhanças da cidade, deram-lhe batalha, mas,batidos, encerraram-se atrás das muralhas.

Como sabiam, de longa data, que Ciro não ficariasossegado e que atacaria igualmente todas as nações, osBabilônios haviam reunido de antemão provisões para muitosanos. Por conseguinte, o cerco não os inquietava de maneiraalguma. Ciro encontrava-se em grande embaraço: cercava apraça há muito tempo e não tinha conseguido outra vantagemque a do primeiro dia.

CXCI — Finalmente, ou porque concluísse por simesmo sobre o que devia fazer, ou porque alguém, vendo-o emdificuldades, o aconselhasse, o príncipe tomou a seguinteresolução: Colocou o exército, parte no ponto onde o Eufratespenetra na Babilônia, parte no local onde o rio deixa o país,com ordem de invadir a cidade pelo leito do mesmo, logo setornasse vadeável. Com o exército assim distribuído, dirigiu-separa o lago com algumas tropas menos aguerridas. Alichegando, a exemplo do que fizera a rainha Nitócris, desviou aságuas do rio para o lago pelo canal de comunicação. As águasse escoaram, e o leito do rio facilitou a passagem. Sem perda de

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tempo, os Persas postados nas margens entraram na cidade, comas águas do rio dando apenas pelas coxas. Se os Babilôniostivessem sido instruídos com antecedência sobre o propósito deCiro, ou se o percebessem no momento da execução, poderiamter feito perecer todo o exército, evitando a invasão da cidade;bastaria fechar as portas que conduzem ao rio e atacá-lo domuro marginal; os soldados seriam apanhados como peixes narede. A verdade é que os Persas surgiram quando eram menosesperados, e, a acreditar no depoimento dos Babilônios, quandoos pontos extremos da cidade já se achavam em poder doinimigo, os defensores que se encontravam na parte centralainda não tinham conhecimento disso, tão grande era ela. Nomomento em que se deu a invasão, os Babilônios estavamrealizando um festim, e, longe de imaginar que um perigoiminente os ameaçava, entregavam-se aos prazeres e às danças.Quando se inteiraram da situação, era demasiado tarde. AssimBabilônia foi tomada pela primeira vez.

CXCII — Entre outras provas do poderio dosBabilônios, às quais me reportarei em seguida, insisto nesta: Emtodo o território do grande rei, o imposto pago era redistribuídoentre os diversos distritos para a manutenção da casa real e doexército. Ora, Babilônia faz essa despesa durante quatro dosdoze meses de que se compõe o ano, restando apenas oito paraas contribuições do resto da Ásia. A Babilônia corresponde,pois, em riqueza, a um terço da Ásia. O governo dessa província(os Persas dão o nome de satrapias a tais governos) era o melhorde todos. Mantinha ela ainda para o rei, em caráter particular esem contar os cavalos de guerra, um haras de oitocentosreprodutores e dezesseis mil éguas, de maneira que a cadareprodutor cabiam vinte éguas. Criava-se também ali grandequantidade de cães indianos. Quatro grandes burgos situados naplanície estavam encarregados de alimentá-los e isentos, porisso, de qualquer outro tributo. Tais os proventos que o reiretirava de Babilônia.

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CXCIII — As chuvas não são freqüentes na Assíria. Aágua do rio alimenta a semente e desenvolve a messe, não comoo Nilo, estendendo-se pelos campos, mas pelo trabalho humanoe por meio de máquinas; pois a Babilônia é, à semelhança doEgito, inteiramente cortada de canais, o maior dos quaiscomporta até navios. De todos os países que conhecemos, éesse, sem dúvida alguma, o mais fértil. Ali não se cultivamárvores; ali não se vêem nem a figueira, nem a videira, nem aoliveira. Em compensação, a terra se presta ao plantio de todaespécie de sementes, desenvolvendo-as na proporção deduzentas por uma, e até de trezentas em alguns anos. Ás folhasda aveia e do centeio chegam a quatro dedos de largura. Emboraeu não ignore a altura que ali atingem as hastes do milho e dosésamo, prefiro nada dizer sobre isso, pois sei que os que aindanão estiveram na Babilônia poderão dizer que estouexagerando. Os Babilônios não se servem do óleo extraído dosésamo. A planície em que se estende o país está coberta depalmeiras, a maioria das quais produz frutos; uns utilizados naalimentação e outros na fabricação do vinho e do mel. Apalmeira é ali cultivada da maneira que cultivamos a figueira.

CXCIV — Vou falar de outra maravilha que, depois dacidade, é a maior de todas as que encerra o país: os barcosutilizados para descer o rio até Babilônia, feitos de peles e deformato arredondado. Esses barcos são fabricados em uma parteda Armênia, ao norte da Assíria. A carena é feita de salgueiro, eos varais são revestidos exteriormente com peles,emprestando-lhes a configuração de uma prancha. Asextremidades são arredondadas como um escudo, não sedistinguindo a popa da proa, e o fundo enchem-no de palha.Depois de construídos, são lançados na correnteza do riocarregados de mercadorias e, principalmente, de vinho depalmeira. Dois homens o dirigem com dois remos, manejadosum do lado de dentro e outro do lado de fora. Esses barcosvariam em tamanho, podendo os maiores comportar até cincomil talentos de peso. Os menores podem transportar um asno, e

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os maiores, vários deles. Quando os tripulantes chegam aBabilônia e vendem a mercadoria, põem também à venda osvarais e a palha. Carregam depois os asnos com as peles evoltam para a Armênia, tangendo-os pela estrada.

CXCV — Quanto aos trajes, usam os Babilônios umatúnica de linho que vai até os pés, e, por cima, outra de lã,envolvendo-se, em seguida, num manto branco. O calçado emmoda no país assemelha-se aos dos Beócios. Deixam crescer ocabelo, cobrem a cabeça com uma espécie de mitra eimpregnam o corpo de perfume. Trazem, cada qual, um sinete eum bastão trabalhado a mão, com o cabo em forma de maçã, derosa, de lírio ou de um objeto qualquer, pois não lhes épermitido usar bengala ou bastão sem um ornamentocaracterístico. Tal a sua indumentária. Passemos às leis.

CXCVI — A mais sábia de todas, na minha opinião, é aque vigorava entre os Vênetos, povo da Ilíria: em cada burgo,os que possuíam filhas núbeis levavam-nas, todos os anos, a umcerto lugar, onde se reunia em torno delas grande quantidade dehomens. Um leiloeiro apregoava-as e vendia-as, uma apósoutra. Começava sempre pela mais bela, e depois de haverobtido boa soma por ela, passava a apregoar a que se lheaproximava em beleza, e assim por diante. Só as vendia, porém,com a condição de os compradores desposá-las. Todos osBabilônios ricos e em idade de casamento para lá se dirigiam,fazendo suas ofertas. Quanto à gente do povo que desejavacasar-se, como pouca pretensão tinha de desposar belascriaturas, arrematava as mais feias com o dinheiro que davam aestas. Com efeito, mal o leiloeiro terminava a venda das belas,erguia uma das mais feias ou uma das estropiadas, se ashouvesse, e apregoando-a pelo mais baixo preço, perguntavaquem queria desposá-la como condição essencial,adjudicando-a àquele que o prometesse. Assim, o dinheiroproveniente da venda das belas servia para fazer casar as feias eas estropiadas. Não era permitido ao pai escolher esposo para a

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filha, e quem comprava uma moça não podia conduzi-la paracasa sem a fiança de casamento. Só quando encontrava fiadorestinha o direito de levá-la dali, e se não encontrava, a leimandava que lhe devolvessem o dinheiro. Era tambémpermitido, indistintamente, aos habitantes de outros burgos,comparecer ao leilão e arrematar as moças.

Esta lei, tão sabiamente instituída, não subsiste mais. Deuns tempos para cá imaginaram outro meio para prevenir osmaus tratos que pudessem ser infligidos às mulheres e impedirque elas fossem levadas para outra cidade. Depois da tomada deBabilônia e das brutalidades sofridas pelos habitantes, osBabilônios perderam seus bens, e não há mais ninguém que, aover-se na indigência, não prostitua as filhas por dinheiro.

CXCVII — Depois do costume concernente aocasamento, o mais sábio é o que diz respeito aos doentes. Comonão há médicos no país, os doentes são transportados para apraça pública, e os transeuntes deles se acercam. Os que játiveram a mesma doença ou conheceram alguém que a tivesseacodem o enfermo com os seus conselhos, exortando-o a fazer oque eles próprios fizeram ou viram outros fazer para curar-se.Não é permitido passar perto de um doente sem inquirir do seumal.

CXCVIII — Os Babilônios costumam untar os mortosde mel; mas o luto se assemelha muito ao dos Egípcios. Todasas vezes que um babilônio tem relações com a sua mulher,queima essências e senta-se num canto para purificar-se,fazendo a mulher o mesmo. Ao raiar do dia, tomam seu banho,pois não lhes é permitido tocar em nenhum móvel sem selavarem. Os Árabes observam o mesmo costume.

CXCIX — Os Babilônios possuem, todavia, uma leivergonhosa: Toda mulher nascida no país é obrigada, uma vezna vida, a ir ao templo de Vênus para entregar-se a umestrangeiro. Muitas dentre elas, não querendo confundir-se com

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as outras pelo orgulho que lhes inspira a riqueza, dirigem-se aotemplo em carro coberto. Lá permanecem sentadas, tendo atrásde si grande número de criados; mas a maioria senta-se norecinto sagrado, com a cabeça cingida por uma corda. Quandoumas chegam, as outras se retiram. Vêem-se, em todos ossentidos, alas separadas por cordas estendidas. Os estrangeirospasseiam por entre as alas e escolhem as mulheres que mais lhesagradam. Quando uma mulher toma lugar ali, não pode voltarpara casa senão depois que algum estrangeiro lhe atire dinheiroaos joelhos e tenha relações com ela, fora do recinto sagrado. Épreciso que o estrangeiro, ao atirar-lhe o dinheiro, diga-lhe:“Invoco a deusa Milita” (os Assírios dão a Vênus o nome deMilita). Por muito módica que seja a soma, o estrangeiro nãoencontrará recusa; a lei proíbe tal coisa, pois o dinheiro se tornasagrado. A mulher segue o primeiro que lhe atira dinheiro, poisnão pode recusar quem quer que o faça. Finalmente, depois dehaver-se desobrigado do dever para com a deusa, entregando-seao forasteiro, regressa ao lar. Depois disso, ela não mais sedeixa seduzir por dinheiro algum. As que possuem um belocorpo ou um belo rosto não fazem longa permanência notemplo, mas as feias esperam, às vezes, três ou quatro anos,antes que possam cumprir a lei. Costume mais ou menossemelhante observa-se em certos lugares da ilha de Chipre.

CC — Tais são as leis e os costumes dos Babilônios. Há,entre eles, três tribos que se alimentam única e exclusivamentede peixes. Quando os pescam, fazem-nos secar ao sol,amassam-nos num pilão e passam-nos, depois, num pano,comendo-os em forma de bolos ou cozidos como pães.Preparam os peixes ainda de outras formas, porém estas são asmais comuns.

CCI — Quando Ciro subjugou esse país, veio-lhe odesejo de dominar os Masságetas. Dizem que esses povosformam uma nação considerável e que são bravos e corajosos.Habitam um país a leste, além do Araxo, vizinho aos Issédons.

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Alguns afirmam serem eles descendentes dos Citas.

CCII — O Araxo, segundo certos informantes, é maiorque o Íster; segundo outros, é menor. Dizem haver nesse riomuitas ilhas cujo tamanho se aproxima do da de Lesbos, e queos povos que as habitam alimentam-se, no Verão, de diversasespécies de raízes, reservando para o Inverno os frutos maduros,colhidos nas árvores. Dizem também que eles descobriram umaárvore, cujo fruto deitam ao fogo, em torno do qual se reúnempara aspirar-lhe o vapor. Esse vapor os embriaga, como o vinhoaos Gregos; e quanto mais frutos atiram ao fogo, mais seembriagam, até o momento em que se levantam e se põem todosa cantar e a dançar. Quanto ao Araxo, vem ele do país dosMacianos, onde corre também o Gindo, reduzido por Ciro atrezentos e sessenta canais. O Araxo divide-se em quarentabraços, na foz, e todos esses braços, com exceção de um, vão tera pântanos e lagunas onde, ao que dizem, vivem homens que sealimentam de peixe cru e se vestem de pele de veados marinhos.Apenas um braço do Araxo corre livremente até o mar Cáspio.Esse mar apresenta como principal característica não tercomunicação com nenhum outro mar. Todos os outros maresonde navegam os Gregos, bem como o que se estende para alémdas colunas de Hércules e que se denomina Atlântida, e o daEritréia, formam, juntos, um só oceano.

CCIII — O Cáspio é um mar isolado e bem diferente dequalquer outro. Um navio, costeando-o, pode percorrê-lo emapenas quinze dias, e em sua maior largura leva oito dias. OCáucaso margina-o do lado do Ocidente. É esse, talvez, o maiorde todos os sistemas de montanhas, quer em extensão, quer emaltitude, sendo habitado por diversos povos, que se alimentam,na sua maioria, de frutos selvagens. Assegura-se possuírem elesuma espécie de árvore cujas folhas, pisadas e deitadas n’água,produzem uma tinta com a qual pintam nos trajes figuras deanimais. A água não apaga, absolutamente, essas figuras, queali se gravam como se fossem tecidas, não desbotando senão

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com o desgaste da própria fazenda. Afirma-se também queesses povos praticam publicamente o coito, como os animaisirracionais.

CCIV — O mar Cáspio é limitado a oeste pelo Cáucasoe a leste por uma planície que se estende a perder de vista. OsMasságetas, a quem Ciro decidiu guerrear, ocupam a maiorparte dessa vasta planície. Importantes considerações levaram opríncipe a essa guerra. A primeira, a convicção de haverqualquer coisa de sobrenatural no seu nascimento; a segunda, asorte que sempre o acompanhara em todas as campanhas, pois,em toda parte onde levara suas armas, sempre lograra êxito.

CCV — Tómiris, viúva do último rei, era quemgovernava os Masságetas nessa ocasião. Ciro enviou-lheembaixadores, sob o pretexto de lhe propor casamento; mas arainha, compreendendo estar ele mais apaixonado pela suacoroa do que por ela própria, proibiu-lhe a entrada no país.Vendo o malogro de tais artifícios, Ciro resolveu marcharabertamente contra os Masságetas, avançando até o Araxo.Lançou uma ponte sobre o rio para facilitar a passagem e fezerguer torres sobre os batéis destinados à travessia das tropas.

CCVI — Enquanto se achava ocupado com essestrabalhos, Tómiris enviou-lhe um emissário, ao qual encarregoude fazer-lhe esta advertência: “Rei dos Medos, cessa de apressaruma empresa que ignoras se será bem sucedida e contenta-te emreinar sobre os teus súditos, deixando-nos reinar tranqüilamentesobre os nossos. Se não queres seguir os meus conselhos; sepreferes a luta ao sossego, enfim, se tens tanto desejo de medirforças com os Masságetas, desmancha essa ponte quecomeçaste. Nós nos retiraremos a uma distância de três dias dorio, a fim de te dar tempo de passar e penetrar no nosso país; ou,se preferes receber-nos no teu, faze como nós”.

Ciro, depois de ouvir o embaixador, convocou seusprincipais para pedir-lhes sua opinião. Concordaram todos em

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receber Tómiris com o respectivo exército.

CCVII — Creso, também presente às deliberações,desaprovou o alvitre, propondo outro inteiramente oposto: “Órei, — disse ele a Ciro — já te declarei desde o primeiro diaque, me havendo Júpiter entregue ao teu poder, não cessarei deempregar todos os esforços para procurar desviar de sobre tuacabeça as desgraças que porventura te ameacem. As vicissitudespor que tenho passado trouxeram-me boa dose de experiência.Se te acreditas imortal, se julgas comandar um exército deimortais, de nada adiantará revelar-te o meu pensamento; masse te reconheces também um ser humano, comandando homenscomo tu, considera, antes de tudo, a mutabilidade das coisas e acontradança da fortuna; imagina a vida uma roda girando semcessar, não nos permitindo ser sempre felizes. De minha parte,no caso que acaba de ser discutido, sou de opinião inteiramentecontrária à dos que te aconselharam. Se recebemos o inimigoem nosso país e ele nos bate, não terás a temer a sorte do teuimpério? Pois, se os Masságetas levarem vantagem, em vez devoltar para trás, atacarão naturalmente tuas províncias. Desejo atua vitória; e não será ela mais completa se, depois de haveresbatido os inimigos no seu próprio território, não tiveres outracoisa a fazer senão persegui-los? Procurarei fazer valer essaminha opinião, uma vez que, alcançada a vitória, poderásavançar imediatamente até o interior dos estados de Tómiris.Por outro lado, não seria bastante vergonhoso e insuportávelpara Ciro, filho de Cambises, recuar diante de uma mulher?

Sou de opinião que deves atravessar o rio, avançar àmedida que o inimigo se afastar e, em seguida, procurarvencê-lo pelo meio que te vou expor: Os Masságetas, estou beminformado disso, não conhecem o conforto dos Persas, estandoprivados de todas as comodidades da vida. Que se mate umaboa quantidade de gado e se prepare um banquete, mandandoservi-lo no acampamento, juntando-se vinho em abundância etoda sorte de iguarias. Concluídos esses preparativos,

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deixaremos no acampamento as piores tropas, retirando-nos emdireção ao rio com o resto do exército. As forças masságetas, seeu não me enganar, vendo tanta abundância, correrão para ela, eentão teremos o momento oportuno para mostrar-lhes o nossopoderio”.

CCVIII — Entre as duas sugestões opostas, Ciro optoupela de Creso. Mandou, por conseguinte, dizer a Tómiris que seretirasse, pois tinha o propósito de atravessar o rio. A rainhaafastou-se, como ficara convencionado. Ciro declarou seu filhoCambises seu sucessor e, confiando-lhe Creso, recomendou-lheque louvasse esse príncipe e o cumulasse de benefícios, aindaque a expedição malograsse. Dando essas ordens, enviou-os devolta para a Pérsia e atravessou o rio com seu exército.

CCIX — Ciro transpôs o Araxo e, tendo caído a noite,dormiu no país dos Masságetas. Durante o sono teve esta visão:pareceu-lhe ver o filho mais velho de Histaspes trazendo nosombros asas, uma das quais cobria toda a Ásia com sua sombra,enquanto a outra cobria a Europa. Esse primogênito deHistaspes, de nome Dario, contava, então, cerca de vinte anos.O pai, filho de Arsamo e da raça dos Aquemênidas, deixara-ona Pérsia porque ele ainda não se achava em idade de manobrararmas.

Refletindo ao despertar sobre o estranho sonho ejulgando-o de grande significação, Ciro mandou chamarHistaspes e falou-lhe em particular, dizendo-lhe: “Histaspes, teufilho conspirou contra mim e contra o meu reino. Vou contar-tecomo vim a sabê-lo, de maneira indubitável. À noite passada viem sonhos teu primogênito com imensas asas nos ombros, umadas quais cobria a Ásia, enquanto a outra se estendia sobre aEuropa. Isso me leva a supor, e com muita razão, que ele estátramando alguma coisa contra mim. Parte, pois, imediatamentepara a Pérsia, e quando eu regressar, depois da conquista destepaís, quero que o leves à minha presença, a fim de que eu o

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interrogue”.

CCX — Assim falou Ciro, persuadido de que Darioconspirava contra ele; mas o que os deuses pressagiavam comesse sonho era que ele morreria no país dos Masságetas e quesua coroa passaria para a cabeça de Dario. Histaspes, depois deouvi-lo reverentemente, respondeu-lhe: “Ó rei, os deuses nãohão-de permitir que se encontre entre os Persas alguém quepretenda atentar contra a vossa vida; e se existe esse alguém,pereça ele o mais cedo possível. De escravos que eram, vós ostornastes homens livres, e, em lugar de receberem ordens de umsenhor, passaram a mandar em todas as nações. Se alguma visãovos deu a entender que meu filho conspira contra vossa pessoa,eu mesmo o entregarei nas vossas mãos para fazerdes dele o quevos aprouver”. Após haver dado essa resposta, Histaspesatravessou o Araxo, a fim de assegurar-se sobre o que fazia ofilho e entregá-lo ao soberano, caso tramasse realmente contraele.

CCXI — Ciro, tendo avançado até a distância de um diade viagem do Araxo, deixou no acampamento suas piorestropas, segundo o conselho de Creso, e retornou ao rio com asmais aguerridas. Os Masságetas vieram atacar, com um terço desuas forças, as tropas que Ciro deixara guardando oacampamento, e passaram-nas a fio de espada depois de algumaresistência. Em seguida, vendo tudo pronto para o repasto,puseram-se à mesa, comeram e beberam a mais não poder,caindo depois em profundo sono. Era o momento azado. OsPersas, surgindo inesperadamente, mataram sem dificuldadegrande número de Masságetas, aprisionando os restantes,inclusive o próprio Espargapiso, seu general e filho de Tómiris.

CCXII — A rainha, informada do desastre ocorrido àssuas tropas e ao filho, enviou um arauto a Ciro com estamensagem: “Príncipe sedento de sangue; que este sucesso nãote envaideça; não o deves senão à cepa da videira, a esse licor

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que nos torna insensatos e que nos penetra no corpo para refluiraos lábios em palavras incoerentes. Levaste de vencida meufilho, não numa batalha e pela força das armas, mas pela atraçãodo veneno sedutor. Escuta e segue um bom conselho: devolve omeu filho, e embora tenhas eliminado um terço do meu exércitode maneira ultrajante, permitirei ainda que te retiresimpunemente dos meus estados. Se não o fizeres, juro-te peloSol, senhor dos Masságetas, que te saciarei de sangue, por maissedento que dele estejas”.

CCXIII — Ciro não deu a mínima importância a essaexortação. Quanto a Espargapiso, voltando a si da embriaguez etomando conhecimento da lamentável situação em que seencontrava, pediu a Ciro que lhe tirasse as cadeias, e, logo quese viu em liberdade, matou-se. Tal foi o fim do jovem príncipe.

CCXIV — Tómiris, informada de que Ciro repelira suaproposta, reuniu todas as suas forças e ofereceu-lhe combate. Abatalha foi, creio eu, a mais famosa até hoje travada entrebárbaros. Tentarei descrevê-la apoiado em informações a mimprestadas: Os dois exércitos rivais lançaram primeiramenteflechas à distância; esgotadas as flechas, chocaram-se numacarga de azagaias e punhais. Combateram durante muito tempo,de pé firme, com vantagens equivalentes de ambos os lados esem que nenhum recuasse. Afinal, a vitória decidiu-se pelosMasságetas. A maior parte do exército persa pereceu no local, eo próprio Ciro perdeu a vida no combate, depois de haverreinado vinte e nove anos. Tómiris, mandando procurar o corpodo soberano entre os mortos, profanou-o, e mergulhando-lhe acabeça num balde de sangue, disse: “Embora esteja eu viva evitoriosa, tu me desgraçaste fazendo meu filho perecer por umcobarde estratagema; mas eu te saciarei de sangue, como teprometi”. Há quem relate de maneira diversa a morte de Ciro.Adotei a versão que me pareceu mais verossímil(6).

CCXV — Os Masságetas vestem-se como os Citas e a

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estes se assemelham na maneira de viver. Combatem a pé e acavalo, com igual perícia e sucesso. São archeiros e lanceiros,trazendo também sagaras(7). Utilizam o ouro e o cobre numainfinidade de objetos. Empregam o cobre na confecção daslanças, das pontas das flechas e das sagaras, e reservam o ouropara ornar os capacetes, os escudos e os seus largos cintos —que vão até a altura das axilas. As couraças que guarnecem opeito de seus cavalos são de cobre. O ferro e a prata não sãoutilizados entre eles e nem mesmo existem no país, enquantoque o ouro e o cobre são encontrados ali em abundância.

CCXVI — Passemos aos seus costumes. Desposam,cada qual, uma mulher, mas fazem uso comum das esposas. Éentre os Masságetas que se verifica esse costume, e não entre osCitas, como pretendem os Gregos. Quando um masságeta seapaixona por uma mulher, tem o direito de aproveitar-se dela àvontade. Não estabelecem limites para a vida, mas quando umhomem chega a uma idade muito avançada e fica aniquiladopela velhice, os parentes reúnem-se e sacrificam-no com ogado. Cozinham-lhe depois a carne e regalam-se com ela. Essegênero de morte passa, entre esses povos, como o mais feliz.Não comem quem morre de doença; enterram-no elamentam-no por não haver atingido a idade do sacrifício.

Não plantam e vivem exclusivamente dos seus rebanhose dos peixes que o Araxo lhes fornece em abundância. O leite ésua bebida comum. De todos os deuses, é o Sol o único queadoram. Sacrificam-lhe cavalos, porque julgam acertadosacrificar ao mais veloz dos deuses o mais veloz dos animais.

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LIVRO II

EUTERPEEGITO — ÍSIS — O ORÁCULO DE DODONA — SESÓSTRIS

— RAMPSINITO — HELIÓPOLIS — ELEFANTINA — ONILO — EMBALSAMAMENTOS — SEPULTURAS — OS

DOZE REIS — PSAMÉTICO — VECOS — PSÁMIS —ÁPRIES — AMASIS, ETC.

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I — Morto Ciro, Cambises sucedeu-o no trono. Estepríncipe era filho de Ciro e de Cassandana, filha de Farnaspe.Tendo Cassandana morrido antes de Ciro, este ficou tãodesolado com a perda, que decretou luto para todos os súditos.

Cambises, filho dessa mulher e de Ciro, dispôs-se amarchar contra o Egito com as tropas dos seus estados, às quaisjuntara as dos Iônios e as dos Eólios, por ele consideradosescravos do pai.

II — Os Egípcios, antes do reinado de Psamético,julgavam-se o povo mais antigo da terra. Tendo esse príncipeprocurado saber, ao subir ao trono, que nação tinha mais direitoao referido título, disseram-lhe que pensavam serem os Frígiosmais antigos do que eles, Egípcios, embora eles o fossem maisdo que qualquer outro povo. Como as pesquisas do soberanohaviam sido, até então, infrutíferas, imaginou ele um meioengenhoso para chegar a uma conclusão: tomou duas criançasrecém-nascidas e de baixa condição, entregando-as a um pastorpara criá-las entre os rebanhos, ordenando-lhe não pronunciarqualquer palavra diante delas, a mantê-las encerradas numacabana solitária e a levar com regularidade cabras paraalimentá-las. Psamético pretendia, com isso, saber qual aprimeira palavra que seria pronunciada pelas crianças quandodeixassem de emitir sons inarticulados. Suas ordens foramrigorosamente cumpridas. Dois anos depois, o pastor começou aobservar que, quando abria a porta e entrava na cabana, ascrianças, arrastando-se para ele, punham-se a gritar “Becos”,estendendo as mãos. A primeira vez que o pastor ouviu-aspronunciar tal palavra não deu importância; mas tendo notadoque elas repetiam sempre o mesmo vocábulo quando entrava,levou o fato ao conhecimento do rei, exigindo este a presençadas crianças. Depois de ouvi-las repetir o vocábulo, o soberanoprocurou informar-se entre que povos tinha curso a palavra“becos”, vindo a saber que os Frígios denominavam assim o

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pão. Os Egípcios confessaram-se vencidos e concluíram dessaexperiência serem os Frígios mais antigos do que eles.

III — Os sacerdotes de Vulcano me informaram emMênfis que o fato se passou dessa maneira; mas os Gregosenvolvem no caso grande número de circunstâncias frívolas e,entre outras, haver Psamético feito alimentar e criar osrecém-nascidos por mulheres às quais mandara cortar a língua.Durante minha permanência em Mênfis, vim a saber aindaoutras coisas nas palestras que mantive com os citadossacerdotes; mas, como os habitantes de Heliópolis passam pelosmais sagazes de todos os Egípcios, dirigi-me, em seguida, aessa cidade, bem como a Tebas, para ver se suas declaraçõescondiziam com as dos sacerdotes de Mênfis. De tudo que mecontaram com relação às coisas divinas, reportar-me-ei apenasaos nomes dos deuses, persuadido de que todos os homens têma mesma capacidade de conhecimento; e se digo alguma coisasobre religião, será somente por ver-me a isso forçado pelocurso de minha narrativa.

IV — Quanto às coisas humanas, todos são unânimesem afirmar que os Egípcios foram os primeiros a estabelecer anoção de ano, dividindo este em doze partes, segundo oconhecimento que possuíam dos astros. Parecem-me eles nissomuito mais hábeis do que os Gregos, que, para conservar aordem das estações, acrescentam ao começo do terceiro ano ummês intercalado, enquanto que os Egípcios fazem cada mês detrinta dias, acrescentando a todos os anos cinco dias mais.

Disseram-me também que os Egípcios haviam sido osprimeiros a dar nome aos doze deuses e que os Gregos tinhamadotado tais nomes; que foram também os primeiros a ergueraos deuses templos, altares e estátuas, bem como a gravar napedra figuras de animais. Acrescentaram ter sido Menes oprimeiro homem a reinar no Egito, e que, no seu tempo, todo opaís, com exceção da parte denominada Tebaida, era um imenso

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pântano, pouco se sabendo das terras que hoje se estendem aonorte do lago Méris.

V — O que eles me disseram dessa terra me pareceexato. Todo homem sensato que ainda não tenha ouvido falarnisso notará, visitando o país, ser o Egito uma terra nova e umpresente do Nilo. Presente desse rio é também a região que seestende ao norte do lago, a três dias de viagem. Quem for aoEgito por mar e, encontrando-se a um dia da costa, lançar asonda, retirará limo a onze braças de profundidade, o que provahaver o rio levado terra até essa distância.

VI — A largura do Egito na orla marítima é de sessentaesquenos, desde o golfo Plintineto ao lago Serbónis, perto doqual se ergue o monte Cásio.

Os povos que possuem um território muito pequenomedem-no por braças; os que os têm grandes, medem-nos porestádios, e os que possuem extensões consideráveis de terrasfazem uso do esqueno.

VII — Do litoral até Heliópolis, com terras férteis, oEgito apresenta-se bastante largo, com um pequeno declive,bem regado e cheio de limo. A distância que vai do mar aHeliópolis é aproximadamente igual à que vai de Atenas a Pisa,partindo do altar dos doze deuses ao templo de Júpiter.

VIII — De Heliópolis em direção à parte alta do país, oEgito é estreito, porque de um lado está a montanha da Arábia,que o comprime e que, correndo do norte para o sul, seguesempre a direção do mar da Eritréia. É ali que a montanha,cessando de avançar, faz um ângulo com o país a que acabo deme referir; é ali que o Egito apresenta seu maior comprimento.Do outro lado, o Egito limita-se com a Líbia por uma montanhade pedra coberta de areia, sobre a qual foram construídas aspirâmides. Estende-se ela ao longo do Egito, da mesma maneiraque aquela parte da montanha da Arábia, que se prolonga para o

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sul. Assim, o país, a partir de Heliópolis, não apresenta grandelargura; é mesmo bastante estreito em grande extensão. Aplanície que separa as duas referidas montanhas mede, nospontos onde mais estreita se apresenta, cerca de duzentosestádios. É a partir dali que o país começa a alargar-se.

IX — De Heliópolis a Tebas sobe-se o rio durante novedias, numa distância de quatro mil oitocentos e sessentaestádios, ou sejam oitenta e um esquenos. Do litoral a Tebas adistância é de seis mil cento e vinte estádios; de Tebas aElefantina, mil e oitocentos estádios. Na sua orla litorânea, oEgito mede três mil e seiscentos estádios.

X — A maior parte do país é uma dádiva do Nilo, comodizem os sacerdotes, e foi essa a minha impressão. Pareceu-meque toda aquela extensão do Egito situada entre as montanhas,ao norte de Mênfis, era outrora um golfo, como o foram ascercanias de Tróia, de Teutrânia, de Éfeso e a planície doMeandro. De todos os rios que formam esses territórios pormeio de aluviões, não há um que, pelo seu volume de água,mereça ser comparado a um só dos cinco braços do Nilo. Háainda muitos outros rios inferiores a esse e que, não obstante,produzem efeitos consideráveis. Poderia citar vários deles esobretudo o Aqueloo, que, atravessando a Acarnânia elançando-se ao mar, perto das Equínades, ligou ao continentemetade dessas ilhas.

XI — Na Arábia, não muito longe do Egito, há um golfolongo e estreito, formado pelo mar da Eritréia. Do fundo dessegolfo ao mar gastam-se quarenta dias de viagem num navio aremo. No ponto onde mais largo se apresenta pode-seatravessá-lo em apenas meio dia de navegação. O fluxo erefluxo das águas ali são contínuos e incessantes. Penso que oEgito era outrora um golfo mais ou menos semelhante a esse;que teria tido início no mar do Norte, estendendo-se em direçãoà Etiópia, e que o golfo Arábico, por sua vez, estendia-se do

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mar do Sul à Síria. Assim, os dois golfos, ficando separados umdo outro por uma pequena nesga de terra, pouco faltaria paraque esta se rompesse, unindo-se os dois golfos pelasextremidades. Se, pois, o Nilo podia desviar-se do seu curso nogolfo Arábico, que o impediria de, em vinte mil anos, vir aobstruí-lo com o limo arrastado continuamente pelas suaságuas? A meu ver, bastariam dez mil anos para que tal se desse.Por conseguinte, esse golfo egípcio de que falo, ou um outromaior ainda, não poderia, no espaço de tempo que precedeumeu nascimento, ter sido entulhado pela ação de tão grande rio?

XII — O que mais me convence dessa hipótese são osvestígios deixados pelo mar nas terras adjacentes, pois nasmontanhas são encontradas conchas e as próprias pirâmides sãocorroídas pelo sal que existe esparso pelo ar. Além disso amontanha existente acima de Mênfis é o único lugar dessaregião onde existe areia. Acrescente-se que o Egito não separece em nada com a Arábia, que lhe é contígua, nem com aLíbia, nem mesmo com a Síria (há Sírios que habitam a costamarítima da Arábia). O solo do Egito é constituído por umaterra negra, friável, visto ser formado pelo limo que o Nilo trazda Etiópia e acumula por ocasião de suas inundações; ao mesmotempo que se sabe ser a terra da Líbia avermelhada e arenosa, ea da Síria pedregosa e misturada com argila.

XIII — O que os sacerdotes me relataram sobre o Egitoé uma confirmação do que acabo de dizer. No reinado de Méris,todas as vezes que o rio crescia apenas oito côvados regava opaís para baixo de Mênfis. Atualmente, novecentos anostranscorridos desde a morte de Méris, se o rio não sobe quinzeou dezesseis côvados não se espraia pelas terras adjacentes. Seo solo do país continua a elevar-se na mesma proporção e areceber novos sedimentos, é de supor-se que, cessando o Nilode banhá-lo com suas águas, os egípcios que habitam ao sul dolago Méris e em outras regiões circunvizinhas, e, sobretudo, osque vivem no delta, ficarão expostos à mesma sorte da qual eles

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pretendem estarem os Gregos ameaçados; pois, sabendo quetoda a Grécia é regada pelas chuvas e não pelos rios, como oEgito, dizem que, se os Gregos fossem um dia privados dessadádiva celeste, correriam o risco de morrer de fome(1). Queremdar a entender com isso que, se em lugar de chover na Grécia,sobreviesse uma seca, o povo pereceria de fome por não possuiroutro recurso senão a água do céu.

XIV — Esta reflexão dos Egípcios sobre a Grécia éjusta; mas não ficarão eles próprios expostos a igual perigo se,como já disse, o nível da região ao sul de Mênfis vier aelevar-se proporcionalmente ao que tem ocorrido no passado? Eisto porque não chove no país e o rio não poderia mais fecundaras terras. Entretanto, não existe atualmente no resto do Egito enem mesmo no mundo inteiro, ninguém que realize sua colheitacom menos trabalho. Os habitantes dessa região não sãoobrigados a abrir com a charrua trabalhosos sulcos, quebrar ostorrões e a preparar a terra, como fazem os de outras partes.Quando o rio rega por si mesmo os campos e as águas seretiram, eles ali abandonam seus porcos e semeiam seu terreno;e deixando aos animais o trabalho de afundar as sementes comseu contínuo vaivém pelos campos, esperam tranqüilamente aépoca da messe. Então, os mesmos animais calcam com os pésas espigas, debulhando-as.

XV — Os Iônios têm uma opinião muito particular comrelação ao Egito. Acham eles que não se deve dar esse nomesenão ao delta, desde o Echangueto de Perseu, ao longo dolitoral, aos Tariqueus de Pelusa, numa distância de quarentaesquenos. Para o interior, o Egito se estende em terrascultivadas até a cidade de Cercasoro, onde o Nilo se divide emdois braços, um dos quais se dirige para Pelusa e o outro paraCanopo. O resto do Egito, dizem os Iônios, pertence à Líbia ouà Arábia. Admitindo essa opinião, poderíamos supor que emtempos remotos os Egípcios não tiveram um país próprio, pois odelta estava coberto pelas águas, como eles mesmos afirmam e

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como observei. Se, pois, os Egípcios não possuíam outroraterritório próprio, como pretendem ser o povo mais antigo domundo? Que necessidade tinham de fazer aquela experiênciacom os recém-nascidos para saber qual seria sua língua natural?Quanto a mim, não sou de opinião que os Egípcios tenhamcomeçado a existir com a região denominada Delta pelosIônios. Penso que eles sempre existiram, desde que há homenssobre a terra, e que, à medida que o país crescia com as aluviõesdo Nilo, parte dos habitantes se transferia para o Baixo Egito,permanecendo a outra em suas terras de origem. Daí chamar-seoutrora Egito à Tebaida, cuja superfície é de seis mil cento evinte estádios.

XVI — Se, pois, nossa opinião sobre o Egito é correta, ados Iônios não pode ter fundamento; se, ao contrário, a opiniãodos Iônios é verdadeira, ser-me-á fácil provar que os Gregos eos próprios Iônios erram quando dizem que a Terra se divide emtrês partes: a Europa, a Ásia e a Líbia. Deviarn acrescentar umaquarta: o delta do Egito, pois este não pertence nem à Ásia nemà Líbia; e seguindo esse raciocínio, não é o Nilo que separa aÁsia da Líbia — uma vez que ele se divide no delta, fechando-oentre os seus braços — mas o próprio delta, que se encontraentre as duas regiões.

XVII — Deixemos de lado a opinião dos Iônios efalemos nós mesmos do assunto, de acordo com o queconseguimos apurar. Penso que se deve dar o nome de Egito atoda a extensão do país ocupada pelos Egípcios, da mesmamaneira que chamamos Cilícia e Assíria os países habitadospelos Cilícios e pelos Assírios. É o Egito que, a justo título,poderemos considerar como o limite da Ásia e da Líbia. Sequisermos, todavia, seguir a opinião dos Gregos,consideraremos todo o Egito, desde a pequena catarata à cidadede Elefantina, como um país dividido em duas partes, sendouma da Líbia e a outra da Ásia. O Nilo começa na catarata,divide o Egito em duas partes e lança-se no mar. Até a cidade

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de Cercasoro, o rio possui apenas um canal; mas acima dessacidade divide-se em três braços, tomando três caminhosdiferentes: um, denominado boca Pelusiana, toma a direção deleste; o outro, a boca Canópica, corre para oeste, e o terceirodirige-se diretamente do Alto Egito à ponta do delta, dividindoeste pelo meio e desaguando no mar. O canal, denominadoSebenítico, não é nem o menos considerável pelo volumed’água, nem o menos célebre. Dele partem dois outros canais,que vão ter igualmente ao mar por duas diferentes bocas: aSaítica e a Mendesiana. A boca Bolbitina e a Bucólica não sãoobra da natureza, mas dos habitantes que as cavaram.

XVIII — O que acabo de expor sobre a extensão doEgito se acha confirmado pelo testemunho do oráculo de JúpiterÁmon, do qual só tive conhecimento depois de haver feito essaapreciação. Os habitantes de Maréia e de Ápia, cidadesfronteiras da costa da Líbia, não se consideram Egípcios, massim Líbios. Tomando aversão pelas cerimônias religiosas dosEgípcios e não querendo abster-se da carne de novilha,enviaram delegados ao oráculo de Ámon para declarar-lhe que,habitando fora do delta, tendo culto diferente do dos Egípcios enão possuindo nada de comum com esses povos, queriampermissão para comer toda qualidade de carne. O deus opôs-seao pedido, dizendo que toda a região abrangida pelo Nilo no seuextravasamento pertencia ao Egito e que todos os quehabitavam o trecho para baixo da cidade de Elefantina e bebiamágua do rio eram Egípcios.

XIX — Ora, o Nilo, nas suas grandes enchentes, inundanão somente o delta, mas ainda terrenos que se diz pertenceremà Líbia, assim como alguns cantões da Arábia, e se espraia deum lado e de outro numa distância de dois dias de viagem, maisou menos.

Quanto ao regímen desse rio, nada de novo pudeaprender, nem com os sacerdotes, nem com qualquer outro

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habitante do país. Tinha, entretanto, o maior desejo de saber porque o Nilo começa a encher no solstício de Verão, prosseguindogradativamente a cheia durante cem dias, e por que razão,enchendo por esse espaço de tempo, ele se retrai, baixando demaneira notável e permanecendo pouco volumoso durante todoo Inverno, até o novo solstício de Verão. Gostaria muito desaber por que o rio possui um regímen diferente do de todos osoutros, e por que é o único que não produz brisa. Todavia, nadaconsegui apurar entre os Egípcios que viesse satisfazer essaminha natural curiosidade.

XX — No entanto, encontramos entre os Gregos pessoasque, procurando adquirir nomeada pela ostentação de sabedoria,explicaram esse movimento das águas de três maneiras, duasdas quais não merecem discussão, limitando-me portanto, aindicá-las. De acordo com a primeira, são os ventos estivaisque, desviando com seu sopro as águas do Nilo, impede-as de irpara o mar, ocasionando a cheia. Todavia, às vezes não sopramesses ventos, e nem por isso o rio deixa de encher. Além disso,se os ventos estivais fossem a causa da inundação, em todos osoutros rios que correm em direção contrária à desses ventosverificar-se-ia a mesma coisa, sobretudo por serem eles menorese menos rápidos. Ora, há na Síria e na Líbia muitos rios em taiscondições e nos quais não se manifestam transbordamentos,como no Nilo.

XXI — A segunda versão é ainda mais absurda, emboraa bem dizer, encerre qualquer coisa de maravilhoso. Dizem queo oceano envolve toda a terra, e que o Nilo está sujeito ainundações porque vem do oceano.

XXII — A terceira explicação é a mais falsa. Comefeito, pretender que o Nilo provém de fontes de neve, ele quecorre da Líbia, passando pelo centro da Etiópia e penetrandopor ali no Egito, equivale a não dizer nada. Como poderia serformado por fontes de neve se vem de um clima muito quente

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para um país igualmente tórrido? Quem quer que seja capaz deraciocinar com justeza sobre o assunto encontrará muitas provasde não ser verossímil que o Nilo provenha da neve. A primeirae a mais convincente dessas provas é a que diz respeito aosventos: os que sopram naquela região são quentes. A segundaestriba-se no fato de não se ver jamais no país nem chuva nemgelo. Se nevasse, devia, consequentemente, chover, pois, numpaís onde cai neve, chove necessariamente no espaço de cincodias. A terceira provém do fato de ser o calor ali tão intenso quetorna os homens negros. Os milhafres e as andorinhas alipermanecem todo o ano, e os grous para lá se dirigem com achegada do Inverno, fugindo ao frio da Cítia. Se nevasse,mesmo em pequena proporção, na zona cortada pelo Nilo ounaquela onde se acha sua nascente, certamente nada disso sedaria, como prova este raciocínio.

XXIII — Os que atribuem ao oceano a causa doextravasamento do Nilo recorrem a uma fábula obscura e nãomerecem ser refutados. Por mim, não conheço rio algum a quese possa denominar oceano, e penso que Homero ou algumoutro poeta mais antigo, tendo inventado esse nome, ointroduziu na poesia.

XXIV — Se depois de haver refutado essas opiniões setorna necessário que eu mesmo declare o que penso sobre aquestão, direi que me parece ser a seguinte a razão da cheia doNilo no Verão: no Inverno, o sol, desviando-se de sua rota pelorigor da estação, percorre a parte do firmamento correspondenteà região norte da Líbia. Eis, em poucas palavras, a razão dessacheia, pois é evidente que, quanto mais esse deus tende nadireção de um país e dele se aproxima, mais lhe acarreta a secae a evaporação dos rios.

XXV — Vou explicar o fenômeno com maior clareza. Oar é sempre sereno na Líbia Superior; ali faz sempre calor enunca sopram ventos frios. Quando o sol realiza sua trajetória

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sobre o país, produz o mesmo efeito que costuma produzir noVerão; atrai os vapores e os impele para as camadas maiselevadas, onde os ventos, recebendo-os, dispersam-nos e ostransformam novamente em água. Exatamente por essa razão,os ventos que sopram desse país, como o vento sul e o sudoeste,são os que trazem mais chuvas. Creio, entretanto, que o sol nãodevolve toda a água do Nilo que absorve anualmente, masreserva dela uma parte para si.

Quando o Inverno se ameniza, o sol retorna ao meio docéu e de lá atrai igualmente os vapores de todos os rios. Atéentão, estes haviam aumentado consideravelmente por causadas chuvas, que regam a terra e formam as torrentes; mas com achegada do Verão tornam-se fracos, porque lhes falta a chuva eo sol absorve parte de suas águas. Não se dá o mesmo com oNilo. Como no Inverno não conta com as águas da chuva e o solevapora parte das suas, é, com razão, o único rio cujas águassão mais baixas nessa estação do que no Verão. A evaporaçãodá-se igualmente em todos os outros nos, mas no Inverno é oNilo o único a contribuir para ela, motivo por que considero osol a causa de tal fenômeno.

XXVI — É o sol, também, a meu ver, a causa do ar secoque se observa no país, pois que abrasa a atmosfera na suatrajetória; e é por isso que um Verão perpétuo reina na LíbiaSuperior. Se a ordem das estações e a posição do céu viessem amudar, de maneira que o norte tomasse o lugar sul e este o donorte, então o sol, afastando-se do meio do céu no Inverno,seguiria, sem dúvida, o seu curso pela parte superior da Europa,como faz hoje pela parte norte da Líbia; e penso que,atravessando assim toda a Europa, ele agiria sobre o Íster comoage atualmente sobre o Nilo.

XXVII — Eu disse que não sentíamos jamais ventosfrescos sobre esse rio e que, por conseguinte, consideravainteiramente inverossímil a idéia de que ele tenha podido vir de

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um clima quente, pois esses ventos costumam soprar de um paísfrio. Como quer que seja, deixemos essas coisas como estão ecomo sempre estiveram desde o começo do mundo.

XXVIII — Nenhum dos Egípcios, Lídios e Gregos comquem palestrei se vangloriava de conhecer as nascentes do Nilo,a não ser o tesoureiro do templo de Minerva, em Sais, no Egito.Creio, porém, que ele gracejava quando me assegurou saberonde elas se encontravam. Disse-me que entre Siena, naTebaida, e Elefantina, havia duas montanhas cujos cumes erampontiagudos como lanças, uma das quais era denominada Crófie a outra Mófi. As nascentes do Nilo, localizadas em profundosabismos, partiam, afirmava ele, dentre essas montanhas,correndo as águas, metade para o Egito, em direção ao norte, emetade para a Etiópia, em direção ao sul. Para mostrar queessas nascentes estavam situadas em verdadeiros abismos,acrescentou ele que Psamético, querendo tirar a prova disso,mandara lançar ali um cabo de vários milhares de braças decomprimento, sem que a sonda chegasse a tocar o fundo. A darcrédito à narrativa do tesoureiro, parece-me que, se a sonda nãochegou ao fundo foi porque existem presumivelmente aliredemoinhos produzidos pelo refluxo das águas que se esbatemcom violência contra as montanhas.

XXIX — Não encontrei pessoa alguma que me pudesseadiantar mais sobre esse fato, e isto é tudo o que consegui saberlevando minhas pesquisas até onde foi possível. Até Elefantinavi as coisas com meus próprios olhos; de lá em diante, o queapurei foi por informações.

A região acima de Elefantina é elevada. Para subir o rioamarra-se de cada lado do barco uma corda, como se atrelam osbois, e puxa-se o mesmo de maneira idêntica. Se o cabo serompe, o barco é arrastado pela força da correnteza. O Nilo aliapresenta-se tão tortuoso quanto o Meandro, e para navegá-loemprega-se o sistema a que me referi, numa distância de doze

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esquenos. Chega-se, então, a uma extensa planície, onde seencontra uma ilha formada pelas águas do rio e denominadaTachompso. Para cima de Elefantina já encontramos Etíopes.Ocupam eles metade da ilha de Tachompso e os Egípcios aoutra metade. Junto à ilha estende-se um grande lago, em cujasmargens vivem Etíopes nômades. Atravessando o lago entra-senovamente no Nilo. Dali em diante, abandonando aembarcação, pois nesse trecho o Nilo é cheio de rochas a piquee de pedras de grandes dimensões, tornando impraticável anavegação, viaja-se quarenta dias a pé ao longo do rio. Apósessa longa caminhada, toma-se novamente um barco, e depoisde doze dias de navegação chega-se a uma grande cidadechamada Méroe, tida como capital dos Etíopes da região.Júpiter e Baco são os únicos deuses adorados pelos habitantes, eas cerimônias do culto são magníficas. Possuem eles tambémum oráculo de Júpiter, cujas respostas os levam a fazer guerra aquem o deus ordena.

XXX — Deixando para trás essa cidade, atinge-se o paísdos Autômolos, em tantos dias de navegação quanto os queforam necessários para vir de Elefantina a Méroe. OsAutômolos se denominam Asmach, que em grego significa “osque estão à esquerda do rei”. Descendem eles de duzentos equarenta mil egípcios, todos afeitos à guerra, que passaram parao lado dos Etíopes pelo motivo que passo a expor. No reinadode Psamético, tinham sido esses egípcios enviados comoguarnição militar a Elefantina para defender o país contra osEtíopes; a Dafne de Pelusa, para impedir as incursões dosÁrabes e dos Sírios; a Maréia, para impor sujeição à Líbia. OsPersas possuem ainda hoje tropas onde as possuíam no tempode Psamético, pois há guarnições persas em Elefantina e emDafne. Esses egípcios, tendo permanecido três anos ali sem queviessem rendê-los, resolveram, de comum acordo, abandonarPsamético e passar para o lado dos Etíopes. Tendo tidoconhecimento disso, o soberano veio ter com eles, empregandotodos os meios para convencê-los a não abandonar os seus

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deuses, seus pais, suas esposas e seus filhos. Um deles, então,segundo se conta, mostrando-lhe o símbolo de virilidadedisse-lhe: “Por toda parte onde levarmos isto encontraremosmulheres e teremos filhos”. E chegando à Etiópia, puseram-se àdisposição do rei. Este recompensou-os dando-lhes as terras dealguns etíopes rebeldes, dizendo-lhes que os expulsassem dali.Estabelecendo-se os egípcios no país, os Etíopes civilizaram-se,adotando costumes egípcios.

XXXI — O curso do Nilo pode ser percorrido em quatromeses de navegação ou de caminhada pela margem. É certo queo rio vem do oeste, mas nada podemos afirmar sobre o que comele ocorre para além do país dos Autômolos, onde o calorexcessivo torna a região deserta.

XXXII — Eis, entretanto, o que pude saber de algunsCireneus: Tendo ido consultar, segundo me afirmaram, ooráculo de Ámon, entabularam palestra com Etearco, quegovernava o país. Insensivelmente, a conversa recaiu sobre asnascentes do Nilo, e pretendeu-se que elas eram desconhecidas.Etearco contou-lhes, então, que certo dia alguns Nasamõeschegaram à sua corte (Os Nasamões são um povo da Líbia,habitando a Sirta e uma pequena região a leste da Sirta).Perguntando-lhes o soberano se tinham qualquer coisa de novoa contar acerca dos desertos da Líbia, responderam-lhe queentre as famílias mais poderosas do país, alguns jovens emidade viril e cheios de ardor imaginaram, em meio a outrasextravagâncias, escolher por sorteio cinco dentre eles para umaexcursão de reconhecimento aos desertos da Líbia, em quedeviam penetrar além dos limites já explorados.

Toda a costa da Líbia banhada pelo mar setentrional,desde o Egito ao promontório Solos, onde termina essa terceiraparte do mundo, é ocupada pelos Líbios e por diversas naçõeslíbias, com exceção da parte que ali possuem os Gregos e osFenícios; mas no interior, para lá da costa e dos povos

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litorâneos, existe uma região onde abundam animais ferozes; emais além, uma extensão deserta, coberta de areia.

Os jovens aventureiros, enviados pelos companheiroscom boas provisões de água e de víveres, percorreramprimeiramente os países habitados, alcançando depois a regiãocheia de animais ferozes. Dali continuaram jornadeando paraoeste, através dos desertos, descobrindo, após longa caminhadapor uma região bastante arenosa, uma planície coberta deárvores frutíferas. Aproximando-se, colheram alguns frutos epuseram-se a comê-los. Nesse momento, uns homenzinhos, deestatura abaixo da mediana(2), caíram sobre eles e ossubjugaram. Os jovens Nasamões não lhes entendiam a língua,o mesmo acontecendo com os seus captores. Estes levaram-nosatravés de pântanos até uma cidade onde todos os habitanteseram negros e da mesma estatura dos que os conduziam. Umgrande rio, onde havia grande número de crocodilos, corria deoeste para leste ao longo da cidade.

XXXIII — Contentei-me em reproduzir até aqui anarrativa de Etearco. O príncipe acrescentou, entretanto,segundo afirmam os Cireneus, que os Nasamões voltaram àpátria e que os homens no meio dos quais haviam estado eramtodos feiticeiros. Quanto ao rio que passava pela cidade,Etearco supunha tratar-se do Nilo, e a razão manda concluirassim, pois o Nilo vem da Líbia, atravessando-a pelo meio; e seé permitido conjecturar partindo do conhecido para odesconhecido, penso que ele sai dos mesmos lugares que o Íster.Com efeito, este último rio começa no país dos Celtas, perto dacidade de Pirene, e atravessa a Europa pelo meio. Os Celtashabitam para lá das colunas de Hércules, nas vizinhanças dosCinésios, os últimos povos da costa do Poente. O Íster(3)desemboca no Ponto Euxino, na região habitada pelos Istrios,colônia de Mileto.

XXXIV — O Íster é bastante conhecido por banhar

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países muito habitados; mas nada podemos afirmar sobre asnascentes do Nilo, porque a parte da Líbia por ele atravessada éinteiramente deserta. Quanto ao seu curso, disse tudo que pudesaber pelas mais minuciosas investigações. Desemboca ele noEgito; o Egito fica quase fronteiro à Cilícia montanhosa; de lá aSinope, no Ponto Euxino, há, em linha reta, cinco dias dejornada para um bom viajante. Ora, Sinope está situada defrontedo Íster. Parece-me, por conseguinte, que o Nilo, que atravessatoda a Líbia, pode ser comparado ao Íster.

XXXV — Estender-me-ei mais no que concerne aoEgito, por encerrar ele mais maravilhas do que qualquer outropaís; e não existe lugar onde se vejam tantas obras admiráveis,não havendo palavras que possam descrevê-las.

Assim como os Egípcios vivem num clima bemdiferente do dos demais países, e o Nilo difere também dosoutros rios, do mesmo modo seus costumes e suas leis sedistinguem, na sua maior parte, dos das outras nações. Entre osEgípcios, as mulheres vão ao mercado e negociam, enquanto oshomens, encerrados em casa, trabalham no tear(4). Os outrospovos tecem puxando o fio para cima; os Egípcios puxam-nopara baixo. No Egito, os homens carregam os fardos na cabeça,e as mulheres, nos ombros. As mulheres urinam em pé; oshomens, de cócoras. Quanto às outras necessidades naturais,satisfazem-nas em recintos fechados; mas comem nas ruas.Alegam como justificativa para essa conduta, que as coisasindecorosas mas necessárias devem ser feitas em segredo,enquanto que as que não o são podem ser realizadas em público.É vedada às mulheres a função de sacerdotisa de qualquer deusou deusa; o sacerdócio é reservado aos homens. Se os filhos dosexo masculino não querem sustentar os pais, não se vêemforçados a isso; mas as filhas são obrigadas.

XXXVI — Nos outros países, os sacerdotes usamcabelos compridos; no Egito, raspam-no. Nas outras nações, os

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habitantes, quando estão de luto, raspam o cabelo e a barba(5),principalmente os parentes mais próximos; os Egípcios, aocontrário, deixam crescer o cabelo e a barba, que, até aquelemomento, vinham usando raspados. Os outros povos fazem suasrefeições em lugar separado dos animais; os Egípcios comemjunto com eles. Todos os outros povos alimentam-se de cevadae trigo; os Egípcios consideram infames os que comem taiscoisas, e fazem uso do dourah, como principal alimento. Aocontrário dos outros povos, que deixam as partes sexuais no seuestado natural, eles adotam a circuncisão. Os homens têm, cadaum, duas vestes; as mulheres, apenas uma. Os outros povosamarram do lado de fora os cordões dos véus; os Egípciosamarram-nos do lado de dentro. Os Gregos escrevem ecalculam com tentos, manejando-os da esquerda para a direita;os Egípcios, ao contrário, manejam-nos da direita para aesquerda, mas afirmam que escrevem e calculam para a direita,e os Gregos, para a esquerda. Empregam duas espécies deletras: as sagradas e as vulgares.

XXXVII — Muito mais religiosos que o resto doshomens, praticam os seguintes costumes: bebem em copos debronze, que têm o cuidado de limpar todos os dias, sendo esteum uso geral, de que ninguém se isenta; trajam roupas de linho,sempre bem lavadas, cuidado rigorosamente observado, eadotam a circuncisão como princípio de higiene, dando maioratenção a isso do que à beleza.

Os sacerdotes raspam todo o corpo de três em três dias,para evitar que os piolhos ou outros parasitas os molestemenquanto estão servindo os deuses. Não usam mais do que umtraje de linho e sapatos de papiro, pois não lhes é permitido usaroutra roupa nem outro calçado. Lavam-se duas vezes por dia emágua fria e outras tantas vezes à noite; numa palavra: observamregularmente mil e tantas práticas religiosas. Gozam, emrecompensa, de grandes vantagens. Não despendem nemconsomem nada dos próprios bens. Cada um deles recebe sua

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porção de carne sagrada, que lhes é dada já cozida; e lhesdistribuem mesmo, todos os dias, grande quantidade de carne devaca e de ganso. Recebem também vinho de uva, mas não lhes épermitido comer peixe.

Os Egípcios nunca semeiam favas nas suas terras, e setal alimento lhes vem às mãos, não o comem, nem cru nemcozido. Os sacerdotes não podem nem mesmo vê-lo, porconsiderá-lo um legume impuro. Cada deus tem váriossacerdotes e um grão-sacerdote. Quando este morre, ésubstituído pelo filho.

XXXVIII — Acreditam que os bois pertencem a Épafo,motivo por que os examinam com muito cuidado. Há mesmoum sacerdote designado para essa função. Se ele encontra noanimal um só pêlo escuro, já o considera impuro. Examinacuidadosamente o animal colocando-o de pés ou deitado decostas. Manda puxar-lhe a língua e observa se ela está isenta dasmarcas a que aludem os livros sagrados e das quais falareioportunamente. Verifica também se os pêlos da cauda são comonaturalmente devem ser.

Se o boi é tido como puro sob todos os aspectos, osacerdote marca-o com uma corda de casca de papiro,ligando-lhe os chifres. Em seguida, aplica-lhe a terra sigilária,sobre a qual imprime sua chancela, pois é proibido, sob pena demorte, sacrificar um boi que não possua essa marca.

XXXIX — Eis as cerimônias que se observam nosacrifício: Conduz-se o animal assim marcado ao altar ondedeve ser imolado; acende-se o fogo, espalha-se vinho sobre oaltar, perto da vítima, que é, então, estrangulada, depois de sehaver invocado o deus. Corta-se-lhe, em seguida, a cabeça,profere-se toda sorte de imprecações sobre ela, após o que élevada ao mercado e vendida a qualquer negociante grego, ou,em caso contrário, atirada ao rio. Entre as imprecações a quenos referimos, os que ofereceram o sacrifício pedem aos deuses

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para conjurar todas as desgraças que possam cair sobre o Egitoou sobre eles, desviando-as para aquela cabeça. Todos osEgípcios observam os mesmos ritos nos sacrifícios, tanto para acabeça das vítimas, como para as libações de vinho. Emconseqüência desse costume, nenhum Egípcio come jamais acabeça de qualquer animal. Quanto ao exame das entranhas e àmaneira de queimar as vítimas, seguem métodos diferentes,segundo a espécie de sacrifício.

XL — Vou falar agora da deusa que os Egípciosencaram como a maior de todas as divindades e da festamagnífica que celebram em sua honra. Depois de escorchar oboi, retiram-lhe os intestinos, deixando-lhe, porém, as outrasvísceras e a banha. Cortam-lhe as coxas, a parte alta das ancas eo pescoço. Feito isso, enchem o resto do corpo de pães defarinha pura, mel, uvas secas, figos, incenso, mirra e outrassubstâncias odoríferas. Assim cheio, assam-no, espalhandogrande quantidade de óleo sobre o fogo. O sacrifício éprecedido de um jejum, e enquanto a vítima está sendo assada,eles se fustigam reciprocamente, depois do que se nutrem dosdespojos do animal sacrificado.

XLI — Todos os Egípcios imolam bois e bezerros purosmas não lhes é permitido sacrificar novilhas. Estas sãoreservadas a Ísis, representada em suas estátuas sob a forma deuma mulher com cornos de novilha. Por isso, os Egípcios têmmais cuidado com as novilhas do que com o resto do gado.Também não há Egípcio ou Egípcia capaz de beijar um Gregona boca, nem servir-se da faca de um Grego, de sua brocha oude sua marmita, nem provar a carne de um boi puro cortadocom a faca de um Grego. Se um boi ou uma novilha vem amorrer, fazem-lhe os funerais desta maneira: se se trata denovilha, atiram-na ao rio; se de boi, enterram-no nos arrabaldesda cidade, com um dos cornos ou os dois cornos para fora daterra, para indicar a presença do corpo ali. Quando o boi sedecompõe totalmente, um batel, vindo da ilha Prosópitis,

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transporta os ossos para Atarbéquis, onde são enterrados. A ilhade Prosópitis, situada no delta e com nove esquenos desuperfície, possui grande número de cidades, entre as quais seencontra Atarbéquis, onde existe um templo consagrado aVênus. É dessa cidade que parte continuamente grande númerode pessoas incumbidas da missão de percorrer as outras cidadesegípcias para desenterrar os ossos dos bois e levá-los para lá, afim de enterrá-los num mesmo buraco cavado no solo. Issoacontece não só com os bois, como com qualquer outra espéciede gado que vem a morrer, pois a lei proíbe matá-los.

XLII — Todos aqueles que erigiram templos a JúpiterTebano ou que são de Tebas não imolam, absolutamente,carneiros, nem sacrificam outros animais senão cabras.Realmente, nem todos os Egípcios adoram os mesmos deuses;não rendem todos o mesmo culto a Ísis e a Osíris, que, naopinião deles, são o mesmo que Baco. Contrariamente, os quepossuem um templo em Mêndis e são conhecidos peladesignação de Mendésios, imolam ovelhas e poupam as cabras.Os Tebanos e todos os que como eles se abstêm de sacrificarovelhas, assim procedem em virtude de uma lei, motivada peloseguinte fato: Hércules, segundo contam, desejavaardentemente ver Júpiter, mas esse deus não queria ser visto.Por fim, como Hércules não deixava de fazer solicitações nessesentido, Júpiter recorreu a um artifício: matou um cordeiro,cortou-lhe a cabeça e, colocando-a à frente da sua, revestiu-seda lã, apresentando-se assim a Hércules. É por essa razão que asestátuas de Júpiter no Egito representam o deus com umacabeça de cordeiro. O referido costume passou dos Egípcios aosAmônios. Estes constituem uma colônia de Egípcios e Etíopes,e a língua que falam é uma mistura dos idiomas dos dois povos.Creio mesmo que se chamam Amônios pelo fato de os Egípciosdarem o nome de Ámon a Júpiter. É, portanto, por esse motivoque os Tebanos consideram os cordeiros animais sagrados e nãoos sacrificam absolutamente, exceto no dia da festa de Júpiter,sendo essa a única ocasião em que eles imolam um dos aludidos

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animais; e da mesma maneira pela qual Júpiter procedera,revestem com a pele do cordeiro a estátua do deus,aproximando-a da de Hércules. Feito isso, todos os que seencontram em torno do templo batem no peito, deplorando amorte do animal, sepultando-o, em seguida, numa urna sagrada.

XLIII — O Hércules a que me refiro é, ao que meinformaram, um dos doze deuses dos Egípcios; do outroHércules, tão conhecido dos Gregos, nada pude saber a respeitoem lugar algum do Egito. Entre outras provas que podereiapresentar de que não foram os Egípcios que tiraram dosGregos o nome Hércules, mas sim estes daqueles —principalmente os que deram esse nome ao filho de Anfitrião —reportar-me-ei à seguinte: O pai e a mãe do Hércules grego,Anfitrião e Alcmena, eram originários do Egito; mais ainda: osEgípcios dizem ignorar até os nomes de Netuno e dosDióscuros, jamais incluindo esses deuses no número de suasdivindades. Ora, se houvessem tirado dos Gregos o nome dealgum deus, teriam logo feito menção daqueles. Com efeito,como já viajavam por mar e como havia também, ao quepresumo fundando-me em boas razões, Gregos habituados asingrar o salso elemento, eles, Egípcios, teriam conhecido osnomes desses deuses antes do de Hércules.

Hércules é um deus muito antigo entre os Egípcios, ecomo eles próprios declaram, está incluído no número dos dozedeuses nascidos de oito divindades primitivas, dezesseis milanos antes de Amásis.

XLIV — Como eu desejava encontrar alguém quepudesse instruir-me a respeito, velejei para Tiro, na Fenícia,onde sabia existir um templo de Hércules, muito venerado.Decorado com uma infinidade de oferendas, apresentava otemplo duas colunas, uma de ouro fino e a outra de esmeralda,produzindo, à noite, grande brilho. Certo dia, palestrando comos sacerdotes desse deus perguntei-lhes em que época o templo

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fora construído, e eles não se mostraram mais de acordo com osGregos do que os Egípcios. Disseram-me haver sido o temploerguido na mesma ocasião em que se construíra a cidade, sendoesta habitada há dois mil e trezentos anos. Vi, também, em Tiro,outro templo de Hércules, cultuado ali sob o nome de HérculesTásio. Fiz também uma viagem a Tasos, onde encontrei umtemplo desse deus, construído pelos Fenícios que, singrando osmares em busca da Europa, fundaram uma colônia em Tasos,cinco gerações antes de Hércules, filho de Anfitrião, havernascido na Grécia.

Tais pesquisas provam claramente que Hércules é umdeus antigo. Também os Gregos, erguendo dois templos aomesmo, agiram, assim me parece, com muita sensatez.Oferecem a um deles, denominado Olímpio, sacrifícios, como aum imortal, e ao outro fazem oferendas fúnebres, como a umherói.

XLV — Os Gregos manifestam também muitospropósitos inconsiderados, entre os quais a fábula ridícula queforjaram sobre o deus. Hércules, dizem eles, tendo chegado aoEgito, os Egípcios lhe puseram uma coroa à cabeça e oconduziram com grande pompa ao templo, revelando a intençãode imolá-lo a Júpiter. O herói permaneceu, a princípio,tranqüilo, mas perto do altar, quando os sacerdotes comecaramo sacrifício, reuniu as forças e matou-os a todos. Os Gregos dãoa entender, com essa história, não terem o menor conhecimentodo caráter dos Egípcios e de suas leis. Como, na verdade,podemos supor que um povo ao qual não é permitido sacrificaroutros animais que não porcos, bois e bezerros, contanto quesejam puros, se decida a sacrificar homens? Por outro lado, éverossímil que Hércules, que então não passava de um simplesmortal, como eles próprios dizem, tenha podido matar tantoshomens ali reunidos? Como quer que seja, peço aos deuses eaos heróis que interpretem pelo lado melhor o que acabo dedizer sobre esse assunto.

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XLVI — Os Mendésios, povo egípcio de que falei, nãosacrificam nem cabras nem bodes, e isso pela seguinte razão:incluem Pã no número dos oito deuses e pretendem que taisdeuses existiam antes dos doze. Os pintores e os escultoresrepresentam o deus Pã, como fazem os Gregos, com cabeça decabra e pernas de bode, não porque lhe atribuam semelhanteaspecto, mas por um motivo que eu teria escrúpulos de dizer.Os Mendésios têm grande veneração pelos bodes e pelas cabras— principalmente pelos primeiros, — havendo mesmo um tipode bode ao qual tributam maior veneração do que a todos osoutros e que, quando morre, eles o pranteiam e põem luto.

O bode e o deus Pã denominam-se, em egípcio, Mêndis.Durante minha permanência no Egito, deu-se um fato espantosoentre os Mendésios: um bode teve contato em público com umamulher, e a aventura tornou-se conhecida de todos.

XLVII — Os Egípcios olham os porcos como animaisimundos. Se alguém toca inadvertidamente num deles, aindaque seja de leve, vai logo mergulhar no rio, mesmo vestido. Osguardadores de porcos, embora egípcios de nascença, são osúnicos que não podem entrar em nenhum templo do Egito.

Ninguém lhes quer dar as filhas em casamento, nemdesposar as filhas deles. São, por isso, obrigados a casar-seentre eles, isto é, com gente da mesma categoria.

Não é permitido aos Egípcios sacrificar porcos a outrosdeuses que não à Lua e a Baco, realizando-se a cerimôniasempre no plenilúnio. Nessa ocasião lhes é permitido comer acarne. Por que então os Egípcios, tendo horror aos porcos nosoutros dias de festa, sacrificam-nos nesses dias? Apresentampara isso uma razão que não me parece conveniente revelar.

Eis como eles imolam os porcos à Lua: Estrangulada avítima, colocam junto [a ponta do rabo, o baço e o rim], e,cobrindo-os com toda a banha retirada do ventre do animal,

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queimam-nos. O resto da vítima é comido no dia do plenilúnio,aquele em que, como já disse, se oferece o sacrifício. Em diacomum, eles nem mesmo provariam semelhante carne. Ospobres, que mal têm com que viver, fazem com massa de trigofiguras de porcos e, depois de assadas, oferecem-nas emsacrifício.

XLVIII — No dia da festa de Baco, cada um imola umporco diante de sua porta à hora da refeição, devolvendo-odepois àquele que o vendeu. Excetuando o sacrifício dosporcos, os Egípcios celebram a festa de Baco quase da mesmamaneira que os Gregos, mas, em lugar de falos, inventaramfiguras de cerca de um côvado de altura, movidas por meio deuma corda. As mulheres levam pelas aldeias e burgos essasfiguras, cujo membro viril é quase tão grande quanto o resto docorpo e ao qual fazem mexer. Um tocador de flauta caminha àfrente do cortejo, e elas os seguem cantando louvores a Baco.Por que razão tais figuras possuem o membro viril de tamanhotão desproporcional e por que fazem mexer apenas essa parte?Contam a esse respeito uma lenda sagrada.

XLIX — Parece-me que Melampo, filho de Amitáon,possuía grande conhecimento dessa cerimônia sagrada. Foi ele,com efeito, quem instruiu os Gregos sobre o nome Baco e sobreas cerimônias do seu culto, e introduziu entre eles o cortejo dofalo. Transmitiu-lhes esse rito sem que tivesse, contudo,explicado sua exata significação; mas os sábios que vieramdepois dele explicaram-na com toda clareza.

Foi, portanto, Melampo quem instituiu a procissão dofalo em honra a Baco e o primeiro a instruir os Gregos sobrecerimônias que ainda hoje se praticam. Melampo devia ter sido,na minha opinião, um sábio, hábil na arte da adivinhação.Instruído pelos Egípcios sobre um grande número decerimônias, inclusive a que se relacionava com o culto de Baco,introduziu-as na Grécia com ligeiras modificações. Não

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atribuirei ao simples acaso a semelhança entre as cerimôniasreligiosas dos Egípcios e as dos Gregos. Se essa semelhança nãotivesse outras causas, as cerimônias não estariam tão afastadasdos usos e costumes dos Gregos. Não direi também que osEgípcios tenham copiado daqueles essas cerimônias ou algumoutro rito. O que me parece é que Melampo divulgou o que serefere ao culto de Baco por intermédio dos descendentes deCadmo de Tiro, e depois, dos Tírios, que vieram da Fenícia paraessa parte da Grécia hoje denominada Beócia.

L — Quase todos os nomes dos deuses passaram doEgito para a Grécia. Não resta dúvida que eles nos vieram dosbárbaros. As perquirições que realizei em torno de suas origensconvenceram-me de que assim foi. Efetivamente, com exceçãode Netuno, os Dióscuros, Juno, Vesta, Têmis, as Graças e asNereidas, os nomes de todos os outros deuses eram conhecidosno Egito. Não faço, a esse respeito, senão repetir o que ospróprios Egípcios afirmam. Quanto aos deuses que elesasseguram não conhecer, penso que seus nomes vêm dosPelasgos, com exceção de Netuno, cujo nome procede dosLíbios, entre os quais ele era conhecido e muito venerado desdeos tempos mais remotos. Quanto aos heróis, os Egípcios nãolhes prestam nenhum culto.

LI — Os Helenos tiraram ainda dos Egípcios outros ritosde que falarei no decurso desta narrativa; mas não foram estesque lhes ensinaram a fazer estátuas de Mercúrio com o membroem ereção. Os Atenienses foram os primeiros a adotar essecostume dos Pelasgos, e, depois, toda a Grécia lhes seguiu oexemplo. Os Pelasgos habitavam o mesmo cantão que osAtenienses, desde essa época incluídos no número dos Helenos,motivo por que eles, Pelasgos, passaram a ter também a mesmadenominação. Quem quer que esteja iniciado nos mistérios dosCabiros, celebrados pelos Samotrácios, compreende o que estoudizendo, pois Pelasgos que vieram morar com os Atenienseshabitavam outrora a Samotrácia, e foi deles que os habitantes

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dessa ilha adotaram os referidos mistérios. Os Ateniensesforam, pois, entre os Helenos, os primeiros que aprenderam afazer estátuas de Mercúrio com o membro ereto. Os Pelasgosoferecem para isso uma versão sagrada, explicada nos mistériosda Samotrácia.

LII — Os Pelasgos sacrificavam outrora aos deusestodas as coisas que lhes podiam oferecer, como vim a saber emDodona, e lhes dirigiam preces, não lhes dando, todavia, nemnome nem sobrenome, pois nunca os viram designados por talforma. Chamavam-nos deuses, de um modo geral,considerando-lhes a função de estabelecer e manter a ordem nouniverso. Não vieram a conhecer senão muito tarde os nomesdos deuses, quando os Egípcios os divulgaram; e o de Baco, sómuito depois de haverem conhecido os dos demais. Pouco maistarde, foram consultar sobre esses nomes o oráculo de Dodona,considerado o mais antigo da Grécia e, na época, o únicoexistente no país. Tendo perguntado ao oráculo se podiamadotar os referidos nomes, que lhes vinham dos bárbaros, elelhes respondeu afirmativamente.

LIII — Durante muito tempo ignorou-se a origem decada deus, sua forma e natureza, e se todos eles sempreexistiram. Homero e Hesíodo, que viveram quatrocentos anosantes de mim, foram os primeiros a descrever em versos ateogonia, a aludir aos sobrenomes dos deuses, ao seu culto efunções e a traçar-lhes o retrato. Os outros poetas, que se diztê-los precedido, não existiram, na minha opinião, senão depoisdeles. Sobre o que acabo de relatar, uma parte colhi com assacerdotisas de Dodona; mas no que concerne a Hesíodo eHomero, os dois grandes poetas a que acima faço referência,nada mais faço do que emitir minha opinião pessoal.

LIV — Quanto aos dois oráculos, um na Grécia e outrona Líbia, vou aludir ao que dizem os Egípcios. Os sacerdotes deJúpiter Tebano contaram-me que os Fenícios, tendo arrebatado

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de Tebas duas mulheres consagradas ao serviço do deus,venderam-nas, uma na Líbia e a outra na Grécia. Foram elas asprimeiras a estabelecer oráculos entre os povos desses doispaíses. Perguntei aos sacerdotes como se haviam inteiradodisso, e eles me responderam que tinham, durante muito tempo,procurado essas mulheres sem conseguir encontrá-las, masdepois vieram a saber o que acabavam de narrar-me.

LV — Por sua vez, as sacerdotisas de Dodona,referindo-se à origem dos oráculos, contam que duas pombasnegras, tendo alçado vôo de Tebas, no Egito, foram ter, uma àLíbia e a outra a Dodona; que esta última, pousando numcarvalho, disse, articulando voz humana, que os fados queriamque fosse estabelecido naquele lugar um oráculo de Júpiter, eque os Dodônios, considerando aquilo uma ordem dos deuses,obedeceram. A pomba que voou para a Líbia ordenou, por suavez, aos Líbios, que estabelecessem o oráculo de Ámon, que étambém um oráculo de Júpiter. Aí está o que me contaramaquelas sacerdotisas, a mais velha das quais se chamavaPreumênia; a outra Timaretéia, e a mais jovem, Nicandra. Essanarrativa foi confirmada pelo depoimento dos ministros dotemplo.

LVI — Isso posto, darei agora minha opinião a respeito.Se é verdade que os Fenícios arrebataram essas duas mulheresconsagradas aos deuses e as venderam, uma para ser conduzidaà Líbia e a outra à Grécia, acho que esta última foi vendida nopaís dos Tesprótios, hoje uma parte da Grécia e conhecidooutrora por Pelásgia, e que durante o cativeiro ergueu ela umtemplo a Júpiter sob um carvalho. Tendo sido essa mulherretirada dos altares do deus a que pertencia, era natural que elalhe desse um templo no local para onde a tinham transportado einstituísse um oráculo. E aprendendo a língua grega, teria ela decerto informado aos Gregos de que sua irmã tinha sido vendidapelos mesmos raptores egípcios e levada para a Líbia.

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LVII — Os Dodônios deram, segundo me parece, onome de pombas a essas mulheres porque, sendo elasestrangeiras, falavam uma língua que julgavam semelhante aoarrulho das referidas aves; e algum tempo depois, quando umadelas começou a fazer-se entender, disseram que a pomba haviafalado. De que maneira poderia, realmente, uma pombaarticular sons inteligíveis? Quando eles aludem a uma pombanegra, dão a entender, naturalmente, que a mulher era egípcia.

LVIII — O oráculo de Tebas, no Egito, e o de Dodona,apresentam muitas semelhanças entre si. A arte de predizer ofuturo pela inspeção das vítimas nos veio também do Egito,assim como foram também os Egípcios os primeiros entre todosos povos a instituir festas ou reuniões públicas, procissões eoferendas, costumes esses adotados pelos Gregos. Uma provado que afirmo é estarem eles em vigor há muito tempo no Egitoe só terem sido instituídos ha pouco entre os Gregos.

LIX — Os Egípcios celebram todos os anos grandenúmero de festas. A mais importante e cujo cerimonial éobservado com maior zelo é a que se realiza em Bubástis, emhonra a Diana, vindo em segundo lugar a que se celebra emBusíris, em honra a Ísis. Em Bubástis, situada no meio do delta,existe um grande templo consagrado à referida deusa, que emgrego se denomina Deméter. A festa de Minerva, celebrada emSais, é a terceira em importância. A quarta realiza-se emHeliópolis, em honra ao Sol; a quinta em Buto, em louvor deLatona, e, finalmente, a sexta, em Paprémis, dedicada a Marte.

LX — A vida em Bubástis por ocasião das festividadestransforma-se por completo. Tudo é alegria, bulício e confusão.Nos barcos engalanados singrando o rio em todas as direções,homens, mulheres e crianças, munidos, em sua maioria, deinstrumentos musicais, predominantemente a flauta, enchem oar de vibrações sonoras, do ruído de palmas, de cantos, devozes, de ditos humorísticos e, às vezes, injuriosos, e de

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exclamações sem conta. Das outras localidades ribeirinhasafluem constantemente novos barcos igualmente enfeitados eigualmente pejados de pessoas de todas as classes e de todos ostipos, ansiosas por tomar parte nos folguedos, homenagear adeusa e imolar em sua honra grande número de vítimas quetrazem consigo e previamente escolhidas. Enquanto dura afesta, não cessam as expansões de alegria, as danças e aslibações. No curto período das festividades consome-se maisvinho do que em todo o resto do ano, pois para ali se dirigem,segundo afirmam os habitantes, cerca de setecentas mil pessoasde ambos os sexos, sem contar as crianças.

LXI — A festa de Ísis em Busíris, embora menosmovimentada, apresenta uma particularidade digna de nota.Depois do sacrifício vê-se grande número de pessoas de ambosos sexos açoitando a si próprias, sendo-lhes, contudo, vedadodizer em honra de quem se mortificam. Os Cários residentes noEgito distinguem-se nessa cerimônia por cortarem a fronte coma espada, o que logo nos leva a supor tratar-se de estrangeiros enão de Egípcios.

LXII — Vejamos o que se observa em Sais por ocasiãodas festividades em louvor a Minerva. Numa determinada noite,à hora do sacrifício, a cidade inteira enche-se de luzes decandeias colocadas pelos habitantes às portas de suas casas.Essas candeias são pequenos vasos cheios de sal e óleo, comuma pequena mecha flutuante que arde durante toda a noite. Daío nome de “festa das candeias ardentes” dado àquela parte dascomemorações em Sais. Os Egípcios que não podem lá ircelebram a noite do sacrifício acendendo, também, candeias emsuas casas. Assim, não é somente em Sais que elas brilham, maspor todo o Egito. Por que essa iluminação e as celebraçõesdessa noite especial? Há por trás disso uma lenda sagrada.

LXIII — Os que vão a Heliópolis contentam-se emoferecer sacrifícios às duas divindades ali cultuadas. Em

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Paprémis observam-se as mesmas cerimônias e fazem-se osmesmos sacrifícios que nas outras cidades; mas quando o solcomeça a declinar, um pequeno grupo de sacerdotes executamovimentos estudados e solenes em torno da estátua de Marte,enquanto outros, em maior número, armados de bastão,mantêm-se de pé à entrada do templo. Diante deles agrupam-semais de mil homens que vêm cumprir o seu voto, tendo cada umo seu bastão na mão. A estátua do deus encontra-se numpequeno nicho de madeira dourada. Na véspera da festatransportam-na para outro nicho. Os sacerdotes quepermanecem em pequeno número em volta da estátua colocamesse nicho, com a imagem do deus, num carro de quatro rodas,e põem-se a puxá-lo. Os que se acham no vestíbuloimpedem-nos de entrar no templo, mas os que estão diante delescumprindo seus votos vão em socorro do deus, atacando comseus bastões os guardas da porta e procurando forçar a entrada.Inicia-se então um rude combate a bastonadas, do qual resultammuitas cabeças fraturadas, sendo de duvidar que muitos nãomorram dos ferimentos recebidos, embora os Egípcios afirmemo contrário.

LXIV — Os naturais do país dizem que a instituiçãodesse rito singular originou-se do seguinte fato: A mãe de Martemorava no templo. Já em idade viril, o deus, criado longe dela,ali foi com a intenção de falar-lhe. Os servos de sua mãe, quenão o conheciam, impediram-no que entrasse, afastando-o comviolência. Retornando com socorros obtidos em outra cidade,Marte atacou os servos e abriu passagem até o quarto da deusa.Aí está a razão desse combate simulado em honra a Marte, nodia de sua festa.

Os Egípcios foram também os primeiros que, porprincípios religiosos, proibiram o comércio sexual com asmulheres nos lugares sagrados, e mesmo de alguém ali entrar,depois de havê-lo praticado, sem ter-se lavado. Todos os outrospovos, com exceção deles e dos Gregos, agem de modo

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contrário, por entenderem que com os homens dá-se o mesmoque com os animais nesse assunto. É comum, dizem eles,verem-se animais e pássaros realizando o coito em lugaresconsagrados aos deuses. Se esse ato fosse desagradável àdivindade, os próprios animais não o praticariam em taiscondições. Eis o argumento em que procuram estribar-se; masnão lhes posso dar minha aprovação.

LXV — Entre outras práticas religiosas, os Egípciosobservam escrupulosamente as que passo a expor. Embora opaís confine com a Líbia, há, entretanto, poucos animais ali; eos que existem, selvagens ou domésticos, são consideradossagrados. Explicar a razão por que eles os consagram seriaentrar numa longa dissertação sobre a religião e as coisasdivinas. Limitamo-nos, portanto, a mostrar alguns dos aspectosmais interessantes dessa prática com relação aos irracionais.Existe uma lei egípcia que ordena alimentar os animais,havendo determinado número de pessoas de ambos os sexosencarregadas de cuidar de cada espécie em particular. É umaatividade honrosa, passando de pai para filho. Os que moram ouse transferem para a cidade desobrigam-se do voto que fizeram.E eis de que maneira: quando formulam preces ao deus ao qualcada animal é consagrado, raspam a cabeça dos filhos — toda,pela metade ou somente uma pequena parte — e põem oscabelos num dos pratos de uma balança, pesando-os comdinheiro. Quando o dinheiro faz pender a balança(6), entregamo quantia assim reunida à guardiã do animal, para que elacompre peixes e o alimente. Se alguém mata um desses animaiscom propósito premeditado, é punido com a morte, e se o fizerinvoluntariamente, paga uma multa a critério dos sacerdotes. Sese trata, porém, de íbis ou gavião, mesmo matando sem querernão escapará à pena máxima.

LXVI — Embora o número de animais domésticos noEgito seja muito grande, seria ainda maior se não houvesse comos gatos acidentes da mais variada natureza. Assim, por

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exemplo, as gatas, depois de dar cria não procuram mais osmachos. Estes, vendo-se repelidos, vingam-se delasarrebatando-lhes os filhotes e matando-os impunemente. Asgatas, privadas assim dos filhos e desejando ter outros, pois têmamor à prole, voltam a procurar os companheiros que haviamdesprezado. Quando sobrevém um incêndio, acontece aos gatosuma coisa verdadeiramente fenomenal. Os Egípcios,preocupados em zelar pela segurança dos referidos animais,descuidam-se de apagar o fogo, e os gatos, esgueirando-se porentre eles ou saltando-lhes por cima, atiram-se às chamas,deixando-os desolados. Se em alguma casa morre um gato demorte natural, o morador raspa somente as sobrancelhas; semorre um cão, raspa a cabeça e o corpo todo.

LXVII — Os gatos mortos são levados para mansõessagradas, e, depois de embalsamados, enterrados em Bubástis.Quanto aos cães, são enterrados em suas respectivas cidades,dentro de ataúdes sagrados. As mesmas homenagens sãoprestadas aos icneumos. Os musaranhos, os gaviões e os íbis deHeliópolis são transportados para Buto; mas os ursos, muitoraros no Egito, e os lobos, pouco maiores que as raposas, sãoinumados no próprio local em que foram encontrados mortos.

LXVIII — Falemos agora do crocodilo e de seushábitos. Esse animal não se alimenta durante os quatro mesesmais rudes do Inverno. Embora possua quatro patas, é anfíbio.Põe os ovos em terra e ali os choca. Passa fora d’água a maiorparte do dia, e a noite inteira no rio, porque a água é então maisquente do que o ar e o orvalho. De todos os animais queconhecemos, não há um que se torne tão grande depois de haversido tão pequeno. Seus ovos não são maiores do que os doganso, e os animalejos que deles saem são-lhes proporcionaisem tamanho. O crocodilo é o único animal que não possuilíngua(7), não move o maxilar inferior(8), e é também o único aaproximar o maxilar superior do inferior. Tem garras muitofortes, e a pele é de tal maneira coberta de escamas, que se torna

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impenetrável. O crocodilo não enxerga absolutamente na água,mas fora dali, tem a vista muito penetrante. Como vive na água,traz dentro da goela numerosos insetos, que lhe sugam osangue. Os outros animais e os pássaros o evitam, sendo otroquilídeo o único com quem vive em harmonia, devido aosbenefícios que dele recebe. Ao sair da água, o crocodiloespoja-se e põe, habitualmente, as fauces às escancaras nadireção de onde sopra o zéfiro. Entrando-lhe pela boca, otroquilídeo (colibri) come todos os insetos que se encontram nasua goela, deixando-o aliviado e reconhecido.

LXIX — Parte dos Egípcios encara o crocodilo comoanimal sagrado; mas a outra parte move-lhe guerra. Os quehabitam as vizinhanças de Tebas e do lago Méris têm pelosreferidos anfíbios muita veneração. Escolhem sempre um paracriar e domesticar. Enfeitam-no com objetos de ouro ou compedras falsas e colocam pequenas correntes ou braceletes nassuas patas dianteiras. Nutrem-no com a carne das vítimas e lhedão outros alimentos apropriados. Enquanto ele vive, cercam-node cuidados; quando morre, embalsamam-no e depositam-nonuma urna sagrada. Os habitantes de Elefantina e dasvizinhanças não consideram, absolutamente, os crocodilosanimais sagrados, não tendo nenhum escrúpulo em comê-los.Também não lhes dão ali o nome de crocodilos. Essadesignação lhes foi dada pelos Iônios, por considerá-los muitoparecidos com os lagartos que, em seu país, são encontrados narelva.

LXX — Há diferentes maneiras de capturá-los,citando-se como a mais eficiente a seguinte: Prende-se umpedaço do lombo de um porco num anzol, lançando-o no meiodo rio. Enquanto isso, fica-se à margem fazendo grunhir umleitãozinho novo. O crocodilo aproxima-se atraído pelosgrunhidos do animalzinho, e encontrando o pedaço de porco,devora-o, ficando preso no anzol. O pescador puxa-o, então,para terra, e atira-lhe areia molhada aos olhos para dominá-lo

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mais facilmente. De outra maneira, teria muito trabalho paraisso.

LXXI — Os hipopótamos, que ali encontramos com onome de Papremito, são sagrados, não o sendo, contudo, noresto do Egito. É um possante animal de pés e focinhoachatados, dentes salientes e possuindo crina e caudasemelhantes às do cavalo, rinchando como este. É tão grandequanto o maior dos bois, e seu couro é tão espesso que, depoisde seco, podem-se fazer dardos com ele.

LXXII — No Nilo vivem também lontras. Os Egípciosconsideram-nas sagradas e têm a mesma opinião sobre um peixechamado lepidote e sobre a enguia, que eles consagram ao Nilo.Entre as aves por eles tidas como sagradas, podemos citar atadorna(9).

LXXIII — Existe outra ave sagrada denominadafênix(10). Não a vi senão em pintura, pois é raramenteencontrada; e, a dar-se crédito aos habitantes de Heliópolis, sóaparece ali de quinhentos em quinhentos anos. Se é tal como arepresentam, tem a plumagem das asas parte dourada e partevermelha. No porte, assemelha-se, sobretudo, à águia.Informaram-me sobre uma particularidade bastante curiosa eum tanto inverossímil com relação a essa ave sagrada. Dizemque ela parte da Arábia com o corpo do pai envolto em mirra ese dirige para o templo do Sol, onde lhe dá sepultura. Eis comoprocede: Faz, com a mirra, uma massa em forma de ovo, de umpeso que lhe seja possível suportar, erguendo-a primeiro, paraverificar se não está demasiadamente pesada para as suasforças. Em seguida, abre uma cavidade nesse ovo, ali colocandoo corpo do pai. Isso feito, tapa a abertura ainda com mirra, demaneira a perfazer o peso primitivo. Concluída a tarefa, tomado ovo e leva-o para o Egito, indo depositá-lo no templo do Sol.

LXXIV — Nas imediações de Tebas vive uma espéciede serpente sagrada, completamente inofensiva ao homem. É de

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pequeno tamanho e traz dois cornos no alto da cabeça. Quandomorre, enterram-na, ao que dizem, no templo de Júpiter, ao qualé consagrada.

LXXV — Há na Arábia, perto da cidade de Buto, umcerto lugar para onde me dirigi, a fim de me informar sobre asserpentes aladas. Vi, logo à minha chegada, uma quantidadeprodigiosa de ossos e de espinhas dessas serpentes. Esses ossos— grandes, médios e pequenos — estão espalhados por todos oslados. O local em que se encontram fica situado numa gargantaapertada entre duas montanhas, de onde se abre vasta planícieque confina com a do Egito. Dizem que as serpentes aladasvoam da Arábia para o Egito assim que chega a Primavera, masque as íbis, indo ao encontro delas no ponto de junção dodesfiladeiro com a planície, impedem-nas de passar,matando-as. Os Árabes asseguram que é em reconhecimentodesse serviço que os Egípcios têm grande veneração pela íbis, eos próprios Egípcios confirmam isso.

LXXVI — Há duas espécies de íbis. As da primeiraespécie são do tamanho do francolim; a plumagemextremamente negra, as coxas como as do grou e o bicorecurvo. São as que dão combate às serpentes. As da segundaespécie são mais comuns e freqüentemente encontradas. Parteda cabeça e todo o pescoço são desprovidos de penas; aplumagem é branca, exceto a da cabeça, da extremidade dasasas e da cauda, que é muito negra. As coxas e o bico sãosemelhantes aos da outra espécie. As serpentes voadoras separecem, no tipo, com as serpentes aquáticas; suas asasassemelham-se às dos morcegos, e, como estas, não têm penas.

LXXVII — Entre todos os Egípcios, os que habitam asimediações da região do país onde se cultivam os cereais são,indubitavelmente, os que mais cultivam a memória, para o queseguem este curioso regímen: purgam-se todos os mesesdurante três dias consecutivos e procuram conservar a saúde por

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meio de vomitórios e clisteres, persuadidos de que todas asdoenças provêm dos alimentos. Aliás, depois dos Líbios, não háhomens mais sadios e de melhor temperamento do que osEgípcios. Creio que tais vantagens decorrem da invariabilidadedas estações no país, pois são as oscilações da atmosfera e,sobretudo, das estações, que ocasionam as doenças. Os Egípciosdão ao pão de que se servem o nome de cilestis. Fazem-no comdourah. Como não há vinhas no país(11), bebem cerveja.Alimentam-se de peixes crus secados ao sol ou postos emsalmoura; comem igualmente crus as codornizes, os patos ealguns pequenos pássaros, que eles têm o cuidado de salgarantes. Enfim, com exceção dos pássaros e dos peixes sagrados,nutrem-se de todas as outras espécies de animais encontradas nopaís, comendo-as assadas ou fritas.

LXXVIII — Quando os Egípcios abastados realizamfestins em suas casas, têm o hábito de fazer levar à sala, depoisdo repasto, um esquife contendo uma figura de madeiratrabalhada com perfeição e muito bem pintada, representandoum morto. Essa figura, que mede de um a dois côvados decomprimento, é exibida a cada um dos convivas, acompanhadadesta advertência: “Lança os olhos sobre este homem. Tu teparecerás com ele depois da morte. Bebe, pois, agora, ediverte-te”.

LXXIX — Satisfeitos com os costumes herdados dospais, os Egípcios não pensam em modificá-los. Alguns deles sãorealmente louváveis, sobretudo a adoção do Linus, canto usadona Fenícia, em Chipre e em outros lugares, tendo diferentesnomes entre diferentes povos. Supõe-se, geralmente, ser omesmo a que os Gregos chamam Linus e muito divulgado entreeles. Ignoro onde os Egípcios foram buscar esse canto, a quedão o nome de Maneros. Dizem eles que Maneros era filhoúnico do primeiro rei do país e que, morrendo prematuramente,entoaram em sua honra essas árias lúgubres, e que tal canção foia primeira e a única conhecida nos primeiros tempos do país.

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LXXX — Aqui está mais um costume dos Egípcios, eque, entre os povos gregos, são os Lacedemônios os únicos aadotar: Se um jovem encontra-se com um velho, cede-lhe opasso e desvia-se do caminho; se um velho surge num lugaronde se acha um jovem, este se levanta. Quando os Egípcios seencontram, em lugar de se saudarem com palavras, fazem umaprofunda reverência, baixando a mão até o joelho.

LXXXI — Suas vestes são de linho, com franjas emtorno das pernas. Por cima das vestes, que têm o nome decalasiris, usam uma espécie de manto de lã branca. A religiãoos proíbe, todavia, de envergar esse manto nos templos e deserem com ele sepultados — o que está de acordo com astradições órficas, também chamadas báquicas, e que são asmesmas que as egípcias e as pitagóricas. Com efeito, não épermitido sepultar com roupas de lã quem quer que tenha sidoiniciado naqueles mistérios.

LXXXII — Foram também os Egípcios que tiveram aidéia de consagrar cada mês e cada dia do mês a um deus, assimcomo foram os primeiros a predizer o futuro das pessoas pelaobservação da data do seu nascimento. Os poetas gregosfizeram uso dessa ciência, mas os Egípcios têm a primazianeste, como em muitos outros ramos do conhecimento humano.

LXXXIII — Ninguém no Egito exerce a adivinhação,atributo concedido apenas a alguns deuses. Existem no paísvários oráculos, tais como o de Hércules, o de Apolo, o deMinerva, o de Diana, o de Marte e o de Júpiter, porém o maisvenerado é o de Latona, na cidade de Buto. As adivinhaçõesnão obedecem às mesmas regras, diferindo umas das outras.

LXXXIV — A medicina está de tal maneira organizadano Egito, que um médico não cuida senão de uma especialidade.Há médicos por toda parte. Uns, para a vista; outros, para acabeça; estes, para os dentes; aqueles, para os males do ventre;outros, enfim, para as doenças internas.

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LXXXV — Com relação aos funerais e ao luto, osEgípcios procedem da maneira seguinte: Quando morre umcidadão conceituado, os elementos femininos da famíliacobrem-se de lama da cabeça aos pés, descobrem os seios,prendem as vestes com um cinto e, deixando o morto em casa,põem-se a percorrer a cidade, batendo no peito, acompanhadasdos demais parentes. Por sua vez, os homens desnudam tambémo peito e põem-se a bater neste. Terminada essa cerimônia,levam o corpo para embalsamar.

LXXXVI — Há, no Egito, certas pessoas encarregadaspor lei de realizar os embalsamamentos e que fazem dissoprofissão. Quando lhes trazem um corpo, mostram aosportadores modelos de mortos em madeira, pintados ao natural.O mais digno de atenção representa, segundo eles dizem, aquelecujo nome tenho escrúpulos de mencionar aqui. Mostram depoisum segundo modelo, inferior ao primeiro e mais barato, e aindaum terceiro, perguntando, então, por que modelo querem queseja o morto embalsamado. Combinado o preço, os parentesretiram-se. Os embalsamadores trabalham em suas própriascasas, e eis como procedem nos embalsamamentos mais caros:Primeiramente, extraem o cérebro pelas narinas, parte com umferro recurvo, parte por meio de drogas introduzidas na cabeça.Fazem, em seguida, uma incisão no flanco com pedra cortanteda Etiópia e retiram, pela abertura, os intestinos, limpando-oscuidadosamente e banhando-os com vinho de palmeira e óleosaromáticos. O ventre, enchem-no com mirra pura moída, canelae essências várias, não fazendo uso, porém, do incenso. Feitoisso, salgam o corpo e cobrem-no com natro, deixando-o assimdurante setenta dias. Decorridos os setenta dias, lavam-no eenvolvem-no inteiramente com faixas de tela de algodãoembebidas em commi(12), de que os Egípcios se servemordinariamente como cola. Concluído o trabalho, o corpo éentregue aos parentes, que o encerram numa urna de madeirafeita sob medida, colocando-a na sala destinada a esse fim. Tala maneira mais luxuosa de embalsamar os mortos.

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LXXXVII — Os que preferem um tipo médio deembalsamamento e querem evitar despesas, escolhem esta outraespécie, em que os profissionais procedem da seguinte maneira:Enchem as seringas de um licor untuoso tirado do cedro einjetam-no no ventre do morto, sem fazer nenhuma incisão esem retirar os intestinos. Introduzem-no igualmente peloorifício posterior e arrolham-no, para impedir que o líquidosaia. Em seguida, salgam o corpo, deixando-o assim durantedeterminado prazo, findo o qual fazem escorrer do ventre olicor injetado. Esse líquido é tão forte que dissolve as entranhas,arrastando-as consigo ao sair. O natro consome as carnes, e docorpo nada resta a não ser a pele e os ossos. Terminada aoperação, entregam-no aos parentes, sem mais nada fazer.

LXXXVIII — O terceiro tipo de embalsamamentodestina-se aos mais pobres. Injeta-se no corpo o licordenominado surmaia, envolve-se o cadáver no natro durantesetenta dias, devolvendo-o depois aos parentes.

LXXXIX — Tratando-se de mulher, e se esta é bonitaou de destaque, o cadáver só é levado para embalsamamentodecorridos três ou quatro dias após o seu falecimento. Toma-seessa precaução pelo receio de que os embalsamadores venham aviolar o corpo. Conta-se que, por denúncia de um dos colegas,foi um deles descoberto em flagrante com o cadáver de umamulher recém-falecida.

XC — Se se encontra um cadáver abandonado, seja omorto Egípcio ou mesmo estrangeiro; trate-se de alguématacado por crocodilo ou afogado no rio, a cidade em cujoterritório foi o corpo atirado é obrigada a embalsamá-lo, aprepará-lo da melhor maneira e a sepultá-lo em túmulo sagrado.Não é permitido a nenhum dos parentes ou dos amigos tocar nocadáver; só os sacerdotes do Nilo(13) têm esse privilégio; e eleso sepultam com as próprias mãos, como se se tratasse de algomais precioso do que o simples cadáver de um homem.

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XCI — Os Egípcios vivem inteiramente alheios aoscostumes dos Gregos e, numa palavra, aos de todos os outrospovos. Esse alheamento se observa em todo o país, exceto emQuémis, importante cidade da Tebaida, perto de Neápolis, ondeexiste um templo de Perseu, filho de Danéia. O templo équadrado e cercado de palmeiras; tem um vasto vestíbulo feitode pedras, notando-se, ao alto, duas grandes estátuas de pedra.No recinto sagrado fica o altar, onde se vê uma estátua dePerseu. Os Quemitas dizem que esse herói aparececonstantemente no país e no templo, e que ali encontram, porvezes, uma de suas sandálias com dois côvados decomprimento, achado tido sempre como sinal de grandeprosperidade em todo o Egito. Realizam-se em honra do herói eà maneira dos Gregos, jogos gímnicos, de todos os jogos osmelhores. Os prêmios disputados são mantos, peles e cabeças degado.

Perguntei-lhes, certo dia, por que eram eles os únicos aquem Perseu costumava aparecer e por que se distinguiarn doresto dos Egípcios pela celebração dos jogos gímnicos.Responderam-me que Perseu era originário daquela cidade eque Dânao e Lincéia, que velejaram para a Grécia, tinhamnascido em Quémis. Apresentaram-me, em seguida, agenealogia de Dânao e de Lincéia até Perseu, acrescentando tereste vindo ao Egito para arrebatar da Líbia — como dizemtambém os Gregos — a cabeça da Górgona, e que, passando porQuémis, reconheceu todos os seus parentes; que, quando elechegou ao Egito, já conhecia o nome dessa cidade porintermédio da mãe; enfim, que fora por ordem de Perseu queeles começaram a celebrar os jogos gímnicos.

XCII — Os Egípcios que habitam a região ao norte dospântanos observam todos esses costumes, mas os que vivem naparte pantanosa seguem os costumes do resto dos Egípcios, e,entre outros, o de não possuir senão uma mulher cada um, comose observa entre os Gregos.

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Quanto aos alimentos, imaginaram eles meiosengenhosos para obtê-los em abundância. Quando o rio chegaao ponto máximo da cheia e os campos se transformam emverdadeiro mar, aparece na água uma imensa quantidade delírios, que eles denominam lótus(14). Colhem-nos, fazem-nossecar ao sol e extraem as sementes, que se assemelham às dapapoula e que se encontram no centro da flor, amassando-as emseguida e transformando-as em pão, que cozem ao fogo.Comem também a raiz dessa planta, de gosto agradável eadocicado, redonda e da grossura de uma maçã. Há outraespécie de lírio, semelhante às rosas, e que cresce também noNilo. Seu fruto, que pende de uma haste que sai da raiz e crescejunto de outra haste, contém grande quantidade de sementescomestíveis, do tamanho de uma azeitona. Os Egípcioscomem-nas verdes ou secas.

Outra planta que lhes serve de alimento é o biblus(15),que floresce uma vez por ano e é geralmente encontrada nosterrenos pantanosos. Depois de colhida, cortam-lhe a partesuperior, utilizada para diferentes fins. A parte inferior, ou seja,o resto da planta, e que mede cerca de um côvado de altura,comem-na crua ou vendem-na. Muitos egípcios alimentam-seexclusivamente de peixes. Depois de abri-los e limpá-los,fazem-nos secar ao sol, comendo-os em seguida.

XCIII — Nos rios encontram-se poucas dessas espéciesde peixes que andam em cardumes e crescem nos tanques.Quando começam a sentir os ardores do amor e queremsatisfazer-se, dirigem-se eles para o mar em bandos. Os machosvão à frente, espalhando pelo caminho o líquido seminal; asfêmeas seguem-nos e ingerem o líquido, vindo assim aconceber. Após essa fecundação no mar, os peixes sobem o rioem busca de sua morada habitual. Desta vez são as fêmeas quevão na frente dirigindo o grupo; e enquanto o conduz, fazem oque faziam os machos: vão deitando os ovos, da grossura de umgrão de milho, que aqueles, seguindo-as de perto, vão

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devorando. Cada um desses grãos constitui um pequeno peixe.Os que os machos não devoram desenvolvem-se etransformam-se em peixes.

Quando esses peixes vão para o mar têm a cabeçamachucada do lado esquerdo; quando retornam ao rio, têm-namachucada do lado direito. O fato é de fácil explicação. Quandovão para o mar, nadam junto à terra, do lado esquerdo; quandovoltam, aproximam-se da mesma margem, apoiando-se nelatanto quanto podem, com receio de serem afastados da sua rotapela correnteza. Quando o Nilo começa a subir, a água filtra-seatravés da terra e enche as fossas e as lagunas perto do rio; emal começam elas a transbordar, vê-se ali, a formigar, enormequantidade de pequenos peixes. Qual será a causa provável desemelhante produção? Ei-la: Quando o Nilo se retira, os peixesque, no ano anterior, haviam deposto os ovos no limo,retiram-se também com as últimas águas. No ano seguinte,quando o Nilo volta a transbordar, os peixes saem dos ovos.

XCIV — Os Egípcios que vivem à beira dos pântanosservem-se de um óleo extraído do fruto do siliciprião e chamadokiki. Para isso, semeiam o siliciprião nas margens do rio e pertodos tanques. Na Grécia, essa planta cresce por si mesma, semcultivo algum; no Egito é semeada e produz grande quantidadede frutos de cheiro forte. Depois de colhidos, os frutos são, unstriturados para a extração do óleo, e outros, cozidos,recolhendo-se o líquido resultante do cozimento. Esse líquido éespesso e utilizado nas candeias com as mesmas vantagens doóleo de oliva, embora de cheiro ativo e desagradável.

XCV — Vê-se no país uma quantidade prodigiosa demoscas, mas os Egípcios encontram meios para se defenderemdelas. Os que habitam ao norte dos pântanos põem-se ao abrigodesses incômodos insetos, dormindo no alto de uma torre, poiso vento impede-as de voar muito alto. Os que ocupam a partepantanosa servem-se de outro meio: a rede. Todos ali possuem

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uma rede. De dia, utilizam-na para apanhar peixes; à noite,estendem-na sobre o leito, à guisa de cortinado.

XCVI — Os Egípcios constroem seus navios de cargacom o espinheiro, que muito se assemelha ao lótus de Cirene eque segrega um líquido que se condensa em goma. Doespinheiro tiram pranchas de dois côvados de comprimento, queajustam umas às outras, da mesma maneira por que arrumam ostijolos, prendendo-as com cavilhas fortes e longas. Colocamdepois as vigas, sem se servirem de cavernas, consolidando oarcabouço pelo lado de dentro com ligas de biblos. Fazem, emseguida, o leme, que ajustam através da querena. Por último, omastro e as velas, que são confeccionadas com biblos.

Esses navios, dada a forte correnteza, não podem subir orio, a menos que sejam impelidos por forte vento. Na descida,seus tripulantes procedem da maneira seguinte: Tomam de umcaniço de tamarga ligado com junco, e de uma pedra furadapesando cerca de dois talentos; amarram o caniço com umacorda na frente da embarcação e deixam-no ir rio abaixo,enquanto que a pedra é ligada à parte posterior com outra corda.O caniço, levado pela correnteza, arrasta consigo o navio,enquanto a pedra à retaguarda, indo para o fundo da água, servepara moderar o curso da embarcação. Os Egípcios possuemgrande número de navios desta espécie, alguns dos quaissuportam vários milhares de talentos de carga.

XCVII — Quando o Nilo inunda o país, não sedistinguem senão as cidades. Estas, surgindo do meio das águas,fazem lembrar as ilhas do mar Egeu. Efetivamente, todo o Egitose transforma num vasto mar, com exceção dos núcleosurbanos. Enquanto dura a inundação, não se navega pelo cursodo rio, mas pelo meio da planície. Os que sobem de Náucratis aMênfis guiam-se, então, pelas pirâmides. Não é essa, entretanto,a navegação ordinária, feita pela ponta do delta e pela cidade deCercasoro. Nessa época, os que, partindo do litoral e de

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Canopo, seguem em direção a Náucratis pela planície, passamperto das cidades de Antila e Arcandra.

XCVIII — Antila é uma cidade considerável,pertencendo, como tributo, à esposa do rei do Egito — uso aliobservado desde que o país passou para o domínio dos Persas.Parece-me que a cidade de Arcandra tirou esse nome deArcandro de Ftia, genro de Dânao e filho de Aqueus. É possívelque haja algum outro Arcandro, mas o certo é que esse nomenão é egípcio.

XCIX — Disse até aqui o que vi e o que consegui saberpor mim mesmo em minhas pesquisas. Falarei agora do país,baseado no que me disseram os Egípcios, acrescentando àminha narrativa o que tive ocasião de observar com meuspróprios olhos.

Foi Menes, primeiro rei do Egito, quem, segundo ossacerdotes, mandou construir os diques de Mênfis. O Nilo, até oreinado desse príncipe, corria totalmente ao longo da montanhaarenosa situada na costa da Líbia. Menes, tendo ordenado aconstrução de um dique de cerca de cem estádios pouco acimade Mênfis, fez encher o braço do Nilo que se dirigia para o sul.Pondo a seco o antigo leito do rio, fê-lo retomar o curso por umnovo canal, conseguindo, com isso, que ele corresse a igualdistância das montanhas. Ainda hoje, sob o domínio dos Persas,tem-se um cuidado todo especial com esse braço do Nilo, cujaságuas, retidas pelos diques, correm de outro lado. Esses diquessão fortificados todos os anos, pois se o rio viesse a rompê-los ea espraiar-se pelas terras desse lado, Mênfis correria o risco deser tragada pelas águas. Menes, de acordo com o depoimentodos mesmos sacerdotes, ergueu a cidade que hoje tem o nomede Mênfis, no próprio local de onde havia desviado o rio econvertido em terra firme. A cidade está situada na parte maisestreita do Egito. O mesmo soberano mandou cavar, a oeste deMênfis, um lago que se comunicava com o rio (o Nilo fecha a

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cidade a leste), e construiu, nessa mesma cidade, um magníficotemplo a Vulcano.

C — Entre os trezentos e trinta reis que governaram oEgito depois de Menes figuram dezoito Etíopes e uma mulhernatural do país. Todos os outros eram homens e Egípcios. Amulher chamava-se Nitócris, como a rainha da Babilônia.Contaram-me que os Egípcios, depois de haverem matado o rei,irmão de Nitócris, coroaram-na rainha, e ela, para vingar amorte do irmão, fez perecer, por um artifício, grande número deEgípcios. Mandou construir uma vasta galeria subterrânea e, naaparência para inaugurá-la, mas na realidade com outropropósito, convidou para um banquete vários Egípcios que elasabia terem sido os principais autores da morte do irmão.Quando eles se achavam à mesa, fez penetrar até o recinto aságuas do rio, por um grande canal secreto. Quase mais nada sediz sobre essa princesa, senão que, depois de ter perpetrado essavingança, precipitou-se num cubículo cheio de brasas, parasubtrair-se à vingança do povo.

CI — De todos esses reis, disseram-me os sacerdotes,apenas um se distinguiu pelas suas notáveis realizações —Méris. Esse soberano salientou-se pela construção de váriosmonumentos no vestíbulo do templo de Vulcano, voltado para onorte, pela ereção de majestosas pirâmides e, acima de tudo,pela abertura de um grande lago que tomou o seu nome e aoqual me referirei adiante. Como os outros nenhum monumentolegaram à posteridade, passarei por eles em silêncio,contentando-me em mencionar Sesóstris, que ocupou o tronodepois deles.

CII — Esse soberano foi, segundo os sacerdotes, oprimeiro que, partindo do golfo Arábico com uma frota degrandes navios, subjugou os povos que habitavam o litoral daEritréia. Navegou para mais longe ainda, tendo atingido um marinacessível à navegação por causa dos escolhos. Dali, de acordo

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com o referido depoimento, voltou ao Egito, organizou umnumeroso exército e, avançando por terra firme, subjugou todosos povos que encontrou em sua rota. Quando se defrontava comnações corajosas e ciosas de sua independência, erguia no paíscolunas, nas quais fazia gravar uma inscrição com seu nome, ode sua pátria e a notícia de haver vencido aquele povo pelaforça das armas. No país facilmente dominado, erguia colunascom inscrição semelhante, mas gravando sob esta as partessexuais da mulher, como emblema da covardia daquelepovo(16).

CIII — Percorrendo assim o continente de conquista emconquista, Sesóstris passou da Ásia para a Europa, submetendoos Citas e os Trácios. Creio, porém, que o exército egípcio nãofoi adiante, pois encontramos nessas nações as colunas que osoberano mandou erguer, mas, para além, nenhuma outra évista. É provável que tenha regressado pelo mesmo caminho eque, ao chegar às margens do Faso, tenha deixado ali uma partedo seu exército para cultivar o país. Não posso assegurar sealguns dos soldados, enfadados pelas longas jornadas, nãotenham resolvido ficar às margens do rio.

CIV — Sempre me parecera que os Colquidianos eramEgípcios de origem, e foi para certificar-me disso que resolvisondar uns e outros. Os Colquidianos tinham maisreminiscências dos Egípcios do que estes daqueles. Os Egípciospensam que esse povo é descendente de uma parte das tropas deSesóstris, e eu pensava da mesma maneira por dois motivos:primeiro, por serem os Colquidianos negros e possuíremcabelos crespos, prova um tanto equívoca, pois têm isso decomum com outros povos; segundo, e principalmente, porqueos Colquidianos, os Egípcios e os Etíopes foram os primeirospovos a adotar a circuncisão. Os Fenícios e os Sírios daPalestina declaram ter aprendido a circuncisão com os Egípcios;mas os Sírios que habitam as margens do Termodonte e doPartênio, e os Macrões, seus vizinhos, confessam que

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adquiriram esse costume há pouco tempo, com os Colquidianos.São esses, pois, os únicos povos que praticam a circuncisão, eparece que nisso não fazem mais do que imitar os Egípcios.

Como a circuncisão entre os Egípcios e os Etíopesparece remontar à mais alta antigüidade, não saberei dizer qualdas duas nações a imitou da outra. Quanto aos outros povos,tiraram eles dos Egípcios o costume, em conseqüência dasrelações comerciais que com estes mantinham. Essa minhaafirmação baseia-se no fato de terem os Fenícios que mantêmrelações com os Gregos, abandonado o costume que adotaramdos Egípcios, de circuncidar as crianças recém-nascidas.

CV — Eis aqui outro traço de semelhança entre os doispovos: são os únicos a trabalhar o linho da mesma maneira, aviver da mesma maneira e a possuir também uma única língua.Os Gregos denominam linho sardônico o que lhes vem daCólquida, e linho egípcio o que lhes vem do Egito.

CVI — A maior parte das colunas que Sesóstris mandouerigir nos países por ele subjugados não mais subsiste. Cheguei,todavia, a vê-las na Palestina e na Síria, e observei as partesgenitais das mulheres, assim como as inscrições a que me referi.

Vêem-se, também, na direção da Iônia, duas figurasdaquele príncipe talhadas na rocha; uma no caminho queconduz de Éfeso a Focéia; a outra, no de Sardes a Esmirna.Representam ambas um homem de cinco palmos de altura,tendo na mão direita um dardo e na esquerda um arco. As outraspartes da armadura assemelham-se às dos Egípcios e dosEtíopes. Gravaram-lhe no peito, de um ombro ao outro, umainscrição em caracteres egípcios e sagrados, concebida nestestermos: “CONQUISTEI ESTE PAÍS PELA FORÇA DO MEUBRAÇO”. Sesóstris, porém, aqui não diz quem é nem de ondeveio, mas indicou isso em outra parte. Alguns dos queexaminaram a referida figura acham que ela representaMémnon, com o que não estou de acordo, pois trata-se

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realmente de Sesóstris.

CVII — Os sacerdotes informaram-me, ainda, ter essesoberano, de volta do Egito, trazido grande número deprisioneiros feitos nas nações subjugadas. Dirigindo-se a Dafnede Pelusa, seu irmão, ao qual confiara a direção do reino,convidou-o, juntamente com os filhos, a alojar-se na casa dele,e, cercando a residência de matéria combustível, ateou fogo àmesma. Tendo conhecimento do que se passava, Sesóstrisconsultou imediatamente a mulher, também em sua companhia,sobre a maneira pela qual devia agir naquela conjuntura. Ela oaconselhou a tomar dois dos seis filhos que possuíam,estendê-los sobre o fogo e fazer com seus corpos uma espéciede ponte, sobre a qual poderiam passar e salvar-se. Sesóstrisaceitou a sugestão. Assim pereceram as duas crianças; as outrassalvaram-se com a mãe.

CVIII — Depois de haver-se vingado do irmão,Sesóstris, chegando ao Egito, empregou os prisioneiros natarefa de arrastar para o templo de Vulcano as enormes pedrasque hoje ali vemos. Pô-los também a cavar fossos e canais portodo o país. Antes desses trabalhos, executados à força, o Egitoera facilmente transitável por animais de tração; mas desdeentão, embora o solo do país seja plano e contínuo, tornou-seimpraticável, devido à infinidade de canais que se encontrampor todos os lados e em todos os sentidos. Entretanto, essainiciativa do soberano foi ditada por uma razão bem plausível.Toda vez que o rio baixava, depois da cheia, as cidadesdistantes das margens sofriam grande falta de água, nãodispondo seus habitantes, para matar a sede, senão da águasalobra dos poços.

CIX — Disseram-me ainda os sacerdotes que Sesóstrisrealizou a partilha das terras, concedendo a cada Egípcio umaporção igual, com a condição de lhe ser pago todos os anoscerto tributo. Se o rio carregava alguma parte do lote de alguém,

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o prejudicado ia procurar o rei e expor-lhe o acontecido. Osoberano enviava agrimensores ao local para determinar aredução sofrida pelo lote, passando o dono a pagar um tributoproporcional à porção restante. Eis, segundo me parece, aorigem da geometria, que teria passado desse país para a Grécia.Quanto ao gnomo ou relógio solar e a divisão do dia em dozepartes, os Gregos devem-nos aos Babilônios.

CX — Sesóstris foi o único soberano do Egito a reinarsobre a Etiópia. Para perpetuar suas conquistas deixou estátuasde pedra diante do templo de Vulcano. Havia duas de trintacôvados de altura, uma representando o rei, e a outra a esposa; equatro de vinte côvados cada uma, representando os quatrofilhos do casal. Muito tempo depois, quando Dario, rei daPérsia, quis colocar sua estátua diante dessas, o grandesacerdote de Vulcano a isso se opôs, objetando que ele, Dario,não havia praticado tão grandes ações quanto Sesóstris, e que,se submetera muitas nações, não pudera vencer os Citas, queSesóstris subjugou. Não era, pois, justo, acrescentou osacerdote, colocar diante das estátuas de Sesóstris a de umpríncipe que não o ultrapassara em conquistas. Dizem que Darioacatou, sem ressentimento, esse parecer.

CXI — Morrendo Sesóstris, subiu ao trono seu filhoFéron. Este príncipe nenhuma expedição militar realizou, tendoficado cego logo depois de assumir o poder. Conta-se que tendoo Nilo transbordado dezoito côvados nessa ocasião,submergindo todos os campos vizinhos, começou a soprar umvento impetuoso, agitando as vagas com violência. Féron, numalouca temeridade, tomou de um dardo e lançou-o no meio doturbilhão das águas. Pouco depois, seus olhos eram acometidosde um mal súbito e ele ficava cego. Permaneceu dez anos nesseestado, depois do que lhe trouxeram um oráculo de Butoanunciando-lhe que o tempo prescrito para o castigo haviaterminado e que ele recuperaria a vista logo que lavasse osolhos com a urina de uma mulher que nunca tivesse tido contato

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com outro homem senão com o marido. Féron experimentouprimeiramente a urina da própria esposa, mas não obtendoresultado algum, começou a servir-se indistintamente da deoutras mulheres. Tendo, por fim, recuperado a vista, fez reunirnuma cidade, hoje conhecida por Eritrébolos(17), todas asmulheres a quem recorrera, exceto aquela cuja urina lhe haviadevolvido a visão, e queimando-as todas, juntamente com acidade, desposou a que tinha contribuído para a sua cura.

Logo que se viu curado, enviou dádivas a todos ostemplos célebres, mandando fazer para o do Sol dois notáveisobeliscos, medindo cada um cem côvados de altura por oito delargura, ambos de pedra inteiriça.

CXII — Féron, de acordo com os citados sacerdotes,teve por sucessor um cidadão de Mênfis, que os Gregos, na sualíngua, chamam Proteu. Vê-se ainda hoje em Mênfis, ao sul dotemplo de Vulcano, um local magnífico e muito ornamentado,consagrado a esse governante. Fenícios originários de Tirohabitam os arredores, e toda a área por eles ocupadadenomina-se Campo dos Tírios. Há ali uma capela consagrada aVênus Estrangeira, que presumo tratar-se de Helena, filha deTíndaro, não somente por ter ouvido dizer que Helena viveuoutrora na corte de Proteu, mas ainda porque a capela tem onome de Vênus Estrangeira, não havendo, entre todos os outrostemplos de Vênus, um só que lhe seja consagrado sob essadesignação.

CXIII — Tendo interrogado os sacerdotes a respeito deHelena, responderam-me que Alexandre, depois de havê-laraptado de Esparta, abriu velas de regresso à pátria. Ao chegarao mar Egeu, os ventos contrários o impeliram para o mar doEgito; e como os ventos continuassem sempre contrários, foidar às costas do Egito, junto à embocadura do Nilo, hojedenominada boca de Canopo. Havia ali — como ainda hojeexiste — um templo em honra de Hércules. Se algum escravo

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nele se refugiasse e se fizesse marcar com os estigmas sagradospara consagrar-se ao deus, a ninguém era permitido pôr a mãonele. Essa lei continua sendo observada até hoje. Os escravos deAlexandre, informados dos privilégios do templo, para lá sedirigiram, e, na postura de suplicantes, puseram-se a acusar seusenhor com a intenção de prejudicá-lo, tornando pública aofensa por ele feita a Menelau e tudo o que se havia passado arespeito de Helena. Tais acusações eram proferidas na presençados sacerdotes e de Tónis, governador daquela boca do Nilo.

CXIV — Tónis enviou imediatamente um correio aMênfis, com a seguinte mensagem dirigida a Proteu: “Chegouaqui um estrangeiro que cometeu na Grécia um crimeinominável. Não contente de haver seduzido a mulher dohomem que o hospedara, raptou-a, juntamente com riquezasconsideráveis. Os ventos contrários forçaram-no a escalar esterecanto. Deixá-lo-emos partir impunemente ou confiscaremos oque possuía ao chegar?”

Proteu enviou pelo mesmo correio uma ordemconcebida nestes termos: “Prendam o estrangeiro que cometeutal crime contra o seu hospedeiro. Prendam-no, seja ele quemfor, e tragam-no à minha presença, para que possa alegar o quetem em sua defesa”.

CXV — Recebendo a ordem, Tónis apreendeu os naviosde Alexandre, deteve-o e conduziu-o a Mênfis, com Helena, asriquezas e os escravos que o delataram. Chegados à presença deProteu, este perguntou a Alexandre quem era ele e de ondevinha com aqueles navios. O príncipe não escondeu o nome desua pátria, de sua família, nem de onde procedia; mas quandoProteu o interrogou acerca de Helena, embaraçou-se com asrespostas; e como procurasse disfarçar a verdade, os escravos oacusaram, expondo ao soberano todas as particularidades docrime. Afinal, Proteu pronunciou sua sentença: “Se eu nãopensasse nas conseqüências que adviriam mandando matar

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estrangeiros que, forçados pelos ventos, aportam às minhasterras, vingaria com o teu suplício a ofensa que praticaste contraMenelau. Esse príncipe deu-te hospitalidade, e tu, o maispérfido dos homens, não hesitaste em praticar contra ele umaação execrável. Seduziste a sua mulher e, não satisfeito comisso, induziste-a a seguir-te e a levaste furtivamente. E aindamais: saqueaste, ao partir, a casa do teu hospedeiro. Deixar-te-eipartir, estrangeiro, mas não levarás essa mulher nem asriquezas; guardá-las-ei até que aquele a quem de fato pertencemvenha buscá-las. Intimo-te a deixar, no prazo de três dias, estepaís, juntamente com teus companheiros de viagem. Em casocontrário, serás tratado como inimigo”.

CXVI — Foi assim que Helena veio ter à corte deProteu. Parece-me que Homero ouvira também contar a mesmahistória; mas como ela convinha menos à epopéia do que aquelade que se utilizara, deixou-a de lado, mostrando, contudo, nãoignorá-la. Dá-nos ele disso testemunho certo na Ilíada, quandodescreve a viagem de Alexandre, testemunho que não retificaem nenhuma outra passagem do poema. Informa-nos também,no trecho em que trata das expedições de Diomedes, queAlexandre, depois de haver errado durante muito tempo de umacosta a outra com Helena, chegou a Sídon, na Fenícia. Eis aquios versos(18): “Ali se achavam as velas bordadas, obra dossidônios e trazidas de Sídon pelo belo Páris, quando regressou aTróia com a ilustre Helena”. Na Odisséia(19), faz tambémmenção à viagem de Helena: “Tal o benfazejo licor que possuíaHelena, filha de Júpiter; ela o recebera de Polidamna, mulher deTónis, na sua viagem ao Egito, cujas terras produzem umainfinidade de plantas, umas salutares, outras malignas”. Novareferência ao fato é por ele feita nos versos em que Menelau sedirige a Telêmaco(20): “Embora eu desejasse regressar, osdeuses me retiveram no Egito, por não lhes haver eu oferecidohecatombes perfeitas”. Com tais versos, Homero mostra-nossobejamente não ignorar a estada de Alexandre no Egito. ASíria confina realmente com o Egito, e os Fenícios, aos quais

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pertence Sídon, habitavam a Síria.

CXVII — Esses versos do poeta e, principalmente, aprimeira passagem, provam que os Cipríacos(21) não são deHomero, mas de algum outro aedo, pois lê-se nesse poema queAlexandre, aproveitando-se da tranqüilidade do mar e de umvento favorável, atingiu Tróia com Helena, três dias depois departir de Esparta, no lugar em que Homero diz na Ilíada que,sonhando com ela, errou durante muito tempo.

CXVIII — Perguntei, em seguida, aos sacerdotes, se oque os Gregos contavam da guerra de Tróia devia ser posto norol das fábulas. Responderam-me terem-se informado a respeitocom o próprio Menelau, e eis o que souberam: Depois do raptode Helena, poderoso exército grego transpôs a Tróade paravingar o ultraje feito àquele rei. Mal os soldados haviamdeixado os navios e começado a acampar-se, foram enviados aÍlion embaixadores, entre os quais se achava o próprio Menelau.Ali chegando, os embaixadores reclamaram a devolução deHelena, bem como das riquezas subtraídas por Alexandre,exigindo uma reparação desse ato. Os Troianosasseguraram-lhes, primeiro sem juramento e depois sobjuramento, não possuírem nem Helena nem os tesourosreclamados, e que tanto aquela como estes estavam no Egito,não havendo, pois, razão para serem perseguidos por coisas quese achavam em poder de Proteu, rei daquele país. Os Gregos,todavia, supondo que os Troianos ocultavam a verdade ezombavam deles, sitiaram Tróia e continuaram o cerco até setornarem senhores da cidade. Não encontrando Helena nacidade capturada, e ante a atitude dos Troianos, quecontinuavam negando estivesse ela em seu poder, não maisduvidaram que assim fosse e enviaram o próprio Menelau paraentender-se com Proteu.

CXIX — Chegando ao Egito, Menelau subiu o Nilo atéMênfis, onde fez ao soberano uma narrativa exata do que se

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havia passado. Foi tratado com toda atenção e consideração,tendo-lhe sido entregue Helena, que não havia sofrido nenhummal, juntamente com os tesouros.

Menelau encarou, entretanto, essas atenções comoultrajes; e tendo ficado ali retido durante muito tempo pelosventos contrários, impacientou-se e resolveu sacrificar duascrianças do país. Esta ação execrável, que logo chegou aoconhecimento de todos os Egípcios, tornou-o odioso;perseguiram-no, e ele foi obrigado a fugir por mar para a Líbia,não se sabendo ao certo para onde se dirigiu em seguida.

CXX — Sou da opinião dos sacerdotes egípcios no quese refere a Helena, e eis aqui algumas conjecturas da minhaparte: Se essa princesa estivesse em Tróia, tê-la-iam entregue,certamente, aos Gregos, com ou sem o consentimento deAlexandre. Príamo e os príncipes da família real não eram tãodesprovidos de senso, a ponto de pôr em perigo sua própriasegurança, a de seus filhos e de sua cidade, a fim de queAlexandre permanecesse na posse de Helena. Mas, mesmosupondo que tinham tal propósito no começo da guerra, aoverem que pereciam tantos Troianos em cada combate travadocom os Gregos e o sacrifício em vidas que a luta estavacustando aos filhos de Príamo, teriam, se Helena estivesserealmente em seu poder, procurado pôr fim à contenda,devolvendo-a aos que a reclamavam. O próprio Príamo, mesmoque estivesse, como muitos afirmam, por ela apaixonado, nãohesitaria em entregá-la aos Gregos para livrar-se de tantosmales.

Aliás, Alexandre não era herdeiro presuntivo da coroa enão estava encarregado da administração dos negócios navelhice de Príamo. Heitor era o filho mais velho do rei e gozavade grande consideração. Por morte de Príamo, a ele caberia otrono. Assim, não lhe seria honroso nem vantajoso favorecer oserros do irmão, e isso quando ele via todos os outros Troianos

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expostos a tão graves riscos por causa de Alexandre. Nãoestava, porém, ao seu alcance devolver Helena, e os Gregos nãoderam crédito à sua resposta, embora ela fosse verdadeira. Umadivindade havia tudo preparado, creio eu, para ensinar aoshomens, pela ruína completa de Ílion, que os deuses infligemcastigos de acordo com a enormidade dos crimes.

CXXI — Disseram-me os sacerdotes que Rampsinitosucedeu a Proteu no trono do Egito. Foi ele quem mandouconstruir o vestíbulo do templo de Vulcano, situado a ocidente,e erguer, na frente desse vestíbulo, duas estátuas de vinte ecinco côvados de altura; uma ao norte, que os Egípciosdenominam Verão, e outra ao sul, denominada Inverno. Adorama primeira e fazem-lhe oferendas, tratando a segunda demaneira inteiramente oposta.

Muitas riquezas possuía esse príncipe, bastando dizerque nenhum dos reis do Egito seus sucessores o igualou emopulência. Para pôr seus tesouros em segurança, mandou erguerum edifício de pedra, um dos muros do qual ficava fora dorecinto do palácio. O arquiteto, animado de maus propósitos,planejou e executou o seguinte: dispôs uma das pedras comtanta arte, que dois homens, ou mesmo um só, podiamremovê-la facilmente. Acabada a construção, Rampsinito paraali fez transportar suas riquezas. Algum tempo depois, oarquiteto, sentindo-se prestes a morrer, mandou chamar os doisfilhos e disse-lhes que ao construir o edifício onde se achavamos tesouros do rei havia usado de um artifício para prover-lhesas necessidades e dar-lhes um meio de viver na abundância.Instruiu-os minuciosamente sobre a maneira de remover apedra, identificando-a bem pelas dimensões e limites,acrescentando, por fim, que se eles observassem o que ele lhesdizia teriam o tesouro real à sua disposição.

Morrendo o arquiteto, os filhos não perderam tempo emseguir-lhe o conselho. Foram, à noite, ao palácio, e,

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encontrando a pedra designada, deslocaram-na facilmente esubtraíram dali grandes somas. O rei, entrando um dia noesconderijo, ficou tomado de espanto ao notar sensivelmentediminuído o conteúdo dos vasos onde guardava o dinheiro, nãosabendo a quem acusar, pois os selos da porta estavam intactose tudo muito bem fechado. Voltando ali mais duas ou três vezese percebendo que o dinheiro minguava cada vez mais (osladrões não cessavam de tirá-lo), mandou colocar umaarmadilha em torno dos vasos. Os ladrões chegaram, como dasoutras vezes. Um deles, entrando na frente, foi direto aos vasos,caindo na armadilha. Vendo-se apanhado, chamou o irmão e,relatando-lhe sua desdita, pediu-lhe que lhe cortasse a cabeça, afim de que, não sendo reconhecido, não se tornasse a causa daperda da família. O outro, vendo que ele tinha razão, obedeceu,repôs a pedra no lugar e voltou para casa com a cabeça doirmão.

No dia seguinte, logo pela manhã, o rei dirigiu-se aocompartimento onde guardava o tesouro. Aproximou-se dosvasos e recuou cheio de espanto ante aquele corpo sem cabeça,preso na armadilha. Maior ainda foi o seu assombro ao notarque o edifício não apresentava nenhum sinal de dano, nãopodendo absolutamente imaginar por onde entrara aqueleindivíduo. Confuso e desejando solucionar o enigma, tomou aseguinte resolução: mandou pendurar na muralha o cadáver,colocando guardas ao lado, com ordens de levar à sua presençaquem quer que chorasse ou gemesse ao contemplar o morto. Amãe do ladrão, ciente de tudo e indignada com isso, chamou ooutro filho e concitou-o a empregar todos os esforços pararetirar o cadáver e trazê-lo para casa, ameaçando-o de ir elaprópria denunciá-lo ao rei, caso não fizesse o que lhe pedia. Ojovem, não conseguindo demovê-la de tão temerário propósito etemendo que ela executasse a ameaça, concebeu este engenhosoplano: Carregou alguns burros com odres cheios de vinho epôs-se a tocá-los em direção ao palácio. Ao aproximar-se dolocal onde se achava o corpo do irmão, abriu dois ou três odres,

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deixando que o vinho jorrasse com abundância e fingindo omaior desespero, como se não soubesse o que fazer em tãoembaraçosa situação. Os guardas, observando aquela cena,trataram logo de recolher o vinho que caía, certos de quepoderiam aproveitar o que conseguissem salvar. O jovem,simulando cólera, descarregou sobre eles toda sorte de injúrias.Como os guardas procurassem consolá-lo, fingiu abrandar-se edesviou as alimárias do caminho, tratando de fechar bem osodres. Entreteve-se, então, a conversar com os guardas, queprocuravam alegrá-lo com motejos e ditos espirituosos, eestabelecendo-se a camaradagem entre eles, ofereceu-lhes umdos odres de vinho. Sentando-se ali mesmo, os guardas,convidando-o a lhes fazer companhia, entregaram-seinteiramente ao prazer da bebida. O jovem, que aceitaraprontamente o convite, vendo-os cada vez mais alegres sob aação do seu generoso vinho, deu-lhes mais um odre. Bebendoem demasia, os guardas embriagaram-se, e, vencidos pelo sono,estenderam-se no chão, adormecendo profundamente. Vendoavançada a noite, o jovem raspou, por zombaria, a barba dosguardas apenas do lado direito, desprendeu o corpo do irmão,colocou-o sobre um dos animais e voltou para casa.

O rei, cientificado do rapto do cadáver do ladrão,encheu-se de cólera; mas como desejava descobrir de qualquerforma o autor da façanha, tomou uma incrível decisão:prostituiu a própria filha num antro de perdição e ordenou-lheque recebesse igualmente toda classe de homens, obrigando-os,porém, antes de conceder-lhes os favores, a dizer o que haviamfeito de mais ardiloso e pérfido na vida. Se algum deles seufanasse de haver raptado o corpo do ladrão, devia ela retê-lo,não o deixando escapar de maneira alguma. A filha obedeceu àsordens do pai, mas o ladrão, percebendo a manobra, quismostrar ser mais astuto do que o rei. Cortou, bem junto aoombro, o braço de um homem recém-falecido, e, ocultando-osob o manto, foi procurar a princesa. Ao fazer-lhe esta asmesmas perguntas que já fizera aos outros homens que ali

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haviam estado, contou-lhe o rapaz que a sua ação mais pérfidahavia sido cortar a cabeça do irmão apanhado numa armadilhaquando roubava os tesouros do rei, e a mais ardilosa, haver-lheraptado o corpo, depois de ter embriagado os que o guardavam.Ouvindo a tão esperada resposta, a princesa tentou prendê-lo,mas, encontrando-se eles no escuro, o jovem estendeu-lhe obraço do morto, que ela segurou, julgando ser o do ladrão,enquanto este ganhava a porta e fugia.

O soberano, informado do que se passara, ficouassombrado com a astúcia e audácia daquele homem, eabandonando a idéia de vingança, mandou apregoar por todas ascidades que concedia o perdão ao criminoso e que se estequisesse ir à sua presença, cumulá-lo-ia de outros favores.Confiando na palavra do soberano, o rapaz foi procurá-lo.Cheio de admiração por aquele jovem que o ludibriara e nãotemera sua cólera, Rampsinito deu-lhe a filha em casamento,considerando-o o mais astuto dos homens, pois que se osEgípcios se julgavam superiores a todos os mortais, o jovem semostrara superior aos Egípcios.

CXXII — Relatam os sacerdotes que em seguida a essesacontecimentos Rampsinito desceu, vivo, aos lugares que osGregos acreditam serem os infernos, onde jogou dados comCeres, ganhando algumas vezes, perdendo outras. Ao voltar àTerra, a deusa lhe fez presente de um guardanapo de ouro. Essaaventura de Rampsinito levou os Egípcios, como meinformaram os sacerdotes, a instituir uma festa que se prolongapelo espaço de tempo correspondente à descida de Rampsinitoaos infernos, da partida ao regresso. No meu tempo, aindacelebravam essa festa, mas não posso assegurar se a instituírampelo motivo em questão ou por qualquer outro. Durante acelebração, os sacerdotes cobrem os ombros de um dos seuscompanheiros com um manto tecido no próprio dia dacerimônia, e, vendando-lhe os olhos, põem-no no meio docaminho que leva ao templo de Ceres, depois do que se retiram.

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Então, ao que se diz, dois lobos conduzem o sacerdote de olhosvendados ao templo, afastado da cidade vinte estádios, etrazem-no de volta, mais tarde, ao mesmo lugar onde oencontraram.

Se tais propósitos dos Egípcios parecerem verossímeis aalguém, esse alguém que lhes dê crédito. Quanto a mim, nãotive outro fito em toda esta história senão o de contar o que ouvidizer.

CXXIII — Os Egípcios dizem que Ceres e Bacopossuem um poder soberano nos infernos. Foi também essepovo o primeiro a afirmar que a alma do homem é imortal eque, morto o corpo, transmigra sempre para o de qualqueranimal; e depois de haver passado assim, sucessivamente, portodas as espécies de animais terrestres, aquáticos e voláteis,torna a entrar num corpo de homem, realizando-se essasdiferentes transmigrações no espaço de três mil anos. Sei quealguns Gregos esposaram essa opinião, uns mais cedo, outrosmais tarde, considerando-a como sua. Não ignoro seus nomes,mas prefiro não mencioná-los.

CXXIV — Os sacerdotes meus informantesacrescentaram que, até Rampsinito, tinha-se visto florescer ajustiça e reinar a abundância em todo o Egito, mas que nãohouve maldade que não praticasse Quéops, seu sucessor. Estesoberano, depois de mandar fechar todos os templos e proibir ossacrifícios entre os Egípcios, pô-los todos a trabalhar para ele.Grande número de Egípcios foi empregado na tarefa de cavar aspedreiras da montanha da Arábia e arrastar dali até o Nilo aspedras que iam retirando, levando-as, em seguida, para a outramargem do rio, onde novos trabalhadores recebiam-nas etransportavam-nas para a montanha da Líbia. Utilizavam-se, detrês em três meses, cem mil nesse trabalho. Para avaliar-se osuplício a que foi tão longamente submetido esse povo, bastadizer que se consumiram dez anos na construção da calçada por

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onde deviam ser arrastadas as pedras. Na minha opinião, essacalçada é uma obra não menos considerável do que a pirâmide,pois mede cinco estádios de comprimento por dez braças delargura e oito de altura nos seus pontos mais elevados; é feita depedras polidas e ornadas de figuras de animais. Aos dez anosgastos para construí-la, convém acrescentar o tempo empregadonas obras da colina sobre a qual se elevam as pirâmides, e nasconstruções subterrâneas destinadas a servir de sepultura erealizadas numa ilha cortada por um canal e formada pelaságuas do Nilo. A pirâmide, em si, consumiu vinte anos delabuta. É quadrada, medindo cada uma das faces oito pletras delargura, e é construída, em grande parte, de pedras polidas ebem unidas umas às outras, não tendo nenhuma delas menos detrinta pés.

CXXV — A pirâmide foi construída em degraus, ealguns desses degraus tomam a forma de pequenos altares. Foium trabalho realmente complexo o da construção da pirâmide.Para levar as pedras aos diversos planos empregavam-semáquinas feitas de pequenos pedaços de madeira e situadas emdiferentes alturas. Ao chegar a pedra ao primeiro plano, eracolocada em outra máquina, que a levava para o segundo, ondeoutra máquina a transportava para o terceiro, e assimsucessivamente, até o alto do monumento. O acabamento dapirâmide processou-se de cima para baixo, passando-se de umplano superior para outro imediatamente inferior, até a base.Concluídas as obras, gravou-se no monumento, em caracteresegípcios, o quanto se despendeu em rábano, cebola e alho para amanutenção dos operários empregados na construção. Queminterpretou para mim essa inscrição disse-me que a despesamontava a mil e seiscentos talentos de prata. Se isso é exato,quanto não se teria gasto no restante da alimentação e em vestespara os operários?

CXXVI — Com os cofres esgotados por tais despesas,Quéops lançou mão da própria filha, fazendo-a prostituir-se

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num lupanar e ordenando-lhe a tirar de seus amantes certa somade dinheiro. Ignoro a quanto montou a quantia assim obtida,pois os sacerdotes nada souberam dizer sobre isso. A princesa,não só executou as ordens do pai, como quis deixar, ela própria,um monumento. Para isso pediu a cada um dos que iam vê-lauma pedra; e foi com as pedras assim reunidas que se construiua pirâmide que se encontra entre as outras três, de face com agrande pirâmide, e que mede um pletro e meio de cada lado.

CXXVII — Quéops, segundo me disseram os Egípcios,reinou pelo espaço de cinqüenta anos. Sucedeu-o, por suamorte, seu irmão Quéfren, que se conduziu como o seupredecessor. Entre outros monumentos, mandou ele construirtambém uma pirâmide. Se bem que igualmente notável, seutamanho, como pude verificar, nem se aproxima do da deQuéops; não possui edifícios subterrâneos, nem canal paracondução das águas do Nilo, enquanto que a outra, onde dizemachar-se o túmulo de Quéops(22), está, como ficou dito, situadanuma ilha formada pelas águas do Nilo e servida por um canal.O primeiro plano da pirâmide de Quéfren é de pedra da Etiópia,de várias cores. O monumento é cerca de quarenta pés maisbaixo do que o de Quéops, que lhe fica contíguo. Ambos foramconstruídos na mesma colina, que mede cem pés de altura,aproximadamente.

CXXVIII — Segundo os sacerdotes, Quéfren reinoudurante cinqüenta e seis anos, e por todo esse longo período osEgípcios foram atormentados por males sem conta, tendo ostemplos permanecido fechados. Tal a repulsa que os Egípciosvotam à memória desses dois príncipes, que até evitammencioná-los, designando, por isso mesmo, as pirâmides pelonome do pastor Filítis, que naquela época costumava andar comos seus rebanhos pelo local onde elas se encontram.

CXXIX — Falecendo Quéfren, subiu ao trono Micerino,filho de Quéops. Este príncipe, que sempre desaprovara os atos

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do pai, reabriu os templos e devolveu ao povo, reduzido àextrema penúria e submetido a toda sorte de vexames, aliberdade de escolher suas ocupações e de oferecer sacrifícios;enfim, julgou as pendências entre os seus súditos com maioreqüidade do que todos os antecessores. Por esse motivo, osEgípcios o veneram e cultuam sua memória como nunca ofizeram com relação aos outros governantes do país. Essesoberano, além de saber julgar com acerto e imparcialidade,chegava a lançar mão de seus bens para confortar aqueles quepor acaso se queixassem da severidade do seu julgamento.

Micerino, que tratava o seu povo com tanta humanidade,não se preocupando senão em torná-lo feliz, sofreu, certo dia,um rude golpe: perdeu a filha única, por quem tinha verdadeiraadoração. Ficou profundamente acabrunhado com esse infaustoacontecimento, e desejando dar à morta uma sepulturamagnificente e bem diversa da do comum dos mortais, mandoufazer uma novilha de madeira, inteiramente oca, e, depois dedourá-la, nela encerrou os restos mortais da filha.

CXXX — Esse original sarcófago ainda pode ser vistono palácio real de Sais, numa sala ricamente ornamentada.Diariamente queimam diante dele toda sorte de essências, e ànoite está sempre iluminado por uma candeia. Em outra sala,contígua a essa, vêem-se várias estátuas representando asconcubinas de Micerino — pelo menos é o que afirmam ossacerdotes da cidade de Sais. Seja ou não exata essa afirmativa,o certo é que existem ali cerca de vinte estátuas colossais demulheres nuas, todas esculpidas em madeira.

CXXXI — Conta-se ainda, com relação ànovilha-sarcófago e às estátuas, que Micerino, tendo-seapaixonado pela filha, violou-a, e que a jovem princesa, cheiade desespero e vergonha, enforcou-se, tendo então o soberanocolocado o corpo dentro da novilha de madeira. Vingando-se doultraje, a mãe da jovem mandou cortar as mãos das damas de

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companhia da filha, pela sua conivência no atentado. Asestátuas sem mãos que hoje ali se vêem representam essasindignas criaturas, castigadas em vida pela sua execrávelconduta. Creio, porém, que tudo quanto se conta desse amorincestuoso e das mãos das estátuas não passa de pura fábula. Oque se observa naquelas estátuas é terem suas mãos caído pelaação do tempo. Quando as visitei, vi algumas dessas peças juntoaos pedestais.

CXXXII — A novilha está coberta com um mantocarmesim, exceto a cabeça e o pescoço, que são revestidos deespessa camada de ouro. Entre os cornos vê-se o círculo do Sol,também em ouro. O animal, cujo tamanho se equipara ao dasmaiores novilhas naturais, não está de pé, mas de joelhos.Transportam-na todos os anos para fora da sala, deixando-a,durante alguns momentos, exposta à luz do sol, Essa cerimônia,que é realizada na mesma época em que os Egípcios se fustigame gemem por um certo deus, cujo nome não devo mencionaraqui, decorre do fato — a que muitos dão crédito — de haver aprincesa, ao morrer, pedido a Micerino, seu pai, que a fizessever o sol uma vez por ano.

CXXXIII — Pouco depois da morte da filha, foiMicerino abalado por uma nova desgraça: recebeu, da cidade deButo, um oráculo anunciando-lhe que só lhe restavam seis anosde vida. Acabrunhadíssimo, enviou um emissário ao templo,com instruções para fazer amargas censuras à deusa, fazendo-aver que o pai e o tio tinham vivido muito tempo, emborahouvessem oprimido seus súditos e, sem nenhuma consideraçãoaos deuses, tivessem fechado os templos, enquanto que ele, quetanta piedade pelo povo e tanto respeito aos deuses revelara, iaviver tão pouco. O oráculo respondeu-lhe dizendo serjustamente essa a razão pela qual ele ia morrer cedo; que elenão havia feito o que devia; que ele impedira que o Egito fosseoprimido durante cento e cinqüenta anos, como deveria ser, eque, enquanto seus dois antecessores haviam tido conhecimento

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disso, concorrendo para tal, ele o ignorara.

Concluindo, por essa resposta, da irrevogabilidade dasentença, Micerino mandou fazer grande número de candeias e,logo que chegava a noite, acendia-as e passava o tempo a bebere a divertir-se sem cessar; ia pelos lagos, pelos bosques, portoda parte onde encontrasse motivo de prazer. Procuravaconverter as noites em dias e duplicar, dessa maneira, o númerode anos que lhe restavam para viver, — de seis fazer doze —para com isso convencer o oráculo de que incidia em erro.

CXXXIV — Micerino também legou à posteridade umapirâmide. Embora bem menor que a de Quéops, é um notávelmonumento de base quadrada, de pedra da Etiópia até à metade,medindo cada uma das faces três pletros de largura. AlgunsGregos pretendem ter sido ela construída pela cortesã Ródope.Enganam-se eles, e me parece que nem mesmo sabiam quemera essa cortesã, pois, se soubessem, não lhe teriam atribuído aconstrução de uma pirâmide que custou milhões de talentos.Aliás, Ródope não viveu no reinado de Micerino, mas no deAmásis, isto é, muitos anos depois da morte dos soberanos quemandaram construir essas pirâmides. Ródope era originária daTrácia, tendo sido escrava de Jádmon, filho de Hefestópolis, dailha de Samos, e companheira de escravidão de Esopo, ofabulista, pois Esopo foi também escravo de Jádmon. Existemsobejas provas disso, e uma das principais é que, tendo osDélfios mandado perguntar várias vezes por um arauto, deacordo com as ordens de um oráculo, se alguém queria vingar amorte de Esopo(23), não se apresentou senão um neto deJádmon, com o mesmo nome do avô. Logo, Esopo foi escravode Jádmon.

CXXXV — Ródope foi conduzida ao Egito por Xanto,de Samos, para ali exercer a profissão de cortesã. Caraxo deMitilene, filho de Escamandrônimo e irmão de Safo, da qualconservamos as poesias, pagou uma quantia considerável pelo

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seu resgate. Tendo assim recuperado a liberdade, permaneceuela no Egito, onde sua beleza lhe proporcionou riquezasrealmente consideráveis para uma mulher de sua classe, masinsuficientes para a construção de uma pirâmide. Os bens que selhe atribuem, embora não excessivos como muitos julgavam,eram, com efeito, substanciosos, e ainda hoje podemos apreciaruma décima parte deles invertida numa iniciativaverdadeiramente extravagante e ainda não imaginada porninguém. Desejando deixar na Grécia algo que transmitisse seunome à posteridade, mandou fazer vários espetos de ferrosuficientemente fortes e grandes para assar um boi inteiro e devalor correspondente à décima parte de sua fortuna, e enviou-osao templo de Delfos, onde até hoje os vemos, empilhados atrásdo altar erguido pelos habitantes de Quios.

As cortesãs de Náucratis são geralmente dotadas degrande beleza. Ródope, de quem falamos, tornou-se tão célebre,que não havia ninguém na Grécia que lhe ignorasse o nome.Outra cortesã, Arquídice, angariou também, depois dela, grandefama na Grécia, mas não chegou a fazer tão grande rumor.Quanto a Caraxo, ao regressar a Mitilene depois de haverresgatado Ródope, Safo invectivou-o sem piedade nos seusversos.

CXXXVI — Micerino teve por sucessor Asíquis, quemandou construir, em honra de Vulcano, o pórtico que até agoraé visto a leste do templo desse deus e considerado o maior e omais imponente de todos. Os pórticos do templo de Vulcano sãodecorados com figuras admiravelmente esculpidas e possuemmil outros ornamentos semelhantes aos usualmente empregadosno embelezamento dos edifícios, mas o de Asíquis ultrapassa-osem sumptuosidade. No reinado desse príncipe, como ocomércio entrasse em crise em virtude da falta de dinheiro,promulgou ele uma lei proibindo os empréstimos, a menos queos que os fizessem dessem como garantia o corpo do própriopai. Estabelecia ainda essa lei, que o credor reteria em seu poder

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a sepultura do devedor, e que se este se recusasse a pagar adívida pela qual havia hipotecado um bem tão precioso, nãopoderia ser colocado, depois de morto, no sepulcro dos pais eem nenhum outro. Além disso, morrendo qualquer dos seusparentes, era-lhe vedado prestar-lhe essa homenagemderradeira.

Com o intuito de superar todos os que haviam reinadoantes dele, Asíquis deixou como monumento uma pirâmide detijolo, com esta inscrição gravada em pedra: “Não me depreciecomparando-me às pirâmides de pedra. Estou tão acima delasquanto Júpiter dos outros deuses, pois foi mergulhando umchuço no lago e recolhendo a vasa que estava ligada ao fundo,que se fizeram os tijolos com que sou construída”.

CXXXVII — De Asíquis, passou a coroa do Egito paraum cego da cidade de Anísis, chamado também Anísis. No seureinado, Sabacos, rei da Etiópia, marchou sobre o Egito compoderoso exército. Anísis fugiu através dos pântanos, e Sabacostornou-se senhor do país pelo espaço de cinqüenta anos. Nãomandou matar ninguém durante todo esse tempo, por maisgrave que fosse a falta cometida, mas, segundo a espécie decrime, condenava o culpado a elevar o nível do solo nascercanias da cidade onde nascera. Foi assim que o nível dascidades egípcias tornou-se ainda mais alto do que outrora. Já otinham aumentado no reinado de Sesóstris, quando foramabertos os canais. Elevaram-no ainda mais sob o domínio doEtíope. De todas as cidades do Egito, foi Bubástis a que maioraumento de nível sofreu por ordem de Sabacos.

CXXXVIII — Há, nessa cidade, um templo de Bubástis(Bubástis é o mesmo que Diana entre os Gregos), digno demenção. Embora existam ali outros templos maiores e maisricos, nenhum é mais atraente e mais sugestivo. Fica ele situadonuma espécie de ilhota formada por dois canais do Nilo, osquais, avançando paralelamente até a entrada do templo, ali se

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separam, circundando-o e deixando uma faixa de terra quepermite acesso aos que o visitam. Cada um dos canais medecem pés de largura e são ambos margeados por árvoresfrondosas. O vestíbulo do templo tem dez braças de altura e estáornado por lindas figuras de seis côvados. O templo fica nocentro da cidade, e os que o contornam podem apreciá-lo de altoa baixo, de qualquer ângulo, pois, achando-se na mesmaplataforma onde foi primitivamente construído, e tendo a cidadeaumentado de nível com as terras agregadas, ficou eleinteiramente visível de todos os pontos da urbe. Esse localsagrado está rodeado por um muro, no qual estão esculpidasinúmeras figuras. Ao derredor do templo vê-se um bosquecultivado, com árvores viçosas e de grande porte. O localsagrado, onde está encerrada a estátua da deusa, mede, em todosos sentidos, um estádio de comprimento por outro de largura. Àentrada estende-se um caminho de pedras, com três estádios decomprimento e margeado por árvores altíssimas, cuja folhagemparece perder-se nas nuvens. O caminho atravessa a praça domercado, na direção de leste, e vai ter ao templo de Mercúrio.

CXXXIX — O Egito, segundo os sacerdotes, libertou-sedo domínio de Sabacos de maneira calma e inesperada. Certanoite, o usurpador viu ou pareceu ver em sonhos um homemque o aconselhava a reunir todos os sacerdotes do Egito ecortá-los em duas partes. Refletindo sobre essa visão,pareceu-lhe discernir naquilo um pretexto dos deuses parafazê-lo violar o respeito devido às coisas sagradas,acarretando-lhe um castigo da parte dos próprios deuses ou doshomens. Resolveu não fazer o que lhe sugerira a visão, julgandomais prudente retirar-se do país, tanto mais que já haviadecorrido o período em que devia reinar no Egito. Segundo apredição dos oráculos etíopes(24) que ele consultara quando seachava na Etiópia, deveria reinar no Egito durante cinqüentaanos. Como esse tempo já havia expirado, e ante a estranhavisão que o deixara perturbado, decidiu retirar-sevoluntariamente do país.

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CXL — Assim que Sabacos deixou o Egito, Anísis (ocego) saiu da região pantanosa onde se refugiara e retomou asrédeas do governo. Tinha permanecido cinqüenta anos numailha por ele próprio formada com cinza e terra, pois, quando osEgípcios lhe iam levar víveres, cada um de acordo com as suasposses, ele lhes pedia um pouco de cinza, que ia acumulandoem mistura com a terra. Essa ilha só foi encontrada no reinadode Amirteu. Durante mais de quinhentos anos, os reis seuspredecessores tinham-na procurado inutilmente. Chamam-nailha de Helbo e mede dez estádios em qualquer sentido, pois éde formato arredondado.

CXLI — Anísis teve por sucessor um sacerdote deVulcano chamado Setos(25). Esse governante nenhumaconsideração teve para com os guerreiros, tratando-os cominteiro desprezo e chegando ao extremo de privá-los dos dozealqueires de terra que os reis seus antecessores haviam dado acada um como prêmio. Por isso, quando Senaqueribe, rei dosÁrabes e dos Assírios(26), veio atacar o Egito com um grandeexército, os guerreiros negaram-se a lutar em defesa da pátria.Vendo-se em tão difícil situação, Setos dirigiu-se ao templo, eali, diante da estátua do deus, pôs-se a lamuriar pela sortefunesta que parecia aguardá-lo; e assim deplorando suasdesgraças, adormeceu. Em sonhos, julgou ver o deusencorajando-o e assegurando-lhe que, se marchasse ao encontrodos Árabes, a sorte estaria do seu lado, pois ele próprio, o deus,lhe enviaria socorros.

Cheio de confiança na visão, Setos reuniu todas aspessoas de boa vontade e dispostas a segui-lo, e foi acampar emPelusa, ponto-chave do Egito. Seu exército era compostoexclusivamente de negociantes, artífices e vivandeiras(27).Nenhum guerreiro o acompanhava. Logo que essas tropasimprovisadas chegaram à cidade, espantosa multidão de ratosdo campo espalhou-se pelo acampamento inimigo, pondo-se aroer os arneses, os arcos e as correias que serviam para manejar

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os escudos, de maneira que, no dia seguinte, os Árabes estavamsem armas, e assim lutando, foram fragorosamente derrotados.Vê-se ainda hoje, no templo de Vulcano, uma estátua de pedrarepresentando aquele rei, com esta inscrição: “Quem quer quesejas, aprende, vendo-me, a respeitar os deuses”.

CXLII — Tanto os Egípcios com quem privei, como ossacerdotes meus informantes, me fizeram ver que trezentas equarenta e uma gerações se tinham sucedido desde o primeirorei até Setos, sacerdote de Vulcano. Ora, trezentas geraçõescorrespondem a dez mil anos, já que três gerações equivalem acem anos; e as quarenta e uma gerações restantes perfazem miltrezentos e quarenta anos. No decurso desses onze mil trezentose quarenta anos, acrescentam eles, nenhum deus se manifestouem forma humana e nada se viu de semelhante, nem nos temposanteriores a essa época, nem entre os outros reis quegovernaram o Egito posteriormente. Asseguraram-me tambémque nessa longa seqüência de anos o sol se erguera quatro vezesfora de sua órbita comum, despontando duas vezes no lugaronde hoje se deita, e deitando-se também duas vezes no lugaronde hoje se ergue. Tal fenômeno, contudo, nenhuma alteraçãoprovocou no país, quer na produção agrícola, quer nasirrigações do Nilo, quer ainda com relação às moléstias e àmortalidade.

CXLIII — O historiador Hecateu, encontrando-se certavez em Tebas, falara aos sacerdotes do Egito de sua genealogia,fazendo-a remontar a um deus, que contava como odécimo-sexto dos seus ancestrais. Os sacerdotes procederampara com ele como depois fizeram comigo, embora eu nada lhestivesse dito sobre minha família. Conduziram-me a uma dasdependências do templo, onde me mostraram colossais estátuasde madeira que lhes haviam legado os grandes sacerdotes, poiscada um destes não deixa, em vida, de ali colocar sua estátua.Enumerando-as todas na minha presença, provaram-me, pela doúltimo morto, que cada um daqueles sacerdotes era filho de seu

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predecessor, mas sem admitir, todavia, que eles tivessem suaorigem em algum deus, como Hecateu quisera fazê-los acreditarfalando-lhes de sua genealogia. A essa afirmativa dohistoriador, eles opuseram a genealogia daqueles pontífices,limitando-se a dizer-lhe que cada um deles representava umpiromis (termo egípcio, correspondente a bom e virtuoso)gerado por outro piromis, continuando assim até o últimodaquela geração de sacerdotes. Sua origem, eles não a deviam anenhum deus ou herói.

CXLIV — Os sacerdotes provaram-me, assim, quetodos aqueles representados pelas estátuas, longe de seremdeuses, haviam sido piromis(28), e acrescentaram ser verdadeque, em tempos anteriores à existência desses homens, osdeuses tinham reinado no Egito e privado com os mortais. Órus,conhecido entre os Gregos pelo nome de Apolo, fora o últimodesses soberanos do Egito, tendo arrebatado a coroa aTifão(29). Órus era filho de Osíris, a quem chamamos Baco.

CXLV — Os Gregos consideram Hércules, Baco e Pãcomo os mais novos dos deuses. Entre os Egípcios, ao contrário,Pã passa pelo mais antigo, estando mesmo incluído na categoriados oito primeiros deuses. Hércules figura entre os deuses desegunda ordem, conhecidos pela designação de doze deuses, eBaco entre os de terceira, gerados pelos doze deuses.

Já fiz ver, pouco mais acima, como os Egípcios contamo período decorrido desde Hércules até o rei Amásis. Diz-se serainda maior o período que vai de Pã a Hércules, sendo,entretanto, bem menor o que vai deste último a Baco. De Bacoaté Amásis contam-se quinze mil anos. Os Egípcios consideramesses fatos incontestáveis, pois têm o hábito de anotarrigorosamente o transcurso dos anos. De Baco, que se diz serfilho de Sémele e Cadmo, até nós, medeiam cerca de mil eseiscentos anos, e de Hércules, filho de Alcmena, perto denovecentos anos. Pã, que os Gregos afirmam ser filho de

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Penélope e Mercúrio, é posterior à guerra de Tróia, e, porconseguinte, o período que decorre dele até os nossos dias nãovai além de oitocentos anos.

CXLVI — Todos têm plena liberdade de adotar entreessas duas opiniões a que lhes parecer mais razoável. Assim,contento-me em expor a minha. Se esses deuses foramconhecidos na Grécia e se ali envelheceram, tais comoHércules, filho de Anfitrião; Baco, filho de Sémele, e Pã, filhode Penélope, pode-se dizer também, embora não tenham sidoeles mais do que homens, que estavam adotando nomes dedeuses nascidos em séculos anteriores. Asseguram os Gregosque, logo que Baco nasceu, Júpiter coseu-o à sua coxa e levou-opara Nisa, cidade da Etiópia, acima do Egito. Com relação a Pã,ignoram para onde foi transportado logo depois do seunascimento. Parece-me evidente terem os Gregos aprendido osnomes desses deuses muito depois dos dos outros, determinandoa data do seu nascimento pela época em que deles ouviramfalar.

CXLVII — Voltemos, porém, à história do Egitopropriamente dita e aos soberanos que o governaram.

Depois da morte de Setos, rei e sacerdote de Vulcano, osEgípcios recobraram a liberdade, mas como não podiam viverum só momento sem reis, elegeram doze soberanos a um sótempo e dividiram o Egito em outras tantas partes,entregando-as a cada um deles. Esses doze reis se uniram entresi por laços de família e propuseram a não se prejudicaremreciprocamente, a não procurar nenhum deles obter vantagenssobre os demais, e a se manterem sempre ligados pela maisestreita amizade. O fim desse tratado era fortificarem-seconjuntamente, premunindo-se contra qualquer perigo, pois,logo que assumiram o poder, um oráculo lhes declarara queaquele que fizesse libações no templo de Vulcano com uma taçade bronze reinaria sobre todo o Egito.

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CXLVIII — Quiseram também unir esforços para legarà posteridade um monumento digno de admiração. Fizeram,assim, construir um labirinto pouco acima do lago Méris, bempróximo à cidade dos Crocodilos. Tive oportunidade de ver essaobra e achei-a notável sob todos os aspectos. Nenhuma dasconstruções, nenhum dos edifícios dos Gregos se lhe podecomparar, quer no que se refere ao trabalho, quer ao custo. Ostemplos de Éfeso e de Samos despertam, sem dúvida,admiração; as pirâmides são obras arrojadas e grandiosas,podendo, cada uma em particular, sofrer cotejo com as maioresconstruções da Grécia; mas o labirinto supera as própriaspirâmides. Compõe-se de doze pátios cobertos, cujas portas sãocontíguas e situadas frente a frente, seis ao norte e seis ao sul.Uma mesma cintura de muralhas envolve-as pelo lado de fora.O labirinto está construído em seções duplas, sendo mil equinhentas subterrâneas e mil e quinhentas na superfície — trêsmil ao todo. Visitei algumas destas últimas, podendo, pois,delas falar com segurança. Quanto às subterrâneas, reproduzoapenas o que sobre elas me disseram. Os Egípcios que a elasmontam guarda não permitem que se as vejam, por servirem decatacumbas aos crocodilos sagrados e aos reis aos quais se deveessa obra monumental. Os compartimentos de cima, que tiveoportunidade de visitar, estão ligados entre si por amplaspassagens e corredores que levam através dos vários pátiosigualmente amplos e bem traçados. O teto de todas essasdependências é de pedra, bem como os muros, decorados todoscom figuras em baixo-relevo. Em torno de cada pátio vêem-secolunatas de pedra branca simetricamente dispostas. No ânguloem que termina o labirinto ergue-se uma pirâmide de cinqüentabraças de altura, na qual se acham esculpidas figurasamplificadas de animais de várias espécies.

CXLIX — Por mais admirável que seja o labirinto, olago Méris, perto do qual está situado, causa ainda maiorassombro. Medindo três mil e seiscentos estádios decircunferência — o que equivale a sessenta esquenos — tem

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uma extensão correspondente à da costa do Egito. Suaprofundidade máxima é de cinqüenta braças. Foi cavado pelamão do homem, e o próprio conjunto da obra nos dá disso aprova. Vêem-se, realmente, quase no meio do lago, duaspirâmides, medindo cada uma, da base, situada sob a água, aocume, cem braças de altura. Sobre uma e sobre outra vê-se umacolossal figura de pedra sentada num trono.

As águas do lago Méris não derivam de nenhumanascente, uma vez que o terreno ocupado por ele éextremamente árido e seco; vêm do Nilo por um canal decomunicação. Durante seis meses, elas correm do rio para olago, e durante outros seis, do lago para o rio. Neste últimoperíodo, quando as águas se retiram, a pesca no lago rende aotesouro real um talento de prata(30) por dia, mas durante os seisprimeiros meses, quando correm para o lago, a produção nãovai além de vinte minas.

CL — O lago forma um cotovelo a oeste e estende-sepelo meio de terras cultivadas, ao longo da montanha e acimade Mênfis, indo desaguar, segundo informações dos habitantesda região, na Sirta da Líbia, por um canal subterrâneo. Nãovendo, em parte alguma, a terra que devia ter sido retirada paraa construção do lago, e curioso em saber onde podia ela estar,interroguei, nesse sentido, os moradores das vizinhanças. O queeles me disseram sobre o destino dado a essa terra desvaneceriaqualquer dúvida que eu pudesse ter tido a respeito, tanto maisque eu já ouvira dizer ter-se feito algo de semelhante emNínive, cidade dos Assírios. Os ladrões, procurando carregar osimensos tesouros de Sardanapalo, rei de Nínive, guardados emrecintos subterrâneos, começaram a cavar a terra, abrindo umagaleria da sua casa até o palácio do rei. À noite, transportavam aterra retirada para o Tigre, que corre ao longo da cidade.Continuaram, assim, a empresa, até atingirem o fim visado.Fez-se, pelo que ouvi dizer, a mesma coisa no Egito, com adiferença de que não se cavava a bacia do lago durante a noite,

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mas em pleno dia. À medida que o cavavam, iam transportandoa terra para o Nilo, que a dispersava. Foi assim que, a dar-secrédito aos habitantes, o lago Méris foi construído.

CLI — Os doze reis conduziram-se com justiça. Certodia, porém, por ocasião da festa em honra a Vulcano,terminados os sacrifícios do último dia no templo do deus, ogrande sacerdote apresentou aos soberanos, para as libações, astaças de ouro de que costumavam servir-se nessa ocasião; masenganou-se no número, e em lugar de doze taças, trouxe apenasonze para os doze reis. Então Psamético, que se achava emúltimo lugar, vendo-se sem taça, tomou do próprio capacete,que era de bronze, e dele se utilizou nas libações. Todos osoutros reis costumavam trazer um capacete e o tinham naquelemomento na cabeça. Foi, portanto, sem nenhum mau propósito,que Psamético se serviu do seu; mas seus companheirosrefletiram sobre sua ação, relacionando-a com a predição dooráculo de que aquele que fizesse libações num vaso de bronzetornar-se-ia o único soberano do Egito. Reconhecendo, todavia,pelas respostas sinceras de Psamético, não ter ele agido compremeditação, julgaram injusto matá-lo; mas despojaram-no damaior parte de seus bens e da soberania, e obrigaram-no aretirar-se para a região pantanosa, proibindo-o de sair dali e demanter qualquer contato com o resto do Egito.

CLII — Esse príncipe tinha, anteriormente, procuradoabrigo na Síria, fugindo à perseguição de Sabacos, rei daEtiópia, que lhe matara o pai, Necos. Os habitantes de umaregião denominada Saíto chamaram-no quando Sabacosabandonou o Egito por causa da visão que tivera. Foi entãolevado ao trono como um dos doze reis escolhidos pelosEgípcios, mas novamente exilado, desta vez para os pântanospor haver feito libações com seu capacete de bronze.Sentindo-se humilhado e decidido a vingar-se dos responsáveispelo seu exílio, enviou um emissário a Buto para consultar ooráculo de Latona, o mais verídico dos oráculos do Egito.

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Respondeu-lhe este que ele seria vingado por homens de bronzesaídos do mar. Aquela resposta deixou-o algum tanto em dúvidaquanto à possibilidade de que homens de bronze viessem emseu auxílio; mas, pouco depois, alguns Iônios e Cários, empirataria pelos mares, forçados a aportar ao Egito, desceram emterra envergando armaduras de bronze. Um Egípcio correu alevar a notícia a Psamético, nos pântanos; e como até então esseinformante nunca tinha visto seres humanos com tais aparatos,disse-lhe que homens de bronze, saídos do mar, pilhavam oscampos. Psamético, deduzindo por essa informação que apredição do oráculo se cumprira, fez aliança com os Iônios eCários, convencendo-os, com promessas, a tomar o seu partido.Com essas tropas auxiliares e os Egípcios que lhe tinhampermanecido fiéis destronou os onze reis.

CLIII — Senhor de todo o Egito, Psamético construiu,em Mênfis, os pórticos do templo de Vulcano, que se acham dolado do sul. Em frente aos pórticos mandou construir umadependência para Ápis, onde o alimentam quando ele aliaparece. É um peristilo, ornado de figuras e sustentado porcolossos de doze côvados de altura, à guisa de colunas. O deusÁpis é o mesmo cultuado entre os Gregos com o nome deÉpafo.

CLIV — Psamético recompensou os serviços dos Iôniose dos Cários com terras e habitações próximas uma das outras eseparadas apenas pelo rio. A esse conjunto deram o nome deCampo. Além dessas terras, o soberano deu-lhes tudo mais quelhes havia prometido e confiou-lhes crianças egipcias para queeles lhes ensinassem o grego. Dessas crianças iniciadas assimno referido idioma descendem os intérpretes que vemosatualmente no Egito.

Os Iônios e os Cários habitaram durante muito tempo oslugares onde Psamético os tinha situado e que ficam perto domar, pouco abaixo de Bubástis, na embocadura do Nilo. Mais

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tarde, porém, o rei Amásis transferiu esses estrangeiros paraMênfis, a fim de utilizá-los na defesa do trono contra osEgípcios insurrectos. Desde que se estabeleceram no Egito,esses Gregos mantiveram com os nativos um comércio tãoestreito que, a começar do reinado de Psamético, sabemos comsegurança tudo o que se passou no país. Foram eles, realmente,o primeiro povo de outra língua admitido pelos Egípcios nopaís. Viam-se ainda, no meu tempo, no território de ondehaviam sido removidos, os portos por eles construídos e asruínas de suas casas.

CLV — Embora já tenha falado muito do principaloráculo do Egito, ainda insistirei sobre ele por considerá-lodigno de mais algumas referências. É esse oráculo consagrado aLatona, e encontra-se numa grande cidade situada naembocadura sebenítica do Nilo.

A cidade chama-se Buto, e a ela já tive oportunidade dealudir algumas vezes. Vêem-se ali vários templos, entre osquais o de Apolo, o de Diana e o de Latona. Este último, ondese pronunciam os oráculos, é de grandes dimensões, medindoseus pórticos dez braças de altura. De tudo que vi no recintoconsagrado a Latona, foi o nicho em que se encontra a deusa oque maior admiração me causou. O fundo e as partes lateraissão constituídos de uma só pedra, e mede quarenta côvadosqualquer de suas dimensões. Outra pedra, de quatro côvados deespessura, lhe serve de cobertura.

CLVI — Depois do templo de Latona, o que mais atrai aatenção dos que visitam Buto é a ilha de Quémis, situada numlago extenso e profundo, nas proximidades do templo. OsEgípcios afirmam tratar-se de uma ilha flutuante, mas não a viflutuar nem mover-se, e muito me surpreendeu ouvir falar emtal coisa. Existe em Quémis um vasto templo de Apolo com trêsaltares. A terra ali produz, sem cultivo, grande quantidade depalmeiras e outras árvores, tanto frutíferas como estéreis.

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Eis, segundo os Egípcios, a razão pela qual a ilha flutua.Latona, uma das oito mais antigas divindades, morava na cidadede Buto, onde se encontra agora o seu oráculo. Ísis, tendoconfiado Apolo à proteção dessa deusa, ela o ocultou nessa ilha,então fixa como todas as outras, livrando-o, assim, daperseguição de Tifão, que o buscava por toda parte. Dizem osEgípcios que Apolo e Diana nasceram de Baco e Ísis, e queLatona amamentou-os. Apolo chama-se Órus em egípcio;Ceres, Ísis, e Diana, Bubástis. Foi Ésquilo, filho de Eufórion,quem divulgou essa fábula, fazendo, segundo a mesma, Dianafilha de Ceres. Todavia, nenhum dos poetas que o precederamfazem qualquer referência ao fato.

CLVII — Psamético ocupou o trono do Egito durantecinqüenta e quatro anos, e manteve o cerco de Azoto,importante cidade da Síria, pelo espaço de vinte e nove anos,até que conseguiu capturá-la. Foi esse o mais longo cerco jásuportado por qualquer cidade.

CLVIII — Psamético teve um filho de nome Necos, queocupou também o trono do Egito. Foi esse príncipe quemprojetou e iniciou a abertura do canal que conduz ao mar daEritréia, obra essa continuada depois por Dario, rei da Pérsia.Esse canal, que começa pouco acima de Bubástis e atinge o marda Eritréia nas proximidades de Patmos, na Arábia, pode sertransposto em quatro dias de navegação. Sua largura ésuficiente para permitir a passagem de dois trirremes ao mesmotempo.

Os trabalhos de escavação tiveram início na planícieegípcia, no ponto em que esta confina com a Arábia e ao sopéda montanha que se estende para Mênfis. Partindo dali, o canalcorre primeiramente de oeste para leste, passando pelasgargantas da montanha, voltando-se em seguida para o sul, emdireção ao golfo da Arábia.

Para ir-se do mar Setentrional ao mar Austral, também

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chamado mar da Eritréia, segue-se pelo monte Cásio, quesepara o Egito da Síria. É esse o caminho mais curto. Dessemonte ao golfo Arábico não há mais que mil estádios, mas ocanal torna-se, pelas suas sinuosidades, muito mais longo.Cento e vinte mil homens pereceram nas primeiras fases daabertura desse canal, tendo Necos interrompido as obras por lhehaver dito um oráculo estar ele trabalhando para o bárbaro. (OsEgípcios chamam de bárbaros os que falam outro idioma).

CLIX — Necos, tendo abandonado a empresa, voltousuas vistas para as expedições militares. Mandou construirgrande número de trirremes e lançá-los no mar Setentrional, nogolfo Arábico e no mar da Eritréia. Vêem-se, ainda hoje, osestaleiros onde esses barcos foram construídos. Sua frotaprestou-lhe serviço na ocasião precisa. Necos travou tambémem terra uma batalha contra os Sírios, perto de Magdala.Vitorioso, capturou Cadítis, importante cidade da Síria.Consagrou a Apolo a roupa que trajava nessas expedições,enviando-as aos Brânquidas, no país dos Milésios. Faleceupouco mais tarde, depois de haver reinado dezesseis anos,deixando a coroa a Psámis, seu filho.

CLX — No reinado deste príncipe chegaram ao Egitoembaixadores da parte dos Eleus. Esse povo se ufanava dehaver estabelecido nos Jogos Olímpicos as regras mais justas,mais belas e mais eficazes, e acreditava que os Egípcios,embora os mais sábios de todos os homens, nada podiaminventar de melhor. Chegando à corte e explicando o motivoque ali os levava, Psámis convocou sem demora aqueles dentreos Egípcios que passavam pelos mais sábios, aos quais os Eleusexpuseram as regras que lhes parecera conveniente instituir,declarando terem vindo saber se os Egípcios podiam sugeriroutras ainda mais interessantes. Os sábios egípciosperguntaram, por sua vez, se eles, Eleus, tomavam parte nessesjogos. Recebendo resposta afirmativa, redarguiram que talregulamento violava as leis da eqüidade, pois que era

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impossível que os Gregos não favorecessem seus compatriotas,em detrimento dos estrangeiros. E assim argumentando, ossábios egípcios acrescentaram que se os Eleus desejavam defato instituir jogos onde se observasse inteira justiça, eles osaconselhavam, se era esse verdadeiramente o motivo da suavisita, a realizar torneios em que só os estrangeiros tomassemparte.

CLXI — Psámis, que reinou apenas seis anos, falecendologo depois da expedição à Etiópia, teve por sucessor seu filhoÁpries. Esse soberano foi, com exceção de Psamético, seubisavô, mais feliz que todos os seus antecessores, pelo menosnos primeiros tempos do seu reinado, que durou vinte e cincoanos. Realizou uma bem sucedida expedição contra Sídon etravou com o rei de Tiro um combate naval memorável. Dassuas desgraças, quando a sorte deixou de favorecê-lo, falareimais amplamente quando estiver tratando da Líbia.Referir-me-ei aqui apenas aos seus primeiros insucessos.

Enviando um exército contra os Cireneus, sofreutremenda derrota. Os Egípcios culparam-no desse revés erevoltaram-se contra ele, na suposição de que ele os arrastara aum desastre certo, a fim de fazê-los perecer e reinar com maiorsegurança sobre o resto dos seus súditos. As tropas, de regressoda infausta batalha, e os amigos dos que haviam perdido a vida,indignados contra o soberano sublevaram-se decididamente.

CLXII — Ante a notícia, Ápries enviou Amásis paratentar apaziguá-los. Este foi ao encontro dos revoltosos, masenquanto os exortava à obediência e ao cumprimento do dever,um egípcio, atrás dele, cobriu-lhe a cabeça com um capacete,declarando-o, com isso, de posse da coroa. Esse incidente nãofoi, como logo ficou provado, do inteiro desagrado de Amásis,pois nem bem os rebeldes o tinham proclamado rei, e já ele sepreparava para marchar contra Ápries. Nessa conjuntura, Ápriesdestacou Patarbémis, um dos mais bravos entre os que lhe

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tinham ficado fiéis, com a missão de trazer Amásis vivo à suapresença. Chegando ao acampamento dos rebeldes, Patarbémisintimou Amásis a acompanhá-lo. Este que se achavacasualmente a cavalo, ergueu-se nos estribos e deixou escaparum ruído característico, dizendo a Patarbémis ser aquela a suaresposta a Ápries; e como Patarbémis insistisse em levá-lo àpresença do rei, Amásis declarou não ter razão de queixa contrao soberano, afirmando que iria ao seu encontro sem demora eem boa companhia. Percebendo-lhe a intenção ecompreendendo pela resposta e pelos preparativos o que elepretendia fazer, Patarbémis voltou incontinênti para dar anotícia ao rei. Vendo-o regressar sem Amásis, Ápries, numassomo de cólera e sem refletir nas conseqüências, mandoucortar-lhe o nariz e as orelhas. Um tratamento tão ultrajante aum homem tão ilustre irritou a tal ponto os Egípcios que aindalhe eram fiéis, que estes o abandonaram, passando para o ladode Amásis.

CLXIII — Diante disso, Ápries, reunindo o restante dastropas auxiliares, compostas, em sua quase totalidade, demercenários, somando trinta mil homens, partiu de Sais, ondehavia um grande e soberbo palácio, para desbaratar os rebeldes.Amásis, por seu turno, concluiu seus preparativos e marchoucontra os mercenários. Os dois exércitos se encontraram emMomênfis, entrando em luta.

CLXIV — Os Egípcios estão divididos em sete classes:os sacerdotes, os guerreiros, os boiadeiros, os guardadores deporcos, os negociantes, os intérpretes e os pilotos, designadospelos nomes das respectivas profissões. Os que seguem acarreira das armas chamam-se calasírios e hermotíbios ehabitam determinadas províncias, pois, como é sabido, todo oEgito está dividido em províncias.

CLXV — São as seguintes as províncias doshermotíbios: Busíris, Sais, Quémis, Paprémis, a ilha Prosópilis e

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a metade de Nato. Reúnem-se aí mais de cento e sessenta milhermotíbios, dedicando-se todos à profissão das armas. Nenhumdeles exerce qualquer arte mecânica.

CLXVI — Os calasírios ocupam Tebas, Bubástis, Áftis,Tânis, Mendes, Sebénis, Atríbis, Farbétis, Tumuis, Onúfis,Anísis e Miéforis — ilha situada em frente de Bubástis. Essasprovíncias reúnem cerca de duzentos e cinqüenta mil homens.Não lhes é permitido também exercer outra atividade que não aguerreira. Nesta, o filho sucede ao pai.

CLXVII — Não saberei dizer com certeza se os Gregostiraram praxe dos Egípcios, pois eu a encontro instituída entreos Trácios, os Citas, os Persas e os Lídios. Entre a maioria dosbárbaros, os que aprendem as artes mecânicas, e mesmo seusfilhos, são encarados como cidadãos inferiores, enquanto que seconsideram nobres os que não praticam nenhuma de tais artes e,sobretudo, os que se consagram às armas. Daí a razão dessapreferência pela função guerreira. Todos os Gregos forameducados nesses princípios e, particularmente, osLacedemônios. Deve-se, porém, excetuar os Coríntios, que têmos artífices em grande conta.

CLXVIII — Entre os Egípcios, são os guerreiros, depoisdos sacerdotes, os que maiores privilégios desfrutam. Cada umtem direito a doze jeiras de terra, com isenção de qualquerimposto. (A jeira é uma medida agrária equivalente a cemcôvados egípcios em quadrado, e o côvado egípcio é igual ao deSamos). Essa propriedade lhes era particularmente adjudicada,mas gozavam eles ainda de outras vantagens. Todos os anos,mil calasírios e mil hermotíbios iam servir de guardas do rei, epor tal serviço lhes doavam mais doze jeiras de terra. Alémdisso, cada um deles recebia, por dia de serviço, cinco minas depão, duas de carne de boi e quatro medidas de vinho.

CLXIX — Ápries, à frente das tropas auxiliares, eAmásis, no comando de todos os Egípcios, encontraram-se em

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Momênfis e entraram em combate. Os mercenários bateram-secom denodo, mas, muito inferiores em número, não puderamevitar a derrota. Dizem que Ápries estava convencido de quenem mesmo um deus poderia destroná-lo. Foi, não obstante,vencido e feito prisioneiro. Levaram-no para Sais, encerrando-ono próprio palácio que lhe pertencera e que agora pertencia aAmásis. Viveu ele ali ainda algum tempo. Amásis tratava-o comtodas as atenções, mas, por fim, como os Egípcios ocensuravam por tal procedimento, contrário à verdadeira justiça,poupando a vida ao seu maior inimigo e maior inimigo do povo,acabou entregando-lhes o desventurado príncipe. Maltiveram-no nas mãos, estrangularam-no, colocando depois ocorpo no túmulo dos seus ancestrais, no recinto consagrado aMinerva, perto do templo, à esquerda de quem entra. Os Saítasenterravam nesse recinto todos os reis originários de Sais, e foiali que também ergueram o monumento a Amásis. Essemonumento está um pouco mais afastado do templo do que o deÁpries. Junto ao pátio desse local sagrado vê-se uma grandesala de pedra, onde se erguem colunas imitando troncos depalmeiras e cobertas de adornos. Existe ali um nicho com umaporta de dois batentes. Nesse nicho puseram o esquife deÁpries.

CLXX — Encontra-se também em Sais o sepulcrodaquele(31) que não me julgo autorizado a mencionar aqui. Ficano recinto sagrado, atrás do templo de Minerva e ligado aomuro do mesmo em toda a sua extensão. Logo adianteerguem-se grandes obeliscos de pedra, e junto a estes, um lagocom as bordas revestidas de pedra. O lago tem a forma circular,rivalizando em tamanho com o de Delos, igualmente circular.

CLXXI — À noite, os habitantes da cidade reconstituemnesse lago os episódios ocorridos com aquele cujo nome evitocitar. Os Egípcios chamam a isso mistérios. Embora possuindogrande conhecimento de tais coisas, não as revelarei, e mantereia mesma atitude com relação aos ritos de Ceres, que os Gregos

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denominam Tesmofórios. Limito-me a dizer que as filhas deDânao levaram do Egito esses mistérios e ensinaram-nos àsmulheres dos Pelasgos; mas havendo os Dórios expulsado osantigos habitantes do Peloponeso, o culto desapareceu, excetoentre os Árcades, que, naquela região, foram os únicos aconservá-lo.

CLXXII — Perecendo Ápries, de maneira tão trágicaquanto inesperada, Amásis, natural de Siuf, na província deSaíta, subiu ao trono. No começo do seu reinado, o povoencarava-o com certo desprezo por ser ele de origem plebéia enão de estirpe ilustre como seus predecessores; mas dentro depouco tempo ele já havia conquistado a simpatia de todos pelafirmeza e habilidade com que agia.

Entre uma infinidade de coisas preciosas que lhepertenciam figurava uma bacia de ouro, onde ele e seus ilustrescomensais lavavam os pés. Amásis mandou fazer com ela aestátua de um deus, colocando-a no principal logradouro dacidade. Os habitantes começaram a reunir-se constantementeem torno dessa estátua para render-lhe culto. Sabedor dessefato, o soberano convocou-os e declarou-lhes que aquelaestátua, à qual eles dedicavam tanta veneração, provinha deuma bacia de ouro em que anteriormente se tinha vomitado,urinado e lavado os pés. “A origem dessa estátua —acrescentou ele — faz lembrar a minha própria: eu era plebeu;atualmente sou o vosso rei. Exorto-vos, pois, a prestar-me ashomenagens que me são devidas”. Essas palavras calaram fundono coração de seus súditos, levando-os a modificar totalmentesua atitude para com ele. Começaram a prestar-lhe todaobediência e a servi-lo com a maior boa vontade.

CLXXIII — Amásis sabia regular suas atividades edivertir-se quando os deveres do cargo não exigiam maioratenção sua. Era madrugador, dedicando as primeiras horas dodia à apreciação e julgamento das causas que se lhe

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apresentavam. À hora do repasto gracejava com os convivas,mostrando-se brejeiro e frívolo. Os que lhe eram mais chegadosalarmavam-se com essa conduta, tão imprópria para um rei, eprocuravam mostrar-lhe o erro em que incorria olvidando asregras em que se apoiava a dignidade do trono. A um deles, queo exprobrou dizendo-lhe que sua conduta não se coadunavacom a função de chefia que desempenhava, e que devia tratarcom maior seriedade e interesse os negócios do Estado, a fim deque seus súditos vissem nele um grande homem, capaz degoverná-los e abrir novos horizontes para o império, eleretrucou desta maneira: “Não sabes que não se dobra um arcosenão quando se quer lançar a flecha, e que, isso feito, deve-selogo afrouxar a corda para conservá-lo sempre em condições deprestar serviço quando necessário? O homem é como esse arco:se se mantiver retesado ante seus inúmeros problemas; seestiver sempre empenhado em coisas sérias, sem nenhumdescanso ou distração, acabará arruinando a própria vida. É porisso que procuro repartir bem o meu tempo entre os negócios eos prazeres”.

CLXXIV — Dizem que Amásis, quando simplescidadão, fugiu a tudo que lhe trouxesse preocupações,entregando-se inteiramente à bebida e aos divertimentos. Se lhefaltava dinheiro e não encontrava meios de satisfazer suainclinação pela boa mesa, procurava obtê-lo de uma maneira oude outra. Os que se acreditavam lesados por ele ameaçavam-no,ante as negativas mais peremptórias, com os oráculos. Algunsdestes o acusavam, enquanto que outros diziam-no inocente. Aosubir ao trono votou total desprezo pelos deuses que o tinhamabsolvido dessas passadas faltas, não dispensando cuidadoalgum aos seus templos e não lhes oferecendo sacrifícios, porjulgá-los indignos de qualquer culto e falsos os seus oráculos.Manifestou, ao contrário, a maior admiração pelos deuses que otinham acusado, considerando-os justos, e verdadeiros os seusoráculos.

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CLXXV — Mandou construir em Sais, em honra aMinerva, o pórtico do templo dessa deusa. É uma obra digna deadmiração, sobrepondo-se a todas as outras do mesmo gênero,tanto pela altura e grandeza, como pela qualidade e tamanho daspedras nela empregadas. Por ordem sua foram ali colocadasestátuas colossais e esfinges de tamanho descomunal, e grossaspedras foram transportadas para o templo, a fim de seremempregadas na sua reparação. As pedras menores foram tiradasdas pedreiras situadas nas proximidades de Mênfis, mas asmaiores vieram da cidade de Elefantina, vinte dias denavegação distante de Sais.

O que, porém, mais admirei ali foi um edifício feito deuma só pedra trazida de Elefantina. Dois mil homens, todosbarqueiros, trabalharam durante três anos no transporte dessaenorme pedra. O edifício mede, na parte externa, vinte e umcôvados de comprimento, quatorze de largura e oito de altura, ena parte interna, dezoito, doze e cinco, respectivamente.Acha-se situado à entrada do recinto sagrado. Dizem oshabitantes de Sais, que não o levaram para dentro porque, nomomento em que tentavam fazê-lo entrar, o arquiteto, fatigadopelo prolongado trabalho, soltou um profundo suspiro, queAmásis interpretou como um mau presságio, ordenando que odeixassem ficar ali mesmo. Dizem outros que um dostrabalhadores, quando ajudava a remover o edifício para orecinto com o auxílio de alavancas, ficou esmagado debaixo domesmo, motivo por que foi abandonado o intento.

CLXXVI — Amásis presenteou também todos os outrostemplos célebres com obras admiráveis pela sua magnitude.Mandou colocar em Mênfis, frente ao tempo de Vulcano, umacolossal estátua deitada de costas, medindo setenta e cinco pésde comprimento. Vêem-se de um lado e do outro do templo,duas estátuas de pedra da Etiópia, também de grandesproporções, representando figuras de corpo inteiro, com vintepés de altura cada uma. O vasto e magnífico templo de Ísis, que

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suscita a admiração de quantos visitam Mênfis, foi igualmentedádiva de Amásis.

CLXXVII — Dizem que o Egito nunca foi tão prósperoe feliz como no reinado de Amásis, não só devido à fecundidadedo solo, proporcionada pelo Nilo durante aquele período, de queresultou grande abundância de produtos agrícolas para oshabitantes (havia então vinte mil cidades, todas muito bempovoadas), como pelas leis sábias traçadas pelo soberano pararegular a economia da nação, como por exemplo a quedeterminava que cada egípcio declarasse, todos os anos, de quefundos tirava sua subsistência. Quem não obedecia ao preceitoda lei ou não podia provar que vivia de meios honestos erapunido com a morte. Sólon, o ateniense, adotou em Atenas essalei, ainda hoje em vigor naquela cidade, por ser muito sensata ejusta.

CLXXVIII — Amásis deu inúmeras provas de suaamizade aos Gregos, prestando favores a muitos deles. A muitosdos Gregos que iam freqüentemente ao Egito e demonstravamgostar do país, deu permissão para se estabelecerem emNáucratis, e aos que não queriam ali fixar residência e que nãoviajavam senão por interesse comercial concedeu locais para aereção de templos e altares aos deuses de sua predileção. Omaior e o mais célebre dos templos construídos no Egito poresses viajantes chama-se Helênio, ou templo grego. Suaconstrução foi financiada por cidades iônias, dórias e uma eólia,que se cotizaram para a grande obra. As cidades iônias foram:Quios, Teos, Focéia e Clazômenas; as dórias: Rodes, Cnide,Halicarnasso e Fasélis. A única cidade eólia a cooperar foiMitilene. O Helênio ficou pertencendo a todas essas cidades,tendo elas o direito de ali estabelecer seus juízes. Outras cidadesse arrogam o mesmo direito, pretendendo, sem fundamento,haverem contribuído para a construção do templo. Os Eginetasergueram, para eles próprios, um templo a Júpiter; os Samenses,a Juno, e os Milésios, a Apolo.

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CLXXIX — Náucratis era outrora a única cidadecomercial do Egito. Se um negociante transpunha outra boca doNilo que não a Canópica, tinha de jurar não haver entradovoluntariamente, e, depois de haver prestado o juramento,dirigia-se com o navio para a embocadura Canópica. Se osventos contrários impediam-no de atingi-la, era obrigado atransportar as mercadorias em barcos ao longo do delta atéNáucratis.

CLXXX — Tendo um incêndio casual destruído oantigo templo de Delfos, os Anfictiões abriram uma subscriçãode trezentos talentos para a reconstrução do mesmo. Os Délfios,taxados com a quarta parte dessa soma, fizeram uma coleta decidade em cidade, reunindo valiosas dádivas. As recebidas noEgito não foram menos importantes. Amásis contribuiu com miltalentos, e os Gregos estabelecidos no Egito, com vinte minasde prata.

CLXXXI — O soberano firmou um tratado de amizadee aliança com os Cireneus e resolveu também escolher umaesposa na Cirenaica, fosse porque tivesse grande estima aosGregos, ou porque quisesse dar aos Cireneus uma prova deafeto. Desposou Laódice, segundo uns filha de Bato, que, porsua vez, era filho de Arcésilas, e segundo outros, filha deCritóbulo, figura de destaque entre seus concidadãos. Amásis,porém, não era bastante forte para essa mulher, embora o fossepara as outras, e, certo dia, quando a situação já se tornarainsustentável, falou-lhe sem preâmbulos: “Laódice, tu meenfeitiçaste; mas quero que saibas que nada te salvará da mortemais cruel que pode sofrer uma mulher”. Vendo baldados todosos seus esforços para apaziguá-lo, recorreu ela à proteção deVênus, fazendo um voto, no templo, de enviar uma estátua dadeusa à Cirenaica se Amásis fosse procurá-la na noite seguinte.Essa promessa valeu-lhe as boas graças da deusa, pois Amásisreconciliou-se com ela, e a felicidade de ambos nunca mais foiperturbada. Cumprindo sua promessa, Laódice mandou fazer

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uma estátua da deusa e enviou-a à Cirenaica, onde ainda hoje seencontra. Cambises, tendo-se tornado senhor do Egito esabendo, pela própria Laódice, quem era ela e de onde viera,recambiou-a para a Cirenaica, sem lhe fazer mal algum.

CLXXXII — Amásis fez também várias oferendas aostemplos da Grécia. Enviou à Cirenaica uma estátua dourada deMinerva, juntamente com o seu retrato; ao templo de Minerva,na cidade de Linde, duas estátuas de pedra e uma couraça delinho digna de admiração; ao templo de Juno, em Samos, duasestátuas de madeira, representando ele próprio. Foram ambascolocadas no grande templo, atrás das portas, onde ainda hojepodem ser vistas. As dádivas a Samos, ele as fez por amizade aPolícrates, filho de Ájax; mas o que o levou a presentear otemplo de Minerva, em Linde, foi o fato de ter sido eleconstruído pelas filhas de Dânao, quando ali foram ter, fugindoà perseguição dos filhos de Egito.

Amásis foi o primeiro soberano a impor seu domínio àilha de Chipre, obrigando-a a pagar-lhe tributo.

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LIVRO III

TÁLIAO EGITO — A PÉRSIA — CAMBISES — MÊNFIS — O BOI

ÁPIS — A ETIÓPIA — POLÍCRATES — AMÁSIS — OFALSO ESMÉRDIS — DARIO — O CERCO DE BABILÔNIA

— ZÓPIRO, ETC.

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I — Foi contra Amásis que marchou Cambises, filho deCiro, com um exército composto de povos submetidos, entre osquais os Iônios e os Eólios. Eis aqui o motivo dessa guerra:Cambises, por um embaixador, mandara pedir a mão da filha deAmásis. Movera-o a isso o conselho de um médico egípcio, quedesejava vingar-se de Amásis, pois este o tinha separado daesposa e dos filhos para enviá-lo à Pérsia, quando Ciro solicitouao soberano que lhe enviasse o melhor especialista em moléstiados olhos existente no Egito. Ressentido com seu soberano porter a escolha recaído sobre ele, o médico não cessava de animarCambises a pedir a filha de Amásis em casamento, sabendo que,se este recusasse o pedido, Cambises o odiaria. Amásis, quedetestava os Persas tanto quanto lhes temia o poderio, não sabiase devia ou não aceder à solicitação do príncipe persa, tantomais que não ignorava que sua intenção não era desposar aprincesa, mas fazê-la sua concubina. Depois de muito refletir,Amásis tomou a seguinte resolução:

Vivia na corte uma filha de Ápries, por ele destronado,única sobrevivente da família e dotada de grande beleza.Chamava-se Nitétis. Fazendo-a vestir riquíssimo traje, todobordado de ouro, Amásis enviou-a à Pérsia, como se fosse suafilha. Algum tempo depois, como Cambises a saudasse pelonome do pai, ela replicou nestes termos: “Amásis, senhor, vosenganou. Enviou-me ele a vós com estas ricas indumentárias emlugar de sua filha. Meu pai chamava-se Ápries, por eledestronado e morto pelos Egípcios que se sublevaram sob seucomando”. Cambises, irado ante aquela revelação, decidiuprontamente vingar-se, declarando guerra ao Egito.

II — Foi essa, segundo os Persas, a causa da guerra queCambises moveu contra os Egípcios. Estes, porém, pretendemque Cambises era filho dessa filha de Ápries, pedida emcasamento por Ciro e não por esse príncipe, como querem osPersas. Reivindicando, assim, a linhagem de Cambises, os

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Egípcios alteram a verdade histórica, porquanto, estando elestão bem informados sobre as leis e os costumes dos Persas,devem saber que, na Pérsia, a lei não permite ao filho naturalsuceder ao pai no trono. Além do mais, Cambises era filho deCassandana, filha de Farnaspes, da estirpe dos Aquemênidas, enão de uma mulher egípcia.

III — Conta-se ainda, com relação a essa controvertidaorigem da guerra persa-egípcia, a seguinte história, poucoverossímil na minha opinião: Indo, certa ocasião, à presença daesposa de Ciro, uma mulher persa mostrou-se impressionadacom a beleza e a graça dos filhos de Cassandana, fazendo-lhesos maiores elogios. “Pois saiba — teria respondido Cassandana— que, embora mãe de tão belos filhos, Ciro não me vota senãodesprezo, dispensando todos os seus cuidados e atenções àescrava egípcia”. Vendo-a falar assim, Cambises, oprimogênito, declarou enfaticamente: “Minha mãe, quando eufor homem destruirei o Egito de ponta a ponta”. Essas palavrasdo jovem príncipe, que contava apenas dez anos de idade,assustaram as duas mulheres. Ao subir ao trono da Pérsia,Cambises, lembrando-se do que prometera, declarou guerra aoEgito.

IV — Pouco antes do início das hostilidades sobreveioum acontecimento que muito contribuiu para o êxito das armaspersas. Um oficial das tropas auxiliares de Amásis, de nomeFanes, natural de Halicarnasso, muito sensato e guerreirodestemido, descontente com o soberano abandonou o Egito pormar para ir ter com Cambises. Como ocupava posto importanteentre as tropas auxiliares e estava bem a par dos negócios doimpério, Amásis tudo fez para capturá-lo. Ordenou ao mais fieldos seus eunucos que o perseguisse num trirreme, o prendesse eo trouxesse à sua presença. Este alcançou-o na Lícia e fê-loprisioneiro, mas não chegou a reconduzi-lo ao Egito, pois Fanesembriagou os guardas e fugiu, atingindo finalmente a cortepersa. Cambises se dispunha então a marchar contra os

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Egípcios, mas retinha-o a dificuldade de atravessar os desertos.Foi quando Fanes ali se apresentou, informando-o sobre asituação no Egito e sobre a estrada que deveria tomar paraatravessar os desertos, aconselhando-o, ao mesmo tempo, amandar pedir ao soberano da Arábia permissão para passar comsegurança pelas suas terras.

V — Era esse, realmente, o único meio de que elepoderia dispor para penetrar no Egito, pois a Síria se estende daFenícia aos confins de Cadítis. Desta cidade, que rivaliza emtamanho com Sardes, até Jenísus, todas as praças marítimaspertencem aos Árabes. De Jenísus ao lago Serbónis, perto doqual se acha o monte Cásio, que se prolonga até o mar, e ondese penetra novamente em terras dos Sírios, estende-se umimenso deserto. Leva-se três dias de marcha forçada paratranspô-lo. O Egito começa no lago Serbónis, no qual se dizter-se ocultado Tifão.

VI — Entre aqueles que têm ido ao Egito por mar,poucos são os que conhecem este interessante costume alipraticado: Duas vezes por ano, grande quantidade de jarros debarro cheios de vinho procedentes de todas as regiões da Gréciae, também, da Fenícia, é levada para o Egito. Entretanto, não sevê ali nenhum desses jarros. Que é feito deles? Eis a explicação:Em cada uma das cidades, o chefe local é obrigado a reunirtodos os jarros ali encontrados e a enviá-los para Mênfis. DeMênfis, são levados, cheios de água, às regiões mais áridas daSíria. Assim, todos os jarros enviados para o Egito cheios devinho, servem, depois de vazios, para amenizar a aridez dasterras sírias. É esse o motivo por que não são encontrados noEgito tais jarros.

VII — Foram os Persas que facilitaram a passagematravés do deserto até a Síria por meio desse transporte de águaem jarros, quando se tornaram senhores do Egito. Como, porém,na época da aludida expedição não havia absolutamente

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provisão de água no local, Cambises, seguindo os conselhos deFanes de Halicarnasso, enviou embaixadores ao rei dos Árabespara pedir-lhe passagem franca pelas suas terras, o que obteve,em seguida a um juramento recíproco.

VIII — Não há povo mais religioso e fiel aos juramentosdo que os Árabes. A prestação de um juramento obedece, entreeles, a certos requisitos considerados indispensáveis à suacompleta validez e garantia. Quando querem empenhar apalavra a alguém, recorrem à intervenção de um terceiro. Essemediador, de pé, entre os dois contratantes, faz, com uma pedraaguçada de que se acha munido, uma incisão na palma da mãode ambos, perto do polegar. Toma, em seguida, da pelúcia dotraje de cada um e embebe-a no sangue resultante da incisão.Feito isso, toma das sete pedras colocadas entre ambos eatrita-as umas contra as outras, enquanto invoca Baco e Urânia.Terminada a cerimônia, o que empenhou sua palavra oferece aoestrangeiro — ou ao seu concidadão, se for este o caso — seusamigos como garantia. Os Árabes não conhecem outros deusessenão Baco e Urânia, a que denominam Urotal e Alilá,respectivamente. Têm o hábito de raspar a cabeça como,segundo dizem, Baco raspava, isto é, em círculo e em redor dastêmporas.

IX — Concluído o tratado com os embaixadores deCambises, o rei da Arábia mandou encher de água os surrões ecarregar com eles todos os camelos existentes no país,enviando-os para as regiões áridas, onde ficaram aguardando oexército de Cambises.

Há, na Arábia, um grande rio denominado Córis, quedesemboca no mar da Eritréia. Pouco além desse rio, o rei daArábia mandou fazer um aqueduto com peles de bois e outrosanimais, ligadas umas às outras. O aqueduto estendia-se do rioaos lugares áridos, levando a água para grandes cisternas,cavadas especialmente para recebê-la e conservá-la. Do rio ao

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deserto há doze dias de marcha. Dizem alguns que a água eraconduzida de três lugares por três aquedutos diferentes.

X — Psaménito, filho de Amásis, acampou perto daembocadura pelusiana do Nilo, onde esperou o inimigo.Acabava de suceder ao pai, que já não vivia quando Cambisesiniciou sua marcha sobre o Egito. Tinha morrido, depois de umreinado de quarenta e quatro anos, durante os quais não sofreranenhum revés. Depois de sua morte, embalsamaram-no epuseram-no num monumento erguido no recinto sagrado dotemplo de Minerva.

Logo que Psaménito subiu ao trono, deu-se no Egito umfato bastante curioso e que a todos causou espanto: choveu emTebas, coisa que ali jamais se registrara e que, como afirmam ospróprios Tebanos, nunca mais se registrou desde essa época atéos nossos dias. Foi uma ocorrência verdadeiramenteexcepcional, pois jamais chove no Alto Egito.

XI — Quando os Persas transpuseram a região árida eacamparam a pouca distância dos Egípcios, preparando-se paralhes dar combate, os Gregos e os Cários a soldo de Psaménito,indignados com a atitude de Fanes trazendo ao Egito umexército estrangeiro, vingaram-se nos filhos que o traidor haviadeixado no país ao partir para a Pérsia. Levaram-nos aoacampamento e, colocando-os bem à vista do pai, junto a umacratera, degolaram-nos um após outro. Em seguida, misturandoo sangue com vinho e água na cratera, beberam-no, iniciandoentão o combate. A luta foi rude e sangrenta, ficando o campojuncado de cadáveres de ambos os lados. Por fim, os Egípcios,com suas fileiras dizimadas e esgotadas pela refrega, bateramem retirada.

XII — Visitando o local onde se travou essa batalha,ainda tive oportunidade de ver as ossadas dos que tombarampara sempre na peleja. Alguns dos crânios estavam tão frágeispela ação do tempo, que, tocando-se-lhes mesmo de leve, logo

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se desfaziam em pó. Outros, ao contrário, mantinham-se duros eresistentes, fendendo-se somente sob um forte golpe. Os que tãofrágeis se mostravam pertenciam a soldados persas; os sólidos,a combatentes egípcios. Foi o que me disseram moradoresdaquela região, que acrescentaram serem capazes deidentificá-los por uma razão muito simples: os Egípcioscomeçam desde tenra idade a raspar a cabeça, de que resulta oendurecimento do crânio pela ação do sol. Daí ser bem menor aproporção de homens calvos no Egito do que nos outros países.Os Persas têm o crânio frágil porque não o expõem ao sol e àsintempéries, trazendo a cabeça sempre protegida por uma tiara.Essa observação, que me pareceu muito lógica, eu a fiz poucomais tarde em Paprémis, com relação às ossadas dos que foramderrotados sob o comando de Aquêmenes, filho de Dario, porInaros, rei da Líbia.

XIII — Vendo perdida a batalha contra os Persas, osEgípcios se retiraram em desordem para Mênfis, onde seentrincheiraram. Ciente disso, Cambises mandou, por umemissário, convidá-los a negociar com ele. O emissário subiu orio num navio mitileno. Ao verem a embarcação aportar emMênfis, os Egípcios saíram em massa da cidadela edestruíram-na, reduzindo a pedaços seus tripulantes e levandoos membros decepados para o reduto; os Persas, em vista dessaatitude violenta, resolveram sitiar a cidade, e eles foramobrigados a render-se.

Os Líbios, vizinhos dos Egípcios, receando a mesmasorte, submeteram-se sem luta. Impuseram a si mesmos umtributo e enviaram presentes a Cambises. Sua ação foi imitadapelos Cireneus e pelos Barceus. O soberano recebeufavoravelmente os presentes destes últimos, mas não apreciouos dos Cireneus, naturalmente porque não eram valiosos — nãoiam além de quinhentas minas de prata, por ele distribuídasentre os soldados.

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XIV — No décimo dia após a captura de Mênfis,Cambises, para humilhar Psaménito, que reinara durante seismeses apenas, mandou conduzi-lo, com outros Egípcios, a umarrabalde, e, para pôr à prova sua firmeza de ânimo, fez vestir afilha do príncipe de escrava, enviando-a, com uma bacia namão, em busca de água. Acompanhavam-na várias outrasjovens escolhidas pelo conquistador entre as da melhorcategoria e igualmente vestidas de escravas, as quais, aopassarem perto de seus pais, caíram em pranto, pondo-se agritar e a lamentar-se. Estes, vendo as filhas em tão humilhantesituação, não puderam conter as lágrimas. Psaménito, porém,limitou-se a baixar os olhos.

Em seguida àquele espetáculo, Cambises fez desfilardiante do soberano vencido seu filho e mais dois milcompatriotas da mesma idade, tendo uma corda ao pescoço eum freio à boca. Iam aplicar-lhes a pena de morte para vingar osMitilenos massacrados em Mênfis. Os juízes reais tinhamdeterminado que, para cada vítima daquele massacre, fossemsacrificados dez jovens egípcios, escolhidos entre os dasmelhores famílias. Psaménito reconheceu o filho entre os outroscondenados, mas, ao contrário dos outros pais egípcios, que, emtorno dele, choravam e se lamentavam, soube controlar seussentimentos, como o fizera diante da filha. Logo após apassagem dos jovens, Psaménito pousou os olhos sobre umandrajoso ancião, que identificou prontamente como um dosseus antigos e habituais comensais. Despojado de todos os seusbens, aquele homem, outrora rico e influente, implorava agora acaridade pública, indo de porta em porta mendigando um poucode alimento. Ante aquela cena, o ex-soberano não conteve aslágrimas e chamou o ancião pelo nome. Os guardasencarregados por Cambises de observar todos os movimentos eatitudes de Psaménito, notando aquele seu procedimentoapressaram-se em levar o fato ao conhecimento de seusoberano. Este mandou um emissário inquiri-lo sobre tãoestranha conduta. “Cambises, nosso rei e senhor vosso — falou

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o emissário — deseja saber por que não vos lamentastes nemchorastes ao ver vossa filha tratada como escrava e vosso filhomarchando para a morte, enquanto que tão comovido vosmostrastes à vista daquele mendigo que não é nem vossoparente nem vosso aliado”. “Ide e dizei ao vosso soberano —respondeu Psaménito — que as desgraças de minha família sãomuito grandes para que eu as possa chorar; mas a triste sorte deum amigo que, já na velhice, cai na indigência depois de haverpossuído tantas riquezas, merece indubitavelmente minhaslágrimas sinceras”.

Cambises achou essa resposta sensata. Dizem osEgípcios ter ela feito chorar não somente a Creso, que haviaacompanhado o rei dos Persas ao Egito, como a todos os Persasali presentes; e que Cambises ficou de tal maneira comovido,que mandou libertar imediatamente o filho de Psaménito,retirá-lo do número dos condenados à morte e enviá-lo parajunto do pai.

XV — O jovem príncipe, porém, foi encontrado já semvida. Tinham-no executado em primeiro lugar. Levaram, então,Psaménito a Cambises, junto do qual passou o soberano vencidoo resto dos seus dias, sem sofrer nenhum mau trato. Cambisester-lhe-ia mesmo devolvido o trono do Egito se não tivessesuspeitado estar ele, com suas intrigas, procurando perturbar osnegócios do Estado; pois os Persas têm o costume de honrar osfilhos dos reis, e mesmo de restituir-lhes o trono que seus paisperderam na guerra. Poderia citar vários exemplos como provadisso. Contentar-me-ei em lembrar o de Taniras, filho de Inaros,rei da Líbia, a quem eles entregaram o reino que o pai possuíra,e o de Pausíris, filho de Amirteu, a quem foram restituídos osestados perdidos pelo pai, embora nenhum outro rei tivessecausado maior dano aos Persas do que Inaros e Amirteu.Psaménito foi, todavia, mal sucedido em sua conspiração contrao novo governo. Concitando os Egípcios à revolta, foidescoberto e condenado por Cambises a beber sangue de touro,

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morrendo instantaneamente.

XVI — Cambises partiu de Mênfis para Sais, com opropósito de ali fazer o que realmente fez. Assim que chegou aolocal onde repousava o corpo de Amásis, mandou tirá-lo dasepultura, fustigá-lo e cobri-lo de mil outros ultrajes. Vendo queos executores, apesar dos rudes e contínuos golpes vibradoscontra o cadáver, não conseguiam arrancar-lhe nenhum pedaço,pois estava muito bem embalsamado, Cambises ordenou que oqueimassem, sem nenhum respeito à religião de seu própriopovo. Com efeito, os Persas consideram o fogo um deus,sendo-lhe vedado, tanto por suas leis, como pelas dos Egípcios,queimar os mortos, pois um deus não deve alimentar-se docadáver de um homem. Os Egípcios, por sua vez, estãoconvencidos de que o fogo é um animal feroz, que devora tudoque encontra ao seu alcance e que, depois de saciado, sucumbeem conseqüência daquilo que consumiu. As leis egípciasproíbem que se abandonem cadáveres humanos às feras, e elessão embalsamados para evitar que os vermes os devorem.Cambises praticou, por conseguinte, um ato condenado pelasleis de ambos os povos. Todavia, a dar-se crédito aos Egípcios.não era de Amásis o corpo tratado de maneira tão indigna, maso de outro egípcio de porte semelhante ao do soberano, a quemos Persas, por engano, profanaram. Dizem que Amásis,informado por um oráculo do que lhe devia acontecer depois demorto, procurou evitar que a predição se cumprisse, mandandocolocar no interior do seu monumento, junto à porta, o corpo deum cidadão egípcio, encarregando o filho de colocar o seu bemno fundo do mesmo sepulcro. Julgo, porém, que isso não passade fábula, inventada para satisfazer a vaidade dos própriosEgípcios.

XVII — Submetido o Egito, Cambises decidiu fazerguerra a três outros povos: aos Cartagineses, aos Amônios e aosEtíopes-Macróbios, que habitam a parte da Líbia do lado domar Austral. Traçados os planos para essas expedições, resolveu

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o soberano lançar sua força naval contra os primeiros, e umforte destacamento de suas tropas de terra contra os segundos.Quanto aos Etíopes, preferiu sondar primeiramente suaspossibilidades de resistência e preparar o terreno para a invasão,infiltrando espiões entre aquele povo, os quais, sob o pretextode levar presentes ao rei, procurariam certificar-se da existênciada Mesa do Sol e conhecer o que ainda ignoravam sobre o país.

XVIII — Eis em que consiste a Mesa do Sol: Há, nascercanias da capital dos Etíopes, um prado coberto de carnecozida de todas as espécies de animais quadrúpedes, que osmagistrados para ali mandam conduzir durante a noite. Quandosurge o dia, cada um pode lá servir-se do que mais lhe agradar.Os habitantes dizem que a terra produz por si mesma todasessas carnes.

XIX — Tendo resolvido enviar espiões a esse país,Cambises mandou incontinênti chamar, na cidade de Elefantina,alguns Ictiófagos que conheciam a língua etíope. Nesse ínterim,ordenou à sua força naval que se dirigisse para Cartago, mas osFenícios recusaram-se a obedecer porque estavam ligados aosCartagineses pelos mais solenes juramentos e achavam que,lutando contra eles, estariam cometendo um verdadeirosacrilégio. Devido a essa recusa, e como o restante da frota nãoestava em condições de realizar com êxito a expedição,puderam os Cartagineses subtrair-se ao jugo que lhespreparavam os Persas. Cambises não julgou de justiça forçar osFenícios a obedecer-lhe, porquanto eles se tinham submetidovoluntariamente, e, além disso, constituíam parte essencial desua armada. Os habitantes da ilha de Chipre também se haviamsubmetido de livre vontade aos Persas e os tinhamacompanhado ao Egito.

XX — Quando os Ictiófagos chegaram de Elefantina,Cambises instruiu-os sobre o que deviam fazer na Etiópia,enviando-os para lá com presentes ao rei: um traje de púrpura,

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um colar de ouro, braceletes, um vaso de alabastro cheio deessência e um barril de vinho de palmeira.

Dizem que os Etíopes são, de todos os homens, os demaior estatura e de mais bela compleição física, tendo tambémcostumes diferentes dos dos outros povos. Entre eles, o maisdigno de usar a coroa é o que apresenta maior altura e forçaproporcional ao seu porte.

XXI — Os Ictiófagos, chegando à Etiópia, entregaramos presentes ao rei, dizendo-lhe: “Cambises, rei dos Persas,desejando a vossa amizade e a vossa aliança, envia-nos paraconferenciar convosco e vos oferece estes presentes, coisasmuito apreciadas entre eles”.

O soberano etíope, não ignorando tratar-se de espiões,respondeu-lhes nestes termos: “Não foi o vivo desejo de fazeramizade comigo que levou o rei dos Persas a vos enviar aquicom estes presentes. Estais ocultando a verdade. Vindes sondaros recursos dos meus estados, e vosso senhor não é um homemjusto. Se o fosse não cobiçaria terras alheias e não procurariareduzir à servidão um povo que nenhum mal lhe fez. Levai a eleeste arco de minha parte e dizei-lhe que o rei da Etiópia oaconselha a vir fazer-lhe guerra com forças bem numerosas equando os Persas puderem vergar um arco igual a este, tãofacilmente como ele; e enquanto aguarda esse momento, querenda graças aos deuses por não terem inspirado aos Etíopes odesejo de alargar o país com novas conquistas!”

XXII — Dito isso, o soberano distendeu o arco eentregou-o aos Ictiófagos. Em seguida, tomou do traje depúrpura e perguntou-lhes o que era a púrpura e como a faziam.E quando os Ictiófagos lhe revelaram que aquilo que ele tinhanas mãos não passava de um tecido grosseiro tingido com umasubstância corante, exclamou: “Estes homens são tão falsoscomo estas vestes!” Interrogou-os, depois, sobre o colar e obracelete. Como os Ictiófagos respondessem que eram

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ornamentos, pôs-se a rir, e, tomando-os por correntes, disse-lhesque as dos Etíopes eram bem mais fortes do que aquelas.Chegando a vez da essência e explicando-lhe os estrangeirossua composição e uso, o soberano respondeu-lhes da maneiracomo o fizera com relação à púrpura. Ao interrogá-los,finalmente, sobre o vinho, e tendo-lhe sido explicada a maneirade fabricá-lo, mostrou-se muito satisfeito com a bebida.Continuando, perguntou-lhes como se alimentava o rei dosPersas e qual a idade mais longa entre eles. Os espiõesresponderam que o alimento básico do rei era o pão eesclareceram-no sobre a natureza do fermento. Acrescentaramque a idade mais avançada entre os Persas era de oitenta anos,ao que ele retrucou não admirar que homens que sealimentavam de esterco vivessem tão pouco, dizendo estarpersuadido de que se eles não reparassem as forças com aquelabebida (referia-se ao vinho) viveriam menos ainda, pois sónaquele invento tinham superioridade sobre os Etíopes.

XXIII — Os Ictiófagos interrogaram-no, por sua vezsobre a longevidade dos Etíopes e seu modo de vida.Respondeu ele que a maioria chegava a cento e vinte anos,atingindo alguns idade mais avançada; que se alimentavam decarne cozida, sendo o leite sua principal bebida. Como osespiões se mostrassem espantados com a longevidade daquelepovo, o soberano conduziu-os a uma fonte onde os que ali sebanham saem com o corpo impregnado do perfume da violeta emais lustroso do que se o houvessem friccionado com óleo. Deregresso de sua frustrada missão, os espiões disseram que aágua dessa fonte era tão leve, que nem mesmo a madeira eoutros corpos ainda mais leves podiam nela flutuar. Tudo quenela caía, afundava imediatamente. Se essa água é tão leveassim, é provável que o seu uso permanente seja a causa dalongevidade dos Etíopes.

Da fonte, o soberano conduziu os Ictiófagos à prisão.Todos os presos estavam agrilhoados com correntes de ouro,

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pois, entre os Etíopes, o mais raro e mais precioso de todos osmetais é o cobre. Após a visita à prisão foi-lhes mostrada adenominada Mesa do Sol.

XXIV — Por fim, o soberano levou-os para ver ossepulcros etíopes, que, segundo dizem, são feitos de cristal epreparados do seguinte modo: dessecam primeiramente o corpoà maneira dos Egípcios ou de outra maneira qualquer,endurecendo-o, em seguida, com uma pasta onde sãodesenhadas as feições do morto. Isso feito, colocam-no numacoluna de cristal oca e transparente, de custo bastante acessível,uma vez que o cristal é extraído abundantemente das minas aliexistentes. Pode-se ver perfeitamente o morto através dessacoluna. Não exala nenhum mau cheiro e nem apresentaqualquer aspecto desagradável. Os parentes mais próximos domorto guardam a coluna em casa pelo espaço de um ano,durante o qual lhe oferecem sacrifícios e rendem-lhe outrashomenagens. Passado esse período, levam-na para um localqualquer nos arredores da cidade.

XXV — Partindo de regresso ao Egito, os espiões deCambises fizeram-lhe um relato completo do que se passara nacorte etíope. O soberano, tomado de cólera ante o inesperadodesfecho da missão, decidiu marchar incontinênti contra osEtíopes, e, sem mesmo providenciar sobre o abastecimento devíveres para o exército e sem pensar na distância que o separavado país que ia atacar, pôs-se a caminho com quase todas astropas de terra, deixando no Egito apenas os Gregos que otinham acompanhado até lá. Ao chegar a Tebas, escolheu cercade cinqüenta mil homens, ordenando-lhes que reduzissem osAmônios à escravidão e depois queimassem o templo ondeJúpiter concedia oráculos, após o que continuou a marcha para aEtiópia com o restante do exército.

As tropas ainda não tinham feito a quinta parte dajornada, quando se viram inteiramente desprovidas de alimento,

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sendo obrigadas a lançar mão das bestas de carga para minorara situação, que, entretanto, continuou precária. Se Cambises, aoconstatar a falta de víveres, tivesse reconsiderado o seu erro eregressado com o seu exército, teria agido como homemsensato. Mas, sem levar em conta a gravidade da situação,continuou a marcha para diante Enquanto havia campo, ossoldados alimentavam-se com ervas que iam colhendo à suapassagem; mas ao chegarem à região árida, a fome tornou-secruciante, levando-os a cometer horrível desatino: tiraram asorte e comeram um companheiro entre cada dez. Ao terconhecimento do fato, Cambises, receando que os soldadoscontinuassem devorando uns aos outros, resolveu desistir daempresa, regressando a Tebas, onde chegou com suas tropas jábastante desfalcadas. De Tebas foi a Mênfis, onde despediu osGregos, permitindo-lhes voltar à pátria.

XXVI — Quanto às tropas enviadas contra os Amônios,conta-se que, partindo de Tebas acompanhadas de guias,atingiram Oásis, cidade habitada pelos Sâmios, pertencentes,segundo dizem, à tribo escrioniana. Oásis, que em gregodenomina-se ilha dos Bem-aventurados, dista sete dias deTebas, e a ela pode-se ir por um caminho arenoso. Embora seafirme que as tropas persas foram até lá, ninguém sabe o quelhes aconteceu em seguida, a não ser os próprios Amônios e osque por eles foram informados. O que é certo é que elas nãochegaram ao seu ponto de destino, nem regressaram ao Egito.Dizem os Amônios que essas tropas, tendo partido de Oásis, jáse encontravam quase na metade do caminho para o seu paísquando foram surpreendidas, durante o repasto, por umatempestade de areia, que os sepultou a todos.

XXVII — Logo após o regresso de Cambises a Mênfis,Ápis, que os Gregos denominam Épafo, manifestou-se aosEgípcios. Estes, surpresos e alegres, envergaram seus mais ricostrajes e puseram-se a festejar o acontecimento. Cambises,testemunhando essas expansões de júbilo e supondo que eles se

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regozijavam pelo insucesso de suas armas, mandou chamar osmagistrados de Mênfis e perguntou-lhes por que razão oshabitantes, não tendo manifestado alegria quando ele chegoutriunfante à cidade, expandiam-se daquela forma no momentoem que ele regressava sem uma boa parte do seu exército.Responderam-lhe que o deus dos Egípcios acabava demanifestar-se, o que raramente fazia, sendo isso sempre motivode grande alegria e festas públicas. Cambises não se satisfezcom a explicação e, dizendo que eles lhe estavam ocultando averdade, condenou-os à morte por quererem diminuir suaautoridade.

XXVIII — Depois de mandar executá-los, fez vir à suapresença os sacerdotes de Mênfis, e recebendo a mesmaresposta perguntou-lhes se o deus que se manifestara aosEgípcios era acessível. Ante a resposta afirmativa dossacerdotes, ordenou-lhes que o levassem imediatamente à suapresença.

Ápis, também chamado Épafo, manifesta-se sempre sobo aspecto de um boi novo e de porte majestoso. Foi o únicogerado por sua mãe. Dizem os Egípcios que um raio de luz,descendo sobre ela, fê-la concebê-lo. É facilmente reconhecidopor certas marcas e características que possui. Tem o pêlo negroe luzidio; traz na testa um sinal branco triangular; nas costas afigura de uma águia; na língua a de um escaravelho, e duplos ospêlos da cauda.

XXIX — Logo que os sacerdotes lhe trouxeram Ápis,Cambises, num acesso de fúria, sacou do punhal e vibrou umgolpe dirigido ao ventre do animal sagrado, mas atingiu-oapenas na coxa. Vendo-o sangrar, dirigiu-se aos sacerdotes emtom sarcástico: “Intrujões! Então os deuses são de carne esangue e sentem os golpes do ferro? Este deus é, sem dúvida,bem digno dos Egípcios. Mas não zombareis impunemente demim”. Dito isso, mandou vergastá-los pelos encarregados de

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executar tais sentenças e ordenou que se fizesse o mesmo comtodos os Egípcios encontrados celebrando o aparecimento doboi Ápis, pondo, assim, termo aos ruidosos festejos. Quanto aodeus, ficou ele a definhar no templo em conseqüência doferimento recebido e acabou morrendo. Os sacerdotesderam-lhe sepultura às ocultas de Cambises.

XXX — O soberano, ao que dizem os Egípcios, nãotardou a sofrer a punição desse crime: enlouqueceu, ele que atéentão demonstrara possuir espírito lúcido e atilado. Suaprimeira demonstração de insanidade foi matar seu irmãoEsmérdis, que enviara de volta à Pérsia, despeitado pelo fato dehaver este vergado, com dois dedos apenas, o arco do rei daEtiópia, trazido pelos Ictiófagos — façanha que nenhum outropersa conseguira realizar. Tendo visto em sonhos um correiopersa anunciando-lhe que Esmérdis, sentado no trono, tocava océu com a cabeça, e temendo que o irmão o matasse paraapoderar-se da coroa, despachou sem demora para a Pérsia seucompatriota Prexaspes, em quem depositava a maior confiança,com ordem de eliminar Esmérdis. Ao chegar a Susa, Prexaspesexecutou a ordem. Uns dizem ter ele eliminado o príncipedurante uma caçada; outros pretendem ter ele precipitado suavítima no mar da Eritréia.

XXXI — A este primeiro crime de Cambises seguiu-seum segundo na pessoa de sua irmã. Essa princesa, que oacompanhara ao Egito, era, ao mesmo tempo, sua esposa.Vejamos como se explica essa situação, pois antes de Cambisesos Persas não tinham o costume de desposar suas irmãs.Apaixonando-se por uma das irmãs e querendo casar-se comela, Cambises convocou os juízes reais e perguntou-lhes se nãohavia alguma lei permitindo o irmão desposar a irmã. Osmagistrados reais são homens escolhidos entre todos os Persas.Seu cargo é vitalício, a menos que cometam uma injustiça queos torne indignos dele. São eles que interpretam a lei e julgamos processos, convergindo todas as questões para o seu tribunal.

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Ante a consulta do soberano, responderam-lhe de uma maneiraque, sem ferir a justiça, não os expunha ao seu desagrado.Disseram-lhe não existir absolutamente uma lei autorizando oirmão a casar-se com a irmã, mas que havia uma permitindo aorei dos Persas fazer o que quisesse. Diante disso, Cambisesdesposou a irmã a quem amava, e pouco depois casava-se comoutra irmã, a mais jovem. Foi essa que o acompanhou ao Egitoe veio mais tarde a sucumbir em suas mãos.

XXXII — A morte dessa princesa, como a de Esmérdis,é relatada de duas maneiras. Segundo os Gregos, estava elaassistindo a uma luta entre um leãozinho e um cãozinho,incitados um contra o outro por Cambises. Vendo o irmão emdesvantagem, o outro cão rompeu a corda que o prendia elançou-se em seu socorro. Unindo suas forças, lograramsuperioridade sobre o leãozinho. O soberano deleitava-se com oespetáculo, mas a irmã, sentada a seu lado, debulhou-se emlágrimas ante aquela demonstração de espírito fraternal.Interrogando-a Cambises sobre aquela estranha atitude, elarespondeu nestes termos: “Não pude conter o pranto ao ver ooutro cãozinho ir em auxílio do irmão porque lembrei-me datriste sorte de Esmérdis, cuja morte, bem o sei, jamais serávingada”. Ouvindo-a falar assim, Cambises enfureceu-se ematou-a ali mesmo. Os Egípcios, por sua vez, contam que,achando-se a princesa à mesa com o soberano, apanhou doprato um pé de alface e, tirando-lhe todas as folhas,perguntou-lhe se ele parecia mais belo assim ou com as folhasque arrancara. “Cheio de folhas” — replicou Cambises.“Senhor, volveu ela — este pé de alface é a imagem da casa deCiro, a qual despojaste”. Irritado, Cambises atirou-se sobre ela,maltratando-a de tal maneira a pontapés, que ela deu à luzprematuramente, falecendo logo depois.

XXXIII — Tais foram os excessos de Cambises contra afamília, ou porque sua fúria encerrasse uma punição pela suaofensa ao boi Ápis, ou porque se manifestasse nele uma

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inclinação para a prática do mal, inclinação essa talvezcongênita, pois dizem que desde a infância estava sujeito aataques periódicos de epilepsia ou mal sagrado. Não é deadmirar que sofrendo o corpo de uma tão grande moléstia, oespírito não se mantenha são.

XXXIV — Igual furor manifestou ele contra o resto dosPersas. Dizem que, certo dia, dirigindo-se a Prexaspes, a quemmuito estimava e que tinha um filho escudeiro, um dos maisimportantes cargos da corte, perguntou-lhe o que pensavam deleos Persas e que diziam quanto à sua maneira de governar.“Senhor, — respondeu Prexaspes — eles vos tributam osmaiores louvores, mas acham que tendes excessiva predileçãopelo vinho”. “Querem eles então dizer — tornou Cambisesencolerizado — que é o vinho que me faz perder a razão ecometer desatinos? Então os louvores que me dirigem não sãosinceros?”

A Creso e aos grandes da Pérsia que compunham oconselho do rei perguntou Cambises, certa ocasião, se oconsideravam capaz, pelas suas ações, de ombrear-se com o pai.Os membros do conselho real disseram que o consideravamsuperior a Ciro porque além de ter mantido sob o seu domínioos países subjugados pelo pai, ainda conquistara o Egito e asupremacia no mar. Creso, porém, não foi da mesma opinião.“Não me parece — disse-lhe ele — que já te possas compararcom teu pai, pois ainda não tens filhos, enquanto que elepossuía um ao morrer”. Cambises, lisonjeado com essa resposta,aprovou o parecer de Creso.

XXXV — O soberano, que não conseguira esquecer apalestra que tivera com Prexaspes sobre seus súditos persas e aopinião destes a seu respeito, mandou-o vir novamente à suapresença, dizendo-lhe com insopitada ira: “Vamos verificaragora, Prexaspes, se os Persas estão com a razão ou se são elesque agem como insensatos quando falam de mim. Se eu atingir

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com esta seta o meio do coração do teu filho, que ali vês de pé,no vestíbulo, ficará demonstrado que eles se enganam. Se,porém, eu errar o alvo, é que a verdade está com eles e que soueu o insensato. Assim falando, enristou o arco e expediu a seta,atingindo mortalmente o jovem. Vendo-o cair agonizante,mandou abrir-lhe o peito para ver onde atingira a seta,encontrando-a cravada no centro do coração. Cheio de alegria,voltou-se para Prexaspes e disse-lhe rindo: “Como vês, não soueu o louco e sim aqueles que me acusam. Dize-me: já vistealguém atingir o alvo com tanta precisão?” Prexaspes, notandoque tinha diante de si um demente furioso e receando pela vida,respondeu: “Senhor, não creio que possa o próprio deus acertarcom maior precisão”. Algum tempo depois desta cena,Cambises mandou enterrar vivos, de cabeça para baixo, dozePersas de grande projeção no país.

XXXVI — Sabedor desses desvarios, Creso julgou-seno dever de dar-lhe um conselho salutar. “Grande rei —disse-lhe ele — não te abandones à tua cólera e à impulsividadeda tua juventude; torna-te senhor de ti mesmo e controla tuasações. É necessário a um grande príncipe saber prever as coisas,e próprio de um homem sensato guiar-se pela prudência. Fazesmorrer injustamente vários dos teus concidadãos e tiras a vidaaté mesmo de simples crianças. Toma cuidado para que,cometendo freqüentemente tais violências, não forces os Persasa se revoltarem contra ti. Faço-te esta advertência porque o reiteu pai recomendou-me expressamente que te desse bonsconselhos e te advertisse sobre tudo aquilo que eu julgasse útil evantajoso para a tua felicidade”.

Essa linguagem refletia a brandura da alma de Creso.Cambises, porém, sentiu-se ferido no seu orgulho. “Também tuousas dar-me conselhos, — retrucou — tu, que tão bemgovernaste teus estados, que acabaste perdendo-os paraconquistadores estrangeiros? Tu, que deste tão bons conselhos ameu pai, exortando-o a atravessar o Araxes para atacar os

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Masságetas no seu próprio país, em vez de esperá-los em nossasterras, que o levaste à derrota e à morte? Esta tua ação nãoficará impune; receberás o merecido castigo. Há muito que eubuscava um pretexto para vingar-me”. Assim dizendo, tomou daflecha para trespassar Creso, que esquivou-se ao seu furor numapronta fuga. Vendo que não podia alcançá-lo, Cambisesordenou a seus guardas que o perseguissem e o matassem.Estes, porém, conhecendo a volubilidade do seu caráter,ocultaram Creso, com a intenção de apresentá-lo ao soberano,se este, arrependendo-se, o quisesse novamente a seu lado.Esperavam, assim, obter uma recompensa por lhe haveremsalvo a vida, embora estivessem dispostos a matá-lo se osoberano não reconsiderasse seu ato.

Com efeito, Cambises não tardou a arrepender-se de suaação impensada, deplorando a morte de seu amigo econselheiro. Os guardas, percebendo-lhe a mudança de ânimo,disseram-lhe que Creso ainda vivia. Cambises, embora satisfeitocom a revelação, mandou matá-los por não haverem cumpridoas ordens que lhes dera.

XXXVII — Durante sua permanência em Mênfis teveainda outros acessos de loucura, tanto contra seus compatriotascomo contra seus aliados. Mandou abrir túmulos antigos paraidentificar os mortos. Entrou no templo de Vulcano, fazendomil ultrajes à estátua do deus. Essa estátua muito se assemelhaaos pataicos(1), colocados pelos Egípcios na proa de suastrirremes, e que, por sua vez, se parecem com pigmeus.Penetrou também no templo dos Cabiros, cujas leis proíbem aentrada a outra pessoa que não seja o sacerdote, e, após dirigirimpropérios e motejos às estátuas, mandou queimá-las. Asestátuas dos Cabiros assemelham-se às de Vulcano. De fato, háquem afirme serem os Cabiros filhos desse deus.

XXXVIII — Estou convencido de que Cambises estavalouco, pois, se assim não fora, jamais ousaria escarnecer da

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religião e das leis.

Se se propusesse a todos os homens escolher entre todasas leis instituídas nos diversos países as que melhor lhesparecessem, de certo que, após um exame minucioso, cada qualse decidiria pelas de sua própria pátria, de tal modo estão oshomens persuadidos de que não existem leis mais belas do queas deles.

Isso é uma verdade, confirmada por muitos exemplos, e,entre outros, pelo seguinte: Um dia, Dario, fazendo vir à suapresença alguns Gregos submetidos ao seu domínio,perguntou-lhes por que soma de dinheiro se decidiriam a comeros cadáveres de seus pais. Todos declararam que jamais fariamtal coisa, qualquer que fosse a quantia que lhes oferecessem.Mandou chamar, em seguida, os Cários, habitantes da Índia,acostumados a comer os pais, e perguntou-lhes, na presença dosGregos, quanto queriam para queimar os pais depois de mortos.Os Indianos, horrorizados com a proposta, pediram-lhe para nãoinsistir numa linguagem tão odiosa. Assim, nada mais exato doque a sentença que encontramos nos versos de Píndaro: A lei é arainha de todos os homens.

XXXIX — Enquanto Cambises levava a guerra aoEgito, os Lacedemônios lançavam-se contra Samos e contraPolícrates, filho de Éaco, que, tendo-se revoltado, apoderara-sedessa ilha(2), dividindo-a em três cantões e repartindo-a comPantanhoto e Silóson, seus irmãos. Logo depois, porém, matouPantanhoto e expulsou Silóson, o mais jovem, tornando-sesenhor de toda a ilha. Fez então com Amásis, rei do Egito, umtratado de amizade, cimentado por presentes recíprocos. Seupoderio cresceu em pouco tempo, e logo sua fama estendeu-sepela Iônia e pelo resto da Grécia. A sorte acompanhava-o portoda parte onde ele levava suas armas Possuía cem navios decinqüenta remos e mil homens de equipagem. Atacava e pilhavaa todos, sem distinção, dizendo que daria maior prazer a um

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amigo restituindo-lhe o que lhe havia tirado, do que nunca lhetirando coisa alguma. Apossou-se de várias outras ilhas e tomougrande número de cidades no continente. Venceu em combatenaval os Lésbios, que tinham vindo, com todos os recursos deque dispunham, em socorro dos Milésios; e aprisionando-os epondo-os sob grilhões, obrigou-os a cavar o fosso que circundaos muros de Samos.

XL — Informado da prosperidade de Polícrates, Amásisficou inquieto, e, como ela se tornava cada vez maior, osoberano escreveu-lhe a seguinte carta:

“DE AMÁSIS A POLÍCRATES.

“É para mim muito agradável saber dos sucessosde um amigo e aliado; mas como conheço o ciúme dosdeuses, essa grande felicidade me preocupa. Embenefício daqueles por quem me interesso, eu prefeririaque os êxitos fossem contrabalançados por um número,correspondente de reveses; que houvesse uma alternaçãode venturas e azares, em lugar de uma felicidadeconstante e ininterrupta; pois nunca ouvi falar de homemalgum que, tendo sido feliz em tudo, não viesse, por fim,a perecer desastrosamente. Se quiseres pôr à prova o quete digo, faze contra a tua boa fortuna o que te vouaconselhar. Procura ver qual a coisa que mais estimas ecuja perda te seria mais sensível. Feita a escolha,desfaze-te dela, de maneira que nunca mais possasencontrá-la. Se depois disso a fortuna continuar afavorecer-te em tudo, sem envolver alguma desgraça emmeio aos favores, avisa-me para que eu me convença dainutilidade do meu conselho”.

XLI — Polícrates, meditando sobre a sugestão deAmásis e achando-a prudente, resolveu segui-la. Procurou entretodas as suas jóias uma cuja perda lhe fosse mais sentida edecidiu-se por um anel de ouro incrustado de esmeralda, que

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costumava usar e que lhe servia de talismã. Fora gravado porTeodoro de Samos, filho de Telecleu. Disposto a desfazer-se dajóia, mandou equipar um navio e fez-se ao alto mar. Ao ver-sebem afastado da ilha, tirou o anel do dedo e lançou-o às águasprofundas, à vista de todos os que o acompanhavam. Feito isso,ordenou que o reconduzissem à terra, e regressou ao palácio,sentindo-se já pesaroso com a perda de tão estimada jóia.

XLII — Cinco ou seis dias depois, um pescador, tendoapanhado um peixe de grandes proporções julgou-o digno de seroferecido ao rei. Levou-o ao palácio e, conduzido à presença dePolícrates, dirigiu-se-lhe nestes termos apresentando-lhe opescado: “Senhor, eis aqui um peixe que tive a boa sorte deapanhar. Embora trabalhe arduamente para ganhar a vida, acheique não devia levá-lo ao mercado por julgá-lo um presentedigno de vós. Peço-vos, pois, que o aceiteis”.

Envaidecido com as palavras e a atitude do pescador,Polícrates respondeu, apreciando o pescado: “Aceito-o de bomgrado, e para te provar que te sou grato, convido-te para cearcomigo”. Quando o pescador regressou ao lar, ia radiante desatisfação pelo acolhimento que lhe dispensara seu soberano.Entretanto, abrindo o peixe, os cozinheiros encontraram dentrodele o anel de Polícrates. Cheios de alegria, foram entregá-lo aorei, contando-lhe como o tinham achado. Maravilhado com ofato, Polícrates imaginou que havia em tudo aquilo algo dedivino. Escreveu a Amásis uma descrição minuciosarelatando-lhe o que havia feito e o que lhe acontecera,confiando a carta a um mensageiro para que a levasse semperda de tempo ao Egito e a entregasse pessoalmente.

XLIII — Lendo-a, Amásis reconheceu a impossibilidadede afastar um homem de seu destino, convencendo-se de quePolícrates não poderia acabar bem os seus dias. A fortuna lheera de tal maneira favorável, que ele tornava a encontrar tudoque lançava para longe de si. Tomando uma súbita resolução,

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enviou um arauto a Samos para comunicar a Polícrates querenunciava à aliança que com ele mantinha. Fê-lo porque temiaque a sorte de seu amigo e aliado desandasse e ele viesse asofrer grande mágoa com isso.

XLIV — Foi contra esse soberano tão favorecido pelafortuna, que marcharam os Lacedemônios a pedido doshabitantes de Samos, que fundaram, pouco mais tarde, emCreta, a cidade de Sidônia. Quando Cambises se punha emmarcha com seu exército para se lançar contra o Egito,Polícrates, querendo lhe ser agradável e, ao mesmo tempo,livrar-se de alguns elementos que se opunham ao seu mando,ofereceu-lhe parte de suas tropas. Cambises aceitou de boavontade e pediu-lhe que destacasse uma força naval paraacompanhá-lo na expedição. Polícrates escolheu aqueles que lhepareciam mais inclinados à revolta e embarcou-os em quarentatrirremes, recomendando a Cambises que fizesse com que elesnão mais regressassem a Samos.

XLV — Dizem uns que esses homens enviados porPolícrates não foram até o Egito. Ao chegarem ao marCarpatiano, reuniram-se em conselho e deliberaram nãoprosseguir viagem. Outros afirmam que eles chegaram ao Egitomas que, embora sob vigilância, lograram fugir, velejando deregresso a Samos, e que Polícrates, indo ao seu encontro,dera-lhes combate, sendo derrotado. Vitoriosos sobre a frota dePolícrates, esses homens teriam desembarcado na ilha, alisofrendo duro revés, o que os obrigou a se retirarem para osseus navios, indo refugiar-se na Lacedemônia.

Há quem assegure que esses descontentes, de volta doEgito, obtiveram uma vitória total sobre Polícrates. Tal opiniãonão me parece aceitável, pois se eles fossem suficientementefortes para derrotar o soberano, não teriam ido solicitar auxílioaos Lacedemônios. Por outro lado, não se poderia conceber quePolícrates, tendo a seu soldo tantas tropas auxiliares e tantos

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guerreiros nativos, fosse derrotado por um pequeno número desúditos de volta à pátria. Acresce ainda a circunstância demanter ele em seu poder as mulheres e os filhos dos cidadãos deSamos, seus súditos. Tinha-os concentrado nos portos, com opropósito de queimá-los, juntamente com os portos, caso essescidadãos o traíssem, unindo-se aos que regressavam do Egito.

XLVI — Chegando a Esparta, os habitantes de Samosderrotados em terra pelas forças de Polícrates foram procurar osmagistrados, explicando-lhes num longo discurso sua situação esuplicando-lhes auxílio. Nesta primeira audiência osLacedemônios lhes responderam que haviam esquecido ocomeço do discurso e que não haviam entendido o fim. Nasegunda os habitantes de Samos levaram-lhes um saco de couroe lhes disseram somente que faltava farinha naquele saco. OsLacedemônios tacharam de supérfluas essas palavras; contudoresolveram socorrê-los.

XLVII — Feitos os necessários preparativos, partiramem direção à ilha. Dizem os habitantes de Samos que osLacedemônios os auxiliaram nessa ocasião em retribuição àajuda deles recebida contra os Messênios; mas a dar-se créditoaos Lacedemônios, eles empreenderam essa expedição menospara auxiliar os estrangeiros exilados, do que para vingar-sedaqueles que lhes haviam arrebatado a cratera que levavam aCreso, e, um ano antes, a couraça que Amásis, rei do Egito, lhesenviara de presente. Era uma couraça de linho, ornada comfiguras de animais, tecidas em ouro e algodão. Embora muitodelgados, cada um dos fios compunha-se de outros trezentos esessenta, todos perfeitamente distintos. Essa couraça erasemelhante à que Amásis enviara ao templo de Minerva deLinde.

XLVIII — Os Coríntios também colaboraramentusiasticamente na expedição dos Espartanos contra Samospelo fato de os habitantes da ilha lhes terem feito várias afrontas

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algum tempo antes — certamente por ocasião do roubo dacratera.

Periandro(3), filho de Cípselo, enviara a Aliata, emSardes, trezentos meninos, filhos das melhores famílias daCorcira, para serem feitos eunucos. Os Coríntios que osconduziam escalaram em Samos, e os habitantes da ilha,informados do destino que pretendiam dar àquelas crianças,instruíram-nas a dirigir-se ao templo de Diana na qualidade desuplicantes, depois do que não consentiram mais que astirassem dali. Como os Coríntios não permitissem que lheslevassem alimentos, os habitantes de Samos resolveram oproblema instituindo uma festa, que ainda hoje ali se celebra damesma maneira: Todos os dias, ao cair da noite, durante todo otempo que os pequenos corcireus permaneceram no templocomo suplicantes, organizavam coros infantis, tendo cadacriança na mão doces de sésamo e mel, que repartiam com oscorcireus, facultando-lhes assim alimento. Esses corosprosseguiram até a partida dos Coríntios, sendo então os jovenscorcireus recambiados para a sua pátria.

XLIX — Se depois da morte de Periandro houvesseamizade entre os Corcireus e os Coríntios, bastaria isso paraimpedir que estes últimos auxiliassem os Lacedemônios naexpedição contra Samos; mas desde a fundação da Corcirapelos Coríntios houve sempre forte animosidade entre os doispovos, embora sejam da mesma origem. Foi para vingar-se deuma afronta que, segundo se afirma, lhe fizeram os Corcireus,que Periandro enviou a Sardes aqueles trezentos meninos paraserem reduzidos à condição de eunucos, sendo seus desejosfrustrados pela intervenção dos habitantes de Samos.

L — Periandro, matando sua esposa Melissa, não tardoua ser punido por esse crime com o desprezo que lhe votou o seufilho mais moço. Tivera, de Melissa, dois filhos, deixados, umcom a idade de dezessete anos, e o outro com dezoito. Procles,

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o avô materno, tirano de Epidauro, chamara-os para junto de sie os tratara com o carinho que um pai costuma dispensar aosfilhos de seus filhos, e ao mandá-los de volta perguntou-lhes, àhora da despedida: “Meus filhos, sabeis que vosso pai matouvossa mãe?” O mais velho nenhuma importância deu a essaspalavras, mas o mais jovem, de nome Lícofron, ficou de talmaneira chocado com aquela revelação que, de regresso aCorinto, recusou-se a saudar o pai, por considerá-lo o assassinoda mãe, evitando palestrar com ele e negando-se aresponder-lhe quando interrogado. Por fim, Periandro,indignado, expulsou-o de casa.

LI — Desejando saber a razão da atitude que o filhomais moço mantivera para com ele de volta ao lar, Periandroinquiriu o outro sobre o que lhes havia dito o avô. O jovemfalou-lhe sobre o bom acolhimento que tinham tido, semcontudo fazer nenhuma referência às palavras do avô quandodeles se despedira, pois já as havia esquecido. Periandroinsistiu, dizendo que era impossível que o avô não tivesse dadoalgum conselho ou mesmo influenciado o ânimo de Lícofroncontra ele; e assediou o jovem com tantas perguntas, que eleacabou por lembrar-se do que lhes revelara Procles.Cientificado do ocorrido, Periandro, após alguns momentos dereflexão, resolveu não usar mais de indulgência para com ofilho expulso e proibiu aqueles que lhe deram abrigo de voltar afazê-lo. Banido de um lugar, Lícofron procurava pousadanoutro, mas logo tinha de deixá-lo ante as ameaças dePeriandro; e assim ia passando da casa de um amigo para a deoutro, pois, embora estes temessem Periandro, não se negavama dar-lhe asilo por tratar-se do filho do rei.

LII — Por fim, o soberano fez publicar um éditodeclarando que aquele que acolhesse Lícofron em sua casa oucom ele falasse incorreria numa pena especificada e aplicávelno templo de Apolo. Ninguém mais ousou receber o jovem enem manter qualquer contato com ele. O próprio Lícofron, não

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querendo burlar a proibição do pai, passou a dormir ao relento.No quarto dia, Periandro, vendo-o sujo e faminto, sentiu-setomado de compaixão. Aproximando-se do jovem, falou-lhenestes termos: “Então, meu filho, que vale mais na tua opinião,o teu estado atual ou o soberano poder e as vantagens quedesfruto e de que podes compartilhar comigo, prestando-meobediência? Como, sendo tu filho do soberano da rica Corinto,preferes uma vida errante e vagabunda, irritando com a tuateimosia e desdém aquele a quem menos devias ofender? Sealguma desgraça adveio fazendo-te suspeitar da minha conduta,essa desgraça recaiu sobre mim; e sinto-a tanto mais vivamentequanto dela fui o causador. Tu, que sabes por experiência quemais vale despertar inveja do que piedade e onde leva a cóleracontra um pai, e, sobretudo, contra um pai que tem a força namão, reconsidera tua atitude e retorna ao palácio”.

Periandro procurava, assim, chamar o filho à razão, maseste limitou-se a dizer-lhe que, dirigindo-lhe a palavra, eleestava incorrendo na pena por ele próprio estabelecida. Osoberano, compreendendo que nada poderia fazer para vencer aaversão que o filho lhe votava, afastou-o para longe de sienviando-o para a Corcira, da qual também era senhor. Emseguida marchou contra seu sogro Procles, a quem consideravaresponsável por aquela animosidade. Apoderou-se da cidade deEpidauro e aprisionou Procles, poupando-lhe, entretanto, a vida.

LIII — Tempos depois, Periandro, já idoso e não sesentindo mais em condições de zelar pelos negócios do reino egovernar por si mesmo, mandou buscar Lícofron na Corcira,para lhe confiar as rédeas do Estado. O filho mais velho eraimbecil, e o soberano sabia-o incapaz para tal função. Lícofronnem mesmo se dignou responder à mensagem do pai; masPeriandro, que o amava enternecidamente, enviou-lhe a irmã, naesperança de que ela fosse mais bem sucedida. Ao chegar aCorcira, a princesa assim se dirigiu ao irmão: “Preferes, então,Lícofron, ver o poder passar para as mãos de estrangeiros e os

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bens de teu pai dissipados, a tomar a direção deles? Volta ao lare cessa de atormentar a ti mesmo. O orgulho é mau conselheiro.Não procures curar um mal com outro. Muitas pessoasdeixam-se vencer mais facilmente pela brandura do que pelaseveridade, embora justa, e não são poucas as que, defendendoos direitos da mãe, perderam os que tinham junto ao pai. Atirania é como uma mulher volúvel, sempre assediada por milamantes que aspiram conquistá-la. Sê tolerante. Periandro jáestá velho e necessita de um continuador. Não abandones aoutros o que te pertence”.

Mesmo ante tão convincente linguagem Lícofronmostrou-se irredutível, declarando que não voltaria a Corintoenquanto soubesse vivo Periandro. A princesa regressou parajunto do pai e transmitiu-lhe a resposta. Sem se dar por vencido,o soberano enviou pela terceira vez um emissário ao filho paradizer-lhe que pretendia retirar-se para a Corcira, e que ele,Lícofron, podia regressar a Corinto e tomar posse da coroa. Ojovem príncipe aceitou a proposta, e Periandro preparou-se parapartir para a Corcira; mas os Corcireus, informados do que sepassava e não desejando tê-lo na ilha, assassinaram Lícofron.Foi essa a razão que levou Periandro a vingar-se dos Corcireus.

LIV — Chegando a Samos com uma poderosa frota, osLacedemônios cercaram a cidade e aproximaram-se dasmuralhas, deixando para trás a torre que fica à beira-mar, nossubúrbios da ilha; mas contra-atacados por forças consideráveissob o comando do próprio Polícrates, viram-se obrigados arecuar. Quase ao mesmo tempo, as tropas auxiliares,acompanhadas de grande número de habitantes de Samos,saíram da torre superior, localizada no alto da montanha, ecaíram sobre eles. Após breve mas encarniçada luta, osinvasores puseram-se em fuga; e os vencedores, perseguindo-os,mataram grande número deles.

LV — Se os Lacedemônios que tomaram parte nessa

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expedição bélica se tivessem conduzido como Árquias eLicopas, Samos teria sido capturada. Árquias e Licopasinvestiram sozinhos contra os habitantes da ilha e, pondo-os emfuga, entraram na cidade de atropelo, quase se confundindo comos fugitivos; mas como lhes barrassem o caminho e eles nãopudessem sair, ali pereceram.

Encontrei-me um dia com outro Árquias, filho de Sâmioe neto desse Árquias de quem acabo de falar. Foi em Pitana,burgo onde ele nasceu. Dava mais importância aos habitantes deSamos do que a todos os outros estrangeiros, e informou-meque haviam atribuído a seu pai o nome de Sâmio, por ser omesmo filho daquele Árquias morto em Samos quandovalentemente combatia. Acrescentou votar particular estima àgente de Samos porque esta havia sepultado seu avô àsexpensas dos poderes públicos.

LVI — Vendo que o cerco se prolongava e que ao cabode quarenta dias não tinham feito nenhum progresso, osLacedemônios voltaram para o Peloponeso. Há quem afirme,mas sem fundamento, que Polícrates deu-lhes grandequantidade de moedas de chumbo douradas, cunhadas numrecanto do país, e que, conquistados por esses presentes,retiraram-se de regresso à pátria. Foi essa a primeira expediçãodos Lacedemônios-Dórios na Ásia.

LVII — Aqueles dentre os habitantes de Samos quehaviam lutado contra Polícrates, vendo-se em risco de seremabandonados pelos Lacedemônios, apressaram-se em deixar ailha, velejando para Sifnos, por lhes faltar dinheiro. Os Sífniosconstituíam então uma nação florescente e das mais ricas entreas insulares. Era tal a quantidade de minas de ouro e prataexistentes e exploradas no país, que, com os impostos delasprovenientes, os Sífnios ofereceram a Delfos um tesourocomparável aos mais ricos que havia no templo. O produtodessas minas era repartido entre eles todos os anos; e, enquanto

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trabalhavam na formação desse tesouro, consultaram o oráculopara saber se poderiam desfrutar por muito tempo os benspresentes, tendo a pitonisa respondido: “Quando o Pritaneu deSifnos ficar branco e a praça pública ganhar o mesmo aspecto,tereis então muita necessidade de um homem sábio e prudentepara vos garantir contra uma armadilha de madeira e um arautovermelho”.

LVIII — A praça pública e o Pritaneu de Sifnos eram demármore de Paros. Os Sífnios não puderam apreender o sentidodo oráculo, nem na ocasião em que lho deram, nem mesmoquando ali aportaram os que se exilavam de Samos. Estes, malhaviam chegado, enviaram à cidade um navio comembaixadores. Os antigos costumavam pintar seus navios devermelho, e ali estava, portanto, o significado daquele oráculo,advertindo os Sífnios que se guardassem contra uma armadilhade madeira e um embaixador vermelho. Assim quedesembarcaram, os embaixadores pediram aos Sífnios que lhesemprestassem dez talentos, e não sendo atendidos saquearam oscampos. Sabedores do ocorrido, os Sífnios pegaramimediatamente em armas e deram combate aos estrangeiros,sendo porém derrotados. Grande número deles teve a retiradacortada e não pôde retornar à cidade. Vencedores, os retirantesde Samos exigiram dos vencidos cem talentos.

LIX — Com o dinheiro assim obtido, os exilados deSamos adquiriram dos Hermiônios a ilha de Hidréia, perto doPeloponeso, dando-a como penhor aos Trezênios. Dalivelejaram para Creta, onde derrotaram Cidônia, embora nãotivessem ali ido com esse propósito. Conquistando-a, nelafixaram residência, e durante cinco anos gozaram de talprosperidade que, não somente construíram os templos queainda hoje podem ser vistos em Cidônia, como também ogrande templo de Dictínia. No fim desse período foramderrotados pelos Eginetas num combate naval e reduzidos àescravidão, com o auxílio dos Cretenses. Os vencedores

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desarmaram as proas dos seus navios, retiraram os javalis quelhes serviam de ornamento e ofereceram-nos a Egina.

Os Eginetas foram levados a tal vingança pelo ódioincruento que votavam aos filhos de Samos, que lhes haviammovido guerra na época em que Anfícrates reinava na ilha,causando-lhes grande dano. Derrotando-os, os Eginetassentiam-se agora bem vingados.

LX — Estendi-me bastante sobre Samos, e por umarazão muito simples: sua gente realizou três das maiores obrasexistentes em toda a Grécia. Há nessa ilha uma montanha decento e cinqüenta braças de altura. Perfuraram-na pela base,abrindo um túnel com duas bocas ou aberturas, com seteestádios de comprimento, oito pés de altura e outros tantos delargura. Ao longo do túnel cavaram um canal com vintecôvados de profundidade e três pés de largura, atravessandotoda a montanha. Esse canal leva à cidade, através de canos, aágua de uma grande fonte. O arquiteto que realizou essa obraera natural de Mégara e chamava-se Eupalino, filho deNaustrofo. Foi esse um dos três grandes trabalhos da gente deSamos. O segundo consiste num dique construído na orlamarítima, perto do porto, medindo cerca de vinte braças dealtura e dois estádios de comprimento. O terceiro foi umtemplo, o maior de que temos conhecimento, construído por umnatural do país, de nome Récus(4), filho de Fileu. Aí está, comojá disse, a razão pela qual discorri tão amplamente sobre Samos.

LXI — Enquanto Cambises, filho de Ciro, perdia seutempo no Egito e cometia desatinos, dois magos irmãosaproveitaram a ocasião para se revoltarem. O soberano haviadeixado um deles na Pérsia para administrar os seus bens, e foieste o organizador da revolta. Esse mago não ignorava a mortede Esmérdis; sabia que a ocultavam; que ela não era conhecidasenão por um pequeno número de pessoas, e que a maioriapensava que esse príncipe ainda vivia. Esse fato e outras

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circunstâncias a que farei referência fizeram-no tomar aresolução de apoderar-se do trono. Acompanhou-o na revoltaseu irmão, que apresentava notável semelhança com Esmérdis,morto por Cambises, tendo também o mesmo nome domalogrado príncipe. O outro chamava-se Patizites, e foi elequem acabou por colocar o irmão no trono, assegurando-lhe quehavia de aplainar todos os obstáculos. Pondo o seu plano emexecução, enviou emissários a todas as províncias e,particularmente, ao Egito, para fomentar a desobediência entreas tropas de Cambises e levá-las a não reconhecer como rei, dalipor diante, senão a Esmérdis, filho de Ciro.

LXII — Cumprindo as ordens, os arautos lançaram essaproclamação por toda parte. O que fora enviado ao Egitoencontrou Cambises, com o seu exército, em Ecbatana, na Síria,e, no meio do acampamento, tornou públicas as ordens domago. Ouvindo a proclamação e julgando dizer o arauto averdade, Cambises acreditou que havia sido traído porPrexaspes e que este não matara Esmérdis. “Então é assim,Prexaspes, — disse-lhe, encarando-o fixamente — que cumpreso que te ordeno?” “Senhor, — respondeu Prexaspes — éinteiramente falso o conteúdo dessa proclamação. Nada tendes atemer do vosso irmão Esmérdis, pois ele jamais poderárevoltar-se contra vós. Executei pessoalmente as vossas ordense sepultei o cadáver com as minhas próprias mãos. Se os mortosressuscitam, então veríeis o medo Astíages erguer-se contra vós.Podeis, porém, estar certo de que as coisas se processam comosempre se processaram e que nenhum mal vos advirá da partede Esmérdis. Se me permitis, sugiro que façais vir o arauto àvossa presença e que o interrogueis sobre quem o enviou aquipara dizer-nos que devemos obedecer às ordens do reiEsmérdis”.

LXIII — Aceitando a sugestão de Prexaspes, Cambisesfez vir o arauto à sua presença e o interrogou nestes termos:“Dizes, meu amigo, que vens da parte de Esmérdis, filho de

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Ciro. Como não creio nisso, exijo que confesses a verdade. Se ofizeres, te deixaremos ir em paz. Viste, por acaso, Esmérdis?Deu-te, ele próprio, essas ordens? Recebeste-as de algum dosseus ministros?” “Na verdade, — respondeu o arauto — desde apartida do rei Cambises para o Egito não mais vi Esmérdis,filho de Ciro. Foi o mago que ficou administrando os bens deCambises quem me deu as instruções que acabo de cumprir emnome de Esmérdis, filho de Ciro”.

Ouvindo a resposta do arauto, Cambises voltou-se paraPrexaspes, dizendo-lhe: “Estou convencido de que executastefielmente a missão que te confiei, e nada tenho a censurar-te...mas quem, dentre os Persas, adotando o nome de Esmérdis, teráousado revoltar-se contra mim?” “Senhor, — volveu Prexaspes— creio haver compreendido o que se passou: os magossublevaram-se contra vós. Refiro-me, como sabeis, a Patizites,que deixastes na Pérsia administrando os vossos bens, e ao seuirmão Esmérdis”.

LXIV — Ante o nome de Esmérdis, Cambiseslembrou-se do sonho que tivera, no qual lhe parecera ver umarauto anunciando-lhe que Esmérdis, sentado no seu trono,tocava o céu com a cabeça. Reconhecendo que havia feitoperecer o irmão injustamente, não pôde conter as lágrimas.Depois de muito chorar e lamentar-se pelos seus muitosinfortúnios, lançou-se rápido ao cavalo, com o propósito demarchar incontinênti para Susa, contra os usurpadores do trono;mas, ao montar, a bainha da sua cimitarra caiu, e a arma nuaferiu-o na coxa, no mesmo lugar onde ele havia, tempos antes,atingido o boi Ápis, deus dos Egípcios. Como o ferimento lheparecesse mortal, quis saber o nome da cidade onde então seachava. Disseram-lhe que era Ecbatana.

O oráculo da cidade de Buto havia predito que elefindaria seus dias em Ecbatana, e ele julgara, por aquelevaticínio, que deveria morrer de velhice em Ecbatana, na

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Média, onde se encontravam todas as suas riquezas; mas ooráculo se referia à outra Ecbatana, situada na Síria. Assim, aoouvir o nome da cidade, o soberano, acabrunhado pela traiçãodos magos em que confiara e pela dor que lhe causava oferimento, compreendeu então o verdadeiro sentido do oráculo:“É aqui que Cambises, filho de Ciro, deve acabar os seus dias,segundo os desígnios dos fados”.

LXV — Cambises manteve-se em completo mutismo emergulhado em seus pensamentos durante vinte dias.Finalmente, tomou uma resolução: convocou os Persas maisimportantes que faziam parte do seu exército e fez-lhes oseguinte discurso: “Persas, é chegado o momento de vos revelaralgo que até o momento procurei manter em segredo. Quandome achava no Egito, tive, durante o sono, uma visão — eprovera aos deuses que eu não a tivesse tido. Pareceu-me verum correio chegando ao meu palácio e anunciando-me queEsmérdis se achava sentado no trono e que sua cabeça tocava océu. Acreditando, por tal visão, que meu irmão tencionavaroubar-me a coroa, tomei medidas precipitadas, sem darouvidos à prudência, pois não é dado aos homens modificar osdestinos. Num momento de irreflexão, enviei Prexaspes a Susapara eliminar Esmérdis, que eu supunha uma ameaça para mim.Morto este, fiquei tranqüilo, não podendo imaginar que outroviesse a sublevar-se contra mim. Minhas previsões, porém,foram contrariadas pela realidade dos fatos. Verti inutilmente osangue de meu irmão, pois nem por isso furtei-me ao risco deficar sem a coroa. O que um deus me mostrava em sonhos nãoera quem eu imaginara, mas o mago Esmérdis. Era esse que,segundo os desígnios dos deuses, deveria revoltar-se contramim. Cumpriram-se os fados. Esmérdis, filho de Ciro, estámorto, e o mago a quem encarreguei da gerência dos meusbens, e seu irmão, que traz o mesmo nome do meu,apoderaram-se do trono. Aquele que poderia, melhor queninguém, vingar-me desse golpe odioso, foi morto pelas mãosímpias dos seus mais próximos parentes. Enfim, o que está feito

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está feito, e não me resta senão transmitir-vos as minhas ordense dizer-vos o que desejo que façais depois de minha morte.Peço-vos, ó Persas, pelos deuses protetores dos reis; eu vosconjuro, a vós, principalmente, Aquemênidas, aqui presentes,não suportardes que o império volte às mãos dos Medos. Se elesconseguirem conquistá-lo pela astúcia, recuperai-o pela astúciatambém; se o obtiverem pela força, reconquistai-o igualmentepela força. Se fizerdes o que vos recomendo e conservardesvossa liberdade, possa a terra favorecer-vos com frutos emabundância! Possam vossas mulheres dar-vos grande número defilhos, e vossos rebanhos se multiplicarem numa venturosafecundidade! Se não recuperardes o império; se nenhum esforçofizerdes para reconquistá-lo, não somente faço votos de que ocontrário de tudo isso vos aconteça, como desejo a todos osPersas um fim igual ao meu”.

LXVI — Após esse discurso, Cambises pôs-se adeplorar sua sorte, e os Persas presentes, vendo-o debulhado emlágrimas, puseram-se a rasgar as roupas em desespero e a soltargemidos prolongados. Pouco depois manifestou-se a infecçãono ferimento produzido pela cimitarra, e a gangrena não tardoua propagar-se por toda a coxa do soberano, vindo ele a falecer,após haver reinado sete anos e cinco meses. Cambises morreusem deixar filhos. Os Persas presentes ao desenlace, emborasentindo a sua perda, não estavam convencidos de que os magosse haviam apoderado da coroa. Pensavam que o que Cambiseslhes dissera sobre a morte de Esmérdis era efeito do ódio quevotava àquele príncipe, para que todos os Persas lhe fizessemguerra. Acreditavam que o golpe havia sido realmente tramadopor Esmérdis, filho de Ciro, e que era este que estava ocupandoo trono; e o que mais fortalecia a sua crença era o fato de terPrexaspes negado terminantemente haver executado o jovem,porquanto, morto Cambises, não achou conveniente confessarque o assassinara com suas próprias mãos.

LXVII — Depois da morte de Cambises, o mago, mercê

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do nome de Esmérdis, reinou tranqüilamente durante os setemeses que faltavam para completar o oitavo ano de governo doseu predecessor. Durante esse período cumulou de benefícios ossúditos, de maneira que, ao morrer, foi pranteado por todos ospovos da Ásia, com exceção dos Persas. Logo que assumiu opoder, mandou publicar, em todas as províncias, éditos pelosquais isentava os súditos, por três anos, de todos os tributos,subsídios e, também, do serviço militar.

LXVIII — No oitavo mês teve sua identidade reveladada maneira que passo a expor: Havia na corte um cidadãochamado Otanes, filho de Farnaspe. Sendo de origem nobre epossuidor de grande fortuna, convivia com as figuras maisilustres da Pérsia. Otanes foi o primeiro a suspeitar que o novorei não era Esmérdis, filho de Ciro, mas sim o mago, comorealmente acontecia. Suas suspeitas fundavam-se no fato de orei jamais abandonar a cidadela, só se fazendo acessível aalguns dos grandes da Pérsia. Convencido, pois, de que o novosoberano não passava de um impostor, Otanes serviu-se doseguinte meio para desmascará-lo:

Uma de suas filhas, Fédima, havia sido desposada porCambises, e, como todas as outras esposas do falecidosoberano, ela pertencia agora ao mago. Assim, mandouperguntar à filha quem era aquele com quem coabitava; seEsmérdis, filho de Ciro, ou outro qualquer. Fédima respondeuque não sabia ao certo, pois jamais vira Esmérdis, filho de Ciro,nem tão pouco conhecia com segurança aquele que a admitirano número de suas mulheres. “Se não conheceste Esmérdis,filho de Ciro, — mandou ele dizer-lhe pela segunda vez —pergunta a Atossa quem é esse homem com o qual tu e elavivem; ela deve conhecer perfeitamente seu irmão Esmérdis”.Fédima respondeu: “É-me impossível falar com Atossa, assimcomo comunicar-me com qualquer das outras mulheres. Desdeque esse homem, quem quer que ele seja, se apoderou do trono,dispersou-nos, mantendo-nos em alojamentos separados”.

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LXIX — Ante essa resposta, a questão pareceu clara aOtanes. Enviou uma terceira mensagem a Fédima: “Minha filha,é preciso que uma mulher de alta linhagem como tu se exponhaao perigo; é teu pai quem a isso te exorta; é ele quem te ordena.Se o rei não é Esmérdis, filho de Ciro, mas aquele que suponho,não deves continuar sendo sua mulher e nem ocupar eleimpunemente o trono da Pérsia; ele merece ser prontamentecastigado. Segue, pois, meu conselho e faze o que te vouindicar. Quando ele estiver contigo e o vires adormecido,apalpa-lhe as orelhas; se ele as tiver, é o filho de Ciro; se não astiver, é Esmérdis, o mago”.

Fédima respondeu que ia expor-se a um grande perigo,pois não tinha dúvida de que, se o rei não tivesse orelhas e asurpreendesse a procurá-las, matá-la-ia imediatamente. Nãoobstante, prometia executar-lhe as ordens. Convém notar queCambises mandara cortar, durante seu reinado, as orelhas deEsmérdis, o mago, por uma falta grave que ele cometera.

As mulheres, na Pérsia, têm o costume de deitar-se como marido cada uma por sua vez. Chegando a vez de Fédima, elafez o que prometera ao pai. Ao ver o mago profundamenteadormecido, tateou-lhe as orelhas, e verificando, sem pesar, queele não as possuía, informou o pai a respeito, logo ao romper dodia.

LXX — Otanes foi, então, à procura de Aspatino e deGóbrias, que gozavam do mais alto prestígio entre os Persas enos quais depositava a maior confiança, revelando-lhes o queacabava de descobrir. Aspatino e Góbrias não relutaram muitoem lhe dar crédito, tanto mais que já nutriam, desde muito, suassuspeitas. Ficou então resolvido entre eles que cada qualprocuraria aliciar um dos Persas em quem mais confiasse, para arevolta. Otanes aliciou Intafernes; Góbrias, Megabizo, eAspatino, Hidarnes. Eram eles em número de seis, quandoDario, filho de Histaspes, voltando da Pérsia, onde o pai

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ocupava as funções de governador, chegou a Susa. Logo que oviram de regresso, procuraram obter seu apoio e cooperação.

LXXI — Reunindo-se os sete, juraram fidelidaderecíproca e puseram-se a discutir sobre o melhor meio de ação.Ao chegar a vez de Dario emitir sua opinião, declarou ele: “Eujulgava ser o único a ter conhecimento da morte de Esmérdis,filho de Ciro, e a saber que o mago reinava em lugar dele; e foipor isso mesmo que apressei-me a vir aqui, com o propósito deeliminar o usurpador; mas já que estais também a par damistificação, sou de parecer que devemos agir prontamente ecom a máxima energia; de outra forma, correremos perigo”.“Filho de Histaspes, — respondeu Otanes — nascido de paiilustre e corajoso, mostrais não lhe ser inferior em nada.Procurai, porém, não agir inconsideradamente e comprecipitação; que a prudência seja vosso guia. Quanto a mim,sou de opinião que não devemos iniciar o movimento enquantonão tivermos conseguido um bom número de adeptos”. “Persas,— replicou Dario — se seguirdes os conselhos de Otanesestareis perdidos; perecereis miseravelmente. O engodo de umarecompensa levará logo alguém a denunciar-vos ao mago.Devíeis executar a empresa sozinhos e sem comunicá-la aoutros; mas como julgastes conveniente participá-la a muitos eenvolver-me também no vosso conluio, é forçoso que aexecutemos hoje mesmo.

Se tentardes adiá-la, eu vos afirmo que tomarei adianteira e irei, em pessoa, denunciá-la ao mago”.

LXXII — Testemunhando o ardor de Dario, Otanesredarguiu: “Já que nos forçais a apressar a execução do nossoplano e não nos permitis adiá-la, dizei-nos então como havemosde penetrar no palácio e atacar os usurpadores; pois sabeis tãobem quanto nós que há ali guardas por todos os cantos. De quemaneira poderemos burlar-lhes a vigilância?”

“Há coisas, Otanes, — volveu Dario — que não

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podemos conceber por palavras, mas somente por ações; háoutras, ao contrário, fáceis de explicar e das quais nada resultade positivo. Sabeis que não é difícil passar pelos guardas. Emprimeiro lugar, ninguém ousará, por uma questão de respeito etemor, impedir a entrada no palácio a pessoas da nossacategoria. Em segundo lugar, tenho um pretexto muito plausívelpara ali entrar: direi que venho da Pérsia e trago umacomunicação urgente para o rei, da parte de meu pai. Quando énecessário mentir, não devemos ter escrúpulo em fazê-lo. Osque mentem desejam a mesma coisa que os que dizem averdade: mente-se com o propósito de tirar algum proveitodisso; diz-se a verdade, também, tendo em vista algumavantagem e para conseguir impor confiança. Assim, embora nãoseguindo os mesmos caminhos, atingimos o mesmo fim. Se nãohouvesse nada a lucrar, seria indiferente àquele que diz averdade pregar antes uma mentira, ou ao que mente, dizer antesa verdade. O guarda que nos deixar passar de boa vontade, serárecompensado. Aquele que, ao contrário, tentar impedir-nos,será tratado, no mesmo instante, como inimigo. Penetraremosno interior do palácio e realizaremos nosso propósito”.

LXXIII — Tomando a palavra, assim falou Góbrias:“Que honra, meus amigos, há-de ser para nós reavermos oimpério, ou se não lograrmos êxito, perecermos de armas namão! Que vergonha para um persa obedecer a um medo, a ummago, ao qual tiraram as orelhas! Todos vós, que permanecestesao lado de Cambises e acompanhastes os sofrimentos que olevaram à morte, não esquecestes, sem dúvida, as imprecaçõesque ele dirigiu contra os Persas ao ver chegado o seu fim, e oque de mau lhes augurou se eles não se esforçassem pararecuperar a coroa. Então, nenhuma importância demos às suaspalavras, pois julgávamos que ele assim se expressava paratornar o irmão odiado. Agora, que a verdade foi revelada, soude opinião que devemos seguir o parecer de Dario e atacar, semperda de tempo, os usurpadores”. O alvitre de Góbrias foiunanimemente aprovado.

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LXXIV — Enquanto eles deliberavam, os magos, porcoincidência, também confabulavam entre si. Resolveramligar-se a Prexaspes, por saberem que Cambises o tratara demaneira indigna, matando-lhe o filho com uma flechada, e quesó ele era conhecedor da morte de Esmérdis, filho de Ciro, queele eliminara com suas próprias mãos. Além disso, nãoignoravam que os Persas o tinham em grande estima. Porconseguinte, mandaram chamá-lo, tudo fazendo paraconquistar-lhe as boas graças. Exigiram dele a palavra de honrade que não revelaria a ninguém o logro que haviam pregado aosPersas, guardando disso o máximo segredo, prometendo-lhe, emtroca, cumulá-lo de riquezas. Prexaspes comprometeu-se a fazero que desejavam. Diante disso, os magos propuseram-lhe subira uma torre e anunciar aos Persas convocados junto aos murosdo palácio, ser verdadeiramente Esmérdis, filho de Ciro, quereinava sobre eles, e não outro. Os magos assim agiam porconhecerem a grande influência de que aquele homem gozavaentre os Persas e por haver ele próprio declarado que Esmérdis,filho de Ciro, ainda vivia, sendo falsa a versão de sua morte,pela qual davam como responsável a ele, Prexaspes.

LXXV — Tendo Prexaspes se mostrado disposto a fazero que os magos desejavam, convocaram estes os Persas parareunião diante do palácio e fizeram Prexaspes subir a uma torrepara dirigir-lhes a palavra; mas este, esquecendopropositalmente o pedido dos magos, pôs-se a discorrer sobre agenealogia de Ciro desde Aquêmenes, e quando, finalmente,chegou a Ciro, fez a enumeração de todos os bens com que estehavia cumulado os Persas. Depois desse preâmbulo, reveloutoda a verdade, que até ali havia ocultado, disse ele, porque lheera perigoso confessar o que realmente se passara; mas que nascircunstâncias presentes via-se forçado a fazê-lo. Por fim,confessou ter executado Esmérdis por ordem de Cambises edeclarou que eram os magos que reinavam atualmente.Augurando grandes males para os Persas, caso eles nãorecuperassem o império e não se vingassem dos magos,

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precipitou-se do alto da torre, de cabeça para baixo. Assimmorreu Prexaspes, que durante toda a existência gozara dareputação de homem de bem.

LXXVI — Os sete Persas, tendo resolvido atacar semdemora os magos, marcharam em direção ao palácio, depois dehaverem dirigido preces aos deuses. Não sabiam ainda daaventura de Prexaspes, da qual só foram informados na metadedo caminho. Ante a notícia, interromperam a marcha paraconfabular e deliberar entre si. Otanes continuava a opinar peloadiamento da empresa, achando perigosa qualquer tentativa emsituação tão crítica; mas Dario achava que deviam agirimediatamente e executar sem delongas o que haviamplanejado. Discutiam ainda o assunto, quando avistaram setecasais de gaviões perseguindo dois casais de abutres,alcançando-os finalmente e estraçalhando-os com o bico e asgarras. Ante aquela cena, os Persas concordaram com Dario, echeios de confiança no presságio encaminharam-se para opalácio.

LXXVII — Ao chegarem às portas da habitação real,deu-se exatamente o que Dario previra: os guardas,respeitando-lhes a alta linhagem e de nada suspeitando,deixaram-nos passar, sem mesmo inquiri-los sobre o motivo queali os levava. Os conjurados agiam realmente pela mão dosdeuses Ao penetrarem no pátio do palácio encontraram oseunucos encarregados de apresentar ao rei as mensagens dosvisitantes. Os servos reais perguntaram logo a razão daquelavisita, e ameaçando os guardas por terem-nos deixado entrar,tentaram embargar-lhes os passos. Os sete conjurados,encorajando-se mutuamente, caíram de gládio em punho sobreos que pretendiam detê-los, e, matando-os, lançaram-se para oalojamento dos homens. Os dois magos estavam justamentedeliberando sobre o procedimento de Prexaspes.

LXXVIII — Chegando-lhes aos ouvidos os gritos dos

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eunucos, precipitaram-se para o local do tumulto, e vendo o quese passava procuraram pôr-se em guarda. Um deles lançou mãode um arco, e o outro de uma lança. Achando-se, porém, oinimigo já muito próximo, o arco tornou-se inútil a quem obrandia; mas o outro mago procurou defender-se com a lança,conseguindo ferir Aspatino na coxa e Intafernes num dos olhos.Este veio a perder, em conseqüência, o olho atingido, mas nãomorreu do ferimento. O mago que empunhava o arco, vendo ainutilidade da arma, fugiu para um quarto que se comunicavacom o alojamento dos homens e tentou fechar a porta. Dario eGóbrias atiraram-se sobre ele. Góbrias conseguiu agarrá-lo, mascomo era grande a escuridão ali reinante, Dario receou ferirGóbrias, ficando bastante embaraçado, sem saber o que fazer.Vendo-o hesitante, Góbrias perguntou-lhe por que nãoeliminava de uma vez o usurpador. “Receio ferir-te” —respondeu Dario. “Ataca, — volveu Góbrias — ainda quevenhas a ferir-me”. Dario obedeceu, e, num golpe feliz, atingiuapenas o mago.

LXXIX — Depois de haverem matado os magos,cortaram-lhes a cabeça, e deixando na cidadela os doiscompanheiros feridos, não somente para guardá-la, comoporque não estavam em condições de acompanhá-los, os outroscinco conjurados, levando nas mãos as cabeças dosusurpadores, deixaram o palácio dando gritos de vitória efazendo enorme tumulto. Chamando em altos brados os Persas,relataram-lhes o que se tinha passado, mostrando-lhes ascabeças decepadas dos dois intrujões e atacando, ao mesmotempo, todos os magos que se apresentavam diante deles. OsPersas, informados do golpe dos sete conjurados contra osastutos magos, resolveram secundar-lhes a ação, edesembainhando a espada puseram-se a atacar impiedosamentetodos os magos que encontravam; e se a noite não viesseinterromper o massacre, não escaparia um só.

Os Persas celebram com muita solenidade essa data,

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realizando uma de suas maiores festas, denominada Magofonia.Nesse dia não é permitido aos magos aparecer em público,ficando eles encerrados em suas casas.

LXXX — Cinco dias depois do restabelecimento daordem, os que se tinham sublevado contra os usurpadoresreuniram-se em conselho para tratar do estado atual dosnegócios. Suas deliberações, embora pareçam inverossímeis aalguns Gregos, não são por isso menos verdadeiras. Otanes,exortando os Persas a exercerem a autoridade em comum, assimlhes falou: “Sou de parecer que não se deve, de agora em diante,confiar a administração do Estado a um único homem, pois ogoverno monárquico não é nem suave nem bom. Vistes o graude insolência a que chegou Cambises, e acabastes deexperimentar a autoridade do mago. Como, pois, poderá ser amonarquia uma boa forma de governo, se o monarca faz o quequer, sem prestar conta dos seus atos? O homem mais virtuoso,elevado a essa alta dignidade perderá logo todos os seus bonspredicados. A inveja é inata nos homens, e as regaliasdesfrutadas com um monarca levam-no à insolência. Ora, quempossui esses dois vícios adquire todos os outros, e comete umainfinidade de crimes, ora por excesso de orgulho, ora por inveja.Um tirano devia ser um homem exemplar, já que goza de todaespécie de regalias; mas é o contrário que se verifica, e seussúditos sabem-no muito bem por experiência. O tirano odeia aspessoas honestas e parece deplorar que elas ainda existam.Somente com os maus se sente bem. Presta facilmente ouvido àcalúnia e acolhe bem os delatores; e o que é mais engraçado, seo louvamos com moderação, ofende-se; se o louvamos comefusão, ofende-se do mesmo modo, atribuindo esse gesto ainteresses mesquinhos. Finalmente, temos o mais terrível dosinconvenientes: infringe as leis da pátria, comete violênciascontra as mulheres e manda matar quem muito bem lhe pareça,sem processo ou qualquer outra formalidade. Não se dá omesmo com o governo democrático, que chamamos isonomia,que soa como o mais belo de todos os nomes. Neste, não é

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permitido nenhum dos abusos inerentes ao Estado monárquico.O magistrado é eleito por sorte, e torna-se responsável pelosseus atos administrativos, sendo todas as deliberações tomadasem comum. Sou, por conseguinte, pela abolição do governomonárquico e pela instauração do governo democrático, poistodo poder emana do povo”.

LXXXI — Tomando a palavra, Megabizo opinou pelaoligarquia. “Penso, como Otanes, que é preciso acabar com amonarquia e aprovo tudo o que ele acaba de expor; mas quandoele nos exorta a colocarmos o poder supremo nas mãos do povo,afasta-se do bom caminho. Nada mais insensato e insolente doque uma multidão inconseqüente. Procurando evitar-se ainsolência de um tirano, cai-se sob a tirania do povo sem freios.Haverá coisa mais insuportável? Quando o soberano toma umamedida, sabe bem por que a toma; o povo, ao contrário, não usaa inteligência nem a razão. E que de outro modo poderia ser, sejamais recebeu instrução e não sabe o que é belo nem o que émais conveniente? Lança-se num negócio às cegas, semjulgá-lo, qual uma torrente que tudo arrasta. Possam os inimigosdos Persas adotar a democracia! Quanto a nós, escolhamoshomens virtuosos e coloquemos o poder em suas mãos. Achoque podemos incluir-nos nesse número, e, de acordo com alógica, os homens sensatos e esclarecidos só podem darexcelentes conselhos”.

LXXXII — Dario falou em seguida, formulando seuparecer nos seguintes termos: “A opinião de Megabizo sobre ademocracia me parece justa e muito sensata, mas discordoquanto ao que ele afirmou em favor da oligarquia. Das trêsformas de governo que se podem propor — o democrático, ooligárquico e o monárquico — considerados no seu graupossível de perfeição, o monárquico me parece muito superioraos outros dois, pois é opinião geral não haver nada melhor doque o governo de um único homem, quando este é um homemde bem. Em tais condições, ele não poderá deixar de governar

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de uma maneira irrepreensível. Todas as deliberações serãosecretas, e o inimigo não terá nenhum conhecimento delas. Omesmo não acontece com a oligarquia. Sendo o governocomposto de vários indivíduos aplicados ao serviço do bempúblico, surgem freqüentemente entre eles inimizadesparticulares e violentas. Cada um quer ser o mais poderoso efazer prevalecer sua opinião; daí os ódios recíprocos, assedições; e destas ao morticínio, e, finalmente, à monarquia. Aíestá por que o governo de um só é preferível ao de muitos. Poroutro lado, quando o povo manda, é impossível nãoimplantar-se a desordem no Estado. A corrupção, uma vezestabelecida, não produz ódios entre os maus; ao contrário,une-os por laços de estreita amizade. Os que desmoralizam oEstado agem de combinação e se sustentam mutuamente;continuam a fazer o mal até erguer-se um defensor do povo parareprimi-los. Este que a eles se opõe torna-se, então, admirado, eessa admiração faz dele um monarca — o que prova ainda que amonarquia é a melhor forma de governo. Em conclusão, deonde nos vem a liberdade? De quem a obtemos? Do povo, daoligarquia ou de um monarca? Pois se é verdade que por umúnico homem fomos libertados da escravidão, concluo sernecessário mantermos o governo monárquico. Aliás, nunca sedeve infringir as leis da pátria quando elas são verdadeiramentesábias, pois isso seria perigoso”.

LXXXIII — Foram essas as três opiniões expostas,recebendo a última a aprovação dos outros quatro chefesinsurrectos. Então, Otanes, que desejava ardentementeestabelecer a isonomia, vendo seu parecer rejeitado ergueu-seno meio da assembléia e falou assim: “Persas, já que é precisoque um de nós se torne rei; que a sorte ou o sufrágio da naçãocoloque um de nós no trono; ou que por qualquer outro meio aele suba um de nós, não me tereis como concorrente. Nãodesejo nem mandar nem obedecer; cedo-vos o lugar, com acondição, porém, de não ficar sob a autoridade de nenhum devós, nem eu, nem meus parentes, nem os meus descendentes,

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até o fim dos tempos”.

Os outros seis acederam ao pedido, com o que ele seretirou da assembléia, não lhes fazendo, como havia prometido,nenhuma concorrência, sendo essa a razão pela qual sua famíliaé hoje a única, em toda a Pérsia, a gozar de plena liberdade, nãose submetendo a ninguém, senão quando lhe apraz, contantoque não transgrida as leis estabelecidas do país.

LXXXIV — Os outros seis Persas confabularam sobre amaneira mais justa de eleger um rei, ficando, antes de tudo,deliberado que aquele que dentre eles obtivesse a soberaniaconcederia a Otanes e a seus descendentes, em caráter perpétuo,a túnica meda, fazendo-lhe também dádivas consideradas pelosPersas como as mais honrosas. Tal distinção lhe foi concedidapor haver sido ele o primeiro a formular o projeto de destronar omago e a reuni-los para a execução do mesmo. Essas honrasvisavam particularmente o companheiro, mas elaboraram parasi próprios leis especiais e generosas. Ficou estabelecido quetodos os sete teriam entrada franca no palácio, sem necessidadede se fazerem anunciar, exceto quando o soberano estivesse noleito com a esposa; que o rei não poderia desposar uma mulherque não pertencesse à família de qualquer dos que haviamdestronado o mago. Quanto à maneira de eleger o novo rei,ficou decidido que, no dia seguinte pela manhã entrariam juntosa cavalo na cidade, sendo reconhecido como rei aquele cujocavalo relinchasse em primeiro lugar, ao nascer do sol(5).

LXXXV — Dario possuía um hábil escudeiro chamadoEbares. Ao deixar a assembléia, dirigiu-se a ele, dizendo-lhe:“Ebares, ficou decidido entre nós, que amanhã pela manhãmontaremos a cavalo, e que será rei aquele cujo cavalorelinchar primeiro. Emprega, pois, tua habilidade, para que euobtenha esse posto supremo”. “Senhor, — respondeu Ebares —se a vossa eleição depende unicamente disso, tende ânimo e nãovos preocupeis; ninguém senão vós será o escolhido; disponho

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de um segredo infalível”. “Se o possuís verdadeiramente, —volveu Dario — chegou o momento de fazeres uso dele; não háque hesitar; amanhã nossa sorte estará decidida”.

Ao cair da noite, Ebares tomou uma das éguas pela qualmais se inclinava o cavalo de Dario e conduziu-a a umarrabalde; ali amarrou-a, e trazendo o cavalo, fê-lo passar váriasvezes em torno dela, permitindo, afinal, o coito entre ambos.

LXXXVI — No dia seguinte, ao alvorecer, os seisPersas encontraram-se a cavalo no local combinado, seguindopara a cidade. Ao chegarem ao arrabalde, no local exato onde,na noite precedente, a égua estivera amarrada, o cavalo deDario empinou-se e pôs-se a relinchar. No mesmo instante, umrelâmpago cortou o espaço e ouviu-se um trovão, embora o céuestivesse sereno. Esses sinais imprevistos, parecendo revelarque o céu estava de acordo com Dario, foram encarados por esteúltimo como uma saudação. Seus companheiros, descendo deseus cavalos, prosternaram-se a seus pés, reconhecendo-o comorei(6).

LXXXVII — Tal foi, segundo uns, o meio de que seserviu Ebares para tornar seu amo soberano dos Persas. Outros,porém, contam o fato de maneira diversa, havendo assim duasversões sobre o mesmo, na Pérsia. Dizem que Ebares passou amão sobre as partes sexuais da égua, mantendo-a oculta nacintura; e que no momento em que o sol começou a despontar eos cavalos se punham em marcha, retirou-a dali, aproximando-ado focinho do cavalo de Dario. O animal, sentindo o cheiro dacompanheira, pôs-se a relinchar.

LXXXVIII — Dario, filho de Histaspes, foi, assim,proclamado rei, e todos os povos da Ásia subjugados por Ciro edepois por Cambises a ele se submeteram, com exceção dosÁrabes. Estes, na verdade, nunca foram escravos dos Persas,mas seus aliados. Haviam simplesmente facultado passagem aCambises para este penetrar no Egito. Se a isso se opusessem, o

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exército persa jamais teria podido invadir aquele país. Foi commulheres persas que Dario contraiu seus primeiros matrimônios:desposou duas filhas de Ciro — Atossa e Aristona. Atossa haviasido mulher de Cambises e, depois, do mago usurpador;Aristona era ainda virgem quando ele a tomou para mulher.Pouco depois, uniu-se a Pármis, filha de Esmérdis, filho deCiro, e a Fédima, filha de Otanes e que havia descoberto aimpostura do mago. Seu poder consolidou-se sob todos osaspectos. Começou por mandar erigir em pedra sua estátuaeqüestre, com esta inscrição: “Dario, filho de Histaspes, subiuao trono imperial dos Persas pela virtude do seu cavalo (o nomedeste estava indicado na inscrição) e o engenho de Ebares, seuescudeiro”.

LXXXIX — Feito isso, dividiu o império em vinteEstados, que os Persas denominam satrapias, estabelecendo emcada um deles um governador. Regulamentou o tributo que cadanação deveria pagar-lhe, e, para esse fim, incluía em cada naçãoos povos limítrofes. Às yezes, porém, passava por cima dosvizinhos, incluindo, num mesmo departamento, povos afastadosum do outro.

Eis como distribuiu ele as satrapias e comoregulamentou os tributos, que lhe deveriam ser pagos todos osanos. Ordenou que os que deviam pagar sua contribuição emprata, a pagassem ao peso do talento babilônio, e os quetivessem de pagá-la em ouro, o fizessem ao peso do talento daEubéia. O talento babilônio vale setenta minas da Eubéia.

No reinado de Ciro, e mesmo no de Cambises, nadatinha sido regulamentado nesse sentido; dava-se simplesmenteao rei um donativo. Esses impostos e outras exigênciassemelhantes levaram os Persas a dizer que Dario era umcomerciante, Cambises um senhor, e Ciro um pai: o primeiro,porque transformava tudo em dinheiro; o segundo, por ser cruele negligente; o terceiro, enfim, por ser benévolo e ter cumulado

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seus súditos do maior número de benefícios possível.

XC — Os Iônios, os Magnetas da Ásia, os Eólios, osCários, os Lícios, os Mílios e os Panfílios compunham oprimeiro departamento e pagavam, todos juntos, quatrocentostalentos de prata. Os Mísios, os Lídios, os Lasônios, os Cabáliose os Higênios eram taxados em quinhentos talentos de prata ecompunham a segunda satrapia. Os habitantes do Helesponto,localizados à direita de quem navega daquele lado, os Frígios,os Trácios da Ásia, os Paflagônios, os Mariandínios e os Síriosconstituíam o terceiro departamento e pagavam trezentos esessenta talentos. Os Cilícios davam todos os dias, comotributo, um cavalo branco, perfazendo trezentos e sessenta porano, e mais quinhentos talentos de prata, dos quais cento equarenta eram empregados na manutenção da cavalaria, guardado país, entrando os trezentos e sessenta restantes para os cofresde Dario. Essa nação constituía o quarto departamento.

XCI — O quinto departamento começava na cidade dePosideu, construída por Anfíloco, filho de Anfiarau, nasfronteiras da Cilícia e da Síria, estendendo-se até o Egito, semcompreender o país dos Árabes, isento de qualquer tributo. Essedepartamento pagava trezentos e cinqüenta talentos, e incluíatambém toda a Fenícia, a Síria da Palestina e a ilha de Chipre.

Do Egito, dos Líbios vizinhos do Egito, de Cirene e daBarcéia, que estavam sob o governo do Egito, vinham comotributo, para os cofres do rei, setecentos talentos, sem contar oproduto da pesca do lago Méris e setecentos talentos em trigo,pois eram fornecidas cento e vinte mil medidas de trigo aosPersas componentes da guarnição do castelo branco de Mênfis eàs tropas auxiliares que estavam a seu soldo. Era esta a sextasatrapia. A sétima compreendia os Satágidas, os Gandários, osDadices e os Aparitos, nações submetidas a um mesmo governoe pagando cento e setenta talentos. Susa e o resto do país dosCisseus constituíam o oitavo departamento e pagavam ao

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soberano trezentos talentos por ano.

XCII — Da Babilônia e do resto da Assíria vinham-lhemil talentos de prata e quinhentos jovens eunucos, sendo esse onono departamento. De Ecbatana e do resto da Média, dosParicánios e dos Ortocoribântios, que compunham o décimodepartamento, tirava o rei quatrocentos e cinqüenta talentos. OsCáspios, Pausiceus, os Pantimátios e os Daritos constituíam adécima primeira satrapia, pagando, todos juntos, duzentostalentos. A décima segunda compreendia toda a região que seestendia até os Egles, a começar do país dos Báctrios, e rendiaum tributo de trezentos e sessenta talentos.

XCIII — O décimo terceiro departamento pagavaquatrocentos talentos. Estendia-se da Pactícia, da Armênia e dospaíses vizinhos, ao Ponto Euxino. Os Sagarteus, os Sarangeus,os Tamaneus, os Outícios, os Mícios e os habitantes das ilhasdo mar da Eritréia, para onde o rei enviava aqueles que caíamem seu desfavor, pagavam um tributo de seiscentos talentos ecompreendiam a décima quarta satrapia. A décima quintaabrangia os Sácios e os ... [Cáspios](7), que pagavam duzentose cinqüenta talentos. A décima sexta se compunha dos Partas,dos Corásmios, dos Sogdeus e dos Ários, que contribuíam comtrezentos talentos.

XCIV — Os Paricânios e os Etíopes asiáticos formavama décima sétima satrapia, pagando quatrocentos talentos. Adécima oitava compreendia os Matianeus, os Sapiros e osAlaródios, taxados em duzentos talentos. Os Mocos, osTibarênios, os Mácrons, os Misionecos e os Mardas pagavamtrezentos talentos e constituíam o décimo nono departamento.Os Indianos, o mais numeroso de todos os povos queconhecemos, pagavam um tributo igual à soma de todos osoutros juntos, estando taxados em trezentos e sessenta talentosde palhetas de ouro. Constituíam eles o vigésimo departamento.

XCV — Se quisermos reduzir ao talento da Eubéia todo

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esse dinheiro pago ao peso do talento babilônio, teremos novemil oitocentos e oitenta talentos; e se reduzirmos o valor doouro, treze vezes superior ao da prata, ao talento da Eubéia,teremos quatro mil seiscentos e oitenta talentos de pó de ouro.Reunindo todas essas somas, ver-se-á que Dario retirava porano um tributo de quatorze mil quinhentos e sessenta talentos daEubéia, sem incluir outras somas menores não mencionadas.

XCVI — Tal a renda que Dario extraía da Ásia e de umapequena parte da Líbia. Criou, em seguida, impostos para asilhas, bem como para os povos que habitavam a Europa até aTessália. E eis como agregava essa renda ao seu tesouro:mandava fundir o ouro e a prata em vasilhas de barro, e quandoestas estavam cheias retirava o metal já resfriado. Quandoprecisava de dinheiro, mandava cunhar tantas moedas quantasfossem necessárias na ocasião.

XCVII — Tais os diferentes departamentos e osimpostos a eles aplicados. A Pérsia foi a única província nãoincluída por mim na categoria dos países tributários, porquantoestava isenta de impostos; os Persas apenas faziam donativos. Omesmo acontecia com os Etíopes, vizinhos do Egito, queCambises subjugara na sua expedição contra osEtíopes-Macróbios, e com os habitantes da cidade sagrada deNisa, que celebram a festa em honra de Baco. Esses Etíopes eseus vizinhos cultivam a mesma lavoura que osIndianos-Calátios e residem em habitações subterrâneas. Osdois povos levavam, de três em três anos, ao rei, duas medidasde ouro fino, duzentos troncos de ébano e vinte dentes deelefante. Além disso, presenteavam-no com cinco jovensetíopes, e tal costume ainda se observava no meu tempo.

Os povos da Cólquida estabeleciam, eles próprios,aquilo com que deviam contemplar o rei, o mesmo se dandocom os seus vizinhos até o Cáucaso; pois todo o país até areferida montanha estava sob o domínio dos Persas; mas os

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povos que habitam ao norte do Cáucaso não se incluem nonúmero deles. Os habitantes da Cólquida adotaram o costumede enviar, de cinco em cinco anos, ao soberano, cem rapazes ecem raparigas, presente que ainda faziam em meu tempo. OsÁrabes presenteavam-no também, todos os anos, com miltalentos de incenso.

XCVIII — Quanto à grande quantidade de pó de ouroque os Indianos pagavam, segundo já disse, como tributo ao reida Pérsia, vejamos como a obtinham. A parte das Índias que seestende para o levante é bastante arenosa. A leste, o país édeserto, devido justamente à grande quantidade de areia. Sob adesignação de Indianos estão compreendidos vários povosfalando idiomas diferentes, uns nômades e outros sedentários.Há os que habitam os pântanos formados pelostransbordamentos do rio e que se alimentam de peixe cru,pescado em batéis feitos de caniços. Cortam o caniço de nó emnó, construindo com cada pedaço uma barquinha. Seus trajessão confeccionados com a fibra de uma planta que cresce àbeira dos riachos. Colhem-na e, depois de bem batida,entrelaçam as fibras à maneira de uma esteira, revestindo-secom elas à semelhança de uma couraça.

XCIX — Os outros Indianos que habitam a região aleste são nômades e alimentam-se de carne crua. Chamam-nosPadeus. Entre as leis que se lhes atribuem, cita-se a seguinte:Quando alguém entre eles cai doente, se é homem, os parentesmais próximos matam-no, alegando o fato de a doença fazê-loemagrecer e tornar-lhe a carne menos saborosa. De nada vale aodoente negar que esteja tão doente como parece; é logoestrangulado impiedosamente pelos parentes, que se regalamcom a sua carne. Se é uma mulher que adoece, tratam-na damesma maneira. Matam também os que atingem idadeavançada; mas isso raras vezes acontece, pois têm sempre ocuidado de matar os que adoecem.

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C — Há outros Indianos com hábitos e costumesdiferentes. Não matam nenhum animal; nada semeiam; nãopossuem moradia e se alimentam de ervas. Existe na região poreles habitada uma espécie de grão que a terra produz por simesma. Esse grão, um pouco maior que o do milho, estáencerrado numa casca. Os habitantes colhem-no, fervem-nocom a casca e comem-no em seguida. Quando qualquer dessesIndianos adoece, retira-se para um lugar deserto e ali se deita,sem que ninguém dele se ocupe, quer durante a doença, querquando morre.

CI — Esses Indianos têm relações em público com asmulheres como os animais. São todos da mesma cor, que muitoaproxima da dos Etíopes. O líquido seminal, entre eles, não ébranco, como acontece entre os outros homens, mas como a suaprópria pele e também semelhante ao dos Etíopes.Encontram-se eles localizados numa região distante dos Persas,do lado do sul, e nunca foram submetidos por Dario.

CII — Existem ainda outros Indianos, habitando aregião norte, nas vizinhanças das cidades de Caspátira ePactícia, e cujos costumes muito se assemelham aos dosBáctrios. São tidos como os mais bravos entre todos os de suaraça e utilizados sempre pelos outros na busca do ouro. Há nasproximidades da região que habitam zonas que os areais tornaminabitáveis. Encontram-se ali, entre as areias, formigas maioresdo que uma raposa, o que se pode comprovar pelas que existemno viveiro do rei da Pérsia, caçadas na referida região.

Essas formigas têm a forma das que encontramos naGrécia. Cavam abrigos subterrâneos, e para fazê-lo erguem aterra da mesma maneira que as nossas; e as areias por elasrevolvidas estão sempre cheias de ouro. Os Indianos sãoenviados para pesquisar essas areias nos desertos. Cada umdeles atrela três camelos, colocando um macho de cada lado eno meio uma fêmea, na qual montam. Têm, todavia, o cuidado

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de servir-se das que amamentam, que separam das criasenquanto novas. Seus camelos não são menos ligeiros do que oscavalos, nas jornadas, e suportam cargas muito maiores.

CIII — Não tenciono dizer aqui o que seja o camelo; osGregos conhecem muito bem esse animal. Direi somente o quesobre ele ignoram. O camelo tem duas coxas e dois joelhos emcada perna traseira, e o membro passa entre as coxas,voltando-se para o lado da cauda.

CIV — Escolhidos e atrelados os camelos da maneiraque me referi, os Indianos dirigem-nos em marcha reguladapara os lugares em que sabem existir ouro, onde geralmentechegam quando o sol já vai bem alto, pois é justamente nashoras mais quentes do dia que as formigas, procurandoabrigar-se debaixo da terra, revolvem a areia. Nessa região o solé mais ardente pela manhã do que ao meio-dia, ao contrário doque se verifica nas outras partes; e os habitantes conservam acabeça coberta até a hora em que termina, entre nós, o mercado.Ao meio-dia, a temperatura ali pouco difere da dos demaispaíses, e daí em diante começa a declinar, sendo a tarde tãofresca quanto a manhã entre os outros povos. À hora de dormirjá se goza de um agradável frescor.

CV — Chegando aos locais onde existe ouro, osIndianos enchem de areia os sacos que trouxeram para esse fim,e se retiram às pressas, porque, segundo os Persas, as formigas,advertidas da sua presença pelo cheiro, saem em suaperseguição. Não há, dizem eles, animal tão veloz quanto essasformigas, e se os Indianos não fogem prontamente, são logoapanhados. É por esse motivo que trazem os camelos machos,menos ligeiros, atrelados às fêmeas. Não fora esse cuidado, nahora da retirada eles não correriam tanto quanto elas,tornando-se presa fácil. Quanto às fêmeas, a lembrança dosfilhotes e o desejo de a eles reunir-se dão-lhes novas forças paracorrer. É assim que, afirmam os Persas, os Indianos obtêm a

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maior parte do seu ouro; a quantidade que extraem das minas édiminuta.

CVI — A Índia é, como disse há pouco, a última regiãohabitada a leste. Os quadrúpedes e os voláteis ali são bemmaiores que nos outros países, mas os cavalos são menores doque os da Média. O ouro existe em abundância nesse país.Tiram-no das minas, dos rios, que o arrastam em suas águas, eda maneira a que me referi. Encontram-se também nessa regiãoárvores selvagens, produzindo, como fruto, uma espécie delã(8), mais bonita e melhor que a das ovelhas. Os Indianosvestem-se com essa lã, que colhem nas mencionadas árvores.

CVII — Do lado do sul, a Arábia é o último dos paíseshabitados. É também o único onde encontramos o incenso(9), amirra, a canela, o cinamomo e o ládano. Os Árabes colhemesses produtos com muito trabalho, exceto a mirra. Para colhero incenso, queimam as árvores que produzem uma gomadenominada estirace, vendida pelos Fenícios aos Gregos.Queimam essa goma, a fim de afugentar uma multidão depequenas serpentes voadoras de várias espécies, quepermanecem nas árvores. São as tais serpentes que voam embandos para o Egito. Somente a fumaça do estirace é capaz deafastá-las do seu pouso habitual.

CVIII — Dizem os Árabes que todo o país estaria cheiodessas serpentes se não lhes acontecesse aquilo que sabemosacontecer às víboras. A Providência divina, na sua supremasabedoria, determinou que todos os animais tímidos e queservem de alimento fossem muito fecundados para que oconsumo deles feito não causasse o desaparecimento da espécie,e que, ao contrário, os animais nocivos e ferozes fossem muitomenos prolíficos. A lebre encontra por toda parte inimigos; osoutros animais, os pássaros, os homens, lhe fazem guerra; mas,em compensação, é extraordinariamente fecunda. É de todos osanimais aquele cuja fêmea concebe já grávida, criando ao

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mesmo tempo filhotes ainda muito tenros e outros já peludos. Aleoa, ao contrário, um animal forte e feroz, só concebe uma vezna vida, e dá apenas uma cria, pois seu útero é expelidojuntamente com o fruto. A razão disso está em que, quando oleãozinho começa a mexer-se no ventre materno, como possuigarras mais aguçadas do que qualquer outro animal, vaidilacerando o útero daquela que o gera, até que, quando a leoadá à luz não mais o possui.

CIX — Se as víboras e as serpentes voadoras da Arábianão morressem senão de morte natural, a existência se tornariaimpossível para os homens; mas acontece que, quando o machoe a fêmea se unem no coito, esta, no momento do espasmo,agarra fortemente a garganta do companheiro, estrangulando-oe devorando-o em seguida. Assim perece o macho. A fêmearecebe, por sua vez, a punição: os filhotes, no momento denascer, roem-lhe o útero para abrir passagem, vingando, dessamaneira, a morte do pai.

As outras serpentes, que não fazem absolutamente malaos homens, põem ovos, dos quais vemos sair uma multidão depequenas serpentes. Há, como ninguém ignora, víboras por todaa terra, mas só na Arábia se encontram serpentes aladas, motivopor que seu número é sempre pequeno em relação às outras.

CX — Mostramos como os Árabes colhem o incenso.Vejamos agora como obtêm a canela. Quando saem à suaprocura, cobrem o corpo inteiro, e mesmo o rosto, exceto osolhos, com peles de boi e de cabra. A canela cresce em lagospouco profundos, em torno dos quais pululam animais aladossemelhantes aos morcegos. Esses animais são dotados de grandeforça e emitem gritos agudos. Os Árabes têm o cuidado deafugentá-los, protegendo os olhos contra sua terríveis picadas, ecom essa precaução colhem a canela.

CXI — O cinamomo é colhido de uma maneira aindamais estranha. Os próprios Árabes não saberão dizer de onde

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esse produto é originário, nem qual a terra que se presta à suacultura. Alguns julgam-no originário do país onde Baco foicriado. Dizem que grandes pássaros vão procurar ali essascascas a que chamamos cinamomo(10), nome transmitido pelosFenícios, levando-as para os ninhos construídos com lodo emmontanhas escarpadas, onde nenhum homem pode subir. Paraobter essas cascas de cinamomo, os Árabes — dizem —servem-se deste artifício: tomam da carne de vaca, de burro e deoutros animais mortos, cortam-na em grandes pedaços ecolocam-nos o mais perto possível dos ninhos, afastando-se emseguida. Os pássaros caem sobre a presa e arrastam-na para osninhos; mas como estes não são bastante sólidos parasustentá-los, desfazem-se e caem por terra. Os Árabes correm aapanhar as cascas de cinamomo, que depois levam para outrospaíses.

CXII — O ládano é colhido de maneira ainda maissurpreendente. Embora odorífero, procede de um lugar de odordesagradável: extraem-no da barba dos bodes e das cabras, talqual a goma que escorre lentamente das árvores. Empregam-nona composição de vários perfumes, e é principalmente com eleque os Árabes se perfumam.

CXIII — Os Árabes possuem duas espécies de carneirosde porte admirável e que não encontramos em outras partes.Uma das espécies possui cauda longa, medindo cerca de trêscôvados de comprimento. Se a deixassem arrastar pelo chãoadviriam úlceras, porque o contínuo atrito contra a terraacabaria ferindo-a. Os pastores do país, não ignorando isso,fazem pequenos carros nos quais prendem a cauda dessesanimais, evitando assim que elas rocem contra o chão. A outraespécie possui uma cauda de um côvado de largura.

CXIV — A Etiópia estende-se do ocidente da Arábiapara o sul, sendo o último dos países habitados. Produz grandequantidade de ouro, elefantes monstruosos, toda espécie de

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árvores selvagens e o ébano. Os homens ali são de grandeestatura, belos, bem feitos e vivem muito tempo.

CXV — São essas as partes extremas da Ásia e da Líbia.Quanto às da Europa, para ocidente, nada posso dizer comsegurança, e nada posso afirmar sobre a existência de um rioque os bárbaros denominam Erídano e que se lança no mar doNorte, e do qual, segundo dizem, nos vem o âmbar. Muitomenos conheço as ilhas Cassitérides, de onde trazem o estanho.O próprio nome do rio indica ser duvidosa sua existência.Erídano não é, absolutamente, um nome bárbaro, mas um nomegrego inventado por algum poeta. Aliás, jamais encontreialguém que me dissesse, como testemunha ocular, que mar éesse situado naquela região da Europa. O que há de verdade éque o estanho e o âmbar nos vêm daquele extremo do mundo.

CXVI — Consta existir ouro em abundância no norte daEuropa, mas não saberei dizer como se pode encontrá-lo.Afirma-se, entretanto, que os Arimaspos, que possuem um sóolho, subtraem esse ouro aos Grifãos; mas não posso admitirque existam homens que nascem com um só olho, sendo emtudo o mais semelhantes aos outros homens. De qualquermaneira, parece que os extremos da terra encerram o que há-demais belo e mais raro no mundo.

CXVII — Há na Ásia uma planície cercada de todos oslados por uma montanha que possui cinco saídas. Essa planíciepertenceu outrora aos Corásmios e fica situada nas fronteiras dopaís, limitando-se igualmente com as terras dos Hircânios, dosPartas, dos Sarangeus e dos Tamaneus; mas com o domínio dosPersas, passou a pertencer ao soberano destes.

Da montanha a que nos referimos corre um grande riochamado Aces. O leito desse rio estendia-se outrora por umadas gargantas, e espraiando-se por vários lados, regava as terrasdos mencionados povos; mas com o domínio dos Persas, eis oque aconteceu: O rei mandou construir, em cada uma das

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gargantas, barreiras e represas, e a água, não tendo mais saída,espraia-se constantemente pela planície, transformando-a numvasto mar. Não podendo mais servir-se dessas águas, comofaziam outrora, os referidos povos ficaram expostos às pioresdificuldades. É verdade que ali chove bastante no Inverno, masé no Verão que eles têm mais necessidade de água para o cereale o sésamo que semeiam. Por conseguinte, quando vêem que éde todo impossível obtê-la, vão, juntamente com as esposas, àprocura dos Persas, e diante do palácio põem-se a lamentar-seem altos brados e a pedir-lhes auxílio. Compreendendo suaaflição, o rei ordena a abertura da represa do lado dos que maisnecessitam de água, e quando suas terras estão suficientementeregadas, a represa é novamente fechada. Essa operação serepete do lado dos outros necessitados; mas, segundo ouvidizer, o soberano exige, para satisfazê-los, grandes somas dedinheiro, além de impostos.

CXVIII — Intafernes, um dos sete Persas que haviamconspirado contra o mago, tornou-se culpado de uma injúria quelhe acarretou a pena de morte. Logo depois da sublevação, quisele entrar no palácio para falar ao novo soberano, pois ficaraestabelecido entre os sete comparsas que todos eles teriamentrada franca na residência real, sem formalidades, a menosque o soberano estivesse com alguma de suas esposas.Intafernes quis entrar no palácio sem se fazer anunciar, cientedo direito adquirido, mas os guardas da porta e o introdutor lhebarraram o caminho, alegando encontrar-se o rei com uma desuas mulheres. Julgando que lhe mentiam, Intafernes sacou dacimitarra e decepou-lhes o nariz e as orelhas, atando-os aobridão do cavalo e passando-os em torno do pescoço dasvítimas, afastando-se em seguida.

CXIX — As vítimas apresentaram-se ao rei,expondo-lhe a razão pela qual haviam sido maltratados daquelaforma. Receando que semelhante violência tivesse sidopraticada de combinação com os outros cinco, Dario chamou-os

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à sua presença, um de cada vez, sondando-os em particular,para saber se aprovavam tal conduta. Quando chegou àconclusão que o caso se passara à revelia dos outros, tendomotivos para acreditar que Intafernes tramava uma revolta comseus parentes, mandou prendê-lo, a ele, aos filhos e toda afamília, e pô-los a ferros, condenando-os à morte.

A mulher de Intafernes dirigia-se todos os dias às portasdo palácio, desesperada, soltando gritos comovedores. Seupranto e sua perseverança em prol do perdão para os seustocaram o coração do soberano, que fez chegar a ela, por um deseus auxiliares, esta mensagem: “O rei Dario está disposto aconceder o perdão a um dos prisioneiros. Podes escolher entreos de tua família aquele a quem desejas livrar do suplício”.Após um momento de reflexão, ela respondeu: “Se o rei meconcede a vida de um dos meus parentes, escolho meu irmão,de preferência a todos os outros”. Dario ficou surpreendido coma resposta. “Que motivo — interrogou ele — te leva a preferirteu irmão a teu marido e teus filhos, que, naturalmente, tedeviam ser mais caros?” “Ó rei — tornou ela — se os céus opermitirem, poderei encontrar outro marido e ter outros filhos,enquanto que, como meu pai e minha mãe já estão mortos, nãomais poderei possuir outro irmão. Tal o motivo que me leva apreferi-lo aos outros”. Achando a resposta sensata eapreciando-a muito, Dario restituiu-lhe não somente o irmão,como também o primogênito, mandando executar os outros.Assim pereceu, logo no início do novo reinado, um dos sete quepara ele haviam contribuído.

CXX — Por ocasião do acidente sofrido por Cambises,acidente esse que o levaria à morte, passou-se o seguinte fato:Orestes, persa de nascimento, a quem Ciro havia confiado ogoverno de Sardes, concebeu o abominável projeto deaprisionar Polícrates de Samos e de eliminá-lo, embora nuncahouvesse dele recebido a menor ofensa, nem por palavras, nempor ações, e sem mesmo conhecê-lo. Mas eis a razão alegada

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pela maioria das pessoas que contam essa história:

Achando-se um dia à porta do palácio em companhia deMitróbates, governador de Dascílio, Orestes pôs-se a discutircom este, e enveredando o debate para a questão da coragempessoal Mitróbates assim se expressou: “Como podes julgar-teum homem corajoso, se ainda não tentaste te apoderar da ilha deSamos, embora ela fique contígua ao teu país e seja tão fácil desubjugar que um dos habitantes conquistou-a com quinzesoldados apenas e é agora seu soberano?” Orestes ficou, ao quedizem, tão chocado com essa censura, que buscou os meios paravingar-se, não tanto daquele que a fizera, mas de Polícrates, porcausa de quem a recebera.

CXXI — Outros, embora em menor número, contam terOrestes enviado um arauto a Samos para fazer uma solicitaçãoqualquer ao rei, não se dizendo absolutamente do que se tratava.Quando o emissário chegou, o soberano achava-se em repousonum leito no alojamento dos homens, tendo perto de siAnacreonte de Teos. Quando o emissário se aproximou,Polícrates, que se achava com o rosto voltado para a parede,fosse por mero acaso, fosse por querer manifestar desprezo porOrestes, não se dignou voltar-se para o emissário e nem mesmoresponder-lhe.

CXXII — Citam-se esses fatos como a causa da mortede Polícrates. Deixamos a cada qual a liberdade de acreditarnaquele que lhe parecer mais provável.

Conta-se ainda que Orestes, achando-se em Magnésia,sobre o Menandro, enviou a Samos um lídio de nome Mirso,filho de Gigés, com uma mensagem para Polícrates, cujo caráterconhecia. Polícrates foi o primeiro de todos os Gregos ao quesabemos, a pretender tornar-se senhor dos mares, seexcetuarmos Minos de Cnossa ou outro mais antigo do que estelegislador. Mas até onde alcança a história, Polícrates figuracomo o primeiro a querer apoderar-se da Iônia e de suas ilhas.

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Foi por haver tido conhecimento disso, que Orestes enviou-lhe aseguinte mensagem:

“ORESTES A POLÍCRATES

“Sou sabedor de que tens vastos projetos emmira, mas que teus recursos econômicos não favorecem arealização dos mesmos. Se seguires, porém, os meusconselhos, serás bem sucedido e colocarás a mimpróprio a coberto de todo perigo. Cambises nutre odesejo de me eliminar; soube-o de fonte segura.Concede-me abrigo no teu reino; recebe-me com os meustesouros, e a metade deles será tua. Com ela te tornarássenhor de toda a Grécia. De resto, se tens alguma dúvidasobre o valor dos meus tesouros, envia-me alguém da tuaconfiança, que eu lhos mostrarei”.

CXXIII — Encantado com o oferecimento de Orestes,Polícrates aceitou-o tanto mais depressa quanto imensa era asua paixão pelo dinheiro. Apressou-se em enviar-lhe Meândrio,seu secretário e filho de pai do mesmo nome. Esse Meândrio eranatural de Samos, e foi ele quem, algum tempo depois,consagrou ao templo de Juno o rico mobiliário dos aposentos dePolícrates.

Sabendo que Polícrates não deixaria de mandar alguémcontemplar os seus tesouros, Orestes encheu de seixos oitograndes cofres quase até as bordas, cobriu os seixos com peçasde ouro e fechou os cofres com cadeados. Meândrio chegou,contemplou as riquezas e regressou para informar a Polícratessobre o que vira.

CXXIV — O soberano aprestou-se para partirincontinênti, a fim de entender-se pessoalmente com Orestes, adespeito das advertências dos adivinhos e dos amigos. Aliás,sua filha tivera um sonho no qual julgava ver o pai arrebatadopelos ares, banhado pelas águas do céu e ungido pelo sol.

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Aterrada com a visão, empregou todos os esforços paradissuadi-lo de partir; e quando ele se preparava para embarcarnum navio de cinqüenta remos, fê-lo ouvir maus augúrios.Impacientando-se, ele ameaçou-a de deixá-la solteira seregressasse são e salvo da viagem. “Desejo — respondeu ela —que as vossas ameaças se realizem; prefiro ficar ainda porlongos anos virgem, do que ser privada de meu pai”.

CXXV — Sem dar a menor atenção aos conselhos quelhe davam, Polícrates embarcou para ir ter com Orestes,levando em sua companhia vários de seus amigos, entre osquais o médico Demócedes, filho de Califonte, da cidade deCrotona, tido como o mais habilitado na sua profissão, nessaépoca. Ao chegar a Magnésia, Polícrates ali pereceumiseravelmente e de uma maneira indigna de sua alta categoriae de sua grandeza d’alma; pois é sabido que entre todos ostiranos que reinaram sobre as cidades gregas não houve um só,excetuando o de Siracusa, cujos méritos pudessem sercomparados com os de Polícrates. Orestes fê-lo perecer de umamaneira que não tenho ânimo para narrar, crucificando-o emseguida. Consumado o ato, permitiu que regressassem a Samostodos os nativos que compunham a comitiva real, dizendo-lhesque deviam agradecer-lhe aquela graça, mas reteve comoprisioneiros os estrangeiros e os escravos. Pendurado no espaço,Polícrates tornava real o sonho de sua filha: era banhado pelaságuas do céu e ungido pelo sol, cujo calor lhe fazia sair oshumores do corpo. Assim terminou a prosperidade dePolícrates, como havia predito Amásis.

CXXVI — A morte de Polícrates não tardou a servingada. Morto Cambises e caindo o trono em poder dos magos,Orestes, que residia em Sardes, em lugar de prestar algumserviço aos Persas, aos quais os Medos haviam arrebatado acoroa, aproveitou as perturbações e as desordens do momentopara eliminar Mitróbates, governador de Dascílio, que o haviacensurado com relação a Polícrates, e seu filho Cranape,

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embora gozassem ambos de grande prestígio entre os Persas.Entre muitos outros crimes por ele cometidos, cita-se oseguinte: Como um correio lhe trouxesse, da parte de Dario,ordens nada agradáveis, contratou assassinos para atacá-lo nocaminho, quando regressasse. Os sicários mataram-no,juntamente com o cavalo, fazendo desaparecer os cadáveres.

CXXVII — Subindo ao trono, Dario resolveu não deixarimpunes os crimes de Orestes e, particularmente, a morte deMitróbates e de seu filho: mas não julgou conveniente atacá-lologo no início do seu reinado, época em que a política do reinoainda estava numa espécie de fermentação. Além disso, sabiaque Orestes contava com forças consideráveis, possuindo umaguarda composta de mil persas e abrangendo no seu governo aFrígia, a Lídia e a Iônia. Eis o que ele imaginou: Convocou ospersas de maior prestígio e disse-lhes: “Persas, qual dentre vósme promete executar uma coisa que não exige senão habilidadee para a qual não é absolutamente necessário o emprego daforça ou de grande número de pessoas? Considero inútil aviolência onde só deve prevalecer o engenho. Qual de vós serácapaz de matar Orestes ou de trazê-lo vivo à minha presença,ele que jamais prestou serviços aos Persas e que tantos crimestem cometido? Ele que fez perecer dois dos nossoscompanheiros, Mitróbates e o filho, e, não contente com isso,mandou matar o correio que lhe enviei para fazê-lo vir à minhapresença. São insultos que não podemos suportar. Previnamoscom a sua morte maiores males que poderá causar aos Persas”.

CXXVIII — Trinta persas disputaram logo a honra deservir o soberano. Para resolver a contenda, Dario ordenoufosse a escolha feita pela sorte, e realizado o sorteio coube ahonra a Bageo, filho de Artontes. Eis como Bageodesincumbiu-se da tarefa: Escreveu várias cartas sobrediferentes negócios, selou-as com a chancela de Dario e partiupara Sardes com os despachos. Ali chegando, foi procurarOrestes, entregando as cartas, uma a uma, ao secretário do rei,

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para lê-las ao governador; pois todos os governadores deprovíncia têm junto a si um secretário do rei. A intenção deBageo ao fazer entrega dessas cartas era sondar os guardas deOrestes para ver se estariam dispostos a abandoná-lo. Notando orespeito com que encaravam as cartas de Dario, entregou-lhesuma outra concebida nestes termos: “Persas, o rei Dario vosproíbe de continuar prestando obediência a Orestes”. Anteaquela mensagem, eles abandonaram imediatamente suaslanças. Encorajado por essa manifestação de fidelidade, Bageocolocou nas mãos do secretário a última carta, que dizia: “O reiDario ordena aos Persas que se acham em Sardes a matarOrestes”. Imediatamente, os guardas, sacando da cimitarra,foram em busca do governador, matando-o no próprio localonde o encontraram. Assim foi vingada a morte de Polícrates deSamos.

CXXIX — Os bens de Orestes foram confiscados etransportados para Susa, ali chegando pouco depois de haverDario sofrido, ao descer do cavalo, numa de suas caçadas, umatão violenta torcedura no pé que deslocara o tornozelo. Osoberano tinha na corte médicos considerados os mais hábeis doEgito; mas estes, chamados a atendê-lo, encanaram-lhe o pécom tanta violência que lhe agravaram os sofrimentos. O reipermaneceu sete dias e sete noites sem poder dormir, tal a dorque o atormentava. Afinal, no oitavo dia, achando-se ele cadavez pior, alguém, tendo ouvido falar dos méritos profissionaisde Demócedes de Crotona, indicou-lhe esse médico, que ele sedeu pressa em mandar chamar. Foram encontrar Demócedesentre os escravos de Orestes, como um homem do qual não sefazia grande caso, e levaram-no ao soberano, coberto deandrajos.

CXXX — Perguntando-lhe Dario se era realmenteversado em medicina, Demócedes absteve-se de responderafirmativamente, receando que lhe fosse fechado o caminho daGrécia se revelasse aptidões. Percebendo estar ele fingindo

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ignorância de uma arte que lhe era familiar, Dario ordenou aosescudeiros que lhe trouxessem chicotes e outros instrumentos detortura. Demócedes achou conveniente não dissimular por maistempo a verdade. Disse não possuir conhecimento profundo damedicina, mas apenas ligeiras noções adquiridas na convivênciacom um médico. Diante disso, o soberano entregou-se aos seuscuidados. Demócedes tratou-o à maneira dos Gregos; ealternando os sedativos com remédios violentos, conseguiufazê-lo recuperar o sono em pouco tempo, e, finalmente,curá-lo, embora o soberano já houvesse perdido a esperança deservir-se daquele pé. Findo o tratamento, Dario fez-lhe presentede um par de grilhões de ouro. Demócedes perguntou-lhe sepretendia assim mantê-lo na situação servil em que estiveravivendo e se era aquela a recompensa por havê-lo curado.Dario, encantado com essa observação, enviou-o às suasmulheres. Os eunucos que o conduziram disseram ter elerestituído a saúde e a paz de espírito ao seu senhor, e asmulheres, satisfeitas com a notícia, presentearam-no commoedas de ouro, que tiravam do cofre com um pires. Essepresente foi tão considerável que Citon, um servo que o seguia,calculou em avultada soma as moedas de ouro que apanhava àmedida que tombavam dos pires.

CXXXI — Eis como Demócedes veio a deixar Crotona,sua terra natal, agregando-se à corte de Polícrates. Vivia ele emcompanhia do pai, homem de temperamento rígido e iracundo.Não podendo mais suportar-lhe o perene mau humor,transportou-se para Egina, onde se estabeleceu e superou, desdelogo, os médicos mais famosos, embora não estivesse habilitadoa exercer ali a profissão e lhe faltassem os instrumentosnecessários. No segundo ano, os Eginenses, reconhecendo suacapacidade, deram-lhe um talento de pensão por conta doerário. No terceiro, os Atenienses concederam-lhe uma pensãode cem minas. Finalmente, no quarto, Polícrates ofereceu-lhedois talentos, proposta que o atraiu a Samos. É a ele que osmédicos de Crotona devem, em grande parte, a reputação que

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firmaram, sendo considerados, na época, os primeiros daGrécia, vindo em segundo lugar os Cireneus. Nessa mesmaépoca, os Árgios eram tidos como os melhores músicos daGrécia.

CXXXII — Em recompensa por haver curadocompletamente Dario, Demócedes foi contemplado com umavasta residência em Susa; comia à mesa do soberano e nada lhefaltava senão a liberdade de voltar à Grécia. Obteve de Dario operdão para os médicos egípcios assistentes do soberano e que,por se terem deixado suplantar na arte por um médico grego,haviam sido condenados a morrer crucificados. Salvou umadivinho da Eléia, componente da comitiva de Polícrates e porisso submetido à escravidão, sem que ninguém se lembrassemais dele. Enfim, Demócedes passou a desfrutar, junto ao rei,da maior consideração.

CXXXIII — Pouco tempo depois, Atossa, filha de Ciroe mulher de Dario, foi acometida de um tumor no seio, quetomou logo grandes proporções. Enquanto o mal não seagravou, ela ocultou-o de todos, por pudor, mas quando viu queadquiria aspecto alarmante mandou chamar Demócedes emostrou-lho. Demócedes prometeu curá-la se ela prometesse,sob juramento, satisfazer um pedido seu, assegurando-lhe quenão exigiria nada capaz de envergonhá-la.

CXXXIV — Curada pelos remédios de Demócedes,Atossa cumpriu o que havia prometido. Achando-se no leitocom Dario, falou-lhe nestes termos: “É para admirar, senhor,que tendo tantas tropas à vossa disposição, permaneçaistranqüilamente no vosso palácio, sem procurar conquistaroutros países e estender os limites do vosso império. Acho,entretanto, ser conveniente para um monarca jovem e possuidorde grandes riquezas assinalar-se por atos que revelem aos seussúditos terem eles um homem de valor dirigindo os seusdestinos. Sou, pois, de opinião que deveis movimentar os

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vossos exércitos em busca de novas conquistas, e isso por duasrazões: primeiro, para mostrar aos Persas que eles possuem umrei cheio de coragem e galhardia; segundo, para que asatribulações da guerra, evitando-lhes a ociosidade, não os leve arevoltar-se contra vós. Procurai, pois, realizar algumas grandesconquistas enquanto sois jovem. A alma cresce com o corpo,mas, à medida que o corpo envelhece, a alma envelhecetambém, desaparecendo o entusiasmo para toda e qualqueração”.

“Tuas observações — respondeu Dario — concordamcom os meus propósitos. Eu já havia planejado marchar contraos Citas, fazendo construir, para esse fim, uma ponte ligando onosso continente ao outro. Dentro de muito pouco tempopoderei levar a cabo esse plano”.

“Senhor, — volveu Atossa — não comeceis, peço-vos,pelos Citas; eles estarão em vosso poder quando assim oquiserdes; marchai, antes, contra a Grécia. O que me disseram,senhor, sobre as mulheres desse país, levaram-me a desejarardentemente ter a meu serviço lacedemônias, árgias, ateniensese coríntias. Possuís aqui a pessoa mais indicada para vos instruirsobre tudo que diz respeito à Grécia e para vos servir de guianessa expedição: refiro-me ao médico que vos curou datorcedura”.

“Já que julgas assim, — respondeu Dario — comecemospela Grécia. Parece-me, antes de tudo, muito a propósitomandar alguns persas com o homem de que falas para tomarconhecimento exato do país; na volta, eles me instruirão sobretudo que viram e observaram, e então, marcharemos contra osGregos”.

CXXXV — Dario deu-se pressa em executar o quedissera. Logo ao raiar do dia, mandou chamar quinze persasentre os de maior destaque no país e encarregou-os deacompanhar Demócedes e de fazer com ele um reconhecimento

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completo de todas as regiões litorâneas da Grécia,recomendando-lhes, sobretudo, que mantivessem o médico sobconstante vigilância, a fim de que ele não lhes escapasse, e avoltar com ele, acontecesse o que acontecesse. Dadas essasordens, instruiu Demócedes sobre a missão, dizendo-lhe queregressasse logo que tivesse mostrado aos persas toda a Grécia.Instruiu-o também a levar consigo todos os bens que recebera,para presentear com eles seus pais e parentes, prometendoindenizá-lo com o cêntuplo do valor por eles representados, eacrescentando que esses presentes e muitas outras riquezasseriam transportados em um navio que o acompanharia até oponto de destino. As promessas do soberano eram, segundocreio, sinceras; mas Demócedes, julgando que ele queria apenasexperimentá-lo, aceitou todos esses favores sem nenhumentusiasmo. Quanto aos bens que lhe pertenciam, declarou queos deixaria em Susa, a fim de dispor dos mesmos quandoregressasse. Contentou-se com o navio de carga posto à suadisposição, a fim de levar presentes aos irmãos.

CXXXVI — Dadas essas ordens, Dario disse-lhe que sedirigisse, juntamente com os persas, para o litoral. Chegando àFenícia, dirigiram-se eles imediatamente para Sido, ondeequiparam, sem perda de tempo, dois trirremes e um navio decarga, enchendo-os de toda espécie de riquezas. Concluídos ospreparativos, partiram em direção à Grécia, cujas costasvisitaram, observando os acidentes e outros aspectosconsiderados de importância. Finalmente, depois de haveremfeito o reconhecimento completo do país rumaram para a Itália,aportando em Tarento, onde Aristofílido, soberano dessa nação,atendendo a uma solicitação de Demócedes, mandou retirar oleme dos navios dos Medos(11) e prendê-los como espiões.Demócedes pôde assim regressar a Crotona, sua terra natal.Todavia, logo que ali chegou, Aristofílido relaxou a prisão dospersas e restituiu-lhes o que mandara retirar dos navios.

CXXXVII — Livres, os persas partiram imediatamente

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em busca de Demócedes, e chegando a Crotona prenderam-nona praça pública, onde ele se encontrava. Uma parte dosCrotonienses, temendo o poderio dos Persas, se dispusera aentregar seu compatriota, mas a outra o arrancou das mãos dosestrangeiros, escorraçando-os a bastonadas.

“Crotonienses, — disseram-lhes os persas — tomaicuidado com o que fazeis; aquele que acabais de arrebatar donosso poder é um escravo fugitivo, e pertence ao nossosoberano. Julgais, porventura, que Dario deixará impune talinsulto e que estais procedendo com acerto tirando o prisioneirodas nossas mãos? Não temeis ver a vossa cidade atacada,reduzida a cinzas e à servidão?”

Essas ameaças resultaram inúteis. Os Crotonienses, semlhes dar ouvidos, arrebataram não somente Demócedes, comotambém o navio de carga que os Persas haviam trazido. Estes,privados do guia, retornaram à Ásia, sem haverem concluído oreconhecimento da Grécia. Ao partirem, Demócedesprocurou-os para lhes pedir que dissessem a Dario ser ele, oescravo, casado com a filha de Mílon, nome muito conhecido nacorte persa. Por mim, penso ter Demócedes apressado essecasamento e gasto com ele muito dinheiro, só para mostrar aDario que também ele gozava de grande consideração na suapátria.

CXXXVIII — Deixando Crotona, os persas foramimpelidos pelos ventos contrários para a Iapígia, onde foramaprisionados; mas Gilo, banido de Tarento, libertou-os,reconduzindo-os a Dario. O soberano, grato por essa conduta,dispôs-se a conceder-lhe tudo que desejasse. Gilo relatou-lheentão sua desgraça, pedindo-lhe que o restabelecesse comocidadão em Tarento. Todavia, para não lançar o terror e aperturbação na Grécia, como não deixaria de acontecer se seenviasse, por sua causa, uma frota considerável à Itália, disseque os Cnídios bastariam para conseguir sua repatriação, pois,

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amigos dos Tarentinos, um pedido deles nesse sentido jamaisseria negado. Dario prometeu-lhe que assim faria, e, semdemora, enviou um emissário à Cnídia, com ordens aos Cnídiospara promoverem o regresso de Gilo a Tarento. Os Cnídiosobedeceram, mas não conseguiram obter o favor dosTarentinos, e não estavam preparados para convencê-los pelaforça. Assim passaram-se os fatos.

Os Persas a que há pouco nos referimos foram osprimeiros a virem da Ásia à Grécia para fazerem oreconhecimento desse país.

CXXXIX — Pouco depois desses acontecimentos, Darioapoderou-se de Samos. De todas as cidades, tanto gregas comobárbaras, foi essa a primeira a ser por ele atacada, pelas razõesque passo a expor. Muitos Gregos tinham acompanhadoCambises na sua expedição contra o Egito; uns, ao que seacredita, para traficar; outros como mercenários, e alguns aindapela simples curiosidade de conhecer o país. Entre estes últimosestava Silóson, banido de Samos, filho de Éaco e irmão dePolícrates. Teve ele uma aventura que muito contribuiu para asua boa fortuna. Passeando, certo dia, pela praça principal deMênfis, com um manto escarlate sobre os ombros, foi visto porDario, então simples integrante do corpo de guardas deCambises e não gozando ainda do destaque que viria aconseguir mais tarde. O futuro soberano dos Persas, encantadocom o manto aproximou-se do estrangeiro, perguntando-lhe sequeria vender-lhe tão atraente indumentária. Silóson, notando oempenho de Dario, respondeu-lhe, como inspirado por algumdeus: “Não venderei por preço algum este manto; mas, já quetanto o desejas, faço-te presente dele”. Dario louvou-lhe agenerosidade e aceitou o presente.

CXL — Silóson ficou um tanto arrependido de, pelo seuexcesso de generosidade, haver ficado privado do seu mantoAlgum tempo depois, morrendo Cambises, os sete Persas

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destronaram o mago usurpador, e Dario, um dos sete, subiu aotrono. Sabendo ter sido a coroa adjudicada àquele a quemofertara o manto no Egito, Silóson partiu para Susa, dirigiu-seao palácio e, sentando-se no vestíbulo, declarou haver prestadooutrora um obséquio a Dario. Um dos guardas, ouvindo aqueladeclaração, transmitiu-a ao soberano. “Quem será esse grego —interrogou Dario a si próprio, um tanto perplexo — que afirmame haver contemplado com seus favores? Estou no poder hápouco tempo, e até agora nenhum estrangeiro veio à minhacorte. Não me recordo de haver sido obsequiado por um grego.Em todo caso, vou mandar chamá-lo para ver o que tem adizer”.

Levado à presença de Dario, este perguntou-lhe, porintermédio de intérpretes, quem era e como podia vangloriar-sede haver-lhe prestado favores em dias passados. Silósonrelembrou-lhe o que se passara com relação ao manto,acrescentando ter sido ele o autor da oferta.

“Ó homem generoso! — volveu Dario — Então ésaquele que me presenteou ao tempo em que eu não gozava damenor autoridade? Embora o presente não fosse dos maisvaliosos, considero-me por ele tão obrigado quanto se recebessehoje outro assaz considerável; e para manifestar a minhagratidão, dar-te-ei tanto ouro e prata, que nunca terás motivopara arrepender-te de haver obsequiado Dario, filho deHistaspes”. “Grande rei, — observou Silóson — não te peçonem ouro nem prata; restitui-me Samos e livra-a da opressão.Desde que Orestes mandou matar meu irmão Polícrates, um dosnossos escravos dela se apoderou. É Samos, a minha pátria,senhor, que vos peço. Libertai-a, senhor, sem derramamento desangue, e não permitais que ela seja reduzida à escravidão.

CXLI — Atendendo ao seu pedido, Dario enviou umaforça expedicionária a Samos, sob o comando de Otanes, umdos sete que haviam destronado o mago, recomendando-lhe que

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executasse tudo que Silóson lhe pedisse. Otanes partiu para olitoral, onde embarcou com as suas tropas.

CXLII — Meândrio, filho de Meândrio, era entãosenhor absoluto da ilha; Polícrates lhe havia confiado aregência. Procurou ele mostrar-se o mais justo dos homens, masas circunstâncias não lho permitiram. Ao ter conhecimento damorte de Polícrates, mandou erguer um altar a JúpiterLibertador, delimitando em torno do altar um recinto sagrado,que ainda hoje se vê nos arredores de Samos. Em seguida,reuniu em assembléia os cidadãos de Samos, fazendo-lhes estediscurso: “Sabeis, filhos de Samos, que Polícrates me confiou ocetro com sua autoridade, não me cabendo hoje outro recursosenão continuar exercendo o poder sobre vós. Procurarei,entretanto, não fazer jamais o que condeno nos outros. CensureiPolícrates por ter-se tornado senhor dos seus iguais e nãoaprovarei, por conseguinte, a mesma conduta num outro. Enfim,ele cumpriu o seu destino. Quanto a mim, estou disposto ademitir-me do poder soberano e restabelecer a igualdade entretodos. Concedei-me, apenas, como uma espécie de distinçãoque considero justa, seis talentos de prata de Polícrates.Permiti-me, ainda, reservar para mim e os meus descendentes,em caráter perpétuo, o sacerdócio de Júpiter Libertador, ao qualergui um altar, e restituo-vos a liberdade”.

Tal a proposta de Meândrio; mas um nativo de Samos,erguendo-se no meio da assembléia, disse-lhe: “Nenhum méritopossuís para governar-nos, tu que sempre foste um mauindivíduo, um celerado. Deves, antes de mais nada, prestar-nosconta do dinheiro que administraste”. Quem assim falou foiTelesarco, que gozava de grande prestígio entre os seusconcidadãos.

CXLIII — Vendo que se abdicasse da supremaautoridade outro dela se apossaria, Meândrio não pensou maisem renunciar. Retornando à cidadela, mandou chamar os

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cidadãos, um por um, como se lhes quisesse prestar contas, e foiprendendo-os e pondo-os a ferros à medida que chegavam.Pouco depois, enfermou gravemente. Seu irmão Licareto,crendo que ele não mais se restabeleceria e querendo usurparfacilmente o poder, matou todos os prisioneiros.

CXLIV — Entrementes, os Persas que conduziamSilóson chegaram a Samos, não encontrando ali a menorresistência. Os partidários de Meândrio e o próprio Meândriodeclararam-se prontos a capitular e a abandonar a ilha. Otanesaceitou a proposta e, firmado o tratado, os Persas de mais altacategoria instalaram-se diante da fortaleza.

CXLV — O tirano Meândrio tinha um irmão chamadoCarileu, de mente um tanto desequilibrada, e que se encontravaacorrentado num calabouço por certa falta que cometera.Informado do que se passava e tendo visto por uma pequenaabertura do cárcere os Persas tranqüilamente postados diante dafortaleza, pôs-se a gritar, dizendo que queria falar com o irmão.Meândrio mandou soltá-lo e trazê-lo à sua presença. Assim quechegou, Carileu exprobrou energicamente o irmão,concitando-o a lançar-se contra os Persas e a escorraçá-los dali.“És o mais covarde de todos os homens! Tens o coraçãobastante duro para acorrentar-me num calabouço, a mim teuirmão, que não cometi nenhum crime para merecer taltratamento, e não possuís coragem suficiente para vingar-te dosPersas que te expulsam da tua casa e de tua pátria, embora teseja fácil vencê-los. Se os temes, dá-me tuas tropas auxiliares, eeu os farei arrepender-se de terem vindo aqui. Quanto a mim,estou pronto a fazer-te sair desta ilha”.

CXLVI — Meândrio considerou com interesse aproposta do irmão. Não era, entretanto, demasiado insensatopara imaginar que poderia, com as forças de que dispunha, obteruma vitória contra os Persas de Dario. Invejava a boa sorte deSilóson, recuperando, sem nenhum esforço, a ilha e recebendo-a

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na situação florescente em que se encontrava. Se irritasse osPersas, enfraqueceria o poderio de Samos, e se esta fosserecuperada, estaria devastada pela guerra. Sabia perfeitamenteque se os Persas fossem maltratados vingar-se-iam sobre oshabitantes de Samos. Contava ele com um meio seguro para sairda ilha quando quisesse. Havia mandado abrir uma passagemsubterrânea que ia da fortaleza ao mar. Foi realmente por essapassagem que abandonou Samos, rumando para longe dali.

Enquanto isso se passava, Carileu, tendo feito pegar emarmas as tropas auxiliares, forçou as portas da cidadela erealizou uma sortida contra os Persas, que não contavam comum tal ato de hostilidade, julgando que o acordo estavaperfeitamente estabelecido. As tropas auxiliares caíram sobre osde mais alta distinção, que estavam sendo conduzidos emliteiras, massacrando-os. No momento, porém, em que ospassavam a fio de espada, o resto do exército persa veio emsocorro dos seus e rechaçou os atacantes com o maior vigor,obrigando-os a retirar-se da cidadela.

CXLVII — Otanes tinha sempre na mente as ordens queDario lhe dera ao partir, de não matar nem reduzir à servidãonenhum nativo de Samos e de repor Silóson na ilha, sem causarnenhum dano ali; mas à vista da carnificina feita entre osPersas, esqueceu-se de tudo. Ordenou aos soldados a deitarempor terra todos os que encontrassem no caminho, homens ecrianças, sem distinção. Assim, enquanto uma parte de suastropas cercava a cidadela, a outra atacava impiedosamente osque se achavam fora dela, tanto nos lugares sagrados como nosprofanos.

CXLVIII — Deixando Samos, Meândrio rumou para aLacedemônia. Ali chegando com as riquezas que trazia consigo,mandou tirar dos cofres copos de ouro e de prata, e os criadospuseram-se a limpá-los. Foi então procurar Cleómenes, filho deAnaxândrio, rei de Esparta, e depois de um cordial

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entendimento levou-o à sua residência. Vendo o príncipedeslumbrado diante dos vasos, convidou-o a lançar mão dequantos desejasse.

Cleómenes mostrou-se nessa ocasião o mais justo doshomens. Embora Meândrio repetisse duas ou mais vezes ooferecimento, não quis aceitá-lo; e tendo sabido que essehabitante de Samos fazia presente daqueles vasos a outroscidadãos, procurando assim captar-lhes as boas graças econseguir abrigo ali, foi procurar os Éforos, fazendo-lhes verque era do interesse da república fazer sair do Peloponesoaquele estrangeiro, para evitar que corrompesse os própriosgovernantes. Os Éforos aprovaram a idéia de Cleómenes efizeram comunicação a Meândrio, por intermédio de um arauto,da necessidade de retirar-se da república quanto antes.

CXLIX — Depois de haverem massacrado todos oshabitantes de Samos, os Persas entregaram a cidade despovoadaa Silóson. Algum tempo depois, Otanes repovoou-a, quandoteve em sonho uma visão e se achava atacado de um mal naspartes genitais.

CL — Enquanto a esquadra persa se dirigia para Samos,os Babilônios levaram a efeito a revolta que há muito vinhampreparando. Durante o reinado do mago e a insurreição dos setePersas, aproveitaram-se das perturbações reinantes, tomandotodas as providências para sustentar um cerco prolongado, semque os Persas se apercebessem disso. Colocando-se abertamentecontra o jugo do estrangeiro, tomaram as seguintes medidas: detodas as mulheres que se encontravam na Babilônia, cadahomem, pondo de parte a mãe, não reservaria senão a que maisamasse. Quanto às outras, reuni-las-iam em determinado lugar eas estrangulariam. Aquela que cada homem reservasse para sificaria na obrigação de preparar-lhe a comida. Assim foi feito,sendo sacrificadas todas as outras mulheres, a fim de poupar asprovisões.

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CLI — À primeira notícia da revolta, Dario mobilizoutodas as forças de que dispunha no momento e marchou contraos insurrectos. Ao chegar diante da praça, executou o cerco;mas os Babilônios deram-lhe logo a entender que pouco sepreocupavam com isso. Subindo às muralhas, puseram-se adançar e a troçar de Dario e de seu exército, pronunciando umdeles esta frase memorável: “Persas, por que perder assim ovosso tempo diante destas muralhas? Retirai-vos, que é omelhor que fazeis. Só conquistareis Babilônia quando as mulasderem cria”. Assim se expressou esse babilônio, certo de queuma mula jamais poderia conceber.

CLII — Havia já um ano e seis meses que Dario e seuexército se mantinham diante de Babilônia, sem conseguirtomá-la, desesperando-se o soberano com aquela situação.Tinha-se, em vão, servido de toda sorte de estratagemas,apelando para o mesmo recurso que dera êxito a Ciro porocasião de uma de suas campanhas; mas os insurrectosmantinham-se sempre alertas, não se deixando surpreender.

CLIII — No vigésimo mês do cerco, aconteceu algoverdadeiramente fenomenal na casa de Zópiro, filho deMegabizo, que com os seis outros conjurados persas destronarao mago: uma das mulas empregadas no transporte de provisõesdeu à luz um potro. A princípio, Zópiro negou-se a acreditar noque via, mas verificando a veracidade do estranho fato proibiuexpressamente todos os seus de espalharem a notícia. Pondo-sea refletir sobre o fenômeno, lembrou-se das palavras dobabilônio, que dissera, no início do cerco, que os Persas sótomariam a cidade quando as mulas dessem cria. Concluiu, emvista desse presságio, que Babilônia poderia então serconquistada, e que o insurrecto usara daquela expressão por umdesígnio dos deuses.

CLIV — Convencido de que o destino assegurava aqueda do país sitiado, foi procurar Dario, perguntando-lhe se

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fazia grande empenho em apoderar-se daquela praça.Dizendo-lhe o soberano que desejava ardentementeconquistá-la, pôs-se a deliberar sobre como faria para capturá-lae para que a façanha não fosse atribuída a outro senão a ele. OsPersas emprestam grande mérito aos atos de bravura, sendoesse, entre eles, um dos meios de alguém obter grandes honras.Refletindo que não poderia tornar-se senhor daquela praçasenão mutilando-se para penetrar no reduto na qualidade detrânsfuga, não hesitou um só instante em acarretar para si umadisformidade sem remédio: cortou o nariz e as orelhas, raspoude maneira ridícula o alto da cabeça e, nesse estado deplorável,foi apresentar-se ao soberano.

CLV — Indignado por ver um homem da categoria deZópiro tão maltratado, Dario ergueu-se precipitadamente dotrono e perguntou-lhe, entre pesaroso e revoltado, quem lhefizera aquilo e qual o motivo por que assim procedera.“Nenhuma outra pessoa senão vós, senhor, seriasuficientemente poderosa para me tratar desta maneira —respondeu Zópiro. — Nenhuma mão estranha me pôs nesteestado; fui eu o meu próprio agressor, revoltado e desesperadopor ver os Assírios troçarem dos Persas”. “Oh, infeliz! —exclamou Dario — dizendo que trataste a ti próprio dessamaneira por causa dos sitiados procuras emprestar um belonome a uma ação vergonhosa! Insensato! Os inimigos não serenderão mais depressa pelo fato de te teres mutilado dessamaneira. Será que perdeste o senso quando te puseste nesseestado?” “Senhor, — explicou Zópiro — se vos houvessecomunicado minha intenção, não me permitiríeis executá-la.Assim, resolvi agir por mim próprio. Babilônia cairá em nossopoder se não faltardes no momento decisivo. No estado em queme vedes vou penetrar na cidade, como se fora um trânsfuga, edirei aos Babilônios que este tratamento me foi infligido porvossa ordem. Espero, se conseguir persuadi-los, obter ocomando de uma parte de suas tropas. Quanto a vós, no décimodia após minha passagem para Babilônia deveis escolher mil

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homens entre aqueles cuja perda seja menos sensível para oexército e colocá-los à porta de Semíramis. Sete dias depoisdevereis colocar mais dois mil homens junto à porta de Nínive.Passados mais vinte dias, enviareis quatro mil homens para aporta dos Caldeus. Convém, todavia, que eles nada tenham paradefender-se senão as espadas. Finalmente, vinte dias mais tardefareis avançar o exército diretamente contra a cidade, para umassalto geral, sendo que as portas Bélidas e Cissianas devemficar guarnecidas. Não duvido absolutamente de que osBabilônios, testemunhas de minhas grandes ações, me confiem,entre outras coisas, as chaves dessas portas. Agiremos, então,como for preciso”.

CLVI — Tendo exposto o seu plano a Dario, Zópirodirigiu-se para as portas da cidade, voltando-se de vez emquando, como se estivesse fugindo e temesse estar sendoperseguido. Os que se achavam de sentinela nas torres,percebendo-o, desceram prontamente, e entreabrindo a viseirada porta perguntaram-lhe quem era e o que desejava. Eledeclarou chamar-se Zópiro e que vinha entregar-se aosBabilônios. Ouvindo essa declaração, os guardas da portaconduziram-no perante a assembléia. Ali chegando, Zópiropôs-se a lastimar suas desgraças, atribuindo a Dario otratamento cruel que recebera, dizendo que o soberano o puseranaquele estado porque, não conseguindo forçar a praça, ele,Zópiro, o aconselhara a levantar o cerco. “Por isso, venho —concluiu ele — aliar-me a vós, para fortuna vossa e paradesgraça de Dario, do seu exército e dos Persas. Conheço todosos seus planos, e as mutilações que sofri não ficarão impunes”.

CLVII — Os Babilônios, vendo um persa da mais altalinhagem com o nariz e as orelhas cortadas, o corpo cortado dechibata e ensangüentado, não duvidaram do que lhes dizia eacreditaram que ele viera realmente auxiliá-los para vingar-sede Dario. Dispuseram-se a conceder-lhe tudo que desejasse paraesse fim. Zópiro pediu que lhe concedessem tropas, e

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obtendo-as, fez o que havia combinado com o rei dos Persas.

No décimo dia depois da sua chegada saiu à frente dastropas cujo comando os insurrectos lhe haviam confiado, einvestiu contra os primeiros mil homens colocados por Dario nolocal convencionado, massacrando-os. Reconhecendo que osseus atos correspondiam às suas palavras, os Babilôniosmanifestaram grande satisfação, mostrando-se mais dispostosainda a obedecer-lhe. Zópiro deixou passar o número de diasconvencionado, e pondo-se à frente da elite das tropasbabilônias realizou uma segunda sortida, na qual matou dois milguerreiros persas. Testemunhando mais esse ato de bravura, osBabilônios puseram-se inteiramente às ordens de Zópiro.

Dias depois dessa segunda sortida, o astuto persarealizou uma terceira, levando suas tropas ao ponto em queDario havia colocado os quatro mil homens, fazendo novomassacre. Esse terceiro sucesso tornou-o todo-poderoso entre ossitiados, que passaram a obedecer-lhe cegamente, confiando-lheo comando do exército e a guarda das muralhas.

CLVIII — Finalmente, no dia marcado, Dario reuniu astropas destacadas em diversos pontos, aproximando-se para oataque geral. Só então os Babilônios compreenderam o logroem que haviam caído. Enquanto se defendiam do alto dasmuralhas contra o exército persa, Zópiro abria as portasCissianas e Bélidas e introduzia os sitiantes na praça. OsBabilônios que perceberam essa manobra refugiaram-se notemplo de Júpiter Belo; mas os que não a viram conservaram-sefirmes em seus postos, só compreendendo a traição daquele emque haviam confiado quando já era demasiado tarde.

CLIX — Foi assim que Babilônia caiu pela segunda vezem poder dos Persas. Dario, tornando-se senhor da cidade,mandou demolir as muralhas e retirar todas as portas. Ciro, quea conquistara antes dele, não havia feito nem uma coisa nemoutra. Mandou, em seguida, crucificar cerca de três mil homens

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entre os mais ilustres de Babilônia. Aos demais, permitiramcontinuarem habitando a cidade como antes, dando-lhesmulheres para que a repovoassem, pois os Babilônios, comodissemos atrás, tinham estrangulado a maior parte das suascompanheiras, a fim de poupar provisões. Ordenou aos povosvizinhos que enviassem mulheres à Babilônia, e cada naçãotinha de contribuir com um certo número delas. Ao todo, paraali se encaminharam cinqüenta mil mulheres, das quaisdescendem os Babilônios de hoje.

CLX — Nunca houve na Pérsia, na opinião de Dario,desde os séculos mais recuados até os dias de seu reinado,ninguém que em bravura e engenho tivesse ultrapassado Zópiro,com exceção de Ciro, a que nenhum Persa jamais se julgoudigno de comparar-se. Conta-se ter Dario declarado que preferiaque Zópiro não houvesse procedido com tanta crueldade contraa sua própria pessoa, a tornar-se senhor de vinte outras cidadescomo Babilônia. Concedeu ao herói as maiores honras,presenteando-o, todos os anos, com aquilo que os Persasjulgassem mais digno ao seu merecimento. Deu-lhe a cidade deBabilônia, sem exigir-lhe o menor tributo, para que dela tirasseproveito durante toda sua vida, cumulando-o ainda de muitosoutros bens. Zópiro teve um filho chamado Megabizo, quecombateu no Egito contra os Atenienses e seus aliados. DesseMegabizo nasceu o Zópiro que deixou a Pérsia para irestabelecer-se em Atenas.

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LIVRO IV

MELPÔMENEA CÍTIA — HÉRCULES — OS GRIFÃOS — OS

HIPERBÓREOS — DESCRIÇÃO DA TERRA — O POVO DECÍLAX — COSTUMES DOS CITAS — ANACÁRSIS — A

EXPEDIÇÃO DE DARIO — O PONTO EUXINO — ASAMAZONAS — OS TRÁCIOS — OS GETAS — A LÍBIA — O

CULTO DO SOL, ETC.

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I — Depois da tomada de Babilônia, Dario marchoucontra os Citas. A Ásia era, então, rica e muito povoada,encontrando-se em situação florescente. O soberano desejavavingar-se dos Citas, que, tendo invadido a Média, bateram astropas que a eles se opuseram e entraram a violar a justiça. Essepovo, como já relatei, tinha dominado na Ásia Superior durantevinte e oito anos. Havia ali penetrado perseguindo os Cimérios,e tinha arrebatado o império aos Medos. Depois de umaausência de vinte e oito anos, os conquistadores citas quiseramretornar à pátria; mas para voltar à Cítia não encontrarammenores dificuldades do que as que tinham tido para dominar osMedos. Um exército numeroso erguera-se diante deles,impedindo-lhes a entrada; pois enquanto estiveram ausentes,suas mulheres, entediadas pela longa espera, entregaram-se aosescravos, daí resultando toda uma nova população.

II — Os Citas têm por hábito furar os olhos dos seusescravos, para utilizá-los na ordenha de animais, cujo leiteconsomem diariamente. Para a extração do leite adotam unscanudos de osso semelhantes a flautas, que introduzem naspartes naturais das jumentas, e os escravos neles sopram,enquanto outros tiram o leite. Dizem eles que empregam esseprocesso para que o sopro intumesça as veias das jumentas efaça baixar as mamas.

Extraído o leite, despejam-no em recipientes de madeira,que os escravos sacodem e agitam. É a nata que eles maisapreciam, considerando-a saborosíssima e nutriente. É para essatarefa que eles vazam os olhos dos que submetem à escravidão.Os Citas não cultivam a terra e são nômades.

III — Desses escravos e de mulheres citas nascerammuitos jovens, que, tendo conhecimento da sua origem,marcharam ao encontro dos Citas que regressavam da Média.Começaram por dividir o país em duas partes, cavando um largo

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fosso que ia dos montes Táuricos ao Palos-Meótis, abrangendovasta extensão. Foram, em seguida, acampar diante dos Citasque procuravam penetrar no país, aos quais ofereceramcombate. Houve entre eles várias escaramuças, sem que osCitas pudessem conseguir a menor vantagem. “Companheiros,que estamos fazendo? — gritou um dos Citas no meio da peleja— se esses homens matam um dos nossos, diminuímos denúmero; se matamos um deles, diminuímos o número de nossosescravos. Abandonemos os arcos e dardos e marchemos contraeles armados do chicote com que fustigamos nossos cavalos.Enquanto nos virem de armas na mão considerar-se-ão nossosiguais; mas se em lugar de armas nos virem de chicote,lembrar-se-ão de que são nossos escravos, e apercebendo-se dasua baixa origem, não mais ousarão resistir-nos”.

IV — A sugestão foi aceita por todos. Os escravos,atemorizados, puseram-se logo em fuga, sem mais pensar emcombater. Assim regressaram os Citas à pátria, depois dehaverem dominado a Ásia e terem sido dali expulsos pelosMedos. Foi para vingar-se dessa invasão, que Dario levoucontra eles poderoso exército.

V — Os Citas consideram a sua pátria a mais nova detodas as nações, e explicam a sua origem da maneira que vourelatar.

A Cítia era outrora um país deserto. O primeiro homemque ali nasceu chamava-se Targitaus, que os Citas pretendemser filho de Júpiter e de uma filha de Boristénis, o que não meparece crível. Targitaus, dizem eles, teve três filhos: Lipoxais,Arpoxais e Colaxais, o mais jovem. No seu reinado, caiu docéu, na Cítia, uma charrua, uma canga, um machado e um piresde ouro. O primogênito de Targitaus foi o primeiro a vê-los, edeles se aproximou com o desejo de apanhá-los; mas o ouro seinflamou. Tendo Lipoxais se retirado, veio então o segundoirmão, e o ouro tornou a inflamar-se. Compareceu finalmente o

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irmão mais novo, e como o ouro não mais se inflamasse,apoderou-se dos objetos e levou-os para sua casa. Diante dessefato, os dois irmãos mais velhos resignaram a seus direitos aotrono em favor de Colaxais.

VI — Aqueles, entre os Citas, conhecidos peladesignação de Aucates, são, ao que dizem, descendentes deLipoxais; os chamados Catiares e Tráspios, de Arpoxais; e osParalates, de Colaxais. Dá-se a todos esses povos a designaçãogeral de Escolotes, do nome de um dos seus governantes, masaprouve aos Gregos dar-lhes o nome de Citas.

VII — Assim relatam os Citas a origem de sua nação.Acrescentam que desde Targitaus, seu primeiro rei, até a épocaem que Dario passou pelo seu país, não decorreram, ao todo,mais de mil anos. Quanto ao ouro sagrado, os reis o guardamcom o maior carinho e veneração. Transportam-no todos osanos para seus respectivos estados e lhe oferecem grandessacrifícios, a fim de que ele lhes seja propício. Se o que se achaencarregado da guarda desse ouro adormece no dia da festa aoar livre, morre nesse ano, segundo afirmam os Citas. Paracompensá-lo de tal desgraça dão-lhe toda a extensão de terraque puder percorrer a cavalo num só dia. Sendo a superfície dopaís dos Citas muito extensa, Colaxais dividiu-o em três reinos,entregando-os aos seus três filhos. O ouro caído do céu eraguardado no maior desses reinos. Quanto às regiões situadas aonorte, além das últimas terras povoadas, dizem os Citas nãoserem elas nem visíveis nem abordáveis, por causa das plumasque ali caem continuamente. O ar está sempre cheio e a terracoberta dessas plumas, motivo por que a visão ali não penetra.

VIII — É isso o que dizem os Citas com relação a sipróprios e ao seu país. Todavia, os Gregos que habitam o litoraldo Ponto Euxino dizem que Hércules, conduzindo as boiadas deGérion chegou ao país hoje ocupado pelos Citas e então deserto.Gérion morava além do Ponto Euxino, numa ilha denominada

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Erítia pelos Gregos e situada perto de Gades, no oceano, adiantedas colunas de Hércules. Acreditam esses Gregos que o oceanocomeça a leste e envolve a terra com as suas águas; masnenhuma prova apresentam em apoio a tal crença.

Chegando ao país hoje conhecido por Cítia, Hércules,continuam eles, surpreendido pelo Inverno e sentindo os rigoresdo frio, estendeu sua pele de leão, nela se enrolou e adormeceu.Enquanto dormia, as mulas que ele havia desatrelado do carropara fazê-las pastar desapareceram misteriosamente.

IX — Ao despertar, Hércules pôs-se a procurá-las portoda parte, e assim chegou ao cantão chamado Hiléia, ondeencontrou, numa caverna, um monstro híbrido — mulher dacabeça até abaixo da cintura, e serpente no resto do corpo — aque davam o nome de Equidna. Embora tomado de espanto anteaquela criatura singular, perguntou-lhe se não vira passar por alios seus animais. “Tenho-os em meu poder, — respondeu ela —mas não tos devolverei enquanto não estiveres comigo”.Hércules cedeu, por tal preço, aos seus desejos, mas, passado omomento, a estranha começou a protelar a entrega dos animais,para retê-lo por mais tempo junto a si. Hércules, por seu lado,desejava apenas recuperar seus animais e partir imediatamente.Finalmente, ela entregou-lhos, fazendo-lhe, porém, estadeclaração: “Teus animais vieram ter aqui; eu os guardei erecebi a recompensa. Concebi três filhos teus. Que devo fazerdeles quando crescerem? Queres que os deixe aqui nesterecanto da terra onde sou soberana, ou preferes que eu os enviepara a tua companhia?” “Quando as crianças atingirem a idadeviril, — respondeu Hércules, segundo afirmam os Gregos —faze o que te vou dizer, e terás agido com prudência e acerto.Aquele que vires dobrar este arco como eu e cingir-se com estetalabarte, como faço, retém junto a ti; mas o que não puderexecutar nem uma coisa nem outra, envia-o para longe daqui.Se assim procederes não te arrependerás, e ter-me-ásobedecido”.

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X — Dizendo essas palavras, Hércules tirou um dosseus arcos — pois tinha consigo dois — e deu-o à mulher.Mostrando-lhe também o talabarte, de onde pendia umapequena taça de ouro, entregou-lho igualmente, afastando-se emseguida.

Quando os filhos que concebera de Hércules atingiram aidade viril, Equidna deu ao primeiro o nome de Agatirso; aosegundo, o de Génolo, e ao mais jovem, o de Cíntio.Lembrou-se, então, das ordens de Hércules e cumpriu-as. Osdois mais velhos, não tendo forças para dobrar o arco, forambanidos do lugar, indo estabelecer-se em outro país. Cíntio, omais moço, fez o que o pai havia determinado e permaneceu nasua pátria. É, pois, de Cíntio, filho de Hércules, que descendemtodos os reis dos Citas, e até hoje esse povo traz presa aotalabarte uma taça como reminiscência da que Hércules traziapendente do seu, por ocasião da sua aventura naquele país. Éassim que os Gregos habitantes do litoral do Ponto Euxinorelatam esse fato.

XI — Há ainda sobre o mesmo assunto outra versão, quede muito boa vontade passo a relatar. Os Citas nômadeshabitantes da Ásia, batidos pelos Masságetas, com os quaisentraram em guerra, atravessaram o Araxo e foram ter àCiméria — pois o país hoje ocupado pelos Citas pertenceuoutrora, ao que dizem, aos Cimérios. Estes, vendo-os invadirsuas terras, discutiram a medida a tomar ante tão gravecontingência. As opiniões se dividiram em extremos opostos,sendo as dos reis aceitas como as melhores. O povo achava quedeviam retirar-se para não se exporem aos azares de umcombate contra tão numeroso grupo de invasores, opinando osreis que se desse batalha aos que vinham atacá-los. O povo nãoqueria ceder ante o parecer dos reis, nem estes ante o dos seussúditos. Estes últimos preferiam a desonra à eventualidade de severem massacrados; aqueles achavam preferível morrer napátria do que fugir com a população. Por um lado,

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consideravam as vantagens que haviam desfrutado até ali; poroutro lado, previam os males que lhes adviriam fatalmente seabandonassem a pátria.

Como ambos os lados se mantivessem irredutíveis emsuas opiniões, a discórdia agravou-se entre eles. Sendo ospartidários de uns e de outros equivalentes em número, nãotardaram a decidir a questão pela força. Os que pereceram nessaocasião foram enterrados, pelos partidários do povo, perto dorio Tiras, onde ainda hoje vemos suas sepulturas. Essessobreviventes da contenda, depois de haverem prestado essaúltima homenagem aos mortos, abandonaram o país, e os Citas,encontrando-o deserto, dele se apoderaram.

XII — Encontramos ainda hoje na Cítia a cidade deCimério e a de Portmias Cimérios. Existe também ali umaregião denominada Ciméria e um estreito chamado Cimeriano.Parece certo que os Cimérios, fugindo dos Citas, se retirarampara a Ásia, estabelecendo-se numa pequena ilha onde hoje seencontra a cidade grega de Sínope. Não parece menos certo quese tenham extraviado ao persegui-los, penetrando na Média. OsCimérios, na sua fuga, iam contornando o litoral; os Citas, aocontrário, seguiam sempre mantendo o Cáucaso à sua direita,até que, perdendo a orientação, foram ter ao coração da Média.

XIII — Esta outra versão nos vem igualmente dosGregos e dos bárbaros; mas Aristeu de Preconésia, filho deCaistróbio, escreve em seu poema épico que, inspirado porFebo, foi até o país dos Issédons, ao sul do qual se encontram osArimaspes, povo de um só olho; que mais além ficam osGrifãos, que guardam o ouro, e mais longe ainda vivem osHiperbóreos, cujas terras se estendem para o mar; que todosesses povos, com exceção dos Hiperbóreos, vivemcontinuamente em guerra com seus vizinhos, a começar pelosArimaspes; que os Issédons foram expulsos do seu país deorigem pelos Arimaspes; os Citas, pelos Issédons, e os Cimérios

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— habitantes do litoral banhado pelo mar do sul — pelos Citas.Assim, Aristeu não concorda nem mesmo com os Citas no quese refere a essa região.

XIV — Já vimos de que país era o poeta Aristeu; masnão posso deixar de relatar o que ouvi a seu respeito emPreconésia e em Cizico.

Aristeu pertencia a uma das melhores famílias do seupaís. Diz-se ter ele morrido em Preconésia, na loja de umpisoeiro, onde entrara por acaso. O pisoeiro, fechando o seuestabelecimento, foi imediatamente avisar a família do morto. Anotícia espalhou-se logo por toda a cidade; mas um habitante deCizico, vindo de Artacéia, assegurou ter encontrado Aristeu acaminho de Cizico e falado com ele. Enquanto o forasteiro faziaessas afirmações, a família de Aristeu dirigia-se à loja dopisoeiro, com todo o necessário para o enterro; mas quandoabriram o estabelecimento não o encontraram, nem morto nemvivo. Conta-se ainda que, sete anos depois, ele reapareceu emPreconésia, onde compôs o poema épico que os Gregosdenominam Arimáspios, desaparecendo logo depois pelasegunda vez. É essa a lenda que corre nas cidades de Preconésiae Cizico.

XV — Vejamos agora o que aconteceu aosMetapontinos, na Itália, trezentos e quarenta anos depois deAristeu haver desaparecido pela segunda vez. Contam osMetapontinos que o poeta, ali surgindo, ordenou-lhes queerguessem um altar a Apolo, e erigissem, perto desse altar, umaestátua a que dariam o nome de Aristeu de Preconésia,dizendo-lhes serem eles os únicos, entre os Italiotas, a receber avisita de Apolo. Contam ainda que o próprio Aristeuacompanhava o deus sob a forma de um corvo, e que depois dehaver dado essa ordem desapareceu mais uma vez. Acrescentamos Metapontinos que, tendo mandado perguntar ao deus, emDelfos, o significado daquela aparição, a pitonisa concitara-os a

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cumprir as determinações do poeta, não tendo eles outrocaminho senão obedecer. Vê-se ainda hoje, na praça pública deMetaponto, perto da estátua de Apolo, outra estátua com onome de Aristeu, estando ambas cercadas de louros.

XVI — Nada se sabe de positivo sobre o que existe alémdo país de que falámos. Não encontrei ninguém que lá houvesseestado. Aristeu, de quem fizemos menção, não esteve adiante daterra dos Issédons, como ele diz no seu poema épico. Confessaele ter sabido dos Issédons o que contava dos países maisafastados. De qualquer maneira, levamos nossas investigaçõesaté onde era possível, e vamos dizer o que soubemos de exatopelas fontes a que recorremos.

XVII — Depois do porto dos Boristênidas, que se achabem no centro do litoral da Cítia, os primeiros povos queencontramos são os Calípides, de origem greco-cita. Um poucoacima ficam os Alazões. Estes e os Calípides seguem osmesmos costumes dos Citas. Cultivam o trigo e comem cebola,alho, lentilhas e favas. Ao norte do território ocupado pelosAlazões vivem os Citas lavradores, que semeiam o trigo, nãopara se utilizarem dele como alimento, mas para vendê-lo.Acima do país dos Citas encontram-se os Neuros. Pelo quepudemos saber, a parte setentrional do país dos Neuros não éhabitada. Todas essas nações estão situadas ao longo do rioHípanis, a oeste do território dos Boristênidas.

XVIII — Transpondo-se esse rio, encontra-seprimeiramente a Hiléia, na direção do litoral. Acima ficam osCitas agricultores. Os Gregos que vivem às margens do Hípanischamam-nos Boristênidas, mas denominam a si própriosOlbiopólitos. O país desses Citas agricultores, que fica a trêsdias de viagem do lado do levante, estende-se até o rioPantícapes. Atravessando-se essa região chega-se a vastosdesertos, além dos quais vivem os Andrófagos, que nada têm decomum com os Citas. Ao norte do território por eles habitado

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existem apenas desertos — pelo menos não se sabe daexistência de nenhum povo ali.

XIX — A leste da região ocupada pelos Citasagricultores e para lá do Pantícapes vivem os Citas nômades,que não lavram a terra. Toda a região, com exceção da Hiléia, édesprovida de árvores. Os Citas nômades ocupam, a leste, umaextensão correspondente a quatorze dias de jornada até o rioGerro.

XX — Além do rio Gerro fica o país dos Citas reais, osmais bravos e mais numerosos entre todos os de sua raça, econsiderando os demais como seus escravos. Estendem-se parao sul até a Táurida, e para leste até o fosso cavado pelos filhosdos escravos cegos, e Cremnes, cidade comercial sobre oPalos-Meótis. Uma das partes dessa nação estende-se até oTánais. Ao norte do território dos Citas reais encontram-se osMelanclenes, que não pertencem à mesma raça. Mais acima, aoque soubemos, não existem mais do que pântanos e terrasdesabitadas.

XXI — O território situado adiante do Tánais nãopertence à Cítia, mas aos Saurómatas, cujas terras podemosatravessar em quinze dias de marcha, durante os quais nãovemos nem árvores frutíferas, nem selvagens. A segunda regiãoao norte dessa nação é habitada pelos Budinos e possui, emabundância, toda espécie de árvores. Ao norte dessa região háum vasto deserto, cuja travessia pode ser feita em sete dias demarcha.

XXII — Atravessando-se esse deserto, para leste,entra-se no território dos Tisságetas, povo indígena e numeroso,que vive exclusivamente da caça. Suas terras confinam com ados Iircos, também caçadores e que procedem da seguintemaneira para apanhar a presa: Como há bosques por toda parte,sobem nas árvores para pesquisar o mato e localizar a caça.Levam, cada um, seu cavalo, que fazem deitar com o ventre em

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terra, a fim de parecer menor. Acompanham-nos, também, cãespara farejar e perseguir a caça. Logo que o caçador, do alto daárvore, percebe a presa e tem-na ao seu alcance, procuraatingi-la com uma flechada; depois, monta a cavalo epersegue-a, auxiliado pelo cão, apresando-a por fim.

Para além dos Iircos, avançando para leste, encontramosos Citas, que, tendo sacudido o jugo dos Citas reais, vieramestabelecer-se nessa região.

XXIII — Toda a extensa zona de que acabo de falar, atéo país dos Citas, é plana e muito fértil; mas, para diante, oterreno é estéril e pedregoso. Depois de se ter percorrido grandeparte dele entra-se em contato com povos que vivem ao sopé degrandes montanhas e que, segundo contam, são calvos denascença, tanto os homens como as mulheres, tendo o narizachatado e o mento alongado. Possuem idioma próprio, masvestem-se à maneira dos Citas. Alimentam-se do fruto de umaárvore denominada “pontica”, que atinge o tamanho de umafigueira e cujo fruto tem um caroço mais ou menos da grossurade uma fava. Quando o fruto está maduro, colhem-no eespremem-no num pedaço de tecido, extraindo um licor negro eespesso, a que dão o nome de “asqui”. Tomam esse licormisturado com leite. O bagaço é transformado numa massa, quetambém lhes serve de alimento. É diminuta a quantidade degado que criam por faltarem bons pastos.

Cada um tem a sua árvore, onde passam o ano inteiro.No Inverno cobrem-na de lã branca, retirando-a à chegada doVerão. Ninguém os molesta, pois são considerados criaturassagradas. Não possuem arma alguma. Os vizinhos tomam-noscomo árbitros em demandas e disputas, e quem se refugia entreeles encontra ali asilo inviolável. Chamam-nos Argipenses.

XXIV — Tem-se um conhecimento exato de toda aregião até as terras ocupadas por esses homens calvos, e detodas as nações que ficam do lado de cá, não sendo difícil obter

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notícias delas por intermédio dos Citas que vão constantementeaté lá; pelos Gregos da cidade comercial situada no Borístenes,e pelos habitantes de outras cidades situadas no Ponto Euxino.Esses povos falam sete línguas diferentes. Assim, os Citas queviajam têm necessidade de sete intérpretes.

XXV — Embora essa região seja bem conhecida pelasrazões que acabamos de expor, nada se pode dizer comsegurança sobre as terras ao norte; montanhas elevadas einacessíveis interditam a passagem. Os Argipenses afirmam,todavia, serem essas terras habitadas pelos Egípodes, ouhomens de pés de cabra, o que, entretanto, não me parece dignode crédito. Acrescentam também que, se avançarmos mais paradiante encontraremos outros povos que dormem seis meses doano, no que também não creio muito. Sabe-se ser o território aleste do país dos Argipenses ocupado pelos Issédons; mas o quefica para baixo não é conhecido nem dos Argipenses nem dosIssédons, que não sabem dele senão o que me contaram.

XXVI — Eis alguns dos costumes observados pelosIssédons, de acordo com o que me contaram: Quando um delesperde o pai, os parentes levam-lhe gado, que abatem e cortamem pedaços, fazendo o mesmo com o cadáver, e misturandotodas as carnes realizam um festim. Arrancam os cabelos dacabeça do morto e, depois de haverem limpado o crânio,douram-no, servindo-se dele como de um vaso precioso nossacrifícios solenes que oferecem todos os anos. Os filhoscumprem esses deveres para com os pais, da mesma maneiraque os Gregos celebram o aniversário da morte dos genitores.Os Issédons têm grande amor à justiça, e, entre eles, a mulhertem tanta autoridade quanto o homem.

XXVII — É isso o que se conhece sobre esses povos.Quanto à região que fica mais acima, sabe-se, pelo testemunhodos Issédons, ser habitada por homens de um só olho, e pelosGrifãos, que guardam o ouro. Os Citas colheram essas

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informações com os Issédons, e nós com os Citas. Nós oschamamos Arimaspes em língua cita. Nessa língua arimasignifica um e spu olho.

XXVIII — Em toda a região de que acabo de falar, oInverno é tão rude, e o frio tão intenso pelo espaço de oitomeses, que espalhando-se água pela terra não se faz lama, senãoquando se acende fogo. O próprio mar gela, assim como oBósforo Cimeriano; e os Citas da Quersonésia passam com seusexércitos sobre o gelo, conduzindo carroças, para irem ao paísdos Sindas. O Inverno mantém-se intenso durante oito meses,sendo que os outros quatro últimos meses também são frios. OInverno nessas paragens é, aliás, muito diverso do dos outrospaíses. Chove tão pouco durante a estação, que se pode dizer serela de completa seca; e no Verão não cessa de chover. Nãotroveja na época em que costuma trovejar em outros lugares;mas as trovoadas são muito freqüentes no Verão; e se as ouvemno Inverno, encaram o fato como algo fenomenal. O mesmo sedá com os tremores de terra. Quando verificados na Cítia, noVerão ou no Inverno, passam por verdadeiros fenômenos. Oscavalos, na referida região, suportam bem o frio; mas as mulas eos jumentos com ele se ressentem, embora o contrário se dê emoutros lugares: os cavalos a ele expostos definham, e as mulas eos jumentos nada sofrem.

XXIX — Penso que é o rigor do frio que impede os boisde terem ali chifres. Homero mostra-se de acordo comigoquando, na “Odisséia”, fala nestes termos: “E a Líbia, onde oscornos vêm prontamente aos cordeiros”; o que é exato, pois nospaíses quentes os cornos crescem cedo nos animais, e onde ofrio é violento, nem chegam a nascer, e se nascem, não crescemmuito.

XXX — Nessa região, é o frio a causa disso; mas,observando de passagem, como gosto de fazer e como venhofazendo desde o início desta história, espantou-me saber que em

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toda a Élida é raro encontrar-se mulas, embora o clima ali nãoseja frio e não se possa alegar nenhuma causa sensível. OsEletos dizem ser a conseqüência de alguma maldição. Quandose aproxima a época do cio, os Eletos levam as éguas para ospaíses vizinhos, trazendo-as de volta quanto estão pejadas.

XXXI — Quanto às plumas de que os Citas dizem estaro ar cheio a ponto de perturbar a visão e não permitir apermanência de ninguém ali, eis a minha opinião a respeito:Neva sempre nas regiões situadas ao norte da Cítia, mas,evidentemente, menos no Verão do que no Inverno. Quem tenhavisto a neve cair em grossos flocos compreende perfeitamente oque quero dizer. Essa se assemelha, na realidade, a plumas.Penso, pois, que essa parte do continente é inabitável devido aofrio excessivo, e que, quando os Citas e seus vizinhos falam deplumas, referem-se ao que a neve sugere.

XXXII — Nem os Citas, nem qualquer outro povodessas regiões falam dos Hiperbóreos a não ser os Issédons osquais, a meu ver, também nada dizem. Pois do contrário osCitas (que por informações deles nos falaram sobre osArimaspes) dir-nos-iam também qualquer coisa. Entretanto,Hesíodo a eles alude, o mesmo fazendo Homero nosEpígonos(1) — a acreditar-se seja ele o verdadeiro autor dessepoema.

XXXIII — Os Délios falam mais detalhadamente sobreo referido povo. Contam que as oferendas dos Hiperbóreos lhesvinham envoltas em palha de trigo. Passando pelas mãos dosCitas e transmitidas de povo a povo, essas oferendasalcançavam terras distantes, chegando até o Adriático, aocidente, de onde eram enviadas para o sul. Os Dodoneus eramos primeiros Gregos a recebê-las. Dali desciam até o golfoMalíaco, de onde passavam para a Eubéia, e, seguindo de umacidade para outra, iam ter a Cariste. Dali, sem tocar em Andros,os Caristeus levavam-nas para Tenos, de onde os Teneus as

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transportavam para Delos. A dar crédito aos Délios, era assimque essas oferendas chegavam à sua ilha. Acrescentam eles que,nos primeiros tempos, os Hiperbóreos enviavam as oferendaspor intermédio de duas virgens — Hiperoquéia e Laodicéia;que, para segurança dessas jovens, os Hiperbóreos faziam-nasacompanhar por cinco cidadãos, a que atualmente se rendemgrandes homenagens em Delos sob o nome de Pérferos; masque, os Hiperbóreos, não os vendo regressar e ante adesagradável possibilidade de virem a perder muitos outros deseus delegados nessa missão, resolveram, depois de certotempo, levar as oferendas até as fronteiras, envoltas em palha detrigo, de onde eram enviadas aos vizinhos mais próximos, aquem solicitavam remetê-las a outra nação. Dessa maneira, asoferendas iam passando, segundo os Délios, de país a país, atéchegarem ao seu ponto de destino.

Notei, entre as mulheres da Trácia e da Peônia, umcurioso costume com relação às coisas sagradas. Elas jamaissacrificam a Diana real sem fazerem uso da palha de trigo. Eiscomo, segundo dizem, elas procedem:

XXXIV — Os jovens délios de ambos os sexos cortam ocabelo em honra das virgens hiperbóreas que morreram emDelos. As moças cumprem esse dever antes do casamento.Tomando de um cacho dos cabelos, enrolam-no num fuso ecolocam-no no túmulo das virgens, no recinto consagrado aDiana, à esquerda de quem entra, à sombra de uma oliveira. Osjovens délios encrespam os cabelos com o auxílio de gravetos ecolocam-nos no mesmo local.

XXXV — Os Délios dizem também que, no mesmoséculo em que os referidos delegados vieram a Delos cumprindoa missão que lhes fora confiada, duas outras virgenshiperbóreas, uma das quais se chamava Argéia e a outra Ópis, jáali tinham estado, muito antes de Hiperoquéia e Laodicéia.Traziam elas oferendas que haviam prometido para terem partos

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fáceis, e ali chegaram em companhia dos próprios deuses. Porisso os Délios lhes rendem grandes homenagens e suasmulheres lhes celebram os nomes num hino que Ólen de Líciacompôs em seu louvor. Os Délios dizem ainda que aprenderamcom os insulares e os Iônios a celebrar nos hinos Ópis e Argéiae a fazer óbolos em intenção delas. Foi esse Ólen que, vindo daLícia para Delos, compôs os antigos hinos cantados na ilha. OsDélios acrescentam que, depois de queimar no altar as coxasdas vítimas, espalham as cinzas sobre o túmulo de Ópis eArgéia. Esse túmulo fica atrás do templo de Diana, a leste, pertodo refeitório dos Cenos.

XXXVI — Acho que já disse o bastante sobre osHiperbóreos, e, por conseguinte, passarei em silêncio sobre oque se conta de Abáris, que era, ao que dizem, hiperbóreo, eque, sem comer, viajou por toda a terra levado por uma flecha.De resto, se há Hiperbóreos deve haver também Hipernoteus.De minha parte, não posso deixar de rir quando vejo os quedescreveram a circunferência da terra pretenderem, sem atenderà razão, ser a terra redonda, envolvida pelo oceano por todos oslados, e a Ásia igual à Europa. Tentarei mostrar as proporçõesde cada uma dessas partes do mundo e descrever suaconfiguração.

XXXVII — O país ocupado pelos Persas se estende atéo mar Austral, também chamado mar da Eritréia. Acima, aonorte, habitam os Medos; mais acima os Sápiros, e para alémdos Sápiros, os Colquidianos, junto ao mar do Norte, próximo àdesembocadura do Faso. Essas quatro nações se estendem deum mar a outro.

XXXVIII — Dali, seguindo na direção do ocidenteencontramos duas penínsulas opostas, que avançam mar adentro. Uma delas começa, do lado do norte, no Faso,estendendo-se ao longo do Ponto Euxino e do Helesponto, até opromontório de Sigéia, na Tróada. Do lado do sul, essa mesma

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península começa no golfo Meriândrico, adjacente à Fenícia,estendendo-se ao longo do mar até o promontório Triópio. Essapenínsula é habitada por trinta nações diferentes.

XXXIX — A outra península começa no país dos Persase estende-se até o mar da Eritréia(2). Compreende a Pérsia, aAssíria e a Arábia, e termina, segundo se diz, no golfo Arábico,onde Dario fez chegar um canal partindo do Nilo. Da Pérsia àFenícia encontram-se grandes vastidões de terras. Da Feníciaem diante a península estende-se ao longo do referido mar, pelaSíria da Palestina e Egito, onde termina. Compreende apenastrês nações.

XL — Os países a leste, além dos territórios dos Persas,dos Medos, dos Sápiros e dos Colquidianos, são limitados,desse lado, pelo mar da Eritréia, e ao norte, pelo mar Cáspio epelo Araxo, que segue na direção do nascente. A Ásia éhabitada até a Índia. Daí em diante, seguindo para leste,encontramos imensos desertos desconhecidos, sobre os quaisnada podemos dizer com segurança.

XLI — A Líbia vem logo depois do Egito e faz parte dasegunda península, apresentando-se bastante estreita nos seuslimites com aquele país. Com efeito, do litoral, ao norte, até omar da Eritréia não há mais que cem mil braças, ou sejam milestádios. Todavia, desse ponto em diante vai-se alargando, etoma então o nome de Líbia.

XLII — Os que descreveram a Líbia, a Ásia e a Europae lhes determinaram os limites, mostraram-se entendidos noassunto, indicando-lhes as justas proporções. Realmente, aEuropa quase iguala em comprimento as outras duas; mas nãome parece que lhes possa ser comparada em largura. A Líbiamostra ser envolvida pelo mar, exceto do lado em que confinacom a Ásia. Necao, rei do Egito, foi o primeiro, ao quesabemos, a provar isso. Quando renunciou à idéia de abrir ocanal que deveria conduzir as águas do Nilo ao golfo Arábico,

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escolheu experimentados navegadores fenícios e,embarcando-os em seus navios, deu-lhes instruções para que, navolta da viagem que iam fazer, passassem pelas colunas deHércules, no mar setentrional, regressando dessa maneira aoEgito. Os Fenícios, embarcando no mar da Eritréia, navegarampelo mar Austral. No Outono, desembarcaram na Líbia, noponto onde se achavam, e semearam o trigo. Chegada a épocada messe, colheram o trigo e fizeram-se novamente ao mar.Depois de dois anos de navegação dobraram as colunas deHércules e regressaram ao Egito. Contaram, ao chegar, quenavegando em torno da Líbia tinham o sol à sua direita, o quenão me parece crível(3), embora a muitos possa parecer. Foiassim, pois, que a Líbia tornou-se conhecida pela primeira vez.

XLIII — Contam os Cartagineses que, algum tempoantes dessa aventura, Sataspes, filho de Teáspis, da raça dosAquemênidas, recebera ordem de fazer a circunavegação daLíbia, não conseguindo, porém, levar a bom termo oempreendimento. Desanimado pela extensão do percurso eaterrorizado com os desertos encontrados pela costa, regressoupelo mesmo itinerário, sem haver completado a tarefa impostapela mãe.

Sataspes havia violado uma jovem, filha de Zópiro, queera, por sua vez, filho de Megabizo. Estando em vias de sercrucificado por esse crime, por ordem de Xerxes, sua mãe, irmãde Dario, implorou o perdão para ele, prometendo puni-lo demaneira ainda mais rigorosa do que a pena imposta, isto é,forçando-o a realizar a circunavegação da Líbia até o golfoArábico. Xerxes concedeu o indulto com essa condição.Sataspes dirigiu-se ao Egito, obteve um navio e marinheiros dopaís, e embarcando, rumou para as colunas de Hércules.Atravessando-as, dobrou o promontório Soloeis e velejou para osul; mas, depois de haver consumido vários meses na travessiade vasta extensão oceânica, vendo que ainda lhe restava umpercurso maior a vencer, tratou de regressar, ganhando o Egito

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novamente, de onde se dirigiu para a corte de Xerxes. Alichegando, contou ter visto, à beira dos mares longínquos quepercorrera, homenzinhos vestidos com folhas de palmeira, queabandonaram suas aldeias para se refugiarem nas montanhaslogo que perceberam o navio; e que desembarcando nessasaldeias nenhum mal haviam feito, contentando-se em lançarmão do gado que teve ao seu alcance. Acrescentou que nãocompletara a circunavegação da Líbia porque seu navio nãopudera avançar mais. Xerxes, persuadido de não estar eledizendo a verdade, manteve sua sentença por não haver elerealizado até o fim a prova imposta, mandando crucificá-lo. Umeunuco de Sataspes, logo que soube da morte do amorefugiou-se em Samos com grandes riquezas, das quais seapoderou um habitante dessa ilha. Não ignoro o seu nome, masnão desejo revelá-lo.

XLIV — A maior parte da Ásia foi descoberta porDario. Esse soberano, querendo saber em que ponto do mardesembocava o Indo, depois do Nilo o único rio onde seencontram crocodilos, equipou alguns navios, tendo portripulantes homens adestrados, entre os quais figuravam Cílax eCariando. Embarcando em Caspatiro, esses homens desceram orio, a leste, até o mar, de onde navegaram para ocidente,chegando finalmente, depois de trinta meses de viagem, aomesmo porto em que os Fenícios a que me referi há poucotinham embarcado para fazer a circunavegação da Líbia.Terminado o périplo, Dario subjugou os Indianos e passou aservir-se do mar que banhava o país. Foi assim que secomprovou que a Ásia, excetuando a parte oriental, seassemelha em tudo à Líbia.

XLV — Quanto à Europa, não me parece que alguémhaja, até aqui, descoberto ser ela cercada de mar a leste e aonorte. Sabe-se, todavia, em que extensão ela se liga às outrasduas partes da terra(4). Não compreendo por que, sendo a terrauma só, lhe dão três nomes diferentes, e, aliás, nomes de

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mulheres, e por que se dá à Ásia, por limites, o Nilo, rio doEgito, e o Fásis, rio da Cólquida; ou, segundo outros, o Tánais,o Palos-Meótis e o estreito Cimeriano. Não consegui saber osnomes dos que assim dividiram a terra, nem onde foram buscaresses nomes que lhe atribuíram. A maioria dos Gregos diz que onome Líbia provém de uma mulher originária do país, e o daÁsia, da mulher de Prometeu; mas os Lídios reivindicam para sia aplicação deste último nome, sustentando vir ele de Ásias,filho de Cótis e neto de Manes, de onde os Asíadas, tribo deSardes, tiraram também o seu nome.

Quanto à Europa, ninguém sabe, como já disse, se ela écercada de mar. Também não me parece que se saiba de ondelhe veio esse nome, nem quem lho aplicou pela primeira vez. Anão ser que o tenham tirado do de Europa de Tiro; pois outrora,da mesma maneira que as outras partes do mundo, ela nãopossuía nome. É certo que Europa era asiática, nunca veio aessa imensa extensão de terra a que os Gregos hoje denominamEuropa. Esteve somente na Fenícia, de onde passou para Creta edali para Lícia.

XLVI — O Ponto Euxino, que Dario atacou, é, de todasas regiões da terra, a que possui povos mais ignorantes, comexceção dos Citas. Entre os que vivem para cá do Ponto Euxinonão podemos, na verdade, citar um único que tenha dado provasde prudência e habilidade, ou mesmo fornecido um homem quese tenha distinguido pelos seus conhecimentos, excetuando osCitas, como povo, e Anacársis, como homem. Os Citas são, detodos os povos que conhecemos, os que encontraram meiosmais seguros para viver e manter as vantagens que alcançaramsobre seus vizinhos, embora nada apresentem digno deadmiração. Suas vantagens consistem em não deixarem escaparos que vêm atacá-los e em não se agruparem quando isso nãolhes convém, pois não possuem nem cidades nem fortalezas.Transportam, para onde vão, suas respectivas habitações, e sãoexímios no manejo do arco quando a cavalo. Não vivem do

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cultivo da terra, mas do gado. Pode-se dizer que, em geral, nãopossuem moradias outras que não suas próprias carroças. Vê-se,pois, que um povo que adota tal modo de vida não pode serfacilmente subjugado, sendo até mesmo difícil abordá-los.

XLVII — Esse gênero de vida que adotam decorre,principalmente, do fato de ser a Cítia um país favorecido pelanatureza, possuindo grande número de rios que lhe servem dedefesas naturais contra qualquer agressão. O país é plano,abundante de pastagens e bem regado, sendo quase tão cortadode rios quanto o Egito de canais. Entre os seus rios maisimportantes e facilmente navegáveis figuram o Íster, rio decinco embocaduras; o Tiras, o Hípanis, o Borístenes, oPantícapes, o Hipacíris, o Gerro e o Tánais, cujos cursostentarei descrever.

XLVIII — O Íster, o maior de todos os rios queconhecemos, é sempre o mesmo, no Verão ou no Inverno.Vamos encontrá-lo primeiramente na Cítia, a oeste dos outros, edurante o seu curso recebe as águas de vários outros rios eriachos, razão por que se torna o maior de todos eles. Cincograndes rios figuram entre os que contribuem para aumentar-lheo caudal. Esses rios, que atravessam a Cítia, são: o Porata, queos Gregos denominam Piretos, o Tiarante, o Arárus, o Náparis eo Ordessos. O primeiro tem um volume d’água considerável ecorre para leste, indo confundir-se com o Íster. O segundo, istoé, o Tiarante, é menor e corre mais a ocidente. Os três últimos— o Arárus, o Náparis e o Ordessos — correm entre os doisoutros e lançam-se também no Íster.

XLIX — O Máris vem do país dos Agatirsos e deságuano Íster. Do alto do monte Hemo saem três outros grandes rios:o Atlas, o Auras e o Tibísis, que se dirigem para o norte e seperdem no mesmo rio. Da Trácia correm outros três, que vêmlançar-se no Íster: o Átris, o Noes e o Ártanes. O Cios vem daPeônia e do monte Ródope; divide pelo meio no monte Hemo e

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deságua no mesmo rio. O Ãngrus corre da Ilíria para o norte,atravessa a planície Tribálica e desemboca no Brôngus, que, porsua vez, deságua no Íster; de sorte que o Íster recebe, ao mesmotempo, as águas de dois grandes rios. O Cárpis e o Ápis saem dopaís acima dos Úmbrios, correndo para o norte e perdendo-se nomesmo rio. Não devemos, de resto, nos espantar ante o fato de oÍster receber tantos rios, porquanto ele atravessa toda a Europa.Nasce no país dos Celtas (a última nação da Europa a oeste, seexcetuarmos os Cinetas), e depois de haver atravessado aEuropa inteira penetra na Cítia por um dos seus pontosextremos.

L — A reunião de todos os rios de que acabo de falar ede muitos outros torna o Íster a maior das correntes d’águaconhecidas; mas se o compararmos, ele somente, com o Nilo, orio egípcio terá a primazia, porquanto não possui afluentes paraavolumá-lo(5). A razão de ser o Íster, como já disse, sempre omesmo, quer no Verão, quer no Inverno, parece ser a seguinte:No Inverno ele não se torna mais volumoso porque, nessaestação, chove muito pouco nos países que atravessa,mantendo-se a terra ali coberta de neve. A neve, que cai emabundância durante o Inverno, dissolve-se no Verão e corre parao Íster. Essa neve dissolvida e as grandes chuvas desta últimaestação contribuem para engrossá-lo. Assim, se no Verão o solproduz maior evaporação do que no Inverno, as águas queconfluem para o rio nessa época são também mais abundantesdo que no Inverno. Desse fato resulta uma compensação, graçasà qual o rio mantém sempre o mesmo volume.

LI — O Íster é, como já dissemos, o primeiro dos riosque banham a Cítia. Encontramos, em seguida, o Tiras, quecorre do norte, de um grande lago que separa a Cítia daNêurida. Os Gregos denominados Tíritas habitam as imediaçõesda sua embocadura.

LII — O Hípanis é o terceiro desses rios. Vem da Cítia,

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de um grande lago em cujas margens pastam cavalos brancos eao qual deram o nome de Mãe de Hípanis. É um rio pequeno,cuja água é doce até certo trecho, tornando-se salobra quandoatinge a quatro dias de distância do mar. Esse amargor provémde uma fonte cujas águas correm para o rio e são tão amargasque, embora seja pequena sua quantidade em comparação comas que se misturam, bastam para lhes dar tão pronunciado sabor.A fonte está situada nas fronteiras do país dos Citas lavradores edos Alazões, e tem o mesmo nome do lugar onde se encontra:Exampéia, em linguagem cita, e que em grego significa: viasagrada. O Tiras e o Hípanis aproximarn-se um do outro no paísdos Alazões, mas logo se afastam, deixando entre si um grandeespaço.

LIII — O Borístenes é o quarto rio e o maior da Cítiadepois do Íster. É também, a meu ver, o mais fecundo de todosos rios, não só da Cítia, mas de todo o mundo, se excetuarmos oNilo, com o qual não há um só que se possa comparar. OBorístenes fornece ao gado boas e abundantes pastagens, e nelese pesca toda espécie de peixes. A água é agradável de beber,mantendo-se clara e límpida, embora os rios vizinhos sejamlimosos. Fazem-se, nas margens, excelentes colheitas, e noslugares não cultivados a erva cresce em abundância. O salcristaliza-se na embocadura, em grande quantidade. O rioproduz grandes peixes sem espinhas denominados “antacés”,que os habitantes salgam antes de comer.

Até o país chamado Gerro há uma distância equivalentea quarenta dias de navegação, e sabe-se que o rio Borístenesvem do norte; mas não se conhece nem a região que eleatravessa mais acima, nem os povos que a habitam. Há, porém,indícios de que ele corre através de um país deserto para atingiras terras dos Citas agricultores. Este povo vive em suasmargens, numa extensão correspondente a dez dias de viagem.Esse rio e o Nilo são os únicos dos quais não posso indicar asnascentes, e não creio que algum grego esteja mais informado

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sobre isso. Quando o Borístenes está prestes a lançar-se no mar,o Hípanis vem unir-se a ele, confluindo no mesmo pantanal. Afaixa de terra que fica entre esses dois rios chama-sepromontório de Hipolaus. Ali ergueram um templo a Ceres.Adiante desse templo, às margens do Hípanis, vivem osBoristênidas.

LIV — O Pantícapes é o quinto rio que encontramos naCítia. Vem também do norte, tendo suas nascentes num lago.Entra na Hiléia, e depois de atravessá-la mistura suas águas comas do Borístenes. Os Citas agricultores ocupam a regiãocompreendida entre esses dois rios.

LV — O sexto rio é o Hipacíris. Sai igualmente de umlago e corre pelo meio das terras dos Citas nômades,lançando-se no mar, perto da cidade de Carnicítis, circundando,à direita, o país da Hiléia e o que se denomina Rota de Aquiles.

LVI — O Gerro é o sétimo desses rios. Ao deixar o paísque lhe deu esse nome, afasta-se do Borístenes, correndo emdireção ao mar, mas lançando-se no Hipacíris, separando, noseu curso, os Citas nômades dos Citas reais.

LVII — Temos, por último, o Tánais, que vem de umpaís longínquo, tendo suas nascentes num grande lago, do qualsai para lançar-se num outro maior ainda: o Meótis, que separaos Citas reais dos Saurómatas. Entre os seus afluentesencontra-se o Hirges.

LVIII — São esses os principais rios que banham aCítia. A relva desse país é a melhor para o gado e a maissuculenta que conhecemos, como se pode verificar abrindo-se abarriga dos animais que dela se alimentam. Os Citas têm, assim,em abundância, as coisas mais necessárias à existência.

LIX — Quanto aos seus costumes, eis aqui alguns poreles cuidadosamente observados: procuram manter-se sob a

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proteção de Vesta, em primeiro lugar, de Júpiter e da Terra, queacreditam ser mulher de Júpiter. Depois dessas três divindades,que reputam as maiores, cultuam Apolo, Vênus-Urânia,Hércules e Marte. Todos os Citas reconhecem e veneram essasdivindades; mas os Citas reais sacrificam também a Netuno. Nalíngua dos Citas, Vênus chama-se Tabítis; Júpiter, Papéus,nome que, a meu ver, lhe é bem adequado; a Terra, Ápis;Apolo, Etósiros; Vênus-Urânia, Artimpasa, e Netuno,Tamimasadas. Erguem estátuas, altares e templos a Marte, esomente a este.

LX — Os Citas sacrificam em todos os lugaressagrados, procedendo da seguinte maneira: a vítima fica de pé,com os pés dianteiros amarrados. O que deve sacrificá-lacoloca-se atrás dela e puxa a corda que lhe prende os pés,fazendo-a tombar, enquanto invoca o deus ao qual vai imolá-la.Em seguida, amarra uma corda em torno do pescoço do animal,apertando-a com auxílio de um bastão até estrangulá-lo. Não seacende fogo e nem fazem libações. Estrangulada a vítima, ooficiante esfola-a, esquarteja-a e prepara-se para cozinhá-la.

LXI — Como não há lenha na Cítia, procedem daseguinte maneira para cozinhar a vítima: depois deesquartejá-la, retiram toda a carne que envolve os ossos ecolocam-na em caldeiras, se as possuem. Essas caldeiras seassemelham muito às crateras de Lesbos, com a diferença deserem bem maiores. Debaixo delas acendem o fogo com osossos da vítima. Se, porém, não possuem caldeiras, colocamtoda a carne, com água, no ventre do animal, e queimam osossos por baixo(6). Os ossos fornecem um bom lume, e o ventremantém muito bem a carne. Assim, os animais sacrificadosservem para cozinhar a si próprios. Quando tudo está cozido, osacrificador faz o oferecimento dos primeiros bocados de carnee de vísceras atirando-os para a frente. Os Citas sacrificamvárias espécies de animais, principalmente cavalos.

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LXII — Com relação a Marte, os Citas observam oseguinte culto: num campo destinado às assembléias da naçãoerguem-lhe uma espécie de templo, que é preparado destamaneira: amontoam feixes de gravetos, formando com eles umapilha de três estádios de comprimento e outros tantos de largura,mas de menor altura. Sobre essa pilha constroem uma espéciede plataforma quadrada, com três lados inacessíveis, e o quartoinclinado de maneira a poder-se por ele subir. Ali sãoamontoados todos os anos cento e cinqüenta carros de pequenospedaços de madeira, para manter na mesma altura a pilha quetende a baixar sob a ação das intempéries. No alto, cada naçãocita planta uma velha cimitarra de ferro, como símbolo deMarte(7), à qual fazem, todos os anos, sacrifícios, imolando-lhecavalos e outros animais, em número maior do que aos outrosdeuses. Sacrificam-lhe também a centésima parte de todos osprisioneiros feitos entre os inimigos, mas a cerimônia édiferente da que procedem com relação aos animais. Fazemprimeiramente libações com vinho sobre a cabeça da vítimahumana, degolam-na, em seguida, sobre um vaso, e levam-nopara o alto da pilha, despejando o sangue sobre a cimitarra.Enquanto o sangue é conduzido para cima, os que se achamembaixo cortam o braço direito, juntamente com o ombro, dosque já foram sacrificados, e atiram-nos para o ar. Terminado osacrifício, todos se retiram, deixando os braços das vítimas ondeforam lançados, enquanto que os corpos ficam estendidos emoutro lugar.

LXIII — É assim que esses povos sacrificam animais ecriaturas humanas às divindades de sua predileção. Nunca,porém, imolam porcos e nem deles se alimentam.

LXIV — Quanto aos costumes que observam na guerra,vale mencionar os seguintes: o guerreiro cita bebe o sangue doprimeiro homem que consegue abater, corta a cabeça a todos osque mata em combate e leva-as ao seu soberano. Quandoapresenta a este a cabeça de um inimigo, pode compartilhar dos

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despojos da luta; em caso contrário, lhe é negado esse direito.Para esfolar a cabeça do inimigo abatido, o Cita fazprimeiramente uma incisão em torno da mesma, na direção dasorelhas, e, segurando-a pelo alto, puxa a pele, arrancando-a. Emseguida, limpa a pele tirando-lhe toda a carne, depois do quefricciona-a nas mãos para amaciá-la. Tendo-a assim preparado,dela se serve como guardanapo e amarra-a no bridão do cavalo.Isso constitui um título de honra. O Cita que possui taisguardanapos é considerado valente e destemido, e quanto maioro número desses troféus, maior é a consideração de que gozaentre os seus. Muitos cosem os fragmentos de pele humana,como as capas dos pastores, e fazem delas vestuários. Outrostambém esfolam até as unhas a mão direita do inimigo, fazendoda pele bainha para as aljavas. A pele humana é, realmente,espessa e brilhante, e de todas a mais notável pela brancura.Outros há, ainda, que esfolam homens inteiros, e depois deespichar a pele em pedaços de madeira, colocam-na sobre seuscavalos.

LXV — As cabeças, não de todos os inimigos, mas dosmais famosos, são tratadas da seguinte maneira: serram o crânioacima das sobrancelhas e limpam-no. Os pobres contentam-seem revesti-lo de um pedaço de couro, sem ornato algum; osricos não só o recobrem com pele de boi, como o douram pordentro, dele servindo-se, à semelhança de uma taça, para beber.Fazem o mesmo com a cabeça dos parentes próximos se, depoisde alguma disputa com eles, levam a melhor. A decisão dacontenda tem de ser feita perante o rei. Se um estrangeiro decategoria visita o país apresentam-lhe esses crânios,relatando-lhe como venceram aqueles a que eles pertenceram,ainda que se trate de parentes, constituindo isso motivo devaidade e classificando tal procedimento como ações de mérito.

LXVI — Cada governador cita dá anualmente um festimem seu distrito ou província, no qual é servido vinho misturadocom água, numa cratera. Todos os que se podem vangloriar de

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haverem matado inimigos em combate bebem desse vinho; osque nada fizeram de semelhante estão privados desse direito, epermanecem à parte, em situação sumamente humilhante. Osresponsáveis pela morte de grande número de inimigos bebemem duas taças ao mesmo tempo.

LXVII — Os adivinhos pululam entre os Citas, eservem-se de varinhas de salgueiro para exercer seu mister.Trazem sempre consigo feixes dessas varinhas, e quando sãochamados a predizer o futuro, depositam-nos em terra,desamarram-nos e vão separando as varinhas, uma a uma.Enquanto fazem a predição vão retomando as varinhas, tambémuma a uma, e enfeixando-as novamente. Aprenderam com seusantepassados essa forma de predição. Os Enareus, homensefeminados, dizem ter recebido de Vênus esse dom. Servem-se,para exercer a arte, da casca da tília: cortam-na em três pedaços,que enrolam nos dedos e depois desenrolam, predizendo, emseguida, o futuro.

LXVIII — Se o rei dos Citas cai doente, manda buscartrês dos mais famosos adivinhos que praticam a arte da maneiraque acabo de expor. Convidados a explicar, servindo-se dosseus dons, a razão do mal e o meio de combatê-lo, elesgeralmente declaram que a razão está em haver tal ou qualindivíduo, cujo nome declinam, feito um juramento falso,invocando os Lares do palácio. Os Citas, com efeito, juram comfreqüência pelos Lares do palácio real quando querem fazer umprotesto solene. Apontado o acusado, é este levado preso pelosbraços à presença do rei. Os adivinhos, então, dizem-lhe quepela sua arte divinatória estão certos de haver ele jurado emfalso pelos Lares do palácio, tornando-se, assim, a causa daenfermidade do soberano. Se o acusado nega o crime emostra-se indignado com a imputação, o soberano chama outrostantos adivinhos, e se estes convencem do perjúrio pelasmesmas regras divinatórias, manda cortar incontinênti a cabeçado acusado, confiscando-lhe os bens em proveito dos adivinhos.

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Se os adivinhos chamados em segundo lugar declaram inocentea pessoa indigitada, o soberano faz vir outros, depois maisoutros, e se o réu for inocentado pela maioria, a sentença que oabsolve traz a condenação à morte dos primeiros adivinhos.

LXIX — Vejamos como é executada a sentença impostaa esses adivinhos: os executores enchem de pedacinhos demadeira uma carroça puxada por bois e sobre eles colocam osadivinhos, com as mãos amarradas atrás das costas,amordaçados e com os pés amarrados. Em seguida, ateiam fogoà madeira e espantam os bois. Muitos desses animais morremcom os adivinhos; outros se salvam, embora chamuscados. Éassim que os Citas procedem nas sentenças de morte contra osadivinhos que não tiveram seu parecer aprovado no julgamentode casos dessa e de outra natureza, sendo, por conseguinte,considerados falsos adivinhos.

LXX — O rei da Cítia manda matar os filhos doscondenados à morte, poupando, porém, as filhas. Quando osCitas estabelecem um pacto, eis como procedem: despejamvinho numa grande taça de barro, e os contratantes, fazendopequenas incisões no corpo com uma faca ou espada, vertem alium pouco do seu próprio sangue, depois do que mergulham nataça uma cimitarra, flechas, um machado e um dardo.Terminada a cerimônia, fazem longas preces e bebem parte doconteúdo da taça, e depois deles, as pessoas presentes de maisalta categoria, uma a uma(8).

LXXI — Os túmulos dos reis citas acham-se no país deGerro, no ponto em que o Borístenes começa a tornar-senavegável. Quando morre um soberano cita, abrem ali umgrande fosso quadrado para receber o cadáver. O corpo dofalecido é untado com cera, e o ventre, depois de aberto elimpo, enchem-no de pedra esmigalhada, de essências e desementes de aipo e de anis, recosendo-o em seguida. Feito issoconduzem o corpo num carro para outra província, onde os

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habitantes, à maneira dos Citas reais, cortam uma parte daorelha, raspam o cabelo em torno da cabeça, fazem incisões nosbraços, fendem a fronte e o nariz e passam flechas através damão esquerda. Dali, o corpo é levado, ainda de carro, para outraprovíncia, acompanhado pelos habitantes daquela por ondepassou em primeiro lugar. O soberano percorre assim, depois demorto, todas as nações submetidas ao seu domínio, até chegarao país dos Gerroneus, na parte extrema da Cítia, onde ocolocam na sepultura já preparada, sobre um leito de verdura.Lanças à guisa de estacas são fincadas em torno do corpo, sobreas quais são colocadas peças de madeira coberta com galhos desalgueiro. No espaço vazio deixado no fosso acomodam oscorpos estrangulados de uma das concubinas do rei, de umescudeiro, de um cozinheiro, de um pajem, de um dos ministrosreais, de um dos servidores, de cavalos, enfim, as premissas detodas as riquezas do soberano, inclusive taças de ouro — osCitas não conhecem nem a prata nem o cobre. Isso feito,enchem de terra o fosso e erguem, trabalhando por turnos, umcômoro elevado sobre a sepultura.

LXXII — Um ano depois da morte do soberano,escolhem entre o restante dos seus servidores os que lhe erammais úteis.

Esses servidores, diga-se de passagem, são todos denacionalidade cita, pois o rei da Cítia não tem escravoscomprados a dinheiro, fazendo-se servir pelos súditosdesignados para essa função. Estrangulam uns cinqüenta dessesservidores e um número equivalente dos seus mais beloscavalos(9), retiram-lhes as entranhas, limpam-lhes o ventre, edepois de o encherem de palha, cosem-no. Adaptando a duaspeças de madeira a metade de uma roda apoiada em terra, efazendo o mesmo com outras peças, depositam sobre essessemicírculos os cavalos, depois de lhes passarem estacas portoda a extensão do corpo até o pescoço. Os primeirossemicírculos sustentam os ombros dos animais, e os segundos,

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os flancos e as ancas, de modo que as pernas, sem apoio, ficamsuspensas. Adaptam-lhes, em seguida, uma espécie de rédea,que amarram a uma estaca, e tomando dos cinqüenta jovensestrangulados, colocam cada um deles sobre um cavalo, depoisde lhes atravessarem a espinha com uma vara, cuja extremidadeinferior se encaixa na estaca que passa através do corpo doanimal. Chegando ao local onde repousam os restos mortais dosoberano, dispõem os cinqüenta cavaleiros em torno do túmulo,retirando-se em seguida.

LXXIII — Tais as honras fúnebres que os Citas prestamaos seus soberanos. Quanto ao comum dos Citas, quando morre,seus parentes mais próximos colocam-no em uma carroça econduzem-no às casas dos que foram seus amigos em vida.Estes recebem-no, oferecendo, cada qual, um festim aos queacompanham o morto, servindo também a este as iguarias queservem aos vivos. O corpo é assim conduzido de um lado paraoutro durante quarenta dias, após o que o enterram. Quando osCitas dão sepultura a um morto, purificam-se da seguintemaneira: depois de haverem lavado e enxugado a cabeça,observam, com relação ao resto do corpo, as praxes seguintes:dobram três varas, uma de frente para a outra, e sobre elasestendem panos de lã, no meio dos quais colocam um vaso, emque depositam pedras aquecidas ao rubro.

LXXIV — Na Cítia cresce o cânhamo, que se assemelhamuito ao linho, sendo, porém, mais espesso e maior, sendo nistosuperior a este último. Essa planta se origina de si própria e dasemente que produz. Os Trácios fazem com ela vestimentas,que se confundem com as de linho, sendo necessário conhecerbem uma e outra para distingui-las.

LXXV — Os Citas tomam das sementes do cânhamo elançam-nas sobre as pedras aquecidas ao fogo. Quandocomeçam a queimar, desprendem grande quantidade de vapor,não havendo na Grécia estufa que o faça de tal forma. Os Citas

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expõem-se a esses vapores e, sentindo-se atordoados, soltamgritos e fazem imensa algazarra. Esse vapor lhes serve debanho, pois nunca se banham. Quanto às mulheres, trituramsobre uma pedra galhos de cipreste, de cedro ou da árvore doincenso, e esfregam-nos no rosto e no corpo. A espécie de pastaque assim obtêm lhes dá um cheiro agradável, e no dia seguinte,ao removê-la, sentem-se limpas e frescas.

LXXVI — Os Citas manifestam absoluta indiferençapelos costumes estrangeiros. Não adotam os de nenhum povo,sendo maior ainda sua aversão pelos dos Gregos. Anacársis, edepois dele Cílis, exemplificam bem tal ojeriza. Anacársis,tendo percorrido diversos países e mostrado por toda partegrande sabedoria, embarcou no Helesponto para retornar àpátria. Aportando em Cizico, na ocasião em que os habitantesestavam celebrando, com grandes solenidades, a festa da mãedos deuses, fez promessa de, se voltasse são e salvo à pátria,oferecer à deusa sacrifícios com o mesmo rito e cerimonial quehavia presenciado em Cizico, e instituir, em louvor à mesma, avigília da festa. Ao chegar à Hiléia, região da Cítia,inteiramente coberta de árvores de toda espécie e situada nasproximidades da Passagem de Aquiles, celebrou a festa emhonra à deusa, com pequenas imagens ligadas ao corpo e tendonas mãos um tamboril. Um cita, vendo-o naquelas condições,foi logo denunciá-lo ao rei Sáulio. O soberano foi, ele próprio,certificar-se do fato, e encontrando Anacársis ainda entregue àcelebração da festa, matou-o com uma flechada. Ainda hoje, sefalarmos de Anacársis aos Citas, eles fingem não conhecê-lo,somente por ter ele viajado pela Grécia e adotado costumesestrangeiros. Ouvi Timneu, tutor de Ariapito, dizer queAnacársis era tio de Idantirso, rei dos Citas, por parte de pai, efilho de Gniro, neto de Lico e bisneto de Espargapito. Se, pois,Anacársis pertencia a essa estirpe, deduz-se ter sido ele mortopelo próprio irmão. Idantirso era, com efeito, filho de Sáulio,responsável pela morte de Anacársis.

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LXXVII — Entretanto, os habitantes do Peloponeso sereferem ao fato de outra maneira. Dizem que Anacársis, tendosido enviado pelo rei dos Citas a países estrangeiros, tornou-sediscípulo dos Gregos; e de volta à pátria, disse ao soberano quetodos os povos se aplicavam às artes, exceto os Lacedemônios,mas que só estes cultivavam a arte de falar e de responder commoderação e prudência. Considero esta história pura invençãodos Gregos. Anacársis foi realmente morto da maneira a quenos referimos, e teve esse triste fim por haver praticadocostumes estrangeiros e mantido relações com os Gregos.

LXXVIII — Muitos anos depois, Cílis, filho deAriapito, rei dos Citas, teve a mesma sorte. Ariapito possuíavários filhos, mas tivera Cílis de uma mulher estrangeira, dacidade de Ístria, que lhe ensinou a língua e as letras gregas.Algum tempo depois, foi ele morto à traição por Espargapito,rei dos Agatirsos. Cílis, subindo ao trono, desposou Ópia, denacionalidade cita, viúva de seu pai e da qual o falecido reitivera um filho de nome Órico.

Embora Cílis se tornasse rei dos Citas, os costumes daCítia não lhe agradavam absolutamente, inclinando-se ele paraos dos Gregos, tanto mais que havia sido educado no meiodestes desde tenra idade. Por isso, todas as vezes que conduziao exército cita à cidade dos Boristênidas, cujos habitantes sediziam originários de Mileto, deixava-o diante da cidade, e logoque nela entrava, mandava fechar as portas. Trocava, então, otraje cita por um grego e, assim vestido, passeava pela praçapública, sem ninguém a acompanhá-lo. Enquanto isso,revezavam-se as sentinelas nas portas, para que nenhum cita opercebesse em tais vestes. Além de outros costumes gregos, queele adotava nessa ocasião, reproduzia-lhes as cerimônias nossacrifícios aos deuses. Depois de haver permanecido na cidadeum mês ou mais, retornava aos trajes citas e ia reunir-se aoexército. Procedia, freqüentemente, dessa forma. Mandoutambém construir um palácio em Borístenis e desposou uma

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filha do país.

LXXIX — Os fados, tendo decidido a perda de Cílis, eiso que aconteceu: O soberano desejou fazer-se iniciar nosmistérios de Baco. Quando tinha início a cerimônia e iamcolocar-lhe nas mãos os objetos sagrados, deu-se um fatoverdadeiramente prodigioso. Havia em Borístenis um palácio,que o próprio soberano mandara erigir. Era um vasto e soberboedifício, em torno do qual viam-se esfinges e grifos de mármorebranco. O deus fulminou-o em sua cólera, reduzindo-o a cinzas.Cílis nem por isso interrompeu a cerimônia iniciada. Os Citasreprovam aos Gregos a celebração de bacanais, e julgamcontrária à razão a idéia de um deus que leva os homens a taisextravagâncias. Logo que Cílis se iniciou nos mistérios deBaco, um habitante de Borístenis dirigiu-se secretamente aoexército cita, dizendo aos soldados: “Zombais de nós porque,celebrando bacanais, o deus de nós se apodera. Esse deusapossou-se também do vosso rei; Cílis rende culto a Baco, e odeus lhe perturba a razão. Se não acreditais no que digo,segui-me, que eu vo-lo mostrarei”. As figuras maisrepresentativas da nação seguiram-no. O delator levou-assecretamente a uma torre, de onde elas viram passar Cílis e seugrupo, celebrando as bacanais. Considerando essa condutapouco digna e perigosa para a nação, os Citas levaram o fato aoconhecimento de todo o exército.

LXXX — Quando Cílis voltou para o palácio, seussúditos revoltaram-se e proclamaram em seu lugar Octamasada,seu irmão e filho da filha de Teres. Sabendo da revolta e domotivo que a determinara, o soberano procurou refúgio naTrácia; mas Octamasada, à frente de um exército, foi em suaperseguição. Ao chegar às margens do Íster, os Tráciosvieram-lhe ao encontro; e quando estava prestes a travar-se abatalha, Sitalces enviou um arauto a Octamasada, paradizer-lhe: “Por que precisaremos nós ambos expor-nos à sortedas armas? És filho de minha irmã e tens meu irmão em teu

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poder. Se mo entregares, eu te entregarei Cílis, sem que teexponhas aos riscos de uma batalha”. O irmão de Sitalcesestava, realmente, refugiado junto a Octamasada.

O príncipe aceitou a proposta; entregou o tio por partede mãe a Sitalces e recebeu, em troca, o irmão, Cílis. Realizadaa transação, Sitalces retirou-se com suas tropas, enquanto onovo rei dos Citas mandava cortar a cabeça de Cílis, ali mesmoonde se encontravam.

Tal a intransigência com que agem os Citas naobservância de seus próprios costumes e o rigor com que punemos que seguem, nesse terreno, os estrangeiros.

LXXXI — Quanto à população da Cítia, jamais pudesaber ao certo o seu número. Dizem uns que o país é muitopovoado; outros que, se considerarmos apenas os verdadeirosCitas, seu número é bastante reduzido. Vejamos, porém, o queme foi dado observar pessoalmente.

Entre o Borístenes e o Hípanis existe um cantãodenominado Exampeu, do qual fiz menção um pouco atrás, aoreferir-me a uma fonte cujas águas muito amargas alteramcompletamente as do rio Hípanis, tornando-as imprestáveis parabeber. Há ali um vaso de bronze seis vezes maior que a crateraexistente na embocadura do Ponto Euxino, dádiva feita porPausânias, filho de Cleômbroto. Esse vaso de bronze comportao volume de seiscentas ânforas e tem seis dedos de espessura.Os habitantes da região dizem ter sido ele fabricado com pontasde flechas. Ariantas, seu soberano, desejando saber o númeroexato de seus súditos, ordenou a todos os Citas que trouxessem,cada um, uma ponta de flecha, sob pena de morte; e foi daimensa quantidade de pontas de flechas reunida que foifabricado o vaso de bronze, mandado colocar pelo soberano nolugar chamado Exampeu, como um monumento por ele legadoà posteridade.

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LXXXII — Na Cítia nada existe de maravilhoso senãoos rios que a banham. Esses rios são de considerável volume eem grande número. Todavia, além dessas soberbas correntesd’água e de suas imensas planícies, a Cítia possui algo curioso eque atrai a atenção daqueles que a visitam. Trata-se da marca dopé de Hércules, num rochedo perto de Tiras. Essa marcaassemelha-se à do pé de um homem, medindo, porém, doiscôvados de comprimento. Retornemos agora ao assunto de queme propus tratar no começo deste livro.

LXXXIII — Dario fez grandes preparativos para aguerra contra os Citas; despachou emissários para todos osrecantos do país, ordenando, a uns, a organização de umexército de terra; a outros, o equipamento de uma frota; aoutros, enfim, a construção de uma ponte sobre o Bósforo daTrácia. Entretanto, Artábano, filho de Histaspes e irmão deDario, não aprovava a idéia do soberano de atacar a Cítia.Chamou-lhe a atenção para a pobreza daquele povo e para aspoucas vantagens que lhe adviriam de uma tal guerra; masquando viu que suas advertências, embora sensatas, nenhumefeito produziam no espírito de Dario, não insistiu mais.Concluídos os preparativos, o soberano, à frente do seuexército, partiu de Susa.

LXXXIV — Quando as tropas se punham em marcha,um persa, de nome Ébaso, suplicou a Dario que deixasse ficarconsigo um dos seus três filhos que tomavam parte naexpedição. O soberano respondeu-lhe que, em vista de umpedido tão moderado e por tratar-se de um amigo, deixar-lhe-ia,não apenas um, mas os três. O persa ficou encantado com aresposta e satisfeitíssimo por terem os seus filhos sidodispensados; mas o soberano mandou matar os jovens,abandonando-os no local onde foram executados.

LXXXV — Dario dirigiu-se de Susa a Calcedônia, noBósforo, onde havia sido construída a ponte. Ali embarcou,

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rumando para as ilhas Ciâneas, que eram outrora errantes, adarmos crédito aos Gregos. Dirigindo-se ao templo, alisentou-se, pondo-se a tecer considerações em torno do PontoEuxino. Esse mar é de todos o mais digno de nossa admiração.Mede onze mil e cem estádios de extensão, por três mil etrezentos na sua maior largura. Mede a embocadura desse marquatro estádios de largura por, mais ou menos, vinte e seis decomprimento. É o estreito de Bósforo. Foi ali que construíram aponte. O Bósforo estende-se até o Propôntide, que medequinhentos estádios de largura, por mil e quatrocentos decomprimento, desembocando no Helesponto, que, no seu pontomais estreito, não mede mais de sete estádios de largura porquatrocentos de comprimento. O Helesponto comunica-se comum vasto mar chamado Egeu.

LXXXVI — As dimensões desses mares foram obtidasda seguinte maneira: nos dias longos um navio cobre, digamos,cerca de setenta mil braças por dia e sessenta mil por noite. Ora,da confluência do Ponto Euxino ao Fásis, onde apresenta a suamaior extensão, há nove dias e oito noites de navegação, o queperfaz um total de um milhão e cento e dez mil braças, ou sejamonze mil e cem estádios. De Síndica a Temiscira, noTermodonte, onde o Ponto Euxino é mais largo, contam-se trêsdias e duas noites de navegação, perfazendo trezentas e trintamil braças ou três mil e trezentos estádios. Foi baseando-menesses cálculos que obtive as dimensões do Ponto Euxino, doBósforo e do Helesponto. O Palos-Meótis vai ter ao PontoEuxino e não é muito maior do que esse mar. Chamam-no mardo Ponto.

LXXXVII — Depois de haver feito um reconhecimentodo Ponto Euxino, Dario retornou por mar à ponte de batéisconstruída por Mândrocles de Samos. Examinou também oBósforo, à margem do qual mandou levantar duas colunas depedra branca, fazendo gravar numa, em caracteres assírios, e naoutra, em caracteres gregos, o nome de todas as nações que

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figuravam na expedição. Ora, no exército que reunira estavamrepresentados todos os povos submetidos ao seu domínio, numtotal de setecentos mil homens, inclusive a cavalaria, mas semcontar a frota de seiscentos veleiros.

Depois da expedição dos Persas à Cítia, os Bizantinostransportaram as duas colunas para sua cidade e colocaram-nasno templo de Diana Ortosiana, com exceção de uma pedra poreles deixada junto ao templo de Baco, em Bizâncio, coberta decaracteres assírios. De resto, o ponto do Bósforo onde Dariomandou construir a ponte é, ao que me parece, a metade dadistância entre Bizâncio e o templo, situado na confluência doPonto Euxino.

LXXXVIII — Satisfeito com a ponte, Dario cumulouMândrocles de Samos, seu construtor, de ricos presentes. Com oproduto de alguns desses presentes Mândrocles mandou fazerum quadro representando a ponte do Bósforo e onde apareciaDario sentado no trono, vendo desfilar suas tropas. Ofereceuesse quadro ao templo de Juno(10), com a seguinte inscrição:“Mândrocles consagrou a Juno esta obra em memória da pontede batéis que construiu para unir as duas margens do Bósforo.Assim, realizando o desejo do rei Dario, adquiriu para si mesmouma coroa, e para Samos, a glória”.

LXXXIX — Dario, tendo recompensado Mândroclespelo seu notável trabalho, passou para a Europa. Tinhaordenado aos Iônios que velejassem para o Ponto Euxino, até oÍster, e lançassem uma ponte sobre esse rio quando alichegassem, aguardando a sua chegada. Os Iônios, os Eólios e oshabitantes do Helesponto conduziam as forças navais. A frotadobrou as Ciâneas, rumando diretamente para o Íster; e depoisde subir esse rio durante dois dias, do mar até o ponto onde elese divide em diversos braços formando outras tantasembocaduras, puseram-se os marinheiros a construir a ponte.Dario, atravessando o Bósforo pela ponte de batéis, continuou

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em direção à Trácia, e ao chegar às nascentes do Tearos aliacampou durante três dias.

XC — Os povos que habitam as margens desse riopretendem serem suas águas, umas quentes e outras frias, degrande eficiência contra várias moléstias, curando,principalmente, os homens e os cavalos da sarna. Suasnascentes acham-se no mesmo rochedo, de onde o rio sai emtrinta e oito braços, e estão situadas a igual distância da cidadede Hereo, — localizada perto de Perinto e de Apolônia —cidade situada no Ponto Euxino, a dois dias de viagem dessasduas localidades. O Tearos desemboca no Contadesdo, oContadesdo no Agrianes, o Agrianes no Ebro, e o Ebro no mar,perto da cidade de Enos.

XCI — Chegando às nascentes do Tearos, Dario, comojá dissemos, ali ergueu acampamento. Tão encantado ficou coma beleza e majestade desse rio, que mandou erigir no local umacoluna com esta inscrição: “As nascentes do Tearos fornecem asmelhores e as mais belas águas do mundo; Dario, filho deHistaspes, o melhor e o mais belo de todos os homens, rei daPérsia e de toda a terra firme, marchando contra os Citas,chegou às suas margens”.

XCII — Partindo dali, foi ter às margens de um outro riochamado Artisco, que atravessa o país dos Odrísios. Indicandoàs tropas um determinado local, ordenou a cada soldado quelançasse uma pedra ali ao passar. A ordem foi executada, e oexército, deixando no local um grande monte de pedras,continuou a marcha.

XCIII — Os Getas, que se dizem imortais, foram oprimeiro povo a ser subjugado pelo rei persa, antes de haveratingido o Íster, seguindo-se os Trácios de Salmidéssia e os quehabitam ao norte de Apolônia e da Mesâmbria, que se renderamsem opor a mínima resistência. Os Getas, por uma estúpidateimosia, colocaram-se na defensiva, mas foram batidos ali

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mesmo e reduzidos à escravidão. É esse povo o mais bravo e omais justo entre os Trácios.

XCIV — Os Getas julgam-se imortais e pensam que osque morrem vão para junto do deus Zálmoxis, que algunsacreditam ser o mesmo que Gebelêizis. De cinco em cinco anossorteiam um dentre eles para levar notícias ao deus, e dizer-lhedas suas necessidades. Eis como fazem a deputação: três dentreeles são encarregados de manter a respectiva azagaia de pontapara cima, enquanto outros, tomando pelos pés e pelas mãos oque deve ser enviado a Zálmoxis, jogam-no para cima, demaneira a cair sobre as aguçadas pontas. Se ele morre dosferimentos recebidos, acreditam que o deus lhe foi favorável; senão morre, acusam-no de mau. Depois de lançarem sobre ele asmaiores acusações e injúrias, escolhem outro, repetindo omesmo processo. Esses Trácios têm o costume de lançar flechascontra o céu quando troveja ou relampeja, como para ameaçar odeus que assim se manifesta, pois estão persuadidos de que nãoexiste outro deus senão o que eles adoram.

XCV — Ouvi, entretanto, os Gregos que habitam oHelesponto dizerem que Zálmoxis era um homem, tendo vividoem Samos como escravo de Pitágoras, filho de Mnesarco.Tendo obtido a liberdade, acumulara grandes riquezas, com asquais voltara ao seu país. Observando a vida infeliz e grosseirados Trácios, ele, que tinha sido educado segundo os costumesdos Iônios e contraído com os Gregos, e particularmente comPitágoras, um dos mais célebres filósofos da Grécia, o hábito depensar mais profundamente do que seus compatriotas, mandouconstruir um soberbo recinto, onde oferecia festas aos grandesda nação. Em meio ao banquete falava-lhes, persuadindo-os deque nem ele, nem os seus convivas, nem os seus descendentesjamais morreriam, mas que iriam para um lugar ondedesfrutariam, eternamente, toda sorte de bens. Enquanto assimprocedia perante seus compatriotas, entretendo-os com essesdiscursos, construía em sigilo um subterrâneo. Concluído este,

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esquivou-se da vista dos Trácios e desceu ao mesmo, ondepermaneceu cerca de três anos. Foi lamentado e chorado comomorto. Finalmente, passado esse período reapareceu aos olhosde todos, convencendo-os, com esse artifício, de tudo que lheshavia dito.

XCVI — Não rejeito nem admito o que se conta deZálmoxis e do esconderijo subterrâneo, mas penso ter ele vividomuito antes de Pitágoras. Em todo caso, trate-se de um homemou de um deus, eis o que concerne a Zálmoxis. Quanto aosGetas que o cultuavam da maneira a que me referi, subjugadospelos guerreiros persas, acompanharam a expedição.

XCVII — Chegando às margens do Íster com suasforças de terra, Dario fê-las passar para o outro lado do rio,ordenando aos Iônios que destruíssem a ponte e osacompanhassem com todos os componentes da frota. Quando osIônios se preparavam para executar essas ordens, Coes, filho deErxandro, que comandava os Mitilenos, pedindo permissão aDario para externar seu modo de ver, falou-lhe nestes termos:“Senhor, já que ides levar a guerra a um país onde não há nemterras cultivadas nem cidades, deixai permanecer a ponte talcomo se encontra; ordenai apenas aos que a construíram, queaqui fiquem montando guarda. Dessa forma, quer encontremosos Citas e os vençamos, como é nossa esperança, quer nãoconsigamos encontrá-los, poderemos retirar-nos com segurança.Não é que eu receie sejamos batidos pelos Citas, mas por temerque, não podendo encontrá-los, fiquemos expostos a perigoserrando pelos desertos. Dir-se-á, talvez, que falo por mim, como desejo de ficar aqui; mas, senhor, satisfeito por vos terproposto este alvitre, declaro-me disposto a acompanhar-vos, ea graça que vos peço é a de não me deixardes aqui”.

Dario, encantado com essas palavras, respondeu-lhe:“Filho de Lesbos, quando eu estiver de regresso, são e salvo,aos meus Estados, depois desta expedição, apresenta-te a mim,

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a fim de que eu te recompense dignamente pelo bom conselhoque acabas de dar-me”.

XCVIII — Assim falando, o soberano fez sessenta nósnuma correia(11), mandou chamar os tiranos da Iônia e fez-lheseste discurso: “Iônios, mudei de opinião no que se refere àponte. Tomai esta correia e atentai bem para o que vou dizer:logo que eu partir para a Cítia, começai a desfazer, cada dia, umdestes nós. Se eu não estiver de regresso quando já houverdesdesatado todos, podeis voltar para a vossa pátria. Quanto àponte, não será destruída, e espero que tudo façais paradefendê-la e conservá-la durante o período estabelecido.Prestar-me-eis, com isso, um grande serviço”. Dito isso, Dariopôs-se em marcha com o exército.

XCIX — A Trácia tem à sua frente a parte da Cítia quese estende para o mar. No ponto em que termina o golfo daTrácia começa a Cítia. O Íster atravessa uma certa extensão dopaís, para lançar-se no mar, a sudeste.

A antiga Cítia está situada ao sul, prolongando-se até acidade de Carcinítis. A região para além da cidade, na direçãodo mar, é montanhosa, sendo ocupada pela nação táurica, que seestende até a cidade do Quersoneso-Traquéia, à beira-mar, aleste. Os confins da Cítia limitam-se com a Ática em doispontos; um pelo mar que fica ao sul, e o outro pelo que fica aleste. Os Tauriscos estão, com relação a essa parte da Cítia, namesma posição em que estaria com relação aos Atenienses umoutro povo que habitasse o extremo do promontório Súnio, quese estende do burgo de Tórico ao de Anaflisto, avançando mar adentro. Tal a situação da Táuride; mas para melhor informar osque nunca costearam aquela parte da Ática vou explicar isso deoutra maneira: basta que se suponha que uma outra nação, semser a dos lapígios, esteja situada no promontório de Lapígia, acomeçar do porto de Brentésio, dividindo esse promontório emduas partes, dali até Tarento. De resto, falando desses dois

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promontórios é como se eu falasse de vários outros aos quais aTáuride se assemelha.

C — Além da Táuride vivem os Citas que ocupam aregião ao norte daquele país e a que se estende para o mar quefica a leste, bem como para as costas ocidentais do BósforoCimério e do Palos-Meótis, até o Tánais, rio que desembocanuma enseada do Palos. Seguindo depois o Íster e remontandopelo meio das terras, a Cítia aparece limitada primeiramentepelo país dos Agatirsos, em seguida pelo dos Nêuridas, depoispelo dos Andrófagos, e, finalmente, pelo dos Melanclenos.

CI — A Cítia, tendo a forma tetragonal, dois dos seuslados estendendo-se ao longo do mar, o espaço que ocupa nomeio das terras é perfeitamente igual ao que fica ao longo dacosta. Com efeito, do Íster ao Borístenes há uma distânciaequivalente a dez dias de viagem; do Borístenes aoPalos-Meótis, a mesma distância; e do mar, subindo pelo meiodas terras até o país dos Melanclenos, ao norte da Cítia, adistância equivale a vinte dias de marcha. Calculando-se emduzentos estádios a distância vencida num dia de jornada,tem-se que a Cítia mede quatro mil estádios de través, ao longoda costa, e outros quatro mil numa reta pelo meio das terras.

CII — Considerando que não poderiam, com as forçasde que dispunham, vencer em batalha campal um exército tãonumeroso como o de Dario, os Citas enviaram embaixadoresaos seus vizinhos, solicitando-lhes auxílio. Os reis dessasnações reuniram-se para deliberar sobre as medidas a tomarcontra o exército que vinha invadir a Cítia. Eram os seguintesesses soberanos: o dos Tauriscos, o dos Agatirsos, o dosNêuridas, o dos Andrófagos, o dos Melanclenos, o dos Gelões,o dos Budinos e o dos Saurómatas.

CIII — Os Tauriscos têm costumes bem peculiares.Entre eles vale citar a imolação, à virgem, dos estrangeiros quevão ter às costas do seu país e de todos os Gregos que ali

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chegam e que lhes caem nas mãos. Depois das cerimôniaspreliminares habituais, deitam a vítima por terra com umapancada na cabeça. Há quem diga que eles degolam-na emseguida, pregando a cabeça numa cruz e precipitando o corpodo alto do rochedo onde se ergue o templo. Outros concordamcom essa versão no que se refere à cabeça, mas asseguram queeles enterram o corpo da vítima, em vez de lançá-lo do alto dorochedo. Os próprios Tauriscos afirmam que a deusa a quemdedicam esse sacrifício é Efigênia, filha de Agamémnon.Quanto à maneira de tratar os inimigos, se um Tauriscoaprisiona um adversário em combate, corta-lhe a cabeça eleva-a para casa. Coloca-a, depois, na ponta de uma vara maisalta do que o teto e mesmo do que a chaminé. Erguem dessaforma a cabeça do prisioneiro, para que — dizem eles — lhesguarde a casa.

CIV — Os Agatirsos trazem quase sempre ornamentosde ouro e são os mais efeminados de todos os homens.Servem-se em comum das mulheres, a fim de ficarem todossempre unidos por laços de consangüinidade, e para que,formando todos, por assim dizer, uma só família, não fiquemsujeitos nem ao ódio, nem ao ciúme. Quanto aos seus outroscostumes, estão muito de conformidade com os dos Trácios.

CV — Os Nêuridas observam os mesmos costumes queos Citas. A geração anterior à expedição de Dario foi forçada adeixar o país por causa de uma multidão de serpentes que alisurgiu, vinda, em grande parte, dos desertos situados ao norte.A região ficou de tal maneira infestada de tais répteis, que oshabitantes se expatriaram, indo para o país dos Budinos. Dizemque os Nêuridas dão-se à prática da feitiçaria. A dar crédito aosCitas e aos Gregos estabelecidos na Cítia, cada Nêurida setransforma, uma vez por ano e durante alguns dias, em lobo,voltando depois à forma humana. Por mais que os Citas oafirmem, não posso crer em tal coisa, que, a meu ver, não passade fantasia, embora eles cheguem mesmo a jurar sobre a sua

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veracidade.

CVI — Não há homens que possuam hábitos maisselvagens do que os Andrófagos. Não conhecem nem a lei, nema justiça, e são nômades. Seus costumes assemelham-se muitoaos dos Citas, mas falam um idioma próprio. De todos os povosde que acabo de falar são os únicos a comerem carne humana.

CVII — Os Melanclenos se trajam de preto, de onde onome que possuem. Seguem os costumes dos Citas.

CVIII — Os Budinos formam uma grande e numerosanação. Têm os olhos extraordinariamente azuis e a pelevermelha. Há no país uma cidade toda construída de madeira;chamam-na Gelono. Suas muralhas são também de madeira emuito altas, medindo cada face três estádios de comprimento.As casas e os templos são igualmente de madeira. Entre ostemplos, contam-se alguns consagrados aos deuses gregos. Sãoconstruídos à maneira dos Gregos e ornados de estátuas, altarese capelas de madeira. De três em três anos celebram-se ali festasem louvor a Baco.

Também os Gelos são gregos de origem. Expulsos dascidades de comércio, estabeleceram-se no país dos Budinos.Seu idioma é uma mistura de grego e de cita.

CIX — Os Budinos não adotam a mesma maneira deviver e não falam a mesma língua dos Gelos. São autóctones,nômades e os únicos da região a comerem vermes. Os Gelos, aocontrário, cultivam a terra, alimentam-se de trigo, possuemjardins e não se assemelham aos Budinos, nem pela fisionomia,nem pela cor. Os Gregos se equivocam quando chamam osBudinos de Gelos.

O país inteiro é coberto de árvores de toda espécie, e nocantão onde elas existem em maior número encontram-se umvasto lago e um pântano marginado de caniços. Os habitantes

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caçam nesse lago lontras, castores e uns animais de focinhoquadrado, cuja pele serve para fazer mantas, e os testículosproduzem excelente efeito no tratamento das doenças do útero.

CX — Quanto aos Saurómatas, eis o que se diz sobreeles: Quando os Gregos combateram contra as Amazonas, queos Citas chamam Aiórpatas, nome que os Gregos traduzem paraAndróctones (que matam homens), pois aior em cita significa“homem”, e pata quer dizer “matar” — quando os Gregos, diziaeu, deram combate às Amazonas, derrotando-as às margens doTermodonte, conta-se que levaram consigo, em três navios,todas as que puderam aprisionar. Ao chegarem em alto mar, asprisioneiras atacaram seus vencedores, reduzindo-os a pedaços.Como, porém, nada entendiam de navegação e não sabiam fazeruso do leme, das velas e dos remos, abandonaram-se ao sabordas vagas, indo ter, finalmente, a Cremnes, no Palos-Meótis.Cremnes faz parte do território dos Citas livres. As Amazonasdesembarcaram ali e avançaram pelo meio das terras habitadas.Apoderando-se do primeiro haras que encontraram no caminho,montaram nos cavalos e puseram-se a saquear as terras dosCitas.

CXI — Os Citas mostraram-se admirados ante aquelesinimigos, cujas vestes lhes eram desconhecidas, bem como alíngua que falavam. Ignoravam também a que naçãopertenciam, e na sua surpresa não podiam imaginar de ondeteriam vindo. Enganados pela uniformidade da estatura e portedos invasores, supuseram, a princípio, tratar-se de homens, enessa convicção lhes deram combate; mas descobrindo, pelosmortos que ficaram em seu poder depois da luta, tratar-se demulheres, resolveram, em conselho reunido especialmente paraesse fim, não matar mais nenhuma e, em lugar disso, enviar osmais jovens dentre eles, em número correspondente ao dasestranhas guerreiras, com ordens para estabelecer acampamentoperto delas e imitá-las em todas as suas ações, fugindo, em vezde aceitar o combate, quando elas os atacassem, e retornando

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prontamente ao acampamento quando cessassem depersegui-los. Essa resolução dos Citas foi ditada pelo desejo depossuírem filhos de tão belicosas mulheres.

CXII — Os jovens citas seguiram à risca as instruçõesrecebidas; e as Amazonas, reconhecendo que eles não tinhamvindo com a intenção de hostilizá-las, deixaram-nos tranqüilos.Entretanto, os dois acampamentos se iam aproximando cada vezmais, dia a dia. Os jovens citas não tinham, como as Amazonas,senão suas armas e seus cavalos, e viviam, como elas, da caça eda pilhagem.

CXIII — Percebendo que, perto do meio-dia, asAmazonas se afastavam do acampamento, sozinhas ou de duasem duas, para satisfazerem suas necessidades naturais, os Citaspuseram-se a imitá-las. Um deles teve oportunidade deaproximar-se de uma delas, isolada das companheiras, e ajovem, longe de repeli-lo, concedeu-lhe seus favores. Como nãopodia falar-lhe, pois que não se entendiam nos respectivosidiomas, a jovem disse-lhe por sinais para retornar no diaseguinte ao mesmo lugar, com um de seus companheiros, queela traria, também, uma companheira. Regressando aoacampamento, o jovem cita relatou sua aventura; e no diaseguinte voltou com um companheiro ao local, onde encontroua amazona a esperá-lo com uma de suas companheiras.

CXIV — Informados do que se passava, os outrosjovens procuraram aproximar-se das outras Amazonas, e, feita afusão dos dois acampamentos, cada um tomou por esposaaquela de quem havia recebido favores. Os Citas encontrarammaior dificuldade em aprender a língua de suas companheiras,do que estas a deles; mas quando, finalmente, começaram aentender-se verbalmente, os jovens assim lhes falaram: “Temospais, possuímos bens, levamos outra vida; reunamo-nos ao restodos Citas e vivamos com eles. Prometemos jamais tomar outrapor esposa”.

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“Não poderíamos — responderam as Amazonas — viverem boa harmonia com as mulheres do vosso país. Seuscostumes são diferentes dos nossos: atiramos com o arco,lançamos o dardo, montamos a cavalo e não aprendemos osmisteres próprios do nosso sexo. Vossas mulheres nada dissofazem e não se ocupam senão de trabalhos femininos. Nãoabandonam suas carretas, não vão à caça e nem se afastam dolar. Por conseguinte, nossa maneira de viver jamais secoadunaria. Se quiserdes que continuemos como vossasesposas; se quiserdes agir com justiça, ide procurar vossos pais,pedi a parte dos bens que vos pertence e voltai para o nossolado, para vivermos a nossa vida”.

CXV — Aceitando as razões que lhes expunham suasjovens esposas, os Citas fizeram o que elas lhes aconselhavam,e, recolhendo a parte do patrimônio que lhes cabia, vieram aelas juntar-se novamente. “Julgamos não ser conveniente —disseram então as Amazonas — permanecermos aqui por maistempo, depois de vos havermos privado de vossos pais esaqueado vossas terras. Já que escolhestes manter-vos em nossacompanhia, nada nos impede de deixar estes lugares para irmosestabelecer-nos para além do Tánais.”

CXVI — Tendo concordado com a sugestão de suasesposas, os Citas atravessaram o Tánais, e depois de haveremjornadeado três dias para leste e outros tantos para o norte apartir do Palos-Meótis, chegaram ao país que ainda hojehabitam e onde fixaram residência. Daí o fato de as mulheresdos Saurómatas terem conservado seus antigos costumes:montam a cavalo, vão à caça, ora sozinhas, ora com os maridos.Acompanham-nos também na guerra, trajando as mesmas vestesque eles.

CXVII — Os Saurómatas adotam a língua cita, masnunca a falaram com pureza, porque as Amazonas não aconheciam senão imperfeitamente. Com relação ao casamento,

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estabeleceram uma lei segundo a qual uma mulher não poderiacontrair matrimônio enquanto não matasse um inimigo. Porisso, muitas delas, não conseguindo cumprir as disposições dalei, morrem de velhice, ainda solteiras.

CXVIII — Os embaixadores dos Citas, admitidos àassembléia dos soberanos das nações a que recorreram ante aiminência da invasão de seu país pelo exército persa,fizeram-nos conhecedores de que Dario, depois de haversubjugado totalmente os povos do outro continente, se passarapara aquele por uma ponte de batéis, construída no ponto maisestreito do Bósforo, e que tendo submetido a Trácia, transpuserao Íster com o propósito de tornar-se senhor da Cítia. “Não serájusto, — acrescentaram eles — que, conservando-vos neutros,nos deixeis perecer pelo vosso descaso em tão graveemergência. Marchemos juntos ao encontro do inimigo que estáprestes a invadir nossa pátria. Se nos negardes o vosso auxílio eformos batidos pelo inimigo, ver-nos-emos obrigados, ou adeixar nosso país, ou nele permanecer sob as condiçõesimpostas pelos invasores. Não penseis que a vossa sorte serámelhor do que a nossa e que, satisfeitos por nos teremsubmetido ao seu domínio, os Persas vos deixem tranqüilos. Suaexpedição não visa menos a vós do que a nós. Eis aqui umaprova à qual nada podereis opor: se os Persas não tivessemoutra intenção senão a de vingar-se da sujeição que lhesopusemos outrora, ter-se-iam contentado em marchar contranós, sem atacar outros povos; e com isso fariam ver ao mundoque visavam apenas os Citas. Entretanto, assim que pisaram ocontinente, foram atacando todos os povos que encontravam emseu caminho, já tendo submetido os Trácios e os Getas, nossosvizinhos”.

CXIX — Depois de ouvirem atentamente as razões dosembaixadores citas, os soberanos entraram a deliberar sobre ocaso, dividindo-se as opiniões. Os reis dos Gelos, dos Budinos edos Saurómatas prontificaram-se a auxiliar os Citas, mas os dos

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Agatirsos, dos Nêuridas, dos Melanclenos e dos Tauriscosresponderam assim à proposta: “Se não tivésseis vós, emprimeiro lugar, movido uma guerra injusta contra os Persas,vosso pedido nos pareceria razoável, e de boa vontade vosauxiliaríamos. Invadistes, porém, seu país sem nos participar,mantendo-o sob o vosso jugo enquanto assim aprouve aosdeuses. Hoje, quando os deuses impelem os Persas contra vós,nada mais fazem do que pagar-vos na mesma moeda. Quanto anós, não os ofendemos então, e não seremos hoje os primeiros aagredi-los. Se, entretanto, vierem atacar-nos, saberemosrepeli-los. Enquanto tal não se der, permaneceremos tranqüilos,pois, ao que nos parece, os Persas não visam senão os quetomaram a iniciativa de atacá-los”.

CXX — Informados dessa resposta, os Citas decidiramnão desafiar abertamente os Persas, nem oferecer-lhes batalhaem campo aberto, mas ceder terreno pouco a pouco,retirando-se sempre para diante, obstruindo as fontes queencontrassem no caminho e destruindo as plantações,dividindo-se, com esse propósito, em dois grupos. Decidiramtambém que os Saurómatas deveriam dirigir-se para os Estadosde Escopásis, e que se os Persas se voltassem para esse lado,retirar-se-iam, pouco a pouco, para o Tánais, ao longo doPalos-Meótis, e quando o inimigo se afastasse, começariam,então, a persegui-lo.

Tal o plano de defesa que essa parte dos Citas reaisdeveria seguir.

Quanto às outras duas partes, ficou combinado que amaior, sobre a qual reinava Idantirso, reunir-se-ia à terceira,governada por Taxácis, e as duas, unidas aos Gelos e aosBudinos, ficariam com um dia de avanço sobre os invasores. Deacordo com as resoluções tomadas em conselho, deveriamtambém retirar-se sempre em ordem, sem precipitações,procurando, sobretudo, atrair o inimigo para as terras dos que

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lhes haviam negado aliança, a fim de forçá-los também à guerracontra os Persas, embora contra a vontade. Deveriam, emseguida, regressar ao seu país, e até mesmo atacar o inimigo seisso lhes parecesse vantajoso.

CXXI — Tomadas essas deliberações e traçados osplanos, os guerreiros citas marcharam ao encontro de Dario,fazendo-se preceder pela elite da cavalaria. Tinham mandadoadiante as carroças que serviam de moradia às suas mulheres efilhos, aos quais haviam ordenado avançar sempre para o norte.As carroças eram acompanhadas pelos rebanhos, pois oscombatentes só levavam consigo o necessário para suasubsistência.

CXXII — Enquanto as carroças avançavam para o norte,os batedores citas descobriram os Persas a cerca de três dias dejornada do Íster. Como se achavam à distância de apenas um diade viagem daquele ponto, acamparam ali e destruíram tudoquanto brotava da terra. Logo que os perceberam, os Persassaíram em sua perseguição, procurando cortar-lhes a retirada, emarchando diretamente contra um dos três grupos de Citasreais, perseguiram-no até o Tánais. Os Citas atravessaram o rio,e os Persas, fazendo o mesmo, continuaram sua perseguição,que só cessou quando, depois de haverem percorrido o país dosSaurómatas, chegaram ao dos Budinos.

CXXIII — Na sua passagem pela Cítia e pelo país dosSaurómatas, os Persas nenhum dano causaram, porquanto oshabitantes haviam destruído de antemão tudo que existia noscampos; mas, penetrando no país dos Budinos e encontrando acidade de madeira, já inteiramente deserta, pois seus habitantesa haviam abandonado, levando tudo que puderam, atearam fogoàs casas, deixando-as em chamas. Continuando a marcha para afrente, nas pegadas do inimigo, foram ter, depois de haverematravessado as terras dos Budinos, a um deserto totalmentedespovoado. Esse deserto tem uma extensão equivalente a sete

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dias de caminhada de um extremo a outro, e está situado aonorte do país dos Tisságetas, de onde correm quatro grandesrios: o Licos, o Oaro, o Tánais e o Sírgis, que se lançam noPalos-Meótis, depois de haverem banhado as terras dos Meótis.

CXXIV — Chegando a esse deserto, Dario parou àsmargens do Oaro, onde acampou com seu exército. Mandou, emseguida, construir oito grandes fortes, distantes sessentaestádios um do outro, cujas ruínas ainda hoje subsistem.Enquanto se ocupava com esses trabalhos, os Citas que elehavia perseguido contornaram o país pelo norte e regressaram àCítia. Como o inimigo havia desaparecido totalmente, nãosendo mais assinalado em parte alguma, Dario, deixando osfortes inacabados, dirigiu-se para oeste, persuadido de que osCitas se haviam constituído numa só nação e se tinham retiradodaquele lado. Seguindo em marcha forçada, atingiu rapidamentea Cítia, onde encontrou os dois outros corpos de exército dosCitas. Lançou-se imediatamente em sua perseguição,procurando os fugitivos manterem-se sempre a um dia dedistância de seus perseguidores.

CXXV — Seguindo a tática combinada, os Citas iamatraindo Dario e seu exército para as terras daqueles que lhestinham negado auxílio. Assim foi que lançaram-seprimeiramente em direção ao país dos Melanclenos, pondo-osem sobressalto, com os Persas sempre em sua perseguição. Daliatraíram o inimigo para as terras dos Andrófagos, fazendo-osalvoroçar-se, e em seguida para as dos Nêuridas, deixando-osigualmente sobressaltados. Finalmente, desviaram-se para oterritório dos Agatirsos; mas estes, vendo seus vizinhosalarmados porem-se em fuga, enviaram aos Citas um arauto,antes que eles penetrassem em seu país, a fim de interditar-lhe aentrada, ameaçando-os de dar-lhes combate, caso insistissemem perturbá-los. Fazendo essa ameaça, os Agatirsos enviaramforças para as fronteiras, prontos a lutar pela integridade de seuterritório.

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Os Melanclenos, os Andrófagos e os Nêuridas, vendo osCitas se lançarem com os Persas sobre suas terras, tomados depânico nem sequer pensaram em defendê-las, fugindo para osdesertos, em direção ao norte. Quanto aos Citas, ante a ameaçados Agatirsos desistiram do seu intento de invadir-lhes as terras,e, deixando a Nêurida, retornaram ao seu país, onde os Persascontinuaram a persegui-los.

CXXVI — Observando a tática seguida pelos Citas, quese negavam sempre a dar-lhe combate, Dario enviou umemissário a Idantirso, soberano desse povo, com a seguintemensagem: “Ó miserável, entre os mais miseráveis dos homens!Por que foges sempre, quando está em tuas mãos oferecer-mecombate, se te julgas bastante forte para resistir? Se, aocontrário, achas que não estás em condições de te opor a mim,deixa de fugir à minha frente; entra em acordo com o teusenhor, e traz-lhe terra e água como sinal de submissão”.

CXXVII — “Rei dos Persas, — respondeu Idantirso —não é o medo que me faz fugir diante de ti, como nunca o fez nopassado diante de qualquer outro. Se não te dei combateimediatamente, foi porque, como não tememos que te apossesde nossas cidades, pois não as possuímos, e nem que causesdanos às nossas terras, já que não são cultivadas, não vemosrazão para apressarmos a batalha. Se, entretanto, queres dequalquer maneira forçar-nos a isso, aí tens os túmulos de nossospais; experimenta pô-los abaixo, e verás se combateremos ounão para defendê-los. A não ser por isso, podes estar certo deque não aceitaremos a luta. Quanto aos meus senhores, nãoreconheço outros senão Júpiter, um dos meus ancestrais, eVesta, a rainha dos Citas. Em lugar de terra e de água,enviar-te-ei os presentes que mereces. Se te orgulhas de ser meusenhor, é o caso de chorares por isso”(12). Tal a resposta dosoberano cita, transmitida pelo arauto a Dario.

CXXVIII — Ante a palavra servidão, os reis citas,

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irritados, fizeram partir os Citas sobre os quais reinavaEscopásis, em companhia dos Sauromatas que serviam comeles, para conferenciar com os Iônios que ficaram encarregadosda guarda da ponte do Íster. Quanto aos Citas quepermaneceram no país, resolveram não forçar mais os Persas acorrer de um lado para outro, mas atacá-los sempre queestivessem entregues ao repasto; e depois de terem precisadoesse momento, puseram em prática sua nova tática. Nessesataques, a cavalaria dos Citas punha sempre em fuga a dosPersas; mas esta, fugindo, retraía-se sobre a infantaria, quenunca deixava de apoiá-la. Assim, quando os Citas faziamrecuar a cavalaria inimiga, o temor aos infantes forçava-os logoa retirar-se, não deixando, todavia, de recomeçar seus ataquesdurante a noite.

CXXIX — Uma coisa surpreendente favorecia osPersas, ao mesmo tempo que prejudicava os Citas, quando estesatacavam o acampamento inimigo: era o zurrar dos jumentos eo aspecto das mulas. Como já tive ocasião de dizer, não nascemna Cítia nem jumentos nem mulas, e não se vê mesmo um sódesses animais no país, sendo a razão disso o frio que ali reina.Daí sentirem-se os cavaleiros citas tomados de pavor ante ozurrar estridente dos jumentos dos Persas. Todas as vezes quecarregavam sobre estes, se os cavalos ouviam os jumentos,enristavam as orelhas e recuavam espavoridos, pois nãoestavam acostumados nem com os gritos nem com o tipodaqueles animais. Todavia, a vantagem que de tal fato advinhapara os Persas era mínima.

CXXX — Os Citas, percebendo que os Persascomeçavam a inquietar-se por não obterem uma decisão na luta,recorreram a um artifício para fazê-los permanecer na Cítia pelomaior espaço de tempo possível e atormentá-los pela falta devíveres. Deixaram-lhes alguns rebanhos, juntamente com os queos guardavam, e retiraram-se para outro cantão, onde ficaram àespera dos acontecimentos. Os Persas precipitaram-se sobre

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esses rebanhos e deles se apoderaram.

CXXXI — Embora tal fato se repetisse várias vezes,Dario acabou por encontrar-se em extrema penúria com relaçãoao abastecimento de víveres. Sabedores disso, os soberanoscitas enviaram-lhe um arauto com presentes, que consistiamnum pássaro, um rato, uma rã e cinco flechas. Interrogado sobreo significado daqueles presentes, o emissário respondeu queapenas recebera ordens de trazê-los e regressar em seguida,cabendo a eles, Persas, descobrir-lhes o sentido, se é que tinhamsagacidade para tanto.

CXXXII — Reunindo as tropas e deliberando sobre oassunto, Dario chegou à conclusão que os Citas lhe haviamoferecido, com aqueles estranhos presentes, terra e água comosinal de submissão. Assim imaginara porque o rato nasce naterra e se alimenta de trigo, da mesma maneira que o homem; arã nasce na água; o pássaro apresenta algumas semelhanças como cavalo, e, enfim, os Citas, oferecendo-lhe as flechas, era comose estivessem rendendo-se a ele com as suas tropas. Tal asuposição do soberano persa; mas Góbrias, um dos sete quehaviam destronado o mago, chegou a uma outra conclusão, quese apressou em transmitir às tropas: “Persas, — assim falou ele— estes presentes significam que, se não voais pelos ares, comoos pássaros; se não vos escondeis debaixo da terra, como osratos; se não saltais nos pântanos, como as rãs, não tomareis aver vossa pátria, pois morrereis trespassados por estas flechas”.

CXXXIII — O grupo de Citas a que fora confiada aguarda das cercanias do Palos-Meótis e que acabava de receberordens de ir para as margens do Íster, a fim de entender-se comos Iônios, logo ao chegar à ponte por estes construída sobre orio a eles se dirigiu nestes termos: “Iônios, vimos trazer-vos aliberdade, se quiserdes ouvir-nos. Soubemos que Dario vosencarregou de guardar esta ponte durante sessenta dias, apenas,e que se não estivesse de volta nesse espaço de tempo, podíeis

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retirar-vos para a vossa pátria. Se executardes agora essa ordem,ele não terá nenhum motivo de queixa contra vós, e nem nós tãopouco. Os sessenta dias já se passaram. Por que não retornais aovosso país?” Os Iônios disseram que assim o fariam, e os Citasretiraram-se imediatamente.

CXXXIV — Tendo enviado os presentes a Dario, oresto dos Citas se pôs em ordem de batalha, frente aos Persas,numa atitude decisiva de luta. Quando tomavam posição, umalebre passou correndo velozmente entre os dois exércitos.Assim que a viram, as tropas citas puseram-se a persegui-la,fazendo grande alarido. Dario perguntou qual a causa daqueletumulto, e como lhe respondessem que eram soldados citasperseguindo uma lebre, dirigiu-se aos Persas com que mantinhamaior intimidade: “Esses homens nutrem por nós o maiordesprezo. A interpretação dada por Góbrias aos presentes quenos enviaram parece-me agora bastante lógica e justa. Parasairmos desta perigosa situação necessitamos, mais do quenunca, de um bom conselho”. “Senhor, — respondeu Góbrias— eu nada sabia com relação a este povo, a não ser o que delecontavam; mas desde que aqui chegamos passei a conhecê-lomelhor, observando a maneira com que nos tratam, zombandode nós e menosprezando nossa força. Encontramo-nos,realmente, em situação delicada. Sou, portanto, de opinião quedevemos partir antes que os Citas se lembrem de destruir aponte sobre o Íster e os Iônios tomem uma resolução fatal paranós. Logo ao cair da noite mandaremos, como de costume,acender fogos no acampamento, e depois de convencermos, portodas as maneiras, aqueles dos nossos que não estejam emcondições de efetuar longas jornadas, a permanecer aqui,deixando também presos todos os jumentos, abandonaremoseste local sem sermos pressentidos”.

CXXXV — Aceitando o conselho de Góbrias, Dario,logo que chegou a noite mandou prender os jumentos, para queseus zurros fossem ouvidos pelos Citas; ordenou que deixassem

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ficar no acampamento os doentes com aqueles cuja perda menoslhe importava; incumbiu parte de seus homens de guardar oacampamento, dizendo ir com a elite das tropas atacar oinimigo, e, mandando acender os fogos, encaminhou-seaceleradamente para o Íster. Os jumentos, sentindo-se sozinhos,puseram-se a zurrar mais forte que de costume, e os Citas,ouvindo-os, não duvidaram de que Persas ainda se encontravamno acampamento.

CXXXVI — Ao nascer do dia, os soldados abandonadospor Dario, vendo-se traídos, aliaram-se aos Citas, expondo-lhesa situação e indicando-lhes o caminho presumivelmente tomadopor Dario. Os dois grupos de Citas, reunindo-se prontamente aoterceiro, foram em perseguição dos Persas, na direção do Íster,juntamente com os Saurómatas, os Budinos e os Gelos. Como oexército persa era constituído, em sua maior parte, de tropas deinfantaria, e estas não conheciam os caminhos, enquanto que osCitas estavam a cavalo e conheciam todas as veredas e atalhos,estes últimos alcançaram a ponte muito antes dos guerreiros deDario, e sabendo que eles ainda não haviam aparecido,dirigiram-se nestes termos aos Iônios, que já se achavam emseus navios: “Iônios, o prazo que vos foi prescrito para ficaraqui já se esgotou, não havendo mais razão para permanecerdesaqui por mais tempo. Podeis destruir, sem receio, a ponte erendei graças aos deuses e aos Citas por haverdes recuperado aliberdade. Quanto àquele que era até há pouco vosso senhor,vamos tratá-lo de uma maneira que jamais pensará em fazerguerra a quem quer que seja”.

CXXXVII — Os Iônios reuniram-se para deliberar sobreo assunto. Milcíades de Atenas, o comandante e tirano doQuersoneso do Helesponto, foi de opinião que deviam seguir oconselho dos Citas e reconquistar a liberdade da Iônia, masHisteu, tirano de Mileto a isso se opôs, fazendo sentir que se elee seus companheiros reinavam nas suas cidades, era porinfluência de Dario, e que se o poderio deste fosse destruído,

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perderiam também a autoridade e seriam destituídos do poder,pois as cidades em que governavam preferiam a democracia àtirania. Os que se sentiam inclinados a aceitar a sugestão deMilcíades passaram logo, ante a exposição de Histeu, a apoiar oparecer deste.

CXXXVIII — Os que formaram ao lado de Histeugozavam da estima do soberano. Entre os tiranos do Helespontofiguravam Dáfnis de Abido, Hipoclos de Lampsaco, Herofantede Pário, Metrodoro de Preconésia, Aristágoras de Cizico eAristo de Bizâncio; entre os da Iônia: Estrátis de Quios, Eces deSamos, Leodamas da Focéia e Histeu de Mileto, que semanifestou contrário ao parecer de Milcíades. Aristágoras deCime foi o único homem ilustre a representar os Eólios noconselho.

CXXXIX — Aprovado o parecer de Histeu, ficouresolvido que seria destruída apenas uma das extremidades daponte, justamente a que ficava do lado da Cítia, e isso paramostrar aos Citas o desejo de servi-los de qualquer forma e peloreceio de que eles quisessem transpor o Íster pela ponte. Depoisde haverem combinado entre si mandar dizer aos Citas quedemolindo a ponte do lado do seu país pretendiam com issodar-lhes inteira satisfação, escolheram Histeu para falar-lhes emnome de todos. Aceitando a incumbência, Histeu assim sedirigiu aos Citas: “Citas, vosso conselho é salutar e vem muito apropósito; e como nos mostrastes o verdadeiro caminho aseguir, agimos de modo a mostrar-vos nossa disposição de vosservir como mereceis: destruímos a ponte, como podeis ver, eagora nos empenharemos com o maior ardor na reconquista denossa liberdade. Quanto a vós, enquanto concluímos ademolição da ponte, achamos conveniente que sigaisimediatamente em busca dos Persas, e encontrando-os,vingar-nos, vingando-vos também, como é justo”.

CXL — Os Citas, confiando pela segunda vez nos

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Iônios, voltaram pelo mesmo caminho em busca dos Persas,sem todavia encontrá-los. Viram, então, o grande erro quehaviam cometido destruindo as culturas e obstruindo as fontes,a fim de que o inimigo delas não se aproveitasse. Não fora isso,ter-lhes-ia sido fácil localizá-los. Desnorteados, puseram-se aprocurá-los por todos os cantões da Cítia onde havia água eforragem em abundância para os cavalos, persuadidos de queeles tinham seguido por esse lado. Os Persas, porém, haviamseguido a rota de que se tinham servido para penetrar no país,atingindo, depois de muitas dificuldades, o ponto onde tinhamatravessado o rio. Como ali chegassem já noite alta, ao verem aponte demolida julgaram que os Iônios os haviam abandonado.

CXLI — Havia no exército de Dario um egípcio de vozmuito sonora. O soberano mandou-o postar-se à margem do rioe chamar por Histeu de Mileto. Aos primeiros gritos do egípcio,Histeu atendeu prontamente ao chamado, aprestando os naviospara a passagem do exército e restabelecendo a ponte.

CXLII — Foi assim que os Persas conseguiram escaparà vingança dos Citas, enquanto estes continuavam a procurá-losinutilmente. Desde aí, passaram eles a considerar os Iônios osmais vis e os mais cobardes dos homens, dizendo que, quandoescravos, são os cativos mais fiéis ao seu senhor e incapazes defugir.

CXLIII — Dario atravessou a Trácia e chegou a Sestos,no Quersoneso, onde embarcou para passar-se para a Ásia.Antes porém, nomeou Megabizo, persa de nascimento,comandante das tropas que deixava na Europa. Certa ocasião, àmesa, em presença de seus íntimos, o soberano fez umareferência altamente honrosa a esse general. Quando sedispunha a comer romãs, logo ao abrir a primeira seu irmãoArtábano perguntou-lhe que coisa desejaria possuir em tãogrande quantidade quanto os grãos daquela fruta. Dariorespondeu que gostaria mais de possuir um número igual de

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Megabizos do que ter a Grécia sob o seu domínio. Tal foi otributo honroso que o soberano prestou às altas qualidades deMegabizo, e maior prova de confiança lhe deu ao entregar-lhe ocomando dos oitenta mil homens que deixava na Europa.

CXLIV — Uma simples frase de Megabizo tornou-lhe onome imortal entre os habitantes do Helesponto.Encontrando-se, certa vez, em Bizâncio, soube que osCalcedônios tinham construído sua cidade dezessete anos antesde os Bizantinos haverem fundado a deles. Disse-lhes, então,que deviam ser cegos, pois de outro modo não teriam escolhidopara a cidade um local tão desagradável, quando se apresentavaum outro mais belo.

Com as tropas deixadas por Dario, esse generalsubjugou todos os povos do Helesponto que não eram amigosdos Medos.

CXLV — Quase ao mesmo tempo, realizava ele umagrande expedição na Líbia. Para melhor compreensão domotivo que o levou a assim proceder mencionarei alguns fatosimportantes ligados ao acontecimento.

Os descendentes dos Argonautas, expulsos da ilha deLemnos pelos Pelasgos, que haviam arrebatado de Bráuron asmulheres dos Atenienses, abriram velas em direção àLacedemônia. Acamparam no monte Taígeto, onde acenderamfogo para aquecer-se e preparar alimentos. Os Lacedemônios,percebendo-os, mandaram perguntar-lhes quem eram e de ondevinham. Responderam serem Mineus e descendentes daquelesheróis que haviam embarcado no navio Argos e aportado aLemnos. Ante essa declaração, os Lacedemônios desejaramsaber com que propósito ali tinham vindo e por que razãoacendiam o fogo, respondendo eles que, expulsos pelosPelasgos, vinham para a terra de seus pais, como era justo, epediam aos Lacedemônios para acolhê-los e deixá-loscompartilhar não somente de suas terras, como também das

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honras e das dignidades do Estado. Os Lacedemôniosconcordaram em acolhê-los, impondo-lhes, porém, algumascondições. Tal concessão provinha, principalmente, do fato deterem os Tindáridas figurado na expedição dos Argonautas.Receberam os Mineus e deram-lhes terras, que eles distribuíramentre si. Os homens casaram-se logo, e deram a outros asmulheres que haviam trazido de Lemnos.

CXLVI — Pouco tempo depois, os Mineus começarama praticar toda sorte de insolências, querendo participar darealeza e agindo de modo contrário à lei. Os Lacedemônios,revoltados com tal procedimento, resolveram eliminá-los,mandando, para isso, prendê-los a todos. Na Lacedemônia, asexecuções são realizadas à noite, e nunca de dia. Quando osMineus estavam prestes a serem executados, suas esposas, queeram espartanas e filhas de figuras proeminentes da cidade,solicitaram permissão para entrar na prisão, a fim de vê-los efalar-lhes pela última vez. Os responsáveis pela guarda dosprisioneiros, não desconfiando de nenhum ardil, concederam alicença solicitada. Logo que se viram a sós com os maridos, asmulheres trocaram de trajes com eles, e os Mineus, assimdisfarçados, puderam escapar, retornando ao monte Taígeto.

CXLVII — Por esse tempo, Teras partia daLacedemônia para ir fundar uma colônia. Teras era filho deAutésio, que, por sua vez, era filho de Tisâmeno, neto deTersandres e bisneto de Polinice. Pertencia à raça de Cadmo eera tio, por parte de mãe, de Eurístenes e de Procles, ambosfilhos de Aristodemo. Como estes eram ainda muito criançasquando lhes morreu o pai, Teras ficou como regente durante amenoridade dos mesmos, mas, atingida a idade adulta,assumiram eles as rédeas do governo. Teras, desesperado por terde prestar-lhes obediência depois de haver experimentado asdoçuras do mando, dispôs-se a abandonar a Lacedemônia e aembarcar para ir juntar-se aos seus parentes.

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Os descendentes de Membliares, filho de Pécilo, fenício,residiam na ilha hoje denominada Teras e conhecida outrora porCalisto. Cadmo, filho de Agenor, havia aportado a essa ilhaquando ia em demanda da Europa, e, ou porque a terra lhetivesse agradado, ou por qualquer outra razão, deixou ali váriosFenícios com Membliares, um dos seus parentes. Esses Fenícioshabitaram a ilha, então denominada Calisto, durante oitogerações, antes da vinda de Teras, procedente da Lacedemônia.

CXLVIII — Teras partiu de Esparta para a ilha com umgrande número de Lacedemônios. Sua intenção não era expulsardali os antigos habitantes, mas viver com eles na mais estreitaunião. Os Lacedemônios persistiam no propósito de matar osMineus, que, como dissemos, depois de terem escapado daprisão, haviam acampado novamente no monte Taígeto. Terassolicitou o perdão para eles, comprometendo-se a fazê-losdeixar o país. O perdão foi concedido, e Teras, fazendo-se àvela em três navios de trinta remos, dirigiu-se para onde seachavam os descendentes de Membliares, levando consigoapenas uma pequena parte dos Mineus; os outros, tendoexpulsado os Paroreatas e os Caúcos de suas terras,dividiram-se em seis grupos e ali construíram seis cidades:Lepreo, Macisto, Frixes, Pirgos, Épio e Núdio, a maior partedestruída no meu tempo pelos Eólios. Quanto à ilha Calisto,passou a chamar-se Teras, do nome de seu fundador.

CXLIX — Como o filho se recusasse a embarcar em suacompanhia, Teras disse que o deixava como uma ovelha entrelobos. Essa frase fez com que se desse ao jovem o nome deOiólico(13), por que passou a ser chamado daí por diante.Oiólico teve um filho de nome Egeu, de onde os Égidas,importante tribo de Esparta, tiraram o seu. Os componentesdessa tribo, vendo que não podiam conservar com vida osfilhos, ergueram, ante a resposta do oráculo, um templo àsFúrias de Laio e de Édipo, e, desde então, não perderam mais osfilhos. Coisa semelhante aconteceu na ilha de Teras com os

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descendentes dos que ali habitavam.

CL — Até aqui os Lacedemônios concordam com oshabitantes de Teras; mas estes são os únicos a relatar osseguintes fatos da maneira que passo a narrar.

Grino, filho de Esânio, descendente de Teras e soberanoda ilha de Teras, foi a Delfos para ali oferecer uma hecatombe.Estava acompanhado de vários habitantes da ilha, entre os quaisfigurava Bato, filho de Polinesta, descendente de Eufemo, umdos Mineus a que fiz referência. Tendo o soberano consultado ooráculo sobre determinadas coisas, a pitonisa concitou-o afundar uma cidade na Líbia. “Rei Apolo, — replicou Grino —já estou velho e curvado pelo peso dos anos; encarrega antesdesta empresa um desses jovens que vieram comigo”. E dizendoisso apontava Bato. Os Tereus, de volta à ilha, não levaram emconsideração a resposta do oráculo, não sabendo absolutamenteonde ficava a Líbia e não ousando realizar uma expediçãocolonizadora ante tal incerteza.

CLI — Passaram-se, então, sete anos sem chover uma sóvez na ilha, e todas as árvores foram consumidas pela seca, comexceção de uma única. Indo os Tereus consultar o oráculo sobreo fenômeno, a pitonisa censurou-os por não terem ido fundar acolônia na Líbia, como lhes ordenara. Como não viam remédiopara seus males, enviaram emissários a Creta para saber sehavia ali algum cretense ou qualquer outro estrangeiro quetivesse viajado para a Líbia. Os emissários percorreram a ilha e,chegando à cidade de Itano, travaram conhecimento com umtintureiro de púrpura, de nome Coróbio, que lhes disse haversido impelido por um forte vento para a ilha de Plateia, naLíbia. A promessa de uma recompensa levou-o aacompanhá-los a Teras. Organizada a expedição, os Tereusfizeram partir primeiramente um pequeno grupo para tomarconhecimento do local indicado por Coróbio, tendo este porguia. Chegando à ilha de Plateia, o grupo cumpriu a missão que

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lhe fora confiada, e deixando ali Coróbio com víveressuficientes para alguns meses, regressou a Teras, para expor aosTereus as observações que havia feito.

CLII — Como seus companheiros ficassem ausentesmais tempo do que o combinado, Coróbio viu-se a braços com afalta de víveres. Por um feliz acaso, um navio de Samos, queseguia com destino ao Egito, e cujo comandante se chamavaCóleo, escalou na ilha. Coróbio expôs aos tripulantes a suasituação, e estes, condoídos, forneceram-lhe víveres para umano, abrindo novamente velas em direção ao Egito,aproveitando um vento de leste. Sempre ao sabor do vento,esses homens passaram as colunas de Hércules e chegaram aTartesso, como guiados por algum deus. Como esse porto aindanão tinha sido visitado por um navio mercante estrangeiro,obtiveram grande lucro com a venda de suas mercadorias.Satisfeitos com o negócio, reservaram seis talentos, a décimaparte dos lucros obtidos, e mandaram fazer um vaso de bronzedo formato de uma cratera, com cabeças de abutres em torno,oferecendo-o ao templo de Juno, onde ainda hoje se mantémsustentado por três colossos de bronze de sete côvados dealtura.

A atitude de Cóleo foi o início da grande amizade que osCireneus e os Tereus contraíram com os habitantes de Samos.

CLIII — Os Tereus, deixando Coróbio na ilha, voltarama Teras, onde expuseram as observações feitas no local, queacreditavam inabitado. Diante disso, ficou resolvido que todosos cantões de Teras, em número de sete, enviariam umdeterminado número de homens, escolhidos por sorteio, paraocupar a ilha, tendo Bato por soberano. Feitos os preparativos,partiram com destino a Plateia dois navios com quinhentoshomens cada um. Tal a maneira pela qual os Tereus contamessa história.

CLIV — Os Cireneus concordam com ela em tudo,

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exceto no que concerne a Bato, sobre o qual dizem o seguinte:Etearco, rei de Áxon, em Creta, tendo perdido a esposa, da qualpossuía uma filha de nome Frónima, desposou outra mulher,que logo se tornou para Frónima verdadeira madrasta,maltratando-a, injuriando-a por qualquer motivo e chegando atéa acusá-la de impudicícia, levando o esposo a acreditar nisso.

Dando crédito à mulher, Etearco procedeu contra a filhade maneira odiosa. Havia, então, em Áxon, um negociante deTeras, chamado Temíson. O soberano mandou chamá-lo,fazendo-o prometer, sob juramento, que o serviria em tudoquanto dele necessitasse. Obtido o juramento de obediência,Etearco entregou-lhe a filha, dizendo-lhe que a lançasse ao mar.Temíson, revoltado com tal procedimento, renunciou à amizadede Etearco e, pondo a princesa num barco, rumou para o altomar. Ali chegando, amarrou-a com uma corda e, paradesobrigar-se do juramento, fê-la descer até as águas, masretirando-a logo em seguida e conduzindo-a para a ilha deTeras.

CLV — Chegando a Teras, Polineto, homem de altaposição, tomou a jovem como concubina, e o casal teve, no fimde certo tempo, um filho que gaguejava e sibilava. Essa criança,segundo os Tereus e os Cireneus, recebeu o nome de Bato; maspenso que era outro o seu nome e que passou a ser assimchamado depois que chegou à Líbia, tanto devido à resposta querecebeu do oráculo de Delfos, como pela sua alta dignidade,pois batus significa rei na língua dos Líbios, e foi esse o nomeque a pitonisa lhe deu respondendo à sua consulta, sabendo queele haveria de reinar na Líbia. Com efeito, ao chegar à idadeviril foi a Delfos consultar o oráculo sobre o defeito que tinhana língua, que o fazia gaguejar, dizendo-lhe a pitonisa: “Bato,aqui vens a respeito da tua voz, mas Apolo te ordena aestabelecer uma colônia na Líbia, fecunda em animaislanígeros.” Foi como se ela lhe tivesse dito em grego: “Ó rei!Aqui vindes por causa da vossa voz...” Bato respondeu-lhe:

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“Rei, vim consultar-vos sobre o defeito que tenho na língua, evós me ordenais a realizar coisas impossíveis, dizendo-me parafundar uma colônia na Líbia. Com que tropas, com que forçaspoderei executar semelhante tarefa?” Apesar das razõesinvocadas, a pitonisa manteve a resposta que lhe dera. Vendoque o oráculo mantinha-se irredutível, deixou Delfos,regressando a Teras.

CLVI — Logo a seguir, tanto ele como todos oshabitantes da ilha viram-se perseguidos por desgraças semconta. Como não pudessem atinar com a causa daquilo,enviaram delegados a Delfos para consultar o oráculo sobre osmales que de pronto começaram a afligi-los, tendo a pitonisarespondido que todos eles voltariam a ser felizes se fundassem,com Bato, a cidade de Cirenes, na Líbia. Diante disso, osTereus fizeram partir Bato com dois navios de cinqüenta remos.Bato e seus companheiros abriram velas em direção à Líbia,mas, forçados pelas circunstâncias, voltaram ao ponto departida. Quando iam desembarcar, os Tereus atacaram-nos,ordenando-lhes que executassem a tarefa que lhes tinhamconfiado. Constrangidos a obedecer, retomaram a rota, indoestabelecer-se numa ilha nas proximidades da Líbia. Essa ilhachama-se, como dissemos atrás, Plateia. Assegura-se ser ela dotamanho da atual cidade dos Cireneus.

CLVII — Os Tereus ali permaneceram pelo espaço dedois anos, findos os quais, vendo que não conseguiamprosperar, embarcaram para Delfos, deixando um dos seuscompanheiros na ilha. Chegando a Delfos, disseram à pitonisaque se haviam estabelecido na Líbia, mas que nem por issoestavam sendo mais felizes. A pitonisa respondeu-lhesdirigindo-se a Bato: “Admiro a tua habilidade; nunca estivestena Líbia e pretendes conhecer o país melhor do que eu, que alijá estive”. Ante a resposta, Bato embarcou novamente com osseus companheiros, convencido de que o deus só se daria porsatisfeito quando eles se estabelecessem na própria Líbia.

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Chegando a Plateia, apanharam o companheiro que lá haviamdeixado e foram instalar-se na Líbia, defronte da ilha, emAzires, local encantador, cercado por belas colinas e banhadopor um rio.

CLVIII — Permaneceram seis anos em Azires, mas, aocabo desse tempo, decidiram-se a sair dali às vivas instânciasdos Líbios e ante a promessa que eles lhes fizeram deconduzi-los a um território melhor ainda. Fazendo-os deixaraquele lugar, os Líbios conduziram-nos na direção de oeste, ecom receio de que os Gregos, passando pela parte mais bela dopaís, disso se apercebessem, regularam a marcha de modo afazê-los atravessá-la durante a noite. Essa região chama-seIrasa. Conduzindo-os para junto de uma fonte que dizem tersido consagrada a Apolo, os Líbios assim lhes falaram:“Gregos, este local, com as suas belezas e vantagens, vosconvida a fixar aqui vossa moradia; o céu é sempre limpo e azulnestas paragens”.

CLIX — Sob o governo de Bato, o fundador, cujoreinado se estendeu por quarenta anos, e de Arcesilas, seu filho,que reinou durante dezesseis, os Cireneus não se tornaram emnúmero muito maior do que no início da colônia; mas nogoverno de Bato, o terceiro rei, cognominado o Feliz, apitonisa, pelos seus oráculos, concitou os Gregos a embarcarempara a Líbia, onde habitariam com os Cireneus, que osconvidavam a morar em suas terras e delas compartilhar. Diziaum desses oráculos: “Quem não for para a fértil Líbia senãodepois da partilha das terras terá, um dia, motivo para dissoarrepender-se”. Os Gregos dirigiram-se a Cirenes em grandenúmero, apoderando-se de um cantão considerável. Os Líbios,seus vizinhos, e Adícran, seu rei, vendo-se insultados edespojados de suas terras pelos Cireneus, recorreram a Ápries,soberano do Egito, colocando-se sob a sua proteção. Ápriesenviou contra Cirenes forças consideráveis, e os Cireneus,formados em ordem de batalha em Irasa e perto da fonte de

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Teste, enfrentaram-nos com galhardia. Os Egípcios, que comeles ainda não haviam medido forças, subestimaram suacapacidade de luta, sendo de tal maneira batidos, que para oEgito só regressou um pequeno número de soldados. O povoficou tão indignado com Ápries, que contra ele se revoltou.

CLX — Arcesilas, filho de Bato, foi o seu sucessor.Logo que subiu ao trono, teve ele algumas questões com seusirmãos, mas estes acabaram abandonando o país, indo paraoutra parte da Líbia, fundando ali a cidade de Barcéia, nomeque ainda hoje subsiste. Enquanto a construíam, sublevaram osLíbios contra os Cireneus. Arcesilas marchou contra osrevoltosos, e os Líbios, que o temiam, fugiram para junto dosLíbios orientais. Arcesilas perseguiu-os e alcançou-os emLêucon, na Líbia, onde travaram combate. A sorte das armas foifavorável aos Líbios, ficando estendidos no campo mais de setemil Cireneus muito bem armados. Depois desse revés, Arcesilascaiu doente, e quando se tratava foi estrangulado pelo seu irmãoLearco. Erixas, usando de um ardil, fez perecer o assassino deseu esposo.

CLXI — Bato, seu filho, sucedeu-o no trono. Bato eracoxo e não podia manter-se de pé. Os Cireneus, atribulados comseus fracassos, enviaram delegados a Delfos, a fim de saberemque forma de governo deviam adotar para viverem felizes. Apitonisa aconselhou-os a fazerem vir da Mantinéia, na Arcádia,alguém que pudesse restabelecer entre eles a concórdia.Seguindo o conselho, eles se dirigiram aos Mantineus, que lhescederam um homem, dos mais estimados na cidade, de nomeDemónax. Demónax concordou em ir para Cirenes, e informadodos negócios públicos, dividiu os Cireneus em três tribos, umadas quais compreendia os Tereus e seus vizinhos; a outra, osPeloponésios e os Cretenses, e a terceira, todos os insulares.Finalmente, reservou para Bato certas porções de terra, com asdignidades de sacrificador, e devolveu ao povo todas as outrasprerrogativas de que os reis cireneus haviam gozado até então.

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CLXII — Tais normas subsistiram durante o reinado deBato, mas no de seu filho surgiram, por causa das mesmas,grandes perturbações. Com efeito, Arcesilas, filho de Bato, oCoxo, e de Ferétima, declarou não tolerar mais que as leis deDemónax prevalecessem e exigiu as prerrogativas desfrutadaspelos seus ancestrais. Arcesilas provocou distúrbios e contendascom essa decisão, mas tendo os seus partidários ficado emsituação desvantajosa, teve de refugiar-se em Samos, enquantoque Ferétima, sua mãe, procurou asilo em Salamina, na ilha deChipre. Salamina era, naquele tempo, governada por Evélton,que consagrou a Delfos um belo turíbulo, que ainda hoje podeser apreciado como parte do tesouro dos Coríntios. Chegando àcorte de Evélton, Ferétima pediu tropas para restabelecer opoder do filho em Cirenes, mas o soberano preferiu dar-lheoutras coisas ao invés de tropas. Ferétima aceitou os presentes,achando-os magníficos, dizendo-lhe, porém, que mais satisfeitaficaria se lhe fossem concedidas tropas; e como repetissesempre a mesma resposta a cada presente que recebia, Evéltondeu-lhe, por fim, um fuso de ouro e uma roca, dizendo-lhe queàs mulheres se davam tais mimos e nunca um exército.

CLXIII — Enquanto isso, Arcesilas, aguardando apartilha das terras, reuniu em Samos, onde se encontrava, umexército numeroso, indo, em seguida, a Delfos, consultar ooráculo sobre a possibilidade de sua volta ao poder. A pitonisarespondeu-lhe: “Apolo concede à tua família o domínio deCirenes por quatro Batos e quatro Arcesilas, isto é, por oitogerações; mas te exorta a não tentares mais nada e a ficarestranqüilo quando regressares à pátria. Se encontrares um fornocheio de vasos de barro, evita levá-los ao fogo; retira-os dali ecoloca-os ao ar livre; e se aqueceres o forno, não o faças emlocal cercado de água, pois, se o fizeres, perecerás, juntamentecom o mais belo dos touros”.

CLXIV — Arcesilas voltou a Cirenes com o exércitoque conseguira reunir em Samos, e, recuperando o poder,

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mandou processar, sem atenção alguma ao oráculo, os que otinham combatido e o haviam obrigado a fugir. Uns tiveram dedeixar a pátria, condenados a exílio perpétuo; outros, presos,foram enviados a Chipre, para ali serem executados; mas osCnídios os libertaram, encaminhando-os para a ilha de Teras.Outros, enfim, refugiaram-se numa grande torre pertencente aum particular de nome Aglómaco. Arcesilas mandou colocarlenha em torno da torre e incendiá-la. Só então apreendeu ele osignificado das palavras da pitonisa de Delfos, quando lhe disseque não devia levar ao fogo os vasos de barro encontrados noforno. Com receio de ser morto, segundo a predição do oráculo,abandonou voluntariamente a Cirenes, imaginando ser essacidade o local cercado de água a que a pitonisa se referira.Havia desposado uma de suas parentas, filha de Alazir, rei dosBarceus, e foi junto a esse soberano que procurou refúgio; masos Barceus e alguns fugitivos da Cirenaica, descobrindo seuparadeiro, mataram-no, assim como ao seu sogro Alazir, que lhedera guarida. Assim, Arcesilas cumpriu seu destino, perecendopor haver desobedecido ao oráculo, voluntária ouinvoluntariamente.

CLXV — Enquanto Arcesilas forjava sua própria ruínaem Barcéia, Ferétima, sua mãe, desfrutava em Cirenes as honrasdevidas ao filho; e entre outras prerrogativas, a de tomar partenas deliberações do Senado; mas ao ter conhecimento da mortedo filho refugiou-se no Egito, por haver o filho prestado outroraalguns serviços a Cambises, entregando-lhe Cirenes epagando-lhe tributo. Chegando ao referido país, suplicou aAriando que a vingasse, alegando ter sido o filho assassinadopor haver favorecido o partido dos Medos.

CLXVI — Ariando havia sido nomeado governador doEgito por Cambises, sendo mais tarde condenado à morte porter pretendido igualar-se a Dario. Realmente, tendo sabido queesse soberano desejava deixar como monumento a perpetuar-lhea memória algo ainda não executado por qualquer outro,

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procurou imitá-lo. Dario havia mandado cunhar moedas do maispuro ouro(14). Ariando, governador do Egito, mandou, por suavez, cunhar moedas de prata, chamadas ariândicas, ainda hojetidas como feitas da mais fina prata. Dario, informado arespeito, acusou-o de rebeldia, mandando matá-lo sob essepretexto.

CLXVII — Tocado pelas súplicas de Ferétima, Ariandopôs à sua disposição um exército composto de todas as forçasdo Egito, tanto de terra como de mar. As tropas de terra eramcomandadas por Amásis, e as de mar, por Bares. Antes, porém,de dar-lhes a ordem de partida, Ariando enviou um emissário aBarcéia, a fim de informar-se sobre a autoria da morte deArcesilas. Os Barceus assumiram toda a responsabilidade doassassinato, pois o soberano lhes havia causado grandes males.Ante a resposta, Ariando fez partir o exército, juntamente comFerétima.

CLXVIII — Ariando encontrara aí o pretexto quebuscava para justificar sua expedição contra os Líbios, aos quaisdesejava, a meu ver, subjugar. A Líbia compreende diferentespovos, poucos dos quais se haviam submetido a Dario, sendoque a maior parte deles continuava a não lhe dar a mínimaimportância. Esses povos acham-se estabelecidos na Líbia naseguinte ordem, a partir do Egito(15): Em primeiro lugar, vêmos Adirmáquidas, que seguem quase os mesmos costumes dosEgípcios, trajando-se, porém, como o resto dos Líbios. Asmulheres trazem em cada perna um anel de cobre e deixamcrescer os cabelos. Se picadas por um piolho, apanham-no,mordem-no também, e atiram-no fora. É este o único povo líbioa manter semelhante costume, e o único também a apresentar asfilhas ao seu soberano, quando vão casá-las. A que cai nasgraças do rei, não volta ao lar senão depois de lhe haverconcedido seus favores. Essa nação se estende do Egito a umporto chamado Plinos.

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CLXIX — Os Giligames confinam com osAdirmáquidas, e habitam o território que se estende paraocidente até a ilha Afrodísias. Nesse ponto está situada a ilha dePlateia, onde os Cireneus estabeleceram uma colônia. Azires,onde também se estabeleceram, fica no continente, bem como oporto de Menelais. Ali se começa a encontrar o silfium. O paísonde cresce esta planta estende-se da ilha de Plateia até aembocadura do Sirta. Esses povos seguem os mesmos costumesdos outros.

CLXX — Em seguida aos Giligames, encontramos osAsbistas, para leste, além de Cirenes, estendendo-se até o mar,sendo suas costas marítimas ocupadas pelos Cireneus. Os carrospuxados por quatro cavalos estão mais em uso entre eles do queentre os outros povos líbios. Os Asbistas procuram imitar amaior parte dos costumes dos Cireneus.

CLXXI — Os Ausquises ficam a oeste dos Asbistas,com os quais confinam. Habitam a região além de Barcéia e seestendem até o mar, nas imediações das Hispéridas. Os Cábaloshabitam o centro dessa mesma região. É uma nação pouconumerosa, alongando-se pelas costas da Tauquira, cidade daBarcéia. Adotam os mesmos costumes dos que habitam a regiãosituada além de Cirenes.

CLXXII — O país dos Ausquises é limitado a oeste pelodos Nasamões, povo bastante numeroso. No Verão, osNasamões deixam seus rebanhos à beira-mar e dirigem-se a umcerto cantão denominado Augilas, para colher os saborososfrutos das palmeiras que ali crescem em abundância. OsNasamões dão-se ao hábito de caçar gafanhotos, que fazemsecar ao sol, e depois de reduzi-los a pó misturam-no no leiteque bebem. Adotam o costume de possuir, cada qual, váriasmulheres e de ter relações com elas publicamente, mais oumenos como os Masságetas. Da primeira vez que um nasamãose casa, na noite de núpcias, a mulher concede favores a todos

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os convivas, recebendo de cada um deles um presente trazido decasa. Eis como esse povo presta juramento e exerce a arte daadivinhação. Para o primeiro, colocam a mão sobre o túmulo deum dos homens mais famosos e mais justos da nação e jurampela sua memória. Na adivinhação, dirigem-se aos túmulos deseus ancestrais e ali, depois de fazerem preces, adormecem. Sedurante o sono tiverem algum sonho, guiam-se por ele namaneira de conduzir-se. Fazem pactos de confiança, bebendo,reciprocamente, um na mão do outro. Se nada têm para beberno momento, enchem as mãos de terra e lambem-na.

CLXXIII — Os Psilos eram vizinhos dos Nasamões,extinguindo-se de um momento para outro, da maneira que vourelatar, baseando-me nas informações dos Líbios. O vento sultinha, com suas fortes rajadas, secado todas as cisternas, e osPsilos, que habitavam a parte central da Sirta e não dispunhamde fontes, viram-se totalmente privados de água. Indignadoscom a ação do vento resolveram, por decisão unânime,mover-lhe guerra; mas ao chegarem aos desertos arenosos paradar-lhe combate foram envolvidos por seus violentos sopros,ficando sepultados sob montes de areia. Desaparecendo osPsilos, os Nasamões apoderaram-se de suas terras.

CLXXIV — Acima desses povos, numa região cheia deanimais ferozes, vivem os Garamantes, que fogem ao contatocom outros homens.

Os Garamantes, povo extraordinariamente atrasado, nãousam armas e nem sequer sabem defender-se.

CLXXV — Esse povo tem por vizinhos os Maces, quehabitam a oeste, ao longo do litoral. Os Maces raspam a cabeça,deixando apenas um pequeno tufo no alto da mesma. Quandovão à guerra, levam consigo, como arma defensiva, peles deavestruz. Suas terras são banhadas pelo rio Cinips, que,descendo da colina das Graças, atravessa o país e lança-se nomar. A colina está inteiramente coberta por espessa floresta,

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embora o resto da Líbia, como já tive ocasião de dizer, sejadesprovido de árvores. Dessa colina ao mar há uma distância deduzentos estádios.

CLXXVI — Os Gindanes confinam com os Maces.Dizem que suas mulheres trazem no tornozelo tantos anéis depele quanto os homens com os quais já tiveram relações, e a queostenta maior número de anéis é a mais estimada, por ter-sefeito amar por um maior número de homens.

CLXXVII — Os Lotófagos habitam o trecho do litoralvizinho aos Gindanes. Alimentam-se exclusivamente dos frutosdo loto. Esses frutos são mais ou menos da grossura do lentiscoe doces como a tâmara, e deles os Lotófagos extraem tambémuma espécie de vinho.

CLXXVIII — Esse povo confina, ao longo do mar, comos Máclies, que também se servem do loto como alimento,embora em menor escala. Os Máclies estendem-se até o Tritão,rio considerável que se lança num grande lago, o Tritónis, ondese encontra a ilha Fia. Dizem haver sido predito pelos oráculosque os Lacedemônios estabeleceriam uma colônia nessa ilha,sendo esse fato relatado da seguinte maneira:

CLXXIX — Depois de ter Jasão mandado construir, aopé do monte Pélion, o navio Argos, colocou nele um tripé debronze e, embarcando com sua comitiva, fez-se ao mar,dobrando o Peloponeso, tendo em mira atingir Delfos. Aoaproximar-se do promontório Maléia, ergueu-se um forte ventodo norte, que o impeliu para a Líbia, vendo-se ele perdido nomeio do lago Tritónis, sem saber onde aportar. Não sabia comosair dessa perigosa situação, quando, dizem, um tritão lheapareceu e lhe pediu o tripé, prometendo-lhe, em troca,indicar-lhe uma rota segura e salvá-lo daquele perigo. Jasãoconcordou, e o tritão, cumprindo com o que prometera,mostrou-lhe o meio de sair dali. Tomando, em seguida, do tripé,colocou-o no seu próprio templo, e, ali sentando-se, predisse a

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Jasão e aos seus tudo o que deveria acontecer-lhes.Anunciou-lhes também que, quando algum dos descendentesdele, tritão, se apoderasse do tripé, era absolutamente necessárioque os Gregos possuíssem cem cidades às margens do lagoTritónis. Dizem que os Líbios das vizinhanças do lago,sabedores disso, esconderam o tripé.

CLXXX — Depois dos Máclies, encontramos osAuseus. Estas duas nações acham-se estabelecidas em torno dolago Tritónis, mas separadas pelo rio Tritão. Os Mácíies deixamcrescer o cabelo atrás da cabeça, e os Auseus na frente. Numafesta que esses povos celebram todos os anos em honra aMinerva, as moças solteiras dividem-se em dois grupos ebatem-se, umas contra as outras, a pauladas e a pedradas.Dizem elas ter sido tal rito instituído por seus pais, em honra àdeusa, nascida no país, e a que chamamos Minerva. As moçasque morrem dos ferimentos recebidos na contenda sãoconsideradas falsas virgens. Antes de empenhar-se no combate,as jovens revestem-se de uma armadura completa, à modagrega, que é, na opinião de todas, a mais bela, e, colocando nacabeça um capacete à coríntia, sobem a um carro e passeiam emtorno do lago. Ignoro de que maneira se aprestavam para ocombate essas moças, antes de os Gregos terem estabelecidocolônias nas imediações. Creio, contudo, que era à maneira dosEgípcios, pois sou de opinião que o escudo e o capacete vieramdos Egípcios para os Gregos. Pretendem elas ser Minerva filhade Netuno e da ninfa do lago Tritónis. Insurgindo-se contra opai por uma razão qualquer, a deusa procurou a proteção deJúpiter, que a adotou como filha. As mulheres, entre essespovos, pertencem em comum aos homens, embora nãocoabitem com estes, e são possuídas à maneira dos animais. Osfilhos são criados pelas mães, e quando crescem, são levados àassembléia realizada pelos homens de três em três meses.Aquele com o qual a criança mais se parece é considerado seupai.

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CLXXXI — Tais os povos nômades que habitam olitoral da Líbia. Mais acima, avançando pelo meio das terras,encontra-se uma região líbia cheia de animais ferozes, além daqual existe um planalto arenoso, que se estende de Tebas, noEgito, às colunas de Hércules. Há, nessa zona, trechos cobertosde sal nas colinas. Do alto dessas colinas jorra, por entre o sal,uma água fresca e doce. Em torno dessas nascentes se agrupamos habitantes da região, os últimos que encontramos desse ladodo deserto e além da Líbia selvagem. Os primeiros povos queencontramos, vindo de Tebas, são os Amônios, a dez dias deviagem dessa cidade. Os Amônios possuem um templo, ondepraticam os ritos inspirados nos de Júpiter Tebano. Existe emTebas, como já disse, uma estátua de Júpiter com cabeça decarneiro.

Entre outras fontes, possuem eles uma cuja água é lépidaao nascer do sol, fresca à hora do mercado e extremamente friaao meio-dia. É a essa hora que eles costumam regar os jardins.À medida que o dia declina, ela se torna menos fria, até o pôrdo sol, quando volta a ser tépida, esquentando depois, pouco apouco, até a meia-noite, quando chega mesmo a ferver. Daí emdiante, passa a esfriar, gradativamente, até o romper da aurora.Chamam-na fonte do Sol.

CLXXXII — A dez dias de marcha a partir do país dosAmônios encontra-se, no mesmo planalto arenoso, outra colinade sal, tendo também uma fonte. O cantão onde ela está situadaé habitado e denomina-se Augilas. É ali que os Nasamões vão,no Outono, colher tâmaras.

CLXXXIII — A outros dez dias de jornada partindodesse cantão encontramos outra colina de sal, tendo,igualmente, fontes de água doce e uma grande quantidade depalmeiras, que dão frutos em abundância. A região é habitadapelos Garamantes, nação bastante numerosa. Os Garamantesutilizam-se do sal para o cultivo, espalhando terra sobre ele e

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semeando em seguida. Dali ao país dos Lotófagos a distâncianão é grande, mas há trinta dias de percurso do território dosLotófagos à região onde se vêem bois de estranha espécie, quepastam e andam para trás, por terem os chifres voltados parabaixo. Se caminhassem para frente, estes se enterrariam nochão. Não diferem dos outros bois senão nisso e em terem ocouro mais espesso e mais flexível. Os Garamantes dão caça aosTrogloditas-Etíopes, servindo-se, para esse fim, de carrospuxados por quatro cavalos, isso porque os Trogloditas-Etíopessão, de todos os povos que conhecemos, o mais veloz.Alimentam-se de serpentes, lagartos e outros répteis; falam umalíngua que nada tem de comum com as das outras nações e sedizem capazes de compreender os gritos dos morcegos.

CLXXXIV — A dez dias de jornada dos Garamantesencontramos outra colina de sal, com uma fonte e homens emtorno. Esses homens, que constituem a nação dos Atarantes, sãoos únicos, que eu saiba, a não possuírem nome próprio.Reunidos em nação, tomam o nome de Atarantes, masconsiderados individualmente, não usam um nome que osdistinga uns dos outros. Têm o hábito de lançar maldiçõescontra o sol quando este se acha no seu zênite, por queimar-lhesa pele e secar-lhes as terras.

Depois de mais dez dias de viagem chega-se a uma outracolina de sal, também com nascentes e habitantes em torno. Omonte Atlas confina com essa colina. É estreito e arredondado,mas tão alto que, segundo dizem, não se consegue ver-lhe ocume, por causa das nuvens que o envolvem, tanto no Verãocomo no Inverno. Os habitantes da região dizem ser ele umacoluna do céu, tendo dele o nome de Atlantes, por que sãoconhecidos. Segundo se afirma, esse povo não come nenhumaespécie de ser vivo e nunca sonha.

CLXXXV — Sei qual o povo que habita esse planaltoaté o território dos Atlantes, mas nada posso dizer sobre os que

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se encontram mais para diante, pois essa elevação se estendealém das colunas de Hércules. De dez em dez dias de jornadaencontramos minas de sal e habitantes, cujas casas sãogeralmente construídas com sal. Como nunca chove nessa parteda Líbia, seus moradores não correm o risco de verem-nasdesmoronar-se sob a ação da água. Extraem-se dessas minasduas espécies de sal: um branco e outro vermelho. Muito alémdesse planalto arenoso, na direção do sul, e mais para o interiorda Líbia, encontra-se um pavoroso deserto, inteiramentedesprovido de água, de árvores e até mesmo de animaisselvagens.

CLXXXVI — Toda a região que se estende do Egito aolago Tritónis é habitada pelos Líbios nômades, que sealimentam exclusivamente de carne e de leite, jamais comendo,como se dá também com os Egípcios, vacas ou porcos. Asmulheres de Cirenes não se julgam, também, com permissãopara comer carne de vaca, por causa da deusa Ísis, adorada noEgito. Chegam a jejuar, e celebram em sua honra. As mulheresde Barcéia também não comem carne de vaca e nem de porco.

CLXXXVII — Os povos que vivem a oeste do lagoTritónis não são nômades; não seguem os mesmos costumes enão tratam seus filhos da maneira como fazem os Líbiosnômades. Quando os filhos destes atingem a idade de quatroanos, queimam-lhes as veias do alto da cabeça, e algumas dastêmporas, com lã bruta. Não posso assegurar se todos os povosnômades da Líbia seguem tal costume, mas vários deles oadotam. Julgam, com isso, que ficam livres dos humores quecorrem do cérebro, preservando a saúde. Realmente, entre todosos povos que conhecemos não existe nenhum mais sadio do queos Líbios. Não julgo, porém, ser isso devido ao referidocostume. Se as crianças têm espasmos enquanto lhes queimamas veias, molham-nas com urina de bode, remédio por elespróprios descoberto e que consideram infalível para o mal. Deresto, estou apenas reproduzindo aqui o que me relataram os

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Líbios.

CLXXXV1II — Os Líbios nômades celebram seussacrifícios da seguinte maneira: começam por cortar a orelha davítima e atirá-la sobre o telhado da casa; depois, torcem-lhe opescoço. Imolam apenas ao Sol e à Lua. Todos os Líbiosoferecem sacrifícios a essas divindades; entretanto, os quevivem às margens do lago Tritónis imolam também a Minerva,a Tritão e a Netuno, mas principalmente a Minerva.

CLXXXIX — Os Gregos copiaram dos Líbios o traje ea égide de Minerva, com a diferença que o traje dos Líbios éfeito de pele, e as franjas de suas égides não são de pele deserpente, mas de tiras de couro muito finas. No restante, porém,em nada diferem. O nome desse traje prova que as vestes dasestátuas de Minerva vêm da Líbia. As mulheres líbias usam,realmente, por cima do traje, peles de cabra, guarnecidas defranjas e pintadas de vermelho, de onde os Gregos tiraram onome de égide. Creio também que os gritos agudos que seouvem no templo da deusa derivam de um costume daquelepaís. Teria vindo também dos Líbios para os Gregos, o hábitode atrelar quatro cavalos a seus carros.

CXC — Os Líbios nômades enterram seus mortos comoos Gregos, com exceção dos Nasamões, que os enterramsentados, tendo, para isso, o cuidado de manter o moribundonessa posição na hora de expirar. Usam habitações portáteis,feitas de asfódelos(16), entrelaçados com junco.

CXCI — Os Líbios lavradores confinam com os Auseusa oeste do rio Tritão. Possuem habitações e denominam a sipróprios Máxias. Deixam crescer o cabelo do lado direito dacabeça, raspando do lado esquerdo, e pintam o corpo devermelho.

Dizem-se descendentes dos Troianos. A região quehabitam é, como o resto da Líbia ocidental, muito mais povoada

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de animais selvagens e mais cheia de bosques do que a habitadapelos nômades, pois esta última é baixa e arenosa até o rioTritão.

Seguindo para o ocidente, após esse rio, encontramos aregião ocupada pelos Líbios lavradores; é montanhosa, cobertade florestas e cheia de animais selvagens. Na região ocupadapelos Líbios lavradores encontram-se serpentes de tamanhodescomunal, leões, elefantes, ursos, áspides, asnos comchifres(17), cinocéfalos e acéfalos, que possuem, segundoafirmam os Líbios, olhos no peito. Vêem-se também ali homense mulheres selvagens, e uma multidão de monstros fabulosos.

CXCII — No país dos nômades não encontramosnenhum desses animais. Existem, todavia, outros, tais comocabritos, búbalos, burros, não de chifres, mas de uma espécieque tem horror à água. Vêem-se também animais estranhos, dotamanho de um boi e de cujos chifres os habitantes se utilizampara fazer o braço de suas cítaras. Há também raposas, hienas,porcos-espinho, panteras, thoés(18), crocodilos terrestres comtrês côvados de comprimento e que se assemelham aos lagartos,avestruzes e pequenas serpentes de um só chifre. Não se vêem,porém, ali, nem veados nem javalis, pois a Líbia não possui taisanimais.

CXCIII — Os Zavecos confinam com os Líbios-Máxias.Quando vão à guerra, são as mulheres que conduzem os carros.

CXCIV — Logo depois dos Zavecos encontramos osGizantes, em cujas terras abundam abelhas, que produzem umaquantidade prodigiosa de mel, que ainda assim não é suficientepara o amplo consumo que dele fazem os habitantes. OsGizantes costumam pintar-se de vermelho e são grandesapreciadores da carne de macaco, animal muito comum nasmontanhas que ali existem.

CXCV — Perto desse país fica, segundo afirmam os

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Cartagineses, uma ilha denominada Cirâunis, muito estreita,mas medindo duzentos estádios de comprimento, inteiramentecoberta de oliveiras e vinhedos. Há nessa ilha um lago, de cujolodo os habitantes extraem palhetas de ouro com o auxílio depenas de pássaros. Se é verdade, não sei; limito-me a repetir oque sobre isso me disseram. É possível, porém, que assim seja,pois já fui testemunha da maneira pela qual se extrai resina deum lago de Zacinto, onde existe uma grande quantidade delagos, o maior dos quais mede setenta pés de extensão em todosos sentidos, com duas braças de profundidade. Os habitantes dolugar mergulham nele uma vara, na extremidade da qualprendem um ramo de mirta, retirando, em seguida, o ramo comresina, que tem cheiro de betume. Essa resina é colocada numfosso cavado perto do lago, e quando já existe uma grandequantidade dela, retiram-na do fosso, colocando-a em ânforas.Tudo que cai naquele lago, passa por debaixo da terra, indo terao mar, embora este diste do lago cerca de quatro estádios.Assim, podem estar com a razão os que dizem que essa ilha estásituada nas proximidades da Líbia.

CXCVI — Dizem os Cartagineses existir, além dascolunas de Hércules, um país habitado, onde costumam ircomerciar. Quando ali chegam, retiram as mercadorias dosnavios e colocam-nas ao longo da praia, voltando, em seguida,para bordo, onde, para atrair a atenção dos habitantes, fazemfumaça em grande quantidade. Os naturais do país, percebendoa fumaça, dirigem-se para a praia e ali depositam umaquantidade de ouro que consideram correspondente ao valor dasmercadorias, afastando-se. Os Cartagineses desembarcamnovamente, examinam a quantidade do precioso metal alideixada e, se a julgam razoável, apanham-na e retiram-se. Se,porém, a julgam insuficiente, retornam aos navios, ondepermanecem tranqüilos, na expectativa. Os nativos voltam aolocal e acrescentam mais alguma coisa, esperando que com issoos Cartagineses se dêem por satisfeitos. As duas partes jamaisprocuram ludibriar uma à outra. Os Cartagineses não tocam no

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ouro senão quando ele corresponde ao valor das mercadorias; eos nativos só se apoderam das mercadorias quando osCartagineses se apoderam do ouro.

CXCVII — Tais os povos da Líbia, cujos nomes possocitar, um por um. A maioria deles não dava, outrora, aos reisdos Medos, maior importância do que lhes dá hoje. Devoacrescentar que o país é habitado por quatro nações: duasindígenas e duas estrangeiras. Os indígenas são os Líbios e osEtíopes; aqueles, habitando a parte norte da Líbia, e estes, aparte sul. As duas nações estrangeiras compõem-se de Feníciose de Gregos.

CXCVIII — Quanto à fertilidade, a Líbia não pode, aoque me parece, ser comparada à Ásia nem à Europa, exceçãofeita ao país dos Cinips, povo que possui o mesmo nome do rioque banha suas terras, que podem ser comparadas às melhorespara o cultivo do trigo. É uma terra negra, regada por váriasnascentes e beneficiada por constantes chuvas, que a fecundamsem lhe causar dano. O país produz tanto trigo quanto aBabilônia. O país dos Hispéridas possui também terrasexcelentes. Nos anos mais propícios à cultura, as sementeslançadas ao solo centuplicam; mas nas terras dos Cinips, decada semente plantada obtém-se trezentas.

CXCIX — A Cirenaica é o país de maior altitude dessaregião da Líbia, e é habitada por povos nômades, beneficiadospor excelentes condições para o cultivo de suas terras, contandocom três estações propícias. A colheita e a vindima começam àbeira-mar, passando em seguida para as terras altas no centro dopaís, a que dão o nome de colinas e onde o trigo e a uva já entãose encontram maduros, à espera da colheita. Enquanto é feita acolheita na zona central, o amadurecimento vai se processandonas outras zonas mais afastadas; e assim, quando os habitantesrealizam a última colheita, há muito já beberam os primeirosvinhos. Os Cireneus se ocupam nessa tarefa durante oito meses

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do ano.

CC — O exército persa(19) que Ariando tinha enviadodo Egito para vingar Ferétima, chegando diante de Barcéiaestabeleceu o cerco, depois de haver intimado os habitantes aentregar-lhe os assassinos de Arcesilas. Os Barceus,considerando-se todos culpados da morte do soberano, nãoatenderam à intimação. O cerco se prolongou por nove meses,durante os quais os Persas minaram as muralhas e atacaramvigorosamente a praça. Um artesão, habituado a trabalhar com ocobre, descobriu as minas(20) por meio de um escudo debronze. Munido do escudo, pôs-se a andar em torno da cidade,ao pé das muralhas, aproximando-o do chão, aqui e ali. Nospontos não minados pelo inimigo, o escudo nenhum somproduzia; mas ao passar por lugares minados, acusava-oemitindo um som bastante audível. Os Barceus, alertados,contraminaram esses pontos, matando os Persas que se achavamentregues a essa delicada tarefa de guerra. Quanto aos assaltosdesfechados pelos sitiantes, os habitantes souberam repeli-loscom bravura.

CCI — O cerco de Barcéia ia-se prolongandoindefinidamente, já se registrando, de um lado e de outro,perdas consideráveis, quando Amásis, que comandava as forçasde terra, vendo a impossibilidade de vencer o inimigo frente afrente, recorreu ao seguinte estratagema: mandou cavar, durantea noite, um largo fosso, no qual colocou pedaços de madeiramuito frágeis, cobrindo-os de terra, de modo a ocultá-los eevitando qualquer diferença de nível de terreno. Ao nascer dodia, convidou os Barceus para um entendimento, convite queeles aceitaram com alegra, pois não desejavam outra coisasenão um acordo. As duas partes firmaram, então, um tratado,jurando, sobre o fosso coberto, observar os termos do mesmo,enquanto aquele terreno se mantivesse tal qual se encontrava nomomento. O tratado estabelecia o pagamento, pelos Barceus, deum tributo módico ao soberano persa, enquanto que os sitiantes

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não empreenderiam nenhum novo movimento contra eles.Prestado o juramento por ambas as partes, os Barceus,confiantes no tratado, abriram todos os portões da cidade,deixando entrar os inimigos de há pouco. As tropas persas,destruindo o fosso oculto, invadiram, em massa, a cidade.Destruindo o fosso e, por conseguinte, afundando o terrenonaquele ponto, não violavam o juramento que haviam feito, poiso tratado deixava de existir.

CCII — Os Persas entregaram a Ferétima os maisculpados entre os Barceus, pela morte de Arcesilas, e elamandou, incontinênti, crucificá-los em torno das muralhas. Àssuas mulheres, mandou cortar-lhes os seios e colocá-losigualmente em volta das muralhas. Quanto ao resto dosBarceus, deixou-os à mercê dos Persas, como despojos deguerra, com exceção dos Batíades e dos que nenhumaparticipação tiveram no assassinato de seu filho. Estes ficaramencarregados da guarda da cidade.

CCIII — Depois de haverem reduzido os Barceus àescravidão, os Persas retornaram à pátria. Ao chegarem aCirenes, os Cireneus, em observância a um oráculo,deixaram-nos passar livremente pela cidade; mas enquanto asforças persas a transpunham, Bares, comandante das tropasnavais, ordenou a pilhagem. Amásis, que se encontrava à frentedas tropas de terra, foi contrário a tal ação, mostrando-lhe quetinham vindo exclusivamente para aniquilar os Barceus.Atravessando a cidade, acamparam na colina de Júpiter Liceu,mas os soldados de Bares, arrependendo-se de não haveremrealizado seu intento, resolveram voltar e penetrar novamentena praça. Os Cireneus, todavia, opuseram-se a essa novaincursão, e os Persas, assombrados ante a firme atitude doshabitantes, retiraram-se precipitadamente, indo acampar a umadistância de sessenta estádios da cidade. Enquanto armavamacampamento, chegou um correio da parte de Ariando,chamando-os de volta à corte. Desprovidos de mantimentos

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para a viagem de regresso, tiveram de recorrer aos Cireneus,pedindo-lhes que lhes fornecessem víveres, e obtidos estes,puseram-se em marcha para o Egito. Ao passarem pelas terrasdos Líbios, estes entraram a perseguir alguns grupos isolados,não deixando de acossá-los durante todo o percurso para oEgito, tirando-lhes as roupas e bagagens, e matando os daretaguarda.

CCIV — Este exército não conseguiu penetrar mais nopaís dos Hispéridas do que nos Líbios, em face da resistênciaque encontravam por toda parte. Quanto aos Barceus, reduzidospelos Persas à servidão, foram enviados do Egito a Dario, quelhes deu terras na Bactriana, juntamente com um burgo queainda hoje subsiste e o denominaram Barcéia, nome de suapátria.

CCV — Ferétima teve um fim trágico. Mal haviachegado à Líbia, de regresso do Egito, depois de ter-se vingadodos Barceus, pereceu miseravelmente, devorada pelos vermesque formigavam no seu corpo, o que prova que os deusesrepelem e castigam os que levam muito longe seusressentimentos.

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LIVRO V

TERPSÍCORECONTINUAÇÃO DA HISTÓRIA DE DARIO — ATENAS EESPARTA — OS PISISTRÁTIDAS — CLEÓMENES — AS

ESTÁTUAS DE EGINA — ORIGEM DA INIMIZADE ENTREOS ATENIENSES E OS EGINETAS — CÍPSELO, TIRANO DE

CORINTO — HÍPIAS — TOMADA DE SARDES PELOSIÔNIOS E PELOS ATENIENSES — DARIO LANÇA UMA

FLECHA CONTRA O CÉU, PEDINDO AOS DEUSES QUE OVINGUEM DOS ATENIENSES — TODAS AS CIDADES DO

HELESPONTO, DA IÔNIA E DA EÓLIA SUBMETIDASPELOS PERSAS, ETC.

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I — As tropas persas que Dario havia deixado na Europasob o comando de Megabizo subjugaram primeiramente, entreos povos do Helesponto, os Períntios, que se recusaram aobedecer a seu soberano. Os Peônios, que vivem às margens doEstrímon, tinham, antes, movido guerra contra os Períntios, emconseqüência de um oráculo, que os concitara a marchar contraesse povo e atacá-los, se, quando os dois exércitos sedefrontassem, os Períntios os provocassem chamando-os pelosnomes, devendo, porém, absterem-se de qualquer atitudeagressiva se tal não se desse. Os Peônios obedeceram. OsPeríntios, tendo assentado acampamento diante da cidade efrente a frente com os Peônios, desafiaram-nos a três combatessingulares; um, de um homem contra outro; o segundo, de umcavalo contra outro, e o terceiro, de um cão contra outro cão.Obtiveram supremacia nos dois primeiros combates, e,desvanecidos com essa vantagem, puseram-se a entoar oPéon(1). Foi quando os Peônios, conjecturando que eraexatamente isso que o deus lhes havia dado a entender, edizendo uns aos outros: “O oráculo já se cumpriu; cumpramosnós o nosso dever”, caíram sobre os adversários, quecontinuavam a entoar o hino, desbaratando-os por completo.

II — Tal foi a vantagem obtida pelos Peônios contraesse povo; mas, com relação aos persas de Megabizo, osPeríntios lutaram valorosamente pela própria liberdade, sólogrando o inimigo vencê-los pela superioridade numérica.Depois de submeter Perinto, Megabizo percorreu a Trácia como seu exército, capturando todas as cidades e subjugando todosos povos, impondo-lhes o jugo persa, seguindo as ordensrecebidas de Dario.

III — Os Trácios constituem, depois dos Indianos, anação mais populosa da Terra. Se fossem governados por umúnico homem, ou se se mantivessem em estreita união, seriam,acredito, o mais poderoso de todos os povos. Tal união é,

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porém, impraticável, e isso os torna fracos. Possui, cada grupo,um nome diferente, segundo a região que habita. Todavia,adotam as mesmas leis e os mesmos costumes, com exceção dosGetas, dos Trausos e dos que habitam acima dos Crestônios.

IV — Já tive ocasião de me referir aos costumes dosGetas, que se dizem imortais. Quanto aos dos Trausos, são emtudo semelhantes aos dos outros Trácios, exceto com relaçãoaos recém-nascidos e aos mortos. Quando nasce, entre eles, umacriança, os parentes, sentados em torno dela, enumeram osmales a que está sujeita a natureza humana e lamentam, comgemidos, a sorte ingrata que fatalmente o acompanharáenquanto viver; mas, quando morre um deles, enterram-noalegremente, regozijando-se com a felicidade desse que acabade libertar-se de tantos males.

V — Entre os povos que habitam a região ao norte doterritório dos Crestônios prevalece o costume de cada indivíduopossuir várias mulheres. Quando morre um deles, trava-se entreas viúvas acesa disputa para decidirem qual a que fora maisamada pelo morto, intervindo na contenda os amigos deste.Aquela em favor da qual é pronunciado um tão honrosojulgamento recebe os elogios dos homens e das mulheres,depois do que seu mais próximo parente sacrifica-a sobre otúmulo do marido, enterrando-a com ele. As outras mulheresmostram-se profundamente magoadas com essa preferência, quepara elas encerra uma grande afronta.

VI — Os outros Trácios adotam o costume de vender osfilhos, com a condição de serem eles levados para fora do país.Não mantêm a menor vigilância sobre as filhas, deixando-ascom a liberdade de entregar-se a quem melhor lhes pareça, masconservam as esposas, que adquirem por alto preço dos pais,rigorosamente segregadas. Trazem estigmas no corpo(2), o queconstitui um sinal de nobreza, sendo infamante não possuí-los.Nada mais belo para eles do que a ociosidade; nada mais

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honroso do que a guerra e a pilhagem, e nada mais desprezíveldo que o amanho da terra.

VII — Esses Trácios não adoram senão Marte, Baco(3)e Diana; mas os reis prestam particular culto a Mercúrio, doqual se julgam descendentes, e juram unicamente por esse deus.

VIII — Os funerais das pessoas ricas são realizados,entre eles, da seguinte maneira: o morto fica exposto às vistasdos parentes e amigos durante três dias, e depois de lhe haveremsacrificado toda sorte de animais, realizam um festim, sempreiniciado por copioso. pranto. Dão-lhe, em seguida, sepultura talcomo se encontra, ou depois de o haverem queimado. Erguemum cômoro sobre a cova e celebram jogos de toda espécie, comdistribuição de valiosos prêmios aos vencedores dos combatessingulares.

IX — Nada se pode dizer com segurança sobre os povosque habitam ao norte da Trácia, mas a região situada além doÍster parece deserta e imensa, sendo habitada apenas pelosSiginos, segundo me informaram. As vestes dos Siginosassemelham-se muito às dos Medos. Os cavalos, nessa região,são pequenos e de pêlo longo, e não têm força suficiente paraconduzir homens; mas atrelados a um carro deslocam-se combastante ligeireza, razão por que esse povo faz amplo uso decarroças. Os Siginos confinam com os Venetos, que vivem nolitoral do Adriático, e pretendem ser uma colônia dos Medos.Não posso compreender, entretanto, como os Medosconseguiram transplantar-se para essa região. Enfim, é possívelque assim tenha sido. Os Ligúrios, situados além de Marselha,chamam siginos aos comerciantes, e os Cíprios assimdenominam seus dardos.

X — Os Trácios asseguram que na região que fica alémdo Íster existe uma tal quantidade de abelhas, que nenhum serhumano se atreve a avançar mais para diante. Isso não meparece verossímil, uma vez que esses insetos não suportam frio

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intenso. Na minha opinião, é o rigor do clima que a tornainabitável. Eis o que se diz dessa região, cujo litoral foisubmetido por Megabizo.

XI — Dario, atravessando o Helesponto, dirigiu-se paraSardes, onde, lembrando-se do serviço que lhe prestara Histeu edos bons conselhos de Coes de Mitilene, mandou chamá-los aessa cidade, dispondo-se a recompensá-los com o que fosse desua escolha. Histeu, que já era tirano de Mileto, contentou-seem pedir-lhe Mircina, cantão dos Edônios, onde tencionavaconstruir uma cidade. Coes, que ainda não exercia poder algum,pediu-lhe a soberania de Mitilene. Obtendo ambos o quedesejavam, retiraram-se.

XII — Um fato de que Dario foi testemunha levou-o aordenar a Megabizo que transportasse os Peônios da Europapara a Ásia. Pigres e Mânties, ambos peônios, aspiravamtornar-se tiranos de sua pátria. Logo que Dario regressou à Ásia,dirigiram-se eles a Sardes, com a irmã, jovem e bela.Espreitando o momento em que o soberano se achava no bairrodos Lídios, enfeitaram a moça da melhor maneira possível emandaram-na buscar água. Levava ela um vaso na cabeça,puxava o cavalo pela rédea, presa ao braço, enquanto com asmãos fiava o linho. Dario, vendo-a passar, pôs-se a observá-lacom interesse, tanto mais que as suas maneiras diferiam doscostumes das mulheres persas, lídias, e mesmo das do resto daÁsia. Ordenou, então, a alguns dos seus guardas que aseguissem e observassem o que ela faria com o cavalo. Osguardas seguiram-na. A moça foi até o riacho, deu de beber aocavalo e, enchendo de água o vaso, voltou pelo mesmocaminho, o vaso na cabeça, a rédea do animal enrolada no braçoe manejando o fuso.

XIII — Espantado com a informação dos guardas e como que ele próprio presenciara, Dario fez vir a moça à suapresença. Esta chegou acompanhada dos irmãos, que se

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mantiveram a certa distância, aguardando os acontecimentos.Dario interrogou-os sobre o país a que pertenciam, respondendoeles serem peônios e sua irmã aquela que ali estava. O soberanoperguntou-lhes a razão de sua vinda a Sardes, que espécie dehomens eram os Peônios e que parte da terra habitavam,respondendo eles que ali tinham vindo para oferecer-lhe seusserviços, e que a Peônia, com suas cidades, ficava situada àsmargens do Estrímon, rio não muito distante do Helesponto.Quanto ao seu povo, era originário dos Teucros, colônia deTróia. O soberano quis ainda saber se as mulheres desse paíseram todas assim, laboriosas como aquela jovem, respondendoeles prontamente que sim, pois com toda a sua manobra nãovisavam senão serem levados a essa resposta.

XIV — Diante disso, Dario enviou uma mensagem aMegabizo, que havia deixado na Trácia à frente de um exército,ordenando-lhe que fizesse sair os Peônios do seu país,conduzindo-os, com as mulheres e crianças, para a Ásia.Imediatamente, um correio dirigiu-se a toda brida para oHelesponto e, atravessando-o, chegou ao local onde seencontrava Megabizo, fazendo-lhe entrega da mensagem. Ogeneral, cientificado do desejo do seu soberano, obteve guiastrácios e marchou incontinênti contra a Peônia.

XV — Ante a notícia de que os Persas vinham atacá-los,os Peônios dirigiram-se com suas forças para o litoral,convencidos de que o ataque viria daquele lado e decididos arepeli-lo por todos os modos; mas Megabizo, alertado de queeles guardavam, com todas as tropas, as passagens do lado domar, enveredou pelas terras altas com os guias, e caindo desurpresa sobre as cidades, delas apoderou-se facilmente, tantomais que encontrou-as quase desertas. Sabendo que as suascidades se achavam em poder de Megabizo, os Peôniosdispersaram-se sem mais demora e, regressando aos lares,renderam-se aos atacantes. Assim, uma parte dos Peônios, istoé, os Siropeônios, os Peoples, e os que habitam a região que se

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estende até o lago Prásias, viram-se arrancados de seus lares etransportados para a Ásia.

XVI — Os Peônios das cercanias do monte Pangeu, osDoberienses, os Agriães, os Odomantes e os Peônios do lagoPrásias não puderam, a princípio, ser subjugados, a despeito dastentativas feitas por Megabizo. As habitações do último dessespovos a que me referi são construídas sobre pilastras elevadas,enterradas no lago, ligadas à terra firme por uma ponte estreita,que é o único meio de acesso. Os habitantes erguiam outroraessas pilastras por meio de contribuição comum; mas, depois,ficou estabelecido por lei que cada homem devia trazer trêsdelas do monte Orbeto, toda vez que desposasse uma mulher (apoligamia é permitida entre esse povo). Os habitantes armamsuas habitações sobre as pranchas colocadas sobre as pilastras,com um alçapão que se abre sobre o lago; e para que as criançasnão venham a cair pela abertura, amarram-nas pelo pé com umacorda. Em lugar de feno, dão aos cavalos e às bestas de carga,peixe, sendo este tão abundante no lago, que, lançando-se àágua um cesto pelo alçapão, pode-se retirá-lo cheio de papracese de tilons, as duas espécies mais numerosas ali.

XVII — Os Peônios subjugados foram levados para aÁsia, e Megabizo, concluída essa expedição, despachou para aMacedônia sete persas, detentores de altos postos no exército,para pedirem a Amintas terra e água em nome de Dario. Dolago Prásias à Macedônia não é grande a distância. Com efeito,a mina explorada pelos Macedônios e que passou a render maistarde um talento por dia a Alexandre, confina com esse lago.Depois dessa mina fica o monte Disorum, e transpondo-se este,entra-se na Macedônia.

XVIII — Chegando à presença de Amintas, osemissários de Megabizo pediram-lhe terra e água em nome deseu soberano, sendo prontamente atendidos. Amintashospedou-os em seu próprio palácio, oferecendo-lhes um

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magnífico banquete e tratando-os com a maior cordialidade.Findo o banquete, os emissários persas, já um tanto tocadospelo vinho, disseram a Amintas: “Senhor e hospedeiro nosso;nós, os Persas, quando damos um grande banquete costumamosfazer sentar ao nosso lado nossas concubinas e nossas jovensesposas. Já que nos recebeis com tanta cordialidade emagnificência e concedeis terra e água ao nosso soberano, porque não imitais, em tal ocasião, o costume dos Persas?”“Nossos costumes são outros — respondeu Amintas —, e não éuso, entre nós, as mulheres permanecerem entre os homens; mascomo desejais ainda este testemunho de nossa deferência e soisnossos senhores, sereis obedecidos”. Assim dizendo, mandouvir as mulheres, dizendo-lhes que se sentassem lado a lado, emfrente aos persas. Estes, encantados com a beleza das jovens,disseram a Amintas que não lhe ficava bem mantê-las assim tãoafastadas e que, se elas tinham vindo para ficarem sentadasdefronte deles, causando-lhes verdadeiro tormento para osolhos, seria melhor que ali não estivessem. Cedendo àscircunstâncias, Amintas fê-las sentar-se ao lado de seushóspedes. Elas obedeceram prontamente, e estes, excitados pelovinho, levaram-lhes as mãos aos seios e tentaram abraçá-las.

XIX — Embora revoltado com o espetáculo que tinhadiante dos olhos, Amintas aparentava tranqüilidade, tal o temorque lhe inspiravam os Persas: mas seu filho, Alexandre, aindamuito jovem e inexperiente, achando-se presente ao banquete,não pôde conter-se, dirigindo-se ao pai nestes termos: “Cedei àsexigências da vossa idade, meu pai; ide repousar, não assistindopor mais tempo a tão deprimente espetáculo. Eu ficarei, e terei ocuidado para que nada falte aos nossos hóspedes”. Amintascompreendeu que o filho tinha na mente algum plano funesto.“Julgo notar pelas tuas palavras, meu filho — disse ele —, queestás um tanto perturbado pelo vinho e queres que eu me afastepara executares o que tens em mente; mas eu te conjuro a nadafazeres contra esses homens, para que não sejas a causa danossa desgraça. Observa o seu procedimento, mas sem te

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exaltares. Cedo, apesar disso, às tuas instâncias, e retiro-me”.

XX — Logo que Amintas se retirou, Alexandre dirigiu apalavra aos persas: “Amigos, se desejais os favores de todasessas mulheres, ou somente de algumas dentre elas, bastadizer-me, e eu vos facilitarei em tudo que depender de mim. Ahora já vai adiantada e noto que o vinho vos despertou a alegria.Permiti, pois, que elas tomem o seu banho de costume, voltandodepois para junto de vós”.

Os persas aquiesceram. As mulheres saíram, eAlexandre mandou-as para os seus respectivos aposentos.Reunindo, em seguida, um grupo de jovens imberbes, fê-losvestir-se de mulher, armou-os de punhal e, voltando com eles àsala do banquete, disse aos hóspedes de seu pai: “Persas,acreditamos ter-vos oferecido um esplêndido banquete e servidoo que possuíamos de melhor, contentando-vos com o que nosfoi possível nesse sentido, e agora, para vos convencer de quevos dispensamos a maior consideração, trazemos a vós asnossas mães e nossas irmãs. Não deixeis, pois, de dartestemunho ao rei que vos enviou, do acolhimento cordial quevos dispensou um grego, príncipe da Macedônia. Agora, à mesae ao leito!”. Dito isso, Alexandre ordenou a cada um dosmacedônios que se sentasse junto de cada persa, procedendocomo uma mulher; mas, no momento em que os persas tentaramtocar-lhes, os jovens massacraram-nos.

XXI — Assim pereceram os emissários de Megabizo etoda a sua comitiva, pois ali tinham ido acompanhados degrande número de criados, carros e bagagem, quedesapareceram com eles. Pouco tempo depois os Persas fizeramum inquérito em torno do fato, mas Alexandre agiu comsagacidade, oferecendo, juntamente com grandes somas dedinheiro, sua irmã Gigéia em casamento a Bubares, um doscomissários nomeados para investigar o desaparecimento dosdelegados de Megabizo, abafando, desse modo, os rumores em

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torno do assassínio dos mesmos.

XXII — Alexandre e seu pai são realmente gregos edescendentes de Pérdicas, como eles próprios o afirmam. Estouconvencido disso, e o provarei no decorrer desta história. Aliás,os helanódicos, que presidem aos Jogos Olímpicos, assimdecidiram quando Alexandre tomou a resolução de participardesses jogos, apresentando-se na liça. Os que disputavam oprêmio de corrida quiseram excluí-lo da prova, sob a alegaçãode que somente os Gregos deviam ser admitidos no torneio.Ficando, porém, provado ser ele árgio, consideraram-no grego;e quando se apresentou para disputar a prova do estádio, seunome saiu sorteado, juntamente com o do primeiro concorrente.

XXIII — Chegando ao litoral do Helesponto com osPeônios que subjugara, Megabizo atravessou-o, atingindoSardes. Informado de que Histeu de Mileto já erguia os murosda cidade denominada Mircina, sobre o Estrímon, com a qual opresenteara Dario como recompensa por haver guardado a pontedurante a expedição contra os Citas, logo que chegou dirigiu-seao palácio do soberano, a quem falou nestes termos: “Quefizestes, senhor, permitindo a um grego hábil e sagazassenhorear-se de uma cidade, numa região da Trácia onde háminas de prata e muita madeira própria para a fabricação deremos! Esse país, aliás, encontra-se cercado por grande númerode Gregos e bárbaros, que, tomando-o por chefe, segui-lo-ão, aqualquer hora, aonde ele os queira conduzir. Reprimi, senhor,esse homem empreendedor, para evitardes o perigo de umaguerra civil. Chamai-o a vós com doçura, e quando ele estiverem vosso poder, impedi-o de retornar à Grécia”.

XXIV — Estas palavras, pronunciadas por um homemcuja visão penetrante perscrutava o futuro, convenceramfacilmente Dario. O soberano enviou logo um correio aMircina, com instruções para dizer a Histeu: “Histeu, o reiDario fala-te pela minha boca: depois de muito pensar, cheguei

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à conclusão de que não poderei encontrar ninguém maisdevotado a mim e ao meu governo do que tu. As tuas ações metêm dado prova disso. Encontro-me atualmente empenhado emgrandes projetos, e a tua presença aqui me é absolutamentenecessária. Espero-te para te comunicar as minhas resoluções”.

Histeu, lisonjeado com essa declaração e sentindo-sehonrado por admiti-lo o soberano como seu conselheiro, veio aSardes, dizendo-lhe Dario, assim que o viu em sua presença:“Mandei chamar-te porque, desde o meu regresso da Cítia,tenho sentido a tua ausência, não desejando outra coisa senãorever-te e confabular contigo, convencido de que um amigoprudente e zeloso dos nossos interesses é o mais precioso dosbens. Ora, notei em ti essas duas qualidades, e folgo com a tuavinda. Escuta, agora, o que te vou propor: Deixa Mileto e anova cidade que construíste na Trácia, e acompanha-me a Susa;partilharás de todos os meus bens, comerás à minha mesa eserás meu conselheiro”.

XXV — Pouco depois, partia Dario para Susa, levandoHisteu consigo, tendo antes nomeado Artafernes, seu irmão porparte de pai, governador de Sardes, e Otanes comandante dascostas marítimas. Este último era filho de Sisanés, um dosjuízes reais que Cambises mandara executar e esquartejar, porter-se deixado subornar. Tinham-lhe, em seguida, cortado a peleem tiras, recobrindo com ela a cadeira onde ele exercia amagistratura. Consumado o castigo, Cambises deu ao filho olugar do pai, dizendo-lhe que se lembrasse sempre, ao ministrara justiça, da cadeira em que se sentava.

XXVI — Foi, pois, esse Otanes que sucedeu Megabizono comando do exército persa na Europa. Tomou Bizâncio, aCalcedônia e Lampônia, e tornou-se senhor de Antandro, naTróada. Os Lésbios deram-lhe, em seguida, navios, com osquais ele subjugou Lemnos e Imbros, até então habitadas porPelasgos.

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XXVII — Os Lémnios combateram corajosamente,defendendo-se com galhardia, mas acabaram por sucumbir. OsPersas deram para governador dos que sobreviveram ao desastreLicaretes, irmão de Meândrio, que havia reinado em Samos.Licaretes morreu à testa do governo que lhe fora confiado.

Otanes subjugou todos esses povos, reduzindo-os àescravidão, acusando-os, uns, de não terem auxiliado os Persasna expedição contra os Citas; outros, de haverem acossado oexército de Dario ao regressar da Cítia. Tal a sua condutaenquanto comandava nessa região.

XXVIII — Foi de curta duração o repouso de quedesfrutou em seguida a essas conquistas. Os Iôniosexperimentaram novas provações, resultantes dedesinteligências na ilha de Naxos e na cidade de Mileto. Naxosera, então, a mais rica de todas as ilhas, e a cidade de Miletoatingia um grau de progresso nunca antes experimentado, sendoconsiderada um verdadeiro ornamento da Iônia. Muito tinhasofrido com as dissensoes intestinas provocadas pelas duasgerações precedentes, mas os Pários haviam restabelecido aunião e a concórdia, a pedido dos Milésios, que os haviamescolhido, de preferência aos Gregos, como mediadores.

XXIX — Eis como os Pários conseguiram a harmoniadesejada: Seus deputados, pessoas eminentes e de altareputação, notando, logo ao chegarem, a situação deplorávelreinante em Mileto, manifestaram o desejo de percorrer oterritório. Iniciaram a peregrinação, e quando encontravam, porentre terras devastadas, um campo bem cultivado, anotavam,por escrito, o nome do proprietário. Depois de haverempercorrido toda a região, assinalando apenas um pequenonúmero de terrenos em bom estado, retornaram à cidade,convocaram a assembléia do povo e nomearam para a gerênciados negócios do Estado aqueles que possuíam campos bemcultivados. Acreditavam, explicaram eles, que tais proprietários

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teriam com os negócios públicos o mesmo cuidado que tinhamcom suas terras. Feita a escolha, concitaram a todos, até entãoempenhados em discórdias, a reconhecê-los como seusmagistrados e a obedecê-los. Foi assim que esses deputados deParos restabeleceram a harmonia em Mileto.

XXX — Os males que afligiram a Iônia vieram-lhe,como já dissemos, dessas duas cidades, originando-se doseguinte fato: Alguns dos mais ricos cidadãos de Naxos,exilados pelo povo, retiraram-se para Mileto, que tinha comogovernador Aristágoras, filho de Molpágoras, genro e primo deHisteu, filho de Liságoras, que Dario levara em sua companhiapara Susa e que ali se achava quando os exilados de Naxos, seusamigos, foram ter a Mileto. Ali chegando, os Náxios pediram aAristágoras que os auxiliasse a retornar à pátria, mas ogovernador, refletindo e concluindo que se lhes facultasse osmeios para isso passariam a gozar de suprema autoridade emNaxos, tomou por pretexto a aliança que eles mantinham comHisteu, falando-lhes nestes termos: “Não posso conceder-vos asforças necessárias para vos restabelecer em Naxos, porquantoestou informado de que as tropas náxias são em número de oitomil, muito bem armadas, dispondo ainda de vários navios deguerra; mas farei o possível para servir-vos, e eis o meio que meocorre: Artafernes, filho de Histaspes e irmão de Dario, é meuamigo. Governa ele toda a costa marítima da Ásia, tendo às suasordens um grande exército e uma poderosa frota. Penso quepoderá atender-vos”.

Diante disso, os náxios se empenharam junto aAristágoras no sentido de obterem a cooperação de Artafernes,comprometendo-se a fornecer mantimentos para as tropas e arecompensá-lo, pois estavam seguros de que, logo quesurgissem em Naxos, os habitantes se submeteriam, juntamentecom os outros insulares. Com efeito, nenhuma das ilhas quecompunham as Cíclades reconheciam, então, o poderio deDario.

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XXXI — Dirigindo-se a Sardes, Aristágoras expôs aArtafernes as razões que ali o levavam, fazendo-o ver que, se ailha de Naxos não possuía grande extensão, era pelo menosfértil, de clima agradável e rica em prata e em escravos, estandosituada nas vizinhanças da Iônia. “Envia para ali tropas com osexilados — disse-lhe ele. — Tuas despesas serão compensadas,e se concordas com a minha proposta, estou pronto a fornecer-teos fundos consideráveis de que disponho; pois é justo que,como autores da empresa, arquemos com as despesas. De resto,tornar-te-ás rei e senhor de Naxos e das ilhas dela dependentes,tais como Paros, Andros e outras Cíclades. Dali poderásfacilmente atacar a Eubéia, ilha vasta e rica, não menor do que ade Chipre e cuja conquista não será difícil. Cem naviosbastarão”.

“Tuas propostas — respondeu Artafernes — são muitovantajosas para o rei e teu conselho excelente; e nada tenho aacrescentar senão no tocante ao número de navios. Em lugar decem, terás duzentos, prontos a abrir vela no começo daPrimavera, mas precisamos obter também o consentimento dorei”.

XXXII — Aristágoras regressou a Mileto radiante comessa resposta. Quanto a Artafernes, logo que obteve a aprovaçãodo rei ao seu projeto, mandou equipar duzentos trirremes elevantou um poderoso exército composto de tropas persas ealiadas, entregando o comando a Megabates, persa denascimento e da dinastia dos Aquemênidas, primo seu e deDario. Sua filha, ao que se diz, foi escolhida para noiva dePausânias, filho de Cleômbroto, rei da Lacedemônia, quedesejava ardentemente tornar-se tirano da Grécia. Artafernesnomeou-o general e o enviou a Aristágoras à frente do exército.

XXXIII — Megabates, embarcando em Mileto comAristágoras, os Iônios e os exilados de Naxos, fingiu que sedirigia para o Helesponto; mas, passando pela ilha de Quios, foi

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aportar nas Caucásicas, de onde seguiria para Naxos,aproveitando o vento norte. Como, porém, aquela frota nãodeveria ser funesta aos Náxios, sobreveio um acontecimentoque os livrou da ruína. Megabates, inspecionando as sentinelasa bordo, não encontrou nenhuma a postos num dos naviosmindenses. Irritado ante tal negligência, ordenou a seus guardasque fossem à procura do capitão do navio, de nome Silax, e quelhe passassem a cabeça por uma das aberturas dos remos, demaneira a ficar ele com o corpo para dentro e a cabeça para forada embarcação. Informado do castigo infamante que Megabatesinfligira ao seu hóspede de Minde, Aristágoras foiimediatamente pedir-lhe que reconsiderasse o seu ato, e, nãosendo atendido, dirigiu-se ao navio de Silax e libertou-o elepróprio. Furioso por ver contrariadas as suas ordens, Megabatesfez-lhe sentir a sua revolta. “Que tens tu com isso? —replicou-lhe Aristágoras — Artafernes não te enviou para meobedeeeres, navegando para onde quer que eu te ordene? Porque te envolves com o que não te diz respeito?”

Sentindo-se humilhado com a réplica de Aristágoras,Megabates, logo ao cair da noite, mandou advertir os Náxios doperigo que os ameaçava.

XXXIV — Os Náxios, alertados sobre a ameaça quepairava sobre suas cabeças, puseram-se em movimento, levandopara a cidade tudo que tinham no campo, abastecendo-a devíveres e de vinho. Em seguida fortificaram as muralhas e nelasse postaram em atitude de defesa, como quem espera um cerco.Entretanto, os Persas passaram-se da ilha de Quios para a deNaxos, cercaram a cidade, que encontraram muito bemfortificada, e atacaram-na seguidamente durante quatro meses.Quando viram esgotados todos os recursos em dinheiro emantimentos, não podendo, assim, manter o cerco, ergueram nailha uma fortaleza para os exilados e retiraram-se para ocontinente, considerando fracassada a empresa.

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XXXV — Impossibilitado de cumprir a promessa feita aArtafernes, Aristágoras não sabia como adquirir os subsídiospara o soldo reclamado pelas tropas. Além disso, receava odescontentamento dessas tropas e o ressentimento deMegabates, e já começava a temer que a soberania de Miletolhe fosse arrebatada. Foi quando chegou de Susa um correioconcitando-o a tomar armas. A ordem vinha escrita na cabeçado portador. Histeu, querendo pedir a Aristágoras que sesublevasse de armas na mão contra Dario, servira-se dessemeio, que considerou o mais seguro, pois todos os caminhosestavam rigorosamente guardados. Mandando raspar a cabeçado mais fiel de seus escravos, nela imprimiu a mensagem aAristágoras e esperou que os cabelos do servo crescessemnovamente. Quando os viu crescidos, enviou-o a Mileto,recomendando-lhe apenas que dissesse a Aristágoras que lheraspasse a cabeça e a examinasse com atenção. Essa mensagem,como já disse, concitava-o à revolta. Histeu tomara essaresolução por sentir-se desesperado pelo fato de Dario retê-loem Susa, e alimentava a esperança de, no caso de uma revoltaem Mileto, o soberano enviá-lo para prender Aristágoras. Já seconvencera de que, se não suscitasse distúrbios naquela cidade,nunca mais voltaria a ela.

XXXVI — A chegada do correio ao palácio deAristágoras coincidiu com os acontecimentos que acabo denarrar. Tomando conhecimento da mensagem, Aristágorasreuniu seus amigos, fê-los sabedores da sugestão de Histeu eexpôs-lhes sua opinião a respeito. Todos o exortaram a sacudiro jugo persa, com exceção de Hecateu, que procurou dissuadi-loda idéia, mostrando-lhe o poderio de Dario e enumerando-lhetodos os povos a ele submetidos. Não conseguindo convencê-lo,declarou-lhe que o único meio de obter êxito na empresa seriaconquistar o domínio do mar, porquanto as forças de Mileto nãoeram consideráveis, acrescentando que isso poderia ser obtidose ele, Aristágoras, lograsse arrebatar do templo dos Brânquidasas riquezas que Creso, rei da Lídia, lhes havia ofertado,

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utilizando-as nesse empreendimento e impedindo, ao mesmotempo, que os Persas as pilhassem. Esse tesouro era realmenteprodigioso, como fiz ver na primeira parte desta História.

A opinião de Hecateu não prevaleceu, muito emboraAristágoras e seus outros amigos não deixassem de revoltar-se.Iniciadas as hostilidades, os revoltosos decidiram enviar umdeles a Miunte, por mar, para tentar aprisionar os comandantesda frota, que se achava naquele porto desde seu regresso deNaxos.

XXXVII — Iatrágoras, o escolhido para o audazempreendimento, numa manobra hábil apoderou-se de Oliates,filho de Ibanólis, tirano de Mílasos; de Histeu, filho de Timnes,tirano de Termera; de Coes, filho de Erxandres, a quem Dariohavia dado Mitilene; de Aristágoras, filho de Heraclides, tiranode Cime, e de vários outros.

Assim, Aristágoras revoltou-se abertamente contraDario, causando-lhe os maiores danos e trazendo-lhe grandesdificuldades. Demitindo-se aparentemente do cargo degovernador, restabeleceu a igualdade em Mileto, a fim de captaras simpatias dos Milésios e levá-los a apoiá-lo no movimento.Em seguida, expulsou os tiranos do resto da Iônia, e, paraconseguir o apoio integral daqueles povos, entregou-lhes os quehavia aprisionado nos navios, mandando reconduzi-los às suasrespectivas cidades.

XXXVIII — Os Mitilenos, logo que tiveram Coes nasmãos, supliciaram-no e apedrejaram-no. Os Cimeus expulsaramo seu tirano, exemplo esse imitado pela maioria das outrascidades, sendo a tirania abolida na Iônia. Logo depois,Aristágoras de Mileto ordenava a cada cidade a instituição deestrategos; e, embarcando num trirreme, dirigiu-se àLacedemônia, pois tinha necessidade de conseguir uma grandealiança.

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XXXIX — Anaxandrides, filho de Leão, rei de Esparta,tinha morrido. Em seu lugar reinava Cleómenes, seu filho, queobtivera a coroa menos por suas belas ações do que por direitosde nascimento. Anaxandrides desposara uma filha de sua irmã,da qual não conseguia ter filhos. Os éforos interrogaram-no umdia com relação à esterilidade desse matrimônio, acabando pordizer-lhe: “Se não tens nenhum interesse pessoal nisso, nósoutros não devemos deixar que, por negligência tua, se finde araça de Eurístenes. Abandona a mulher que desposaste, já queela não te dá filhos, e une-te a outra. Esse procedimentoagradará aos Espartanos”. Anaxandrides respondeu-lhes quenão faria nem uma coisa nem outra; que sua esposa era umacriatura irrepreensível, e que, por conseguinte, não poderiaaceitar semelhante conselho.

XL — Os éforos, depois de haverem discutido essaresposta com os senadores, disseram-lhe: “Já que te sentes tãoligado à tua mulher, aceita ao menos a sugestão que te vamosfazer, a fim de que, com a tua teimosia, não forces osEspartanos a tomarem uma resolução desagradável contra ti.Não propomos que abandones tua mulher. Continua a ter amesma consideração para com ela, mas une-te a uma outra daqual possas ter filhos”. Anaxandrides concordou, passando a terduas mulheres e duas casas, contra os costumes de Esparta.

XLI — Pouco tempo depois, a segunda mulher deu à luzCleómenes, a que fizemos menção, sendo por ela apresentadoaos Espartanos como herdeiro presuntivo da coroa. Acontece,porém, que a primeira esposa, que até então se mostrara estéril,concebeu também, dando origem ao seguinte fato: os pais dasegunda esposa, alarmados com a notícia, que vinha transtornarseus planos de sucessão, espalharam o boato de que a primeirase dizia grávida apenas porque sentia o maior desejo de possuirum filho. Como isso despertasse indignação entre osEspartanos, os éforos, que dela suspeitavam, decidiram vigiá-ladurante o parto. Nasceu primeiro Dorieu, depois Leônidas e

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depois Cleômbroto. Alguns dizem que Leônidas e Cleômbrotoeram gêmeos. Quanto à segunda mulher, mãe de Cleómenes,filha de Prinetade e neta de Demarmenes, não teve nenhumoutro filho.

XLII — Dizem que Cleómenes não era de espírito muitoequilibrado, afirmando-se mesmo que era louco. Dorieu, aocontrário, distinguia-se entre todos os jovens de sua idade,persuadido de que sua coragem e seus méritos o levariam aotrono. Imbuído dessa convicção, encheu-se de revolta quando osLacedemônios, depois da morte de Anaxandrides, segundo asleis do país elegeram rei a Cleómenes, o filho mais velho. Nãoquerendo sujeitar-se às ordens do novo soberano, Dorieu reuniuum grupo de homens e deixou o país para ir fundar algures umacolônia. Sentia-se tão indignado por se ver preterido, queembarcou para a Líbia sem ao menos consultar o oráculo sobreo lugar onde deveria estabelecer-se e sem observar nenhumadas cerimônias adotadas em tais ocasiões. Ali chegando emcompanhia dos tereus que lhe serviram de guias, estabeleceu-seem Cinips, belo cantão da Líbia, às margens do rio do mesmonome; mas sendo dali expulso ao cabo de três anos, pelosMácios, povo de origem líbia, e pelos Cartagineses, voltou parao Peloponeso.

XLIII — Chegando ao Peloponeso, ali encontrouAnticares de Eleu, que o aconselhou, segundo os oráculosconcedidos a Laio, a fundar uma colônia na Sicília Heracléia,porque o país de Erix pertencia, dizia ele, inteiramente aosHeraclidas, por aquisição feita por Hércules. Diante disso,Dorieu foi consultar o oráculo de Delfos, para saber se setornaria senhor do país para o qual estava prestes a partir. Tendoa pitonisa respondido afirmativamente, fez-se ao mar com afrota que havia trazido da Libia e contornou as costas da Itália.

XLIV — Os Sibaritas dispunham-se então, como elespróprios relatam, a marchar com Télis, seu rei, contra a cidade

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de Crotona. Acrescentam que os Crotonienses, apavorados,solicitaram o auxílio de Dorieu, e que este, tendo aquiescido,atacou com eles a cidade de Síbaris(4), capturando-a. Foi assimque se conduziram com relação aos Sibaritas, Dorieu e os que otinham acompanhado. Os Crotonienses afirmam, todavia, não seterem valido, na guerra contra os Sibaritas, do auxílio denenhum outro estrangeiro senão de Cálias de Eléia. Esseadivinho, da raça dos lâmidas, tendo escapado de Télis, tiranode Síbaris, que o queria eliminar por não lhe ter ele pressagiadonada de favorável na guerra contra Crotona, refugiara-se nestaúltima cidade.

XLV — Em apoio do que afirmam, ambos os povosapresentam provas que ainda hoje subsistem. Os Sibaritasapresentam, de um lado, o bosque sagrado e o templo queDorieu mandou erguer junto ao leito seco do Crátis, a MinervaCratiana, depois de haver tomado a cidade com osCrotonienses; do outro, a morte de Dorieu, sendo esta a maisforte prova que eles poderiam apresentar, pois Dorieu foi mortopor ter agido contra as determinações do oráculo. Se em vez dedesobedecê-las, as tivesse cumprido, ter-se-ia apoderado do paísde Erix, tê-lo-ia mantido sob o seu domínio e não perecidojuntamente com o seu exército. Os Crotonienses, por sua vez,apresentam como prova as terras que deram a Cálias de Eléia.Nada ofereceram de semelhante, nem a Dorieu, nem aos seusdescendentes. Se dele houvessem, realmente, recebido auxíliona luta contra os Sibaritas, de certo não deixariam debeneficiá-lo muito mais do que a Cálias.

XLVI — Alguns outros espartanos, tais como Téssalo,Parebates, Céleo e Euríleo tinham-se reunido a Dorieu parairem fundar uma colônia. Ao chegarem à Sicília, com toda afrota, foram atacados pelos Fenícios e pelos habitantes deEgesta, perecendo todos na luta, com exceção de Euríleo. Estereuniu o que restou da expedição, apoderou-se de Mínoo,colônia de Selinunte, e libertou os Selinúncios do tirano

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Pitágoras, de cujo trono se apoderou. Todavia, não reinoudurante muito tempo. Os próprios Selinúncios sublevaram-se eimolaram-no junto ao altar de Júpiter Agoreu, onde ele se haviarefugiado.

XLVII — Filipe, filho de Butacides, cidadão deCrotona, também acompanhou Dorieu, perecendo com ele.Havia sido banido de Crotona por ter querido casar-se com afilha de Télis, tirano de Síbaris. Obrigado a deixar a cidade,embarcou para Cirene, de onde partiu num trirreme de suapropriedade, para juntar-se à frota de Dorieu, levando consigoum bom número de soldados mercenários. Filipe haviaconquistado prêmios nos Jogos Olímpicos, sendo considerado omais belo homem da Grécia no seu tempo. Devido à sua beleza,os habitantes de Egesta tributaram-lhe honras até então nuncaprestadas a ninguém ali. Sobre a sua sepultura ergueram umacapela, como a um herói, onde lhe ofereciam sacrifícios,pedindo sua proteção.

XLVIII — Assim morreu Dorieu. Se tivessepermanecido em Esparta, ainda que sob o domínio deCleómenes, teria sido rei da Lacedemônia. Cleómenes reinoupouco tempo, morreu sem deixar filhos varões, tendo apenasuma filha de nome Gorgo(5).

XLIX — Aristágoras, tirano de Mileto, chegou, pois, aEsparta, quando Cleómenes ocupava o trono. Ali fora para umcolóquio com ele, como dizem os Lacedemônios. Tendo na mãoum pedaço de cobre, no qual estava gravado o globo terráqueocom todos os mares e rios, assim se dirigiu ao soberano: “Nãovos surpreendais, senhor, de eu me haver apressado a vir aqui. Éum assunto urgente. Trata-se da liberdade dos Iônios. Se aescravidão desse povo é para nós um opróbrio, um motivo dedor, com muito mais razão o será para vós, que sois osprimeiros dos Gregos. Eles são vossos parentes; são vossosirmãos; libertai-os da escravidão, eu vos conjuro em nome dos

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deuses gregos. Não se trata de uma empresa difícil. Os bárbarosnão são belicosos, e vós, pelo vosso valor, atingistes a maiorglória que se pode almejar no campo da luta. Eles lutam apenascom arco e dardos curtos; combatem com trajes que dificultamseus movimentos, e conservam a tiara na cabeça, o que faz comque sejam facilmente vencidos. Os povos desse continente sãomais ricos do que todos os outros juntos, possuindo emabundância ouro, prata, cobre, tecidos de diversas cores,animais de carga e escravos. Tudo isso será vosso, se assim oquiserdes. Suas terras confinam umas com as outras, como vosmostrarei em seguida. Os Lídios são vizinhos dos Iônios, e suasterras férteis e muito ricas em prata”. Assim dizendo,mostrou-lhe o mapa da terra traçado na prancha de cobre. “OsFrígios ficam a leste — continuou Aristágoras —; confinamcom os Lídios. Seu país é, de todos os que conheço, o mais ricoem rebanhos e frutos. Vêm, em seguida, os Capadócios, a quechamamos Sírios, e depois os Cilicienses, que se estendem atéeste mar aqui, onde está situada a ilha de Chipre. Esses povospagam ao rei um tributo anual de quinhentos talentos.Seguem-se os Armênios, possuidores de grandes manadas.Limitam-se com os Macianos e ocupam este país, que confinacom a Císsia, banhada pelo Coaspes, onde está situada a cidadede Susa, residência do rei e onde se acham os seus tesouros. Seconquistardes essa cidade, podereis rivalizar em riqueza com opróprio Júpiter. Por que, pois, bater-vos contra os Messênios,que vos são iguais em força; contra os Arcádios e os Árgios, porum pequeno país que nem mesmo é fértil, apenas para dilatarum pouco os limites do vosso território? Esses povos nãopossuem nem ouro nem prata; e são esses metais que excitam anossa ambição e nos levam a arriscar a vida nos combates.Tendes agora uma oportunidade para vos apoderardes da Ásiainteira. Que de melhor poderíeis desejar?” Assim falouAristágoras. “Meu amigo — disse-lhe Cleómenes —, dar-te-eiuma resposta dentro de três dias”.

L — No dia fixado para a resposta, reuniram-se os dois

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novamente para reatarem as conversações. Cleómenesperguntou então a Aristágoras quantos dias de viagem marítimahavia do mar que banha as costas da Iônia à cidade de Susa,residência real. Aristágoras, que até ali tinha conseguido, comgrande habilidade, enganar Cleómenes, cometeu um grave erro,que deitou por terra os seus planos. Em vez de continuardissimulando a verdade, já que o seu propósito era atrair osEspartanos para a Ásia, deu-lhe a distância exata, dizendo quehavia três meses de viagem até lá. Cleómenes interrompeu-ologo, sem permitir-lhe dizer o que desejava sobre essa viagem:“Meu amigo, se estás propondo aos Lacedemônios uma jornadade três meses além dos mares, isso não lhes será, de maneiraalguma, agradável. Abandona Esparta antes do pôr do sol”.

LI — Assim dizendo, Cleómenes retirou-se para ointerior do palácio. Aristágoras seguiu-o, tendo na mão umramo de oliveira, e, alcançando-o quando já transpunha seusaposentos particulares, pediu-lhe, suplicante, que o escutasse eque fizesse sair dali sua filha Gorgo, de oito a nove anos deidade, filha única do soberano, e que na ocasião se encontravano recinto. Cleómenes autorizou-o a dizer o que quisesse, pois apresença daquela criança nenhum embaraço deveria causar-lhe.Então Aristágoras prometeu-lhe dez talentos de prata seacedesse ao seu pedido, e ante a recusa de Cleómenes,aumentou a soma, chegando a oferecer-lhe cinqüenta talentos.Foi quando a pequena Gorgo gritou: “Fugi, meu pai, fugi; esteestrangeiro está querendo corromper-vos”. Encantado com esseconselho, Cleómenes passou para outro aposento, e Aristágorasviu-se obrigado a deixar Esparta, sem ter tido ocasião de dar aconhecer ao soberano o caminho que leva do mar à residênciareal.

LII — Vêem-se, ao longo dessa estrada, habitações reaise belas hospedarias. A estrada oferece toda segurança eatravessa regiões densamente povoadas, servindo também àLíbia e à Frígia, onde existem vinte outras habitações reais.

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Saindo da Frígia, encontra-se o Hális, cuja travessia é feita,naquele ponto, através de pontes. Vê-se também ali um forte detamanho considerável. Da Capadócia à fronteira da Cilícia há,por essa estrada, vinte e oito dias de viagem. Para atingir-se afronteira, passa-se por dois desfiladeiros e dois grandes fortes.O Eufrates, cuja travessia e feita ali em batéis, serve de limite aessa região, separando-a da Armênia. Depois de percorrermoscinqüenta e seis parasangas e meia pelo interior desse país,encontramos quinze habitações reais, que estão sempreguardadas por tropas. O país é banhado por quatro riosnavegáveis, sendo o primeiro deles o Tigre; o segundo e oterceiro têm o mesmo nome, embora sejam diferentes e nãovenham do mesmo país; um nasce na Armênia, e o outro no paísdos Macianos. O Gindo, que Ciro dividiu em trezentos esessenta canais, é o quarto rio. Da Armênia à Maciana há umadistância de quatro dias de jornada. Vem, em seguida, a Císsia,que pode ser atravessada em onze dias, numa distância dequarenta e duas parasangas, até o Coaspes, sobre o qual fica acidade de Susa.

LIII — Se a medida da estrada real por parasangas éexata, e se avaliarmos a parasanga em trinta estádios, a querealmente corresponde, temos que, de Sardes ao palácio real deMémnon, há treze mil e quinhentos estádios, ou quatrocentas ecinqüenta parasangas. A cento e cinqüenta estádios por dia, essajornada é precisamente de noventa dias.

LIV — Aristágoras de Mileto tinha, pois, razão de dizera Cleómenes, rei da Lacedemônia, que havia três meses dejornada até Susa, residência real. Mas se quisermos calcularcom maior exatidão, devemos juntar a essa estrada a que vai deÉfeso a Sardes. Assim, do mar dos Gregos a Susa (nome quetem a cidade de Mémnon) contamos quatorze mil e quarentaestádios, pois há quinhentos e quarenta de Éfeso a Sardes. Comessa adição, a jornada de três meses se prolonga por mais trêsdias.

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LV — Deixando Esparta, Aristágoras dirigiu-se aAtenas, que acabava de recuperar a liberdade da maneira quepasso a expor. Hiparco, filho de Pisístrato e irmão do tiranoHípias, teve, em sonho, uma visão que augurava sua desgraça,sendo, pouco depois, assassinado por Aristogíton e Harmódio,gefireus de origem; mas os Atenienses, longe de se tornaremlivres com o seu desaparecimento, continuaram a sergovernados, durante quatro anos, de um modo ainda maistirânico do que antes.

LVI — Eis a visão que Hiparco teve em sonhos: naprimeira noite das Panatenéias(6), julgou ver, enquanto dormia,um homem de grande beleza e esbelto, de pé, diante dele, arecitar-lhe estes versos enigmáticos: “Leão, aceitacorajosamente tua sorte desgraçada; homem nenhum podeevitar a punição que merece pelas injustiças cometidas”.

Logo ao nascer do dia, comunicou ele a visão aosintérpretes de sonhos; e depois de fazer expiações para conjuraras conseqüências, conduziu a procissão solene, na qual perdeu avida.

LVII — Os Gefireus, dos quais descendiam osassassinos de Hiparco, eram, como eles próprios se dizem,originários da Erétria; mas, nas pesquisas que realizei, descobriserem eles de origem fenícia, pertencendo ao número dos queacompanharam Cadmo, quando este veio estabelecer-se no paísconhecido atualmente por Beócia, tendo-lhes sido dado empartilha o território de Tânagra. Os Cadmeus foram os primeirosa serem expulsos pelos Árgios. Logo em seguida, os Gefireus oforam pelos Beócios, indo para junto dos Atenienses, que osadmitiram no número dos seus concidadãos, recusando-lhes,porém, alguns direitos, que não merecem menção.

LVIII — Os Fenícios que haviam acompanhado Cadmoe no número dos quais figuravam os Gefireus, introduziram naGrécia, durante sua permanência nesse país, vários

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conhecimentos, entre eles os alfabetos que eram, na minhaopinião, até então desconhecidos no país. A princípio, osGregos fizeram uso dos caracteres fenícios, mas, com o correrdo tempo, as letras foram-se modificando com a língua etomaram outra forma. Como os países circunvizinhos fossem,então, ocupados pelos Iônios, estes adotaram os caracteresfenícios, com ligeiras modificações. Achavam justo que lhesdessem o nome de caracteres fenícios, por terem sidointroduzidos pelos fenícios da Grécia. Os Iônios chamam,também, por um antigo costume, os livros de difteres(7), porqueoutrora, quando o biblos era raro, escrevia-se em pele de cabra ede carneiro. Ainda há muitos bárbaros que escrevem em taispeles.

LIX — Eu mesmo tive ocasião de ver em Tebas, naBeócia, letras cadméias no templo de Apolo Ismênio. Estãogravadas nos tripés, e assemelham-se muito às letras iônias.Num dos tripés vê-se esta inscrição: “Anfitrião ma dedicou porocasião do seu regresso do país dos Telebeus”. Esta inscriçãobem poderia ser do tempo de Laio, filho de Lábdaco, cujo paiera Polidoro, filho de Cadmo.

LX — Lê-se no segundo tripé, em hexâmetros: “Céu,vitorioso no pugilato, dedicou-me a Apolo, cujas flechasvinham de longe, para lhe servir de ornamento”. Esse Céu deviaser filho de Hipocoonte, contemporâneo de Édipo, filho deLaio, se realmente foi ele quem consagrou o tripé e não outrodo mesmo nome.

LXI — A inscrição do terceiro tripé diz também emhexâmetros: “O tirano Laodamas(8) dedicou este tripé a Apolo,para lhe servir de ornamento no templo”. No reinado dessepríncipe, filho de Etéocles, os Cadmeus, expulsos pelos Árgios,refugiaram-se no país dos Enqueleus. Os Gefireus sentiram-se,então, tranqüilos; mas, pouco depois, os Beócios obrigavam-nosa retirar-se para Atenas. Ali construíram templos, que os

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Atenienses, aliás, nunca freqüentaram, e que nada têm decomum com os outros templos da cidade, sobretudo o de CeresAquenéia.

LXII — Já sabemos qual a visão que teve Hiparco emsonhos e a origem dos Gefireus, de onde se originaram osassassinos daquele príncipe. Vejamos agora como os Ateniensesforam libertados da tirania.

Indignado com a morte do irmão, Hípias começou agovernar com o máximo rigor. Os Alcmeônidas, atenienses deorigem, banidos por Pisístrato, tentaram retornar à força,juntamente com outros exilados, sofrendo, porém, fragorosaderrota. Com os seus companheiros de exílio haviam fortificadoLipsídrion, situada ao norte da Peônia, e, empregando todos osmeios para destruir os adeptos de Pisístrato, empenharam-sejunto aos anfictiões(9) para a construção, por determinadopreço, do templo que se vê atualmente em Delfos(10). Essesexilados, de ilustre linhagem e possuidores de grandes riquezas,fizeram desse templo uma verdadeira maravilha, e, emborahouvessem combinado não empregar mármore comum na suaconstrução, ergueram a fachada com mármore de Paros.

LXIII — Encontrando-se em Delfos, esses Alcmeônidasconcitaram a pitonisa, à força de dinheiro, segundo afirmam osAtenienses, a sugerir a todos os espartanos que viessemconsultar o deus, fosse em caráter particular, fosse em nome darepública, a restituição da liberdade a Atenas. Cedendo ante asreiteradas propostas da pitonisa, os Espartanos enviaram aAtenas um exército sob o comando de Anquémolo, filho deÁster, homem de grande influência, a fim de expulsar dali ospartidários de Pisístrato, embora a eles estivessem estreitamenteligados por laços de hospitalidade. As ordens dos deuses lheseram mais imperativas do que todas as considerações humanas.As tropas seguiram por mar, desembarcando no porto deFaleros.

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Os partidários de Pisístrato, tendo tido conhecimento doque planejavam contra eles, solicitaram auxílio aos Tessálicos,seus aliados, que atenderam prontamente ao seu apeloenviando-lhes, de comum acordo, mil soldados de cavalaria,comandados por Cíneas, seu rei. Chegados os socorros, ospartidários de Pisístrato mandaram limpar toda a planície deFaleros, e quando viram-na em condições para a ação livre dacavalaria, fizeram-na marchar contra os Lacedemônios. Caindosobre eles, a cavalaria dos Tessálicos fez inúmeras vítimas,entre as quais Anquémolo, obrigando os sobreviventes a seretirarem para suas embarcações. Tal a sorte da primeiraexpedição dos Lacedemônios contra os Atenienses de Pisístrato.Anquémolo foi sepultado perto do templo de Hércules, emCinosarges, ginásio situado nos Alopécios, na Ática.

LXIV — Depois dessa primeira derrota, osLacedemônios enviaram por terra, e não mais por mar, forçasmais consideráveis contra Atenas, sob o comando deCleómenes, filho de Anaxandrides, um de seus reis. Assim quepenetraram na Ática, a cavalaria tessálica caiu sobre eles,sendo, porém, rechaçada, retirando-se imediatamente para aTessália, depois de haver perdido mais de quarenta de seushomens. Cleómenes, chegando a essa cidade com os ateniensesque ansiavam pela liberdade, cercou os tiranos, que se tinhamrefugiado na cidadela construída pelos Pelasgos.

LXV — Era absolutamente impossível dar caça aosadeptos de Pisístrato encerrados na cidadela, e osLacedemônios, que já não pensavam permanecer durante muitotempo diante da praça, que sabiam abundantemente provida devíveres, preparavam-se, depois de alguns dias de cerco, pararetornar a Esparta, quando se deu um fato que veio modificarinteiramente a situação de uns e de outros. Os filhos dos adeptosde Pisístrato foram capturados quando eram retiradossecretamente do país. Tal acontecimento veio transtornar porcompleto os planos dos tiranos, que, para reaverem os filhos,

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tiveram de submeter-se às condições impostas pelos Atenienses,comprometendo-se a deixar a Ática no prazo de cinco dias.Retiraram-se para Sigéia, cidade situada sobre o Escamandro,depois de haverem governado os Atenienses durante trinta eseis anos.

Esses tiranos exilados eram pílios de origem, da famíliade Neléia, e seus ancestrais eram os mesmos de Codro e deMelanto, que haviam reinado outrora em Atenas, emboraestrangeiros. Hipócrates deu a seu filho o nome de Pisístratoporque um dos filhos de Nestor assim se chamava, e a fim deperpetuar a lembrança dessa origem.

Foi assim que os Atenienses se libertaram dos tiranos.Vou agora relatar os acontecimentos mais memoráveis,auspiciosos ou lamentáveis, que sobrevieram aos Ateniensesdepois de haverem recuperado a liberdade e antes da Iônia tersacudido o jugo de Dario, e de Aristágoras de Mileto ter vindosolicitar-lhe auxílio.

LXVI — Atenas, já poderosa, tornou-se mais ainda aolibertar-se dos tiranos. Entre os seus cidadãos havia dois quegozavam do maior prestígio. Clístenes, da raça dosÁlcmeônidas e que, como alguns pretendem, subornou apitonisa, e Iságoras, filho de Tisandro. Este último pertencia auma família ilustre, mas, quanto à sua origem, não posso dizer.Sei apenas que os membros dessa família costumavam fazersacrifícios em honra de Júpiter Cário(11). Os dois rivaiscompartilhavam dos poderes do Estado pelas suas facções edisputavam a autoridade. Clístenes, ficando em desvantagem,tratou de conquistar os favores do público, dividiu as quatrotribos em dez, trocou os seus nomes, tirados dos filhos de Íon:Gélon, Egícora, Argade e Hople, por outros escolhidos entre osdos heróis do país, com exceção de Ájax, que ele conservou,por haver sido esse herói vizinho e aliado dos Atenienses.

LXVII — Assim agiu, penso eu, a exemplo de Clístenes,

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seu avô materno, tirano de Sícion. Este, achando-se em guerracom os Árgios, aboliu os torneios em que os rapsodosdisputavam o prêmio cantando versos de Homero, porque, nassuas poesias, a cidade de Argos e os Árgios eram celebradosacima de todos os outros gregos, ao mesmo tempo queprocurava banir dos seus Estados Adrasto, filho de Tanau, porser ele árgio. Adrasto possuía, na praça de Sícion, uma capelaque ainda hoje subsiste. Tendo Clístenes ido a Delfos perguntarao deus se devia expulsar o rei Adrasto, a pitonisarespondeu-lhe que Adrasto era soberano dos Siciônios e ele,Clístenes, um homem com poucas qualidades. Não lhepermitindo o deus realizar o seu desejo, Clístenes procurou, aoregressar, um meio de desembaraçar-se de Adrasto; e quandojulgou tê-lo encontrado, mandou buscar em Tebas, na Beócia,Melanipo, filho de Ástaco, solicitando, para isso, a permissãodos Tebanos. Estes acederam ao pedido, e ele trouxe-o para opaís, consagrando-lhe uma capela no próprio Pritaneu ecolocando-o em lugar destacado. Procedeu dessa forma (poisnão devo deixar ignorado o motivo de seu gesto) porqueMelanipo fora grande inimigo de Adrasto e de Tideu, seu genro.Depois de haver dedicado a capela a Melanipo, pôs-se aoferecer-lhe as festas e os sacrifícios que se faziam em honra deAdrasto, festas essas celebradas com grande pompa pelosSiciônios, cujas terras haviam pertencido a Políbio, avô deAdrasto. O soberano, não possuindo filhos ao morrer, havialegado seus Estados aos netos. Entre outras honras prestadas aAdrasto, celebravam também seus infortúnios, com corostrágicos, e tributavam-lhe louvores sem referência a Baco.Clístenes restabeleceu nos coros essa referência a Baco eordenou que o resto se fizesse em honra a Melanipo.

LXVIII — Finalmente, mudou os nomes das tribos deSícion, a fim de que as dos Dórios não tivessem, nessa cidade, omesmo nome que tinham em Argos. Com os novos nomes quelhes atribuiu cobriu-as de ridículo, pois, acrescentando a essesnomes, com a significação de porco e asno, a terminação atai,

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fez ele os Hiatas, os Oneatas e os Quereatas. Houve uma únicaexceção: a tribo a que ele pertencia, que recebeu o nome deArqueleus, por causa da autoridade suprema que ele exerciasobre o povo. Os Siciônios conservaram esses nomes durante oreinado de Clístenes e ainda por sessenta anos depois de suamorte. Por fim, depois de haverem deliberado, mudaram-nospara Hileus, Panfílios e Dimanatas, e deram à quarta tribo onome de Egialéia, em honra a Egíale, filho de Adrasto.

LXIX — Tal foi a conduta desse soberano. Clístenes, oateniense, que tirara o seu nome do de Clístenes de Sícion, seuavô materno, não quis, julgo eu, a exemplo deste, que as tribosda Iônia tivessem o mesmo nome das de Atenas, por causa dodesprezo que votava aos Iônios. Depois de haver reconquistadoas simpatias de seus concidadãos, que haviam perdido todos osprivilégios de um povo livre, mudou os nomes das tribos,fazendo de um pequeno número um grande número, criando dezfilarcas(12) em vez de quatro e distribuindo os pequenos burgosentre as dez tribos. Granjeando, assim, as simpatias do povo,obteve uma grande ascendência sobre o partido que se lheopunha.

LXX — Iságoras, vendo-se, por sua vez, emdesvantagem, procurou o apoio de Cleómenes, rei daLacedemônia. Este príncipe tinha-se ligado a ele pela maisestreita amizade por ocasião do cerco aos partidários dePisístrato, havendo mesmo quem o acusasse de manter relaçõescom a mulher de Iságoras. Cleómenes enviou primeiramente umemissário a Atenas para obter a expulsão de Clístenes e devários outros atenienses, sob o pretexto de haverem incorrido noanátema. Seguia, nisso, as instruções de Iságoras, pois osAlcmeônidas e os seus partidários tinham sido acusados de umassassinato, de que falaremos a seguir. Iságoras não tiveraparticipação alguma nesse crime, nem tão pouco seus amigos.

LXXI — O nome de Enageus, dado a esse grupo de

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atenienses, teve sua origem no seguinte fato: Cílon deAtenas(13), vitorioso nos Jogos Olímpicos, levou sua ambição aquerer apoderar-se do governo e exercer a tirania. Conseguindoa adesão de pessoas de sua idade, tentou apoderar-se dacidadela, mas, não logrando êxito na empresa, ajoelhou-sesuplicante aos pés da estátua de Minerva. Os pritanes dosnaucrates(14), que governavam, então, Atenas, perdoaram-no,bem como aos seus adeptos, mas foram depois massacrados e osAlcmeônidas acusados desse ato. Tal acontecimento é anterior aPisístrato.

LXXII — Tendo Cleómenes, como já disse, enviado umemissário a Atenas para obter a expulsão de Clístenes, assimcomo dos Enageus, estes se retiraram espontaneamente. Algumtempo depois, acompanhado de pequeno séquito, Cleómenespara lá seguiu. Logo ao chegar, baniu da cidade setecentasfamílias designadas por Iságoras, tentando, em seguida, cassar omandato do Senado e confiar a autoridade a trezentospartidários daquele. Como o Senado a isso se opusesse,recusando-se a obedecer, Cleómenes apoderou-se da cidadelacom Iságoras e seus adeptos. O resto dos atenienses manteve-sesolidário com o Senado, sitiando-os durante dois dias. Noterceiro dia, os sitiantes entraram em entendimento com osLacedemônios encerrados na cidadela, sendo permitido a estesúltimos deixar a Ática mediante certas condições. Cumpria-seassim o que havia sido pressagiado a Cleómenes. Tendo elesubido à cidadela, com o propósito de conquistá-la, quispenetrar no santuário da deusa (Minerva) para consultá-la; masa pitonisa, levantando-se do seu assento antes que eletranspusesse a porta, disse-lhe: “Lacedemônio, volta por ondevieste; não entres neste templo; não é permitido aos Dórios aquiporem os pés”. “Não sou dório — replicou Cleómenes —, masaqueu”. E, sem levar em conta a advertência da pitonisa, insistiunos propósitos que o levaram à cidadela, vendo-se, porém,obrigado a retirar-se com os Lacedemônios, sem lograr êxito.Os demais foram postos sob ferros e condenados à morte. No

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número destes figurava Timasíteo de Delfos, notável artífice edo qual citam-se muitos atos de bravura. Morreu no calabouço.

LXXIII — Os Atenienses, chamando de regressoClístenes e as setecentas famílias banidas por Cleómenes,enviaram a Sardes embaixadores para fazerem aliança com osPersas, pois estavam, com efeito, persuadidos que teriam desustentar uma guerra contra Cleómenes e os Lacedemônios.Chegando a Sardes, os embaixadores expuseram as razões queali os levavam, perguntando-lhes Artafernes, filho de Histaspes,quem eram eles e que lugar da terra habitavam, para iremsolicitar uma aliança com os Persas. Obtendo deles osesclarecimentos desejados, disse-lhes sem mais rodeios: “Se osAtenienses quiserem dar terra e água ao rei Dario, ele faráaliança com os mesmos; se não, podem retirar-se”. Desejandomuito essa aliança, os embaixadores, depois de haveremconfabulado entre si, declararam aceitar a proposta, mas, aochegarem a Atenas, foram severamente acusados por isso.

LXXIV — Enquanto isso, Cleómenes, que não ignoravaos movimentos e os propósitos insultantes dos Atenienses,mobilizou tropas em todo o Peloponeso, sem dar-lhes aconhecer a sua intenção. O seu intuito era vingar-se dosAtenienses e impor-lhes a tirania de Iságoras, que haviaabandonado a cidadela com ele. Penetrou no território deElêusis com forças consideráveis, e os Beócios, de comumacordo com ele, tomaram Énoe e Hísias, burgos situados numdos extremos da Ática. Os Calcídios tinham também invadido,igualmente de acordo com ele, as terras da república edevastavam-nas. Embora esses ataques causassem dificuldadesaos Atenienses, estes deixaram para mais tarde um ajuste decontas com estes dois povos, e, aprestados para a luta, foram aoencontro dos Peloponésios, que se encontravam em Elêusis.

LXXV — Os dois exércitos estavam prestes a travarcombate, quando os Coríntios, reconhecendo o seu injusto

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procedimento, mudaram de resolução e retiraram-se. Demarato,filho de Aríston, também rei de Esparta, e que havia trazidocom Cleómenes as tropas da república, seguiu-lhes o exemplo,embora não se houvesse verificado, até o momento, nenhumaquestão entre eles. Os dois reis, que vinham, até então,acompanhando o exército, ficaram, daquele momento emdiante, proibidos de entrarem juntos em campanha, ficandoestabelecido que, se um deles se separasse do outro, deixaria emEsparta um dos dois Tindáridas, que tinham por missão irem emsocorro dos reis e acompanhá-los em suas expedições. Orestante dos aliados reunidos em Elêusis, ante a divisão dos reisda Lacedemônia e a partida dos Coríntios, retiraram-se tambémpara seus respectivos burgos.

LXVXVI — Foi essa a quarta vez que os Dóriospenetraram na Ática. Tinham vindo duas vezes para fazerguerra aos atenienses, e duas vezes para defender os interessesdesse mesmo povo: a primeira, quando levaram uma expediçãocoíonizadora a Mégara, expedição que se poderia, com razão,situar no reinado de Codro; a segunda e a terceira, quandoexpulsaram os partidários de Pisístrato; a quarta, enfim, quandoCleómenes conduziu os Peloponésios contra Elêusis.

LXXVII — O referido exército tendo-severgonhosamente dissolvido, procuraram os Atenienses, então,tirar um desforço, marchando primeiramente contra osCalcídios, mas os Beócios vieram em socorro destes últimos àsmargens do Euripo. Assim que os perceberam, os Atenienses,tomando a iniciativa, atiraram-se contra eles, dizimando suasfileiras e fazendo setecentos prisioneiros — uma vitóriacompleta. No mesmo dia penetraram na Eubéia, chocando-secom os Calcídios. Vitoriosos na refrega, deixaram na ilha umacolônia de quatro mil homens, aos quais distribuíram, porsorteio, as terras dos Hipobotes — nome dado aos mais ricoshabitantes da ilha. Puseram sob ferros todos os prisioneiros quehaviam feito, tanto entre os Calcídios como entre os Beócios,

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mantendo-os sob estrita vigilância; mas, pouco depois,restituíram-lhes a liberdade mediante a contribuição de duasminas por cabeça, pendurando seus grilhões nos muros dacidadela. Esses grilhões ainda eram vistos no meu tempo,suspensos nas muralhas, defronte do templo situado a oeste.Consagraram aos deuses a décima parte do dinheiro obtido peloresgate dos prisioneiros, mandando fazer um carro de bronzepuxado por quatro cavalos, que foi colocado à esquerda, àentrada dos propileus da cidadela, com esta inscrição: “OsAtenienses dominaram em suas campanhas os Beócios e osCalcídios, e, pondo-os sob grilhões, puseram fim à suainsolência na escuridão das prisões. Do dízimo do seu resgateofertaram a Palas estes cavalos”.

LXXVIII — O poderio dos Atenienses aumentava cadavez mais, o que vinha provar ser mais vantajoso o equilíbrio deforças entre os cidadãos e o governo, Basta este exemplo parademonstrá-lo: durante o tempo em que os Atenienses estiveramsob o poder dos tiranos não se distinguiram na guerra mais doque seus vizinhos; logo, porém, que sacudiram o jugo,adquiriram sobre eles uma enorme superioridade. Isso provaque, no tempo da servidão, se portavam com covardia compropósito deliberado, porque trabalhavam para um senhor.Recuperando a liberdade, cada qual se dedicou intensamente atrabalhar com ardor para si mesmo.

LXXIX — Os Tebanos desejando, depois dessa vitóriados Atenienses, vingar-se deles, mandaram consultar o deus deDelfos. A pitonisa respondeu-lhes que não poderiam vingar-secom seus próprios recursos, aconselhando-os a exporem o casoà assembléia do povo e a se dirigirem aos seus mais próximos.Os emissários tebanos convocaram, ao regressarem, aassembléia do povo e comunicaram a resposta do oráculo. OsTebanos, supondo que o deus lhes dava a entender que sedirigissem aos seus vizinhos mais próximos, disseram uns aosoutros: “Os Tanagreus, os Coraneus e os Téspios não são os

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nossos mais próximos vizinhos? Não fazem a guerra de acordoconosco e não se batem com o mesmo ardor pelos nossosinteresses? Que necessidade temos de chamá-los em nossoauxílio? Parece-nos que não é esse o verdadeiro sentido dooráculo”.

LXXX — Assim discorriam, quando alguém naassembléia, tomando conhecimento do motivo da discussão,exclamou: “Creio haver compreendido o significado do oráculo:Tebéia e Egina eram, ao que se diz, filhas de Asópis e, porconseguinte, irmãs. Penso, pois, que o deus nos aconselha apedirmos aos Eginetas que nos vinguem”. Como essaexplicação lhes parecesse plausível, os Tebanos apressaram-seem pedir, de acordo com a resposta do deus, o auxílio dosEginetas, como seus vizinhos mais próximos. Estes prometeramenviar-lhes os Eácidas.

LXXXI — Confiando na cooperação dos Eácidas, osTebanos realizaram uma sortida contra os Atenienses, massendo mal sucedidos, enviaram novos emissários aos Eginetas,solicitando-lhes tropas. Os Eginetas, orgulhosos dos seusrecursos e lembrando-se de sua antiga inimizade com Atenas,acederam ao pedido dos Tebanos, movendo guerra aosAtenienses, sem declaração prévia. Enquanto estes lutavam comos Beócios, passaram para a Âtica em navios de guerra esaquearam Faleros e grande número de povoações situadas nolitoral, causando, com isso, enorme dano aos Atenienses.

LXXXII — A inimizade entre os Atenienses e osEginetas originou-se do seguinte fato: os Epidauros, aflitos coma esterilidade que entre eles se manifestava, consultaram o deusde Delfos sobre a razão disso. A pitonisa aconselhou-os aerguerem estátuas a Dâmia e a Auxésia(15), prometendo-lhesque, depois disso, obteriam melhores resultados.Perguntando-lhe os Epidauros se deveriam fazê-la de pedra oude bronze, ela lhes disse que não empregassem nem uma coisa

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nem outra, mas que se utilizassem da oliveira. Convencidos deque as oliveiras da Ática eram as mais sagradas, os Epidaurossolicitaram permissão aos Atenienses para cortar algumas.Diz-se mesmo que, nessa época, a Ática era o único país ondeelas floresciam(16). Os Atenienses consentiram, com acondição de eles imolarem, todos os anos, vítimas aMinerva-Póleas e a Erecteu. Os Epidauros aceitaram ascondições e obtiveram as oliveiras desejadas, com elas fazendoas estátuas designadas pelo deus. Com isso, a fertilidadesobreveio para todo o país, cumprindo eles o compromissoassumido com os Atenienses.

LXXXIII — Os Eginetas reconheciam, antes dessaépoca e mesmo ainda nesse tempo, a soberania de Epidauro, eeram obrigados a dirigir-se a essa cidade para o julgamento dasquestões que surgiam entre eles; mas, desde que começaram aconstruir navios, puseram-se a agir de má fé, acabando por serevoltarem contra os Epidauros, declarando-se seus inimigos.Tornando-se senhores dos mares, devastaram-lhes as terras earrebataram-lhes as estátuas de Dâmia e Auxésia, colocando-asno centro da ilha, num lugar denominado Ea, distante cerca devinte estádios da cidade. Depois de transportá-las para esselocal, trataram de obter-lhes as graças, instituindo em sua honrasacrifícios e coros femininos, eivados de injúrias e toda sorte deimpropérios, não dirigidos contra os homens, mas contra asmulheres do país. Os Epidauros realizavam também entre elescerimônias dessa espécie e outras de que não se faz referência.

LXXXIV — Privados das referidas estátuas, osEpidauros deixaram de realizar os sacrifícios segundo ocompromisso assumido com os Atenienses. Estes, irritados comtal procedimento, testemunharam-lhes seu desagrado; mas osEpidauros provaram aos emissários de Atenas que, enquantoestiveram de posse das estátuas, tinham cumprido com apromessa que lhes haviam feito, vendo-se, porém,impossibilitados agora de continuar a fazê-lo, porquanto os

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Eginetas lhas haviam arrebatado, sendo a estes que elesdeveriam exigir os sacrifícios que vinham realizando às duasdivindades. Ante essa resposta, os Atenienses enviaram umadelegação a Egina para exigir a devolução das estátuas,respondendo os Eginetas que nada tinham a ver com eles.

LXXXV — Os Atenienses contam que, em vista darecusa dos Eginetas em devolver-lhes as estátuas, equiparam umtrirreme e nele enviaram, em nome do Estado, os mesmosdelegados, os quais, chegando a Egina, procuraram arrancá-lasdos pedestais, a fim de removê-las dali, por tratar-se de umamadeira a eles pertencente. Vendo logrado o seu intento,ataram-nas com cordas para puxá-las. Estavam todos entreguesa essa tarefa, quando sobreveio um forte trovão acompanhadode grande tremor de terra, deixando-os de tal maneiradesorientados, que começaram a matar uns aos outros, como sefossem inimigos, escapando apenas um deles, que conseguiutransportar-se para Falero.

LXXXVI — É assim que os Atenienses relatam o fato.Os Eginetas, por sua vez, dizem que, se os Atenienses tivessemenviado, como querem fazer crer, um só navio ou mesmo umpequeno número deles, tê-los-iam enfrentado e derrotado; mastratando-se, na realidade, de uma poderosa frota, viram-secompelidos a ceder, não querendo arriscar-se a um combatenaval. O que os Eginetas não dizem é que se assim procederamfoi por se acharem muito fracos para dar-lhes combate no mar,ou com o propósito de executarem o plano que haviampreparado. Acrescentam eles que os emissários atenienses, nãovendo ninguém apresentar-se para lhes dar batalha,desembarcaram dos seus navios e dirigiram-se para o local ondese encontravam as estátuas. Não conseguindo arrancá-las dospedestais, passaram-lhes cordas em torno e puseram-se apuxá-las. As estátuas resistiram, por seu lado, aos puxões, atéficarem ambas de joelhos, postura em que desde então se têmconservado. Esse detalhe não me parece verossímil, ainda que

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possa sê-lo para algum outro.

Foi essa, segundo os Eginetas, a conduta dos Atenienses.Quanto ao seu próprio procedimento, afirmam que, informadosde que os Atenienses vinham atacá-los, puseram os Árgios desobreaviso, e quando aqueles desembarcaram em Egina, osÁrgios acorreram prontamente em auxílio de seus aliados.Passando de Epidauro para a ilha, sem serem pressentidos pelosinvasores, caíram de improviso sobre eles, depois de haveremcortado a rota aos seus navios. Acrescentam que, nessa ocasião,sobreveio um forte trovão, acompanhado de tremor de terra.

LXXXVII — Esse relato dos Eginetas encontraconfirmação no dos Árgios. Os Atenienses declaram que apenasum dos membros da expedição conseguira escapar a essedesastre na Ática; mas os Árgios afirmam que eles foramtotalmente dizimados, não tendo conseguido escapar um só.Todavia, esse homem que os Atenienses dizem haver escapadoà pronta vingança dos deuses, não sobreviveu por muito tempo,perecendo da maneira que passo a relatar: De regresso a Atenas,informou o povo do trágico fim da missão à Ática; e asmulheres dos que haviam nela tomado parte, indignadas com ofato de só aquele homem haver escapado, cercaram-no epuseram-se a picá-lo com grampos de suas vestes, enquanto lhepediam notícias de seus maridos, e assim o mataram. Aatrocidade desse ato pareceu aos Atenienses ainda maisdeplorável do que a própria derrota; e não sabendo como puniraquelas que o haviam cometido, obrigaram-nas a usar trajesiônios. Elas, que até então usavam trajes dórios, que muito seassemelham aos das mulheres de Corinto, passaram a usar umatúnica de linho, ficando, assim, abolidos os grampos. Diga-se,porém, em nome da verdade, que esse traje não é de origemiônia, mas cária, pois as antigas vestes das mulheres gregas sãoas mesmas usadas atualmente pelas dórias.

LXXXVIII — Dizem que foi em conseqüência dessa

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medida que os Árgios e os Eginetas ordenaram às suas mulheresque usassem grampos uma vez e meia maiores do que oscomuns; que a principal oferenda das mulheres àquelasdeusas(17) consistisse em grampos, e que não oferecessem aotemplo nada que viesse da Ática, nem mesmo vasos de barro, sólhes sendo permitido beber nas taças do país. Tais disposiçõesforam levadas tão longe que, no meu tempo, as mulheresEginetas traziam grampos ainda maiores do que outrora.

LXXXIX — Foi essa, como já disse, a origem dainimizade entre os Atenienses e os Eginetas. Estes últimos,lembrando-se ainda do incidente havido por causa das estátuas,acederam prontamente ao pedido dos Tebanos e enviaramsocorro aos Beócios. Os Eginetas devastaram as costas daÁtica, e quando os Atenienses se dispunham a marchar contraeles, veio-lhes de Delfos um oráculo, ordenando-lhes quesuspendessem o castigo àquele povo pelo espaço de trinta anos,a contar da data em que recebessem os primeiros insultos, eque, se depois de haverem eles erguido um templo a Eaco, osatacassem transcorridos os trinta anos, teriam assegurado osucesso. Se os atacassem imediatamente, muito haveriam desofrer nesse espaço de tempo, pois, embora chegassem a causargrandes danos aos Eginetas, acabariam sendo por elesderrotados. Mal tiveram conhecimento desse oráculo, osAtenienses trataram de erguer a Eaco o templo que ainda hojese vê na praça pública; mas, vendo que não poderiam conterdurante trinta anos o ressentimento das injúrias recebidas,resolveram não adiar sua vingança por tanto tempo.

XC — Uma questão suscitada pelos Lacedemônios veioobstar a vingança planejada. Os Lacedemônios, informados damanobra dos Alcmeônidas junto à pitonisa e das intrigas destacontra eles e contra os partidários de Pisístrato, ficaram bastantepreocupados, tanto por haverem expulsado de Atenas seushóspedes e amigos, como porque os Atenienses não os viamcom bons olhos. Além disso, sentiam-se revoltados contra os

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oráculos, que lhes haviam predito que muito teriam ainda desofrer da parte dos Atenienses. Esses oráculos lhes foram dadosa conhecer por Cleómenes, que os levou a Esparta, depois dehaver deles lançado mão no templo de Minerva, na cidadela,onde os haviam deixado os partidários de Pisístrato.

XCI — Quando os Lacedemônios se viram senhores dasituação e perceberam que os Atenienses recobravam forças enão se mostravam dispostos a obedecer-lhes, decidiram, aocompreenderem que se esse povo fosse livre formaria com elesem pé de igualdade, mandar chamar Hípias, filho de Pisístrato,de Sigéia, sobre o Helesponto, onde se haviam refugiado ospartidários de Pisístrato. Hípias acedeu ao convite, bem comoos deputados dos aliados, também chamados pelosLacedemônios. Quando os tiveram reunidos, os Espartanos aeles se dirigiram nos seguintes termos: “Confederados,reconhecemos o nosso erro. Levados por um oráculo ilusório,banimos da pátria amigos leais, empenhados em manter Atenassob nossas leis, entregando a autoridade nas mãos de um povoingrato, que, libertado por nós, mostra-se agora arrogante edisposto a resistir-nos. Seu poderio aumenta cada vez mais,como bem o sabem os Beócios e os Calcídios seus vizinhos, ecomo o saberão outros que tentarem fazer-lhes frente. Já quecometemos um tal erro, convém que o reparemos sem perda detempo, vingando-nos com os recursos de que dispomos. Foicom esse propósito que convidámos Hípias a vir a Esparta e vosconcitámos a fazer o mesmo. Reunamos, pois, nossas forças emarchemos contra Atenas, a fim de que possais reaver o queimpensadamente arrebatámos de vós”.

XCII — Esse discurso dos Espartanos foi recebido sementusiasmo pela maioria dos aliados. Quebrando o silêncio quea ele se seguiu, Sósicles de Corinto dirigiu-se ao grupo nestestermos: “Lacedemônios, considero uma inversão da ordemnatural das coisas o querer destruir a isocracia nas cidades, paraestabelecer, em seu lugar, a tirania. É o que de mais injusto

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pode haver no mundo. Se vos parece vantajoso submeter osEstados da Grécia à tirania, por que não começais por vósmesmos uma tal experiência, antes de impô-la aos outros?Jamais tivestes um governo tirânico, e estais sempre alertas,velando para que tal não aconteça em Esparta. Não obstante,procurais estabelecê-lo entre os vossos aliados. Se já tivésseisexperimentado o que experimentámos, seria bem outra a vossamaneira de pensar.

“A forma de governo de Corinto — continuou Sósicles— era oligárquica, estando a autoridade concentrada nas mãosdos Báquidas(18), que só se casavam entre si, formando umagrande família. Anfíon, um deles, teve uma filha coxa, de nomeLabda. Como nenhum báquida quisesse desposá-la, casaram-nacom Eécion, filho de Echacrates, do burgo de Petra, mas Iapitede origem e descendente de Canéia. Eécion, não conseguindoter filhos dessa mulher, como de nenhuma outra, foi consultar ooráculo para saber se viria a tê-lo. Assim que entrou no templo,a pitonisa dirigiu-lhe estas palavras: “Eécion, não és honrado erespeitado por ninguém, embora muito o mereças. Labda, tuaesposa, traz no seio uma grande pedra, que esmagará osdéspotas e governará Corinto”.

“Essa resposta do deus chegou, por acaso, aoconhecimento dos Báquidas, que, algum tempo antes, tinhamrecebido, com relação a Corinto, um oráculo que lhes pareceraobscuro e que tinha o mesmo significado daquele que o deusacabava de conceder a Eécion. Esse oráculo dizia o seguinte:“Uma águia conceberá entre os rochedos um leão forte e cruel,que fará perecer muita gente. Refleti sobre isso, vós que habitaisa altiva Corinto e as margens da bela fonte de Pirene”.

“Os Báquidas não tinham conseguido apreender osignificado desse oráculo, mas ao terem conhecimento do deEécion, tudo lhes pareceu perfeitamente claro, pois que ambosse ajustavam de maneira bem expressiva. De posse do

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significado do oráculo, mantiveram-no em segredo,alimentando a intenção de eliminar o filho de Eécion, prestes anascer. Logo que Labda deu à luz a criança, dez dentre elesdirigiram-se ao burgo onde ela residia, a fim de matarem orecém-nascido. Chegando à residência de Eécion, perguntarampela criança, e Labda, ignorando o verdadeiro motivo daquelavisita e supondo tratar-se de uma manifestação de cordialidadepara com seu esposo, colocou o filho nas mãos de um dosvisitantes. Ficara resolvido em caminho que o primeiro quetivesse a criança nos braços esmagá-la-ia de encontro ao chão;mas no momento em que ela passou para os braços do estranho,sorriu-lhe, deixando-o tão comovido que não teve coragem dematá-la, passando-a para as mãos de outro companheiro. Este,também tocado de piedade, transferiu-a para as mãos de umterceiro, e assim passou ela de mão em mão, sem que nenhumse animasse a sacrificá-la. Devolvendo o recém-nascido aocarinho de sua mãe, deixaram a casa, pondo-se, logo à saída, acensurarem vivamente uns aos outros, recaindo as maioresacusações sobre o que estivera de posse dela em primeiro lugar,faltando com o compromisso assumido. Depois de haveremdiscutido durante alguns instantes, decidiram voltar à casa eeliminar, todos juntos, a criança. Mas estava escrito que adescendência de Eécion seria o gérmen de onde sairiam asdesgraças de Corinto. Labda, que se encontrava junto à porta,ouviu toda a discussão, e temendo que eles mudassem deresolução e viessem arrebatar-lhe o filho para matá-lo,ocultou-o numa arca de trigo(19) que lhe pareceu o lugar maisseguro e do qual eles certamente menos suspeitariam, poisestava convencida de que, se eles voltassem e não encontrassema criança, revistariam toda a casa. Foi isso, realmente, o queaconteceu. Depois de terem-na inutilmente procurado por todaparte, resolveram ir-se embora e dizer aos que os tinhamenviado que se haviam desobrigado da missão. Quando acriança cresceu, deram-lhe o nome de Cípselo, como lembrançado perigo de que havia escapado graças a uma arca de trigo.Chegando à idade viril, foi ele consultar o deus de Delfos,

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obtendo uma resposta ambígua. Contudo, cheio de confiança nooráculo, atacou Corinto e dela se apoderou. O oráculo estavaconcebido nestes termos: “Feliz é esse homem que entra no meutemplo, Cípselo, filho de Eécion, rei da ilustre cidade deCorinto, ele, seus filhos, mas não os filhos de seus filhos”.

“Tornando-se tirano de Corinto, Cípselo exilou grandenúmero de corintianos, despojando muitos de seus bens emandando matar inúmeros outros ainda. Acabou tranqüilamenteos seus dias, depois de um reinado de trinta anos, sendosucedido por seu filho Periandro. Este revelou, no início, maiorbrandura do que o pai, mas as ligações que veio a manter comTrasibulo, tirano de Mileto, por intermédio de seusembaixadores, tornaram-no ainda mais cruel do que Cípselo.Mandando perguntar àquele soberano que forma de governodevia adotar para reinar com segurança, Trasibulo conduziu oemissário para fora da cidade, pondo-se a passear com ele porentre os trigais, inquirindo-o sobre a viagem de Corinto até ali;e voltando constantemente ao assunto, ia cortando as espigasmais altas e atirando-as por terra, destruindo, assim, o que haviade melhor e mais belo naquela plantação. Depois de haverpercorrido todo o campo, despediu o emissário de Periandro,sem lhe dar qualquer espécie de conselho. De regresso aCorinto, foi o emissário logo interrogado por Periandro sobre osconselhos que lhe dera Trasibulo, respondendo ele não haverrecebido nenhum e estar surpreendido de ter sido enviado parasolicitar o parecer de um homem que se mostrava tão insensato,a ponto de destruir seus próprios bens. Em seguida, contou aPeriandro o que vira Trasibulo fazer com o trigal.

“Periandro, compreendendo de pronto o significadodaquele procedimento, que tão estranho parecera ao seuenviado, e persuadido de que Trasibulo o aconselhava aeliminar os cidadãos de maior influência em Corinto, começou,desde então, a cometer toda sorte de maldades e perfídias contraeles. Exilou e mandou matar os que Cípselo havia poupado,

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concluindo assim a obra nefanda iniciada pelo seu antecessor.Obrigou, de uma feita, todas as mulheres de Corinto a sedesfazerem de seus trajes, por causa de Melissa, sua falecidamulher. Tendo mandado consultar o oráculo dos mortos, àsmargens do Aqueronte, no país dos Tesprócios, sobre os bensdeixados por um estrangeiro, Melissa, aparecendo, declarou quenão revelaria onde se achavam esses bens porque, estando nua,sentia frio; os trajes com que a tinham enterrado de nada lhevaliam, pois não os haviam queimado. E para provar a verdadedo que afirmava, acrescentou que Periandro tinha colocado seupão num forno frio. Esta prova pareceu convincente aPeriandro, porquanto tinha realmente violado o cadáver daesposa. Logo que lhe comunicaram o oráculo, expediu umaordem a todas as mulheres de Corinto, para que se reunissem notemplo de Juno. As mulheres para lá se dirigiram, supondotratar-se de uma festa, envergando os seus mais ricos trajes ecobertas de adornos; mas foram todas, sem distinção de classe,despojadas de seus trajes pelos guardas reais. As suas vestesforam, em seguida, atiradas num fosso, onde as queimaram,endereçando preces a Melissa. Depois disso, o espectro deMelissa indicou o local onde se encontravam os bensprocurados.

“É assim, Lacedemônios, a tirania — concluiu Sósicles—; tais os seus efeitos. Foi por essa razão que nos mostrámossurpresos, nós, os Coríntios, quando mandastes chamar Hípias;e mais espantados ficámos com a linguagem que usastes nestaocasião. Nós vos conjuramos, em nome dos deuses da Grécia, anão estabelecerdes a tirania nas suas cidades. Se, apesar de tudopersistirdes, contra todos os princípios de justiça, em reconduzirHípias ao poder, em Atenas, já sabeis que os Coríntios não vosaprovarão”.

XCIIÍ — Sósicles, deputado de Corinto, tendo acabadode falar, Hípias tomou a palavra para dizer, depois de haverinvocado os mesmos deuses gregos, que os Coríntios teriam

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algum dia, mais do que todos os outros povos, motivos pararecordar com saudade o governo de Pisístrato, isso quandochegasse o tempo determinado pelos fados, em que se veriamhumilhados pelos Atenienses. Assim se expressou Hípias,porque nenhum outro homem tinha conhecimento mais perfeitodos oráculos. Os outros aliados, que até então haviam guardadosilêncio, ouvindo o discurso de Sósicles manifestaram-seplenamente de acordo com as suas palavras, e, dirigindo-se aosLacedemônios, conjuraram-nos a nada empreender contraqualquer cidade grega e a não introduzir modificações no seugoverno, fracassando assim o plano dos Lacedemônios.

XCIV — Quando Hípias deixou a Lacedemônia,Amintas, rei da Macedônia, ofereceu-lhe Antemunte e o paísdos Tessálios Iolcos; mas ele, declinando esse oferecimento,retornou a Sigéia. Pisístrato havia tomado essa praça dosMitilenos, impondo-lhes, como tirano, um filho natural, denome Hegesístrato, que tivera de uma mulher de Argos. Ojovem, porém, não usufruía com tranqüilidade as prerrogativasdo poder. Os Mitilenos e os Atenienses estavam, há muitotempo, em guerra, servindo-lhes de bases estratégicas as cidadesde Aquiléia e de Sigéia, de onde faziam freqüentes incursõescontra os territórios de uns e de outros. Os primeirosreivindicavam a posse desse país; os outros achavam que elenão lhes pertencia, e procuravam provar que tanto eles comotodos os outros gregos que haviam auxiliado Menelau a vingaro rapto de Helena, tinham tanto direito aos territórios de Tróia,quanto os Eólios.

XCV — Nessa guerra e nos combates travados entre osdois povos, tiveram lugar acontecimentos dignos de nota, numdos quais se achou envolvido o poeta Alceu(20). Numa sortida,em que os Atenienses levaram a melhor, o poeta logrou escapar,deixando em poder do inimigo seu escudo, que foi levado paraSigéia e colocado no templo de Minerva(21). Sobre esse fato,compôs o poeta uma ode, que enviou a Mitilene e na qual

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contava a Menalipe, seu amigo, a desgraça que lhe sucedera.

Periandro, filho de Cípselo, restabeleceu a paz entre osMitilenos e os Atenienses, que o haviam tomado por árbitro,fazendo ambas as partes cultivarem as terras cuja possereivindicavam. Sigéia ficou, em conseqüência disso, em poderdos Atenienses.

XCVI — Hípias, transportando-se da Lacedemônia paraa Ásia, procurou por todos os meios tornar os Ateniensesodiosos aos olhos de Artafernes, envidando os esforços paracolocar Atenas sob sua influência e torná-la submissa a Dario;mas, tendo essas manobras chegado ao conhecimento dosAtenienses, estes enviaram emissários a Sardes para dizeremaos Persas que não se deixassem levar pelas insinuações dosexilados. Artafernes, todavia, aconselhou-os a promoverem arepatriação de Hípias, se desejavam conservar sua integridade.Considerando absurda essa condição, os Ateniensesdeclararam-se abertamente contra os Persas.

XCVII — Enquanto deliberavam sobre a melhorresolução a tomar e eram caluniados entre os Persas, chegava aAtenas, a mais poderosa cidade então existente na Grécia,Aristágoras de Mileto, expulso de Esparta por Cleómenes, reida Lacedemônia. Apresentando-se à assembléia do povo,Aristágoras ali falou, como havia feito em Esparta, das riquezasda Ásia e da facilidade com que se poderia vencer os Persas,que não se serviam nem de escudos nem de lanças. A essasrazões, acrescentou serem os Milésios uma colônia deAtenienses, sendo natural que os dali, dispondo de grandesrecursos, tomassem a iniciativa de libertá-los. E como tinhanecessidade premente do auxílio dos Atenienses, não houvepromessa que não lhes fizesse, conseguindo, finalmente,persuadi-los da empresa. Pareceu, com efeito, mais fácilconvencer uma multidão do que um só homem; poisAristágoras, que não lograra êxito junto a Cleómenes,

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conseguira, no entanto, ludibriar trinta mil Atenienses. O povode Atenas, aceitando as razões de Aristágoras, resolveu enviarvinte navios em socorro dos Iônios, tendo sido escolhido paracomandá-los Melântio, muito estimado por todos os seusconcidadãos. Essa frota acarretou uma série de males, tanto paraos Gregos como para os bárbaros.

XCVIII — Aristágoras embarcou e tomou a dianteira.Chegando a Mileto, concebeu um plano do qual não deveriaresultar nenhum proveito para os Iônios, porquanto ele tinhamenos em mira favorecê-los do que causar dificuldades a Dario.Enviou um delegado à Frígia, para entender-se com os Peôniosque haviam sido transferidos das margens do Estrímon, ondeMegabizo os havia aprisionado, e que habitavam o burgo e oterritório que lhes foram designados. Chegando à presençadeles, o delegado de Aristágoras assim lhes falou: “Peônios,Aristágoras, senhor de Mileto, encarregou-me de vos dar umconselho que, se o seguirdes, vos será sumamente proveitoso. AIônia inteira levantou-se contra o rei, apresentando-se para vós aoportunidade para voltardes à vossa pátria sem risco algum. Ideapenas até a beira-mar, que do resto da viagem nosencarregaremos nós”.

Os Peônios ouviram essa declaração com o maior júbilo.Reunindo logo suas mulheres e filhos, partiram em direção aomar, com exceção de um pequeno número, que, temendo osriscos da viagem, preferiu permanecer ali. Do litoral, os Peôniosseguiram para Quios. Ao chegarem ali, surgiu-lhes pela frente acavalaria persa, que se pôs a persegui-los vigorosamente. Nãoconseguindo alcançá-los, os cavaleiros persas mandaramdizer-lhes que regressassem ao ponto de partida, mas os Peôniosnão lhes deram ouvidos. Os habitantes de Quiostransportaram-nos dessa ilha para a de Lesbos, e os Lésbiospara a Dórica, de onde eles seguiram por terra para a Peônia.

XCIX — Os Atenienses chegaram com vinte navios e

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cinco trirremes dos Erétrios, que os acompanharam, menos porconsideração para com eles, do que por gratidão pelosbenefícios recebidos dos Milésios. Estes, com efeito, os tinhamauxiliado na guerra que tiveram de sustentar contra osCalcídios, apoiados pelos habitantes de Samos. Quando osAtenienses chegaram e se reuniram com o resto dos aliados,Aristágoras levou a efeito uma expedição contra Sardes, queencontrou deserta. Permaneceu, então, em Mileto, nomeandoseu irmão Caropino como comandante dos Milésios, pondoHermofante à frente dos aliados.

C — Os Iônios, tendo chegado ao Éfeso, deixaram seusnavios em Coresso, e tomando alguns Efésios como guias,avançaram por terra com forças consideráveis. Acompanhandoo curso do Caístro, transpuseram o monte Tmolo e chegaram aSardes. Não encontrando resistência, apoderaram-se da cidade,com exceção da cidadela, defendida por Artafernes com umaforte guarnição.

CI — Um acidente que se verificou nessa ocasião salvoua cidade da pilhagem. A maioria das casas era de caniço e debambu, e mesmo as de tijolos eram cobertas de caniço. Tendoum soldado ateado fogo a uma dessas casas, o fogo propagou-seimediatamente às demais, reduzindo a cidade a cinzas.Enquanto as chamas destruíam as habitações, os Lídios e todosos Persas que se encontravam na cidade, vendo-se cercados detodos os lados e não tendo por onde escapar, pois que o fogo jáhavia atingido os extremos da cidade, dirigiram-se em massapara a praça e para as margens do Pactolo, que a corta pelomeio. Este rio arrasta em suas águas palhetas de ouroarrancadas do Tmolo, e, ao sair de Sardes, desemboca noHermo, que, por sua vez, deságua no mar. Os Persas e osLídios, reunidos na praça e nas margens do rio, viram-seforçados a defender-se. Os Iônios, vendo-os dispostos a vendercaro a vida e muitos a se encaminharem ameaçadoramente paraeles, ficaram atemorizados e retiraram-se para o monte Tmolo,

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de onde partiram à noite, de regresso aos seus navios.

CII — O templo de Cibele, deusa do país, foi destruídopelo fogo, juntamente com a cidade, tendo o incêndio servido,mais tarde, de pretexto aos Persas para porem fogo aos templosda Grécia.

Ante a notícia da invasão, os Persas que habitavamaquém do Hális reuniram-se e acorreram em auxílio dos Lídios.Chegando a Sardes, não mais encontraram os Iônios.Seguindo-lhes as pegadas, foram alcançá-los no Éfeso, onde,obrigando-os a oferecer-lhes combate, infligiram-lhes amargaderrota. Houve muitos mortos, entre os quais figuras dedestaque, tais como Euálcis, comandante dos Erétrios, váriasvezes vitorioso nos jogos que têm por prêmio uma coroa, ecujos feitos foram decantados por Simônides de Ceos. Ossobreviventes dessa batalha dispersaram-se pelas cidades.

CIII — Depois dessa malograda expedição, osAtenienses abandonaram completamente os Iônios, negando-sea conceder-lhes qualquer auxílio, a despeito das súplicas quelhes dirigiu Aristágoras por intermédio dos seus delegados.Embora privados da aliança dos Atenienses, os Iônios não semostraram menos dispostos a continuar a guerra contra Dario,pois a maneira pela qual se tinham conduzido com relação aesse soberano não lhes deixava outro recurso. Fazendo-se à velaem direção ao Helesponto, apoderaram-se de Bizâncio e detodas as cidades vizinhas, dirigindo-se, em seguida, à Cária,obtendo a aliança da maioria dos seus habitantes. A cidade deCária, que a princípio se recusara a fazer essa aliança, consentiudepois do incêndio de Sardes.

CIV — Os Cíprios, num movimento unânime eespontâneo, ligaram-se também aos Iônios, com exceção doshabitantes de Amatunte. Tinham-se revoltado contra os Medosem resultado do seguinte fato: Górgus, rei de Salamina, filho deQuérsis, neto de Sirómus e bisneto de Evelton, tinha um irmão

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mais moço, chamado Onésilo. Esse Onésilo o tinha exortadoanteriormente a revoltar-se contra o rei. Ao saber que os Iôniosse haviam sublevado, redobrou de esforços para fazê-lo tomaressa atitude. Não conseguindo convencê-lo, esperou o momentoem que o rei se ausentou de Salamina, para fechar-lhe as portascom o auxílio de seus partidários. Despojado de seus Estados,Górgus retirou-se para junto dos Medos. Onésilo, vendo-sesenhor de Salamina, arrastou todos os Cíprios à revolta, excetoos de Amatunte, que não quiseram dar-lhe ouvidos.

CV — Achava-se Onésilo diante dessa praça, quandoanunciaram a Dario que Sardes havia sido tomada e incendiadapelos Atenienses e Iônios, e que Aristágoras de Mileto era ochefe da liga formada contra o soberano persa. Conta-se que, aoreceber essa notícia, Dario nenhuma importância deu aosIônios, certo de que a insurreição destes não ficaria impune,mostrando-se, porém, interessado acerca dos Atenienses,procurando saber que povo era esse e anotando bem asinformações que lhe deram a respeito. Pediu em seguida seuarco e, pondo nele uma flecha, lançou-a para o céu exclamando:“Oh Júpiter! Possa eu vingar-me dos Atenienses!” Evoltando-se para um de seus oficiais, ordenou-lhe que lherepetisse três vezes, sempre que lhe servisse o jantar: “Senhor,lembrai-vos dos Atenienses”.

CVI — Depois de haver dado essa ordem, mandouchamar Histeu de Mileto, que desde muito vinha mantendo emsua companhia. “Histeu — disse-lhe ele —, acabo de saber queo governador a quem confiaste Mileto promoveu desordenscontra mim, reuniu aos Iônios, que saberei punir, povos dooutro continente e persuadiu-os a segui-los, arrebatando-me acidade de Sardes. Tal ação te parece honesta? Poderia eleexecutar essa empresa sem a tua participação? Toma cuidadopara não te tomares culpado outra vez!” “Que dizeis, senhor!Credes que eu seria capaz de dar um conselho que viesse acausar-vos o mais leve desgosto? O que poderia eu pretender

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agindo dessa maneira? Que me falta ao pé de vós? Nãocompartilho eu de todos os vossos bens? Não vos dignais aadmitir-me em vossos conselhos reais? Se meu substitutopromoveu a empresa a que vos referis, senhor, foi pordeliberação própria; mas não posso acreditar que ele tenha,juntamente com os Milésios, provocado perturbações contravós. Se, entretanto, o fizeram; se o que vos disseram é verdade,deveis convir, senhor, que destes, sem o querer, motivo paraisso, afastando-me do litoral. Sem dúvida, os Iônios desejavam,de há muito, subtraírem-se ao teu domínio, e o meu afastamentolhes deu o esperado ensejo. Se eu estivesse lá, nenhuma cidadeteria ousado cometer tais atos de rebeldia. Deixai que eu partaimediatamente para a Iônia, e eu vos prometo restabelecer depronto a vossa autoridade ali e trazer à vossa presençaAristágoras, o autor dessa trama. Feito isso, eu vos juro pelosdeuses protetores dos reis, que não trocarei de roupa enquantonão houver submetido aos teus domínios a grande ilha deSardenha”.

CVII — Dario deixou-se persuadir por essas palavras,que não visavam outra coisa senão enganá-lo. Deixou Histeupartir, dizendo-lhe que regressasse a Susa logo que houvessecumprido com o que prometera.

CVIII — Enquanto essas coisas se passavam,informaram a Onésilo de Salamina, empenhado no cerco deAmatunte, que Cipres de Artíbio, persa de nascimento, estavasendo aguardado a qualquer momento com um poderosoexército composto de tropas de todas as nações. Ante essanotícia, Onésilo enviou arautos aos Iônios, solicitando-lhessocorros. Estes, sem perder tempo em longas deliberações,acorreram em seu auxílio com numerosa frota. Já seencontravam em Chipre, quando as forças persas, tendo passadoda Cilícia para, essa ilha, dirigiram-se por terra a Salamina. Astropas fenícias, por seu lado, dobraram o promontório chamadoCleides de Chipre.

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CIX — Entrementes, os tiranos de Chipre convocavamos comandantes das forças iônias, falando-lhes nestes termos:“Iônios, nós, os Cíprios, deixamos a vós a escolha de atacar osPersas ou os Fenícios. Se quiserdes experimentar por terravossas forças contra os Persas, é tempo de abandonar os vossosnavios, colocando-vos em ordem de batalha, enquanto que nós,substituindo-vos ali, combateremos no mar contra os Fenícios.Se, porém, preferis atacar os Fenícios, fazei-o. Seja qual for avossa escolha, lembrai-vos de que de vós depende a liberdadede Chipre e da Iônia”.

“Soberanos de Chipre — responderam os Iônios —, oconselho comum da Iônia nos enviou para lutar no mar e nãopara entregar os nossos navios aos Cíprios e combater em terracontra os Persas. Procuraremos cumprir com o nosso dever noposto em que nos colocaram. Quanto a vós, lembrai-vos da duraservidão em que vos mantêm os Medos e combatei comohomens de coragem”.

CX — Tendo o inimigo atingido a planície de Salamina,os Cíprios escolheram os melhores soldados de Salamina e deSolos para enfrentarem os Persas, enviando as outras tropascontra o resto do exército invasor. Quanto a Onésilo,preparou-se, ele próprio, para enfrentar Artíbio, general dosPersas.

CXI — Artíbio montava um cavalo especialmenteamestrado para enfrentar um homem armado. Observando isso,Onésilo disse a seu escudeiro: “Observa como investe o cavalode Artíbio; com as patas e os dentes matará quem quer queencontre pela frente. Reflete um segundo e dize-me qualpreferes visar, se o cavalo ou o cavaleiro”. “Senhor —respondeu o escudeiro —, estou pronto a enfrentar um ou outro;farei o que me ordenardes. Permiti, contudo, que vos diga o queme parece mais conveniente aos vossos interesses. Penso queum rei e um general devem combater contra um rei e um

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general. Se fizerdes perecer um general, será para vós umagrande glória; se ele vos matar (do que nos livrem os deuses),será menos triste morrer em mãos nobres. Nós, os servos,devemos combater contra outros servos. Quanto ao cavalo deArtíbio, não lhe temamos as manobras. Eu vos asseguro que elenão se erguerá mais contra ninguém”.

CXII — Logo a seguir, os dois exércitos rivais, de terrae de mar, entraram em luta. Os Iônios deram grandesdemonstrações de valor no mar, batendo os Fenícios, sendo oshabitantes de Samos os que mais se distinguiram. Os exércitosde terra aproximaram-se e chocaram-se violentamente.Enquanto Artíbio impelia seu cavalo contra Onésilo, esteatacava-o como havia combinado com o escudeiro; e quando oanimal ergueu as patas dianteiras contra o seu escudo,cortou-lhe o ímpeto com um certeiro golpe de lança. O cavalobaqueou, arrastando na queda o general persa.

CXIII — Quando mais acesa era a luta, Estesenor, tiranode Curia, que comandava um grande corpo de tropas,bandeou-se para o inimigo. O exemplo dos Curios, que,segundo se afirma, constituem uma colônia dos Árgios, foi logoseguido pelos ocupantes dos carros de guerra dos Salamínios,obtendo, assim, os Persas superioridade numérica. Os Cípriosbateram em retirada, deixando inúmeros mortos no campo daluta, entre os quais Onésilo, filho de Quérsis, o mesmo quehavia incitado os Cíprios à revolta. Aristocipros, rei dos Sólios,perdeu também a vida nessa jornada inglória. Aristocipros erafilho daquele Filocipros que Sólon de Atenas, quando veio aChipre, celebrou em versos, dizendo-o superior a todos ostiranos.

CXIV — Os habitantes de Amatunte cortaram a cabeçade Onésilo, que os tinha sitiado, e levaram-na para Amatunte,colocando-a sobre uma das portas da cidade. Algum tempodepois, estando a cabeça já vazia, um enxame de abelhas

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encheu-a de favos de mel. Observando isso, os habitantes foramconsultar o oráculo, que os aconselhou a enterrar a cabeça e aoferecer, todos os anos, sacrifícios a Onésilo, como a um herói,afirmando-lhes que os deuses lhes seriam mais propícios. Essessacrifícios eles ainda os realizavam no meu tempo.

CXV — Os Iônios que se tinham batido no mar perto deChipre, tomando conhecimento da derrota de Onésilo e sabendoestarem cercadas as cidades de Chipre, com exceção deSalamina, voltando Górgus ao seu antigo trono, rumaram, semperda de tempo, para a Iônia. De todas as cidades de Chipre, foiSolos a que mais longamente resistiu, só conseguindo os Persascapturá-la ao cabo de cinco meses, minando todas as muralhasda valorosa praça.

CXVI — Os Cíprios foram de novo reduzidos àescravidão, depois de haverem desfrutado a liberdade duranteum ano. Daurises, genro de Dario, Himes, Otanes e outrosgenerais persas que haviam também desposado filhas dosoberano, perseguiram os Iônios que haviam tomado parte naexpedição contra Sardes e infligiram-lhes severa derrota, depoisde os terem forçado a voltar aos seus navios. Os vencedoresrepartiram entre si as cidades iônias e saquearam-nas.

CXVII — Daurises voltou-se, em seguida, contra ascidades do Helesponto. Dárdano, Abido, Percote, Lâmpsaco ePaesos não resistiram mais que um dia. Quando, porém, sedirigia de Paesos a Pário, soube que os Cários se tinhamrevoltado contra os Persas, de comum acordo com os Iônios.Ante essa notícia, deixou o Helesponto e conduziu suas tropascontra a Cária.

CXVIII — Informados da vinda de Daurises, os Cáriosconcentraram-se no lugar denominado Colunas Brancas, àsmargens do Mársias, que se lança no Meandro depois de haveratravessado o território de Ídrias. Puseram-se, então, a concertara melhor maneira de ação, dividindo-se as opiniões, sendo a

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melhor, a meu ver, a de Pixodares, filho de Mausolo, da cidadede Cinde, e que havia desposado uma filha de Sienésis, rei daCilícia. Aconselhou ele aos Cários a atravessarem o Meandro ea combaterem de costas para o rio, pois que, não podendorecuar, lutariam mais valentemente para conservar sua posição ea própria vida. Essa opinião, todavia, não prevaleceu, ficandoresolvido o contrário, isto é, que os Persas teriam o Meandroatrás deles. Assim, no caso de fuga ou retirada, cairiam no rio enão poderiam salvar-se.

CXIX — Como fora previsto e estabelecido, os Persasatravessaram o Meandro, chocando-se com os Cários, que osaguardavam às margens do Mársias. O combate foi rude elongo, vendo-se os Cários, por fim, obrigados a ceder ante asuperioridade numérica do inimigo. Terminada a luta, jaziampor terra dois mil homens do lado dos Persas e dez mil do ladodos Cários. Aqueles, dentre estes últimos, que escaparam àderrota, refugiaram-se em Labranda, no templo de JúpiterEstrácio e numa grande floresta de plátanos consagrada ao deus.

Os Cários são os únicos povos, que eu saiba, aoferecerem sacrifícios a Júpiter Estrácio. Refugiados nafloresta, reuniram-se e puseram-se a deliberar sobre qual seria opartido mais vantajoso a tomar: entregar-se aos Persas ouabandonar a Ásia.

CXX — Enquanto deliberavam, chegaram parasocorrê-los os Milésios e seus aliados. Ante aquele inesperadoauxílio, os Cários deixaram de lado suas resoluções eatiraram-se de novo à luta com os Persas, sendo novamentebatidos, e de maneira mais completa que da outra vez. Foigrande o número de mortos nessa refrega, sobretudo do lado dosMilésios.

CXXI — Algum tempo depois, os Cáriosreabilitaram-se dessa derrota numa outra campanha. Informadosde que os Persas estavam em marcha para atacar suas cidades,

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puseram-se de emboscada à beira do caminho que leva aPédaso, e quando os Persas passavam, à noite, atiraram-se sobreeles, massacrando-os, juntamente com os seus generaisDaurises, Amorges e Sisimaces. Mírsus, filho de Giges, foitambém morto.

CXXII — Foi Heraclides, filho de Ibanólis, da cidade deMilassa, quem organizou essa emboscada, tão fatal para osPersas. Himes, que figurava entre os que haviam perseguido osIônios depois da malograda expedição destes contra Sardes,voltou suas forças contra Propôntis, capturando Cio, na Mísia.Tendo sabido, depois disso, que Daurises havia deixado oHelesponto em direção à Cária, abandonou a Propôntis edirigiu-se com o seu exército para o Helesponto. Subjugoutodos os Eólios do território de Ílion e os Gergitas,remanescentes dos antigos Teucros. Enquanto se entregava aessas conquistas contraiu grave moléstia, vindo a falecer naTróada.

CXXIII — Artafernes, governador de Sardes, recebeuordens para ir com Otanes, um dos três generais do exército deDario, à Iônia e à Eólida. Ali chegando, tomaram Clazômenas,na Iônia, e Cimes, na Eólida.

CXXIV — Aristágoras de Mileto, responsável pelolevante da Iônia e pelos motins que a agitaram, mostrou, nessaocasião, bem pouca firmeza de ânimo. Ficou de tal maneiraperturbado com a captura daquelas duas cidades, que resolveufugir, sabendo, naturalmente, que não poderia levar vantagemalguma sobre o soberano persa. Convocou os seus partidários eperguntou-lhes se não seria conveniente poderem contar comum asilo próximo dali, para quando se vissem expulsos deMileto, quer fosse na Sardenha, quer em Mircina, no país dosEdônios, cidade que Dario tinha dado a Histeu e que estecomeçara a cercar de muralhas.

CXXV — O historiador Hecateu, filho de Hegesandre,

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não era de opinião que se estabelecesse uma colônia emqualquer desses dois países, mas que se construísse um castelona ilha de Leros, para o caso de serem banidos de Mileto,mantendo-se todos tranqüilos ali, pois de lá poderiam retornarfacilmente a Mileto.

CXXVI — Aristágoras, porém, inclinava-se mais porMircina. Confiou Mileto a Pitágoras, homem de grandeinfluência e filho do lugar, e, reunindo todos os que sedispuseram a acompanhá-lo, velejou para a Trácia,apoderando-se do país que tinha em vista ao deixar Mileto.Pouco depois, tendo ido tentar o cerco de uma praça forte, alipereceu com todo o seu exército, nas mãos dos Trácios que adefendiam.

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LIVRO VI

ÉRATODARIO APODERA-SE DE MILETO — O POETA FRÍNICO —

DARIO MANDA PEDIR TERRA E ÁGUA AOS POVOS DAGRÉCIA — PRERROGATIVAS DOS REIS DE ESPARTA —

TOMADA DE ERÉTRIA PELOS PERSAS — CLEÓMENES —SUA MORTE — OS PERSAS ATACAM ATENAS — A

BATALHA DE MARATONA — MILCÍADES — OSESPARTANOS SÓ CHEGAM DEPOIS DA VITÓRIA —

MILCÍADES DIANTE DE PAROS — O MALOGRO DE SUAEXPEDIÇÃO — CONDENADO A UMA MULTA — OS

PELASGOS — LEMNOS.

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I — Assim pereceu Aristágoras, incitador da sublevaçãona Iônia contra Dario. Quanto a Histeu, logo que o soberanoconsentiu na sua viagem, partiu de Susa com destino a Sardes.Ao chegar a essa cidade, Artafernes, que a governava,perguntou-lhe que razões poderiam, na sua opinião, ter levadoos Iônios à revolta. Histeu, fingindo completa ignorância sobreo caso, respondeu-lhe estar muito surpreendido com o que sepassara. Artafernes, percebendo que ele procurava ocultar averdade, disse-lhe, como se estivesse inteiramente a par daverdadeira causa do movimento: “Histeu, tu costuraste o sapatoe Aristágoras calçou-o”.

II — Histeu, alarmado com essas palavras, quemostravam estar Artafernes ciente de suas manobras, fugiu pormar ao cair da noite, ludibriando Dario. Ele, que haviaprometido ao soberano submeter ao seu domínio a grande ilhade Sardenha, acabou assumindo o comando dos Iôniossublevados contra o seu senhor, e passou para a ilha de Quios,cujos habitantes o aprisionaram, acusando-o de ter vindo daparte de Dario para insuflar desordens entre eles: mas quando seinteiraram da verdade e souberam ser ele inimigo do rei,restituíram-lhe a liberdade.

III — Os Iônios, por sua vez, inquiriram-no sobre arazão que o levara a convencer Aristágoras que sublevasse aIônia, causando a esta tantos males. Ocultando a verdadeirarazão, Histeu disse-lhes que assim procedera por haver Darioresolvido deslocar os Fenícios para a Iônia e os Iônios para aFenícia, muito embora o soberano jamais houvesse pensado emtal coisa. O que Histeu desejava com isso era aterrorizar osIônios.

IV — Harmonizadas as coisas, Histeu escreveu aos seusamigos persas estabelecidos em Sardes, com os quais seentretivera a respeito da revolta, confiando as cartas a Hermipo

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de Atárnea; mas o portador, em lugar de levá-las aosdestinatários, levou-as a Artafernes. Este, tomandoconhecimento do que se tramava, ordenou a Hermipo que asfosse entregar àqueles aos quais eram dirigidas, trazendo-lhe asrespostas dos mesmos. Descoberta a conspiração, Artafernesmandou matar grande número de persas nela envolvidos.

V — Verificaram-se, nessa ocasião, algumasperturbações em Sardes. Histeu, vendo malogrados seus planos,resolveu voltar a Mileto, sendo conduzido por habitantes deQuios. Os Milésios, satisfeitos por se verem livres deAristágoras, não se sentiam inclinados a receber em seu paísoutro tirano, tanto mais que experimentavam agora as doçurasda liberdade. Vendo-se repelido, Histeu tentou, durante a noite,penetrar à força na cidade, mas foi ferido na coxa por umcidadão de Mileto. Indesejável na sua própria pátria, retornou aQuios, e como não conseguisse convencer os habitantes dessailha a fornecer-lhe navios, passou-se para Mitilene, obtendonavios dos Lésbios. Estes puseram à sua disposição oitotrirremes, com os quais Histeu fez-se ao mar com destino aBizâncio, onde, ao chegar, interceptou todos os naviosprocedentes do Ponto Euxino, deixando livres aqueles cujostripulantes se declararam prontos a obedecer-lhe.

VI — Enquanto Histeu e os Mitilenos se ocupavam comessas atividades, chegou a Mileto uma poderosa frota, com umnumeroso exército de terra. Os generais dos Persas, tendoreunido suas forças esparsas, formando com elas um só corpode exército, marcharam diretamente para a capital, sem daremimportância às pequenas cidades. Dos componentes das forçasnavais, foram os Fenícios os que demonstraram maior ardor. OsCíprios, que haviam sido novamente subjugados,acompanhavam-nos, juntamente com os Cilícios e os Egípcios.

VII — Ante a notícia de que essas tropas vinham atacarMileto e o resto da Iônia, os Iônios enviaram delegados ao

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Paniônio. Discutido o caso, ficou decidido que não seriaenviado nenhum exército de terra contra os Persas; que osMilésios defenderiam, eles próprios, sua cidade; que seriamcompletadas as equipagens de todos os navios, e que estes sereuniriam o mais cedo possível em Lade, para ali combater afavor de Mileto. Lade é uma pequena ilha situada em frente àcidade de Mileto.

VIII — Concluídos os preparativos, os Iôniosdirigiram-se para o local combinado, com todos os Eólios dailha de Lesbos, ficando assim dispostos para a batalha: osMilésios ocupavam a ala de leste com oitenta navios, vindo emseguida os Priênios, com doze navios, e depois destes osMiontinos, com três navios e os Teios, com dezessete. Estesúltimos eram seguidos por cem veleiros de Quios, perto dosquais estavam os Eritreus e os Fócios, estes com três navios,aqueles com oito. Logo depois deles colocaram-se os Lésbios,com setenta veleiros. Finalmente, os habitantes de Samosocupavam a outra ala a oeste, manobrando sessenta navios, oque perfazia um total de trezentos e cinqüenta e três trirremesdo lado dos Iônios.

IX — A frota dos bárbaros era composta de seiscentosveleiros. Quando ela chegou às costas de Mileto, já estandoreunidas todas as forças de terra, os generais persas, tendonotícia do grande número de navios Iônios, recearam não serembastante fortes para vencê-los, e assim, por falta desuperioridade no mar, deixaram de tomar Mileto, atraindo sobreeles a cólera de Dario. Depois de haverem confabulado,convocaram os tiranos iônios privados por Aristágoras dos seusEstados e que, tendo-se refugiado junto aos Medos, se achavamcom as tropas acampadas diante de Mileto. Quando os viramreunidos, os generais persas assim lhes falaram: “Iônios, chegouo momento de mostrardes o vosso zelo pela causa do rei. O quedesejamos é que cada um de vós procure desligar seusconcidadãos do resto dos aliados, assegurando-lhes que não

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serão punidos por se terem revoltado e que não verãoincendiados seus edifícios, quer sagrados, quer profanos. Se,porém, repelirem vossas propostas; se persistirem no propósitode combater, ameaçai-os dizendo-lhes das desgraças que lhespoderão advir no caso de serem vencidos; procuraiconvencê-los de que serão reduzidos à escravidão; seus filhosvarões convertidos em eunucos; suas filhas levadas paraBactros, e suas terras entregues a outros povos”.

X — Chegando a noite, os tiranos iônios enviaramdelegados aos seus respectivos concidadãos para fazê-losconhecedores da reunião havida com os chefes persas; masaqueles a que se dirigiram, supondo que as propostas dos Persaseram dirigidas unicamente a eles, repeliram-nasdesdenhosamente, não querendo trair a causa comum.

XI — Logo a seguir, os Iônios reuniram-se em conselhona ilha de Lade, onde se haviam concentrado, deliberando sobreassuntos relacionados com a sua segurança, examinandopareceres e discutindo sugestões. Dionísio, chefe dos Fócios,que tomava parte na reunião, dirigiu-se aos presentes nestestermos: “Nossos interesses, Iônios, estão suspensos por um fio.Não há, para nós, meio termo entre a liberdade e a escravidão,mesmo a escravidão em que gemem os escravos fugitivos.Lutando pela liberdade, sofrereis no presente, suportando ostrabalhos e as fadigas da guerra; mas, vencidos os vossosinimigos, podereis gozar da condição de homens livres. Se, aocontrário, vos abandonardes à inércia e à desordem, não creioque possais subtrair-vos à punição pela vossa rebeldia. Segui,pois, os meus conselhos; colocai-vos confiantes nas minhasmãos, e eu vos asseguro que, se os deuses mantiverem a balançaem equilíbrio, os Persas não chegarão a atacar-nos, ou se ofizerem, não levarão a melhor”.

XII — Impressionados com essas palavras, os Iôniosconfiaram a Dionísio o comando da frota. Dionísio entregou-se,

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então, ao treinamento das tripulações, realizando pequenasmanobras todos os dias e exercitando os remadores no seuimportante mister. Durante o resto do dia, mantinha os naviosancorados, continuando, porém, o treinamento dos Iônios, nãolhes dando um momento de descanso. Os Iônios mantiveram-seobedientes a tudo durante sete dias, mas no oitavo dia, abatidospela fadiga e pelo ardor do sol, deram vazão às suas queixas,expressando-se desta maneira: “Que deus teríamos ofendidopara sermos submetidos a tantas torturas? Teríamos perdido arazão para nos entregarmos às mãos de um fócio presunçoso,que nos domina e sobrecarrega de trabalhos penosos, emboratenha contribuído com apenas três navios para a nossa causacomum. Muitos de nossos companheiros já foram vitimados pormoléstias, enquanto outros estão delas ameaçados. Qualqueroutro mal é preferível a este. A servidão que nos espera serámenos penosa do que a que experimentamos atualmente.Insurjamo-nos, Iônios! Não lhe obedeçamos mais!” Ante aquelebrado de rebeldia que lhes calou fundo no pensamento, osIônios deixaram de obedecer, e, erguendo tendas na ilha, ali sedeixaram ficar, não querendo mais voltar para os navios nemcontinuar os exercícios.

XIII — Os generais de Samos, informados da condutados Iônios e da desordem que reinava entre eles, aceitaram aproposta de Eácio, filho de Silóson, que já lhes tinha pedido, daparte dos Persas, que renunciasse à confederação dos Iônios. Eassim procederam com tanto maior boa vontade quanto lhesparecia impossível levar vantagem sobre um soberano tãopoderoso como Dario e por saberem que, se a frota persa fossederrotada, viria outra cinco vezes mais poderosa. Assim, aosaberem da má conduta dos Iônios, aproveitaram a oportunidadepara abandoná-los, considerando a conservação dos seusedifícios sagrados e profanos como uma grande vantagem. EsseEácio, cuja proposta fora aceita pelos generais de Samos, erafilho de Silóson e neto de Eácio. Tinha sido tirano de Samos,sendo despojado da soberania por Aristágoras de Mileto, que

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agiu da mesma maneira com relação a outros tiranos da Iônia.

XIV — Quando os Fenícios fizeram avançar seus navioscontra os Iônios, estes lhes foram ao encontro, mantendo osnavios em fila e avançando numa frente estreita. As duas frotasaproximaram-se velozmente uma da outra, e o combatecomeçou. Não sei dizer quais dos Iônios, nessa batalha, semostraram cobardes ou valentes, pois eles se acusammutuamente. Quanto aos combatentes de Samos, dizem que,abrindo velas, abandonaram as fileiras, como foraconvencionado, singrando na direção de Samos, exceto dozedos seus navios, cujos comandantes, recusando-se a obedecer aseus chefes, mantiveram-se na luta e foram derrotados. OConselho Geral de Samos ordenou que, em memória dessa belaação, fosse erguida uma coluna tendo gravados os nomesdaqueles combatentes e de seus ancestrais, como umtestemunho de seu valor. Essa coluna ergue-se na praça públicada cidade de Samos. Os Lésbios, vendo os combatentes deSamos, que se achavam ao lado deles, abandonar a luta,retiraram-se também, sendo o seu exemplo seguido por grandenúmero de Iônios.

XV — Entre os que sustentaram o combate, oscombatentes de Quios foram os mais castigados, por nãoquererem ceder ante o inimigo poderoso, lutando comdesassombro e praticando ações notáveis. Tinham fornecido,como já disse anteriormente, cem navios aos seus aliados,levando cada um quarenta combatentes, escolhidos entre osmais bravos cidadãos de Quios. Embora vendo-se abandonadospela maior parte dos seus aliados, mantiveram-se firmes na luta,passando duas vezes entre os navios inimigos, voltando à cargae aprisionando um bom número deles, até que, privados damaioria dos seus, retiraram-se da batalha, refugiando-se na ilhacom os que lhes restavam.

XVI — Aqueles cujos navios desarvorados não podiam

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segui-los, vendo-se perseguidos, fugiram em direção a Mícale,onde abandonaram suas embarcações, continuando a viagempor terra. Chegando ao território de Éfeso, dirigiram-se, ao cairda noite, para a cidade, justamente na ocasião em que asmulheres dali celebravam as Tesmofórias(1). Os Efésios, queainda não estavam informados do que havia acontecido aos deQuios, vendo aquelas tropas invadir-lhes a cidade, julgaramtratar-se de bandidos que lhes vinham arrebatar as mulheres, e,lançando-se todos sobre os infelizes fugitivos, massacraram-nosimpiedosamente.

XVII — Dionísio da Fócia, ao saber perdida a causa dosIônios, apossou-se de três navios dos inimigos e deu-se pressaem fugir, não para a Fócia, pois estava certo de que essa cidadeseria reduzida à servidão com o resto da Iônia, mas diretamentepara a Fenícia, de onde velejou para a Sicília, depois de haverposto ao fundo alguns navios mercantes, não sem antesapoderar-se do dinheiro que levavam. Tomando gosto pelaaventura, entregou-se à pilhagem, principalmente contra asembarcações cartaginesas e as tirrênias, mas poupando asgregas.

XVIII — Batida a frota iônia, os Persas sitiaram Miletopor terra e por mar, atacando essa praça com toda sorte demáquinas de guerra. Finalmente, depois de haverem minado asmuralhas que a protegiam, conseguiram tomá-la de assalto,submetendo todos os habitantes à servidão, justamente seis anosdepois da revolta provocada por Aristágoras, realizando-seassim a predição do oráculo com relação a essa cidade.

XIX — Tendo os Árgios enviado delegados a Delfospara consultar o oráculo sobre a sorte dessa cidade, o deusformulou uma resposta que, em parte, lhes dizia respeito, e emparte, aos Milésios. Mencionarei, no momento oportuno, a quese referia aos Árgios. A resposta concernente aos Milésiosestava concebida nos seguintes termos: “E tu, cidade de Mileto,

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subjugada por máquinas poderosas e de estranho desígnio,tornar-te-ás rica presa para muita gente. Tuas mulheres lavarãoos pés a muitos homens de longas cabeleiras, e outras cuidarãodo nosso templo em Dídimo”(2). Foi esse o oráculo a que acimame referi e que se cumpriu com o ataque dos Persas àmencionada cidade, cujos habitantes foram, na sua maioria,trucidados pelos vencedores, que usavam cabelos longos,enquanto que suas mulheres e filhos foram feitos escravos, e orecinto sagrado, o templo e o oráculo pilhados e queimados.

XX — Os Persas levaram para Susa os prisioneirosfeitos entre os Milésios, e Dario, sem mais hostilizá-los,enviou-os para Ampéia, no litoral da Eritréia, junto àembocadura do Tigre, onde eles fixaram sua nova moradia. Osvencedores Persas reservaram para si as cercanias e a planíciede Mileto, entregando as montanhas aos Cários de Pédaso.

XXI — Os Sibaritas que habitavam Laos e Cidra, depoisde expulsos de sua cidade, não se conduziram com relação aosMilésios oprimidos pelos Persas, como aqueles se haviamcomportado para com eles. Com efeito, quando Síbaris foitomada pelos Crotonianos, os Milésios de todas as idadesrasparam a cabeça, como manifestação de profundo pesar, poisera grande a amizade que ligava as duas cidades. Já osAtenienses, ao terem conhecimento da tomada de Mileto,mostraram-se consternados, testemunhando sua dor de milmaneiras. No teatro, por ocasião da representação de umatragédia de Frinico, que tinha por tema a captura daquelacidade, os espectadores debulharam-se em lágrimas, sendo opoeta condenado a pagar uma multa de mil dracmas por haverrelembrado aos povos aquela imensa desgraça que ele sentiacomo se sua própria fora. Além disso, a peça ficou proibida deser representada em Atenas por quem quer que fosse.

XXII — Os habitantes de Samos mais ricos e maisinfluentes não apreciaram a conduta dos seus generais com

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relação aos Medos. Reunindo-se em conselho depois da batalhanaval, resolveram ir estabelecer-se em outra parte, antes dachegada de Eácio, receosos de, ali permanecendo, caírem sob ojugo deste e também dos Medos. Quase ao mesmo tempo, osZancleus da Sicília enviavam delegados à Iônia, convidando osIônios a virem estabelecer-se em Calactéia, onde pretendiamconstruir uma cidade iônia. Essa região pertencia aos Sículos eestá situada na parte extrema da Sicília voltada para a Tirrênia.Os habitantes de Samos foram os únicos a atender a esseconvite, partindo para ali em companhia de alguns Milésios quehaviam escapado à devastação e à ruína de sua pátria.

XXIII — Enquanto os habitantes de Samos que sedirigiam para a Sicília contornavam o litoral da região habitadapelos Lócrios-Epizefírios, os Zancleus e Sites, seu rei, faziam ocerco de uma cidade da Sicília, que pretendiam destruir.Sabedor disso, Anaxilau, tirano de Régio e que então seencontrava em demanda com os Zancleus, veio ao encontro dosretirantes de Samos, sugerindo-lhes que renunciassem àCalactéia e se apoderassem de Zancle, naquele momento quasedesprovida de defensores. Os retirantes aceitaram a sugestão eapoderaram-se daquela cidade. Assim que os Zancleus tiveramconhecimento desse fato, chamaram em seu socorro Hipócrates,tirano de Gela, de quem eram aliados. Esse soberano acorreucom um forte exército, mandando, antes, pôr a ferros Sites,tirano dos Zancleus, que acabava de perder seus Estados, ePitógenes, irmão do mesmo, enviando os dois a Inuca. Feitoisso, em vez de socorrer os Zancleus, entregou-os aos captoresde Zancle, depois de haver combinado com eles, com uma trocade juramentos, a partilha dos bens existentes na cidade, ficandoele com a metade dos móveis e dos escravos que se achavam nacidade e com tudo que se achasse nos campos. Em seguida,Hipócrates mandou pôr a ferros a maioria dos Zancleus,tratando-os como escravos, entregando trezentos dos maisinfluentes dentre eles aos naturais de Samos, para que estes osmatassem, mas que, entretanto, os pouparam.

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XXIV — Sites, o monarca dos Zancleus, fugiu de Inucapara Hímera, de onde passou para a Ásia, indo juntar-se aDario. O soberano considerou-o o mais honesto dos gregos quejá tinham vindo à sua corte, porquanto ali tinha voltado depoisde haver estado na Sicília com a sua permissão. Sites morreu develhice, gozando, até a sua morte, da maior felicidade entre osPersas, que muito o estimavam.

XXV — Os habitantes de Samos que se haviam furtadoao jugo dos Medos apoderaram-se sem grande esforço da belacidade de Zancle. Vitoriosos na batalha naval, cujo objetivo eraa retomada de Mileto, os Persas fizeram com que regressasse aSamos, reconduzido pelos Fenícios, Eácio, filho de Silóson, aquem muito estimavam e que lhes havia prestado valiososserviços. Somente os habitantes de Samos não foram punidos,pela revolta, com a destruição de sua cidade e de seus templos,porque os seus navios se tinham retirado durante o combatenaval. Depois de retomarem Mileto, os Persas apoderaram-se daCária, cujos habitantes submeteram-se ao seu jugo, unsvoluntariamente, outros pela força.

XXVI — Enquanto Histeu de Mileto interceptava, nasvizinhanças de Bizâncio, as embarcações dos negociantes iôniosque deixavam o Ponto Euxino, chegou-lhe a notícia do desastrede Mileto. Sem perda de tempo, confiou a Bisalte, filho deApolofanes, de Abido, os interesses do Helesponto, e abriuvelas para Quios com os Lésbios que tinha sob suas ordens.Como a guarnição da cidade se negasse a recebê-lo, deu-lhecombate no lugar denominado Celes, matando grande partedaqueles que a compunham; e partindo de Policna, de que setinha apoderado, subjugou, com o auxílio dos Lésbios, o restodos habitantes da ilha, já tão duramente castigados na batalhanaval contra os Persas.

XXVII — Quando uma nação ou uma cidade estádestinada a sofrer uma grande desgraça, essa desgraça é

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geralmente precedida de certos sinais. Assim, os habitantes deQuios sentiram os prenúncios do que de mau lhes ia acontecer.De um coro de cem jovens enviados a Delfos, apenas doisregressaram; os outros noventa e oito morreram de peste. Quasena mesma ocasião, pouco antes do combate naval, o teto de umaescola ruiu sobre as crianças que ali estudavam, e de cento evinte que eram, somente uma escapou. Esses presságios que aDivindade lhes enviou foram logo seguidos pela derrota sofridana batalha naval, de que resultou a perda da sua cidade; e emseguida surgia Histeu com os Lésbios para subjugá-los com amaior facilidade, tão esgotados já se achavam eles.

XXVIII — Cheio de confiança em si próprio pelos seusprimeiros sucessos, Histeu dirigiu-se de Quios para Tasos comum grande número de Iônios e de Eólios. Enquanto organizavao cerco, teve notícia de que os Fenícios haviam deixado Miletopara atacar as outras praças da Iônia. Erguendo o cerco deTasos, dirigiu-se precipitadamente para a ilha de Lesbos comtodas as tropas de que dispunha; mas, faltando-lhe provisões e afome já começando a se fazer sentir, passou-se para ocontinente, em busca do trigo de Atárnea e da planície doCaíque, cuja colheita pertencia aos Mísios. Harpages, persa denascimento, que se achava por acaso naquelas paragens, à testade um grande exército, lançou-se contra Histeu no momento emque este desembarcava, dizimando grande parte de suas tropas efazendo-o prisioneiro, da maneira que passo a relatar.

XXIX — A batalha teve lugar em Malena, na Atárnea,Os Gregos resistiram durante muito tempo, até que a cavalariapersa, caindo sobre eles, pô-los em fuga. Os Persas deveram,pois, essa vitória à sua eficiente cavalaria. A esperança de umperdão alimentada por Histeu inspirou-lhe tal desejo de viverque, vendo-se aprisionado na fuga por um soldado e prestes aser trespassado pela espada- deste, deu-se a conhecer,dizendo-lhe, em persa, ser Histeu de Mileto.

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XXX — Estou convencido de que se o conduzissem àpresença de Dario logo que o aprisionaram, longe de sofrer umcruel tratamento, teria sido perdoado pela sua rebeldia. Foi,pois, receando que, em lugar de ser punido, ele reconquistasseos favores de Dario, que Artafernes, governador de Sardes, eHarpages, de quem Histeu era prisioneiro, mandaramcrucificá-lo assim que chegaram a Sardes, embalsamando-lhe acabeça e enviando-a a Dario, em Susa. O soberano, posto aocorrente do que se passara, lamentou amargamente talprocedimento, mostrando-se pesaroso de não lhe terem trazidovivo o prisioneiro. Depois de mandar lavar a cabeça,determinou que a amortalhassem de maneira honrosa e lhedessem sepultura, como se tivesse pertencido a um homem quehouvesse prestado grandes serviços aos Persas e a ele próprio,Dario. Tal o fim de Histeu de Mileto.

XXXI — Depois de haver passado o Inverno nasimediações de Mileto, a frota persa abriu velas de novo,apoderando-se facilmente das ilhas vizinhas ao continente, deQuios, Lesbos e Tênedos. Na captura dessas ilhas, os Persasusaram de um processo bastante eficiente: envolviam oshabitantes como numa rede, tornando-lhes impossível a fuga.Essa manobra era o que se podia imaginar de mais simples:mantinham-se de mãos dadas e estendiam-se de um extremo aooutro da ilha, percorrendo-a assim por todos os pontos e dandocaça aos habitantes. Apoderaram-se também, e com a mesmafacilidade, das cidades iônias do continente, não porém pelomesmo processo, que ali redundaria impraticável.

XXXII — Cumprindo as ameaças que haviam feito aosIônios quando os dois exércitos se defrontaram, os generaispersas, logo que se assenhorearam das cidades iôniasescolheram os mais belos meninos para torná-los eunucos eapoderaram-se das mais belas jovens, enviando-as ao seusoberano; e, não contentes com isso, atearam fogo aos edifíciose aos templos. Assim foram os Iônios subjugados pela terceira

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vez, depois de o haverem sido pelos Lídios e pelos própriosPersas.

XXXIII — Deixando a Iônia, a frota persa submeteuextensa faixa do Helesponto, situada à esquerda. A região àdireita, no continente, havia sido dominada antes pelos Persas.Em seguida, apoderou-se da parte do Helesponto situada naEuropa, do Quersoneso e de todas as suas cidades, de Perinto,dos castelos da Trácia, da Selímbria e de Bizâncio. OsBizantinos e os Calcedônios, que habitam a orla oposta, nãoesperaram a frota fenícia; abandonaram suas cidades erefugiaram-se na região litorânea do Ponto Euxino, ali fundandoa cidade de Mesêmbria. Os Fenícios, depois de terem percorridotoda essa região e de incendiar tudo que encontravam à suapassagem, voltaram-se em direção à Proconesia e Artacéia,incendiando-as também. Logo em seguida retornaram aQuersoneso, a fim de destruir as cidades poupadas no primeiroassalto. A cidade de Cizico, todavia, escapou da destruição,porque seus habitantes, informados da vinda das hordasfenícias, apressaram-se a assinar um tratado de obediência aorei por intermédio de Ebares, filho de Megabases, governadorde Dascílio. No Quersoneso, porém, os Fenícios subjugaramtodas as cidades, com exceção de Cárdia.

XXXIV — Milcíades, filho de Címon e neto deEsteságoras, reinava, então, sobre essas cidades, havendorecebido o poder de Milcíades, filho de Cípselo, que haviaadquirido a soberania da maneira que passo a expor. OsDolôncios, povo da Trácia, mantinham o Quersoneso sob o seudomínio. Acossados pelos Apsíntios, com os quais se achavamem guerra, enviaram seus reis a Delfos para consultarem ooráculo, aconselhando-os a pitonisa a levarem consigo, parafundarem uma colônia na região, o primeiro homem que, aosaírem do templo, lhes oferecesse hospedagem. Os Dolônciosretornaram pela Via-Sacra, atravessaram a Fócida e a Beócia(3),e, como ninguém lhes oferecesse hospedagem, seguiram em

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direção a Atenas.

XXXV — Pisístrato gozava, então, em Atenas, de umpoder soberano. Milcíades também tinha ali alguma autoridade.Era de estirpe ilustre, concorrendo com quatro cavalos para osJogos Olímpicos(4). Descendia de Éaco e Egina(5), tendo suafamília, em época mais recente, obtido a cidadania ateniense, apartir de Fileu, filho de Ajax, o primeiro desse tronco atornar-se cidadão de Atenas. Milcíades, achando-se um diasentado à porta de sua residência, viu passar os Dolôncios quehaviam ido consultar o oráculo de Delfos.

Reconhecendo, pelas vestes e pelas lanças, serem elesestrangeiros, chamou-os e ofereceu-lhes hospedagem. OsDolôncios aceitaram, e, vendo-se bem tratados, revelaram-lhe ooráculo, pedindo-lhe que obedecesse ao deus. Milcíadesaquiesceu tanto mais facilmente quanto já se sentia desgostosocom o domínio de Pisístrato e desejava afastar-se da pátria, edirigiu-se imediatamente a Delfos, a fim de perguntar aosoráculos se devia realmente atender às súplicas dos Dolôncios.

XXXVI — Tendo a pitonisa respondido favoravelmente,Milcíades, filho de Cípselo, detentor, nos Jogos Olímpicos, doprêmio da corrida de carro a quatro cavalos, reuniu todos osAtenienses que quiseram tomar parte na expedição, eembarcando com eles e os Dolôncios, foi fundar a nova colônia,da qual acabou por tornar-se chefe e feito mais tarde tiranopelos que o haviam acompanhado. Começou por fechar, comuma muralha, o istmo do Quersoneso, estendendo-a, depois, deCárdia a Páctias, para interditar a entrada aos Apsíntios eimpedi-los de devastar suas terras. O istmo, nesse ponto, medetrinta e seis estádios, e o Quersoneso mede, a partir do istmo,quatrocentos e vinte estádios de extensão.

XXXVII — Depois de haver fechado a entrada doQuersoneso por uma muralha que a punha ao abrigo dasincursões dos Apsíntios, Milcíades lançou-se sobre os

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Lampsacênios. Estes, porém, armaram-lhe uma emboscada,aprisionando-o. Sabedor disso, Creso, rei da Lídia, que muito oestimava, enviou ordens aos Lampsacênios para que olibertassem, ameaçando-os de cortá-los como aos pinheiros,caso não obedecessem. Os Lampsacênios ficaram indecisos,sem compreender o sentido dessa ameaça do soberano(6), atéque um dentre eles, idoso e mais experiente, entendeu-lhe osignificado e o esclareceu aos seus aflitos concidadãos,explicando-lhes que, de todas as árvores, o pinheiro é a únicaque, uma vez cortada, não brota mais, morrendocompletamente(7). Entendendo, afinal, a ameaça contida nasordens de Creso e temendo o poderio deste, os Lampsacêniospuseram Milcíades em liberdade.

XXXVIII — Graças à intervenção de Creso, Milcíadesreconquistou a liberdade; mas faleceu pouco depois, sem deixarfilhos, legando o principado e as riquezas ao seu sobrinhoEsteságoras, filho de Címon, seu irmão uterino. Os habitantesdo Quersoneso ofereceram-lhe sacrifícios depois de sua morte,como é de uso fazer tratando-se de um fundador de cidades, einstituíram, em sua honra, corridas de carros e jogos gímnicos,em que não é permitido aos Lampsacênios disputarem o prêmio.Os habitantes do Quersoneso estavam ainda em guerra contraLâmpsaco, quando Esteságoras morreu também, sem deixardescendentes, vitimado por um golpe de machado na cabeça,que lhe desferiu, no interior do Pritaneu, um indivíduo quepassava por trânsfuga, mas que no fundo era um inimigoviolento.

XXXIX — Perecendo Esteságoras em tão trágicascircunstâncias, os partidários de Pisístrato enviaram aQuersoneso, num trirreme, Milcíades, filho de Címon e irmãode Esteságoras, para assumir as rédeas do governo. Eles já ohaviam tratado com afabilidade em Atenas, como se nãotivessem tomado parte no assassínio de seu pai Címon, emcircunstâncias que detalharei mais adiante. Chegando a

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Quersoneso, Milcíades conservou-se encerrado no palácio, sobo pretexto de honrar a memória do irmão. Sabedores disso, osque dispunham de alguma autoridade no Quersoneso vieramjuntos, de todas as cidades, testemunhar ao soberano a sua dor.Este, assim que os teve ao seu alcance, mandou prendê-los atodos, tornando-se, assim, senhor absoluto do Quersoneso,mantendo, para sua segurança, uma guarda de quinhentoshomens. Desposou, pouco depois, Hegesipila, filha de Oloro,rei da Trácia.

XL — Havia pouco tempo que Milcíades, filho deCímon, tinha chegado a Quersoneso, quando sobrevieramquestões que o deixaram em situação extremamente delicada,abalando o seu prestígio. Com efeito, três anos depois dessesacontecimentos, ele se via na contingência de fugir do país antea aproximação dos Citas nômades, que, irritados com a invasãode Dario, se tinham reunido num só corpo de exército,avançando até o Quersoneso. Milcíades, não ousando fazer-lhesfrente, abandonou o poder, mas, retirando-se os Citas, osDolôncios foram buscá-lo, restabelecendo-o no trono..

XLI — Pouco mais tarde, tendo sabido que os Feníciosestavam em Tênedos, Milcíades mandou carregar cincotrirremes com os tesouros que possuía e abriu velas para Atenas.Partindo da cidade de Cárdia, atravessou o golfo Melas, mas,quando se afastava da costa do Quersoneso, os Fenícios caíramsobre ele. Logrando salvar-se do inesperado ataque, Milcíadesrefugiou-se, com quatro navios, em Imbros; mas Metioco, seufilho mais velho, que comandava o quinto, foi perseguido pelosFenícios e aprisionado, juntamente com a embarcação. Nasceraele de outra mulher que não a filha de Oloro, rei da Trácia. OsFenícios, descobrindo que se tratava de um filho de Milcíades,levaram-no à presença de seu soberano, acreditando que esteficaria muito satisfeito com a presa, tanto mais que, noConselho dos Iônios, Milcíades tinha opinado a favor dos Citascom relação às propostas destes para o rompimento da ponte de

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batéis. O soberano, porém, em lugar de maus tratos, cumulou ojovem de bens, deu-lhe uma casa e terras, e fê-lo desposar umamulher persa, da qual ele teve vários filhos, que vieram a gozardos mesmos privilégios concedidos aos Persas.

XLII — De Imbros, Milcíades passou-se para Atenas,justamente na ocasião em que os Persas deixaram de hostilizaros Iônios, aplicando-se à tarefa de dar leis úteis ao país.Artafernes, governador de Sardes, enviou delegados às cidadesiônias e obrigou-as, por um tratado, a resolverem suaspendências pelo direito, ao invés de usarem de violência esaque. Mandou, em seguida, medir as terras por parasangas,medida usada na Pérsia e equivalente a trinta estádios, eregulamentou os impostos atribuídos a cada cidade. Essesimpostos continuam a ser pagos até o presente, de acordo com aregulamentação de Artafernes, que pouco diferia daestabelecida anteriormente. Tais disposições se destinavam apôr fim às desordens ali reinantes.

XLIII — Na Primavera seguinte, o soberano destituiu docomando do exército os generais que então o detinham,nomeando, em seu lugar, Mardônio, filho de Góbrias.Mardônio, que era jovem e acabava de desposar Artozostra,filha de Dario, dirigiu-se para o litoral com poderosas forças deterra e mar. Chegando à Cilícia com todas essas forças,embarcou com o resto da frota, enquanto o exército de terraavançava para o Helesponto sob as ordens de outros generais.Depois de haver contornado a Ásia, Mardônio foi ter à Iônia,onde realizou algo que muito surpreendeu os Gregos que nãoquiseram convencer-se de que na assembléia dos sete persasOtanes houvesse opinado pela implantação de um governodemocrático, como o mais vantajoso: depôs os tiranos da Iôniae estabeleceu nas cidades a democracia. Feito isso, dirigiu-separa o Helesponto, e reunindo uma grande quantidade de naviose de tropas, atravessou o Helesponto e rumou para a Europa,tendo em mira a Erétria e Atenas.

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XLIV — Essas duas praças eram, com efeito, o principalobjetivo dessa expedição dos Persas, que tinham a intenção desubjugar o maior número de cidades gregas possível. Enquantoa frota submetia os Tásios, sem encontrar a menor resistência, oexército reduzia à servidão os Macedônios que ainda seconservavam livres. Deixando Tasos, a frota contornou ocontinente do lado oposto, até Acanto, de onde partiu paradobrar o monte Atos. Quando por ali passava, o vento nortepôs-se a soprar com tremendo ímpeto, açoitando asembarcações e impelindo-as de encontro ao monte. Dizem quetrezentas dessas embarcações naufragaram ali, perecendo maisde vinte mil homens, uns arrebatados pelos monstros marinhosque existem em grande número naquela zona; outros esmagadosde encontro aos rochedos; outros de frio, e outros por nãosaberem nadar. Tal o triste fim dessa grande armada.

XLV — Enquanto Mardônio acampava na Macedôniacom as forças de terra, os Trácios-Briges, surgindo da escuridãoda noite, lançaram-se sobre elas, fazendo grande mortandade eferindo o próprio Mardônio. Não se furtaram, porém, com essasortida, à sorte que os aguardava. Mardônio não deixou o paísenquanto não os subjugou. Submetido esse povo, regressou àPérsia com o que restava de seus exércitos de terra e de mar, oprimeiro rudemente castigado pelos Briges, e o segundoaçoitado com perdas consideráveis pela tempestade junto aomonte Atos. Mardônio viu-se, assim, forçado a regressar à Ásia,com as suas forças em condição precária.

XLVI — Um ano depois desses acontecimentos, osTásios foram acusados pelos seus vizinhos de estarem tramandouma revolta. Dario ordenou-lhes que destruíssem as muralhasque haviam erguido e enviassem para Abdera todos os naviosque possuíam. Os Tásios, que já haviam sido sitiados por Histeude Mileto, tinham empregado as grandes riquezas de quedispunham na construção de navios de guerra e para cercar asua cidade de muralhas mais sólidas do que as anteriores. Essas

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riquezas provinham do continente e das minas existentes nailha. As minas de ouro de Escapetéia-Hiléia rendiamnormalmente cerca de oitenta talentos, e as das outras ilhas nãorendiam menos. O produto dessas minas era realmenteconsiderável, e os Tásios, tendo permanecido durante muitotempo isentos do pagamento de impostos sobre os gênerosalimentícios, chegaram a obter delas uma renda anual deduzentos talentos e até mesmo de trezentos.

XLVII — Tive ocasião de ver essas minas. As maisnotáveis de todas eram as descobertas pelos Fenícios quepovoaram com Tasos essa ilha, a que este último deu o seunome. Estão situadas entre Cenira e uma localidade denominadaEnira. Diante da ilha de Samotrácia ergue-se uma grandemontanha semidestruída pelas escavações precedentes.

XLVIII — Os Tásios, curvando-se às ordens de Dario,destruíram suas muralhas e conduziram seus navios paraAbdera. O soberano sondou, em seguida, os Gregos, para ver seeles tinham a intenção de fazer-lhe guerra ou de se submeteremao jugo persa. Enviou emissários a uma costa e a outra daGrécia, para pedirem, em seu nome, terra e água. Despachououtros para as cidades marítimas que lhe pagavam tributos,ordenando-lhes que construíssem navios de guerra e batéis parao transporte de cavalos.

XLIX — Chegando à Grécia, os emissáriosdesincumbiram-se de sua missão, tendo vários povos docontinente, assim como das ilhas, cedido à solicitação dosoberano. O exemplo foi seguido por outros insulares, entre osquais os Eginetas. Os Atenienses, logo que souberam que osEginetas haviam consentido no pacto de submissão ao soberano,ficaram revoltados com tal conduta, e julgando ser ela fruto doódio que lhes votava esse povo e do seu desejo de atacá-los deconcerto com os Persas, aproveitaram o pretexto para acusarEsparta de trair a Grécia.

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L — Ante essa acusação, Cleómenes, filho deAnaxandrides, rei de Esparta, dirigiu-se a Egina, com opropósito de prender os mais culpados, mas os Eginetas a issose opuseram, destacando-se entre eles Crios, filho de Policrito,que declarou que nenhum egineta seria levado daliimpunemente, e que ele, Cleómenes, estava agindo sem oconsentimento da república de Esparta e somente por instigaçãodos Atenienses, que o haviam subornado, pois de outra maneirateria vindo com outro rei para prendê-los. Usando dessalinguagem, Crios seguia as ordens recebidas de Demarato.Cleómenes viu-se assim obrigado a deixar a ilha de Egina; masantes de partir perguntou a Crios o seu nome, e como este odissesse, limitou-se a observar-lhe: “Pois bem, Crios, preparabem os teus cornos, pois terás de lutar contra um rudeadversário”.

LI — Demarato, filho de Aríston, que haviapermanecido durante esse tempo na cidade e que era também reide Esparta, acusava, por sua vez, Cleómenes, seu colega. Osdois príncipes tinham a mesma origem, mas a família deEurístenes, por ser mais antiga, gozava de maior consideração.

LII — Os Lacedemônios(8), que não estavam, nesseponto, absolutamente de acordo com os poetas, pretendem nãoterem sido conduzidos para o país em que hoje vivem, pelosfilhos de Aristodemo, mas pelo próprio Aristodemo, filho deAristômaco, neto de Cleodeus e bisneto de Hílus; e que poucotempo depois, Argia, mulher de Aristodemo, filha de Autésion,neta de Tisâmeno, bisneta de Tersandres e tetraneta de Polinice,deu à luz dois filhos gêmeos. Aristodemo mal conheceu as duascrianças, pois adoeceu gravemente, para morrer logo emseguida. Os Lacedemônios de então resolveram, em conselho,entregar a coroa, segundo a lei, ao filho mais velho dosoberano; mas, não podendo distinguir um do outro, pois separeciam extraordinariamente, e não sabendo qual o mais velhoe qual o mais moço, pois que eram gêmeos, interrogaram Argia,

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a mãe, que declarou não saber, ela própria, distingui-los de ummodo ou de outro. Argia deu-lhes essa resposta, não porque defato não o soubesse, mas porque desejava que ambos os filhosfossem declarados reis. Nessa incerteza, os Lacedemôniosmandaram consultar o oráculo de Delfos sobre de que maneiradeviam conduzir-se, ordenando-lhes a pitonisa queconsiderassem as duas crianças como reis, tributando, porém,maiores honras ao mais velho. Continuando os Lacedemôniosembaraçados quanto a saber qual a mais velha, um messênio denome Panites aconselhou-os a observar a conduta da mãe comrelação às crianças: se ela lavasse e amamentasse uma antes daoutra, eles teriam nas mãos a chave do problema; mas sedispensasse tais cuidados a ambas indistintamente, seriaevidente a ignorância em que também se encontrava no caso, eeles teriam, então, de tomar outras medidas. Seguindo oconselho do messênio, os Lacedemônios puseram-se a observarArgia com relação ao seu procedimento para com os filhos.Notando qual o contemplado sempre em primeiro lugar com oscuidados maternos, consideraram-no o mais velho eproclamaram-no publicamente o seu novo rei, dando-lhe onome de Eurístenes, enquanto o irmão recebia o de Procles.Dizem que esses dois príncipes, quando crescidos, nuncaestiveram de acordo, embora irmãos, e que essa divergênciasubsiste igualmente entre os seus descendentes.

LIII — É isso o que contam os Lacedemônios. OsGregos referem-se a esses fatos de maneira diversa, e fazemuma enumeração exata dos reis dórios até Perseu, filho deDanéia, sem incluir na mesma o deus(9), provando serem elesGregos, pois desde os primeiros tempos já eram contados nonúmero dos Gregos. Disse eu que a origem desses reis dóriosremontava a Perseu, sem querer avançar mais, porquanto esseherói não tem pai mortal a quem se possa atribuir umsobrenome, como se dá com Anfitrião com relação a Hércules.Tenho, pois, razão para dizer até Perseu; mas se ao chegar aDanéia, filha de Acrísio, investigarmos os seus ancestrais,

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verificaremos que os chefes dórios são originários do Egito. Éassim que os Gregos se referem à sua genealogia.

LIV — De acordo, porém, com as tradições dos Persas,Perseu era assírio, tornando-se grego depois, embora seus paisnão o fossem. Concordam, assim, não existir nenhumparentesco entre Perseu e os ancestrais de Acrísio, egípciossegundo os Gregos.

LV — Não direi como, sendo eles egípcios, vieram atornar-se reis dos Dórios, outros já o disseram antes de mim.Mencionarei apenas fatos a que outros não fizeram menção.

LVI — Os Espartanos concederam aos seus reis asseguintes prerrogativas: dois sacerdócios — o de JúpiterLacedemônio e o de Júpiter Urânio — e o privilégio de fazerguerra a quem entendessem, sem que nenhum espartano lhespudesse opor obstáculo, sob pena de incorrer em maldição.Quando o exército entra em campanha, os reis marcham nafrente e são os últimos a se retirar. A sua guarda pessoal écomposta de cem homens de elite, e nas suas expedições podemrequisitar a quantidade de gado que quiserem, cabendo-lhes olombo e a pele dos animais imolados. Tais as regalias de quegozam em tempo de guerra.

LVII — Vejamos agora os privilégios que lhes sãoconcedidos em tempo de paz. Se se realiza um sacrifício emnome da cidade, os reis sentam-se no lugar de honra e sãoservidos em primeiro lugar, cabendo-lhes o dobro do que toca acada um dos outros convivas. São também os primeiros a fazeras libações, e a eles pertence, como já disse, as peles dosanimais sacrificados. No dia de lua nova e no sétimo dia do mêsrecebem uma vítima em perfeito estado, que sacrificam notemplo de Apolo. Recebem, além disso, uma medida de farinhade centeio e um quarto de vinho. Um lugar de honra lhes éreservado em todos os jogos(10), e concedem a dignidade deproxenos a quem bem lhes pareça, escolhendo-os, naturalmente,

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entre os seus concidadãos. A cada um é permitido escolher doispitonisos, sustentados às expensas do Estado. Pitoniso é o nomeque se dá ao delegado enviado a Delfos para consultar ooráculo. Quando os reis não tomam parte em festins públicos,recebe cada qual duas medidas de farinha de centeio e um cótilode vinho, e quando ali comparecem, serve-se-lhes uma porçãodupla. Se um particular os convida para uma refeição,presta-lhes as mesmas honras. Os reis são os depositários dosoráculos concedidos, devendo, porém, manter comunicaçãocom os pitonisos. Os assuntos que passamos a mencionar são osúnicos submetidos à decisão dos reis e os únicos que elespodem julgar sem nenhuma interferência. Se uma herdeiraainda não possui noivo escolhido por seu pai, cabe-lhes decidira quem deverá ela desposar. As vias públicas tambémconstituem assunto da competência real. Se alguém quiseradotar uma criança, só poderá fazê-lo em presença do rei. Elesassistem às deliberações do Senado, composto de vinte e oitosenadores, e se não comparecem, os senadores seus parentesmais próximos representam-nos com as prerrogativas reais, istoé, dão mais dois votos além do seu próprio.

LVIII — Tais as honras que a república de Espartatributa aos seus soberanos em vida. Vejamos agora as que lhessão prestadas depois de mortos. Logo que um deles exala oúltimo suspiro, arautos a cavalo percorrem toda a Lacôniaapregoando o triste acontecimento, e as mulheres, em Esparta,percorrem a cidade, batendo em caldeirões. Imediatamente,duas pessoas de livre condição, um homem e uma mulher,correm a envergar trajes de luto. Não podem ser dispensadosdessa obrigação, e se a ela faltarem serão severamente punidos.

Os costumes adotados pelos Lacedemônios comreferência à morte de seus soberanos muito se assemelham aosdos bárbaros da Ásia. A maioria destes observa, com efeito, omesmo cerimonial em ocasião como essa. Quando morre um reida Lacedemônia, certo número de Lacedemônios,

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independentemente dos Espartanos, vindos de todas as partes daLacônia, comparece aos funerais. Reunidos num mesmo localcom os Ilotas e os Espartanos, somando milhares de pessoas,dão fortes pancadas na fronte, homens e mulheres, gritando elamentando-se, nunca deixando de dizer que o rei morto era omelhor dos reis. Se o rei morre na guerra, faz-se uma figuraapresentando a maior semelhança possível com o mesmo, que élevada para a sepultura num leito ricamente ornamentado. Feitoo enterro, o povo interrompe as assembléias, os tribunaisdeixam de funcionar por dez dias, sendo o luto geral duranteesse período.

LIX — Os Lacedemônios possuem ainda isto de comumcom os Persas: ao subir ao trono, o sucessor do rei mortocancela as obrigações que os Espartanos tinham para com otesouro público ou com o próprio soberano. O mesmo se daentre os Persas: o novo soberano cancela os impostos que ascidades deviam por ocasião da morte do rei.

LX — Os costumes dos Lacedemônios apresentamtambém pontos de semelhança com os dos Egípcios. Entre eles,os arautos, os tocadores de flauta, os cozinheiros sucedem ospais na profissão. Os filhos dos tocadores de flauta, dos arautose dos cozinheiros são sempre tocadores de flauta, arautos ecozinheiros. Mesmo que surja alguém com voz mais sonora doque a do filho de um arauto, não haverá preterição.

LXI — Enquanto Cleómenes se ocupava, na ilha deEgina, não somente dos interesses de sua pátria, mas ainda dobem geral da Grécia, Demarato o acusava, menos porconsideração aos Eginetas do que por inveja e ciúme. Revoltadocom essa atitude, Cleómenes decidiu, de volta de Egina,derrubá-lo do trono, intentando contra ele uma ação pelo motivoque passo a expor.

Aríston, rei de Esparta, não tivera filhos das duasmulheres que havia desposado. Convencido de que a culpa

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cabia mais às mulheres do que a ele próprio, casou-se pelaterceira vez. Esse consórcio verificou-se do seguinte modo:Aríston era amigo íntimo de um cidadão de Esparta, cujaesposa, feia na infância, tornara-se, incontestavelmente, a maisbela criatura da cidade. Como seus pais, gente de grandesposses, se afligissem muito com a sua fealdade, sua amaresolveu levá-la todos os dias ao templo de Helena, situado numlocal denominado Terapnéia, adiante do templo de Febo. Todasas vezes que lá ia com a criança, mantinha-se de pé diante daestátua da deusa, pedindo-lhe para tornar bela aquelacriaturazinha. Conta-se que, certo dia, quando a ama voltava dotemplo, uma mulher lhe apareceu, perguntando-lhe o que levavanos braços. Respondendo tratar-se de uma criança, a mulherpediu-lhe insistentemente que a deixasse vê-la. A princípio, aama recusou-se a satisfazer-lhe a vontade, pois os pais damenina tinham-na proibido de mostrá-la a quem quer que fosse;mas a mulher insistiu de tal maneira, que ela acabouaquiescendo. Acrescenta-se ter a mulher acariciado a criança,dizendo que ela seria a mais bela criatura de Esparta. Comefeito, a partir desse dia verificou-se uma transformação total namenina, tornando-se bela e graciosa, e ao chegar à idade decasar ligou-se a Ageto, filho de Alcides e amigo de Aríston.

LXII — Aríston, vivamente apaixonado pela esposa doamigo e desejando-a para si, recorreu ao seguinte ardil paraobtê-la: prometeu a Ageto dar-lhe o que mais lhe agradasseentre todas as coisas que possuía, com a condição deretribuir-lhe o amigo na mesma moeda. Ageto, sem pensar quea proposta pudesse ter relação com a esposa, aceitou-a, sendo oacordo ratificado por meio de juramentos mútuos, após o queAríston deu ao amigo o que havia agradado mais a este entre osseus tesouros, pedindo-lhe, em retribuição, a própria esposa.Ageto, porém, disse-lhe que tal pedido não devia estar incluídono acordo, estando disposto a atendê-lo em tudo o mais quedesejasse. Levado, todavia, pela insistência de Aríston e pelojuramento que fizera, Ageto não teve outro remédio senão

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deixá-lo arrebatar-lhe a esposa.

LXIII — Foi assim que Aríston, abandonando suasegunda mulher, desposou uma terceira, que, algum tempodepois, deu à luz Demarato, antes de decorridos dez meses.Aríston encontrava-se sentado entre os éforos quando um dosseus oficiais lhe veio anunciar que acabava de nascer-lhe umfilho. Sabendo o tempo exato em que havia desposado aquelamulher, Aríston calculou rapidamente o número de meses pelosdedos(11) e exclamou em seguida, sem poder conter-se: “Essacriança não pode ser minha.” Os éforos ouviram-no, mas, nomomento, nenhuma atenção deram às suas palavras. A criançacresceu, arrependendo-se Aríston do que havia tãoimprudentemente afirmado perante os éforos, pois já seconvencera de que o filho era realmente seu. O menino recebeuo nome de Demarato, porque, antes do seu nascimento, toda apopulação de Esparta tinha pedido aos deuses, com insistentespreces, que dessem um filho a Aríston, o mais estimado detodos os soberanos que até ali haviam reinado na cidade.

LXIV — Morrendo Aríston, Demarato sucedeu-o; masos fados haviam, sem dúvida, resolvido que as palavraspronunciadas pelo pai fá-lo-iam perder a coroa. Com efeito,Cleómenes passou logo a detestar o novo soberano, primeiropor haver ele feito regressar o exército de Elêusis, e depois,quando Cleómenes dirigiu-se a Egina para prender os Eginetasque tinham tomado o partido dos Medos.

LXV — Desejando ardentemente vingar-se, Cleómenesprometeu a Leotíquides, filho de Menares e neto de Ágis, domesmo ramo que Demarato, acompanhá-lo a Egina, se eleconseguisse proclamar-se rei no lugar do filho de Aríston.Leotíquides, que odiava mortalmente Demarato, porque,estando noivo de Percales, filha de Quílon e neta deDemarmenes, ele havia obstado o casamento por meio de umardil, afirmou sob juramento, a pedido de Cleómenes, que

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Demarato não era filho de Aríston, não tendo, portanto, direitoalgum sobre a coroa de Esparta. Depois disso, não cessou depersegui-lo, repetindo o que ouvira dizer de Aríston, quando umdos seus oficiais lhe fora anunciar o nascimento de seu filho.Afirmando não ser Demarato filho de Aríston nem rei legítimode Esparta, tomou por testemunha os éforos que se achavampresentes quando Aríston deixou escapar aquelas palavras:“Essa criança não pode ser minha”.

LXVI — Por fim, como se tornassem cada vez maisacaloradas as discussões em torno do assunto, os Espartanosresolveram mandar perguntar ao oráculo de Delfos se Demaratoera realmente filho de Aríston. Sendo o caso levado aoconhecimento da pitonisa por incumbência de Cleómenes, esteobteve, para levar a bom termo o seu plano, a cooperação deCóbon, filho de Aristofanto, que gozava de grande prestígio emDelfos. Cóbon persuadiu Períale, grande sacerdotisa de Apolo,a responder de acordo com os desejos de Cleómenes. Assim,quando os emissários de Esparta interrogaram a pitonisa, eladeclarou que Demarato não era filho de Aríston. Contudo, atrama foi pouco depois descoberta, sendo Cóbon banido deDelfos e Períale, a grande sacerdotisa, demitida de suas funções.

LXVII — Foi assim que agiram para destronarDemarato, que, pouco mais tarde, viu-se forçado a fugir deEsparta e procurar asilo entre os Medos, culpado que fora deuma grande ofensa. Havia ele sido eleito, depois de destituídodo trono, para exercer um cargo na magistratura. Certo dia,quando assistia às Gimnopédias(12), Leotíquides, jáproclamado rei em seu lugar, mandou perguntar-lhe, apenaspara zombar dele e insultá-lo, que tal lhe parecia um lugar demagistrado, depois de haver sido rei. Ofendido com a pergunta,Demarato respondeu que conhecia, por experiência, uma e outrasituação, o que não se dava com ele, Leotíquides. Quanto aoresto, essa pergunta seria, um dia, para os Lacedemônios, fontede mil males ou de bens infinitos. Isso dizendo, retirou-se do

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recinto cobrindo o rosto, e foi para casa. Ali chegando, fez ospreparativos para um sacrifício e imolou um boi a Júpiter.Terminado o sacrifício, mandou pedir à mãe que fosse ter comele.

LXVIII — Quando ela chegou, depôs-lhe nas mãos umaparte das entranhas da vítima, dirigindo-lhe estas palavras emtom suplicante: “Minha mãe, eu vos conjuro por JúpiterHerceu(13) e pelos outros deuses que tomo por testemunhas, adizer-me, sem subterfúgios, quem é o meu verdadeiro pai.Leotíquides afirmou, numa questão que tivemos, que já estáveisgrávida do vosso primeiro marido quando vos casastes comAríston. Outros afirmam coisas mais insultuosas a vossorespeito, dizendo que vós vos entregastes a um almocreve quetínheis a vosso serviço, e que eu sou filho dele. Eu vos conjuro,pois, em nome dos deuses, minha mãe, a dizer-me a verdade. Secometestes alguma das faltas de que vos acusam, não tereis sidoa única; muitas são aquelas que erram. É também voz correnteem Esparta que Aríston não podia ter filhos, pois, em casocontrário, tê-lo-ia tido de suas primeiras mulheres”.

LXIX — “Meu filho, — respondeu ela — já que meforças a dizer a verdade, vou dizê-la sem nenhum disfarce. Naterceira noite depois do meu casamento, um espectro, que muitose parecia com Aríston, deitou-se, comigo no leito, depois doque colocou-me na cabeça as coroas que trazia, retirando-sesilenciosamente. Aríston entrou logo em seguida, e percebendoas coroas perguntou-me quem mas havia dado. Respondi tersido ele próprio, mas ele negou terminantemente. Tornei aafirmar sob juramento, dizendo-lhe não ser muito decente dasua parte manter-se negando, porquanto havia estado comigomomentos antes, ofertando-me as coroas. Ante a minha atitude,reconheceu haver naquilo algo de divino. Ao que supunha, ascoroas tinham sido trazidas da capela do herói Astrábaco,situada junto à porta do pátio do palácio. Inquirindo osadivinhos, estes lhe asseguraram que fora o próprio herói que

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viera ter comigo. Eis aí, meu filho, tudo o que desejavas saber.O herói Astrábaco é o teu pai, és filho dele ou de Aríston, poisfoste concebido naquela noite. Teus inimigos insistem,sobretudo, no fato de haver Aríston, ao receber a notícia do teunascimento, declarado perante várias pessoas que não podias serseu filho, pois ainda não eram transcorridos dez meses. Assimafirmou porque não estava bem instruído sobre o assunto. Asmulheres dão à luz nove meses ou sete meses depois deconceberem, e o próprio Aríston reconheceu isso mais tarde,lamentando as palavras imprudentes que pronunciara naquelaocasião. Quanto a ti, meu filho, eu te pus no mundo ao cabo desete meses. Não dês crédito ao que propalam por aí sobre o teunascimento. O que acabo de dizer-te é a pura verdade. Possa amulher de Leotíquides; possam aquelas que andam por aí apropalar inverdades, dar a seus maridos filhos de almocreves!”

LXX — Inteirado de toda a verdade, Demaratomuniu-se de provisões para uma longa viagem e partiu para aÉlida, pretextando ir consultar o oráculo de Delfos. OsLacedemônios, supondo que ele pretendia fugir, foram em suaperseguição, mas ele, informado disso, passou-se da Élida paraa ilha de Zacinto. Seus perseguidores ali chegaram poucodepois, apossando-se de seus escravos e tentando prendê-los;mas os Zacíntios a isso se opuseram, e ele retirou-se para aÁsia, refugiando-se junto ao rei Dario. O soberano recebeu-obem, dando-lhe terras e cidades.

Foi assim que Demarato foi ter à Ásia, depois de terexperimentado tão dura sorte. Distinguira-se ele sempre, entreos seus concidadãos, pelo seu correto proceder, pela suaprudência e, sobretudo, pelo prêmio na corrida de carro a quatrocavalos, conquistado nos Jogos Olímpicos, honra não alcançadapor nenhum outro rei de Esparta.

LXXI — Demarato foi substituído no trono, como jádissemos, por Leotíquides, filho de Menares. Teve ele um filho

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de nome Zeuxidamo, a que muitos espartanos chamavam deCinisco e que não chegou a reinar em Esparta, pois morreuantes do pai, deixando um filho chamado Arquidamo. Essaperda levou Leotíquides a casar-se. Desposou Euridaméia, irmãde Mênio e filha de Diactorides. Não teve filhos varões, masuma única filha de nome Lampito, que desposou, por vontadeprópria, Arquidamo, filho de Zeuxidamo.

LXXII — Leotíquides não acabou tranqüilamente osseus dias em Esparta, e Demarato foi, de certo modo, vingado,como vou relatar. Comandava ele, na Tessália, o exércitolacedemônio, sendo-lhe muito fácil tornar-se senhor de todo opaís; mas, em vez de prosseguir na empresa, aceitou umagrande soma do inimigo, sendo apanhado em flagrante nopróprio acampamento, sentado sobre um saco de dinheiro.Julgado por crime de suborno, viu-se banido de Esparta, sendo asua casa destruída. Retirou-se para Tégea, onde morreu. Taisfatos, todavia, tiveram lugar muito tempo depois de haver elesubido ao trono.

LXXIII — Cleómenes(14), bem sucedido na sua açãocontra Demarato, juntou-se logo a Leotíquides e foi atacar osEginetas, contra os quais se achava grandemente irritado peloinsulto que deles recebera. Os Eginetas, notificados de que osdois reis vinham atacá-los, consideraram inútil qualquerresistência. Escolhendo então dez dos cidadãos mais influentespelo nascimento e pela riqueza, entre os quais Crios, filho dePolicrites, e Casambo, filho de Aristócrates, que gozavam damaior autoridade na ilha, os dois reis levaram-nos para a Ática,onde os entregaram, como reféns, aos Atenienses, seus maioresinimigos.

LXXIV — Depois dessa expedição, Cleómenes, cujasintrigas contra Demarato tinham sido descobertas, receando acólera dos Espartanos, retirou-se secretamente para a Tessália.Dali dirigiu-se para a Arcádia, onde provocou desordens,

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incitando os Árcades contra Esparta; e, entre outros juramentosque deles exigiu, fê-los prometer que o seguiriam por toda parteonde ele os quisesse conduzir. Sua intenção era levar oscidadãos mais influentes do país à cidade de Nonácris, para alifazê-los jurar pelas águas do Stix, que corre, segundo dizem,nessa cidade da Arcádia. Ao que parece, as águas desse rio sãomuito escassas, caindo gota a gota de um rochedo para um valecercado por uma muralha. Nonácris, onde se encontra essafonte, é uma cidade da Arcádia, perto de Fenéia.

LXXV — Tendo as intrigas de Cleómenes chegado aoconhecimento dos Lacedemônios, estes o chamaram a Esparta,confiando-lhe a autoridade que ele havia exercidoanteriormente; mas Cleómenes, logo ao chegar, foi tomado deloucura furiosa. Aliás, ele nunca fora de espírito equilibrado. Apartir de então, quando encontrava um espartano no seucaminho, batia-lhe no rosto com o cetro. Seus parentes,testemunhas desses desatinos, prenderam-no com entraves demadeira. Numa ocasião em que ele se achava sozinho com umguarda, pediu-lhe uma lança. O guarda recusou-lha a princípio,mas, intimidado pelas ameaças do rei louco, deu-lhe o quepedia. De posse da lança, Cleómenes pôs-se a rasgar as própriaspernas de alto a baixo, passando para as coxas e destas para osquadris, chegando finalmente ao ventre, que golpeoufortemente, morrendo dessa forma. A maioria dos Gregospretende ter sido isso um castigo, por ter ele subornado apitonisa para pronunciar-se contra Demarato. Os Atenienses,por sua vez, afirmam que foi uma punição, por haver elecortado, quando penetrou no território de Elêusis, lenha nobosque consagrado às deusas. Os Árgios, por seu lado, atribuemesse triste fim ao fato de Cleómenes ter arrancado do recintoconsagrado a Argos, os Árgios que ali se haviam refugiadodepois da batalha, fazendo-os passar a fio de espada, depois doque, num momento de desatino, ateou, ele próprio, fogo aobosque.

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LXXVI — Indo, certo dia, consultar o oráculo deDelfos, Cleómenes ouviu da pitonisa a notícia de que viria aapossar-se de Argos. Pôs-se, então, à frente dos Espartanos econduziu-os às margens do rio Erasino, que sai, segundo seafirma, do lago Estinfalo. Dizem que esse lago desaparece numabismo, para surgir novamente no território de Argos,recebendo, daí por diante, o nome de Erasino. Chegando àsmargens do rio, Cleómenes realizou sacrifícios; mas, como asentranhas das vítimas nada anunciassem de favorável no casode ele atravessar o rio, disse que achava justo não querer oErasino trair seus concidadãos, mas que os Árgios não teriammotivo para regozijar-se disso. E tomando um novo caminhocom o exército, conduziu-o à Tiréia, onde imolou um touro aomar. Feito isso, embarcou com as tropas, seguindo para aTiríntia e de lá para Náuplia.

LXXVII — Sabedores dos seus propósitos, os Árgiosdirigiram-se com suas forças para a beira-mar, e chegando pertode Tirins, onde está situada Sépia, assentaram acampamentofrente a frente com os Lacedemônios, a uma pequena distânciados mesmos. Não receavam uma batalha em campo aberto, massim as surpresas e as emboscadas. A resposta que a pitonisahavia dado a eles e aos Milésios estava concebida nestestermos: “Quando a fêmea vitoriosa tiver repelido o macho ehouver conquistado a glória entre os Árgios, então, grandenúmero de mulheres árgias dilacerarão o rosto, de sorte que, umdia, as gerações futuras dirão: Uma serpente pavorosa, com trêspregas no corpo, foi morta a golpes de lança”(15).

O encontro de todas essas circunstâncias fazia com queos Árgios se enchessem de pavor, receando pela sua sorte.Resolveram, por isso, regular seus movimentos pelos do arautodos inimigos. Toda vez que o arauto espartano dava uma ordemaos Lacedemônios, eles executavam a mesma coisa do seu lado.

LXXVIII — Notando que as tropas árgias regulavam-se

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pelo arauto, Cleómenes ordenou aos Lacedemônios que semantivessem de arma em punho quando o arauto desse o sinalde repouso, lançando-se sobre o inimigo. Quando o arauto deu osinal de descanso, as tropas lacedemônias caíram sobre osÁrgios quando estes começavam o repasto, fazendo grandenúmero de mortos. Os que lograram escapar ao massacrerefugiaram-se no bosque consagrado a Argos, ficando, todavia,sob as vistas do inimigo.

LXXIX — Tendo sabido pelos trânsfugas que foram terao seu acampamento, os nomes dos que se haviam refugiado nobosque sagrado, Cleómenes enviou-lhes um emissário, o qual,seguindo as instruções recebidas, chamou-os pelos nomes,dizendo-lhes estar de posse de seu resgate. O resgate é fixado,pelos Peloponésios, em duas minas por prisioneiro. Ouvindo adeclaração do arauto, cerca de cinqüenta árgios saíram dobosque, mandando Cleómenes massacrá-los. Como o bosqueera denso, os que lá permaneceram não puderam ver o queacontecera aos seus companheiros menos avisados. Um deles,porém, subindo a uma árvore para observar o movimento doinimigo, viu o que se passava, e, desde então, foi inútilchamá-los, pois nenhum deles quis deixar o seu refúgio.

LXXX — Vendo malogrado o seu plano deexterminá-los a todos por esse meio, Cleómenes mandou osIlotas amontoarem matéria combustível em volta do bosquesagrado, ateando-lhe fogo. Quando o bosque começou a arder, osoberano perguntou a um dos trânsfugas a quem era elededicado. Ao ouvir a resposta: “A Argos” Cleómenes soltou umprofundo suspiro, exclamando: “Oh Apolo! Vós me enganastesna vossa resposta, dizendo-me que eu me apossaria de Argos.Julgo que o oráculo acaba de cumprir-se!”

LXXXI — Permitindo, em seguida, que a maior parte desuas tropas retornasse a Esparta, mantendo consigo apenas milhomens dos mais bravos, Cleómenes dirigiu-se a Hereu(16),

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para ali fazer um sacrifício. Quando se dispunha a oferecê-lo,ele próprio, no altar, o sacerdote disse-lhe não ser permitido aum estrangeiro sacrificar naquele templo, proibindo-o defazê-lo. Cleómenes, porém, ordenou aos Ilotas que afastassem osacerdote do altar e o fustigassem com vara, depois do quelevou a cabo o seu intento, regressando, em seguida, a Esparta.

LXXXII — Logo que ali chegou, seus inimigosmoveram-lhe um processo junto aos éforos, acusando-o de nãoter-se apoderado de Argos, de fácil captura, porque se haviadeixado subornar. Não posso dizer com segurança se o que eledeclarou em sua defesa era verdadeiro ou falso. Como quer queseja, respondeu o acusado que, como o oráculo se cumprira coma tomada do bosque consagrado a Argos, julgara inútil tentarapoderar-se da cidade, já que o deus se oporia a tal empresa.Acrescentou que, indo fazer um sacrifício em Hereu, umachama brotara do peito da estátua, sinal de que jamaisconquistaria a cidade de Argos. Se tivesse saído da cabeça, aísim, estaria certo de que a tomaria de assalto. Essa declaraçãopareceu plausível e verossímil aos Espartanos, sendo eleabsolvido por grande maioria de votos.

LXXXIII — Ficando a cidade de Argos quasedespovoada em conseqüência do extermínio provocado porCleómenes entre os seus habitantes, os escravos apoderaram-sefacilmente da administração pública, ocupando os diversoscargos das diferentes magistraturas. Quando, porém, os filhosdos que haviam sido mortos na luta chegaram à adolescência,expulsaram os escravos usurpadores, os quais, vendo-seescorraçados, apoderaram-se de Tirins, depois de uma durabatalha. A concórdia voltou a reinar entre eles por algum tempo,até que um adivinho de nome Cleandro, natural de Figália, naArcádia, convenceu os escravos a atacar seus senhores. Issoocasionou uma guerra muito longa, que só terminou com avitória dos Árgios, vitória duramente conquistada.

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LXXXIV — Os Árgios pretendem terem sido esses atospraticados por Cleómenes contra eles a causa da sua loucura ede sua morte trágica; mas os Espartanos asseguram que odesvario do soberano não foi um castigo dos deuses, masresultante da sua demasiada predileção pelo vinho, adquirida noconvívio com os Citas. Estes, persistindo no seu intuito devingar-se da invasão de Dario, enviaram embaixadores aEsparta para obterem a aliança dos Lacedemônios. Ficoucombinado entre eles que os Citas realizariam a invasão pelolado do Faso, na Média, e que os Espartanos partiriam do Éfeso,dirigindo-se para a Ásia Superior, devendo os dois exércitosfazerem junção em lugar previamente combinado. OsLacedemônios dizem que Cleómenes manteve-se em estreitocontato com os Citas que vieram a Esparta fazer essasnegociações, adquirindo com eles o hábito de beber vinho puro,sendo essa, segundo os Espartanos, a causa do seu desequilíbriomental, acrescentando que, desde aí, quando querem bebervinho puro, dizem uns aos outros: “Imitemos os Citas”.

LXXXV — Assim que souberam da morte deCleómenes, os Eginetas enviaram delegados a Esparta paraacusarem Leotíquides da detenção de concidadãos seus emAtenas como reféns. Os juízes reuniram-se para deliberar sobreo caso, concluindo terem sido os Eginetas tratadosindignamente por Leotíquides, decidindo que este seria entregueàqueles, para que o levassem para Egina em lugar dos homensdetidos em Atenas. Os delegados eginetas dispunham-se aexecutar essa sentença, quando Teasides, filho de Leoprepes,conceituado cidadão de Esparta, assim lhes falou: “Que idesfazer, Eginetas? Levar convosco o rei de Esparta, a vósentregue pelos seus próprios concidadãos? Não pensais que, seos Espartanos, num momento de cólera, vo-lo entregaram,poderão, vendo que realmente o levais, lançar-se sobre o vossopaís como um terrível flagelo?” Diante disso, os Eginetasabandonaram seu intento, mas com a condição de Leotíquidesacompanhá-los até Atenas e de lhes entregar os reféns.

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LXXXVI — Chegando a Atenas, Leotíquides reclamouos reféns, mas os Atenienses, não querendo entregá-los,puseram-se a contemporizar, dizendo que aqueles homens lheshaviam sido confiados pelos dois soberanos, não sendo justo,por conseguinte, restituí-los a um na ausência do outro. Ante arecusa, Leotíquides falou-lhes nestes termos: “Atenienses, agicomo melhor entenderdes; mas eu vos digo que se entregardesos reféns estareis agindo com justiça; se, ao contrário, não osentregardes, estareis cometendo uma injustiça. Deixai que euvos relate um fato algo parecido com este, passado em Esparta.

“Na terceira geração antes de mim viveu naLacedemônia um cidadão de nome Glauco, filho de Epícides,que se distinguiu entre todos os seus compatriotas por váriospredicados e, sobretudo, pela sua probidade. Um dia, veio aEsparta um milésio para fazer-lhe uma proposta. “Sou de Mileto— disse-lhe ele —, e venho provar os frutos da tua probidade,cuja fama já se espalhou pela Iônia e pelo resto da Grécia. Asreflexões que venho de fazer com relação ao estado precário emque se encontra a Iônia, sempre exposta a perigos, e àinsegurança das fortunas no meu país, em contraste com atranqüilidade e segurança de que se goza no Peloponeso,levaram-me à resolução de converter em dinheiro metade dosmeus bens e depositá-lo nas tuas mãos, convencido de que ele aíestará em segurança. Peço-te, pois, que guardes este dinheiropara mim, juntamente com esta ficha, só o entregando a quem teapresentar outra igual”. Glauco aceitou a incumbência eguardou o dinheiro que lhe confiara o milésio.

“Algum tempo depois, os filhos do milésio vieramprocurar Glauco, pedindo-lhe a devolução da soma que lhe foraconfiada por seu pai, apresentando-lhe uma ficha igual à outraque lhe fora dada quando do ajuste feito entre ambos. Glaucoprocurou esquivar-se ao pedido dizendo-lhes: “Não me lembroabsolutamente disso. Se, porém, conseguir lernbrar-me, podeisestar certos de que procederei com justiça. Se realmente recebi

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alguma coisa para guardar, é claro que a devolverei; mas sevindes exigir de mim a devolução de algo não confiado à minhaguarda, servir-me-ei das leis dos Gregos contra vós. Marco adecisão deste caso para daqui a quatro meses a contar de hoje”.

“Os milésios retornaram ao seu país tanto mais aflitosquanto já consideravam perdido aquele dinheiro. Entretanto,Glauco foi a Delfos consultar o oráculo, perguntando ao deus selhe era permitido apoderar-se daquele dinheiro por meio de umjuramento. Respondeu-lhe a pitonisa: “Glauco, filho deEpícides, a vitória que obterás com um juramento e as riquezasque dela te advirão muito agradáveis te poderão ser. Jura, pois amorte não poupa nem mesmo aqueles que se mantêm fiéis aosseus compromissos. Pensa, todavia, que do juramento nasceuma criatura sem nome, sem mãos e sem pés, que num vôorápido se lança sobre o perjuro, só o largando depois de tê-loaniquilado, a ele, a família e toda a sua raça; enquanto que osdescendentes daquele que soube cumprir com a sua palavraprosperam e vivem felizes”.

Impressionado com as palavras da pitonisa, Glaucopediu perdão ao deus pelo que dissera. “Tentar os deuses —tornou a pitonisa — ou cometer uma injustiça é a mesma coisa”.Então, Glauco mandou chamar os milésios e entregou-lhes odepósito.

“Compreendeis agora, Atenienses, a razão que me levoua contar-vos esta história. Não existe mais, em Esparta, nenhumdescendente de Glauco ou de família à dele ligada. Sua raça foidestruída até os últimos rebentos”.

Assim falou Leotíquides; mas, notando que osAtenienses não se dispunham, nem mesmo depois de ouvi-lo, aatender ao seu pedido, resolveu retirar-se.

LXXXVII — Vejamos como agiram os Eginetas, antesde terem sofrido a punição dos primeiros insultos que

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praticaram contra os Atenienses, com o propósito deconstranger os Tebanos. Revoltados contra os Atenienses, dosquais julgavam ter razão de queixa, dispuseram-se a vingar-sedeles. Armando uma emboscada, capturaram o “Theoris”, navioateniense que se achava no promontório de Súnio, pondo aferros alguns dos mais eminentes cidadãos de Atenas que seencontravam a bordo da embarcação.

LXXXVIII — Sentindo-se ofendidos com tal ato deviolência, os Atenienses tomaram toda sorte de medidas parapunir os agressores. Nicódromo, filho de Cneto, que gozava degrande prestígio em Egina, descontente com os seuscompatriotas, que o tinham banido anteriormente, ao saber queos Atenienses se dispunham a tirar um desforço dos Eginetas,prometeu-lhes entregar Egina, combinando com eles o dia emque tentaria a empresa com o auxílio deles. Cumprindo com apromessa, Nicódromo apoderou-se da parte de Eginadenominada Cidade Velha.

LXXXIX — Os Atenienses não puderam, todavia,chegar na data marcada, porque sua frota não erasuficientemente forte para dar combate à dos Eginetas. Vendoperigar a empresa, solicitaram aos Coríntios que lhesemprestassem alguns navios. Os Coríntios, que se achavam aeles ligados por laços de estreita amizade, aquiesceram aopedido, mas exigindo-lhes cinco dracmas por embarcação, poisa lei não lhes permitia fornecê-las gratuitamente. Com essereforço, a frota ateniense atingiu o total de setenta navios. OsAtenienses abriram velas em direção a Egina, mas só chegaramali no dia seguinte ao combinado.

XC — Nicódromo, não vendo os Atenienses chegaremna data aprazada, fugiu de Egina num barco, com algunsEginetas seus partidários, indo para Súnio, de onde puseram-sea realizar incursões, saqueando os Eginetas que haviampermanecido na ilha.

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XCI — Os Eginetas ricos, tendo conseguido impor-se aopovo, que se sublevara com Nicódromo, mandaram supliciartodos os que lhes caíram nas mãos. Cometeram, nessa ocasião,um sacrilégio, que não puderam reparar por meio algum, nemcom sacrifícios, vendo-se expulsos da ilha, antes que tivessemconseguido aplacar a cólera de Ceres. No momento em quesetecentos homens do povo, feitos prisioneiros, eramconduzidos para o local de suplício, um deles logrou escapar,refugiando-se no vestíbulo do templo de Ceres Tesmofória.Apanhando a argola da porta, manteve-se fortemente agarrado aela. Os Eginetas que o perseguiam procuraram em vão fazê-losoltar a argola em que se apegara, acabando por cortar-lhe asmãos, que ficaram penduradas na porta, levando-o naqueleestado ao suplício.

XCII — Foi assim que os Eginetas trataram seuspróprios compatriotas. Pouco depois, eram atacados pelosAtenienses com os seus setenta navios, e, vencidos, imploraramo auxílio dos Árgios, aos quais já se haviam dirigidoanteriormente. Os Árgios, porém, negaram-se a socorrê-los,queixando-se do fato de terem os navios de Egina, queCleómenes havia arrebatado à força, aportado à Argólida; deterem suas tropas descido em terra com as dos Lacedemônios, ede os navios de Sícion se terem juntado aos deles nessa mesmainvasão. Os Árgios tinham condenado os Eginetas e os Sicionesa uma multa de mil talentos, quinhentos para cada um dos doispovos. Os Siciones concordaram, mas os Eginetas não quiseramreconhecer-se culpados. Assim, quando pediram aos Árgiospara auxiliá-los, o governo recusou-se a atendê-los; mas milvoluntários Árgios, tendo à frente Euríbates, que se haviadistinguido nos Jogos Olímpicos, vencendo o Pentátlon,ofereceram-lhes os seus serviços, sendo logo aceitos. Essesvoluntários foram derrotados em Egina pelos Atenienses,perecendo a maioria deles, inclusive seu comandante. Estematou três adversários em combate singular, mas foi morto peloquarto, Sofanes de Deceléia.

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XCIII — A frota de Egina, aproveitando-se da confusãoreinante entre os Atenienses, conseguiu a vitória, capturandoquatro navios, com as tropas que neles se achavam.

XCIV — Enquanto esses dois povos faziam a guerra umcontra o outro, Dario não se esquecia do insulto dos Atenienses,tanto mais que um dos seus oficiais lho recordavaconstantemente, e os partidários de Pisístrato o incitavam,caluniando os Atenienses. Dario, que alimentava o desejo desubjugar todos os povos da Grécia que lhe haviam recusadoterra e água, aproveitou a oportunidade para declarar-lhesguerra. Tirou de Mardônio o comando das forças que nãohaviam sido bem sucedidas no mar e entregou-o a Dátis, medode nascimento, e ao seu sobrinho Artafernes, filho deArtafernes, governador de Sardes(17), enviando-os contraAtenas e Erétria, com ordem de reduzir todos os habitantes àescravidão, trazendo-os para a Pérsia nessas condições.

XCV — Os dois generais despediram-se do soberano epuseram-se em marcha. Chegando à Cilícia com um poderosoexército de terra bem provido de tudo, acamparam na planíciede Aleiene, ao mesmo tempo que iam dirigindo a concentraçãodas forças navais que cada uma das nações sob o domínio deDario tinha recebido ordem de fornecer. Os navios detransporte, para a cavalaria, encomendados no ano precedentepor Dario aos povos que lhe pagavam tributo, foram tambémreunidos no mesmo local, sendo neles embarcados os cavalos. Oexército de terra, embarcando por sua vez, dirigiu-se para aIônia, acompanhado de seiscentos trirremes; mas, em lugar departirem dali diretamente para o Helesponto e a Trácia, osPersas passaram-se para Samos, de onde navegaram pelo marIcária, através das ilhas, a fim de evitar, a meu ver, o monteAtos, que a experiência do desastre no ano anterior, quandoprocuraram dobrá-lo, levou-os agora a temê-lo. Por outro lado,havia naquela rota a ilha de Naxos, da qual ainda não tinhamconseguido apoderar-se e que era para eles uma presa cobiçada.

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XCVI — Ao saírem do mar Icária, abordaram Naxos,com o desejo de conquistá-la desta vez em primeiro lugar. OsNáxios, lembrando-se dos acontecimentos anteriores,refugiaram-se nas montanhas, sem esperar serem atacados. OsPersas atearam fogo aos templos e à cidade, e depois de reduzirà escravidão todos os que lhes caíram nas mãos, dirigiram-separa as outras ilhas.

XCVII — Os Délios, sabendo da sua aproximação,abandonaram sua ilha, refugiando-se em Teno. Os Persas járumavam para Delos, quando Dátis, que seguia no naviocapitânia, proibiu-lhes de abordá-la, ordenando-lhes a sedirigirem para a ilha de Renéia, situada mais adiante. Quandosoube da retirada dos Délios, enviou-lhes um emissário, com aseguinte mensagem: “Homens sagrados, por que fugis? Por queformais de mim uma opinião tão pouco favorável? Estou,podeis crer, inclinado a poupar o vosso país que viu nascerApolo e Diana, e a não fazer mal algum aos habitantes. Aliás,recebi ordens do rei nesse sentido. Voltai, pois, às vossas casase continuai cultivando as vossas terras em paz”. Depois dedirigir-lhes essa mensagem, Dátis mandou queimar trezentostalentos de incenso sobre o altar.

XCVIII — Feito isso, o general avançou com suasforças navais em direção à Erétria, acompanhado dos Iônios edos Eólios. Assim que se afastou de Delos, registrou-se ali umforte tremor de terra, segundo afirmam os Délios, o primeiro averificar-se na ilha até o meu tempo. Parece que os deusesquiseram, por meio desse fenômeno, anunciar aos homens osmales que lhes adviriam, porquanto a Grécia sofreu mais sob ostrês reinados consecutivos de Dario, filho de Histaspes; deXerxes, filho de Dario, e de Artaxerxes, filho de Xerxes, do quedurante as vinte gerações que precederam o primeiro dessessoberanos. Esses males lhes vieram, em parte, dos Persas, e, emparte, dos mais poderosos desses povos(18) que disputaram asoberania. Não é, pois, inverossímil que essa ilha, até então

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imóvel, tenha tremido. O oráculo já havia anunciado esseacontecimento: “Farei estremecer a ilha de Delos, por maisfirme que ela seja”. Dario significa, em grego, aquele quereprime; Xerxes, um guerreiro, e Artaxerxes, um grandeguerreiro. Não nos enganaríamos chamando assim essessoberanos em nossa língua.

XCIX — Partindo de Delos, os bárbaros levantaramtropas nas ilhas que abordaram, tomando como reféns os filhosdos habitantes. Depois de haverem contornado essas ilhas,chegaram à Carístia, cujos habitantes negaram-se a lutar comeles contra os Erétrios e os Atenienses, e não lhes permitiramlevar compatriotas seus como reféns. Em vista disso, osinvasores cercaram-nos e puseram-se a saquear suas terras,obrigando-os, por fim, a render-se.

C — Avisados de que a frota persa avançava contra eles,os Erétrios solicitaram auxílio aos Atenienses. Estesenviaram-lhes prontamente quatro mil homens, aos quaishaviam sido distribuídas, por sorteio, as terras dos chamadosHipobotes. Chegando os Atenienses, os Erétrios, mostrando-sesem resolução para lutar, puseram-se em desacordo com eles,querendo uns abandonar a cidade e refugiar-se entre os escolhosda Eubéia, enquanto que outros, atentando apenas para suasvantagens particulares e para as recompensas que esperavamdos Persas, preparavam-se para trair a própria pátria. Ésquines,filho de Nóton, e que gozava de grande prestígio entre osErétrios, pôs os Atenienses a par da situação, aconselhando-os aretornarem à pátria, a fim de não se verem envolvidos na ruínada Erétria. Os Atenienses, seguindo o seu conselho, puseram-sea coberto do perigo passando para a Europa.

CI — Chegando às costas da Erétria, passando porTamines, Quéreas e Egilia, os Persas ancoraram os seus naviose desembarcaram a cavalaria, preparando-se para atacar osErétrios. Estes tinham resolvido não lhes oferecer combate e

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não realizar nenhuma sortida, limitando-se apenas a defender asmuralhas, depois de haver prevalecido a decisão de nãoabandonarem a cidade. Os Persas lançaram violentos ataquescontra as muralhas, sendo grande o número de mortos duranteos seis dias que durou essa investida. No sétimo dia, Euforbo,filho de Alcimaco, e Filágrio, filho de Cíneas, ambos figuras degrande destaque, considerando inútil a resistência, entregaram acidade aos atacantes, os quais, logo que nela penetraram,puseram-se a saquear os templos, queimando-os em seguida,para vingar-se do incêndio do de Sardes, depois do quereduziram os habitantes à escravidão, segundo as ordens deDario.

CII — Depois de haverem permanecido durante algunsdias na cidade dominada, abriram velas para a Ática e atacaramos Atenienses, pensando tratá-los da maneira como haviam feitocom os Erétrios. Hípias, filho de Pisístrato, ordenou odesembarque em Maratona, o local mais apropriado em toda aÁtica para o movimento da cavalaria e o ponto mais próximo daErétria.

CIII — Informadas do desembarque, as tropasatenienses dirigiram-se ao encontro dos invasores. O exércitoateniense era comandado por dez generais, entre os quaisfigurava Milcíades, filho de Címon e neto de Esteságoras.Címon se havia expatriado para subtrair-se aos maus desígniosde Pisístrato, filho de Hipócrates. Durante o exílio,aconteceu-lhe levantar, nos Jogos Olímpicos, o prêmio dacorrida de carro a quatro cavalos, êxito já obtido por seu irmãoMilcíades. Na Olimpíada seguinte, obteve nova vitória com osmesmos cavalos; mas fez proclamar Pisístrato em seu lugar, oque lhe valeu a reconciliação com o tirano, retornando à pátria.Depois disso, obteve ainda outra vitória nos Jogos Olímpicos,com os mesmos cavalos; mas os filhos de Pisístrato, que entãojá não existia, mandaram matá-lo, à noite, perto do Pritaneu, porsicários aliciados especialmente para esse fim. Címon foi

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enterrado nas cercanias da cidade, além da estrada que atravessaa Celéia; e ao seu lado os cavalos com que havia alcançado portrês vezes o prêmio nos Jogos Olímpicos.

Os cavalos de Evágoras da Lacedemônia haviamrealizado feito igual, mas nenhum conseguira tão grandenúmero de vitórias como os de Címon. Esteságoras, o maisvelho dos filhos de Címon, achava-se, então, no Quersoneso, nacasa de Milcíades, seu tio pelo lado paterno, e o mais moço, denome Milcíades, em Atenas, com Címon.

CIV — Era esse Milcíades, que tinha vindo doQuersoneso, um dos generais que comandavam as tropasatenienses que tinham ido ao encontro dos Persas em Maratona.Milcíades tinha escapado por duas vezes à morte; a primeira,quando os Fenícios o perseguiram até Imbros, tudo fazendopara prendê-lo e levá-lo ao seu soberano; a segunda, quando,tendo escapado a esse perigo e julgando-se em segurança na suapátria, foi, pouco depois de haver ali chegado, atacado pelosseus inimigos, que o acusaram, perante a justiça, de terimplantado a tirania no Quersoneso. Tendo-se justificado contraseus acusadores, foi proclamado general dos Atenienses porsufrágio popular.

CV — Antes de deixarem a cidade, os generaisatenienses enviaram a Esparta, na qualidade de delegado,Fidípides, ateniense de nascimento e hemeródromo deprofissão. A acreditar-se no depoimento do próprio Fidípides aoregressar da sua missão, Pã apareceu-lhe perto do montePartênio, pouco acima da Tégea, chamando-o em altas vozespelo nome e ordenando-lhe que perguntasse aos Atenienses porque não lhe rendiam nenhum culto, a ele que sempre os trataracom benevolência, sendo-lhes útil em várias ocasiões, como iasê-lo mais tarde. Os Atenienses deram fé às declarações deFidípides, e quando a situação financeira lhes permitiu,ergueram uma capela a Pã, pouco abaixo da cidadela.

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Desde aí, passaram a prestar culto a esse deus,oferecendo-lhe sacrifícios anuais e realizando em sua honra acorrida de fachos.

CVI — Chegando a Esparta no dia seguinte ao de suapartida de Atenas, Fidípides, desincumbindo-se da missão quelhe confiaram os generais, apresentou-se diante dosmagistrados, dizendo-lhes: “Lacedemônios, os Ateniensessolicitam o vosso auxílio, impedindo, assim, que a mais antigacidade da Grécia caia sob o domínio dos bárbaros. A Erétria jáfoi subjugada, e a Grécia se acha enfraquecida pela perda dessacidade célebre”. Os Lacedemônios, ouvindo essas razões,decidiram prestar socorro aos Atenienses, mas não podiamfazê-lo imediatamente, pois não queriam infringir a lei que osproibia de se porem em marcha antes da lua cheia, e estavamapenas a nove do mês.

CVII — Enquanto os Lacedemônios aguardavam a luacheia para irem em socorro dos Atenienses, Hípias, filho dePisístrato, concluía o desembarque de suas tropas em Maratona.Na noite precedente tivera um sonho, no qual se via deitadocom a própria mãe. Esse sonho levou-o a imaginar queretornaria a Atenas e que, depois de haver recuperado aautoridade suprema, morreria de velhice no seu palácio. Tais asdeduções que tirara do estranho sonho que tivera. Ordenandoaos seus comandados que transportassem os prisioneiros feitosna Erétria para a ilha de Egilia, que se achava na dependênciados Estireus, mandou colocar os navios na enseada deMaratona, dispondo em ordem de batalha os bárbaros que já seencontravam em terra. Quando se entregava a essa tarefa,sentiu-se tomado de um acesso de tosse mais forte que deordinário, ao mesmo tempo que deixava escapar um violentoespirro. Como a maior parte dos seus dentes já estivesse abaladapela idade, um deles saltou-lhe da boca com a violência datosse, caindo na areia. Depois de havê-lo inutilmente procurado,disse, suspirando, aos que se encontravam a seu lado: “Esta

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terra não é nossa e não poderemos submetê-la; meu dente ocupatudo que dela me adviria”. Este incidente fê-lo conjecturar queo sonho se cumprira.

CVIII — Enquanto os Atenienses postavam-se emordem de batalha num campo consagrado a Hércules, os Plateuschegaram em seu socorro com todas as forças de quedispunham. Os Plateus se tinham colocado sob a proteção dosAtenienses, que já se haviam envolvido em muitos conflitos porcausa deles. Eis como esse povo realizou esse pacto de amizadecom os Atenienses. Acossado pelos Tebanos quis,primeiramente, colocar-se sob a proteção de Cleómenes, filhode Anaxandrides, e dos Lacedemônios; mas estes, recusando ooferecimento, disseram-lhes: “Achamo-nos tão afastados devós, que o auxílio que poderíamos prestar-vos seria muitoprecário, e seríeis subjugados antes que algum de nós pudessefazer alguma coisa. Nós vos aconselhamos, pois, que voscoloqueis sob a proteção dos Atenienses, que são vossosvizinhos e que estão em condições de vos proteger”. De resto,os Lacedemônios davam esse conselho aos Plateus, menos porgenerosidade do que pelo desejo de esgotar os Atenienses,impelindo-os à luta com os Beócios. Os Plateus seguiram oconselho dos Lacedemônios, enviando emissários a Atenas, osquais, na ocasião em que ali se fazia um sacrifício aos dozedeuses, sentaram-se perto do altar em postura de suplicantes eentregaram-se à proteção dos Atenienses. Sabedores disso, osTebanos marcharam contra os Plateus, e os Atenienseslançaram-se em socorro destes. Os dois exércitos estavamprestes a chocar-se, quando os Coríntios intervieram comoárbitros com o consentimento das duas partes, resolvendo oconflito. Impuseram eles a condição de os Tebanos deixaremtranqüilos os povos da Beócia que não quisessem continuarpertencendo à mesma. Dando por encerrada sua tarefa deconciliação, os Coríntios retiraram-se, e as tropas Ateniensesfizeram o mesmo; mas os Beócios atacaram-nas no caminho,derrotando-as. Transpondo, em seguida, os limites fixados pelos

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árbitros coríntios no território de Plateias, estabeleceram comofronteira entre eles e os Plateus, o Asopo e Hísias. Os Plateus,tendo-se ligado aos Atenienses da maneira que acabamos derelatar, vieram socorrê-los em Maratona.

CIX — Os generais atenienses não estavam de acordo,dividindo-se as opiniões com relação à luta contra o invasor.Uns achavam que não se devia combater, porque eram emnúmero muito pequeno, enquanto que outros eram de parecerque deviam oferecer batalha aos bárbaros. Ante tal divergênciade opiniões, Milcíades dirigiu-se ao polemarca(19), que, deacordo com uma antiga lei, se acha em pé de igualdade com osgenerais. Calímaco de Afine era quem então se achava revestidodessa dignidade. “Calímaco — disse-lhe ele —, a sorte deAtenas se encontra atualmente em tuas mãos; depende de tilevá-la à escravidão ou assegurar sua liberdade, conquistandouma glória imortal, superior mesmo à alcançada por Harmódioe Aristogíton. Nunca, desde a fundação da sua cidade, correramos Atenienses um tão grave perigo. Se vencidos pelo poderiodos Medos e entregues a Hípias, estarão desgraçados; sevencedores, esta cidade poderá tornar-se a primeira da Grécia.Vou dizer-te como a felicidade ou a desgraça da repúblicadepende inteiramente de ti. Nós, generais, divergimos deopinião, querendo uns oferecer combate aos invasores,enquanto que outros acham que não estamos em condições deoferecer-lhes resistência. Se não lhes dermos combate, é derecear que surjam entre os Atenienses dissensões que osdisponham a favorecer os Medos. Se, porém, formos à lutaantes que tão nefastos pensamentos medrem no espírito dealgum de nós, espero, se os deuses se mantiverem neutros, queconseguiremos a vitória. A situação, como vês, é delicada,cabendo inteiramente a ti a decisão. Se apoiares aqueles que sãocontrários à resistência, experimentarás também das vicissitudesque nos advirão e das conseqüências da nossa indecisão”.

CX — Impressionado com essas palavras sensatas, o

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polemarca juntou sua voz à de Milcíades, e a batalha ficouresolvida. Os generais favoráveis à resistência ao inimigorenunciaram o comando em favor de Milcíades, e este aceitou,não querendo, todavia, fazer uso do mesmo senão quandochegasse a sua vez.

CXI — Os Atenienses colocaram-se em ordem debatalha, tendo Calímaco à frente, na ala direita, em virtude deuma lei que dispunha, entre os Atenienses, ocupar o polemarcaessa ala. Em seguida ao polemarca vinham as tribos, de acordocom a sua categoria dentro do Estado. Em último lugar vinhamos Plateus, que compunham a ala esquerda. Daí a razão por queos Atenienses, quando oferecem sacrifícios nas festascelebradas de cinco em cinco anos em comemoração da vitórianessa batalha, incluem também, pela voz do seu arauto, osPlateus nos votos que fazem pela prosperidade da sua pátria.Seguindo essa ordem de batalha, a frente do exército atenienseficava igual à dos Medos. No centro, as fileiras não eram muitocompactas, tendo aí o exército o seu ponto fraco; mas as duasalas eram numerosas e fortes.

CXII — Dispostas as tropas em ordem de batalha, foramrealizados sacrifícios aos deuses, sendo estudadas as entranhasdas vítimas, que nada de favorável anunciaram. Os doisexércitos ficaram separados por uma distância de oito estádios.Ao primeiro sinal, as tropas atenienses avançaram velozmenteao encontro dos Persas, e estes, vendo-as aproximar-se,prepararam-se para recebê-las, considerando-as, ao atentar parao pequeno número delas, que nem dispunham do apoio dacavalaria, insensatas e marchando ao encontro de uma mortecerta. Os Atenienses, porém, cerrando fileiras, lançaram-sesobre eles, praticando feitos memoráveis. Foram esses bravos,ao que pudemos apurar, os primeiros de todos os Gregos aenfrentar impetuosa e desassombradamente os Medos, quandoaté então o simples nome de Medos inspirava terror aos Gregos.

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CXIII — A batalha de Maratona foi longa e cheia deperipécias. Os bárbaros conseguiram desbaratar as fileiras docentro do exército ateniense, pondo em fuga os remanescentes;mas as duas alas compostas de Atenienses e Plateus atacaram asforças persas que haviam rompido o centro do exército,impondo-lhes uma derrota irreparável. Vendo-as fugir,lançaram-se em sua perseguição, matando e esquartejandoquantos encontraram pela frente, até a beira-mar, onde seapoderaram de alguns dos navios inimigos.

CXIV — O polemarca Calímaco pereceu nessa batalha,depois de haver combatido com bravura e desprendimento.Estesilo, filho de Trasilo, um dos generais que comandavam asforças atenienses, também perdeu a vida. Cinegiro(20), filho deEufórion, ao tentar apoderar-se de um navio persa escalando-opela popa, teve as mãos cortadas por um golpe de machado,morrendo, juntamente com outros atenienses de alta categoria.

CXV — Deixando sete de seus navios nas mãos dosAtenienses, os bárbaros retiraram-se com o restante da suafrota, e, retomando os escravos da Erétria na ilha onde oshaviam deixado, dobraram o promontório de Súnio, com aintenção de burlar as forças atenienses a alcançar Atenas antesdelas. Diz-se, em Atenas, que eles conceberam esse plano pelofato de terem os Alcmeônidas, segundo ficara combinado entreeles, mostrado um escudo quando os Persas já se encontravamnos seus navios.

CXVI — Enquanto os Persas dobravam o promontóriode Súnio, as tropas atenienses, adivinhando a sua intenção,dirigiram-se em marcha forçada para Atenas, a fim de defendera sua cidade de um possível ataque dos bárbaros. Partindo deum lugar consagrado a Hércules, em Maratona, foram acamparem um outro dedicado ao mesmo deus, em Cinosarges. OsPersas ancoraram ao norte de Faleros, que então servia de portoaos Atenienses, e depois de ali permanecerem durante algum

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tempo, retomaram o caminho da Ásia.

CXVII — Na batalha de Maratona pereceram cerca deseis mil e quatrocentos homens do lado dos bárbaros, e cento enoventa e dois do lado dos Atenienses. Deu-se, durante ocombate, um fato curioso com um ateniense de nome Epizelo,filho de Cufágoras. Quando se empenhava em luta com oinimigo, conduzindo-se com valentia e desprendimento, perdeurepentinamente a vista sem haver sido atingido por nenhumgolpe, ficando cego para o resto da vida. Disseram-me ter eleafirmado, ao referir-se a esse estranho acidente, que julgara verdiante de si, naquele momento, um homem de estaturadescomunal, armado da cabeça aos pés e com uma barba tãolonga que lhe cobria o escudo. Esse espectro passou por ele,indo matar o que combatia junto a ele.

CXVIII — Ao retornar à Ásia com o seu exército, Dátisteve em Mícono uma visão durante o sono, não se sabendo,todavia, que visão foi essa. O certo é que, logo ao amanhecer,mandou ele fazer uma vistoria geral na frota, e tendoencontrado em um navio fenício uma estátua dourada de Apolo,perguntou de que templo a tinham subtraído. Informado sobre aprocedência da estátua, dirigiu-se, ele próprio, a Delos edepositou-a no templo, pedindo aos Délios, já de regresso àilha, que a levassem ao Délium(21) dos Tebanos, situado àbeira-mar, em frente a Cálcis. Feito isso, voltou para reunir-se àsua frota. Os Délios não levaram a estátua, como ele lhespedira; mas, vinte anos mais tarde, os próprios Tebanostransportaram-na para o Délium, em obediência a um oráculo.

CXIX — Chegando à Ásia, Dátis e Artafernesconduziram a Susa os Erétrios que haviam aprisionado naguerra que, sem justo motivo, tinham movido contra os Persas.Dario, embora irritado ante essa atitude dos Erétrios, em vez devingar-se sobre os prisioneiros, enviou-os para Arderica,dependência da Císsia, que estava sob o seu domínio, onde eles

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ainda viviam por ocasião da minha passagem por ali, tendoconservado seu antigo idioma.

CXX — Logo depois da lua cheia, dois millacedemônios chegaram a Atenas. Tão ansiosos estavam emmedir forças com o inimigo, que não gastaram mais de três diaspara virem de Esparta à Ática; mas, quando chegaram, a batalhajá tinha terminado. O seu desejo de ver os Medos era, porém,tão grande, que se dirigiram imediatamente a Maratona paracontemplá-los, já em seus navios. Em seguida,congratularam-se com os Atenienses pela vitória e regressaramà pátria.

CXXI — Correu, de pronto, contra os Alcmeônidas, oboato de terem eles, em conivência com os invasores Persas,mostrado a estes um escudo, como se fosse do seu desejo verAtenas sob o jugo dos bárbaros e de Hípias. Tal versão mesurpreende e não lhe posso dar crédito. Parece, com efeito, queeles tinham mais aversão pelos tiranos do que Cálias, filho deFenipe e pai de Hipônico, ou que, pelo menos, ela era muitogrande. Cálias foi o único homem em Atenas que ousoucomprar os bens de Pisístrato, quando a república mandoupô-los à venda depois de havê-lo banido. Entretanto, Cáliasnunca perdeu ocasião de mostrar a Pisístrato o ódio que lhevotava.

CXXII — Cálias merece menção, não só por se terempenhado com ardor pela liberdade de sua pátria, como porter, em Olímpia, vencido a corrida a cavalo, obtendo a segundacolocação na de carro a quatro cavalos, saindo tambémvitorioso nos jogos píticos, obtendo uma magnífica vitória sobretodos os outros competidores gregos. Merece-o, também, pelamaneira com que se conduziu com relação às suas três filhas,dando-lhes um rico dote quando chegaram à idade de casar-se epermitindo-lhes escolher livremente seus esposos em toda anação.

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CXXIII — Os Alcmeônidas, como já disse, nãoodiavam menos os tiranos do que Cálias, circunstância que meleva a estranhar a acusação que lhes fazem de haverem elesmostrado um escudo aos Persas, eles, que haviam vivido longeda pátria durante todo o tempo da dominação dos tiranos; quehaviam forçado, pelas suas manobras, os partidários dePisístrato a abandonar a tirania, e que, pela sua conduta, tinhamcontribuído, mais do que quaisquer outros, assim julgo, para aliberdade de Atenas, mais até do que Harmódio e Aristogíton.Estes, com efeito, em vez de fazerem cessar a tirania dospartidários de Pisístrato, não fizeram senão incentivá-lamatando Hiparco, enquanto que os Alcmeônidas contribuíramevidentemente para a independência de seus concidadãos,chegando a convencer, ao que se diz, a pitonisa a concitar osLacedemônios a libertarem Atenas.

CXXIV — É possível que tivessem querido trair a pátriapara vingar-se de alguma afronta recebida do povo; mas, emAtenas, ninguém era mais estimado e mais cumulado de honrasdo que eles. Por isso, considero inverossímil a versão doescudo. Não resta dúvida de que um escudo foi mostrado aosPersas naquela ocasião, mas não se pode afirmar se aquilo eraum sinal convencionado, e se fosse, qual o fim a que sedestinava. Nada mais posso dizer sobre o caso, além do que aífica.

CXXV — Os Alcmeônidas sempre gozaram da mais altaconsideração em Atenas, desde os mais antigos tempos, e esseprestígio lhes veio principalmente de Alcméon e de Megacles.Alcméon, filho de Megacles, prestou aos Lídios que Cresohavia enviado para consultar o oráculo de Delfos, todos osserviços que dele dependiam. O soberano, informado doacolhimento por ele dispensado aos seus delegados, mandouchamá-lo a Sardes, presenteando-o com tanto ouro quantopudesse ele levar de uma só vez. Em vista disso, Alcméonserviu-se de todo o seu engenho, a fim de tirar a maior

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vantagem possível de tão belo quão inesperado oferecimento.Envergando um traje dos mais amplos e os maiores borzeguinsque pôde encontrar, dirigiu-se ao tesouro real em companhiados oficiais do soberano. Atirando-se sobre um monte de pó deouro, pôs-se a encher sofregamente os borzeguins e as vestes,polvilhando ainda os cabelos e enchendo a boca com o preciosopó, dali saindo com as bochechas intumescidas, o corpovergado, arrastando com dificuldade os borzeguins, parecendotudo menos um homem. Ao vê-lo, Creso pôs-se a rir, e nãosomente o deixou ficar com todo o ouro que assim conseguirareunir, como o cumulou de outras riquezas. Com essa fortunatão facilmente adquirida, a casa de Alcméon ganhou nomeada, eele, tendo-se dedicado à criação de cavalos, venceu, nasOlimpíadas, a corrida de carro a quatro cavalos.

CXXVI — Na geração seguinte, Clístenes elevou aindamais alto a fama dessa casa, dando-lhe, entre os Gregos, umesplendor não atingido até então. Clístenes, filho deAristônimos, neto de Míron e bisneto de Andréias, tinha umafilha chamada Agarista, a quem só daria por esposa àquele,entre os Gregos, que se revelasse digno de sua mão pelos seuspredicados invulgares. Durante a celebração dos JogosOlímpicos, Clístenes, que havia saído vencedor na corrida decarro a quatro cavalos, fez proclamar por um arauto que aquele,dentre os Gregos, que se julgasse digno de tornar-se seu genro,viesse a Sícion dentro de sessenta dias, ou mesmo mais cedo,pois ele havia fixado o casamento da filha para um ano depoisdo sexagésimo dia. Todos aqueles que, confiantes nos seusméritos pessoais e na fama de sua cidade natal, aspiravam ahonra de desposar Agarista, dirigiram-se a Sícion, onde osreteve Clístenes, que para eles mandara preparar um estádio eum ginásio, com a intenção de pô-los à prova.

CXXVII — Entre os candidatos à mão de Agaristafiguravam Esmindírides, filho de Hipócrates, procedente daItália. Esmindírides era natural de Síbaris, cidade então muito

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florescente, ostentando grande luxo e magnificência; Dâmasode Siris, filho de Amíris, cognominado o Sábio, tambémprocedente da Itália; Anfinesto, natural de Epidamno e filho deEpistrofo, vindo do golfo Iônio e o único dali a comparecer; umetólio, irmão de Titormo, que sobrepujara os Gregos pela suaforça extraordinária e que, fugindo ao convívio dos homens, seretirara para o ponto extremo da Etólia. Esse jovem chamava-seMales; Leocedes, filho de Fídon, vindo do Peloponeso. Fídonera tirano de Argos, tendo ditado leis ao Peloponeso. Foi ele, detodos os Gregos, o que se conduziu da maneira mais insolente,expulsando os agonotetas dos Eleus(22) e julgando, em lugardeles, os Jogos Olímpicos; Amianto, filho de Licurgo e naturalde Trepazunto, na Arcádia; Lafanes Azânio, do burgo de Peos,filho daquele Eupórion que recebeu em sua casa os dióscuros,segundo a tradição dos Arcádios, e que, desde então, deuhospitalidade a todos os estrangeiros que os procuravam; eOnomasto Eleu, filho de Egeu, vindo também do Peloponeso.De Atenas vieram Megacles, filho daquele Alcméon que haviaestado na corte de Creso; Hipoclides, filho de Tisandro, ohomem mais rico e mais elegante de Atenas, e Lisânias deErétria, cidade então bastante florescente. Da Tessália vieramDiactorides Cranônio, da casa dos Escopades, e Álcon, do paísdos Molossos.

CXXVIII — À medida que esses pretendentes iamchegando, Clístenes ia interrogando-os sobre o seu país deorigem e a sua linhagem, e para melhor aquilatar dos méritos,inclinações, hábitos e conhecimentos de cada um, reteve-os emsua companhia durante um ano, observando-os nas palestras quemantinham entre si, nos exercícios em que se empenhavam osmais jovens dentre eles, e, sobretudo, o comportamento de cadaum nos festins. De todos eles, os procedentes de Atenaspareceram-lhe os mais bem dotados de atributos, principalmenteHipoclides, filho de Tisandro, que se distinguia entre todos pelasua coragem, tendo, entre seus ancestrais, parentes dosCipsélidas de Corinto.

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CXXIX — No dia fixado por Clístenes para declararqual o que escolhera para seu genro e celebrar o casamento, osoberano imolou cem bois e deu um grande festim, não só paraos pretendentes da filha, mas para os Siciones em geral.Terminado o banquete, os candidatos puseram-se a conversarsobre música e outros assuntos banais de palestra. Enquantobebiam, Hipoclides, para o qual se voltavam todas as atenções,pediu ao flautista que tocasse uma emelia. O flautista obedeceu,e Hipoclides pôs-se a dançar. Sentia-se satisfeito com a suadança, mas Clístenes, que o observava, não viu com bons olhoso que se passava. Depois de um breve momento de descanso,Hipoclides mandou vir uma mesa, sobre a qual dançouprimeiramente à maneira da Lacedemônia, e em seguida, àmoda de Atenas. Finalmente, apoiando a cabeça na mesa,equilibrou-se com as pernas para cima, movimentando-as emtodos os sentidos. Embora a imodéstia e imprudência das duasprimeiras danças do jovem pretendente tivessem inspiradoaversão a Clístenes, levando-o a afastar a idéia de tomá-lo porgenro, ele se continha num grande esforço, ocultando a revoltaque aquele espetáculo deprimente lhe causava; mas ao vê-lonaquela ridícula posição, sacudindo as pernas no ar, não pôdemais dominar-se, exclamando: “Filho de Tisandro, perdeste anoiva, dançando!” “Pouco se importa Hipoclides com isso” —retrucou o ateniense. Essa resposta, pela sua sobriedade eespontaneidade, com o correr do tempo veio a tornar-se umprovérbio.

CXXX — Então Clístenes, pedindo um momento desilêncio, assim falou a seus hóspedes: “Meus amigos,pretendentes à mão de minha filha. Tenho por vós a maiorestima, e a todos satisfaria se pudesse. Não queria, realmente,pela escolha de um dentre vós, excluir todos os outros; mascomo não posso contentar a todos, pois só tenho uma filha paracasar, darei um talento de prata a cada um dos que foremexcluídos da escolha, para demonstrar o quanto me sentihonrado por terdes acedido ao meu convite, deixando a pátria

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distante para virdes até aqui. Concedo a mão de minha filhaAgarista, segundo as leis de Atenas, a Megacles, filho deAlcméon”. Megacles aceitou a aliança, e o casamento foiratificado por Clístenes.

CXXXI — Assim procedeu Clístenes para escolher umgenro entre tantos pretendentes, e foi dessa maneira que osAlcmeônidas adquiriram tão alto prestígio na Grécia. Oprimeiro filho de Megacles e Agarista recebeu o nome deClístenes, do avô materno, tirano de Sícion. Foi esse príncipequem dividiu o povo daquela região em dez tribos e implantouo governo democrático. Megacles teve outro filho chamadoHipócrates, e deste nasceu um outro Megacles e uma outraAgarista, do nome da mãe, filha de Clístenes. Agarista desposouXantipo, filho de Arífron. Quando já se encontrava emadiantado estado de gravidez, sonhou que dava à luz um leão, ealguns dias depois nascia Péricles.

CXXXII — Com a vitória sobre os Persas em Maratona,o prestígio de que já gozava Milcíades em Atenas aumentouainda mais. Apoiado na confiança que o povo lhe depositava,solicitou-lhe setenta navios, tropas e dinheiro. Não disse aosAtenienses a quem pretendia fazer guerra, mas prometeuenriquecê-los se quisessem segui-lo, assegurando que os levariaa um país de onde poderiam trazer sem trabalho uma grandequantidade de ouro. Entusiasmados ante essa perspectiva, osAtenienses concederam os navios que ele pedia.

CXXXIII — Concluídos os preparativos, Milcíadesabriu velas em direção a Paros, com as tropas postas à suadisposição. Tomara como pretexto para essa expedição contraos Pários, o terem eles acompanhado os Persas a Maratona comum trirreme, colocando-se, por conseguinte, contra os Gregos.O verdadeiro motivo, porém, era o ódio que ele nutria contra osPários, desde que Liságoras, filho de Tírias, pário denascimento, tinha querido tornar Hidarnés odioso ante os olhos

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dos Persas. Chegando a Paros, Milcíades cercou a cidade, ondeos Pários se tinham encerrado, mandando, em seguida, por umarauto, pedir cem talentos, sob pena de não retirar suas tropassenão depois de havê-los subjugado a todos. Os Pários, emlugar de enviar-lhe a soma exigida, procuraram reforçar asdefesas da cidade, erguendo durante a noite, nos pontosconsiderados mais vulneráveis, um muro duas vezes mais altodo que o já existente.

CXXXIV — Todos os Gregos relatam o fato da mesmamaneira, até este ponto. Vejamos, porém, como os Páriosrelatam os acontecimentos que se seguiram. EnquantoMilcíades se preocupava com as providências a tomar para oprosseguimento do cerco, Timo, sacerdotisa dos deusesinfernais, natural de Paros e sua prisioneira, veio procurá-lo,aconselhando-o a fazer exatamente o que lhe ia dizer, sedesejava apoderar-se da cidade. Depois de ouvi-la atentamente,Milcíades dirigiu-se à colina situada diante da cidade. Nãoconseguindo abrir as portas do recinto consagrado a CeresTesmofória, escalou o muro que o protegia e foi direto aotemplo, não se sabendo se com a intenção de subtrair alguns dosobjetos sagrados, nos quais não é permitido tocar, ou comqualquer outro propósito. Ao chegar à porta do templo,sentiu-se, de repente, tomado de tão grande pavor, que voltousobre os seus passos; e ao saltar novamente o muro, deslocou ojoelho.

CXXXV — Esse desagradável acidente forçou-o aabandonar a empresa iniciada, regressando ele sem levar odinheiro que havia prometido aos Atenienses. Tinha mantido ocerco de Paros durante vinte e seis dias, causando, nesse espaçode tempo, grande devastação na ilha. Os Pários, informados deque Timo, sacerdotisa dos deuses infernais, tinha servido deguia a Milcíades, quiseram puni-la por crime de traição. Logoque voltou a calma à cidade, enviaram delegados a Delfos, paraperguntarem ao deus se deviam condenar a sacerdotisa à morte

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por haver indicado ao inimigo o meio de apoderar-se de suapátria e por ter revelado a Milcíades os mistérios interditos aoshomens. A pitonisa, porém, proibiu-os de matar Timo, dizendonão ser esta culpada, pois servira de guia ao inimigo paraconduzi-lo à desgraça.

CXXXVI — Quando Milcíades regressou da ilha deParos, tornou-se assunto principal entre os Atenienses a suamalograda expedição, que mereceu os mais desfavoráveiscomentários, sobretudo de Xantipo, filho de Arífron, o qual,revoltado com o fato, acusou Milcíades, perante o povo, dehaver traído a nação. Milcíades, preso ao leito pela gangrenaque se alastrava pela perna ferida no acidente perto do templode Paros, não pôde defender-se pessoalmente das acusações quelhe eram feitas. Seus amigos, porém, tomaram a sua defesa,evocando a glória de que ele se cobrira na memorável jornadade Maratona e a conquista de Lemnos, por ele entregue aosAtenienses, vingando-os, assim, dos Pelasgos. O povo,impressionado com esses argumentos, poupou-o da pena demorte, condenando-o, todavia, a uma multa de cinqüentatalentos. Entretanto, a gangrena continuou progredindo,morrendo ele pouco tempo depois, e Címon, seu filho, pagou oscinqüenta talentos.

CXXXVII — Eis como Milcíades, filho de Címon,apossou-se da ilha de Lemnos: Os Atenienses haviam, temposantes, expulsado os Pelasgos da Ática. Se tiveram razão paraassim agir, ou se cometeram uma injustiça, é o que não mecompete, absolutamente, decidir. Limito-me a reproduzir o queme disseram. Hecateu, filho de Hegesandro, diz, na sua história,que foi uma injustiça, afirmando que os Atenienses, vendo queo terreno que haviam cedido aos Pelasgos ao pé do monteHimeto, como recompensa por terem eles erguido o muro quecircunda a cidadela, estava sendo bem cultivado, embora eles otivessem considerado estéril e sem valor algum,desalojaram-nos dali, levados apenas pela inveja e pelo desejo

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de recuperá-lo. Os Atenienses, por sua vez, afirmam que assimprocederam por um justo motivo. Dizem eles que os Pelasgospuseram-se a fazer, do local onde moravam, junto ao monteHimeto, incursões às suas terras, dirigindo insultos às jovensatenienses que iam buscar água na fonte de Eneacrounos —pois então não existiam escravos em Atenas, nem em lugaralgum da Grécia. Todas as vezes que as jovens iam à fonte, osPelasgos usavam de violência contra elas, com orgulho edesprezo; e, não contentes com esses ultrajes, conceberam umplano de se apoderarem do Estado, convencidos dapossibilidade disso. Os Atenienses alegam que foram atégenerosos para com eles, pois, podendo matá-los, já que ossurpreenderam a tramar contra a segurança do Estado,contentaram-se em expulsá-los do país. Obrigados a abandonara Ática, os Pelasgos espalharam-se por vários lugares,procurando, de preferência, Lemnos. É isso o que contam osAtenienses.

CXXXVIII — Os Pelasgos que se haviam estabelecidoem Lemnos procuraram um meio de vingar-se dos Atenienses.Conhecedores dos costumes destes e sabendo quais os seus diasde festa, equiparam alguns navios de cinqüenta remos, e,pondo-se de emboscada, raptaram grande número de mulheresatenienses, quando estas prestavam culto a Diana no burgo deBráuron. Fazendo-se novamente à vela, levaram-nas paraLemnos, onde as tornaram suas concubinas. Essas mulherestiveram muitos filhos, aos quais ensinaram a língua e oscostumes de Atenas. Essas crianças evitavam qualquer contatocom as das mulheres dos Pelasgos, e se uma delas era agredida,as outras iam em seu socorro, defendendo, assim, umas àsoutras. Julgavam-se, mesmo, superiores às outras, e eram,realmente, mais fortes. Observando o que se passava, osPelasgos reuniram-se em conselho, e enquanto deliberavam, omedo apossou-se deles. Se eles já se põem de acordo, diziam osPelasgos, para socorrerem uns aos outros contra os filhos dasmulheres que desposamos virgens; se já se consideram seus

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senhores, que não farão quando crescerem? E tendo decididoeliminar todos os filhos das mulheres atenienses, executaram oseu propósito, matando também as mães. Foi desse ato decrueldade e de um outro antes verificado, em que as mulheresde Lemnos estrangularam seus maridos, juntamente com Toas,seu rei, que se originou o hábito de chamar de ações lêmnias atodos os procedimentos criminosos(23).

CXXXIX — Depois que os Pelasgos trucidaram suasconcubinas e os filhos que delas haviam tido, a terra deixou deproduzir frutos e os rebanhos tornaram-se estéreis. Tomados deaflição ante a escassez de alimentos e a esterilidade que seapossou também de suas mulheres, enviaram delegados aDelfos, a fim de pedirem ao deus para livrá-los desses males.Em resposta, a pitonisa ordenou-lhes que dessem aosAtenienses as satisfações que estes lhes exigissem. Os Pelasgosdirigiram-se a Atenas e declararam-se prontos a submeter-se àpena que lhes impusessem para reparar o seu crime. OsAtenienses prepararam um leito no Pritaneu, com toda amagnificência possível, e cobrindo uma mesa com toda sorte deiguarias, disseram aos Pelasgos para entregar-lhes a ilha deLemnos nas mesmas condições daquela mesa. Entregá-la-emos,responderam os Pelasgos, quando um de vossos navios for, porum vento nordeste, daqui a Lemnos em um só dia. Assimresponderam porque julgavam a façanha impossível, pois aÁtica está situada ao sul de Lemnos, a grande distância dessailha.

CXL — As coisas ficaram nesse pé. Alguns anos maistarde, tendo os Atenienses conquistado o Quersoneso e oHelesponto, Milcíades, filho de Címon, foi em um só dia,navegando a favor do vento nordeste, da cidade de Eleunte,porto do Quersoneso, à ilha de Lemnos. Lembrou aos Pelasgoso que haviam dito com relação àquela façanha, que elesacreditaram impossível de ser realizada e mandou-os sair dailha. Os habitantes de Heféstia obedeceram, mas os de Mirina,

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não reconhecendo o domínio da Ática sobre o Quersoneso,negaram-se a obedecer, sendo, finalmente, forçados a capitular.Foi assim que os Atenienses, por intermédio de Milcíades, seapoderaram de Lemnos.

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LIVRO VII

POLÍMNIAA MORTE DE DARIO — XERXES SUCEDE-O NO TRONO

— SUBMETE O EGITO — QUER VINGAR-SE DOS GREGOSE FAZER DA TERRA UM SÓ IMPÉRIO — REÚNE UMCONSELHO — RESOLVIDA A GUERRA CONTRA A

GRÉCIA — MANDA PERFURAR O MONTE ATOS — PÍTIO— UMA PONTE LANÇADA SOBRE O MAR — O EXÉRCITO

DESFILA DIANTE DE XERXES DURANTE SETE DIAS ESETE NOITES SEM INTERVALO — ENUMERAÇÃO À

MANEIRA DE HOMERO — PASSANDO EM REVISTA AFROTA — XERXES CONSULTA DEMARATO — O

ARAUTO DE ESPARTA DIANTE DE XERXES —TEMÍSTOCLES — EMBAIXADA A GÉLON — AS

TERMÓPILAS — LEÔNIDAS — DIENECES — INSCRIÇÃONAS TERMÓPILAS.

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I — Ao ter conhecimento da derrota das forças persasem Maratona, Dario, já irritado contra os Atenienses por causado incêndio de Sardes, sentiu sua cólera crescer contra eles,mostrando-se, mais do que nunca, decidido a levar a guerra àGrécia. Expediu, incontinênti, ordens a todas as cidades sob oseu domínio, para levantarem grande número de tropas efornecerem cavalos, víveres, navios de guerra e de transporte,em quantidade maior ainda do que a que haviam fornecido paraa primeira expedição. Essas ordens, expedidas para todos oscantos, pôs a Ásia inteira numa agitação contínua durante trêsanos. No quarto ano, quando já quase ultimados os preparativose feito o recrutamento dos homens mais bravos entre todos osque prestavam obediência ao soberano, soube-se que osEgípcios, subjugados por Cambises, se tinham revoltado contraos Persas. Ante essa notícia, Dario decidiu-se, com maior ardorainda, a marchar contra esses dois povos.

II — Quando se preparava para lançar-se sobre osEgípcios e os Atenienses, surgiu entre os príncipes seus filhosforte desentendimento com relação à soberania, pois as leispersas proibiam o rei de empreender uma expedição sem haverdesignado seu sucessor. Dario possuía, antes de ser aclamadorei, três filhos de sua primeira mulher, filha de Góbrias, e depoisde ter subido ao trono tivera quatro outros de Atossa, filha deCiro. Artobazanes era o mais velho dos filhos da primeiramulher, e Xerxes, dos da segunda. Como não eram filhos damesma mãe, disputavam a sucessão, julgando-se Artobazanescom direito à coroa por ser o mais velho de todos, segundo apraxe aceita em toda parte. Xerxes, por sua vez, reivindicavapara si esse direito, apoiando-se no fato de ser Atossa, sua mãe,filha de Ciro, a quem os Persas deviam a liberdade de quegozavam.

III — Dario ainda não se havia pronunciado acercadessa questão, quando chegou a Susa Demarato, filho de

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Aríston, que havia fugido da Lacedemônia, depois de ter sidodespojado dos seus Estados. Tendo sabido da pendênciaexistente entre os filhos de Dario, aconselhou Xerxes aacrescentar às razões já apresentadas, o fato de haver nascidodepois da subida do pai ao trono, enquanto que Artobazanesnascera quando Dario era ainda um simples cidadão, não sendo,por conseguinte, justo nem natural aceitar este último em lugardele, Xerxes. Demarato acrescentou que era esse o costumeseguido em Esparta; que quando um filho nascia depois dehaver o pai subido ao trono, sucedia-o no poder, mesmo que opai tivesse tido outros antes de ter assumido o poder. Aceitandoo conselho de Demarato, Xerxes expôs ao pai as razões por elesugeridas. Dario achou-as justas e nomeou-o seu sucessor.Acho, porém, que Xerxes teria reinado de qualquer maneira,pois Atossa contava com todo poder para isso.

IV — Dario, declarando Xerxes seu sucessor, dispôs-sea marchar para a guerra; mas a morte o surpreendeu em meioaos preparativos, no ano seguinte ao da sublevação do Egito,depois de haver reinado trinta e seis anos, sem ter tido asatisfação de punir os Egípcios e vingar-se dos Atenienses.

V — Morrendo Dario, subiu ao trono seu filho Xerxes.A mobilização de tropas levada a efeito pelo jovem soberano aotomar as rédeas do governo visava principalmente o Egito, pois,de início, ele não nutria nenhum propósito de fazer guerra àGrécia. Mas Mardônio, filho de Góbrias e de uma irmã deDario, e, por conseguinte, primo-irmão de Xerxes, sendo, detodos os Persas, o que maior ascendência tinha sobre este,falou-lhe nestes termos: “Senhor, não é razoável deixardesimpunes os insultos que nos dirigiram os Atenienses. Levaiavante, como desejais, o empreendimento que tendes em mão,mas, logo que tiverdes punido a insolência dos Egípcios, voltaio vosso poderio contra a Grécia. Com isso conquistareis acelebridade, e ninguém mais ousará, daí por diante, penetrar nosvossos Estados de armas na mão”. A esses motivos de vingança,

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Mardônio acrescentou o fato de ser a Europa um belo país, deterras extremamente férteis, produzindo todas as espécies deárvores frutíferas, e de que somente ele, Xerxes, merecia serpossuidor.

VI — Mardônio assim agia levado pela sede deaventuras e porque cobiçava o governo da Grécia. Conseguiu,realmente, com o concurso de outras circunstâncias, persuadirXerxes a realizar essa empresa. Da Tessália vieramembaixadores a mando dos Aleuades, soberanos dessa região,especialmente para incitá-lo contra a Grécia, sendo secundadosnos seus esforços pelos partidários de Pisístrato que foram ter aSusa, levando em sua companhia Onomácrites, célebreadivinho, que havia reunido todos os oráculos de Muséia.Onomácrites tinha sido expulso de Atenas por Hiparco, filho dePisístrato, por haver vaticinado, com base num oráculo deMuséia, a submersão das ilhas vizinhas de Lemnos. Antes deirem a Susa, os partidários de Pisístrato reconciliaram-se com oadivinho. Chegando à presença do soberano persa, Onomácritespôs-se a recitar-lhe os oráculos, silenciando sobre os queanunciavam alguma desgraça aos bárbaros, mas insistindo nosque prediziam acontecimentos felizes. Concluindo aapresentação dos oráculos, falou-lhe da passagem do exércitopersa pela Grécia, dizendo que estava escrito no livro dodestino, que um persa ligaria, por meio de uma ponte, as duasmargens do Helesponto.

VII — Deixando-se convencer pelas insinuações dosembaixadores dos Aleuades, dos partidários de Pisístrato e pelosoráculos apresentados por Onomácrites, Xerxes resolveu fazerguerra aos Gregos. Atacou primeiramente os Egípcios, nosegundo ano da morte de Dario, e, derrotando-os, impôs-lhesum jugo mais severo do que o que haviam experimentado sob oreinado de seu pai, dando-lhes como governador Aquêmenes,seu irmão. Esse príncipe foi morto, pouco depois, por Inaros,filho de Psamético, rei da Líbia.

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VIII — Submetido o Egito, Xerxes preparou-se paramarchar contra Atenas. Convocou os principais da Pérsia, paraexpor-lhes os seus planos e ouvir-lhes as sugestões. Quando osviu reunidos, assim lhes falou: “Persas, não pretendo introduzirentre vós novos costumes, mas seguir aqueles que nos foramtransmitidos pelos nossos ancestrais. Desde que Ciro arrebatoua coroa a Astíages, e desde que arrebatámos este império aosMedos, jamais ficamos inativos, como nos asseguraram nossosavós. Um deus nos conduz, e sob seus auspícios marchamos devitória em vitória. Considero desnecessário falar-vos dasfaçanhas de Ciro, de Cambises e de Dario, meu pai, bem comodas províncias que acrescentaram ao nosso império; pois jáestais perfeitamente a par de tudo isso. Quanto a mim, desde omomento que subi ao trono, cioso de não desmentir o sanguedos meus ancestrais, vivo a cogitar de como poderei dar aosPersas um poderio não menos considerável que aquele que mefoi legado. Depois de muito refletir, cheguei à conclusão de quepoderemos engrandecer mais e mais o nosso nome,conquistando um país em nada inferior ao nosso e até mesmomais fértil, tendo, ao mesmo tempo, a satisfação de puniraqueles que nos injuriaram. Eu vos convoquei para fazer-vosconhecedores das minhas intenções. Pretendo, depois de haverconstruído uma ponte sobre o Helesponto, passar para a Europae dirigir-me à Grécia, a fim de vingar meu pai e meu povo dosinsultos dos Atenienses. Não ignorais que Dario tinha o firmepropósito de marchar contra esse povo; mas a morte não lhepermitiu realizar seu intento. Cabe a mim vingar meu pai e osPersas, e não descansarei enquanto não me apoderar de Atenase reduzi-la a cinzas. Seus habitantes, vós o sabeis, iniciaram ashostilidades contra meu pai, primeiro, vindo a Sardes comAristágoras de Mileto, nosso escravo, e pondo fogo aos templose aos bosques sagrados; em seguida, tratando-vos da maneira deque deveis estar bem lembrados, quando fostes à Grécia sob ocomando de Dátis e Artafernes. Tudo isso me anima e impele afazer a guerra contra os Atenienses. Quanto mais reflito, maisvantagens vejo nessa expedição contra eles. Se viermos a

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subjugá-los e a seus vizinhos, os habitantes do país de Pélope oFrígio, a Pérsia não terá outros limites senão o céu, e o sol nãoiluminará país algum que não nos pertença. Percorrerei aEuropa inteira, e, com o vosso concurso, tornarei toda a terranum só império. Vencidos os Gregos, não haverá mais, ao queme asseguram, nação alguma que possa resistir-nos. Assim,culpados ou não, todos serão igualmente submetidos ao nossojugo. Conduzindo-vos com acerto e bravura, sereis merecedoresda minha estima e gratidão. Reuni aqueles que estiveremdispostos a seguir-vos e vinde, sem demora, ao local quedesignarei. Àquele que ali chegar com as melhores tropas, dareio que mais for do seu agrado. Assim prometo e cumprirei. Paravos mostrar que não quero regular tudo pelas minhas própriasidéias e sentimentos, permito-vos resolver entre vós esteassunto, expondo-me, em seguida, o vosso ponto de vista”.

IX — Calando-se Xerxes, Mardônio tomou a palavra:“Senhor, sois o maior de todos os Persas, não só dentre os quejá existiram, como dos que ainda estão para nascer. Atentei bempara as palavras sensatas que acabais de pronunciar, e estouconvencido de que não permitireis que os Iônios da Europa,esse povo vil e desprezível, nos insulte impunemente. Se, com opropósito único de alargar as fronteiras do nosso império,submetemos os Sácios, os Indianos, os Etíopes e várias outrasnações poderosas, que nenhum ato de hostilidade haviamcometido contra nós, como poderíamos deixar impune ainsolência dos Gregos, que nos insultaram sem razão plausível?Que temos a temer? O número de suas tropas? Seus recursoseconômicos? Não ignoramos nem a sua maneira de combater,nem a sua fraqueza, já subjugamos aqueles de seus filhos quehabitam nosso país e que são conhecidos pelos nomes de Iônios,Eólios e Dórios. Conheço bem as forças dos Gregos; já asexperimentei quando marchei contra eles por ordem de vossopai. Penetrei na Macedônia, e pouco faltou para que euchegasse até Atenas, sem que tivesse encontrado resistência. Aignorância e a estupidez dos Gregos não lhes permitem,

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ordinariamente, agir com prudência na guerra. Eles sempreescolhem, como campo de batalha, a planície mais nua e maisextensa. Assim, vencedores e vencidos sofrem as mais pesadasperdas. Quanto à sua maneira de tratar os vencidos, confessoque a ignoro.

“Uma vez que todos os Gregos falam a mesma língua,não deviam resolver as pendências que surgem entre eles porintermédio de arautos e embaixadores, não deviamexperimentar outros meios, antes de chegarem às vias de fato?E se se torna necessário resolvê-las pelas armas, não deviamescolher um terreno mais propício à defesa para uns e paraoutros? Por causa desse costume de tentar a sorte das armas emcampo aberto, os Gregos não ousaram oferecer-me combatequando cheguei até a Macedônia. Serão eles, por conseguinte,capazes de opor-se a vós, senhor, que ireis conduzindo as maispoderosas forças de terra e mar da Ásia? Não acredito que elesousem oferecer-vos resistência. Se, entretanto, eu estiverenganado; se a sua insensatez levá-los a medir forças conosco,aprenderão que somos, de todos os homens, os mais bravos e osmais hábeis na arte da guerra. De uma maneira ou de outra,cabe-nos estar bem preparados para a empresa. Nada se realizapor si mesmo, e o sucesso é, geralmente, o preço de um grandeesforço”. Assim, Mardônio com sua habitual habilidadeprocurou atenuar o que podia haver de excessivamente duro nodiscurso que Xerxes proferira.

X — Como os outros Persas guardassem silêncio, nãoousando emitir uma opinião contrária, Artábano, filho deHistaspes, tio de Xerxes pelo lado paterno, manifestou-se nestestermos: “Senhor, quando, em um conselho, as idéias não sãocompartilhadas por todos, não se pode escolher a melhor;tem-se que confiar naquele que as expôs. Quando, porém, todosdelas compartilham, escolhe-se a mais vantajosa, da mesmamaneira por que se distingue o ouro puro: confrontando umascom as outras. Aconselhei o rei Dario, vosso pai e meu irmão, a

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não fazer guerra aos Citas, pois que nenhuma vantagem lheadviria subjugando povos nômades, que nem cidades possuem.Dario, entretanto, levado pelo desejo de dominá-los, repeliu omeu conselho, e o resultado foi uma expedição malograda, daqual voltou sem suas melhores tropas. Por isso, senhor, já quevos dispondes a marchar contra homens mais bravos e maisadestrados que os Citas, é justo que eu vos advirta dos perigosque ides correr.

“Dizeis que, depois de haver lançado uma ponte sobre oHelesponto, passareis para a Europa com o vosso exército parair ter à Grécia. Pode bem acontecer sermos batidos em terra ouno mar, ou tanto num como noutro, pois esse povo tem fama debravo, fama essa que não parece sem fundamento, uma vez queos Atenienses sozinhos derrotaram o poderoso exército quepenetrou na Ática sob o comando de Dátis e Artafernes. Mas,suponhamos que eles não consigam bater-nos em terra e no mara um só tempo; se nos oferecerem combate naval e, depois dehaver-nos derrotado, destruírem a ponte sobre o Helesponto,encontrar-nos-emos, então, senhor, em grande perigo.

“Essas minhas conjecturas não estão baseadas na minhasimples prudência, mas na terrível experiência por quepassámos quando o rei, vosso pai, tendo mandado lançar umaponte sobre o Bósforo da Trácia e outra sobre o Íster, passoupara a Cítia. Então os Citas tudo fizeram para que os Iônios, aquem havia sido confiada a guarda da ponte, a destruíssem, e se,nessa ocasião, Histeu, tirano de Mileto, não fosse de parecercontrário ao dos outros tiranos, que não seria feito dos Persas edo Império? Trememos só ao pensar que a sorte do reidependeu de um único homem.

“Convém, pois, senhor, que reflitais sobre os azares daguerra, antes de expor-vos a tão grandes perigos, que reputoabsolutamente desnecessários. Segui os meus conselhos,dissolvei esta assembléia; fazei novas e maduras reflexões, e

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quando julgardes oportuno, dai as ordens que vos pareceremmais acertadas. Considero mais proveitosas as deliberaçõestomadas depois de prolongadas conjecturas, pois, mesmo que osresultados não correspondam à nossa expectativa, resta-nos asatisfação de havermos decidido com sabedoria; a falta de sorteé que terá suplantado a nossa prudência. Quando tomamos umadecisão apressada, mesmo que a fortuna nos favoreça, o sucessonão impede de pensarmos que agimos perigosa einconsideradamente.

“Não vedes que Deus lança o raio sobre os animais maisfortes, exterminando-os, poupando os pequenos e mais fracos?Não vedes que a faísca mortífera cai sempre sobre os edifíciosmais altos e sobre as árvores de maior porte? Sabeis por quê?Porque Deus se compraz em fazer baixar tudo que se eleva.Assim, também, um grande e poderoso exército é, muitas vezes,destroçado por outro pequeno, e isso pela vontade de Deus, quenão permite que simples mortais se elevem e se glorifiquemtanto quanto Ele próprio. A precipitação acarreta erros queocasionam desgraças irreparáveis. A ponderação, ao contrário,traz-nos sempre vantagens. Se não as percebemosimediatamente, viremos a reconhecê-las com o tempo.

“São esses, senhor, os conselhos que tomo a liberdadede vos dar. Quanto a ti, Mardônio, filho de Góbrias, não tiresdeduções apressadas e talvez falhas sobre os Gregos, que nãomerecem que deles se fale com desprezo. Caluniando-os, incitaso rei a marchar em pessoa contra esses povos. Eu te exorto, emnome dos deuses, a que não te entregues à calúnia, o maisodioso de todos os vícios e uma injustiça que se pratica contraum semelhante. O caluniador viola todas as regras da eqüidadequando aquele a quem acusa está ausente. Não menos culpado éo que lhe dá fé antes de estar bem informado sobre o caso. Oausente, enfim, recebe uma dupla injúria, ao ser pintado comcores falsas por um e aceito sob esse aspecto por outro.

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“Se, todavia, é forçoso fazer-se guerra aos Gregos, que orei, pelo menos, permaneça na Pérsia, e que os nossos filhosrespondam perante ele pelos nossos conselhos. Quanto a ti,Mardônio, leva contigo as melhores tropas e o maior número desoldados possível; coloca-te à testa da empresa, e se alcançaresos sucessos que prometes ao rei, que me tirem a vida a mim e ameus filhos. Se acontecer o que prevejo, que a punição recaiasobre os teus e sobre ti também, caso voltes da expedição. Senão queres aceitar essas condições e teimas em marchar contra aGrécia, asseguro-te que os que aqui ficarem saberão queMardônio, depois de pôr em jogo a segurança dos Persas, foiservir de pasto aos cães e aos pássaros nas terras dos Ateniensesou nas dos Lacedemônios, a menos que essa desgraça não lhesuceda em caminho, mostrando ao rei que espécie de homens opersuadem a fazer a guerra”.

XI — Esse discurso de Artábano encheu Xerxes defuror. “Se não fosses irmão de meu pai — disse ele —,receberias o merecido castigo pelas tuas palavras insensatas;mas como és um covarde, um homem sem brio, punir-te-ei deoutra maneira: não irás comigo à Grécia; ficarás aqui com asmulheres. Executarei, mesmo sem ti, todos os meus planos. Quenão me considerem mais filho de Dario, que contava entre seusancestrais Histaspes, Arsames, Armnes, Teispes, Ciro,Cambises e Aquêmenes, se eu não me vingar dos Atenienses.Sei muito bem que se não os atacarmos seremos, mais cedo oumais tarde, por eles atacados, como é fácil deduzir pelas suasfaçanhas anteriores, pelo incêndio de Sardes e pelas tropeliasque já fizeram na Ásia. Não podemos mais, nem nós nem eles,recuar, ou iremos sobre eles, ou eles virão sobre nós; ou asnossas terras passarão para o domínio dos Gregos, ou toda aGrécia para o nosso. Não há meio termo; a inimizade que reinaentre as duas nações não o permite. Convém vingar as injúriasque esses povos nos fizeram em primeiro lugar, a fim de que eupossa julgar do perigo oferecido por uma nação subjugada porPélope o Frígio, escravo dos meus ancestrais”.

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XII — Foram essas as palavras de Xerxes encerrandoaquela movimentada assembléia. Ao chegar a noite, porém,Xerxes, já mais calmo e mais senhor de si, pôs-se a refletirsobre as advertências feitas por Artábano, chegando à conclusãode que não seria, realmente, vantajoso realizar uma expediçãocontra a Grécia. Assim conjecturando, adormeceu, e em sonhosjulgou ver, segundo contam os Persas, um homem de grandeestatura e de belas feições, que lhe dizia o seguinte: “Então, reida Pérsia, já não queres fazer guerra à Grécia, depois de haveresordenado a mobilização de um grande exército? Não procedescom acerto, mudando assim de resolução; ninguém aprovará tuaconduta. Se queres confiar em mim, segue o caminho quetraçaste durante o dia”. Ditas essas palavras, a visãodesapareceu como que voando.

XIII — No dia seguinte, Xerxes, sem dar nenhumaimportância a esse sonho, convocou as mesmas pessoas quereunira na véspera, e falou-lhes nos seguintes termos: “Peço queme perdoem se mudo de resolução. Ainda não atingi esse graude prudência a que devo algum dia chegar. Aliás, sentia oespírito um tanto perturbado ante as contínuas exortações queme faziam para levar a cabo a empresa que ontem discutimosaqui; e quando ouvi a sugestão de Artábano, deixei-me de talmaneira levar pelos ímpetos da mocidade, que cheguei a falarde maneira pouco conveniente com uma pessoa que pela suaidade é merecedora de toda consideração. Reconheço agora aminha falta e decidi seguir os seus conselhos. Ficai tranqüilos;renuncio a fazer guerra à Grécia”.

XIV — Arrebatados com essa declaração, os Persaspresentes prosternaram-se diante do rei. Na noite seguinte, amesma visão apresentou-se novamente em sonhos a Xerxes,dizendo-lhe: “Filho de Dario, renunciaste, perante a assembléiados Persas, à expedição contra a Grécia, sem nenhuma atençãoà sugestão que te fiz, como se não a tivesses compreendido.Advirto-te que, se não te pões imediatamente em marcha,

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sofrerás as conseqüências da tua obstinação: de grande epoderoso que te tornaste em pouco tempo, também em poucotempo te tomaras pequeno e humilde”.

XV — Aterrorizado com essa visão, Xerxes saltou doleito e mandou chamar Artábano. “Artábano — disse-lhe, assimque o viu chegar —, não estava no meu bom senso quandoretruquei aos teus conselhos com palavras injuriosas; mas, logome arrependi e reconheci que tinhas razão. Não posso,entretanto, embora seja esse o meu desejo, renunciar ao meupropósito, e digo-te por que: Quando já tinha mudado deresolução, apareceu-me, em sonho, uma visão insinuando-meque devia levar avante a minha idéia e fazendo-me terríveisameaças caso eu voltasse atrás. Se é um deus quem ma envia,desejando decididamente que eu faça guerra à Grécia, acreditoque ela te aparecerá também, sugerindo-te o mesmo que a mim,se envergares os meus trajes reais e, depois de haveres sentadono trono, deitares no meu leito”.

XVI — A princípio, Artábano negou-se a aceitar oconvite, porque não se julgava digno de sentar-se no trono real,mas, ante a insistência do soberano, acabou acedendo, depois dehaver-lhe falado desta maneira: “Grande rei, considero tãoglorioso seguir um bom conselho, como tê-lo dado. Reconheçoa vossa grandeza e a vossa magnanimidade, que a companhiados maus ameaça prejudicar. A vós pode-se bem aplicar o quese diz do mar: Nada mais útil aos homens do que o oceano; maso sopro impetuoso dos ventos agita-o, tirando-lhe a calmanatural. Quanto às vossas palavras, que vós mesmo reputais deinjuriosas, senti-as menos do que ver que de dois conselhos, umtendente a aumentar a insolência dos Persas, e o outro areprimi-la, mostrando como é perigoso aos homens nãoimporem limites aos seus desejos, escolhestes o mais perigosopara vós e para a nação. Agora, quando já tínheis reconsideradoa vossa atitude e optado pelo melhor partido, renunciando àexpedição contra a Grécia, dizeis que uma visão enviada por um

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deus vos proíbe de desmobilizar o exército que levantastes. Taissonhos, senhor, nada encerram de divino; ocorrem por acaso eprovêm de objetos e coisas em que concentramos o pensamentodurante o dia. Ora, como sabeis, no dia anterior, a expedição àGrécia foi assunto bastante debatido no conselho. Se, porém,esse sonho encerra, como dizeis, algo de divino, é, com efeito,provável que a visão se apresente a mim, revestido como estareinas vossas vestes reais, ordenando-me o mesmo que ordenou avós. Convém, todavia, observar que, se ela quiser revelar-semais uma vez, logo perceberá, embora eu esteja em vossasvestes, que não sou o rei. Se pelo simples fato de eu envergar osvossos trajes, ela se revelar a mim, tomando-me por vós, então éporque nada encerra de divino. Se, ao contrário, apresentar-seunicamente a vós, será porque há nela, realmente, um desígniosuperior. Em todo caso, estou pronto a obedecer às vossasordens, deitando-me no vosso leito; mas, enquanto essa visãonão se revelar a mim, manterei minha opinião a respeito”.

XVII — Depois de haver assim falado, Artábano,esperando poder provar a Xerxes que o sonho nada significava,fez o que ele lhe havia ordenado. Vestiu seus trajes reais,sentou-se no trono e depois recolheu-se ao leito. Logo queadormeceu, surgiu-lhe em sonho a mesma visão que seapresentara a Xerxes, dirigindo-lhe estas palavras: “Então és tuquem procura demover Xerxes da sua expedição contra aGrécia, como se pudesses dirigir as suas ações? És tu quem seopõe ao destino? Pois bem, serás, por isso, punido no presente eno futuro. Quanto a Xerxes, já lhe fiz ver as desgraças a queestará sujeito se desobedecer”.

XVIII — Tais as ameaças que Artábano julgou ouvir.Pareceu-lhe também que a visão queria queimar-lhe os olhoscom um ferro em brasa. Despertando num grito, saltou do leitoe foi à procura de Xerxes, relatando-lhe o acontecido. “Como jávi, senhor — falou ele, depois de fazê-lo ciente da visão quetivera —, nações poderosas serem destruídas por outras muito

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inferiores, procurei dissuadir-vos da empresa que tínheis emmente realizar e evitar que vos abandonásseis ao ardor da vossamocidade, pois sei o quanto é perigoso nutrir desejosdemasiadamente ambiciosos. Lembrando-vos o destino daexpedição de Ciro contra os Masságetas; da de Cambises contraos Etíopes, e da de Dario contra os Citas, da qual ele fazia parte,desejava apenas poupar-vos algum desgosto promovendo essaguerra, contribuindo, assim, para a vossa tranqüilidade efelicidade. Mas, já que os próprios deuses vos incitam a essaempresa, parecendo ameaçar os Gregos com uma grandedesgraça, dou-me por vencido e mudo de opinião. Comunicaiaos Persas a visão que os deuses vos enviaram e dizei-lhes que,em vista do ocorrido, devem continuar os preparativosnecessários para a expedição. Quanto a vós, senhor,conduzi-vos com prudência, para que a ajuda dos deuses nãovos falte em nada que fizerdes”.

Encorajado com a visão que se lhe revelara tãoinsistentemente, Xerxes, logo ao amanhecer, pôs os Persas a parde tudo, e Artábano, o único que se mostrara contrário à idéiada expedição, agora era o primeiro a estimulá-lo a realizá-la.

XIX — Enquanto Xerxes se preparava para marcharcontra os Gregos, teve, durante o sono, uma terceira visão.Pareceu-lhe ter a fronte cingida por um ramo de oliveira, que,espalhando-se, cobria toda a terra. Comunicando o sonho aosmagos, estes disseram-lhe que tal visão significava que todos oshomens sobre a terra ficariam submetidos ao seu domínio. Logoapós a interpretação desse sonho pelos magos, os Persas quehaviam tomado parte no conselho reassumiram seus postos epuseram-se a executar, com todo ardor, as ordens do soberano,para receberem as recompensas prometidas.

XX — Xerxes realizou, então, o levantamento de tropas,buscando-as por todo o continente, e, submetido o Egito, levouquatro anos a armazenar provisões. Concluídos os preparativos,

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pôs-se em marcha, no quinto ano, à frente de poderosas forças.De todas as expedições de que temos conhecimento, foi essa,sem dúvida, a maior e a mais bem organizada, a ela não sepodendo comparar nem a de Dario contra os Citas, nem a dosCitas, que, perseguindo os Cimérios, penetraram na Média esubjugaram quase toda a Ásia Superior, o que levou Dario,pouco mais tarde, a vingar-se deles. O mesmo podemos dizer daexpedição dos Atridas contra Tróia e da dos Mísios e dosTeucros, que, antes da guerra de Tróia, transpuseram o Bósforopara lançar-se sobre a Europa. Tendo subjugado todos osTrácios, desceram em direção ao mar Iônio, avançando para osul, até Peneu.

XXI — Essas expedições e todas as outras de que nãofiz menção não podem, como disse, comparar-se com a deXerxes. Realmente, que nação da Ásia não arrastou ele contra aGrécia, que rios não esgotou ele formando provisões de águapara suas tropas, com exceção das grandes e caudalosascorrentes d’água? Entre os povos mobilizados para essa guerra,uns forneceram navios; outros tropas de infantaria; outroscavalaria; estes, navios de transporte para os cavalos e tropas;aqueles, navios longos para o lançamento de pontes; outros,enfim, forneceram víveres e barcos para transportá-los. Ospreparativos incluíram a perfuração do monte Atos, que, naexpedição anterior, havia causado a perda da maior parte dasunidades da frota persa, sacrificando grande número de vidas.Trabalhou-se ali durante três anos. Dos trirremes fundeados naenseada de Eleunte partiam destacamentos de todos os corposdo exército, os quais eram obrigados, a chicotadas, a perfurar omonte, revezando-se as turmas para apressar a tarefa. Oshabitantes desse monte também ajudaram nos trabalhos deperfuração, que eram dirigidos por Bubares, filho de Megabizo,e Artaqueu, filho de Astreu, ambos persas de nascimento.

XXII — O monte Atos é uma vasta e famosa montanha,bastante habitada, que avança para o mar e termina no lado do

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continente, formando uma península, cujo istmo mede cerca dedez estádios. Nesse ponto estende-se uma planície pontilhada depequenas colinas que vão do mar dos Acântios até o de Torone,situado em frente. No istmo, onde termina o monte Atos,ergue-se uma cidade grega denominada Sanos. Aquém dessacidade e em volta do monte encontram-se as de Dio, Olofixo,Arcrotoon, Tissos e Cleonas.

XXIII — Vejamos como foi feita a perfuração dessamontanha. Traçou-se primeiramente uma linha reta até a cidadede Sanos, dividindo-se o terreno por nações. Quando o canalchegou a uma certa profundidade, enquanto uns continuavam acavá-lo, outros iam entregando a terra solta aos que achavamnas escadas construídas para esse fim; estes passavam-na demão em mão, até fazê-la chegar aos que se encontravam no alto,que então a levavam para longe dali. As bordas do canalficaram abauladas, exceto na parte confiada aos Fenícios, dandoaos homens duplo trabalho para nivelá-las. Isso tinha,fatalmente, de acontecer, porque o canal não tinha declive,apresentando, em cima e em baixo, a mesma largura. Foi aí queos trabalhadores fenícios revelaram todo o seu talento em setratando de escavações. Para cavar a parte que lhes foraconfiada, fizeram uma abertura bem maior do que a largura queo canal deveria ter, e, à medida que cavavam, iam estreitando-a,de sorte que o fundo acabou igual ao das partes confiadas àsoutras nações. Havia nas imediações um prado, onde elesinstalaram um mercado, para onde transportaram uma grandequantidade de farinha vinda da Ásia.

XXIV — Acho que Xerxes mandou rasgar esse canal nomonte Atos por uma questão de orgulho, a fim de dar umademonstração do seu poder e legar um monumento àposteridade. Poder-se-ia levar, sem dificuldade alguma, osnavios de um mar para o outro, através do istmo; mas elepreferiu abrir um canal comunicando-se com o mar, e bastantelargo, de modo a poderem dois trirremes por ele navegar ao

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mesmo tempo. As tropas encarregadas de abri-lo tinhamtambém ordem de construir uma ponte sobre o Estrímon.

XXV — Para a construção dessa ponte, o soberanopersa mandou preparar cordames de linho e de biblos. Dandoordens aos Fenícios e aos Egípcios para transportarem osvíveres destinados ao exército, a fim de que as tropas e osanimais de carga que ele conduzia à Grécia não viessem a sofrerfome, informou-se da situação dos países que contribuíam paraessa expedição e fez transportar, de todos os recantos da Ásia,grandes quantidades de farinha em navios apropriados para atravessia, mandando depositá-la nos lugares mais cômodos,parte num sítio, parte noutro. A maior parte dessa farinha foilevada para a costa da Trácia e depositada num lugar chamadoLeuce Acte. Levaram-na também para Tirodize, nas terras dosPeríntios, para a Dórica, para Éjon, sobre o Estrímon, e para aMacedônia.

XXVI — Deixando uma pequena parte de seuscomandados entregues a essa tarefa, Xerxes partiu com umpoderoso exército de terra, de Critália, na Capadócia, onde sehaviam concentrado, de acordo com as suas ordens, todas astropas que deviam acompanhá-lo por terra, e marchou emdireção a Sardes. Não sei dizer qual foi o general que recebeu arecompensa que ele prometera a quem lhe trouxesse asmelhores tropas, e ignoro mesmo se se chegou a tratar disso.

As forças persas, tendo atravessado o Hális, penetraramna Frígia, e, atravessando esse país, chegaram a Celenas, ondese encontram as nascentes do Meandro e as de um outro rio nãomenos considerável, a que se dá o nome de Cataratas. OCataratas nasce justamente na praça pública de Celenas e selança no Meandro. Vê-se, na cidadela, a pele do sileno Mársias,ali colocada por Apolo em figura de um simples mortal,segundo dizem os Frígios, depois de havê-lo esfolado.

XXVII — Pítio, filho de Átis, lídio de nascimento,

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morava nessa cidade. Recebeu Xerxes e as suas tropas com todapompa e cortesia, e ofereceu-lhe dinheiro para as despesas daguerra, tendo o soberano perguntado aos Persas que se achavampresentes quem era esse Pítio e quais as suas posses parafazer-lhe tal oferecimento. “Senhor — respondeu um dosinterrogados —, esse homem é o mesmo que fez presente aDario, vosso pai, de um plátano e de uma vinha de ouro. É,depois de vós, o homem mais rico de que já tivemosconhecimento”.

XXVIII — Surpreso com estas últimas palavras, Xerxesfoi, ele próprio, inquirir Pítio sobre as suas riquezas. “Nãopretendo ocultar-vos, grande rei, o montante das minhasriquezas. Dir-vos-ei com toda a franqueza. Ao saber da vossavinda e tendo a intenção de vos oferecer dinheiro para aexpedição, calculei as minhas riquezas e vi que possuía dois miltalentos de prata e quatro milhões de estáteres dáricos em ouro,menos sete mil. Ofereço-vos todo esse dinheiro, reservandopara mim apenas os meus escravos e as minhas terras, quebastam para a minha subsistência”.

XXIX — Xerxes, encantado com a oferta, disse-lhe:“Meu hospedeiro, desde a minha partida da Pérsia ainda nãohavia encontrado ninguém que quisesse dar acolhida às minhastropas ou oferecer-me qualquer soma para cobrir as despesascom a expedição. Tu, porém, não contente de receber a mim eao meu exército com cortesia e prodigalidade, ainda me fazesessa generosa oferta. Aceita, pois, em troca, a minha amizade;e, para que nada falte aos teus quatro milhões, dou-te os sete milestáteres que não possuís, e a tua conta ficará redonda. Goza, tusozinho, dos bens que adquiriste e procura ser sempre assim,como te mostraste para comigo; nunca haverás de arrepender-te,nem no presente nem no futuro”.

XXX — Cumprindo a promessa de completar a somadeclarada por Pítio, o soberano pôs-se em marcha, passando

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perto de Anava, cidade da Frígia, e de um lago de onde se extraisal, e chegou a Colossos, outra grande cidade da Frígia, onde oLico desaparece, precipitando-se num abismo, indo reaparecermais adiante, para lançar-se no Meandro. Deixando Colossos, oexército atingiu Cidrara, na fronteira da Frígia com a Lídia,onde uma inscrição gravada numa coluna erguida por ordem deCreso indicava os limites dos dois países.

XXXI — Deixando a Frígia, Xerxes entrou na Lídia,onde a estrada se divide em dois braços. Um deles, à esquerda,conduz à Cária, e o outro, à direita, a Sardes. Tomando-se esteúltimo, tem-se, necessariamente, de atravessar o Meandro epassar pela cidade de Calatebos, onde se fabrica mel commírica(1) e trigo. Tomando esse caminho, Xerxes encontrou umplátano que lhe pareceu tão belo, que mandou orná-lo comcolares e braceletes de ouro, confiando a sua guarda a umimortal. Continuando a marcha, chegou, no dia seguinte, àcidade dos Lídios.

XXXII — Logo que chegou a Sardes, enviou arautos atoda a Grécia, exceto Atenas e a Lacedemônia, para pediremterra e água e ordenarem o aprovisionamento da mesa do rei.Assim agiu por julgar que os que haviam outrora recusado terrae água a Dario não deixariam de satisfazer agora a ele, Xerxes,atemorizados que deviam estar com a sua marcha sobre aGrécia.

XXXIII — Enquanto se preparava para prosseguir amarcha em direção a Abido, adiantavam-se os trabalhos deconstrução da ponte sobre o Helesponto, para a travessia daÁsia para a Europa. Do Quersoneso ao Helesponto, entre ascidades de Sesto e Mádito, estende-se uma costa escarpada, quese alonga para o mar diante de Abido. Foi ali que Xantipo, filhode Arífron, general dos Atenienses, capturou, pouco tempodepois, Artaictes, persa de nascimento e governador de Sardes,mandando crucificá-lo, por haver ele levado mulheres para o

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templo de Protesilau, em Eleunte, e ali cometido atos iníquos.

XXXIV — Os encarregados da construção da ponteiniciaram-na do lado de Abido, estendendo-a até o trecho a queacabamos de nos referir. De Abido à costa oposta há umadistância de sete estádios. Enquanto os trabalhadores feníciosligavam os navios com cordames de linho, para a formação daponte, os Egípcios serviam-se, para o mesmo fim, de cordamesde biblos. Aconteceu, porém, que, logo que a ponte foi dada porterminada, levantou-se uma terrível tempestade, rompendo oscordames e despedaçando os navios.

XXXV — Sabedor do ocorrido, Xerxes, indignado,mandou aplicar trezentas chicotadas no Helesponto e lançar alium par de cadeias. Ouvi dizer que ele ordenou também aosexecutores que marcassem as águas com um ferro em brasa;mas o que é certo é que, juntamente com as chicotadas, ordenoua um dos executores que proferisse este discurso bárbaro einsensato: “Onda traiçoeira, teu senhor assim te pune porque oofendeste sem que ele te houvesse dado motivo para isso. O reiXerxes passará por ti, quer queiras, quer não. É com razão queninguém te oferece sacrifícios, pois que és um rio(2) traidor evil”. Depois de castigar assim o mar, fez cortar a cabeça dos quehaviam dirigido a construção da ponte.

XXXVI — Executada essa ação bárbara, encarregououtros da construção de uma nova ponte. Eis como procederamesses homens: Ligaram, de um lado, trezentos e sessenta naviosde cinqüenta remos e vários trirremes, e do outro, trezentos equatorze. Os primeiros tinham os costados voltados para oPonto Euxino, e os demais, do lado do Helesponto, resistiam àcorrenteza, mantendo os cordames bem estendidos. Dispostasassim as embarcações, lançaram grossas âncoras, parte do ladodo Ponto Euxino, para resistir aos ventos que sopram desse mar,e parte do lado do ocidente e do mar Egeu, por causa dos ventosque sopram do sul e do sudoeste. Deixaram, em três pontos

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diferentes, uma passagem livre entre os navios de cinqüentaremos, para as pequenas embarcações que quisessem entrar ousair do Ponto Euxino. Terminado o trabalho, estenderam oscabos com auxílio das máquinas de madeira que se achavam emterra. Não se serviram de cordames simples, como os outrosfizeram da primeira vez; trançaram os de linho branco, dois adois, e os de biblos, quatro a quatro. Esses cabos eram todos damesma espessura, mas os de linho eram mais fortes, pesandoum talento por côvado. Estendidos os cabos, cortaram grossospedaços de madeira, seguindo a largura projetada da ponte, ecolocaram-nos, um ao lado do outro, sobre os referidos cabos.Uniram bem os pedaços de madeira, estendendo, em seguida,sobre os mesmos, as pranchas previamente preparadas,cobrindo-as com terra, que aplainaram. Feito isso, ergueram decada lado uma barreira, a fim de que os cavalos e outrosanimais de carga não se assustassem ao verem o mar por baixodeles.

XXXVII — Terminada a construção da ponte e dosdiques na embocadura do canal aberto no monte Atos,destinados a impedir a obstrução da entrada pelo fluxo daságuas, foi a notícia levada a Sardes, e Xerxes pôs-se novamenteem marcha. Deixando aquela cidade no começo da Primavera,depois de haver passado ali todo o Inverno, tomou a estrada deAbido, com o seu exército em boa ordem. Já havia vencido umaboa parte do percurso, quando, de súbito, o sol desapareceu docéu, sereno e sem nuvens, e o dia cedeu lugar à noite. Inquietoante esse fenômeno, o soberano consultou os magos sobre osignificado do mesmo, respondendo eles que os deusespressagiavam aos Gregos a destruição de suas cidades, pois queo sol anunciava o futuro da Grécia, e a lua o dos Persas.Satisfeito com a resposta, continuou a jornada.

XXXVIII — Nesse momento, o lídio Pítio, aterrorizadocom o fenômeno, veio procurá-lo. Os presentes que havia feitoao soberano, e os que, em troca, dele recebera, encorajaram-no

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a falar-lhe desta maneira: “Senhor, eu desejava uma graça;dignar-vos-eis a conceder-ma? É pouco para vós e muito paramim”. Xerxes, esperando um pedido bem diferente do que lheia ser feito, prometeu satisfazê-lo no que desejasse. Pítio, cheiode confiança, continuou: “Grande rei, tenho cinco filhos, e asorte quis que todos fossem chamados a fazer parte da vossaexpedição contra a Grécia. Pensai, senhor, na minha velhice;não permiti que eu fique ao desamparo; deixai comigo pelomenos o primogênito, para que possa cuidar de mim eadministrar os meus bens. Quanto aos outros, levai-osconvosco, e possam eles voltar depois de haverdes conseguido avitória, segundo os vossos desejos”.

XXXIX — “És egoísta e mau — respondeu-lhe Xerxes,indignado —; eu próprio marcho contra a Grécia com meusfilhos, meus irmãos, meus parentes, meus amigos; e tu ousasfalar-me do teu filho, tu, meu escravo, que devias seguir-mecom tua mulher e toda a tua criadagem. Convém que saibas queo espírito do homem reside nos ouvidos. Quando ele ouvecoisas agradáveis, regozija-se, e a alegria se expande por todo ocorpo; mas quando ouve coisas desagradáveis, irrita-se. Se aprincípio te conduziste bem; se teus oferecimentos foramaltamente louváveis, não poderás, entretanto, vangloriar-te dehaveres suplantado um rei em liberalidade. Assim, embora hojete mostres pouco digno das tuas ações passadas, tratar-te-eimenos rigorosamente do que mereces. A hospitalidade queofereceste a mim e aos meus salva a tua vida e a de quatro dosteus filhos; mas punir-te-ei com o sacrifício daquele que maisamas”. Depois de assim falar, mandou procurar o filho maisvelho de Pítio e cortar-lhe o corpo em duas partes, colocandouma metade à direita e a outra à esquerda do caminho por ondedevia passar o exército.

XL — Executadas essas ordens, o exército passou entreas duas partes do corpo do filho de Pítio, as bagagens e osanimais de carga em primeiro lugar, seguidos das tropas de

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todas as nações que tomavam parte na expedição. Essas tropas,em absoluta confusão, marchavam separadas do grosso doexército, onde se encontrava o soberano, estando dele separadaspor um considerável intervalo. À frente do corpo principal doexército seguiam mil cavaleiros escolhidos entre todos osPersas, seguidos de mil infantes armados de lanças com aspontas para baixo, também tropa de elite como a que aantecedia. Vinham, em seguida, dez cavalos sagrados niseus,com soberbos arneses. Eram chamados niseus porqueprovinham da vasta planície de Niséia, na Média, que os produzda melhor qualidade. Logo a seguir vinha o carro sagrado deJúpiter, puxado por oito cavalos brancos, com um condutorsegurando-lhes as rédeas. A ninguém era permitido subir nessecarro. Atrás dele vinha o de Xerxes, puxado por cavalos niseus,tendo ao lado o condutor, um persa de nome Patiranfes, filho deOtanes.

XLI — Foi com suas tropas assim dispostas que Xerxesdeixou Sardes. Quando lhe dava vontade, passava do seu carropara uma harmamaxe(3), sendo seguido por mil homensarmados de lanças com a ponta para cima, segundo o costume.Os que compunham esse grupo eram escolhidos entre os maisnobres e os mais bravos da Pérsia. Atrás desse grupo vinhamoutros mil cavaleiros de elite, seguidos por dez mil infantes,escolhidos entre as outras classes persas. Mil desses homenslevavam granadas de ouro em lugar de ferro no cabo da lança,formando no centro dos outros nove mil, que conduziamgranadas de prata na ponta das suas lanças. Os que marchavamcom as lanças voltadas para baixo levavam também granadas deouro, mas os que vinham logo depois de Xerxes traziam pomosde ouro nas suas lanças. Esses dez mil homens eram seguidosde dez mil persas a cavalo, havendo, entre esse corpo decavalaria e o resto das tropas que marchavam em confusão, umintervalo de dois estádios.

XLII — Deixando a Lídia, o exército tomou a direção

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do Caíque, penetrou na Mísia e, deixando à esquerda o monteCane, passou por Atárnea e dirigiu-se para a cidade de Carene.Dessa cidade, prosseguiu a marcha para a planície de Tebas,passou próximo a Adramíteo e Antandro, cidade pelásgica, e,deixando à esquerda o monte Ida, penetrou na Tróada, ondeacampou com a chegada da noite. Sobrevindo uma grandetempestade, acompanhada de terríveis trovões e relâmpagos,que matou muitos dos seus componentes, o exército abandonouo local, indo acampar às margens do Escamandro. As águasdesse riacho, o primeiro encontrado desde a partida de Sardes,não foram suficientes para matar a sede das tropas e dosanimais de carga.

XLIII — Logo que chegou às margens do Escamandro,Xerxes subiu a Pérgamo de Príamo(4), que desejava muito ver.Depois de tê-la examinado e se inteirado das suasparticularidades imolou ali mil bois a Minerva de Tróia, e osmagos fizeram libações em honra aos heróis do país. Depoisdisso, uma espécie de terror pânico manifestou-se noacampamento durante a noite, e Xerxes dali partiu ao nascer dodia, tendo à esquerda as cidades de Reteu, Ofrínio e Dárdano,vizinha à de Abido, e à direita a dos Gergites-Teucros.

XLIV — Chegando a Abido, Xerxes desejou passar emrevista todas as tropas. Para isso, os habitantes da cidadefizeram erguer sobre o outeiro uma grande plataforma demármore branco, de acordo com as instruções que haviamrecebido antes da chegada do soberano. Dali, lançando o olharpara as praias e para a paisagem imensa, Xerxes contemplouorgulhoso seus exércitos de terra e mar. Depois de havergozado, durante algum tempo, desse soberbo espetáculo,manifestou o desejo de assistir a um combate naval, no que foiprontamente satisfeito. Do combate simulado saíram vencedoresos Fenícios, mostrando-se o soberano encantado com odesenrolar da luta e com a demonstração de suas forças.

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XLV — Vendo o Helesponto coalhado de navios, e aspraias e as planícies de Abido cheias de guerreiros, Xerxesfelicitou-se pela sua boa sorte e sentiu-se tomado de intensosentimento de felicidade; mas, logo em seguida,inexplicavelmente pôs-se a chorar.

XLVI — Artábano, seu tio pelo lado paterno, que haviaprocurado dissuadi-lo da idéia de uma guerra contra a Grécia,falando-lhe sem rodeios e com toda a franqueza sobre um talempreendimento, vendo-o a chorar, a ele se dirigiu nestestermos: “Senhor, vossa conduta de agora é bem diferente da dehá pouco. Há momentos, vós vos consideráveis feliz, e agoraderramais lágrimas”. “Quando refleti — volveu Xerxes — sobrea brevidade da vida humana e ao pensar que de tantos milhõesde homens não restará um só dentro de cem anos, senti-metomado de compaixão”. “Experimentamos, no decurso de nossavida — tornou Artábano —, coisas bem mais tristes do que opróprio sentimento da morte. Apesar da brevidade da vidahumana, a que vos referistes, não há homem feliz, seja no meiodessa multidão, seja em todo o universo, ao qual não venha aoespírito, já não digo uma vez, mas freqüentemente, o desejo demorrer. As vicissitudes por que passamos, as enfermidades quenos perturbam, fazem com que a vida nos pareça bem longa,por mais curta que ela seja. Numa existência tão infeliz, ohomem vive a suspirar pela morte, encarando-a como um portode salvação. Se temperamos a acridez de nossa vida com algunsprazeres, os deuses logo manifestam o seu ciúme”.

XLVII — “Artábano — redarguiu Xerxes —, a vidahumana é tal como a apresentas, mas ponhamos fim a tão tristescogitações, quando a nossa sorte se mostra venturosa. Dize-me,a visão que tiveste não foi bastante clara? Serias ainda capaz deprocurar dissuadir-me de levar a guerra à Grécia, ou mudasterealmente de opinião? Fala-me sem rodeios. “Senhor —replicou Artábano —, possa a visão que tivemos levar-nos àrealização daquilo que ambos desejamos. Confesso-vos,

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todavia, que continuo bastante temeroso; que não me sintosenhor de mim quando, entre as coisas sobre que reflito, vejoduas da mais alta importância, que te são contrárias”.

XLVIII — “Quais essas duas coisas que, na tua opinião,me são contrárias? — interrogou Xerxes. — Será que julgas queo meu exército de terra não é suficientemente poderoso e que osGregos poderão opor-nos um mais forte? Consideras a nossafrota inferior à deles? Se nossas tropas te parecem poucoconsideráveis para a empresa, ainda há tempo para fazermosnovos recrutamentos”.

XLIX — “Senhor — obtemperou Artábano —, nenhumhomem de senso seria capaz de julgar os vossos exércitos deterra e mar insuficientemente poderosos ou pouco adestradospara um tal empreendimento. Se fizerdes novos recrutamentos,as duas coisas de que vos falei ser-vos-ão ainda mais contrárias.Essas duas coisas, senhor, são a terra e o mar. Com efeito, se selevanta uma tempestade, não há, como presumo, porto nomundo bastante vasto para abrigar vossa frota, colocando-a emsegurança; e mesmo que houvesse um porto em tais condições,seria preciso que existissem outros com a mesma capacidade emtodos os lugares aonde ireis. Ora, não existindo portos quesatisfaçam essas condições, estaremos, senhor, à mercê deacontecimentos fortuitos, nos quais não podemos influir. Issocom relação ao mar, ao deslocamento da vossa frota. Quanto àterra, senhor, o problema que se nos oferece não é menosimportante. Senão, vejamos: se ninguém se opuser às vossasconquistas, à medida que avançardes, ela se irá tornandoinsensivelmente, sem perceberdes, cada vez mais contrária aosvossos desígnios. Os homens nunca estão satisfeitos com osprimeiros sucessos que obtêm; estão sempre sedentos em buscada glória. Assim, se não fordes detido na vossa marcha, aextensão do trajeto e o tempo que passa vos farão experimentaras agruras da fome. O homem prudente pensa sempre nas suasdeliberações, as más circunstâncias que possam sobrevir nos

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seus empreendimentos, mas, no momento da execução,mostra-se ousado e intrépido”.

L — “Artábano — replicou Xerxes —, concordo com oque acabas de dizer, mas não devemos encarar todas as coisascom a mesma circunspecção. Se em todos os negócios fôssemosdeliberar com o mesmo escrúpulo, nunca faríamos nada. Émelhor proceder com ousadia, medir apenas a metade dos malespossíveis, do que deixar-se dominar por temores prematuros,nada fazendo. Se combates todas as opiniões sem propor em seulugar algo mais acertado, nada conseguirás sobre aquele que foide opinião contrária à tua. Ora, ao homem nunca é dado acertarem todas as suas previsões. As pessoas ousadas geralmenteobtêm sucesso em suas iniciativas, enquanto que as que agemcom excesso de cautela raramente o conseguem. A que grau depoderio já não chegaram os Persas! Se os reis que meprecederam houvessem pensado como tu, ou tivessemconselheiros que assim pensassem, não veríamos agora, comovemos, o nosso povo elevado às culminâncias da glória. Foienfrentando os perigos e os azares da guerra que elesestenderam as fronteiras do império; pois o triunfo, nas grandesempresas, só se conquista enfrentando o perigo. Ciosos dasnossas tradições de conquista e desejosos de ombrear com osnossos antepassados, lançamo-nos a mais uma campanha, namais bela estação do ano, e, depois de havermos subjugado aEuropa inteira, voltaremos à Pérsia, sem havermosexperimentado a fome nem qualquer outra desgraça. Trouxemosconosco víveres em quantidade suficiente para levarmos a bomtermo o nosso empreendimento, e, como todas as nações quefaremos experimentar o nosso poderio cultivam a terra e nãosão nômades, havemos de encontrar muito trigo para dele nosapropriarmos”.

LI — “Já que achais, senhor — volveu Artábano —, quenada temos a temer, permiti ainda um conselho. Quando se temmuito que dizer, é preciso falar muito. Ciro, filho de Cambises,

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subjugou toda a Iônia, com exceção de Atenas, e tornou-atributária dos Persas. Eu vos aconselho, pois, a não lançar osIônios contra os seus ascendentes. Não necessitamos deles parasermos superiores aos nossos inimigos. Pode-se dizer dos quenos acompanham, que é preciso que sejam os mais injustos doshomens, para tomarem parte numa empresa que visa submetersua própria pátria. O mais certo é que ajudem a mantê-la livre.Refleti, senhor, na justeza desta velha sentença: Ao iniciarmosuma empresa, geralmente ignoramos as conseqüências quepoderão advir”.

LII — “Artábano — redarguiu Xerxes —, são errôneasas tuas impressões, principalmente no que diz respeito aoprocedimento dos Iônios que conosco colaboram. Temos provada fidelidade deles. Tu mesmo foste testemunha disso, bemcomo todos os que tomaram parte na expedição de Dario contraos Citas. Dependia deles a salvação ou a desgraça das nossastropas, e eles se mantiveram fiéis e solidários conosco,auxiliando-nos em vez de prejudicar-nos. Aliás, não devo recearnenhuma sortida da parte de um povo que deixou comogarantia, nos meus Estados, seus bens, suas mulheres e seusfilhos. Fica, pois, tranqüilo; enche-te de coragem; vela pelaconservação da minha casa e do meu império; é a ti, a tisomente que confio o meu cetro”.

LIII — Depois dessa palestra, Xerxes enviou Artábanode volta a Susa e fez vir à sua presença os mais ilustres dentreos Persas. Quando os viu reunidos diante de si, assim lhes falou:“Persas, eu vos convoquei para vos exortar a conduzir-voscomo homens de coragem e a não deslustrar as tradições e osempreendimentos dos nossos antepassados. Que todos em gerale cada um em particular demonstrem igual ardor e alto espíritode luta. Trabalhai com zelo pelo interesse comum, aplicandotoda a vossa capacidade na guerra que vamos travar com povos,segundo me informaram, muito belicosos. Se os batermos nosprimeiros encontros, não encontraremos mais resistência em

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parte alguma. Passemos, pois, para a Europa, depois deendereçarmos nossas preces aos deuses tutelares da Pérsia”.

LIV — Nesse mesmo dia os Persas se prepararam paraganhar o outro continente. Na manhã do dia seguinte, enquantoaguardavam o levantar do sol queimaram sobre a ponte todaespécie de essências aromáticas, juncando o caminho de mirto.Logo que o sol apareceu, Xerxes, empunhando uma taça deouro, fez libações no mar, rogando ao astro-rei para afastar osobstáculos que pudessem impedi-lo de subjugar a Europa.Terminada a prece, lançou a taça no Helesponto, juntamentecom uma cratera de ouro e um sabre de um tipo usado na Pérsiae denominado acinaces. Não posso afirmar se, lançando essesobjetos ao mar, ele prestava uma homenagem ao sol, ou se,arrependido de haver fustigado o Helesponto, procuravaapaziguá-lo com tais oferendas.

LV — Terminada a cerimônia, iniciou-se a travessia daponte, passando a cavalaria e a infantaria do lado do PontoEuxino, e do lado do mar Egeu os animais de carga e os servos.Os dez mil persas iam na frente, tendo todos uma coroa nacabeça. Logo atrás seguiam os corpos de tropas compostos desoldados de todas as nações. Com a chegada da noite, foiinterrompido o movimento das forças através da ponte.

No dia seguinte, foi concluída a travessia, passando emprimeiro lugar os cavaleiros que levavam suas lanças com aponta voltada para baixo, tendo também uma coroa na cabeça.Vinham, em seguida, os cavalos e o carro sagrado, e logo atráso próprio Xerxes, os lanceiros e o grupo de mil cavaleiros,seguidos pelo resto do exército. Enquanto isso, os naviosdirigiam-se para a margem oposta. Segundo ouvi dizer, osoberano foi o último a passar.

LVI — Atingindo o continente, Xerxes assistiu aodesfile de suas tropas, que marchavam sob golpes de chicote(5).Esse espetáculo durou sete dias e sete noites sem interrupção.

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Conta-se que, quando o soberano atravessou o Helesponto, umhabitante do litoral exclamou: “Oh Júpiter! Por que, sob a formade um persa e sob o nome de Xerxes, arrastais convosco tantoshomens para destruir a Grécia? Ser-vos-ia fácil fazê-lo sem oconcurso deles”.

LVII — Quando terminou o desfile das tropas,verificou-se um fenômeno, a que Xerxes não deu nenhumaimportância: uma égua deu à luz uma lebre. Isso queriasignificar que o soberano levaria à Grécia, com muito fausto eostentação, um exército numeroso, mas que voltaria ao ponto departida, forçado que seria, por motivo de saúde, a bater emretirada. Quando ele ainda se encontrava em Sardes,verificara-se um fenômeno semelhante: uma mula gerou umpotro que trazia as partes que caracterizam os dois sexos,estando as do macho por cima.

LVIII — Xerxes, sem dar atenção a esse segundofenômeno, como não dera ao primeiro, pôs-se em marcha com oexército de terra, enquanto a frota zarpava do Helesponto econtornava a costa, seguindo uma rota oposta à do exército, istoé, velejando para o Poente, em demanda do promontório deSarpédon, onde tinha ordem de estagiar. O exército de terra, aocontrário, tomando a direção do Levante em rota para oQuersoneso, atravessou a cidade de Ágora, deixando, à direita,o túmulo de Heléia, filha de Atamas, e à esquerda, a cidade deCárdia. Dali, contornando o golfo Melas, atravessou o rio domesmo nome, cujas águas foram esgotadas pelas tropas, nãobastando para matar a sede de todos. Transpondo esse rio, oexército voltou-se para o ocidente, passou ao longo de Enos,cidade eólia, e do lago Estentóris, chegando finalmente aDorisco.

LIX — Dorisco é o nome dado a uma grande planície daTrácia, banhada pelo Ebro, rio bastante considerável. Ali foiconstruído um castelo real denominado Dorisco, onde os Persas

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mantêm uma guarnição desde a época da expedição de Dariocontra os Citas. Como o local parecesse a Xerxes apropriadopara dispor as tropas e passá-las em revista, deu ordens nessesentido. Tendo todos os navios chegado à costa de Dorisco, oscomandantes colocaram-nos, a mando do soberano, na margemque toca o castelo, onde se encontram Sala, cidade dosSamotrácios, e Zona, bem na extremidade de um promontóriochamado Sérrio. Essa região pertencia outrora aos Cícones.

LX — Ignoro o número exato de tropas que cada naçãoforneceu a Xerxes, mas, ao que se afirma, o exército de terrasomava um milhão e setecentos mil homens. Eis como foi feitaa contagem das tropas concentradas no local. Reunindo umcorpo de dez mil homens em determinado espaço e juntando-o omáximo possível, traçaram um círculo em torno. Em seguida,fizeram sair dali esse corpo de tropas e ergueram em torno docírculo um muro à altura do umbigo. Isso feito, mandaramentrar outras tropas no local já murado, e depois outras e outrasmais, calculando, por esse processo, o seu número. Feita acontagem, dispuseram-nas por ordem de nações.

LXI — Vejamos as tropas que participavam dessaexpedição. Primeiramente, os Persas, que usavam bonés defeltro, bem forrados, a que davam o nome de tiaras, túnicas devárias cores, guarnecidas de punhos; couraças de ferro comincrustações imitando escamas de peixe, e longos calções quelhes cobriam os joelhos. Levavam uma espécie de escudochamado gerres, com um arnês por baixo, dardos muito curtos,arcos de grande tamanho, flechas de bambu e um punhalsuspenso à cintura, caindo sobre a coxa direita. Eram elescomandados por Otanes, pai de Améstris, mulher de Xerxes. OsGregos davam-lhes, outrora, o nome de Cefenes, e seusvizinhos, o de Arteus. Perseu, filho de Júpiter e de Danéia,tendo ido à casa de Cefeu, filho de Belo, enamorou-se deAndrômeda, filha deste último, e desposou-a, tendo dela umfilho que recebeu o nome de Perses. A criança permaneceu na

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companhia de Cefeu, e como este não tinha filhos varões, toda anação tomou de Perses o nome que hoje possui.

LXII — Os Medos marchavam vestidos e armados damesma maneira. Essa maneira de trajar-se e armar-se era, aliás,própria dos Medos e não dos Persas. As tropas medas eramdirigidas por Tigranes, da dinastia dos Aquemênidas. Os Medoseram, outrora, conhecidos por todos os outros povos peladesignação de Ários; mas, tendo Medeu de Colcos passado deAtenas para o país que habitavam, trocaram de nome, passandoa chamar-se Medos. Os Cícios estavam também trajados earmados como os Persas, mas, em lugar de tiaras, traziammitras. Comandava-os Ánafes, filho de Otanes. Os Hircâniosestavam armados como os Persas e tinham como comandanteMegapanes, que veio a tornar-se governador da Babilônia.

LXIII — As tropas assírias usavam capacetes de bronze,trabalhados de uma maneira difícil de descrever. Seus escudos,dardos e punhais assemelhavam-se bastante aos dos Egípcios.Além dessas armas, levavam maças de madeira eriçadas de nósde ferro e couraças de linho. Os Gregos davam aos Assírios onome de Sírios, e os bárbaros o de Assírios. Os Caldeuscompunham com as tropas assírias o mesmo corpo de exército.Uns e outros eram comandados por Otaspes, filho de Artaqueu.

LXIV — Os capacetes dos Báctrios assemelhavam-semuito aos dos Medos. Seus arcos eram de bambu, à moda deseu país, e os dardos muito curtos. Os Sácios, Citas de origem,usavam bonés forrados terminando em ponta, calções, arcos àmoda do seu país, punhais e machados denominados sagáris.Embora Citas amírgios, davam-lhes o nome de Sácios, que écomo os Persas denominam todos os Citas. Histaspes, filho deDario e de Atossa, filha de Ciro, comandava as tropas báctrias esácias.

LXV — As tropas indianas envergavam trajes dealgodão e traziam arcos e flechas de bambu, estas guarnecidas

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de pontas de ferro. Assim equipados, marchavam eles sob asordens de Farnazatres, filho de Artábato. Os arcos dos Árioseram semelhantes aos dos Medos, e o resto da armadura à dosBáctrios. Eram comandados por Sisames, filho de Hidarnes.

LXVI — Os Partas, os Corásmios, os Sógdios, osGandários e os Dádices estavam armados como os Báctrios. OsPartas e os Corásmios eram comandados por Artábazo, filho deFárnaces; os Sógdios por Azanes, filho de Arteu; os Gandários eos Dádices por Artífio, filho de Artábano.

LXVII — As tropas cáspias traziam um manto de pelede cabra; levavam arcos e flechas de bambu à moda do seu país,e cimitarras. Eram comandadas por Ariomardes, irmão deArtífio. Os Sarangeus envergavam trajes de cores berrantes,calçavam botas que vinham até o joelho e usavam arcos edardos à moda dos Medos. Estavam sob o comando deFerendates, filho de Megabazo. Os Pactícios usavam tambémum manto de pele de cabra, arcos à moda do seu país e punhais.Eram dirigidos por Artintes, filho de Itamatres.

LXVIII — Os Outios, os Mícios e os Paricanos estavamarmados como os Pactícios. Os Outios e os Mícios eramcomandados por Arsamenes, filho de Dario, e os Paricanos porSiromitres, filho de Ébaso.

LXIX — Os trajes das tropas árabes eram amplos eamarrados na cintura. Traziam, no lado direito, longos arcos,que podiam ser retesados numa ou noutra extremidade. OsEtíopes, vestidos com peles de leopardo e de leão, levavamarcos de talo de palmeira, com cerca de quatro côvados decomprimento, e longas flechas de bambu, tendo na extremidade,em lugar de ferro, uma pedra pontuda, de que se serviamtambém para gravar seus sinetes. Além disso, traziam dardoscom cornos de cabra pontiagudos e trabalhados como um ferrode lança, bem como maças cheias de nós. Quando em combate,os guerreiros etíopes costumam untar a metade do corpo com

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gesso e a outra com vermelhão. Essas tropas, procedentes donorte do Egito, e as árabes estavam sob as ordens de Arsames,filho de Dario e de Artistone, filha de Ciro, a mais amada porDario entre todas as suas mulheres e da qual ele mandara fazeruma estátua de ouro esculpida a martelo, verdadeira maravilhade arte e riqueza.

LXX — Os Etíopes orientais (uns e outros faziam partedo exército) serviam com os Indianos. Assemelhavam-se aosoutros Etíopes, deles diferindo apenas na língua e na cabeleira.Os Etíopes orientais possuem cabelos lisos, ao passo que os daLíbia têm-nos mais crespos do que todos os outros homens.Estavam armados mais ou menos como os Indianos e levavamna cabeça peles de cabeça de cavalo, arrancadas com as crinas eas orelhas. Estas se mantinham eretas, servindo-lhes as crinasde penacho. Peles de grou faziam as vezes de escudos.

LXXI — Os Líbios usavam trajes de peles e dardosendurecidos ao fogo. Eram comandados por Massages, filho deCarizo.

LXXII — Os capacetes dos Paflagônios eram tecidos;seus escudos de pequeno tamanho, e pequenas as suas lanças.Levavam também dardos e punhais. Calçavam-se à moda doseu país, indo as botas até o meio da perna.

Os Lígios, os Macianos, os Marandínios e os Sírios, queos Persas denominam Capadócios, estavam armados como osPaflagônios. Estes e os Macianos estavam sob as ordens deDoto, filho de Megasidres; os Marandínios, os Lígios e os Sírioseram comandados por Góbrias, filho de Dario e de Aristona.

LXXIII — As armas dos Frígios aproximavam-se muitodas dos Paflagônios, sendo muito pequena a diferença. Segundoos Macedônios, os Frígios, enquanto permaneceram na Europa,em companhia deles, chamavam-se Brígios; mas, passando paraa Ásia, trocaram de nome e de pátria, passando a denominar-se

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Frígios.

Os Armênios estavam armados como os Frígios, dosquais constituem uma colônia. Uns e outros eram comandadospor Artocmes, que havia desposado uma filha de Dario.

LXXIV — O armamento dos Lídios assemelhava-se umtanto ao dos Gregos. Os Lídios eram outrora conhecidos porMeônios, tendo eles, mais tarde, mudado de nome, adotando ode Lido, filho de Átis. Os Mísios levavam capacetes à moda doseu país, e pequenos escudos e dardos endurecidos ao fogo.Constituem, também, uma colônia dos Lídios e tomaram onome de Olímpios, do monte Olimpo. Uns e outros tinham porcomandante Artafernes, filho de Artafernes, que invadira aMaratona com Dátis.

LXXV — Os Trácios tinham na cabeça peles de raposae envergavam túnicas, por cima das quais traziam uma roupa dediversas cores, muito ampla. Calçavam borzeguins de pele decabrito, e estavam armados de escudos leves, de dardos e depequenos punhais. Os Trácios se tinham passado para a Ásia,onde tomaram o nome de Bitínios. Chamavam-se outroraEstrimônios, quando habitavam as margens do Estrímon, deonde foram expulsos, segundo eles próprios afirmam, pelosTeucros e Mísios.

Esses Trácios asiáticos eram comandados por Bassace,filho de Artábano.

LXXVI — Os Calíbios traziam pequenos escudos depele de boi crua, chuços à maneira dos Lícios e capacetes debronze com penachos. Tiras de fazenda vermelhaenvolviam-lhes as pernas. Há, entre os Calíbios, um oráculo deMarte.

LXXVII — Os Cabálios-Meônios e os Lasôniosestavam armados e vestidos como os Cilícios, dos quais falarei

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mais adiante. Os Mílios traziam lanças curtas, as vestes presascom colchetes e capacetes de pele, sendo que alguns usavamarcos à moda dos Lícios. Essas tropas estavam sob as ordens deBadres, filho de Histanes. Os Moscos usavam capacetes demadeira, pequenos escudos e lanças de ferro com pontapequena.

LXXVIII — Os Tibarenos, os Macrões e os Mosinecosestavam armados à maneira dos Moscos. Estes eramcomandados por Ariomardes, filho de Dario e de Pármis, filhade Esmérdis e neta de Ciro. Os Macrões e os Mosinecosestavam sob as ordens de Artaites, filho de Querásmis,governador de Sesto sobre o Helesponto.

LXXIX — Os Mares usavam capacetes tecidos à modado seu país, pequenos escudos de couro e dardos curtos. OsColquidenses traziam capacetes de madeira, pequenos escudosde pele de boi crua, lanças curtas e espadas. As tropas Mares eColquidenses eram comandadas por Farandates, filho deTesápis. Os Alaródios e os Sapiros, armados à maneira dosColquidenses, estavam sob as ordens de Masício, filho deSiromitres.

LXXX — Os Insulares do mar da Eritréia(6),procedentes das ilhas para onde o rei faz transportar os exilados,também tomavam parte nessa expedição. Seus trajes e seuarmamento muito se assemelhavam aos dos Medos. Eramdirigidos por Mardontes, filho de Bageu, morto dois anos depoisda expedição a Mícale, em que figurava como comandante.

LXXXI — Tais eram as tropas que marchavam contra aGrécia e que compunham a infantaria do exército persa. Eramdirigidas pelos comandantes de que fiz menção e que foramseus organizadores. Esses homens tinham sob suas ordensoutros comandantes de grupos de dez mil homens e de mil. Oscomandantes de dez mil homens criaram, por sua vez, oscapitães de cem homens e os chefes de dez homens. Assim, os

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diferentes corpos de tropas e de nações eram chefiados poroficiais subalternos, obedientes às ordens doscomandantes-em-chefe, cujos nomes mencionei.

LXXXII — Esses chefes reconheciam por seus generais,bem como toda a infantaria, Mardônio, filho de Góbrias;Tritantecmes, filho daquele Artábano que havia aconselhado osoberano a não fazer guerra à Grécia; Esmerdomenes, filho deOtanes, todos sobrinhos de Dario e primos-irmãos de Xerxes;Masistes, filho de Dario e de Atossa; Gérgis, filho de Arizes, eMegabizo, filho de Zópiro.

LXXXIII — Toda a infantaria, como já disse,reconhecia-os por seus generais, exceto os dez mil, corpo detropas escolhidas entre todos os Persas e comandado porHidarnes, filho de Hidarnes. Chamavam-nos imortais, porque,se qualquer um dentre eles viesse a faltar por ter morrido ou pormotivo de doença, escolhiam outro para ocupar o seu lugar, e oseu número nunca era nem mais nem menos de dez mil. Astropas persas superavam todas as outras, tanto pela suamagnificência como pela sua bravura. Seu armamento e trajeeram como já descrevemos, sendo de notar o brilho que lhesdava o grande número de ornamentos de ouro com que seachavam decorados. Levavam eles consigo harmamaxes para assuas concubinas, e um grande número de criados soberbamentetrajados. Animais de carga transportavam suas provisões,independentemente das que eram destinadas ao resto doexército.

LXXXIV — Todas as nações que compunham o grandeexército possuíam cavalaria, mas somente algumas as haviamtrazido. A cavalaria persa estava armada como a infantaria, comexceção de um pequeno número que levava na cabeça lâminasde bronze e de ferro.

LXXXV — Os Sagárcios, povo nômade de origempersa, falando a mesma língua que os Persas, forneceram oito

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mil homens à cavalaria. No traje, os Sagárcios assemelhavam-seem parte aos Persas e em parte aos Pactícios. Esse povo nãoadota o costume de levar armas de bronze e de ferro, excetopunhais; mas servem-se, na guerra, de cordas de courotrançadas, que consideram da maior eficiência e de que seutilizam da seguinte maneira: em meio à confusão do combateatiram a corda em cuja extremidade fazem uma laçada, e, seapanham um cavalo ou um homem, puxam-no para si, emantendo-o enlaçado, matam-no. Tal a sua maneira decombater. Formavam corpo de exército com as tropas persas.

LXXXVI — A cavalaria meda estava armada como ainfantaria, o mesmo acontecendo com a dos Císsios. Oscavaleiros indianos usavam as mesmas armas que a suainfantaria, trazendo, além dos cavalos, carros de combatepuxados por cavalos e zebras. A cavalaria bactriana levava omesmo apetrecho bélico que a sua infantaria, o mesmo severificando com os Cáspios e os Líbios, sendo que estes últimostinham também carroças. Os Cáspiros e os Paricanos estavamtambém armados como a infantaria. As tropas árabes deinfantaria e cavalaria usavam o mesmo armamento, levando,além disso, camelos tão velozes quanto os seus cavalos.

LXXXVII — Eram essas as nações que haviamfornecido cavalaria ao exército Persa. Eram, ao todo, oitenta milcavalos, sem contar os camelos e os animais de tração. Asvárias tropas, formadas por esquadrões, marchavam no seudevido lugar, vindo por último os Árabes, para não espantar oscavalos, pois estes animais têm horror aos camelos.

LXXXVIII — Hermamitres e Titeu, ambos filhos deDátis, dirigiam a cavalaria. Farnuces, seu colega, ficara retidoem Sardes por uma enfermidade que lhe sobreveio emconseqüência de um acidente sofrido na ocasião em que oexército deixava aquela cidade. Seu cavalo, espantando-se comum cachorro que se lhe atirou de improviso às pernas,

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empinou-se, lançando-o ao solo. Dada a violência da queda,Farnuces pôs-se a vomitar sangue e adoeceu gravemente,acabando por ficar tuberculoso. Seus criados, cumprindo asordens que ele lhes deu com relação ao cavalo, conduziram oanimal ao local onde havia lançado seu dono por terra ecortaram-lhe as pernas à altura dos joelhos. Este acidente fezcom que Farnuces fosse retirado do comando.

LXXXIX — O número de trirremes que compunham afrota persa subia a mil duzentos e sete, fornecidos por váriasnações que tornavam parte na expedição. Os Fenícios e osSírios da Palestina forneceram trezentos. Os Fenícios, segundoeles próprios afirmam, habitavam outrora as margens do mar daEritréia, mas, passando para as costas da Síria, ali seestabeleceram. Essa parte da Síria, com toda a região que seestende até as fronteiras do Egito, chama-se Palestina. As tropasfenícias traziam capacetes parecidos com os dos Gregos,couraças de linho, dardos curtos e escudos sem guarnições deferro nas bordas.

Os Egípcios tinham fornecido duzentos navios. Suastropas traziam capacetes de junco tecido, escudos convexos,cujas bordas eram guarnecidas de ferro, lanças apropriadas paraa luta no mar, e grandes machados.

XC — Os Cíprios contribuíram com cento e cinqüentanavios, estando suas tropas assim equipadas: os reis tinham acabeça coberta por uma mitra, e seus súditos por uma cítara. Oresto do traje e do armamento assemelhava-se ao dos Gregos.Os Cíprios são uma mistura de nações diferentes, vindos uns deSalamina e de Atenas; outros da Arcádia, de Citno, da Fenícia eda Etiópia, como eles próprios o afirmam.

XCI — Os Cilícios forneceram cem navios. Osguerreiros usavam capacetes à moda do seu país, pequenosescudos de pele de boi crua, túnicas de lã, trazendo cada umdois dardos curtos e uma espada um tanto semelhante à dos

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Egípcios. Esse povo era, antigamente, denominado Hipaqueus,passando, mais tarde, a chamar-se Cilícios, de Cílix, filho deAgenor, que era fenício.

Os Panfílios contribuíram com trinta navios. Suas tropasestavam armadas e equipadas à maneira dos Gregos. OsPanfílios descendem daqueles que, ao regressarem da expediçãocontra Tróia, foram dispersados pela tempestade, juntamentecom Anfíloco e Calcas.

XCII — Os Lícios forneceram cinqüenta navios, e suastropas traziam couraças, arcos de madeira, flechas de caniçodesprovidas de penas, dardos, uma pele de cabra sobre asespáduas e bonés alados na cabeça. Usavam também punhais efoices. Os Lícios são originários de Creta e denominavam-seTérmilos. Mais tarde adotaram o nome de Lícios, derivado deLico, filho de Pandíon, que era ateniense.

XCIII — Os Dórios asiáticos contribuíram com trintanavios. Os guerreiros dórios usavam armas à maneira dosGregos, porquanto seu povo era originário do Peloponeso. OsCários forneceram setenta navios, e suas tropas estavamtrajadas e equipadas à moda dos Gregos. Usavam tambémfoices e punhais.

XCIV — Os Iônios contribuíram com cem navios. Essepovo era denominado Pelasgos-Egiáleos, como dizem osGregos, na época em que habitava a parte do Peloponeso hojeconhecida pelo nome de Acaia e antes da chegada de Dânaos eXuto ao Peloponeso. Mais tarde passaram a chamar-se Iônios,de Íon, filho de Xuto.

XCV — Os Insulares, que estavam armados à moda dosGregos, forneceram dezessete navios. Denominavam-sePelasgos; mas depois passaram a chamar-se Iônios, pela mesmarazão que as doze cidades iônias fundadas pelos Atenienses. OsEólios deram sessenta navios. O armamento de suas tropas era o

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mesmo dos Gregos. Esse povo chamava-se outrora Pelasgos, aoque informam os Gregos. Os Helespontinos, com exceção dosde Abido, que tinham ordem do rei de permanecerem no país,guardando as pontes, e do resto dos habitantes do Ponto Euxino,forneceram a equipagem para cem navios. Os Helespontinosconstituíam uma colônia dos Iônios e dos Dórios, e suas tropasestavam equipadas à maneira dos Gregos.

XCVI — As forças navais persas, medas e sáciastripulavam todos esses navios. Os melhores veleiros eramfenícios, sendo os mais notáveis os de Sídon. Todas essastropas, bem como as de terra, tinham à frente um comandantedo seu país. Não havendo necessidade de investigar-lhes osnomes, passarei sobre eles em silêncio. E é justo que assimproceda, pois, não somente cada povo, como todas as cidades,tendo seus comandantes particulares, os oficiais não seguiam naqualidade de generais, mas como os outros escravos queparticipavam da expedição. Já mencionei os generais quetinham toda autoridade e os Persas que comandavam cadanação.

XCVII — A força naval tinha como generais Ariabines,filho de Dario; Prexaspes, filho de Aspatines; Megabases, filhode Megabates; e Aquêmenes, filho de Dario. Os Iônios e osCários eram comandados por Ariabines, filho de Dario e dafilha de Góbrias, e os Egípcios por Aquêmenes, irmão deXerxes por parte de pai e mãe. Os dois outros generaiscomandavam o resto da frota, os navios de trinta e de cinqüentaremos, os cercures(7), os que serviam para o transporte decavalos e os navios compridos que faziam três milhas.

XCVIII — Entre os oficiais da frota, os mais famosos,pelo menos depois dos generais, eram Tetramnestes, filho deAniso, de Sídon; Mápen, filho de Siromo, de Tiro; Merbal, filhode Agbal, de Arados; Sienésis, filho de Oromédon, da Cilícia;Cibernisco, filho de Sicas, da Lícia; Gorgo, filho de Quérsis, e

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Timónax, filho de Timágoras, ambos da ilha de Chipre; Histieu,filho de Timnes; Pigres, filho de Seldomo, e Damasítimo, filhode Candaules, da Cária.

XCIX — Considero desnecessário falar dos outroschefes. Não deixarei, todavia, de fazer uma referência aArtemisa. Esta princesa me parece tanto mais digna deadmiração quanto, apesar do seu sexo, quis tomar parte naexpedição. Como o filho se encontrava ainda em tenra idadequando o marido morreu, ela tomou as rédeas do governo, e suagrandeza d’alma e sua coragem levaram-na a seguir os Persas,embora não fosse a isso compelida por nenhuma necessidade.Artemisa era filha de Ligdâmis, originário de Halicarnasso pelolado paterno, e de Creta, pelo lado materno. Comandava ela osde Halicarnasso, os de Cós, os de Nisiros e os de Calidnas. Veioao encontro de Xerxes com cinco navios, os mais bemequipados de toda a frota, pelo menos depois dos dos Sidônios,e, entre os aliados, ninguém deu ao soberano melhoresconselhos. Os povos submetidos a Artemisa e dos quais acabode falar, são todos Dórios, ao que penso. Os de Halicarnasso sãooriginários de Trezena, e os outros, de Epidauro. Mas creio jáhaver dito o suficiente sobre a frota.

C — Enumeradas as tropas e dispostas em ordem debatalha, Xerxes desejou percorrer as fileiras e passá-las emrevista. Sentado no seu carro, inspecionou, uma após outra, astropas de todas as nações ali representadas, desde a cavalaria e ainfantaria até as últimas fileiras, fazendo perguntas a todos,sendo as respostas anotadas pelos seus secretários. Terminada arevista e colocadas as embarcações ao largo, passou do carropara um navio sidônio, onde sentou-se sob um pavilhão comestofo de ouro, vogando ao longo das embarcações einterrogando os tripulantes, como fizera com as tropas de terra.As respostas eram cuidadosamente anotadas. Os capitãeshaviam ancorado seus navios a pouca distância da margem, aproa voltada para terra, e os soldados em armas, como se

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estivessem para dar combate. O soberano examinava-os,passando entre as proas e a margem.

CI — Terminada essa outra revista, Xerxes deixou onavio e mandou chamar Demarato, filho de Aríston, que oacompanhava na expedição. Ao vê-lo diante de si, falou-lhenestes termos: “Demarato, desejo fazer-te algumas perguntas; ésgrego e como soube de ti mesmo e de outros gregos com quemtenho conversado, nasceste numa das maiores e mais poderosascidades da Grécia. Dize-me, pois, agora, se os Gregos ousarãoopor-se a mim. Penso que os gregos e todos os outros povos doOcidente reunidos num só corpo de exército seriam incapazesde sustentar os meus ataques, sobretudo por não estarem eles deacordo com relação às coisas da guerra. Quero, porém, saber atua opinião sobre isso”. “Senhor — respondeu Demarato —,devo dizer-vos a verdade ou coisas que vos lisonjeiem?” Osoberano disse-lhe que podia falar com toda franqueza.

CII — “Pois bem, senhor — tornou Demarato —, já queassim o desejais, dir-vos-ei a verdade, e não duvideis jamais,daqui por diante, de quem usar da mesma linguagem. OsGregos têm sido criados na escola da pobreza, e a virtude a elase junta, filha da temperança e das leis estáveis, dando-nosarmas contra a pobreza e a tirania. Os Gregos que habitam asregiões vizinhas aos Dórios — para citar apenas esses comoexemplo — sempre se houveram com dignidade, bravura enobreza d’alma, sendo, por isso, dignos de todos os louvores.Ouso afirmar, senhor, que eles não só não ouvirão as vossaspropostas, que têm por fim submeter a Grécia, como estarãodecididos a ir ao vosso encontro e oferecer-vos batalha, mesmoque os outros povos gregos disso se abstenham. Quanto ao seunúmero, senhor, qualquer que ele seja não influirá na suadecisão de resistir. Tivessem eles um exército de apenas milhomens, e nem por isso deixariam de oferecer-vos combate”.

CIII — “Que dizes, Demarato! — exclamou o soberano,

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rindo — Mil homens dariam combate a um exército tãonumeroso? Dize-me, tu que foste o rei deles, ousarias combatersozinho contra dez homens? Se os teus concidadãos sãorealmente valorosos como afirmas, tu, representante da tua raça,poderás, de acordo com as tuas próprias afirmações, resistir aodobro, quero dizer, se um lacedemônio vale por dez homens domeu exército, tu valerás por vinte, se é que as tuas palavrasforam ditadas pela sinceridade. Se, porém, os Gregos cujasqualidades tanto exaltas não possuem estatura mais avantajadado que a tua ou a dos gregos que conheço, receio muito que tuaspalavras não encerrem senão jactância e vanglória. Mostra-mede que maneira mil homens, ou dez mil, ou mesmo cinqüentamil, todos igualmente livres e fora da influência de qualquersenhor, poderiam resistir a um exército tão poderoso como omeu; pois, afinal, se eles são cinco mil, somos mais de milcontra um. Se eles agissem, como entre nós, sob as ordens deum senhor, o temor ao castigo inspirar-lhes-ia uma coragemfora do comum, e, impelidos por chicotadas, marchariam,embora fossem em pequeno número, contra tropas muito maisnumerosas. Mas os teus compatriotas, independentes como são,não fariam tal coisa. Penso mesmo que, ainda que eles fossemiguais em número a nós, não levariam vantagens sobre osPersas, pois entre nós encontramos grandes exemplos debravura. Há, entre os meus guardas, persas que se bateriam comtrês gregos de uma só vez; e se tanto exaltas as qualidadespessoais dos teus concidadãos, é porque nunca viste lutar umdesses homens de que te falo”.

CIV — “Senhor — volveu Demarato —, eu já sabia, aocomeçar a falar, que a verdade não vos agradaria; mas, forçadoa dizê-la, apresentei os Espartanos tal como são. Não ignorais,senhor, o quanto os detesto atualmente, a eles que, nãosatisfeitos de me privar das honras e dos privilégios que meforam legados por meus pais, baniram-me da minha pátria.Vosso pai acolheu-me bondosamente, deu-me uma casa ecumulou-me de riquezas. Não é crível, portanto, que um homem

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sensato e justo responda com a ingratidão aos benefíciosrecebidos. Não me ufano de poder lutar contra dez homens, nemmesmo contra dois, e jamais, por minha própria vontade, mebateria contra um apenas. Mas, se fosse necessário, se a isso mevisse forçado por qualquer contingência, lutaria com a maiorboa vontade com qualquer desses homens que se consideramcapazes de resistir, cada um deles, a três gregos. O mesmosucede com os Lacedemônios. Num combate de homem parahomem não são inferiores a ninguém, e, reunidos num corpo deexército, são os mais bravos de todos os homens. Na verdade,embora livres, não o são da maneira que imaginais. A lei é, paraeles, um senhor absoluto, e não a temem menos que os vossossúditos a vós. Obedecem aos seus ditames, às suasdeterminações, que são ordens, e essas ordens impedem-nos defugir diante do inimigo, qualquer que seja o seu número, eobriga-os a manterem-se firmes no seu posto, a vencer oumorrer. Se o que vos digo vos parece destituído de senso,guardarei, de agora em diante, silêncio sobre tudo o mais. Faleiapenas em obediência às vossas ordens. Possa, senhor, estaexpedição ser bem sucedida, segundo os vossos desejos.”

CV — Xerxes, em lugar de aborrecer-se, pôs-se a rir edespediu Demarato com benevolência. Depois dessa palestra, osoberano destituiu o governador que Dario havia colocado emDorisco, nomeando em seu lugar Mascames, filho deMegadostes, e atravessou a Trácia com o seu exército, emdireção à Grécia.

CVI — Esse Mascames, nomeado governador deDorisco, era o único a quem o soberano costumava enviarpresentes, por tratar-se do mais bravo de todos os governadoresestabelecidos por Dario ou por ele próprio. Artaxerxes, filho esucessor de Xerxes, conduziu-se da mesma maneira comrelação aos descendentes de Mascames. Antes da expedição àGrécia havia governadores na Trácia e em todas as regiões doHelesponto, mas, depois dessa empresa, foram todos

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destituídos, com exceção de Mascames, que se manteve nogoverno de Dorisco, a despeito dos reiterados esforços dosGregos para retirá-lo dali. Como recompensa pela firme atitudede Mascames, todos os reis passaram, sucessivamente, afazer-lhe presentes, bem como aos seus descendentes.

CVII — De todos os governadores que os Gregosexpulsaram, Boges, governador de Éjon, foi o único queconquistou a estima do rei, que não se cansava de elogiá-lo,cobrindo de honrarias a ele e os filhos que o sobreviveram naPérsia. Boges merecia, realmente, os louvores que lhetributavam. Tendo sido sitiada pelos Atenienses sob as ordensde Címon, filho de Milcíades, a praça por ele comandada,permitiram-lhe dali sair e retirar-se para a Ásia; mas Boges, nãoquerendo que o soberano pensasse haver eles conservado a vidapor covardia, recusou as condições e continuou a lutar enquantopôde. Afinal, quando viu a praça inteiramente desprovida devíveres, mandou erguer uma grande fogueira, matou os filhos, amulher, as concubinas e todos os criados, e lançou-os ao fogo.Em seguida, atirou ao Estrímon, por cima das muralhas, tudoquanto havia de ouro e prata na cidade, depois do que jogou-se,ele próprio, à fogueira.

CVIII — Partindo de Dorisco com destino à Grécia,Xerxes forçou todos os povos que encontrou na sua rota aacompanhá-lo na expedição, pois toda aquela região até aTessália havia sido, por Megabizo e depois Mardônio,submetida ao seu domínio, passando a pagar-lhe tributo.Deixando Dorisco, passou primeiramente pelas vizinhanças dosSamotrácios, cuja última cidade do lado do ocidente éMesêmbria, bem próxima a Estrima, que pertence aos Tásios. OLisso passa entre essas duas cidades. As águas desse rio nãoforam também suficientes para suprir as necessidades doexército, sendo rapidamente esgotadas.

A região por ele banhada chamava-se outrora Galácia e

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denomina-se hoje Briântica, pertencendo, na realidade, aosCicônios.

CIX — Depois de atravessar o leito seco do Lisso,Xerxes passou próximo a Maronéia, Dicéia e Abdera, cidadesgregas, e dos famosos lagos situados nas cercanias: o Ísmaros,entre Maronéia e Estrima, e o Bistônia, perto de Dicéia, no qualse lançam o Trave e o Compsato. Transpondo o Nesto, quedesemboca no mar, o soberano continuou a marcha, passandopor algumas cidades do continente, em uma das quais existe umlago piscoso e de águas salobras, medindo cerca de trintaestádios de circunferência. Os animais de carga nele seabeberaram, deixando-o quase seco. A cidade onde se encontraesse lago chama-se Pistira.

CX — Os povos da Trácia cujos territórios Xerxesatravessou são os Pétios, os Cícones, os Bístones, os Sápios, osDérsios, os Edônios e os Satres. Os habitantes das cidadesmarítimas seguiram-no por mar, e os do interior, de que acabode falar, foram forçados a acompanhá-lo por terra, com exceçãodos Satres.

CXI — Os Satres, ao que soubemos, nunca estiveramsubmetidos a qualquer estrangeiro, sendo os únicos povos daTrácia que têm conseguido manter-se livres. Habitam altasmontanhas cobertas de neve, onde crescem árvores de todaespécie, e são bravos e decididos. Estão de posse do oráculo deBaco, que fica na parte mais elevada das montanhas. OsBessos(8) interpretam para eles os oráculos do deus. Umasacerdotisa transmite esses oráculos, da mesma maneira que emDelfos, e suas respostas não são menos ambíguas.

CXII — Depois de haver atravessado esse país, Xerxespassou pelas proximidades das duas cidades dos Pieros, umadas quais se denomina Fages e a outra Pérgamo, deixando àdireita o Pangeu, grande e alta montanha, onde se encontram asminas de ouro e prata exploradas pelos Pieros, pelos Odomantes

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e, sobretudo, pelos Satres.

CXIII — Passou, em seguida, ao longo dos territóriosdos Peônios, dos Doberes e dos Peoples, que vivem ao norte,além do monte Pangeu, marchando sempre para ocidente, atéatingir as margens do Estrímon e a cidade de Éjon. Boges, dequem já falei, vivia ainda e ali exercia o cargo de governador.Nas cercanias do monte Pangeu encontra-se uma pequenaregião denominada Fílis, que se estende para ocidente até o rioAngitas, que se lança no Estrímon, e para o sul até o próprioEstrímon. Os magos sacrificaram nas margens deste rio um bomnúmero de cavalos brancos, cujas entranhas pressagiaram umgrande sucesso.

CXIV — Terminadas as cerimônias dos magos àsmargens do rio, bem como muitas outras, o exército continuou amarcha pelo território das Nove-Vias dos Edônios, em direçãoàs pontes construídas sobre o Estrímon. Informados de que essecantão se denominava Nove-Vias, os Persas ali enterraramvivos nove rapazes e nove moças escolhidos entre os habitantesda região. Os Persas têm o costume de enterrar pessoas vivas, eouvi dizer que Améstris, mulher de Xerxes, tendo chegado aidade avançada, mandou enterrar quatorze jovens membros dasmais ilustres famílias da Pérsia, para render graças ao deus queeles dizem estar sob a terra.

CXV — Deixando o Estrímon, o exército passoupróximo à cidade grega de Argila, situada à beira-mar, a oeste.A região onde se encontra essa cidade, bem como o país situadomais acima, trazem o nome comum de Bisálcia. Dali, tendo àesquerda o golfo que fica nas proximidades do templo deNetuno, o exército atravessou a planície de Siléia, passou juntoa Estagiros, cidade grega, chegando a Acanto, engrossado comas novas tropas arrebanhadas entre os habitantes do montePangeu e da região de que falei há pouco. Os habitantes dolitoral acompanharam-no por mar, e os do interior por terra.

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Os Trácios não lavram nem semeiam as terras por ondepassou o exército de Xerxes, e continuam a não fazê-lo, tendopor elas a maior veneração.

CXVI — Chegando a Acanto, Xerxes protestou amizadeaos habitantes dessa cidade, fez-lhes presente de um traje medo,e, notando o ardor com que eles o secundavam nessa guerra esabendo concluído o canal do monte Atos, fez-lhes os maioreselogios.

CXVII — Enquanto o soberano se achava em Acanto,Artaqueu, que havia dirigido os trabalhos do canal, adoeceu eveio a falecer. Pertencia ele à casa dos Aquemênidas, e Xerxeso tinha em grande apreço. Era de estatura maior que a dosPersas e dono de uma voz tonitruante. Xerxes mostrou-sedesolado com a morte do amigo e mandou fazer-lhe os maishonrosos funerais. O exército ergueu um cômoro sobre a suasepultura, e, por ordem de um oráculo, os Acântiosofereceram-lhe sacrifícios como a um herói, chamando-o pelonome. O soberano encarou a morte de Artaqueu como umagrande desgraça.

CXVIII — Os povos gregos que acolheram o exércitopersa e ofereceram um repasto a Xerxes viram-se reduzidos atão grande miséria, que foram obrigados a abandonar seus larese a expatriar-se. Os Tásios também acolheram o exército eofereceram um festim ao soberano em nome das cidades quepossuíam no continente. Antípatro, filho de Orges, cidadão dosmais distintos, encarregado da recepção, demonstrou que haviadespendido com ela quatrocentos talentos de prata.

CXIX — Gastos semelhantes se verificaram nas outraspor onde passaram as forças persas, como o provaram, com suascontas, os encarregados das homenagens, sendo que os festinstanto mais dispendiosos quanto preparados com maiorantecedência. Logo que os arautos anunciavam a vinda do rei eas suas ordens, os habitantes do lugar reuniam suas quotas de

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grãos de trigo e punham-se a moê-los durante dias e dias.Faziam a engorda do melhor gado que podiam reunir, cevandoem viveiros e gaiolas toda espécie de aves. Fabricavam tambémtaças e crateras de ouro e de prata, bem como outros utensíliospara o serviço de mesa. Esses preparativos eram feitos para o reie os seus convivas. Para o resto do exército, bastavam boasprovisões e acomodação. Em todos os lugares onde chegavam,os Persas encontravam pronta uma tenda, na qual Xerxes deviaalojar-se. As tropas acampavam ao ar livre. À hora do repasto,os que hospedavam o exército desenvolviam grande atividade, eos convidados, depois de terem ceado, passavam a noite nopróprio local. Na manhã seguinte, arrancavam a tenda,lançavam mão do vasilhame e dos demais utensílios elevavam-nos consigo, nada deixando.

CXX — Sabendo da aproximação das tropas persas,Megácreon, de Abdera, aconselhou aos Abdérios a reunirem-setodos em seus templos, homens e mulheres, para suplicarem aosdeuses que conjurassem a metade dos males prestes a caíremsobre eles, pois em vista do que já tinham sofrido, deviam dargraças aos deuses por Xerxes não ter o hábito de fazer duasrefeições por dia. Se os de Abdera recebessem ordens depreparar um jantar semelhante à ceia, seriam obrigados a fugirante a aproximação do soberano, se não quisessem ver-seinteiramente arruinados.

CXXI — Embora acabrunhados ante essa máperspectiva, os Abdérios não deixaram de cumprir as instruçõesrecebidas. Em Acanto, Xerxes ordenou aos comandantes dafrota que fossem esperá-lo com seus navios em Terma, cidadesituada no golfo Termeu, que lhe dá o nome. Tinham-lhe ditoser esse o caminho mais curto. De Dorisco a Acanto, o exércitomarchou na seguinte ordem: todas as tropas de terra seguiamdivididas em três corpos; um, comandado por Mardônio eMasiles, marchava ao longo do litoral, acompanhando a frota;outro, sob as ordens de Tritantecmes e de Gérgis, seguia pelo

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interior; o terceiro, no qual se encontrava Xerxes, marchavaentre os outros dois, sob o comando de Esmerdomenes e deMegabizo.

CXXII — Seguindo as ordens recebidas, a frotapenetrou no canal do monte Atos, que se estendia até o golfoonde se encontram as cidades de Assa, Pilore, Singos e Sarta.Depois de receber tropas nessas praças, zarpou para o golfo,dobrando o Âmpelo, promontório do golfo Toroneu e passandopor Torone, Galepso, Sermila, Meciberna e Olíntia, cidadesgregas situadas na região hoje denominada Sitônia, onde reuniumais navios e tropas.

CXXIII — Do promontório de Âmpelo rumoudiretamente para o de Canastreu, de toda a Palene a parte maisavançada no mar. Ali tomou igualmente navios e tropasprocedentes de Potidéia, Afítis, Neápolis, Egas, Terambos,Cionéia, Mendas e Sana. Todas essas cidades estão situadas napenínsula conhecida atualmente pelo nome de Palene e outrorapelo de Flegra. Depois de haver contornado essa região, singroupara o local do encontro, passando pelas cidades vizinhas dePalene e que se limitam com o golfo Terma. Essas cidades são:Lipaxos, Combréia, Lises, Gigonos, Campsa, Esmila e Énia. Aregião onde elas estão situadas chama-se, ainda hoje, Cruséia.De Énia, a última dessas cidades, a frota seguiu diretamentepara o golfo de Terma, passando pela costa de Migdônia.Afinal, chegou a Terma, onde tinha ordem de reunir-se, nãosem antes haver tocado em Sindos e Chalestre, sobre o Áxio,que separa Migdônia da Botiéia. As cidades de Icnas e Pelaficam na parte mais estreita dessa região, banhada pelo mar.

CXXIV — A frota ancorou perto do rio Áxio, da cidadede Terma e de outras praças intermediárias, e aguardou achegada do rei. Xerxes, partindo de Acanto com as forças deterra, atravessou o continente em direção a Terma. Passou pelaPeônia e pela Crestônia, banhadas pelo Equidoro, que nasce no

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país dos Crestônios e atravessa a Migdônia, desembocandoperto do pântano existente nas proximidades do Áxio.

CXXV — Quando Xerxes se achava em marcha, umgrupo de leões atacou os camelos que transportavam os víveres.As feras, deixando suas cavernas, atiraram-se vorazmente sobreos camelos, sem tocar nos outros animais de carga e noshomens. Qual a razão por que assim agiram, quando nuncahaviam visto camelos e nem experimentado a sua carne, é o quenão saberei dizê-lo, confessando-me espantado com o fato.

CXXVI — Existe, naquelas regiões, grande quantidadede leões e bois selvagens, possuindo estes últimos cornos degrande tamanho, que são levados para a Grécia. O Nesto, queatravessa Abdera, serve de barreira aos leões de um lado,enquanto do outro desempenha o mesmo papel o Aqueloo, quebanha a Arcanânia. Por essa razão, tais feras nunca foram vistasem nenhum lugar da Europa, quer a leste, além do Nesto, quer aoeste, em todo o resto do continente, além do Aqueloo, massomente na região compreendida entre esses dois rios.

CXXVII — Chegando finalmente a Terma, Xerxesmandou acampar o exército, que ocupou assim todo o terrenoao longo do mar, desde a cidade de Terma e a Migdônia, atéLídia e o Haliácmon, que serve de limites à Botiéia e àMacedônia. De todos os rios de que acabo de falar, o Equidoro,que vem da Crestônia, foi o único cujas águas não bastarampara dessedentar as tropas, ficando o seu leito inteiramenteseco.

CXXVIII — Percebendo de Terma as montanhas daTessália, o Olimpo e o Ossa, que são bastante elevados, einformado de que existia entre essas montanhas um vale estreitopor onde corre o Peneu, com um caminho que leva à Tessália,desejou conhecer a embocadura desse rio, pois devia seguirpelas montanhas, através da Macedônia, para ir de lá ao paísdos Perrebos, perto da cidade de Gonos. Haviam-lhe informado

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ser essa a rota mais segura. Tomando essa resolução, embarcounum navio sidônio, de que sempre se servia em tais ocasiões, e,fazendo sinal aos outros navios para erguerem âncora, fez-se aolargo, deixando no local o exército de terra. Chegando àembocadura do Peneu, o soberano contemplou-a, cheio deadmiração, e, mandando chamar os guias, perguntou-lhes se erapossível, desviando o rio, fazê-lo alcançar o mar por outroponto.

CXXIX — Dizem que a Tessália era, outrora, um lago,cercado de altas montanhas; a leste pelos montes Pélion e Ossa,cujas bases se confundem, ao norte pelo Olimpo, a oeste peloPindo, e ao sul pelo Ótris. O espaço entre essas montanhas éocupado pela Tessália atual, país pouco plano, banhado por umgrande número de rios, sendo o Peneu, o Apídano, o Onocono,o Enipeu e o Pamiso os principais. Esses rios, correndoparalelos na planície ao deixarem as montanhas que envolvem aTessália, atravessam um estreito vale e desembocam no mar,após se reunirem no mesmo leito. Depois dessa junção, recebemtodos o nome comum de Peneu.

Dizem que outrora, não existindo ainda esse vale e umescoadouro para as águas, os cinco rios citados, bem como olago Bebeis, não possuíam o nome por que são hoje conhecidos,e que, correndo continuamente, acabaram por transformar aTessália num verdadeiro mar. Os próprios Tessálios dizem terNetuno feito o estreito vale por onde corre o Peneu, o que nãome parece inteiramente inverossímil. Com efeito, quemconsidera Netuno capaz de abalar a terra e atribui osmovimentos desta ao deus, não pode julgar inadmissível, vendoesse vale, que Netuno tenha sido o seu autor. Creio, realmente,que a separação dessas montanhas, dando origem ao vale, foiprovocada por um tremor de terra.

CXXX — Tendo Xerxes, como disse, perguntado aosguias se existia alguma outra saída do Peneu para o mar, estes,

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conhecedores do lugar, responderam-lhe: “Senhor, o Peneu nãopode ter, para lançar-se no mar, outra saída senão esta, pois aTessália está cercada de montanhas por todos os lados”. Diz-seque, ante essa resposta, Xerxes assim se expressou: “OsTessálios são prudentes. Tomaram suas precauções de longe,porque sabem, entre outras coisas, não ser difícil a alguémassenhorear-se do seu país. Bastaria, com efeito, fazer refluir orio para as suas terras, desviando-lhe o curso e obstruindo o valepor onde ele corre, para submergir toda a Tessália, comexceção, está visto, das montanhas”. Essas palavras visavam osfilhos de Áleo, porque, sendo tessálios, eram gregos e osprimeiros a serem submetidos ao soberano, e porque estepensava que os mesmos haviam feito amizade com ele em nomede toda a nação.

CXXXI — Depois de haver examinado bem aembocadura do Peneu, Xerxes mandou abrir velas de regresso aTerma. Permaneceu durante algum tempo nas cercanias dePiéria, enquanto uma terça parte das tropas cortava as árvores eas matas da montanha da Macedônia, a fim de abrir passagempara todo o exército, para penetrar no território dos Perrebos.Durante sua permanência ali, os arautos por ele enviados àGrécia regressaram, uns com terra e água, e outros com as mãosvazias.

CXXXII — Os povos que se lhe haviam submetido,enviando-lhe terra e água, eram os Tessálios, os Dólopes, osEnianos, os Perrebos, os Lócrios, os Magnetas, os Mélios, osAqueus da Fitiótida, os Tebanos e o resto dos Beócios, excetoos Téspios e os Plateus. Os Gregos que haviam movido guerraaos bárbaros ligaram-se entre si por um juramento concebidonestes termos: “Aqueles, entre os Gregos, que se entregarem aosPersas sem serem a isso forçados pela necessidade, pagarão aodeus de Delfos, depois de normalizada a situação, a décimaparte de seus bens”.

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CXXXIII — Xerxes não enviou arautos a Atenas e aEsparta para exigir a submissão dessas cidades. Dario os tinhaenviado anteriormente com esse fim, mas os Atenienses oshaviam lançado no Báratro, enquanto que os Lacedemôniosatiraram-nos num poço, dizendo-lhes que dali tirassem terra eágua para levarem ao rei. Foi por essa razão que Xerxes seabsteve de fazer essa solicitação por intermédio de arautos. Deresto, desconheço o motivo que levou os Atenienses a tratardessa maneira os emissários de Dario. A cidade e o país foram,realmente, devastados, mas não creio que o tratamentodispensado aos arautos persas se tenha originado desse fato.

CXXXIV — A cólera de Taltíbio, que havia sido oarauto de Agamémnon, caiu sobre os Lacedemônios. Há, emEsparta, um lugar a ele consagrado, e seus descendentes(chamam-nos Taltibíades) são os únicos aos quais, a título dehonra, se confiam embaixadas. Depois que tiveram lugar essesacontecimentos, sempre que os Espartanos analisavam asentranhas das vítimas sacrificadas, estas nada lhes auguravamde bom. Isso perdurou por muito tempo. Finalmente, osLacedemônios, atribulados com aquele estado de coisas,mandaram perguntar pelos seus arautos, por ocasião de uma dasfreqüentes assembléias realizadas para discutir o assunto, se nãohavia algum lacedemônio disposto a morrer pela salvação deEsparta. Então Espértias, filho de Aneristo, e Búlis, filho deNicolau, ambos espartanos de alta linhagem e dos mais ricos dacidade, ofereceram-se para sofrer o castigo que Xerxes, filho deDario, quisesse impor-lhes pela morte dos arautos enviados aEsparta. Os Lacedemônios enviaram-nos, então, aos Medos,sabendo, de antemão, que iam ao encontro da morte.

CXXXV — O desassombro e a intrepidez de linguagemque tiveram os dois jovens espartanos em tais circunstânciasforam admiráveis. Partindo para Susa, foram ter à casa deHidarnes, persa de nascimento e governador da costa marítimada Ásia. Hidarnes fez-lhes acolhimento hospitaleiro, e depois de

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convidá-los a participar de sua mesa, assim lhes falou:“Lacedemônios, por que recusais de tal forma a amizade que onosso soberano vos oferece? Podeis ver, pela situaçãoprivilegiada que desfruto, que ele sabe premiar o mérito; ecomo tem em alta conta a vossa coragem, estou certo que dariatambém, a cada um de vós, um governo na Grécia, se quisésseisreconhecê-lo como vosso soberano”. “Senhor — responderamos jovens —, o conselho que nos dais é de um homem que nãopensou os prós e os contras da situação. Sugeris que assimprocedamos porque não tens dela experiência e não conheceis oseu outro lado. Sabeis ser escravo, mas nunca experimentastes aliberdade, ignorando, por conseguinte, as suas doçuras. Se já ativésseis algum dia conhecido, estimular-nos-íeis a lutar por ela,não somente com lanças, mas até com machados”.

CXXXVI — Levados, à sua chegada a Susa, à presençado rei, os guardas ordenaram-lhes que se prosternassem e semantivessem em atitude de adoração diante de Xerxes,chegando mesmo a usar de violência, mas os dois jovensespartanos protestaram, dizendo que não fariam tal coisa, aindaque fossem impelidos à força contra o chão, pois que entre osGregos não havia o costume de adorar-se um homem, e que nãotinham vindo com semelhante propósito à corte persa. Depoisde assim se defenderem, dirigiram-se a Xerxes nestes termos:“Rei dos Medos, os Lacedemônios nos enviaram aqui paraexpiarmos, com a nossa morte, a dos arautos persas quepereceram em Esparta”. Ouvindo essa declaração, Xerxes,revelando grandeza d’alma, respondeu não se assemelhava aosLacedemônios, que haviam violado o direito das gentesmatando arautos; que não faria aquilo que neles recriminava, eque não queria, pela morte dos dois jovens, absolver osLacedemônios do crime que, contra toda expectativa, haviamcometido.

CXXXVII — A conduta dos Espartanos, enviandoEspértias e Búlis a Susa para reparar a morte dos arautos persas,

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aplacou momentaneamente a cólera de Taltíbio, apesar de teremos dois jovens regressado incólumes a Esparta; mas, temposdepois, essa cólera explodiu novamente na guerra entre osPeloponésios e os Atenienses. Na minha opinião, talacontecimento apresenta algo de estranho. Que a cólera deTaltíbio caísse sobre os enviados e não cessasse enquanto nãose consumasse a reparação, era justo e compreensível; mas queviesse a recair sobre os filhos dos dois espartanos que se haviamprontificado a sacrificar-se para remir seus concidadãos daquelaculpa — quero dizer, sobre Nicolau, filho de Búlis, e Aneristo,filho de Espértias, que assaltou pescadores de Tirinto quenavegavam em volta do Peloponeso num navio de cargatripulado por habitantes de Andros — isso me parece mais oresultado da ira dos deuses. Nicolau e Aneristo, tendo sidoenviados como embaixadores à Ásia pelos Lacedemônios,foram traídos por Sitalces, filho de Teres(9), rei dos Trácios, eNinfodoro, filho de Pitéias, da cidade de Abdera, e presos emBisante, sobre o Helesponto, sendo conduzidos para a Ática,onde os Atenienses os executaram, juntamente com Aristeu(10),filho de Adimanto de Corinto. Esse acontecimento teve lugaralguns anos depois da expedição do rei persa contra a Grécia.

CXXXVIII — Voltemos, porém, à nossa narrativa. Aexpedição não visava, aparentemente, senão Atenas, mas, narealidade, ameaçava toda a Grécia. Embora os Gregos disso jáestivessem alertados, não deram todos a mesma importância aofato. Os que haviam dado ao soberano persa a terra e a águaexigidas, sentiam-se seguros contra qualquer surpresa. Aquelesque, ao contrário, não haviam feito ato de submissão,sentiam-se apavorados e inquietos, porque todas as forçasmarítimas da Grécia não estavam em condições de resistir aosataques do exército de Xerxes, e grande parte delas, em lugar depreparar-se para a guerra, mostrava inclinação para os Medos.

CXXXIX — Sinto-me levado a expor aqui a minhaopinião, e, muito embora me exponha à ira de muitos, não

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dissimularei o que parece, a meus olhos, a verdade. Se o receioao perigo que ameaçava os Atenienses lhes tivesse feitoabandonar a pátria, ou se, permanecendo na cidade, eles sesubmetessem a Xerxes, ninguém teria tentado opor-se aosoberano no mar. Se ninguém lhe tivesse resistido no mar, eis oque teria, sem dúvida, acontecido no continente: Ainda que osPeloponésios fechassem o istmo com muitas muralhas, osLacedemônios não ficariam menos abandonados pelos seusaliados, que, vendo a força naval dos bárbaros apossar-se desuas cidades uma após outra, sentir-se-iam obrigados a traí-los.Sozinhos e desprovidos de todo e qualquer auxílio, morreriamcomo heróis, depois de terem realizado gloriosas façanhas, ouexperimentariam a mesma sorte que o resto dos aliados, oumesmo, antes de experimentar essa sorte entrariam ementendimento com Xerxes, quando vissem o resto dos gregosbandear-se para os Medos. Assim, num ou noutro caso a Gréciacairia sob o domínio dos bárbaros, pois, obtendo o soberano odomínio do mar, tornar-se-iam inúteis as muralhas erguidas emtorno do istmo. Não estaremos exagerando se dissermos que osAtenienses foram os verdadeiros salvadores da Grécia.Realmente, qualquer partido que eles tomassem, este deveriaprevalecer. Preferindo a liberdade da Grécia, insuflaramcoragem em todos os Gregos que ainda não se haviammanifestado favoráveis aos Persas; e foram eles que, depois dosdeuses, repeliram o rei. As respostas do oráculo de Delfos, pormais contrárias e terríveis que lhes tivessem sido, não ospersuadiram a abandonar a Grécia. Permaneceram firmes eresolutos, sustentando o choque do inimigo que contra eles seprecipitava.

CXL — Os Atenienses, desejando consultar o oráculo,enviaram teoros(11) a Delfos. Após as cerimônias de costume,os emissários penetraram no santuário e sentaram-se,recebendo, então, da pitonisa, que se chamava Aristonice, aseguinte resposta: “Infelizes. Por que vos manterdes assim?Abandonai os vossos lares, os mais altos cimos da vossa cidade

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circular, e fugi para os confins da terra; pois nada de vós ficaráintacto; tudo desaparecerá na voracidade do incêndio. Marte,montado num carro sírio, deitará por terra não somente asvossas torres e fortalezas, como também as de várias outrascidades, e incendiará os templos. Os deuses estão tomados deassombro e de pavor, e do alto dos seus templos já corre umsangue negro, presságio seguro dos males que vos ameaçam.Saí, pois, do santuário; armai-vos de coragem contra asdesgraças que se avizinham”.

CXLI — Esta resposta deixou os emissários de Atenasde ânimo aquebrantado. Tímon, filho de Androbules, um dosmais eminentes cidadãos de Delfos, vendo-os desesperados emvista das desgraças anunciadas pelo oráculo, aconselhou-os amunirem-se de ramos de oliveira e ir novamente consultar ooráculo na qualidade de suplicantes. Os teoros aceitaram oconselho e dirigiram-se pela segunda vez ao templo,exprimindo-se assim ante o deus: “Oh! Rei, dai-nos umaresposta mais favorável sobre a sorte de nossa pátria, emconsideração a estes ramos de oliveira que temos na mão; docontrário, não sairemos do vosso santuário e aqui ficaremos atéa morte”. A pitonisa assim lhes respondeu pela segunda vez:“Em vão Palas emprega suas súplicas e suas razões junto aJúpiter Olímpico; não consegue convencê-lo. Não obstante,dar-vos-ei esta resposta, inflexível como o diamante: Quando oinimigo se apoderar de tudo quanto o país de Cecrops encerra, eos antros do sagrado Citéron, Júpiter, que tudo vê, concederá aPalas uma muralha de madeira, a única que não poderá serdestruída; ela vos será útil, a vós e a vossos filhos. Não esperai,pois, a cavalaria e a infantaria do poderoso exército que viráatacar-vos por terra; fugi antes e voltai-lhe as costas. Dia viráem que havereis de encará-las de frente. Quanto a ti, oh divinaSalamina! perderás os filhos das tuas mulheres; que Ceres sejaseparada ou reunida”.

CXLII — Esta resposta pareceu aos teoros menos dura

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do que a precedente, e realmente o era. Tomaram-na por escritoe regressaram a Atenas, onde tudo relataram ao povo. Osignificado do oráculo foi discutido, dividindo-se as opiniões.Alguns entre os mais idosos deduziram da resposta do deus, quea cidade não seria tomada, pois estava, desde muito tempo,cercada por uma paliçada, e que essa paliçada era a muralha demadeira a que o oráculo se referia. Outros sustentavam, aocontrário, que o deus se referia aos navios, e que, porconseguinte, deviam ser equipados sem perda de tempo.Todavia, os dois últimos versos da pitonisa: “Quanto a ti, ohdivina Salamina! perderás os filhos das tuas mulheres; queCeres seja separada ou reunida”, embaraçavam os que achavamque os navios eram as muralhas de madeira, e entristeciam osadivinhos, que entendiam que seriam vencidos perto deSalamina, se se dispusessem a um combate naval.

CXLIII — Havia, então, em Atenas, um cidadãorecentemente elevado à mais alta categoria social. Chamava-seTemístocles, mas era conhecido como o filho de Néocles.Afirmava ele que os intérpretes não haviam encontrado overdadeiro sentido do oráculo. Se a desgraça anunciada, diziaele, se referia, de qualquer maneira, aos Atenienses, a respostada pitonisa não encerraria, na minha opinião, tanta doçura.Infortunada Salamina!, teria ela dito, em lugar de Oh divinaSalamina!, se os habitantes devessem perecer nas cercaniasdessa ilha. Mas, para quem tomasse o oráculo no seu verdadeirosentido, o deus referia-se antes aos inimigos do que aosAtenienses; e, portanto, ele os aconselhava a se prepararem paraum combate naval, porque os navios eram as muralhas demadeira. Os Atenienses consideraram a opinião de Temístoclesmais acertada do que a dos outros intérpretes, contrários a umcombate naval e à idéia de levantar as mãos contra o inimigo,optando pelo abandono da Ática.

CXLIV — Anteriormente a esse seu parecer,Temístocles havia dado um outro que, para felicidade dos

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Gregos, prevalecera. Havia, no tesouro público, grandesriquezas provenientes das minas de Lauros. Estavam em vias dedistribuir a todos os cidadãos dez dracmas por cabeça.Temístocles persuadiu os Atenienses a não fazerem taldistribuição, construindo com esse dinheiro duzentos naviospara a guerra — a guerra que teriam de sustentar contra osEginetas. Essa guerra resultou num grande benefício para aGrécia, porque obrigou os Atenienses a se tornarem bonsmarinheiros. Os navios assim construídos não serviram para ofim a que eram destinados, mas serviram, muito a propósito,para suprir as necessidades da Grécia com relação à sua forçanaval. Como já estavam construídos, na ocasião precisa não foinecessário senão acrescentar alguns outros. Assim, numconselho mantido depois da consulta feita ao oráculo, ficouresolvido que, em obediência ao deus, toda a nação, de concertocom os Gregos que a ela quisessem juntar-se, atacaria por maros bárbaros que vinham invadi-la.

CXLV — Os Gregos mais bem intencionados para coma pátria reuniram-se todos num determinado local, e, depois dehaverem deliberado entre si, resolveram, de comum acordo,reconciliar-se com os outros inimigos — pois, nessa ocasião,várias cidades gregas estavam em guerra, sendo a maisencarniçada a que travavam Atenienses e Eginetas. Informadosde que Xerxes se encontrava em Sardes com o seu exército,decidiram enviar espiões à Ásia para instruir-se sobre osprojetos do soberano persa, despachando, também,embaixadores, uns para Argos, a fim de obterem a aliança dosÁrgios contra os Persas; outros para a Sicília, junto a Gélon,filho de Diomenes; outros para a Corcira, para exortar osCorcírios a fornecerem auxílio à Grécia; outros ainda paraCreta, com o mesmo propósito. Pretendiam, com isso, reunir, sepossível, todas as forças helênicas e congregar esforçosextremos para conjurar o perigo que ameaçava igualmente todosos Gregos. O poderio de Gélon era, então, considerado bastanteapreciável, não havendo, em nenhum Estado da Grécia, forças

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que pudessem ser igualadas às suas.

CXLVI — Tomadas essas resoluções e aplacados osódios entre eles, enviaram primeiramente três espiões à Ásia, osquais, ali chegando, puseram-se a observar as forças de Xerxese os seus movimentos; mas, surpreendidos nessa tarefa econdenados à morte pelos generais do exército de terra, foramlevados ao suplício depois de torturados. Ao ter conhecimentodo fato, Xerxes censurou a conduta dos seus generais e ordenouque os espiões fossem levados à sua presença, se aindaestivessem vivos. Os guardas, encontrando-os ainda vivos,levaram-nos ao soberano.

Xerxes, informado do propósito que tinham em mira osespiões, ordenou aos guardas que os acompanhassem por todaparte, mostrando-lhes todas as tropas, a infantaria, a cavalaria,e, depois de satisfazer-lhes a curiosidade, os deixassem ir empaz para onde quisessem. Dando essas ordens, explicou que, seos espiões fossem executados, os Gregos não poderiam serinformados com antecedência do vulto das tropas persas, emnúmero muito superior ao que se dizia, acrescentando que,matando esses homens, não fariam grande mal aos inimigos,enquanto que, deixando-os regressar ao seu país, os Gregos,instruídos sobre as forças que teriam de enfrentar, nãoesperariam a sua chegada para se submeterem, não havendo,assim, necessidade de movimentar todo o exército contra eles.

CXLVII — Esse parecer assemelha-se a este outro domesmo soberano: Quando ele se encontrava em Abido,observou alguns navios que vinham do Ponto Euxino eatravessavam o Helesponto para levar trigo a Egina e para oPeloponeso. Os que se achavam a seu lado, sabendo que osnavios pertenciam ao inimigo, dispuseram-se a capturá-los, e,com os olhos fixos no rei, aguardavam as suas ordens, quandoeste lhes perguntou para onde iam aqueles navios. “Senhor —responderam —, vão levar trigo para os vossos inimigos”. “Pois

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bem — observou Xerxes —, não vamos nós para o mesmolugar, levando, entre outras coisas, trigo? Que mal nos farão,transportando víveres para nós?”

Os espiões, depois de haverem tudo observado porsugestão do próprio soberano, regressaram sãos e salvos àEuropa para darem ciência da sua missão.

CXLVIII — Logo depois de terem os Gregosconfederados enviado espiões à Ásia, despacharam emissáriospara Argos. Eis como os Árgios se referem aos acontecimentosrelacionados com a expedição do soberano persa: Afirmam elesterem tido, desde o início, conhecimento dos propósitos dosbárbaros contra a Grécia, e que, sabendo que os Gregosdesejavam incluí-los na liga comum contra os Persas, tinhammandado perguntar ao deus de Delfos que partido lhes seriamais vantajoso. Isso porque, pouco antes, os Lacedemônios,comandados por Cleómenes, filho de Anaxandrides, haviammatado seis mil dos seus concidadãos. A pitonisarespondeu-lhes nestes termos: “Povo odiado pelos outros povosvizinhos, querido dos deuses imortais, conserva-te em guarda,pronto para atacar ou aparar os golpes dos teus inimigos,defende tua cabeça, e tua cabeça salvará teu corpo”.Acrescentam eles que, chegando os emissários gregos a Argos,foram admitidos no Senado, onde expuseram o motivo que alios levava, tendo os senadores respondido estarem os Árgiosdispostos a conceder-lhes auxílio, tão pronto concluíssem umatrégua de trinta anos com os Lacedemônios, e com a condiçãode lhes ser confiada parte do comando da metade do exércitoaliado. Disseram eles que o comando geral lhes pertencia pordireito, mas que se contentariam com a metade.

CXLIX — Tal foi, segundo os Árgios, a resolução doseu Senado, apesar de o oráculo ter sido contrário à aliança comos Gregos contra os Persas. Dizem ainda os Árgios que o quemais os fazia desejar a trégua de trinta anos, apesar do receio

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que lhes inspirara o oráculo, era, afinal, a necessidade de daremaos filhos tempo para atingirem a idade viril. Se essa trégua nãofosse concluída, receavam cair para sempre sob o jugo dosLacedemônios, ou ainda, enfraquecidos pela guerra que contraeles sustentavam, vir a experimentar um revés ante os Persas.Os embaixadores de Esparta que ali se encontravamresponderam à proposta do Senado declarando que, com relaçãoà trégua, exporiam o caso ao povo, mas, quanto ao comando dosexércitos, já estavam encarregados de dizer que, tendo osEspartanos dois reis e os Árgios um só, não era possível retiraro comando das tropas a um dos dois reis de Esparta, nadaimpedindo, todavia, que o rei de Argos participasse também docomando. Dizem os próprios Árgios que, diante disso, nãoquiseram submeter-se à ambição dos Espartanos, preferindoobedecer aos bárbaros a transigir com os Lacedemônios, e, emconseqüência, ordenaram aos embaixadores que deixassem oseu território antes do pôr do sol, sob pena de serem tratadoscomo inimigos.

CL — É assim que os Árgios relatam o caso, mas, naGrécia, contam-no de maneira bem diversa. Xerxes, dizem osGregos, antes de empreender a expedição contra a Gréciaenviou a Argos um arauto, portador da seguinte mensagem:“Árgios, ouvi o que vos diz o rei Xerxes. Tendo Perses, um dosnossos ancestrais, tido por pai Perseu, filho de Dânao, e por mãeAndrômeda, filha de Cefeu, deduz-se que os Persas e os Árgiostêm a mesma origem. Não é lógico, por conseguinte, quefaçamos guerra aos nossos pais, nem tão pouco que, prestandoauxílio aos Gregos, vos torneis nossos inimigos. Permaneceitranqüilos no vosso país. Se esta expedição tiver o sucesso queespero, tratar-vos-ei com maior distinção do que a qualqueroutro povo”. Acrescente-se que, embora essa proposta tivesseparecido da maior importância para os Árgios, eles, da suaparte, nada solicitaram aos Gregos, mas, quando estes lhespediram para participar da aliança, exigiram uma parte docomando, a fim de terem um pretexto para não aderir à luta,

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sabendo perfeitamente que os Lacedemônios não partilhariam ocomando com eles.

CLI — Alguns gregos declaram que, muitos anosdepois, tal relato foi confirmado pelo seguinte fato: OsAtenienses tinham enviado embaixadores a Susa, cidade deMémnon, para tratarem de certos negócios relacionados com asua segurança. Entre esses embaixadores figurava Cálias, filhode Hipônico. Na mesma ocasião, os Árgios enviaramembaixadores àquela mesma cidade, para perguntar aArtaxerxes, filho de Xerxes, se a aliança que haviam firmadocom este subsistia ainda, ou se ele os tinha como inimigos.Artaxerxes respondeu que a aliança ainda vigorava,expressando, ao mesmo tempo, a sua simpatia pelos habitantesde Argos.

CLII — Não posso assegurar que Xerxes tenha enviadoum arauto a Argos para dizer aos Árgios o que acabo de relatar,nem que embaixadores árgios tenham ido a Susa inquirirArtaxerxes a respeito da continuação da sua aliança com eles.Limito-me a relatar o que dizem os próprios Árgios. Tudo quesei é que, se todos os homens levassem para um mesmo lugarsuas más ações para trocá-las pelas de seus vizinhos, cada qualreconduziria com prazer a que ia levar à massa comum. Há, semdúvida, ações ainda mais vergonhosas do que as dos Árgios;mas acho que não devemos acreditar em tudo cegamente.Conta-se, realmente, que foram os Árgios que incitaram osPersas a invadir a Grécia, porque, tendo sido vencidos pelosLacedemônios, consideravam qualquer outra situação preferívelà que lhes fora imposta.

CLIII — À Sicília foram também enviadosembaixadores da parte dos aliados, entre os quais figuravaSiágrio, da Lacedemônia, para entrarem em entendimento comGélon. Originário de Telos, ilha situada nas proximidades dopromontório de Triópia, foi levado para Gela pelos líndios da

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ilha de Rodes, e por Antífemo, quando foram fundar a cidade deGela. Seus descendentes, tendo-se tornado sacerdotes dasdivindades infernais, continuaram eles sempre a usufruir dessadignidade. Herdaram-na de Telines, um dos seus ancestrais, quea obteve da maneira seguinte: Tendo havido uma sedição emGela, os vencidos fugiram para Mactório, cidade situada aonorte de Gela. Telines conduziu-os de volta à pátria sem o apoiode quaisquer tropas, apenas levando consigo as imagenssagradas daquelas divindades. Onde as tinha conseguido oucomo vieram elas ter às suas mãos, é o que não sei explicar. Ocerto é que, cheio de confiança nessas imagens, reconduziu osfugitivos a Gela, com a condição, porém, de os seusdescendentes tornarem-se sacerdotes daquelas deusas.Espanta-me ter ele podido levar a bom termo essa façanha,acessível somente aos homens corajosos e decididos, sendoTelines, segundo afirmam os habitantes da Sicília, um indivíduodébil e um tanto efeminado.

CLIV — Cleandro, filho de Pantares, tendo sido mortopor Sabelo, cidadão de Gela, depois de haver reinado sete anosnessa cidade, seu irmão Hipócrates apoderou-se da coroa. Noreinado deste último, Gélon, descendente do hierofante Telines,elevou-se em pouco tempo, pelo seu mérito, como aconteceucom vários outros dos seus concidadãos, entre os quaisEnesidemo, filho de Pataico, de simples guarda do corpo detropas de Hipócrates, à dignidade de general de cavalaria.Distinguiu-se ele contra os Calipólites, os Náxios, os Zancleus,os Leontinos, os Siracusanos e vários outros povos bárbaroscujas cidades foram cercadas por Hipócrates. De todas essascidades, somente Siracusa escapou ao jugo do soberano. Seushabitantes foram derrotados perto do rio Eloro, mas os Coríntiose os Corcírios libertaram-nos da servidão, reconciliando-os comHipócrates, com a condição de lhe cederem Camarina, quedurante muito tempo lhes pertencera.

CLV — Hipócrates, depois de haver reinado tanto

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tempo quanto seu irmão Cleandro, morreu diante da cidade deHibla, combatendo contra os Sículos. Então, Gélon,aparentemente, tomou a defesa de Euclides e Cleandro, ambosfilhos de Hipócrates, contra os cidadãos de Gela, que nãoqueriam reconhecê-los como seus senhores; e, tendo vencidoseus oponentes em combate, apoderou-se da autoridadesoberana, espoliando os filhos de Hipócrates. Firmando-se nopoder, mandou vir da cidade de Casmena os siracusanosdenominados Gamores, que haviam sido expulsos de suas terraspelo povo e pelos seus próprios escravos, chamados Cilicírios.Restabelecendo-os em Siracusa, Gélon apoderou-se tambémdessa cidade, cujos habitantes, vendo-o decidido a atacá-los,submeteram-se docilmente.

CLVI — Senhor de Siracusa, Gélon passou a dar menosimportância a Gela, confiando o governo desta ao seu irmãoHíeron e reservando para si o de Siracusa, que tinha em maiorconta. Siracusa desenvolveu-se rapidamente, tornando-se umadas mais florescentes cidades da região. Gélon para alitransferiu todos os habitantes de Camarina, fê-los cidadãossiracusanos e destruiu sua primitiva cidade. Agiu da mesmamaneira com relação à maioria dos gelanos. Em seguida, cercouos Megarinos da Sicília, obrigando-os a render-se. Os cidadãosricos da cidade, responsáveis pela guerra, estavam convencidosde que não escapariam à morte, mas Gélon não só poupou-oscomo os enviou para Siracusa, concedendo-lhes a cidadania.Quanto à plebe, foi também levada para Siracusa e ali vendida etransportada para fora da Sicília, embora não tivesse tidonenhuma participação ativa na guerra e não merecesse tão durasorte. Gélon procedeu do mesmo modo com os Eubeus daSicília, que ele tinha separado em duas classes, por consideraresse povo um vizinho bastante incômodo. Foi assim que Gélonveio a tornar-se um poderoso monarca.

CLVII — Logo que os embaixadores gregos chegaram aSiracusa, Gélon concedeu-lhes audiência. “Os Lacedemônios,

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os Atenienses e seus aliados — disseram-lhe eles —enviaram-nos aqui para solicitar a vossa cooperação militarcontra os bárbaros. Sabeis, naturalmente, que o rei dos persasestá prestes a lançar-se contra a Grécia com poderosas forçasque trouxe da Ásia, através das pontes que mandou construirsobre o Helesponto, assim como não ignorais que, sob opretexto de vingar-se dos Atenienses, ele se dirige contra todosnós, pretendendo submeter a Grécia inteira ao seu jugo. Soispoderoso, a Sicília, da qual sois o soberano, não é uma daspartes mais fracas da Grécia. Concedei auxílio aos defensoresda liberdade e uni-vos a eles, para que possam preservá-la. Setodos os povos gregos se unirem, formaremos uma potênciaconsiderável e em condições de rechaçar o inimigo que nos vematacar. Se, ao contrário, estivermos divididos, uns traindo apátria e outros recusando socorro aos que estão dispostos adefendê-la, ficaremos reduzidos a um pequeno número, sendode temer-se que a Grécia inteira sucumba sob os ataques doinvasor. Concedendo-nos socorro estareis trabalhando pelavossa própria segurança. Uma empresa bem organizada é quasesempre coroada de sucesso”.

CLVIII — “Gregos — respondeu com veemência Gélon—, ousais convidar-me a juntar minhas forças às vossas contraos Persas, vós que, quando vos solicitei auxílio contra osCartagineses, com os quais me achava em guerra; quandoimplorei vossa colaboração para vingar a morte de Dorieu, tilhode Anaxandrides, oferecendo-me para ajudar a restabelecer aliberdade dos portos e das cidades, que vos traria muitasvantagens e proveitos, não somente vos recusastes a vir em meuauxílio, como ainda vos negastes a vingar comigo o assassíniode Dorieu. Pouco vos importava, então, que este país setornasse presa dos bárbaros. Mas o perigo passou e as coisasnos correram favoravelmente. Agora, que a guerra está à vossaporta e que uma ameaça terrível paira sobre as vossas cabeças, éque vos lembrais de Gélon. Embora tenhais agido com inteiradesconsideração para comigo, não tenciono pagar-vos na

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mesma moeda; porei à vossa disposição duzentos trirremes,vinte mil guerreiros, dois mil cavalarianos, dois mil archeiros,dois mil besteiros e dois mil homens de cavalaria ligeira.Comprometo-me também a fornecer trigo para todas as tropasaté o fim da guerra, mas com a condição de me ser confiado ocomando. De outra maneira, nem tomarei parte na guerra, nemfornecerei tropas de qualquer espécie”.

CLIX — Ouvindo as condições impostas por Gélon,Siágrio não pôde conter-se: “Seria, certamente, motivo degrande mágoa para Agamémnon, descendente de Pélope, saberque os Espartanos se haviam deixado substituir no comando porum Gélon ou por siracusanos. Não falemos, pois, mais nisso; éuma condição que não podemos aceitar. Se quiserdes prestarsocorro à Grécia, tereis que obedecer aos Lacedemônios. Se vosrecusais a servir sob as ordens deles, podeis ficar com as vossastropas”.

CLX — Observando, por essa resposta, a poucaimportância dada à sua proposta, Gélon fez-lhes uma segunda,falando-lhes nestes termos: “Espartanos, os insultos que nos sãodirigidos levam-nos, geralmente, à cólera, mas não tomo emconsideração os vossos propósitos insultuosos e me abstenho deresponder-vos no mesmo tom. Quero apenas dizer-vos que, seestais interessados no comando, mais ainda deverei eu estar,pois entro com mais tropas e navios do que vós. Como, porém,considerais inaceitável a minha proposta, estou disposto atransigir até certo ponto. Se quereis ficar com o comando dastropas de terra, satisfaço-me com o das forças navais; ou, sepreferis comandar no mar, comandarei em terra. Se ainda assimconsiderais absurda a minha pretensão, resta-vos apenas voltarpara o vosso país, dispensando a aliança que vos ofereço”.

CLXI — Tais as propostas de Gélon. O embaixador deAtenas, prevendo o que diria o da Lacedemônia, respondeunestes termos: “Rei de Siracusa, não necessitamos de um

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general, mas de tropas, e foi para pedi-las que nos enviaramaqui. Vós, entretanto, declarais que só as fornecereis com acondição de vos reconhecermos como general, tão grande é ovosso desejo de comandar-nos. Quando pedistes o comando detodas as forças, nós, Atenienses, contentamo-nos em guardarsilêncio, persuadidos de que o embaixador da Lacedemôniasaberia responder-vos por ele e por nós. Excluída apossibilidade do comando geral, vós vos apegais ao da frota.Pois bem, agora, mesmo que os Lacedemônios vo-loconcedessem, não concordaríamos com isso, pois esse comandonos pertence, a menos que os Lacedemônios o pretendam. Seeles quiserem assumir o comando da frota, não nos oporemos aisso, mas não o cederemos a nenhum outro. É um direito quenos cabe, uma vez que fornecemos a maior parte das forçasnavais de que dispõem os Gregos. De forma alguma nós,Atenienses, abandonaríamos o comando aos Siracusanos, nós opovo mais antigo da Grécia; nós os únicos entre os Gregos quenunca trocaram de solo; nós, enfim, que nos orgulhamos decitar, entre os nossos compatriotas, aquele glorioso comandanteque participou do cerco de Tróia e que era, no dizer de Homero,o poeta épico, um dos mais hábeis para animar um exército àluta. É, pois, com justa razão que nos ufanamos de nossapátria”.

CLXII — “Atenienses — volveu Gélon —, não vosfaltam, segundo parece e como vós próprios dizeis, generais,mas soldados. Já que vos mantendes intransigentes, reservandotudo para vós, o que tendes a fazer é voltar o mais depressapossível para a vossa pátria e anunciar que ela perdeu aPrimavera deste ano”. Gélon queria dar a entender com isso,que a Grécia, privada da sua aliança, era como um ano semPrimavera.

CLXIII — Ante essa resposta de Gélon, osembaixadores dos Gregos, dando por encerrada a missão que alios levara, fizeram-se de regresso à pátria. Entretanto, Gélon,

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receando que os Gregos não fossem suficientemente fortes paravencer o soberano persa, e, por outro lado, considerandoinsuportável e indigno para um soberano da Sicília servir noPeloponeso sob as ordens dos Lacedemônios, decidiu pôr emprática um plano que lhe resultasse favorável. Logo que soubeque Xerxes havia atravessado o Helesponto, confiou a Cadmo,filho de Cites, da ilha de Cós, três navios de cinco filas deremos e enviou-os a Delfos com riquezas consideráveis,palavras de paz e instruções para observar o desenrolar dabatalha que ia ser travada. Se o soberano persa saísse vencedor,devia ele presenteá-lo com o rico carregamento que levava eoferecer-lhe, ao mesmo tempo, terra e água em nome de todasas cidades e Estados sob o domínio de Gélon. Se fossem osGregos os vencedores, devia regressar imediatamente à Sicília.

CLXIV — Esse Cadmo havia herdado de seu pai asoberania de Cós, e, embora a tivesse segura nas mãos,entregou-a aos habitantes, sem que fosse a isso compelido, masvoluntariamente, apenas por amor à justiça. Tendo, em seguida,partido para a Sicília, ali fixou residência com os Sâmios, emZancle, que passou a chamar-se Messina. Sabendo dos motivosque o haviam levado à Sicília e do seu amor à justiça,demonstrado em diversas ocasiões, Gélon resolveu encarregá-lodaquela missão a Delfos. Cadmo mostrou aí, mais uma vez, osseus nobres sentimentos e correta maneira de proceder, pois,embora tivesse nas mãos as riquezas consideráveis que Gélonlhe confiara, podendo facilmente delas apropriar-se, não lhepassou pela mente fazer tal coisa, trazendo-as de volta para aSicília depois da vitória dos Gregos sobre os Persas e daconseqüente retirada de Xerxes.

CLXV — Dizem os habitantes da Sicília que, se fossemoutras as circunstâncias, Gélon teria prestado auxílio aosGregos, mesmo que tivesse de servir sob as ordens dosLacedemônios. Terilo, filho de Crinipo, tirano de Hímera,vendo-se expulso dessa cidade por Téron, filho de Enesidemo,

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tirano dos Agrigentinos, tinha reunido um exército de trezentosmil homens, composto de fenícios, líbios, ibérios, lígios,helisícios, sardônios e círnios, sob o comando de Amílcar, filhode Hanão, rei dos Cartagineses. Esse general cartaginês aceitaraa incumbência levado pelos compromissos de hospitalidade quecontraíra com Terilo e, sobretudo, pela confiança que lhe haviatestemunhado Anaxilas, filho de Cretino, tirano de Régio,oferecendo-lhe os filhos como reféns para fazê-lo vir à Sicíliavingar o sogro. Com efeito, Anaxilas havia desposado Cidipe,filha de Terilo. Os Sicilianos dizem que Gélon, não podendo,por esse motivo, socorrer os Gregos, decidiu enviar aquelasimensas riquezas a Delfos.

CLXVI — Acrescentam os Sicilianos que, no dia emque os Gregos bateram as forças persas em Salamina, Gélon eTéron desafiaram Amílcar na Sicília. Amílcar era, segundoafirmam, cartaginês pelo lado paterno e siracusano pelo ladomaterno, tendo subido ao trono de Cartago pelo seu própriomérito. Ouvi dizer que, tendo perdido a batalha, desapareceu,não tendo sido possível encontrá-lo em parte alguma, nem vivonem morto, embora Gélon tudo fizesse para localizá-lo.

CLXVII — Os Cartagineses, porém, relatam o fato demaneira mais verossímil. Dizem eles que a batalha que osbárbaros travaram com os Gregos na Sicília durou desde oromper da aurora até o anoitecer, e que Amílcar permaneceufirme no campo da luta, imolando vítimas, cujas entranhas lheauguravam grandes sucessos, queimando-as inteiras numa vastafogueira. Tendo, todavia, percebido, enquanto fazia libaçõessobre as vítimas, que suas tropas batiam em retirada, atirou-seele próprio ao fogo, sendo logo devorado pelas chamas. Deresto, tenha ele desaparecido dessa maneira, como narram osFenícios, ou de outra, como querem os Siracusanos, o fato é queos Cartagineses fazem sacrifícios em sua honra, tendo erguido,em sua memória, monumentos em todas as cidades onde eleestabeleceu colônias, das quais Cartago é a maior.

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CLXVIII — Os embaixadores que haviam estado naSicília procuraram também convencer os Corcírios a tomarem opartido da Grécia, fazendo-lhes as mesmas solicitações que aGélon. Os Corcírios responderam de uma maneira e agiram deoutra bem diferente. Comprometeram-se prontamente a enviartropas em auxílio dos Gregos, dizendo que, da sua parte, tudofariam para que a Grécia não sucumbisse, pois sabiam que, setal acontecesse, ver-se-iam, eles próprios, reduzidos à maisvergonhosa escravidão. Essa resposta pareceu bastante plausívelaos embaixadores e muito lhes agradou; mas quando chegou omomento de concretizar a sua promessa, os Corcírios, quealimentavam outros propósitos, equiparam sessenta navios,enviando-os para as vizinhanças do Peloponeso. Lançandoâncoras perto de Pilos e Ténaro, nas costas da Lacônia, astripulações ficaram observando o desenrolar dosacontecimentos. Os Corcírios assim agiam na suposição de queas forças gregas não estavam em condições de resistir às tropaspersas, muito superiores em número, e que toda a Grécia seriasubjugada. Assim, pois, poderiam eles dirigir-se desta maneiraao soberano persa vitorioso: “Senhor, os Gregos concitaram-nosa prestar-lhes auxílio nesta guerra. Entretanto, emboradispuséssemos de forças consideráveis e de navios em númerobem maior do que qualquer outro Estado da Grécia, comexceção dos Atenienses, não quisemos opor-nos aos vossosdesígnios nem causar-vos maiores dificuldades”. Com issoesperavam obter condições mais vantajosas do que os outros, oque, a meu ver, poderia muito bem ter sucedido. Por outro lado,já tinham uma desculpa pronta para os Gregos, caso as coisas sepassassem de outra maneira, e dela se serviram quando chegouo momento de responderem pela falta de cumprimento da suapromessa. Quando os Gregos os censuraram por não os teremauxiliado, declararam que haviam equipado sessenta trirremes,mas que os ventos do Mediterrâneo os impediram de dobrar opromontório Maleu, só tendo eles conseguido chegar aSalamina depois do combate naval, não tendo sido, portanto,por má vontade que haviam deixado de auxiliá-los. Foi assim

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que tentaram enganar os Gregos.

CLXIX — Os Cretenses, ante a solicitação dosembaixadores dos Gregos, mandaram perguntar ao deus deDelfos, em nome de toda a nação, se lhes seria vantajososocorrer a Grécia. “Insensatos! — respondeu-lhes a pitonisa —Muito vos lamentastes dos males que Minos vos enviou na suacólera, por causa do socorro que destes a Menelau e do auxílioque prestastes aos Gregos para vingar-se do rapto de umamulher em Esparta, e quereis agora auxiliá-los?” Ante essaresposta, os Cretenses recusaram-se a prestar qualquer socorroaos Gregos.

CLXX — Conta-se que Minos, saindo à procura deDédalo, foi ter à Sicânia, que hoje se denomina Sicília, aliperecendo de morte violenta. Algum tempo depois, osCretenses, incitados por um deus, lançaram-se todos contra aSicânia com uma poderosa frota — com exceção dos Policnitese dos Presianos —, cercando, durante cinco anos, a cidade deCanicos, no meu tempo habitada pelos Agrigentinos. Por fim,não podendo capturá-la nem continuar o cerco, devido à falta devíveres, viram-se obrigados a retirar-se. Surpreendidos por fortetempestade perto de Iapígia, foram impelidos violentamentepara a costa, tendo todas as suas embarcações quebradas. Semrecursos para retornar a Creta, foram obrigados a permanecer nopaís em cujas costas haviam ido ter, e ali construíram a cidadede Hírie, trocando o nome de Cretenses pelo deIapígios-Messápios, deixando de ser insulares para se tornaremhabitantes do continente. Dessa cidade saíram mais tardeexpedições para fundar novas colônias em outras partes.Tempos depois, os Tarentinos tentaram destruí-la, sendocompletamente desbaratados, transformando-se a luta pelaposse da cidade numa tremenda carnificina para os Tarentinos epara os habitantes de Régio, a maior já experimentada pelospovos gregos. Os habitantes de Régio, forçados por Micito,filho de Caros, a marchar em socorro dos Tarentinos, perderam,

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nessa ocasião, três mil homens, ignorando-se o montante dasperdas sorridas pelos Tarentinos. Quanto a Micito, que eraservidor de Anaxilas, deixou-se ficar em Régio para tratar dosseus negócios; mas, obrigado a abandonar a cidade, foi seestabelecer em Tégea, na Arcádia, ali consagrando grandenúmero de estátuas a Olímpia.

CLXXI — Dizem os Présios que, estando a ilha de Cretadeserta, elementos de vários povos ali foram estabelecer-se,contando-se entre eles muitos gregos, e que foi na terceirageração destes últimos que se verificou a guerra de Tróia, muitodepois da morte de Minos, não tendo os Cretenses mostradomuita pressa em dar socorro a Menelau. Acrescentam os Présiosque os Cretenses, ao regressarem de Tróia, foram, por essarazão, atacados de peste e de fome, juntamente com os seusrebanhos. Ficando Creta despovoada pela terceira vez, ali veioestabelecer-se um terceiro grupo de colonos, hoje ocupantes dailha, unindo-se aos sobreviventes do flagelo. Lembrando-lhestais desgraças, a pitonisa dissuadiu-os de prestar auxílio aosGregos contra os Persas.

CLXXII — Os Tessálios seguiram, por necessidade, opartido dos Medos, pois que estes lhes fizeram ver quedesaprovavam as intrigas dos Aleuades. Assim que souberamque o soberano persa estava prestes a passar para a Europa,enviaram embaixadores ao istmo, onde tinha lugar uma reuniãode deputados da Grécia, escolhidos pelas cidades que semostravam mais dispostas a defendê-la. Os embaixadorestessálios, chegando ao istmo, assim se expressaram perante osdeputados gregos: “Gregos, é preciso guardar a passagem doOlimpo, a fim de salvar da guerra a Tessália e toda a Grécia. Danossa parte, estamos prontos a fazê-lo, mas é necessário queenvieis também forças consideráveis. Se não o fizerdes, podeisestar certos de que entraremos em entendimento com osoberano persa, pois não é justo sermos sacrificados por vossacausa, somente por estarmos colocados na parte mais oriental da

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Grécia. Se nos recusais socorro, não podeis obrigar-nos adar-vos, e temos de procurar os meios de prover a nossasegurança”.

CLXXIII — Ante essa declaração dos embaixadorestessálios, os Gregos resolveram enviar por mar à Tessália forçasde terra para guardar a passagem. Chegando a Alos, na Acaia,as tropas gregas desembarcaram e puseram-se em marcha emdireção à Tessália, indo ter a Tempéia, onde se encontra apassagem que conduz à Baixa Macedônia, na Tessália, perto doPeneu, entre o Olimpo e o Ossa. Essas tropas gregas, emnúmero de dez mil, aproximadamente, muito bem armadas,acamparam no referido local, indo juntar-se a elas a cavalariatessália. Eveneto, filho de Careno, um dos polemarcas, tinhasido escolhido para comandar as forças lacedemônias, emboranão fosse de sangue real. Temístocles, filho de Néocles,achava-se à frente dos Atenienses. Essas forças permanecerampoucos dias naquele lugar, pois os enviados de Alexandre, filhode Amintas, rei da Macedônia, aconselharam-nas a retirar-se,com receio de que, encurralados no desfiladeiro, ali fossemesmagadas pelo inimigo que avançava sobre elas e cuja forçamuito bem conheciam. Os Gregos seguiram o conselho,julgando-o proveitoso e considerando boas as intenções do reida Macedônia. Penso, entretanto, que assim agiram levadospelo medo, desde que souberam existir, para entrar na Tessália,outra passagem pelo país dos Perrebos, do lado da AltaMacedônia, perto da cidade de Gonos. E foi realmente por aíque penetrou o exército de Xerxes. As tropas gregas retornaramaos navios e fizeram-se à vela em direção ao istmo.

CLXXIV — Esse movimento verificou-se na Tessália,na ocasião em que o soberano se dispunha a passar da Ásia paraa Europa e já se encontrava em Abido. Os Tessálios, vendo-seabandonados pelos aliados, não hesitaram em tomar o partidodos Persas, a eles aderindo com o maior empenho e prestandoao soberano importantes serviços.

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CLXXV — Os Gregos, de volta ao istmo, reuniram-separa deliberar, segundo o conselho de Alexandre, sobre de quemaneira deviam fazer a guerra e qual o melhor local de ação. Oalvitre aceito foi o de guardarem a passagem das Termópilas,pois esta parecia ser mais estreita do que aquela que dá acesso àMacedônia, na Tessália, ficando também mais próxima do que aoutra. Tomaram a resolução de ocupar essa passagem, a fim defechar aos bárbaros a entrada da Grécia. Quanto à força naval,decidiram enviá-la para o Artemísio(12), nas costas daHistiótida. Esses dois pontos (as Termópilas e o Artemísio)ficam perto um do outro, de maneira que as forças de terra e demar poderiam manter-se em contato.

CLXXVI — O Artemísio se retrai ao deixar o mar daTrácia, tornando-se um pequeno estreito, entre a ilha de Cíato eas costas de Magnésia. Depois do estreito da Eubéia, correladeado por um terreno onde existe um templo dedicado aDiana(13) e ao penetrar na Grécia pela Traquínia, apresentauma reduzida dimensão. A passagem mais estreita que há nopaís é a que fica à frente e atrás das Termópilas, pois atrás,perto de Alpenes, não pode passar senão uma carroça, e àfrente, perto do riacho de Fênix e da cidade de Antela, não hápassagem senão para uma pequena viatura. A oeste dasTermópilas encontra-se uma montanha escarpada e inacessível,que se estende até o monte Eta. O caminho a leste é limitadopelo mar, por pântanos e barrancos. Nessa passagem existemfontes de água quente, de que se servem os habitantes parabanhos e que denominam chatres, junto às quais ergue-se umaltar consagrado a Hércules. Essa passagem era fechada poruma muralha, na qual haviam aberto portas. Os habitantes daFócida tinham-na construído por temor aos Tessálios, quetinham vindo da Tesprócia para estabelecer-se na Eólida, aindahoje em poder dos mesmos. Tomaram essa precaução porque osTessálios manifestavam intenções de subjugá-los, e dessapassagem fizeram, então, uma espécie de conduto para as águasquentes das fontes, tomando medidas para fechar por esse ponto

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a entrada para o seu país, medidas essas visando principalmenteos Tessálios. A muralha, muito antiga, tinha tombado em parte;mas os Gregos ergueram-na de novo, com o propósito de repeliros bárbaros por esse lado. No burgo existente perto da passagempretendiam eles abastecer-se de víveres.

CLXXVII — Depois de haverem considerado eexaminado todos os pontos de acesso à região, os Gregosjulgaram este último mais propício à defesa, porque os bárbarosnão podiam fazer uso da cavalaria naquele terreno, e ainfantaria estaria impossibilitada de penetrar em gruposmaciços, perdendo muito da sua eficiência. Escolheram, pois,aquele ponto para sustentar o ataque das forças inimigas. Logoque souberam da chegada do soberano persa à Piéria, partiramdo istmo, dirigindo-se, uns para as Termópilas, por terra, eoutros para Artemísio, por mar.

CLXXVIII — Enquanto preparavam-se apressadamentepara defender-se nos dois referidos pontos, os habitantes deDelfos, inquietos pela sorte da Grécia e pela sua própria,consultaram o seu deus. A pitonisa ordenou-lhes que dirigissempreces aos Ventos, que seriam poderosos defensores da Grécia.Recebendo essa resposta, os Délfios comunicaram-na a todos osgregos mais ciosos da sua liberdade e ergueram um altar aosVentos, em Tia, onde existe um local consagrado à filha deCefisse, que deu o seu nome ao cantão.

CLXXIX — Enquanto a força naval de Xerxes partia dacidade de Terma, dez navios, os melhores veleiros da frota,seguiram direto à ilha de Cíato, onde os Gregos possuíam trêsnavios de observação, um de Trezena, outro de Egina e outro deAtenas. Percebendo de longe as embarcações dos bárbaros, osnavios gregos puseram-se imediatamente em fuga.

CLXXX — As embarcações persas perseguiram-nos,capturando primeiramente o navio de Trezena, comandado porPraxino. Estrangularam na proa da embarcação o mais belo

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homem da equipagem, considerando um presságio feliz ser umhomem assim o primeiro grego por eles apanhado. Esse homemchamava-se Leão, sendo, talvez, essa a razão pela qual otrataram com tanta violência.

CLXXXI — O trirreme de Egina, comandado porAsonida, causou alguns embaraços aos bárbaros devido ao valorde Pites, filho de Isquenos, um dos seus defensores. Embora onavio fosse capturado, Pites não cessou de combater, até seratingido por um golpe de machado, caindo semi-morto. Vendoque ele ainda respirava, os persas que combatiam no navio,admirando-lhe a coragem, resolveram preservar-lhe a vida,pensando-o com mirra e envolvendo os ferimentos com tiras debisso. De volta ao acampamento, mostraram-no, comadmiração, a todo o exército, e dispensaram-lhe toda sorte deatenções, enquanto tratavam como vis escravos os demaistripulantes do navio capturado.

CLXXXII — O terceiro navio, que tinha porcomandante Formo de Atenas, logrou escapar, indo encalhar naembocadura do Peneu; mas os bárbaros dele se apoderaramfinalmente, sem que contudo tivessem podido capturar os que otripulavam, pois eles o abandonaram logo que encalhou,evadindo-se para Atenas, através da Tessália. Os Gregosestacionados no Artemísio foram informados do acontecimentopor meio dos sinais(14) feitos com fogo na ilha de Cíato.Tomados de pânico, abandonaram o Artemísio, retirando-separa Cálcis, a fim de guardar a passagem do Euripo. Deixaram,porém, patrulhas nos pontos elevados da Eubéia, para observaros movimentos do inimigo.

CLXXXIII — Dos dez navios persas, três chegaram aoescolho denominado Mirmécio, entre a ilha de Cíato e aMagnésia, onde seus tripulantes ergueram uma coluna de pedraque haviam trazido. Entretanto, a frota, partindo de Terma,avançou para aquele ponto, onze dias depois da partida de

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Xerxes desse mesmo local. Pâmon, de Ciros, foi quem lhesindicou esse rochedo, que se encontrava na sua passagem. Osnavios dos bárbaros gastaram um dia inteiro para contornar acosta da Magnésia, chegando a Sépias e à orla marítima entre acidade de Castanéia e Sépias.

CLXXXIV — Até esse ponto e até as Termópilas, afrota de Xerxes não havia encontrado empecilhos sérios no seucaminho. Compunha-se ela, então, de mil duzentos e sete naviosvindos da Ásia, com uma equipagem de duzentos e quarenta eum mil e quatrocentos homens de diferentes nações,contando-se duzentos por navio. Além dessas tropas, fornecidaspelos que haviam dado os navios, havia ainda, em cada umdeles, trinta combatentes persas, medos e sácios, num total detrinta e seis mil duzentos e dez homens. A todas essas tropasdevemos acrescentar os tripulantes dos navios de cinqüentaremos, dando-se oitenta homens para cada um, perfazendo umtotal de duzentos e quarenta mil homens. A força naval vinda daÁsia compunha-se, ao todo, de quinhentos e dezessete milseiscentos e dez homens, e o exército de terra de um milhão esetecentos mil homens de infantaria e oitenta mil de cavalaria,aos quais devemos acrescentar os árabes, que conduziam oscamelos, e os líbios, com seus carros, num total de vinte milhomens. Eram essas as tropas procedentes da Ásia, sem contaros fâmulos que as seguiam, os navios carregados de víveres e osque os tripulavam.

CLXXXV — Juntemos ainda a esse número as tropaslevantadas na Europa, das quais não posso falar senão porconjectura. Os gregos da Trácia e das ilhas vizinhas forneceramcento e vinte navios, com um total de vinte e quatro milhomens. Quanto às tropas de terra fornecidas pelos Trácios,Peônios, Eordos, Botieus(15), Calcídios, Brígios, Piérios,Macedônios, Perrebos, Enianos, Dólopes, Magnésios, Aqueus etodos os povos que habitam o litoral da Trácia, montavam elas,ao que penso, a trezentos mil homens. A essas devemos

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acrescentar as tropas asiáticas, perfazendo um total de doismilhões seiscentos e quarenta e um mil seiscentos e dezhomens.

CLXXXVI — Embora o número dos guerreiros fosseassaz considerável, penso que o dos criados que os seguiam, dostripulantes dos navios de abastecimento e dos outros serviços dafrota era maior ainda, ou pelo menos igual. Xerxes, filho deDario, conduziu, assim, até Sépias e as Termópilas, cincomilhões duzentos e oitenta e três mil duzentos e vinte homens.

CLXXXVII — Era esse o total de tropas que o soberanopersa lançava contra a Grécia. Quanto às mulheres encarregadasde fazer pão, às concubinas, aos eunucos e outros mais,ninguém saberá dizer o seu número com exatidão, muito menoso dos condutores dos carros de bagagem e das bestas de carga, eo dos cães que acompanhavam o exército, tantos eram eles. Nãoé de admirar, por conseguinte, o fato de muitos rios não teremsido suficientes para estancar a sede de tantos homens e detantos animais, e da grande quantidade de trigo e outrosalimentos que tinha de ser distribuída cada dia para alimentá-losconvenientemente. Entre tão grande número de homens,ninguém pela sua beleza, grandeza de porte e sobranceria eramais merecedor do que Xerxes para deter nas mãos tamanhopoder.

CLXXXVIII — A força naval fez-se novamente à vela,dirigindo-se para a costa da Magnésia, entre a cidade deCastanéia e o litoral de Sépias, onde os primeiros naviosancoraram junto à terra e os outros se quedaram a pequenadistância. O local não era, realmente, suficientemente vasto paraabrigar uma frota tão numerosa, e os navios tiveram de ficarcom a proa voltada para o mar, formando oito fileirascompactas, e nessa posição permaneceram durante a noite. Namadrugada do dia seguinte, depois de um tempo sereno e degrande calma, o mar agitou-se, desencadeando-se furiosa

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tempestade sob o sopro de um forte vento que os habitantes daregião denominam helespontino. Os que perceberam o aumentogradativo do vento e que se encontravam na enseada,preveniram-se contra a tempestade, trazendo seus navios paraterra. Os outros, porém, surpreendidos em pleno mar, foramimpelidos, uns contra as encostas do monte Pélion,denominadas ipnes, e outros contra a costa, enquanto quealguns se espatifaram no promontório Sépias, e vários outrosforam arrastados para a cidade de Melibéia e para Castanéia,sob a violência do temporal.

CLXXXIX — Conta-se que tendo um oráculo,respondendo a uma consulta dos Atenienses, aconselhado aosmesmos que chamassem em seu auxílio seu genro, elesdirigiram preces a Bóreas. Bóreas, segundo a tradição grega,desposou uma ateniense de nome Oritiia, filha de Erecteu. Foiessa aliança, segundo afirmam, que os levou a concluir serBóreas o genro a que se referia o oráculo. Assim,encontrando-se com seus navios em Cálcis da Eubéia, paraobservar os movimentos do inimigo, e percebendo a tempestadeque se avizinhava, fizeram sacrifícios a Bóreas e a Oritiia,conjurando-os a socorrê-los e a desbaratar os navios dosbárbaros, como já haviam feito antes nas proximidades domonte Atos. Se foi atendendo a essas preces que Bóreaslançou-se com violência sobre a frota dos bárbaros, é o que nãoposso afirmar; mas os Atenienses afirmam que Bóreas, tendo-ossocorrido antes, auxiliou-os também nessa ocasião. Por isso,quando retornaram à pátria ergueram-lhe uma capela àsmargens do Ilisso.

CXC — Pelo menos quatrocentos navios foramdestruídos pela tempestade, perecendo também um grandenúmero de guerreiros bárbaros e perdendo-se imensas riquezas.A destruição causada na frota trouxe reais vantagens paraAminocles, filho de Cretines, da Magnésia, que possuíapropriedades nas cercanias do promontório Sépias. Algum

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tempo depois, recolheu ele grande quantidade de vasos de ouroe de prata que o mar impelira para a costa. Encontrou tambémvaliosos tesouros persas e apossou-se de uma grande quantidadede ouro, tudo resultante do naufrágio das embarcações dospersas. Aminocles tornou-se muito rico em conseqüência disso;mas não era feliz, pois, tornando-se o matador de seu própriofilho, passou o resto dos seus dias devorado por cruel mágoa.

CXCI — A perda dos navios que transportavam víverese outros mantimentos de guerra foi também vultosa. Oscomandantes da frota, receando que os Tessálios seaproveitassem do desastre para atacá-los, fortificaram-se atrásde uma alta paliçada construída com os destroços dasembarcações, aguardando o fim da tempestade, que durou trêsdias. Finalmente, no quarto dia, os magos lograram aplacá-laimolando vítimas aos Ventos, realizando cerimônias em suahonra e oferecendo sacrifícios a Tétis e às Nereidas. É possíveltambém que o temporal se tenha acalmado por si mesmo.Ofereceram sacrifícios a Tétis por terem sido informados pelosIônios de que ela fora levada desse cantão por Peleu e que todaa costa de Sépias lhe era consagrada. De uma maneira ou deoutra, o vento cessou no quarto dia.

CXCII — Os patrulheiros, vindos dos pontos mais altosda Eubéia no segundo dia, puseram os Gregos a par de tudoquanto havia acontecido com relação ao naufrágio, e estes,tomando conhecimento do fato, fizeram libações a NetunoSalvador, e, depois de haver-lhe rendido graças, voltaram, semdemora, para Artemísio, na esperança de ali encontrar aindaalguns navios inimigos. Desde então, passaram os Gregos a dara Netuno o sobrenome de Salvador, que ainda hoje se conservana Grécia.

CXCIII — Amainando o vento e acalmando-se as vagas,os bárbaros reconduziram seus navios para o alto mar ecostearam o continente. Depois de dobrarem o promontório de

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Magnésia, dirigiram-se diretamente ao golfo que leva a Págasa.Foi num ponto desse golfo que, segundo se conta, Jasão e osoutros argonautas, que iam a Ea, na Cólquida, em busca do velode ouro, abandonaram Hércules, que havia descido à terra àprocura de água.

CXCIV — Quinze navios da frota de Xerxes, quenavegavam um pouco atrás dos outros, perceberam os Gregospostados em Artemísio, e, julgando tratar-se de unidades persas,foram ao seu encontro. Esse destacamento era comandado porSandoces, filho de Taumásias, governador de Cime, na Eólia.Sandoces havia sido um dos juízes reais, e Dario mandara pô-lona cruz, sob a acusação de suborno num julgamento. Já seachava ele na cruz, quando o soberano, considerando que osserviços que ele havia prestado à casa real eram maiores que asfaltas que cometera e reconhecendo que havia agido comprecipitação, mandou libertá-lo. Assim, Sandoces salvou-se damorte a que havia sido condenado por Dario; mas, indo cair nomeio da frota inimiga, não conseguira subtrair-se à pena umasegunda vez. Os Gregos, com efeito, logo que viram aquelesnavios aproximar-se, compreenderam o engano e caíram sobreeles, capturando-os com facilidade.

CXCV — Aridólis, tirano de Alabanda, na Cária, foiaprisionado num desses navios, e Pentilo, filho de Demono, dePafo, num outro. Dos doze navios de Pafo, que ele comandava,onze perderam-se em conseqüência da tempestade que sedesencadeou sobre o promontório Sépias, sendo ele aprisionado,juntamente com a única embarcação que lhe restava, quandonela se dirigia para Artemísio. Os Gregos enviaram,acorrentados, os tripulantes para o istmo de Corinto, depois deinterrogá-los sobre tudo que desejavam saber acerca do exércitode Xerxes.

CXCVI — A força naval dos bárbaros chegou a Afetas,com exceção dos quinze navios comandados, como já disse, por

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Sandoces. Xerxes, com o exército de terra, tendo atravessado aTessália e a Acaia, penetrou nas terras dos Málios. Ao passarpela Tessália, lançou sua cavalaria contra a dos Tessálios, tidacomo a melhor de toda a Grécia, impondo-lhe duro revés. Detodos os rios da Tessália, o Onocono foi o único que não bastoupara matar a sede dos componentes do grande exército.

CXCVII — Quando Xerxes chegou a Alos, na Acaia,seus guias, sempre empenhados em pô-lo a par de tudo,fizeram-no ciente do que se contava nesse país com relação aolocal consagrado a Júpiter Lafístio, contando-lhe que Atamas,filho Éolo, tendo tramado com Ino a perda de Frixo, o castigodessa sua ação recaiu sobre os seus descendentes, por ordem deum oráculo. Os Aqueus interditaram ao primogênito dessafamília a entrada no Pritaneu, que eles denominam Leito, efiscalizaram rigorosamente o cumprimento dessa ordem. Se,apesar de tudo, o primogênito ali entrar, não pode sair senãopara ser imolado. Muitos dos que, violando o cumprimento dalei, deviam ser imolados — acrescentaram os guias —, fugiram,receosos, para outro país; mas, se mais tarde retornassem àpátria, seriam presos e levados para o Pritaneu. Conduzidaruidosamente para aquele local, a vítima, toda envolvida emtiras de pano, era ali sacrificada. Os descendentes de Citissore,filho de Frixo, sofreram essa pena porque Citissore, ao regressarde Ea, cidade da Cólquida, libertou Atamas das mãos dosAqueus, que estavam em vias de sacrificá-lo para purificar opaís, segundo a ordem que haviam recebido de um oráculo.Com isso, Citissore atraiu sobre seus descendentes a cólera dodeus. Ciente desses fatos pela narrativa dos guias, Xerxes,atingindo o bosque consagrado ao deus, absteve-se de alipenetrar, proibindo, igualmente, as tropas de fazê-lo,testemunhando assim o mesmo respeito pela casa dosdescendentes de Atamas.

CXCVIII — Passando pela Tessália e Acaia, Xerxesdirigiu-se para o país dos Málios, nas proximidades de um

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golfo, onde se observam todos os dias o fluxo e o refluxo damaré. Nas vizinhanças desse golfo encontra-se uma planíciemuito larga em certo ponto e bastante estreita em outro.Montanhas elevadas e inacessíveis, denominadas RochasTraquínias, erguem-se em torno do país. Antícira é a primeiracidade que encontramos no golfo, vindo da Acaia. O rioEsperqueu, que corre do país dos Enianos, banha essa cidade,desembocando no mar, perto da mesma. A vinte estádios desserio encontra-se um outro, chamado Diras, o qual, segundodizem, brotou da terra para com suas águas socorrer Hércules,que se queimava. A outros vinte estádios do Diras fica o Melas,distante cinco estádios da cidade de Tráquis.

CXCIX — É nesse trecho que o país apresenta suamaior largura. Uma planície de vinte e dois mil pletrosestende-se das montanhas perto das quais está situada a cidadede Tráquis, até o mar. Nas montanhas que circundam aTraquínia existe, ao sul de Tráquis, uma abertura, por ondepassa o Asopo.

CC — Ao sul do Asopo corre o Fênix, pequeno rio quenasce nas montanhas e se lança no próprio Asopo. O país, naregião do Fênix, é muito estreito. O caminho que ali abriram sópermite a passagem de um carro. A distância entre o Fênix e asTermópilas é de quinze estádios. Nesse intervalo fica o burgode Antela, banhado pelo Asopo, que perto dali se precipita nomar. Em torno o terreno se alarga. Vê-se ali um templo de CeresAnfictiônida(16), assentos para os anfictiões e um templo dopróprio Anfictião.

CCI — Xerxes acampou em Mális, na Traquínia, e osGregos perto do desfiladeiro, conhecido como desfiladeiro dasTermópilas pela maioria dos habitantes da Grécia e das terrasvizinhas. O exército dos bárbaros ocupava todo o terreno que seestende para o norte até Tráquis, e o dos gregos, a parte docontinente voltada para o sul.

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CCII — As tropas gregas que aguardavam o rei daPérsia nesse ponto consistiam em trezentos espartanos muitobem armados; mil tegeatas e mantineus; cento e vinte homensde Orcomenes, na Arcádia, e outros mil homens do resto daArcádia; quatrocentos coríntios; dois flionteus e oitentamicênios. Essas tropas vinham do Peloponeso. Havia aindavinte beócios, setecentos téspios e quatrocentos tebanos.

CCIII — Além dessas tropas, haviam os Gregosconvidado a tomar parte na luta todos os guerreiros dosLócrios-Opontinos e mil focídios. Solicitando o seu auxílio, osGregos asseguraram-lhes, pelos seus emissários, que já sehaviam posto em campo; que estavam aguardando para todomomento a chegada do resto dos aliados; que o mar seriaguardado pelos Atenienses, Eginetas e outros povos quecompunham a força naval; que não deviam ter motivos parareceio, pois não era um deus que vinha atacá-los, mas umsimples mortal, sujeito, como qualquer mortal, a um revés, eque, portanto, seus intentos poderiam ser frustrados. Essearrazoado dos Gregos encorajou aqueles dois povos a enviartropas a Tráquis, para socorrer seus aliados.

CCIV — Cada corpo de tropas era comandado por umgeneral do respectivo país; mas Leônidas, da Lacedemônia, erao que gozava de maior prestígio, cabendo-lhe, por conseguinte,o comando geral de todas as forças. Entre os seus ancestraisfiguravam Anaxandrides, Leão, Euricratides, Anaxandro,Eurícrates, Polidoro, Alcâmenes, Teleclo, Arquelau, Agesilau,Dorisso, Leobotes, Equestrato, Ágis, Eurístenes, Aristodemo,Aristômaco, Cleodeu, Hilo e Hércules.

CCV — Leônidas conquistou a coroa sem esperar.Sendo Cleómenes e Dorieu, seus irmãos, mais velhos do queele, nunca pensou tornar-se rei algum dia; mas, tendoCleómenes morrido sem deixar filhos, enquanto que Dorieu jáhavia falecido na Sicília, Leônidas, que havia desposado uma

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filha de Cleómenes, subiu ao trono, por ser o primogênito deCleômbroto, filho mais jovem de Anaxandrides. Partindo paraas Termópilas, escolheu ele para acompanhá-lo trezentosespartanos na flor da idade e todos com filhos. Levou tambémconsigo tropas tebanas, cujo número já tive ocasião demencionar. Essas tropas eram comandadas por Leontíades, filhode Eurímaco. Os tebanos foram os únicos gregos que Leônidasse empenhou em conduzir à luta, porque eram acusados deinclinar-se para a causa dos Medos. Ele os convidou para tomarparte na guerra, a fim de ver se eles enviariam tropas ou serenunciariam abertamente à aliança com os Gregos. Elesenviaram tropas, embora estivessem mal-intencionados.

CCVI — Os Espartanos enviaram na frente Leônidas,com seus trezentos homens, a fim de encorajar com essaconduta o resto dos aliados e com receio de que eles abraçassema causa dos Persas, vendo a lentidão dos primeiros em socorrera Grécia. A festa das Cárnias(17) impedia-os, então, de seporem em marcha com todas as suas forças, mas pretendiampartir logo após, deixando em Esparta apenas um pequenonúmero de soldados para guardar a cidade. Os outros aliadosalimentavam o mesmo propósito, encontrando-se na mesmasituação, pois chegara a época dos Jogos Olímpicos; e comonão esperavam combater tão cedo nas Termópilas, tinham-selimitado a enviar um pequeno número de tropas de vanguarda.

CCVII — Entretanto, as tropas gregas que já seencontravam nas Termópilas, tomadas de pânico ante aaproximação dos Persas, puseram-se a discutir se deviam ounão abandonar aquela posição. Os Peloponésios eram deparecer que deviam regressar ao Peloponeso para guardar oistmo; mas Leônidas, vendo que os focídios e os lócrios semostravam indignados com isso, opinou que ali deviampermanecer, ficando resolvido enviarem-se correios a todas ascidades aliadas para solicitar auxílio contra as forças persas,pois os que ali se encontravam eram em número insuficiente

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para resistir a um choque com os invasores.

CCVIII — Enquanto assim deliberavam, Xerxes enviouum dos seus cavaleiros para fazer um reconhecimento dasituação das tropas gregas e sobre o número das mesmas. Eletinha ouvido dizer, quando se encontrava na Tessália, que umpequeno corpo de tropas se havia concentrado naquelapassagem, e que os lacedemônios, comandados por Leônidas,da raça de Hércules, formavam o grupo vanguardeiro. Ocavaleiro, aproximando-se do local onde se achavam as forçasgregas, examinou-as cuidadosamente; mas não pôde ver astropas que se encontravam atrás da muralha ali erguida.Percebeu somente as que haviam acampado diante da muralha.Os lacedemônios guardavam esse posto. Nesse momento, unsocupavam-se com exercícios gímnicos, enquanto que outrospenteavam os cabelos, espetáculo que muito o surpreendeu.Depois de ter calculado o número deles e examinadoatentamente o local, o cavaleiro persa regressou ao seuacampamento, sem ser perseguido, pois ninguém dera pela suapresença.

CCIX — De regresso ao seu posto, o cavaleiro fez aXerxes um relato minucioso de tudo o que havia visto eobservado. Diante do exposto, o soberano não pôde admitir queos Gregos se dispusessem a enfrentar, daquela forma, o perigo ea morte, parecendo-lhe sobremodo ridícula tal maneira de agir.Mandou chamar Demarato, filho de Aríston, que se achava noacampamento, e quando este chegou interrogou-o sobre aconduta dos lacedemônios em tão perigosa situação. “Senhor —respondeu Demarato —, quando encetámos a marcha contra aGrécia eu vos falei sobre esse povo, dizendo-vos da atitude queele assumiria ante o perigo de um ataque, e nenhuma atençãodestes às minhas palavras. Embora incorra no risco dedesagradar-vos, quero que saibais a verdade e peço-vos que meescuteis. Aqueles homens que ali se encontram estão dispostos avedar-vos a passagem, e para isso se preparam, pois os

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Lacedemônios têm o costume de tratar dos cabelos quando emvésperas de arriscar a vida numa empreitada. Se conseguirdessubjugar esses homens e os que se encontram em Esparta,podeis estar certo, senhor, que nenhuma outra nação ousarámais erguer-se contra vós, já que os Espartanos, contra os quaisagora marchais, são o povo mais valoroso da Grécia, e o seureino e a sua cidade os mais florescentes e belos de todo o país”.Xerxes, não podendo dar fé a essas palavras, perguntou, aindauma vez, de que maneira os gregos, sendo em número tãoreduzido, poderiam fazer frente ao seu poderoso exército.“Senhor — volveu Demarato —, podeis considerar-me umimpostor se não acontecer tal como vos digo”.

CCX — O soberano, todavia, não se deu porconvencido, e deixou passar quatro dias, esperando que osgregos se pusessem em fuga. Finalmente, no quinto dia, vendoque eles se mantinham firmes no seu posto e decididos aresistir-lhe, sentiu-se tomado de cólera e enviou contra eles umdestacamento de medos e de císsios, com ordem de capturá-lose trazê-los à sua presença. Os medos lançaram-seimpetuosamente sobre os gregos, mas foram repelidos comgrandes baixas. Novas tropas vieram à carga, e os defensoresgregos, embora fortemente castigados, não recuaram. Entãotodos compreenderam claramente, inclusive o próprio Xerxes,que os Persas possuíam muitos homens mas poucos soldados. Ocombate prolongou-se durante todo o dia.

CCXI — Vendo-se rudemente repelidos em todos osassaltos, os medos retiraram-se, sendo substituídos por tropaspersas, cujos componentes eram, pelo rei, denominadosImortais e comandados por Hidarnes. Essas tropas atiraram-sesobre o inimigo, seguras da vitória; mas não lograram maioresvantagens que os medos. Sendo suas lanças mais curtas que asdos gregos e desenrolando-se a luta num sítio estreito, nãopuderam fazer valer o seu maior número. Os lacedemônioscombateram de maneira admirável, fazendo ver que eram

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hábeis e os inimigos muito ignorantes na arte militar. Todas asvezes que lhes voltavam as costas, eles, julgando que se tratavade um fuga, punham-se a persegui-los. Então os gregos, fazendomeia-volta, enfrentavam-nos de novo e desbaratavam-nos. Porfim, os persas, vendo que, não obstante seus reiterados ataques,não conseguiam assenhorear-se da pasagem, resolveramretirar-se.

CCXII — Conta-se que o soberano persa, que observavao combate, receando pela sorte do seu exército, ergueu-se dotrono por três vezes. Tal o resultado desse primeiro choque. Osbárbaros não conseguiram melhores resultados na segundasortida que tentaram. Gabavam-se, porém, de os gregos nãopoderem mais erguer as mãos, em vista dos ferimentosrecebidos na refrega. Os gregos, todavia, colocando-se emordem de batalha por nações e por batalhões, continuaramcombatendo cada qual por sua vez, com exceção dos focídios,que se mantinham no alto da montanha guardando o atalho. Ospersas, vendo que não obtinham melhor êxito que no diaanterior, retiraram-se para as suas posições.

CCXIII — Mostrava-se Xerxes muito preocupado comessa situação, quando Efialtes, málio de nascimento e filho deEuridemo, veio procurá-lo na esperança de obter uma boarecompensa. Esse traidor indicou ao soberano o atalho queconduz, pela montanha, às Termópilas, tornando-se, assim, ocausador da perda dos gregos que guardavam essa passagem.Praticada essa vil ação, refugiou-se na Tessália, para se pôr acoberto da vingança dos Lacedemônios; mas, embora fugisse,sua cabeça foi posta a prêmio pelos pilágoras, numa assembléiados anfictiões em Pilas, e certo dia, vindo ele a Antícira, foimorto por um traquínio chamado Atenades. Este matou-o,porém, por um outro motivo, de que falarei depois; mas nãodeixou, por isso, de receber dos Lacedemônios a recompensaprometida.

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CCXIV — Dizem também ter sido Onetes de Carista,filho de Fanágoras, e Coridalo de Antícira que revelaram aXerxes a existência da outra passagem e conduziram os persasem redor da montanha. Não dou fé a essa versão, apoiando-me,por um lado, no fato de os pilágoras gregos não terem posto aprêmio a cabeça de Onetes, nem a de Coridalo, mas a deEfialtes, o que por certo só fizeram depois de estaremseguramente informados sobre o verdadeiro culpado; e poroutro lado, na circunstância de Efialtes ter fugido logo depois.Na verdade, é bem possível que Onetes conhecesse o atalho;mas quem conduziu os persas através da montanha foi,evidentemente, Efialtes, e é a ele que eu acuso de tal crime.

CCXV — A revelação feita por Efialtes e o plano porele apresentado animaram muito a Xerxes, enchendo-o desatisfação. Sem perda de tempo, enviou ele Hidarnes com suastropas para o ponto indicado, confiante no resultado da missão.O general partiu do acampamento na hora em que se acendemos fachos. Os Málios, habitantes da região, haviam descoberto oatalho e por ali tinham conduzido os Tessálios contra osFocídios, quando estes, tendo fechado com uma muralha apassagem das Termópilas, se haviam posto a coberto dasincursões daqueles. Por muito tempo esse atalho não tiveranenhuma utilidade para os Málios.

CCXVI — O atalho começa no Asopo, que corre pelaabertura da montanha que tem o nome de Ánopéia, e termina nacidade de Alpena, a primeira do país dos Lócrios, do lado dosMálios, perto da rocha denominada Melampiges e da localidadedos Cercopes. É nesse ponto que a passagem se apresenta maisestreita.

CCXVII — As tropas persas, tendo atravessado oAsopo, perto do desfiladeiro, caminharam durante toda a noite,tendo à direita os montes dos Eteus, e à esquerda os dosTraquínios. Já se encontravam no alto da montanha, quando o

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dia começou a clarear. Como já disse, achavam-se concentradosnesse ponto mil focídios muito bem armados, para defender seupaís da invasão dos bárbaros e para guardar o atalho. Apassagem inferior era defendida pelas tropas de que já falei, e osFocídios se haviam oferecido a Leônidas para guardar o atalho.

CCXVIII — Os persas galgaram a montanha sem serempercebidos, protegidos pelos carvalhos que ali cresciam emabundância. O tempo estava calmo, e os focídios finalmente osdescobriram pelo ruído que faziam ao pisar as folhas dasárvores espalhadas pelo chão. Erguendo-se incontinênti,muniram-se de suas armas, e nesse instante surgiram osbárbaros. Estes, que não esperavam encontrar inimigos, ficaramsurpresos à vista de um corpo de tropas bem armadas. Hidarnes,receando tratar-se de lacedemônios, perguntou a Efialtes de quepaís eram aquelas tropas. Recebendo a resposta, dispôs ospersas em ordem de batalha. Os focídios, estonteados por umanuvem de flechas, fugiram para o alto da montanha, e julgandoque aquelas tropas tinham vindo expressamente para atacá-los,prepararam-se para recebê-las como homens que não receiam amorte. Todavia, Hidarnes, e os persas, guiados por Efialtes,desceram apressadamente a montanha, deixando-os em paz.

CCXIX — O adivinho Megístias, tendo consultado asentranhas das vítimas, comunicou aos gregos que guardavam odesfiladeiro das Termópilas, que eles deviam perecer no diaseguinte, ao romper da aurora. Logo depois, trânsfugas osadvertiram sobre os movimentos dos persas em torno damontanha. Era ainda noite quando receberam essa notícia.Quando o dia clareou, os focídios deixaram o alto da montanha.Num conselho reunido para estudar a situação as opiniõesdivergiram, sendo uns de parecer que se devia permanecer noposto, enquanto que outros optavam por uma retirada.Separaram-se depois dessa deliberação; uns partiram edispersaram-se pelas suas respectivas cidades, outrospermaneceram com Leônidas.

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CCXX — Dizem que foi o próprio Leônidas quemdecidiu mandá-los embora, a fim de não expô-los a uma mortecerta, considerando, entretanto, que, por uma questão de honra,nem ele nem os espartanos que ali se achavam podiamretirar-se, encarregados, como tinham sido, de guardar apassagem. Sinto-me mais inclinado a crer que Leônidas,notando o desencorajamento dos aliados e vendo-os poucodispostos a correrem o mesmo perigo que os espartanos,ordenou-lhes que se retirassem. Quanto a ele próprio, achou,sem dúvida, que seria vergonhoso fazer o mesmo, e que,permanecendo no seu posto, adquiriria para si uma glóriaimortal, e para Esparta uma felicidade perene; pois a pitonisa,respondendo a uma consulta dos espartanos no começo daguerra, tinha declarado que seria preciso que a Lacedemôniafosse destruída pelos bárbaros ou que o seu rei perecesse. Aresposta estava assim concebida em versos hexâmetros.“Cidadãos da vasta Esparta, ou vossa célebre cidade serádestruída pelos descendentes de Perseu, ou toda a Lacedemôniachorará a morte de um rei descendente de Hércules. Nem aforça dos touros nem a dos leões poderá sustentar o choqueimpetuoso do Persa, que tem o poderio de Júpiter. Não.Ninguém será capaz de resistir-lhe”. Prefiro supor que asreflexões de Leônidas sobre esse oráculo e a glória dessafaçanha que ele queria reservar somente para os espartanoslevaram-no a dispensar os aliados, a acreditar terem sido estesde parecer contrário ao seu e que se tenham retirado porcovardia.

CCXXI — Esta crença encontra forte base no fato de terLeônidas não somente feito partir os aliados, como tambémenviado na companhia deles o adivinho Megístias de Acarnânia,a fim de que o mesmo não perecesse com ele. Esse adivinhodescendia, ao que se diz, de Melampo, e fora ele quem,analisando as entranhas das vítimas, predissera o que veio aacontecer. Megístias, porém, não o abandonou, contentando-seem enviar de volta o filho único, que o havia acompanhado na

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expedição.

CCXXII — Os aliados se retiraram por obediência aLeônidas. Os tebanos e os téspios permaneceram com oslacedemônios; os primeiros contra a vontade, porquantoLeônidas os retivera para servirem de reféns. Os téspiospermaneceram voluntariamente, declarando-se dispostos a nãoabandonar jamais Leônidas e os espartanos, e pereceram comeles. Eram comandados por Demófilo, filho de Diadromas.

CCXXIII — Xerxes fez libações ao nascer do sol, e,depois de haver esperado algum tempo, pôs-se em marcha nahora em que o mercado costuma estar cheio de gente, como lhehavia recomendado Efialtes. Descendo a montanha, os bárbarose o soberano aproximaram-se do ponto visado. Leônidas e osgregos, marchando como para uma morte certa, avançarammuito mais do que haviam feito antes, até o ponto mais largo dodesfiladeiro, já sem a proteção da muralha. Nos encontrosanteriores não haviam deixado os pontos mais estreitos,combatendo sempre ali; mas neste dia, a luta travou-se numtrecho mais amplo, ali perecendo grande número de bárbaros.Os oficiais destes últimos, colocando-se atrás das fileiras com ochicote na mão, impeliam-nos para a frente à força dechicotadas. Muitos caíram no mar, onde encontraram a morte,enquanto que inúmeros outros pereceram sob os pés de seuspróprios companheiros. Os gregos lançavam-se contra oinimigo com inteiro desprezo pela vida, mas vendendo-a a altopreço. A maioria deles já tinha as suas lanças partidas,servindo-se apenas das espadas contra os persas.

CCXXIV — Leônidas foi morto nesse encontro, depoisde haver praticado os mais prodigiosos feitos. Com elepereceram outros espartanos de grande valor, cujos nomes nãodesconheço. Os persas perderam também muitos homens deprimeira categoria, entre os quais Abrocomes e Hiperantes,ambos filhos de Dario, que os tivera de Fratagunes, filha de

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Artanes, que era irmão de Dario, filho de Histaspes e neto deArsames. Como Artanes não possuía outros filhos, todos os seusbens passaram com Fratagunes para Dario.

CCXXV — Esses dois irmãos de Xerxes pereceram alide armas na mão. Foi violento o combate travado sobre o corpoinanimado de Leônidas(18). Os persas e os lacedemôniosrepeliam uns aos outros alternadamente, mas, finalmente, osgregos, depois de haverem posto quatro vezes em fuga oinimigo, conseguiram retirar do campo o corpo do valorosocomandante. A vantagem alcançada pelos gregos durou até achegada das tropas conduzidas por Efialtes, quando a situaçãomudou favoravelmente aos persas. Os gregos recuaram para oponto mais estreito do desfiladeiro. Em seguida, transpondo amuralha, mantiveram-se todos, exceto os tebanos, sobre a colinaque se ergue à entrada do desfiladeiro e onde hoje se vê um leãode pedra erigido em homenagem a Leônidas. Os que aindapossuíam espadas, com elas se defendiam; os outros lutavamcom as mãos limpas e com os dentes. Mas os bárbaros,atacando-os sem trégua, uns de frente, depois de haverem postoabaixo a muralha, e os outros por todos os lados, depois de osterem envolvido, aniquilaram-nos a todos.

CCXXVI — Se bem que todos os lacedemônios etéspios se tivessem conduzido com grande bravura, dizem queDieneces, de Esparta, a todos suplantou pelo seu valor edesprendimento na luta, citando-se dele uma frase memorável.Antes da batalha, tendo ouvido um traquínio dizer que o solseria obscurecido pelas flechas dos bárbaros, tão grande era onúmero deles, respondeu-lhe sem perturbar-se: “Nosso hóspededa Traquínia nos anuncia toda sorte de vantagens. Se os medoscobrirem o sol, combateremos à sombra, sem ficarmos expostosao seu ardor”. De Dieneces contam-se outras coisassemelhantes, que são como outros tantos monumentos por elelegados à posteridade.

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CCXXVII — Alfeu e Maron, filhos de Orsifante, amboslacedemônios, foram os que mais se distinguiram depois deDieneces; e entre os téspios, Ditirambo, filho de Harmatides, foio que mais se cobriu de glórias.

CCXXVIII — Foram todos enterrados num mesmolugar, onde haviam tombado para sempre, e sobre o seu túmulo,bem como sobre o monumento dos que pereceram antes dehaver Leônidas mandado embora os aliados, vê-se estainscrição: “Quatro mil peloponésios combateram aqui contratrês milhões de homens”. Esta inscrição refere-se a todos, mas aseguinte refere-se particularmente aos espartanos: “Caminhante,vai dizer aos Lacedemônios que aqui repousamos por havermosobedecido às suas leis”. Há ainda esta dedicada ao adivinhoMegístias: “É aqui o túmulo do ilustre Megístias, morto pelosmedos, depois de terem eles atravessado o Espérquio. Nãoconcordou em abandonar os chefes de Esparta, embora soubesseque os Parcas cairiam sobre ele”.

Os anfictiões mandaram gravar essas inscrições sobrecolunas, a fim de honrar a memória desses bravos; mas ainscrição dedicada ao adivinho Megístias foi mandada gravarpor Simônides, filho de Leoprepes, pela grande amizade que lhededicava.

CCXXIX — Assegura-se que Êurito e Aristodemo, dogrupo dos trezentos, tiveram ambos oportunidade de escolherentre retirar-se para Esparta, guardando o leito em Alpenas, emvista da moléstia que lhes atacou os olhos, pois haviam sido,por isso, dispensados por Leônidas, ou voltar ao acampamento eali perecer, se não quisessem regressar à pátria. Êurito, ante aliberdade de escolha, tomou uma resolução, sem dúvida dignade todos os encômios. Informado da manobra dos persas atravésda montanha, pediu suas armas e ordenou ao seu ilota que oconduzisse ao campo de batalha. O ilota, porém, fugia poucodepois, e Êurito, lançando-se à luta, perdeu a vida, enquanto

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que Aristodemo permanecia covardemente em Alpenas. Setanto Aristodemo como Êurito se houvessem retirado paraEsparta, como lhes foi dado escolher, creio que os Espartanosnada teriam a censurá-los, porquanto a moléstia nos olhos seriauma razão plausível para abandonar o campo da luta. O queencheu de cólera os Espartanos foi o procedimento deAristodemo, aproveitando a oportunidade para conservar a vida,enquanto que Êurito, podendo tê-la conservado pelas mesmasrazões, preferiu sacrificar-se pela segurança dos seuscompatriotas.

CCXXX — Enquanto alguns adotam essa versão do quese pode chamar de fuga de Aristodemo para Esparta,aproveitando-se do pretexto acima mencionado, outros afirmamque o exército, tendo-o enviado como delegado a determinadolugar, ele, embora podendo retornar a tempo de tomar parte nabatalha, deixou-se ficar propositadamente longe dali, a fim defurtar-se ao combate e dessa maneira conservar a vida.

CCXXXI — De regresso à Lacedemônia, Aristodemofoi alvo de acerbas censuras e coberto de opróbrio, sendo portodos considerado como criatura infame, indigna de qualquerconsideração. Lançaram sobre ele a pecha de cobarde,negando-se todos a dirigir-lhe a palavra e a prestar-lhe qualquerfavor. Mais tarde, porém, Aristodemo conseguiu reabilitar-se nabatalha de Plateia.

CCXXXII — Conta-se também que Pantites, do grupodos trezentos, sobreviveu à derrota, por encontrar-se, na ocasiãoda batalha, na Tessália, onde fora enviado como embaixador;mas, tendo regressado a Esparta e vendo-se desonrado,enforcou-se.

CCXXXIII — Os tebanos, comandados por Leontíades,combateram contra o exército persa enquanto estiveram com osgregos e a isso se viram forçados; mas, logo que perceberamque a vitória se inclinava para os persas e que os gregos

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dirigidos por Leônidas haviam sido rechaçados na colina,abandonaram seus companheiros e aproximaram-se dosbárbaros, estendendo-lhes a mão. Afirmaram-lhes terem sido osprimeiros a abraçar a causa dos persas e que tinham vindo àsTermópilas forçados pelas circunstâncias, não lhes cabendo amínima culpa pelos primeiros insucessos das armas persas. Essadeclaração, que recebeu o apoio dos tessálios, salvou-lhes avida. Contudo, nem todos tiveram a mesma sorte, pois muitosforam mortos pelos bárbaros ao se aproximarem e sem teremtido tempo de explicar-se, enquanto que muitos outrosreceberam, por ordem de Xerxes, o estigma real, a começar porLeontíades, seu general. O filho de Leontíades, Eurímaco, quemais tarde se apoderou de Plateia com os quatrocentos tebanosque comandava, foi morto pelos habitantes dessa cidade.

CCXXXIV — Tal o resultado da batalha dasTermópilas. Cessada a luta, Xerxes mandou chamar Demarato,a quem falou nestes termos: “Demarato, és um homem de bem,e a verdade das tuas palavras me deixou plenamente convencidodisso, pois o que me disseste foi confirmado pelos fatos. Mas,dize-me agora se é ainda grande o número de lacedemônios queterei de enfrentar e se são todos tão bravos e decididos quantoesses que acabamos de bater em tão dura refrega.” “Senhor —respondeu Demarato —, os lacedemônios são assaz numerosose possuem muitas cidades. Mas é preciso que definaisexatamente o que pretendeis. Esparta, capital do país, contacom uma população de oito mil homens, todos da mesmatêmpera dos que combateram aqui. Os outros lacedemônios,embora bravos, não se igualam a estes”. “Indica-me, pois —volveu Xerxes —, a maneira pela qual poderemos subjugá-loscom um mínimo de perdas. Tu, que foste o rei deles, devessaber o que pretendem”.

CCXXXV — “Oh rei! — retrucou Demarato — Já quepedis com confiança minha opinião, é justo que eu vos diga oque me parece mais acertado. Enviai trezentos navios da vossa

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frota às costas da Lacônia. Existe, perto dali, uma ilha chamadaCitera. Quílon, o homem mais sábio que já tivemos, dizia servantajoso para os Espartanos que essa ilha submergisse, poisesperava sempre que ela desse um dia lugar a um planosemelhante ao que agora vos exponho; não porque previsse avossa expedição, mas porque receava a ação de qualquer outrafrota inimiga. Vossos navios devem partir para essa ilha, a fimde espalhar o terror sobre as costas da Lacônia. OsLacedemônios, vendo a guerra às suas portas, ficarãoimpossibilitados de prestar socorro ao resto dos gregos quandovós os atacardes com o exército de terra. Submetido o resto daGrécia, a Lacônia não poderá resistir-vos. Se não agirdes damaneira que vos digo, podereis encontrar grandes obstáculospela frente. À entrada do Peloponeso há um istmo bastanteestreito, onde todos os Peloponésios, ligados contra vós,oferecer-vos-ão combates muito mais renhidos do que os quetivestes de sustentar até aqui. Se fizerdes o que vos digo,tornar-vos-eis senhor do istmo e de todas as cidadesadjacentes”.

CCXXXVI — Aquêmenes, irmão de Xerxes e um doscomandantes da frota, presente no momento, receando que osoberano se deixasse persuadir pelas afirmações de Demarato,tomou a palavra: “Senhor, vejo que recebeis favoravelmente osconselhos de um homem invejoso da vossa boa fortuna e quetraiu os vossos interesses; pois tal é, geralmente, o caráter dosGregos: têm inveja da felicidade dos outros e detestam ospoderosos. Se na situação em que nos encontramos, depois dehavermos perdido quatrocentos navios num naufrágio,enviarmos outros trezentos para varrer as costas do Peloponeso,nossos inimigos tornar-se-ão tão fortes quanto nós. Se, aocontrário, nossa frota se mantiver unida, seremos invencíveis, eos Gregos não estarão em condições de resistir-nos. As nossasduas forças devem marchar juntas, a do mar podendo prestarsocorro à de terra e vice-versa. Se as separarmos, elas nãopoderão auxiliar-se mutuamente. Contentai-vos em organizar

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bem as vossas forças e não vos inquieteis com o que venham afazer os inimigos. Quanto à maneira como dirigirão aresistência, às medidas que poderão tomar e aos recursos de quedispõem para vos enfrentar, isso diz respeito somente a eles. Seos Lacedemônios derem combate aos nossos, não conseguirãoreparar, com isso, a derrota que acabam de sofrer”.

CCXXXVII — “Aquêmenes — observou Xerxes —, teuconselho me parece acertado e sinto-me inclinado a segui-lo;mas estou convencido de que Demarato me propõe o queconsidera mais vantajoso para mim. Embora o teu parecer sesobreponha ao dele, não posso acreditar que ele estejamal-intencionado. Suas palavras anteriores, confirmadas pelosacontecimentos, são uma prova da sua fidelidade para conosco.Que um homem, invejoso da felicidade de um seu concidadão eque nutra contra o mesmo um ódio secreto, procure dar-lheconselhos que não lhe pareçam, de maneira alguma, acertados, écoisa facilmente compreensível. Mas um hóspede deve sempreencarar com simpatia a prosperidade do amigo que o acolhe, ese este o consulta, ele não lhe dará senão bons conselhos.Demarato é meu hóspede, e quero que de ora em diante seabstenham de falar mal dele”.

CCXXXVIII — Dando por encerrada a palestra, Xerxespôs-se a examinar os corpos dos soldados mortos na peleja.Tendo sabido que Leônidas era rei e general dos Lacedemônios,ordenou que lhe cortassem a cabeça e a pregassem num poste.Tal procedimento vale-me como uma prova convincente, entremuitas outras que eu poderia apresentar, de que Leônidas era,em vida, o homem contra o qual Xerxes nutria maioranimosidade. Se assim não fosse, não teria, de certo, tratado oseu cadáver com tanta desumanidade; pois, de todos os homensque conheço, nenhum honra mais os que se distinguem pelabravura do que os Persas.

CCXXXIX — Os Lacedemônios foram os primeiros a

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ter conhecimento da marcha de Xerxes contra a Grécia. Ante anotícia, mandaram consultar o oráculo de Delfos, que lhes deu aresposta a que já me referi. O aviso lhes chegou de maneirabastante singular, e quem o deu foi Demarato, filho de Aríston,refugiado entre os Medos. Se Demarato assim agiu paraproteger ou para insultar os Lacedemônios, é o que não possoafirmar, porquanto acredito que ele não estava bemintencionado com relação a eles. Como quer que seja, tendoXerxes resolvido lançar-se contra os Gregos, Demarato, entãoem Susa, procurou informar os Lacedemônios das intenções dosoberano. Mas como lhe faltavam meios para isso e receava serdescoberto, serviu-se do seguinte artifício: tomou de unstabletes duplos, raspou a cera que os recobria e neles escreveu oaviso com referência aos planos do soberano. Feito isso, cobriuas letras com cera, a fim de que, ocultando as informações nelescontidas, o portador não viesse a achar-se em dificuldades, casofosse detido pelos que guardavam as passagens. Quando ostabletes chegaram à Lacedemônia, ninguém atinou, a princípio,com o seu significado; mas Gogo, filha de Cleómenes e mulherde Leônidas, acabou descobrindo que se a cera fosse removida,algo seria encontrado gravado na madeira. Seguindo a suasugestão, removeram a cera e descobriram os caracteres. Amensagem foi lida e depois transmitida aos outros povosgregos.

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LIVRO VIII

URÂNIATEMÍSTOCLES — COMBATE NAVAL PERTO DE

ARTEMÍSIO — OS GREGOS SE RETIRAM — OS PERSASATINGIDOS POR UM RAIO PERTO DO TEMPLO DEDELFOS — A BATALHA NAVAL DE SALAMINA —

XERXES ASSISTE À BATALHA — ARISTIDES NA FROTA— A CORAGEM DE ARTEMISA — DISCURSO DE

MARDÔNIO A XERXES — DESASTRE DOS PERSAS —TEMÍSTOCLES DETÉM-SE NA PERSEGUIÇÃO AOINIMIGO — XERXES GANHA O HELESPONTO E

RETIRA-SE PARA A ÁSIA — MARDÔNIO PERMANECE ÀFRENTE DE TREZENTOS MIL HOMENS — ATENAS E

ESPARTA REPELEM AS PROPOSTAS DE PAZ.

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I — Entre os povos gregos que contribuíram para aformação da força naval lançada contra os Persas destacavam-seos Atenienses, que forneceram cento e vinte e sete navios,armados parte por eles próprios, parte pelos Plateus, cujacoragem e zelo compensavam sua pouca experiência no mar.Em seguida vinham os Coríntios, com quarenta embarcações eos Megários com vinte. Os Calcídios armaram também vinteembarcações, que os Atenienses lhes haviam cedido. OsEginetas forneceram dezoito, os Siciônios doze, osLacedemônios dez, os Epidáurios oito, os Erétrios sete, osTrezênios cinco, os Estireus dois e os habitantes da ilha de Ceosdois, bem como dois navios de cinqüenta remos. OsLócrios-Opontinos enviaram sete navios de cinqüenta remos.

II — A frota assim constituída e enviada para Artemísiocontava com duzentos e setenta e um navios, sem incluir asembarcações de cinqüenta remos, e tinha como comandantegeral Euribíades, filho de Euríclides, nomeado pelosEspartanos. A escolha recaiu sobre Euribíades porque os aliadoshaviam declarado que não obedeceriam aos Atenienses e que senão tivessem à frente das forças um lacedemônio não tomariamparte na luta.

III — Desde o início, e mesmo antes do pedido deauxílio à Sicília, ficara decidido confiar o comando da frota aosAtenienses; mas os aliados a isso se opuseram, e os Ateniensesmais zelosos pela segurança da sua pátria preferiram ceder avê-la arruinada pela discórdia em torno do comando. Agiramacertadamente, pois tanto a paz é melhor do que a guerra,quanto uma guerra civil é mais nociva do que uma guerraestrangeira, feita de comum acordo. Não ignorando essaverdade, os Atenienses não se opuseram, absolutamente, aosaliados, e cederam, mas somente enquanto necessitavam doauxílio dos mesmos, como depois demonstraram. Quando osoberano persa já havia sido repelido com as suas forças e já se

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combatia pela posse da Pérsia, eles, os Atenienses, tomandocomo pretexto a arrogância de Pausânias, arrebataram ocomando aos Lacedemônios. Mas isso se passou muito depois.

IV — Os gregos que então se encontravam na enseadado Artemísio, vendo o grande número de navios que chegavama Afetos, a região inteira cheia de tropas e a invasão dosbárbaros tomando um aspecto com o qual não contavam,sentiram-se dominados pelo terror e confabularam entre si, paradecidir se deviam ou não fugir para o interior da Grécia. OsEubeus, consultados a propósito, pediram a Euribíades queesperasse mais algum tempo, até que tivessem enviado paralugar seguro suas famílias e filhos. Não conseguindopersuadi-lo, dirigiram-se a Temístocles, que comandava osAtenienses, e por trinta talentos levaram-no a manter a frotadiante da Eubéia, para ali travar o combate naval.

V — Vejamos como agiu Temístocles para reter osgregos. Enviou a Euribíades cinco talentos, sem dúvida como seos desse do seu próprio bolso. Obtida, por esse meio, aaquiescência daquele, procurou convencer Adimanto, filho deOcito e comandante dos Coríntios, que insistia em deixar olocal sem perda de tempo. “Adimanto — escreveu Temístocles—, se não nos abandonares prometo que te farei melhoresofertas do que as que te poderia fazer o rei dos Medos para teconvencer a abandonar os aliados”. Essa nota, enviada ao naviode Adimanto, foi acompanhada de três talentos. Os generais,movidos por tão régio presente, apoiaram os motivos deTemístocles e comprometeram-se com ele. O próprioTemístocles lucrou no caso, guardando secretamente o resto dodinheiro; e aqueles a quem deu uma parte pensaram que eletinha vindo de Atenas somente com esse objetivo de lucro.

VI — Dessa maneira, as forças gregas permaneceram nacosta da Eubéia, travando-se a batalha da maneira que passo anarrar. Os bárbaros tinham ouvido dizer que os Gregos

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contavam apenas com um pequeno número de navios naenseada do Artemísio. Verificando, ao chegarem a Afetos, averdade do que lhes haviam dito, arderam de vontade deatacá-los, na esperança de logo aprisioná-los. Não acharam,porém, conveniente irem diretamente a eles, com receio de queos Gregos, vendo-os aproximar-se, se pusessem em fuga,aproveitando a escuridão da noite. Contavam eles não deixarescapar nem mesmo o porta-facho(1).

VII — Vejamos como agiram eles para ver o seu planocoroado de êxito. Escolhendo duzentos dos seus navios,enviaram-nos por detrás da ilha de Cíato, com ordem decontornarem a Eubéia, ao longo do cabo Cafareu e de Ceresta,para não serem pressentidos pelo inimigo, dirigindo-se, emseguida, a Euripo, a fim de cercá-lo. Esse destacamento naval,chegando ao referido ponto, cortaria a retirada dos gregos,enquanto que as tropas persas lançariam um ataque frontalcontra eles. Os persas não tencionavam, porém, atacar os gregosnaquele mesmo dia, mas somente quando a força naval enviadadesse o sinal de chegada ao ponto designado. Depois da partidados navios, puseram-se a fazer o recenseamento dos que haviamficado em Afetos.

VIII — Enquanto os persas se ocupavam com esserecenseamento, Cília de Cione(2), o mais hábil mergulhador doseu tempo, que havia recolhido imensas riquezas dos persas nonaufrágio perto do monte Pélion, apropriando-se também degrande parte delas, e que pensava, há muito tempo, embandear-se para os gregos, não tendo, todavia, até aliencontrado ocasião para fazê-lo, conseguiu aproximar-se deles;de que maneira, não sei, embora esteja certo de que o fato sedeu. Dizem que ele, tendo mergulhado no mar, nasproximidades de Afetos, conseguiu alcançar a costa, emArtemísio, nadando cerca de oitenta estádios para chegar àqueleponto. Contam-se, desse mesmo Cília, muitas outras façanhasque parecem ser falsas e algumas indiscutivelmente verdadeiras.

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Quanto à que acabo de relatar, acredito mais ter ele atingidoArtemísio num bote. Logo depois de sua chegada, informou eleos generais sobre as particularidades do naufrágio dos persas,advertindo-os de que navios inimigos preparavam-se paracontornar a Eubéia.

IX — Diante disso, os gregos reuniram-se paradeliberar; e entre as sugestões apresentadas prevaleceu aseguinte: as forças gregas deveriam permanecer em repousonaquele dia, no ponto em que se encontravam, dirigindo-se,logo depois da meia-noite, ao encontro dos navios quedobravam a Eubéia. Acatando essa decisão, os gregosmantiveram-se tranqüilamente nos seus postos; mas, não vendoninguém aproximar-se para atacá-los, resolveram realizar, aopôr do sol, uma sortida contra os bárbaros, a fim de pôr-lhes àprova a habilidade nos combates e nas manobras.

X — Os generais e os soldados de Xerxes, vendo osgregos aproximar-se em tão reduzido número, consideraram-nosinsensatos e prepararam-se para recebê-los, certos de quedesbaratariam facilmente a todos, dando-lhes dura lição.Estavam certos da sua vantagem sobre o inimigo, não só pelonúmero, como por possuírem melhores navios do que ele.Confiantes na sua superioridade, procuraram envolver as forçasgregas, não lhes deixando caminho para a fuga. Aqueles dentreos iônios que alimentavam simpatia pela causa dos gregos eserviam contra a vontade, viam-nos investir com tanto maispena quanto se achavam convencidos de que nenhum escaparia,dada sua patente inferioridade numérica. Aqueles, ao contrário,que estavam satisfeitos com a servidão, apressaram-se em agir,disputando todos a primazia na captura de algum navioateniense, esperando, com isso, serem recompensados pelo rei;pois, entre os bárbaros, dava-se maior importância aosAtenienses do que aos outros aliados.

XI — Ao primeiro sinal, os gregos voltaram a proa de

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seus navios na direção dos bárbaros, atacando-os de frente,embora num espaço estreito, e apoderando-se logo de trintanavios inimigos, um dos quais era comandado por Fílon, filhode Quérsis e irmão de Gorgo, rei dos Salamínios. Fílon era umdos capitães mais estimados da frota persa. Licômedes, deAtenas, filho de Escreu, foi o primeiro a capturar um navioinimigo, tendo sido recompensado pela sua façanha. O resultadoda luta manteve-se indeciso, e a noite veio separar oscombatentes. Os gregos voltaram para a enseada de Artemísio eos bárbaros a Afetos, após um sucesso bem diferente daqueleque esperavam. Entre todos os gregos a serviço do soberano,Antidoro de Lemnos foi o único a bandear-se para os aliadosdurante o combate. Os Atenienses, em recompensa desse gesto,deram-lhe terras na ilha de Salamina.

XII — Era em pleno Verão, e logo ao cair da noitesobreveio uma forte chuva, que se prolongou até o dia seguinte,acompanhada de terríveis trovões. As vagas e o vento levaramaté Afetos os corpos dos soldados mortos, em mistura comdestroços dos navios, que vieram encalhar junto à proa dasoutras embarcações, embaraçando o movimento dos remos. Ossoldados persas, apavorados com o ribombar dos trovões,esperavam morrer a qualquer momento. Por que provações nãopassaram eles! Mal se haviam refeito de um rude combate, elogo uma chuva impiedosa os fustigava, e trovões e relâmpagosos deixavam transidos de medo.

XIII — Aquela noite foi ainda mais tormentosa para osque haviam recebido ordens de contornar a Eubéia.Encontravam-se em pleno mar, quando a tempestade os colheucom tremenda fúria, arrastando-os para a morte. Começou elaquando eles se achavam próximos aos escolhos da Eubéia.Arrastados pelo vento, sem saber para onde eram levados,tiveram suas embarcações esmigalhadas de encontro aosrochedos. Tudo isso aconteceu pelos desígnios de um deus, afim de que a frota dos persas ficasse igual à dos gregos, ou pelo

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menos não tivesse tão grande superioridade numérica.

XIV — As tropas persas que se achavam em Afetosviram com imenso alívio o nascer do dia. Depois das penassofridas, consideravam-se felizes por experimentar, afinal, orepouso do momento presente. Entretanto, chegava para osgregos um reforço de cinqüenta navios atenienses. Encorajadoscom esse auxílio e com a notícia do naufrágio do destacamentonaval dos bárbaros que contornava a Eubéia, partiram, como navéspera, contra o inimigo, e caindo sobre os navios cilícios,destruíram-nos, voltando para a enseada de Artemísio ao cair danoite.

XV — No terceiro dia, os generais dos bárbaros,indignados por se verem maltratados por tão pequeno númerode navios e receando a cólera do rei, não esperaram mais que osgregos viessem atacá-los; avançaram contra eles,encorajando-se mutuamente. Esses combates, por um estranhoacaso, tiveram lugar na mesma ocasião em que se desenrolavamos das Termópilas. Travava-se a luta pela defesa de Euripo, damesma maneira que sob as ordens de Leônidas lutava-se peladefesa das Termópilas. Os gregos empenhavam-se em nãodeixar os bárbaros penetrarem na Grécia, e estes em destruir osexércitos gregos e em se tornarem senhores das passagens.

XVI — Enquanto os navios de Xerxes avançavam emordem de batalha, os gregos mantinham-se inativos na enseadade Artemísio. Os bárbaros, dispostos em forma de meia-lua,envolveram-nos completamente, a fim de capturá-los a todos;mas os gregos, saindo da sua inatividade, foram ao seuencontro, travando-se a luta. O combate, nesse dia, se deu comigualdade de forças, de vez que a frota de Xerxes prejudicava-sea si mesma pelo grande número de navios, que embaraçavamuns aos outros. Contudo, ela resistia com ardor, fazendo por nãoceder de maneira alguma. Quão vergonhoso não seria,realmente, ver-se ela posta em fuga por um número tão pequeno

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de navios! Os gregos perderam nesse combate muitasembarcações e vultosa quantidade de homens; mas as perdasdos bárbaros foram muito mais elevadas. Terminada a refrega,cada um se retirou para o seu lado.

XVII — Entre os combatentes de Xerxes, os egípciosforam os que mais se distinguiram, praticando feitos notáveis,como por exemplo a captura de cinco navios gregos, com asrespectivas guarnições. Do lado dos gregos, foram os ateniensesos que mais se distinguiram, e entre eles Clínias, filho deAlcebíades. O navio que ele comandava e no qual haviaduzentos homens pertencia a ele próprio, e tinha sido armado àssuas expensas.

XVIII — Tendo-se separado, as duas frotasapressaram-se a ganhar seus respectivos ancoradouros. Osgregos, não obstante terem combatido com denodo, comohaviam sido muito maltratados, particularmente os atenienses,cujos navios se encontravam, em grande parte, danificados,resolveram retirar-se para o interior da Grécia.

XIX — Temístocles, examinando a situação da guerra,pôs-se a conjecturar que se conseguisse retirar do exército persaos iônios e os cários, conseguiria obter superioridade sobre orestante das tropas bárbaras. Enquanto os Eubeus levavam seusrebanhos para o litoral, reuniu ele os comandantes do exército edeclarou-lhes que pensava ter encontrado um meio infalívelpara privar o soberano persa dos mais bravos dos seus aliados.Não lhes disse, todavia, como isso seria feito, mas acrescentouque, na situação atual, fazia-se preciso matar a maiorquantidade possível do gado dos Eubeus, pois era preferível queas tropas gregas o aproveitassem, a vê-lo cair nas mãos doinimigo, contribuindo para aumentar o abastecimento de suasforças. Recomendou-lhes também a ordenar aos seus soldadosque acendessem fogo e que, ao partirem, levassem em conta ascondições favoráveis de tempo, a fim de poderem retornar à

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Grécia sem acidentes. Aceitando a sugestão, os chefes gregosfizeram fogueiras, como lhes recomendara Temístocles, ecaíram sobre os rebanhos dos Eubeus.

XX — Os Eubeus viram-se, assim, de um momento paraoutro, privados desses bens, por não terem dado importância aooráculo de Bácis, que continha a seguinte advertência: “Quandoum bárbaro surgir no mar, afastai vossas cabras da costa daEubéia”.

XXI — Enquanto isso, chegou ao acampamento dosgregos o espião que mantinham em Tráquis. Os gregospossuíam dois espiões, encarregados de observar o movimentodas tropas inimigas. Um deles, chamado Pólias e natural deAntícira, encontrava-se em Artemísio. Dispunha ele de umpequeno navio bem equipado, e sua missão era pôr as tropas dasTermópilas ao corrente do que de mau pudesse sobrevir à forçanaval. O outro encontrava-se junto a Leônidas. Era umateniense de nome Abrônico, filho de Lisicles, e mantinha-se desobreaviso, pronto a partir a qualquer momento, casoacontecesse algum desastre ao exército de terra, a fim de daraviso aos que se achavam em Artemísio. Foi esse Abrônico oespião que veio ter ao acampamento grego para anunciar oresultado da batalha travada pelos lacedemônios sob o comandode Leônidas, na qual perdeu a vida esse grande chefe. Mesmoante essa infausta notícia, os gregos concluíram os seuspreparativos e partiram para a luta, na ordem em que tinhamsido dispostos, os coríntios em primeiro lugar, depois osatenienses.

XXII — Tendo escolhido entre os navios atenienses osmelhores veleiros, Temístocles dirigiu-se com eles para ospontos onde se encontrava água doce, e gravou num rochedoum aviso, que os iônios leram logo no dia seguinte ao de suachegada à enseada de Artemísio. Esse aviso dizia o seguinte:“Iônios, praticais uma ação injusta erguendo armas contra

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vossos pais e contribuindo para a submissão da Grécia. Abraçai,em vez disso, a nossa causa, ou, se não podeis fazê-lo,retirai-vos da luta, concitando os cários a seguir o vossoexemplo. Se nem uma coisa nem outra for possível; se,impelidos pela necessidade, tiverdes de vos conservar a serviçodo soberano persa, conduzi-vos com desinteresse e pouco ânimonos combates. Lembrai-vos de que pertenceis à nossa raça e quesois a causa original da guerra que hoje sustentamos contra osbárbaros”. Temístocles, segundo penso, escreveu essas palavrascom um duplo fim: primeiro, para que, se o soberano não fosseinformado a respeito, elas levassem os iônios a mudar deopinião, passando para o lado dos gregos; segundo, a fim deque, se Xerxes viesse a ter conhecimento do aviso e sobreviessealgum acidente desagradável entre as suas tropas, suas suspeitasrecaíssem sobre os iônios e ele não mais se servisse dos mesmosnos combates navais.

XXIII — Logo depois da partida dos gregos, umhabitante de Histieu veio num bote anunciar aos bárbaros que osgregos haviam fugido de Artemísio; mas como os persasdesconfiassem da verdade da informação, colocaram oinformante sob estreita vigilância e enviaram alguns naviosligeiros ao local para um reconhecimento. Ante as informaçõesprestadas pelos que foram incumbidos desse reconhecimento, afrota inteira abriu velas para Artemísio ao nascer do sol, alipermanecendo até o meio-dia, rumando, em seguida, paraHistieu. Os bárbaros apoderaram-se dessa cidade e realizaramincursões na Helópia e em todos os burgos do litoral.

XXIV — Enquanto as forças navais se achavam emHistieótides, Xerxes enviou-lhes um arauto, depois de haverconcluído os preparativos necessários com relação aos seuscombatentes mortos. Eis em que consistiam esses preparativos:Havia ele perdido vinte mil homens no combate dasTermópilas. Deixando cerca de mil corpos no campo de batalha,mandou enterrar o resto em grandes fossos cavados

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especialmente para esse fim, os quais foram depois cobertoscom terra, espalhando-se folhas por cima, para que as tropasnavais nada percebessem. O arauto, chegando a Histieu,mandou reunir todas as tropas e falou-lhes nestes termos:“Soldados, nossos auxiliares; o rei Xerxes permite a todos osque dentre vós quiserem deixar o posto, a ir ver como combateuele contra os insensatos que se gabavam de levar de vencida asnossas tropas”.

XXV — Logo depois de ouvida essa proclamação, asunidades navais ficaram quase inteiramente desprovidas de suasguarnições, tão grande foi a curiosidade dos combatentes deapreciar o espetáculo que Xerxes lhes proporcionava.Percorrendo o campo de batalha e examinando os corposestendidos por terra, os soldados julgaram serem todos delacedemônios e de téspios, embora houvesse também ilotas.Todavia, o artifício de que lançara mão Xerxes com relação aosbárbaros mortos não enganou a ninguém, tão ridículo ele era.Com efeito, viam-se no campo de batalha cerca de mil mortosdo lado dos persas, e quatro mil gregos, transportados para omesmo local e empilhados uns sobre os outros, o que bemdenunciava uma exibição cuidadosamente preparada. Depois dese haverem distraído durante todo o dia com esse espetáculo, astropas navais voltaram para os seus navios, e Xerxes pôs-se emmarcha com seu exército de terra.

XXVI — Nessa ocasião, chegaram ao local algunstrânsfugas procedentes da Arcádia, pedindo alimento eoferecendo-se para trabalhar. Um dos persas encarregados delevá-los à presença do rei perguntou-lhes de que se ocupavamos gregos no momento. “No momento — responderam eles —,os gregos celebram os Jogos Olímpicos e assistem aosexercícios gímnicos e às corridas de cavalos”. O mesmo persaperguntou-lhes ainda qual era o prêmio nessas justas. “Umacoroa de oliveira” — responderam. Conta-se que, nessa ocasião,Tritantecmes, filho de Artatanes, ao saber que o prêmio não

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consistia em dinheiro, mas em uma coroa de oliveira, exclamouna presença de todos: “Pelos deuses, Mardônio, que espécie dehomens são esses que nos levas a atacar. Insensíveis aointeresse, não combatem senão pela glória!” Isso lhe valeuacerba censura da parte do próprio soberano persa.

XXVII — Logo depois da batalha das Termópilas, osTessálios enviaram um arauto aos Focídios, aos quais sempretinham querido muito mal, principalmente depois do seu últimorevés. Realmente, eles e seus aliados tinham invadido a Fócidaalguns anos antes da expedição do rei da Pérsia, sendo, porém,batidos e massacrados. Eis como se deu o fato: Os tessálios,tendo cercado no Parnaso os focídios, o adivinho Télias deEléia, que se encontrava na companhia destes últimos, urdiu oseguinte estratagema: escolheu seiscentos focídios entre os maisbravos do exército, pintou-os de branco, fazendo o mesmo comseus escudos, e enviou-os, à noite, contra os tessálios, comordem de matar todos os que não fossem brancos como eles. Aovê-los, os soldados tessálios que se achavam de sentinelajulgaram tratar-se de algo sobrenatural e ficaram aterrorizados,o mesmo sucedendo com todo o exército. Desse modo, osfocídios conseguiram matar quatro mil adversários, cujosescudos arrebataram, oferecendo uma metade deles a Abas, e aoutra a Delfos. Com a décima parte da prata que recolheramnessa luta mandaram fazer as grandes estátuas que se vêem emvolta do tripé existente diante do templo de Delfos, e outrassemelhantes, consagradas a Abas.

XXVIII — Assim trataram os focídios a infantariatessália que os cercava. Quanto à cavalaria, que havia feito umaincursão nas suas terras, destruíram-na também sem piedade.Perto de Hiâmpolis há um desfiladeiro que dá acesso à Fócida.Os focídios cavaram ali um grande fosso, lançaram dentroânforas vazias e encheram-no de terra, de maneira a restabelecerperfeitamente o nível do terreno. Isso feito, ficaram aguardandoa passagem dos inimigos que vinham invadir o país. Estes,

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avançando com impetuosidade, caíram sobre as ânforas, tendoos seus cavalos as pernas partidas.

XXIX — Os Tessálios, que depois desse duplo fracassopassaram a votar ódio implacável aos Focídios, enviaram-lhes,por um arauto, ante o avanço dos persas contra a Grécia, aseguinte mensagem: “Focídios, convém que vos torneis, enfim,mais sensatos e reconheçais a nossa superioridade. Até aqui,enquanto estivemos ligados à causa dos Gregos, semprelogramos vantagens sobre vós; e hoje, que gozamos de altocrédito perante o soberano persa, estamos em situação dearrebatar, se assim o quisermos, as vossas terras e reduzir-vos àescravidão. Embora a vossa sorte esteja em nossas mãos,estamos dispostos a esquecer os vossos insultos em troca decinqüenta talentos de prata. Prometemos, a esse preço, afastaros males prestes a cair sobre vós”.

XXX — Era essa a proposta contida na mensagem dosTessálios. Os Focídios eram os únicos povos da região que nãohaviam aderido aos Persas. Seu ressentimento contra osTessálios foi, ao que presumo, o único motivo que os impediude assim proceder. Estou convencido de que, se os Tessálioshouvessem abraçado a causa dos Gregos, os Focídios ter-se-iamdeclarado pelos Medos.

Os Focídios responderam à proposta dos Tessáliosdeclarando-lhes que não lhes dariam dinheiro algum; que, sequisessem mudar de opinião, nada lhes custaria colocar-se aolado dos Persas, como eles próprios haviam feito; mas que delivre vontade jamais trairiam a Grécia.

XXXI — Essa resposta irritou de tal modo os Tessálios,que decidiram guiar os persas ao interior da Traquínia, naDórida. Daquele lado, a passagem estreita que conduz à Dóridaestende-se entre Mális e a Fócida, medindo trinta estádios delargura. A Dórida era, outrora, denominada Driópida, e osdórios do Peloponeso são originários dali. Os bárbaros, guiados

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por tessálios, penetraram na Dórida, sem contudo devastá-la,pois seus habitantes aderiram logo à sua causa e os Tessáliosforam de parecer que não se devia causar nenhum dano ao país.

XXXII — Dali, os bárbaros passaram para a Fócida,cujos habitantes, advertidos da sua vinda, trataram de colocar-sefora do seu alcance. Uns se retiraram, com todos os seus bens,para o Parnaso, cujo cimo, denominado Titoreu e sobre o qualfica a cidade de Néon, é bastante espaçoso, enquanto queoutros, constituindo a maioria, procuraram refúgio entre osLócrios-Ozoles, em Anfissa, cidade situada na planície deCrisa. Os invasores percorreram toda a Fócida, cortando asárvores e deitando fogo por toda parte, não poupando nem ascidades nem os templos.

XXXIII — Levaram suas devastações ao longo doCefiso e reduziram a cinzas Drimas, Cáradra, Erocos, Tetrônio,Anficéia, Néon, Pedieu, Tritéia, Elatéia, Hiâmpolis,Parapotâmia e Abas, onde havia um templo dedicado a Apolo,notável pelas riquezas que encerrava e pela grande quantidadede oferendas que lhe tinham sido feitas. Os bárbaros queimaramo templo, depois de tê-lo pilhado. Continuando sua perseguiçãoaos Focídios, conseguiram capturar alguns perto das montanhas,aprisionando também algumas mulheres.

XXXIV — Depois de terem atravessado o país dosParapotâmios, chegaram à Panopéia, onde se dividiram em doiscorpos, encaminhando-se o mais numeroso para Atenas, sob ocomando de Xerxes. Esse poderoso corpo de tropas penetrou naBeócia através das terras dos Orcomênios. Os Beócios, que jáhaviam tomado o partido dos Persas, tiveram suas cidadessalvas das destruições por Alexandre, que se apressou emcolocar macedônios por toda parte, a fim de fazer ver a Xerxesque eles abraçavam a sua causa.

XXXV — As outras tropas, deixando à direita o monteParnaso, encaminharam-se com seus guias para o templo de

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Delfos, devastando tudo que encontravam em seu caminho eincendiando as cidades dos Panopeus, dos Dáulios e dosEólidas. Tinham seguido essa direção, depois de se teremseparado do resto do exército, com o propósito de saquear otemplo de Delfos e levar os seus tesouros para Xerxes. Osoberano, como já disse, conhecia mais as riquezas epreciosidades que se encontravam nas regiões invadidas, do queas que ele próprio possuía, pois muito ouvira falar dessestesouros, e principalmente das oferendas de Creso, filho deAliata.

XXXVI — Os habitantes de Delfos, aterrorizados com anotícia de que os bárbaros marchavam sobre a sua cidade,correram a consultar o oráculo, perguntando-lhe se deviamocultar sob a terra os tesouros sagrados do templo outransportá-los para outro país. O deus respondeu que não eranecessário fazer nem uma coisa nem outra, porquanto erabastante poderoso para proteger seus próprios bens. Ante essaresposta, os Délfios trataram de sua própria segurança.Enviaram suas mulheres e filhos para além do golfo de Corinto,na Acaia, e refugiaram-se, em sua maioria, no cimo do Parnasoe nas cavernas da Corícia, com todos os seus bens. Outros,porém, retiraram-se para Anfissa, na Lócrida. A cidade ficouquase totalmente deserta, permanecendo ali apenas sessentahomens e o profeta(3).

XXXVII — Quando os bárbaros se aproximaram deDelfos, procurando localizar o templo, o profeta, de nomeAcerato, notou que as armas sagradas, em que a ninguém erapermitido tocar, tinham sido levadas para fora do recintosagrado, achando-se todas diante do templo. Apressou-se ele emanunciar o fato miraculoso aos délfios que haviam permanecidona cidade. Quando os invasores, apressando a marcha,avançavam até o templo de Minerva Pronéia, verificaram-sefenômenos ainda mais estranhos do que o precedente. Se erapara causar espanto o fato de terem as armas sagradas ido parar

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diante do templo, sem a interferência de pessoa alguma, maisatordoante foi o fenômeno que se registrou em seguida. Ao seaproximarem os bárbaros do templo de Minerva Pronéia, umraio caiu sobre eles; e blocos de rocha, desprendendo-se do altodo Parnaso e rolando com horrível fragor, esmagaram grandenúmero de soldados. Ao mesmo tempo, vozes e gritos de guerrapartiram do templo de Minerva.

XXXVIII — Tantos e tão estranhos fenômenos a um sótempo espalharam o terror entre os bárbaros. Os Délfios,vendo-os fugir, deixaram seus refúgios e puseram-se apersegui-los, matando grande número deles. Os que escaparamao massacre refugiaram-se na Beócia. Entre os váriosfenômenos que disseram haver testemunhado naquela ocasião,relatam o caso de dois guerreiros, de estatura descomunal, que,surgindo não sabem de onde, entraram a persegui-los e a mataros que caíam ao seu alcance.

XXXIX — Dizem os Délfios que esses guerreiros quetanto assombro causaram aos bárbaros fugitivos eram Fílaco eAntonous, dois heróis do país, aos quais foram consagradas asterras perto do templo. As de Fílaco acham-se à beira docaminho ocupado pelos persas, acima do templo de MinervaPronéia, e as de Antonous, perto da fonte de Castália, ao pé dorochedo Hiampeu. Os blocos de rocha que se desprenderam doParnaso ainda podiam ser vistos no meu tempo, no terrenoconsagrado a Minerva Pronéia, onde pararam depois dehaverem rolado sobre os soldados persas, impedindo-os de levara termo seu intento.

XL — Deixando Artemísio, a frota grega dirigiu-se paraSalamina, onde permaneceu, a pedido dos Atenienses. Estes atinham feito ir até ali, a fim de poderem enviar para fora daÁtica suas mulheres e filhos, e, além disso, para melhordeliberar sobre o partido que deviam tomar, pois, vendofrustradas suas esperanças, precisavam concertar novas medidas

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nas circunstâncias presentes. Esperavam encontrar as tropaspeloponésias acampadas na Beócia, prontas para lançar-se sobreos bárbaros, e, entretanto, não viam ninguém; ao contrário,eram informados de que essas tropas, não pensando senão empreservar a pele e defender o Peloponeso, esforçavam-se parafechar o istmo com uma muralha, sem se inquietarem com asorte do resto da Grécia. Informados desse procedimento, osatenienses pediram aos aliados para permanecerem emSalamina.

XLI — Deixando a frota ancorada diante de Salamina,os soldados atenienses voltaram à pátria, fazendo publicar, logoà sua chegada, uma declaração, dizendo que cada qual podiapôr em segurança toda a família(4). Diante disso, a maioria dosatenienses enviou suas famílias para Trezena, enquanto queoutros escolheram Egina e Salamina. Apressaram-se a fazê-lassair da Ática, em obediência ao oráculo e, sobretudo, pela razãoseguinte: Há no templo da cidadela, segundo afirmam osAtenienses, uma grande serpente, guardiã e protetora dafortaleza; e, como se ela existisse realmente, atiram-lhe, todosos meses, bolos de mel. Até aquela época, os bolos sempredesapareciam, mas, eis que começaram a aparecer intactos. Asacerdotisa do templo, tendo anunciado o fato aos Atenienses naocasião em que a ameaça da invasão dos bárbaros pairava sobrea cidade, os habitantes, ao terem permissão para retirar-se dalicom suas famílias, apressaram-se a fazê-lo, tanto mais que aprópria deusa também abandonava a cidadela. Grande partedeles, depois de pôr em segurança a família, embarcaram parareunir-se à frota.

XLII — O resto da frota grega, que se conservava emPógon, porto dos Trezênios, informado de que a força navalvinda de Artemísio se achava diante de Salamina, para alitambém se dirigiu. O número de navios então concentradosnesse porto era bem maior do que o dos que tomaram parte nocombate naval de Artemísio. Euribíades de Esparta, filho de

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Euríclides, que havia comandado os gregos no referidocombate, mantinha-se no mesmo posto, embora não pertencesseà realeza. Os navios atenienses eram em maior número e osmelhores da frota.

XLIII — Vejamos como estava constituída essa frota.Entre os Peloponésios, os Lacedemônios forneceram dezesseisnavios; os Coríntios, um número igual ao enviado a Artemísio;os Siciônios quinze; os Epidáurios, dez navios; os Trezênios,cinco; os Hermioneus, três. Todos esses povos, com exceçãodos Hermioneus, eram de origem dória, tendo vindo de Erinéia,de Pindo e, também, da Driópida. Quanto aos Hermioneus, sãoDríopes, tendo sido expulsos por Hércules e pelos Mélios, dopaís hoje denominado Dórida. Era essa a força naval fornecidapelos habitantes do Peloponeso.

XLIV — Entre os gregos do continente, os Ateniensesforneceram um número de navios igual ao dos outros aliadosreunidos. Somente eles contribuíram com cento e oitentanavios, pois os Plateus não tomaram parte na batalha deSalamina, pelas razões que passo a expor. Tendo as forçasgregas chegado a Cálcis, depois de sua partida de Artemísio, osPlateus desceram do outro lado, pelas terras da Beócia, epuseram-se a transportar para lugares seguros suas mulheres,filhos e escravos; e assim, inteiramente entregues a essa tarefa,acabaram por não tomar parte no combate. No tempo em que osPelasgos ocupavam o país hoje conhecido pelo nome de Hélade,os Atenienses eram pelasgos e denominados Craneus. Sob odomínio de Cécrope, eram chamados Cecrópidas; e sob o deErectides, um dos seus sucessores, Erectidas. Íon, filho de Xuto,tendo-se tornado seu chefe, passaram eles a chamar-se Iônios.

XLV — Os Megários forneceram o mesmo número denavios que haviam enviado a Artemísio. Os Ampracitascontribuíram com sete embarcações; os Leucádios, Dórios eoriginários de Corinto, com três.

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XLVI — Entre os insulares, os Eginetas enviaramquarenta e dois navios, reservando alguns outros para a defesado seu país. Os que combateram em Salamina eram excelentesveleiros.

Os Eginetas são dórios e originários de Epidauro. Suailha chamava-se outrora Enona. Os Calcídios forneceram vintenavios, que já haviam combatido em Artemísio, e os Erétrios,os sete que haviam tomado parte na mesma batalha. Os de Ceosforneceram o mesmo número com que haviam participadonaquele combate. Os habitantes de Ceos são iônios e origináriosde Atenas. Os Náxios forneceram quatro navios. As tropasnáxias tinham sido enviadas para juntar-se aos Medos; mas, semdar nenhuma importância a essa ordem, dirigiram-se aoencontro dos gregos, a pedido de Demócrito, que entãocomandava um dos navios e que gozava de grande prestígioentre os seus concidadãos. Os Náxios são também iônios edescendem dos Atenienses. Os Estireus figuraram também emSalamina, com o mesmo número de navios que tinham enviadoa Artemísio. Os Cítnios contribuíram apenas com um navio eum pentecótero (embarcação movida a cinco remos). Tanto osEstireus como os Cítnios são dríopes. Os Serífios, os Sífnios eos de Melos também prestaram sua colaboração, tendo sido osúnicos, entre os insulares, a não dar terra e água aos bárbaros.

XLVII — Foram esses os povos que se fizeramrepresentar na batalha de Salamina. Habitavam eles aquém dosTesprócios e do Aqueronte. Os Tesprócios limitam-se com osAmpraciotes e com os Leucádios, que vieram do extremo daGrécia para tomar parte nessa guerra. De todos os povos quevivem para além dessas nações, somente os Crotonatasprestaram auxílio à Grécia quando tão grande perigo aameaçava, enviando-lhe um navio sob o comando de Failo, trêsvezes vitorioso nos jogos píticos. Os Crotonatas são aqueus deorigem.

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XLVIII — Todos esses povos forneceram tambémtrirremes, com exceção dos Mélios, dos Serífios e dos Sífnios,que, em compensação, forneceram navios de cinqüenta remos,muito bem equipados. Os Mélios, originários da Lacedemônia,forneceram dois; os Sífnios e os Serífios, que são iônios edescendentes dos Atenienses, contribuíram, cada qual, com umnavio desse tipo. O número de navios fornecidos por essesaliados atingia um total de trezentos e setenta e oito, sem contaros de cinqüenta remos.

XLIX — Chegando a Salamina, os comandantes dascidades de que acabo de falar reuniram-se em conselho, tendoEuribíades proposto que cada um opinasse livremente sobre olocal que lhe parecesse mais adequado para um combate navalna região em que se encontravam. A Ática estava fora decogitações, devendo as deliberações voltar-se para o resto daGrécia. A maioria foi de parecer que se devia abrir velas para oistmo e oferecer batalha aos bárbaros em frente ao Peloponeso,alegando, em apoio à sua opinião, que se suas forças fossemderrotadas em Salamina, ficariam cercadas na ilha, semnenhuma esperança de socorro, ao passo que, se o combatefosse travado no istmo, no caso de uma derrota cada um poderiaretirar-se para seu país.

L — Enquanto os generais do Peloponeso assimdeliberavam, um ateniense veio anunciar-lhes a entrada dasforças persas na Ática, incendiando os lugares por ondepassavam. O exército que havia tomado com Xerxes o caminhoda Beócia, tendo incendiado Téspias, obrigando seus habitantesa retirar-se para o Peloponeso e para Plateias, havia chegado àÁtica, onde espalhava a ruína e a devastação. Os persas tinhamincendiado Téspias e Plateias porque os Tebanos lhes haviaminformado que essas duas cidades não abraçaram a sua causa.

LI — Depois de haverem transposto o Helesponto, osbárbaros permaneceram durante um mês às margens do mesmo.

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Pondo-se novamente em marcha, chegaram, três meses depois,à Ática, que se achava sob o arcontado de Calíades.Apoderaram-se da cidade, que tinha sido evacuada, encontrandoali apenas um pequeno número de atenienses que se haviamrefugiado no templo em companhia dos tesoureiros, e algunspobres diabos que, entrincheirando-se nas portas e nas avenidasda cidadela, procuravam repelir os invasores. A situaçãoprecária daquela gente tinha-a impedido de ir para Salamina.Por outro lado, consideravam inexpugnável a muralha demadeira, como lhes fizera entender o oráculo, imaginando seraquele o abrigo mais seguro, e não os navios.

LII — Os persas acamparam na colina situada defronteda cidadela e à qual os Atenienses denominam Areópago, e aliiniciaram o cerco, procedendo da seguinte maneira: lançaramcontra as barricadas flechas com estopa enrolada numa dasextremidades e na qual haviam deitado fogo. Os sitiados,embora colocados em situação extremamente difícil peladestruição das suas barricadas, continuaram, entretanto, adefender-se, não querendo aceitar as condições propostas pelospartidários de Pisístrato. Continuaram repelindo o inimigo; equando este se aproximou das portas da cidade, fizeram rolargrandes pedras sobre ele. Desse modo, Xerxes, não podendoforçá-las com a facilidade que esperava, sentiu-se embaraçadoquanto à decisão que devia tomar para levar a bom termo o seuintento.

LIII — Finalmente, os bárbaros descobriram umapassagem — pois, como predissera o oráculo, os Persas setornariam senhores de tudo que os Atenienses possuíam nocontinente. Diante da cidadela havia um sítio escarpado, nãoguardado pelos defensores, que não imaginavam pudessealguém subir por ali. Alguns bárbaros, todavia, o conseguiram,no trecho próximo à capela de Agraules, filha de Cécrope. Aoverem-nos no interior da cidadela, os defensores atenienses, quese sentiram tomados de maior desespero, suicidaram-se

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precipitando-se do alto da muralha, enquanto que os outros serefugiaram no templo; mas os persas que já haviam escalado asdefesas forçaram as portas e mataram os suplicantes. Emseguida, saquearam o templo e incendiaram a cidadela.

LIV — Ao ver-se senhor absoluto de Atenas, Xerxesdespachou um correio para Susa, a fim de comunicar aArtábano tão feliz acontecimento. No dia seguinte ao da partidado correio, convocou os banidos de Atenas que o haviamseguido e ordenou-lhes que subissem à cidadela e alirealizassem sacrifícios segundo os seus costumes. Não se sabese assim agiu impelido por um sonho que tivera, ou porque setivesse arrependido de haver incendiado o templo. Os banidosobedeceram prontamente.

LV — Quero citar aqui um fato relacionado com essaatitude do soberano persa. Existe na cidadela um templodedicado a Erecteu, tido como filho da terra, e junto ao qual sevêem uma oliveira e um mar(5). Os Atenienses afirmam queNetuno e Minerva ali os fizeram surgir em resultado dademanda havida entre eles pela posse do país(6). Pois bem;aconteceu que o fogo ateado pelos bárbaros ao temploconsumiu também a oliveira; mas, dois dias depois do incêndio,os banidos atenienses a quem Xerxes havia dado ordem deoferecer sacrifícios, subindo ao templo, notaram que o tronco daoliveira tinha dado um broto de um côvado de altura. Foi isso oque eles próprios declararam ao voltar do templo.

LVI — Ao serem informados sobre a sorte da cidadelade Atenas, os gregos reunidos em Salamina ficaram de talmaneira consternados, que alguns dos generais, sem mesmoaguardar a ratificação dos pareceres submetidos ao conselho,dirigiram-se para os seus navios e mandaram desfraldar velas,com a intenção de partir imediatamente. Todavia, os quepermaneceram em conselho decidiram que a batalha devia sertravada diante do istmo. Ao cair da noite, deram por finda a

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reunião, voltando para seus respectivos navios.

LVII — Quanto Temístocles chegou a bordo do seunavio, Mnesífilo de Atenas inquiriu-o sobre o resultado dasdeliberações, e ao saber que ficara decidido fazer-se aconcentração no istmo e combater-se diante do Peloponeso,disse: “Se levantarmos âncoras e deixarmos Salamina, não seráno mar que combateremos pela pátria, pois ninguém conseguiráreter os aliados; o próprio Euribíades não o poderá; voltarãotodos para suas respectivas cidades; a frota dispersar-se-á, e aGrécia perecerá por causa de uma medida errada. Vai e trata deanular essa decisão, e procura, por todos os meios, convencerEuribíades a mudar de idéia e a permanecer aqui”.

LVIII — Temístocles aprovou o alvitre e, sem nadaresponder, dirigiu-se incontinênti ao navio de Euribíades. Alichegando, disse-lhe que vinha tratar de assuntos de interessecomum. Euribíades fê-lo subir a bordo e perguntou o motivoque ali o trazia. Então, Temístocles, sentando-se ao seu lado,expôs-lhe a opinião de Mnesífilo, como se fosse a dele próprio,e, acrescentando vários outros motivos, conseguiu convencê-loa convocar outra reunião.

LIX — Reunidos novamente todos os generais,Temístocles, antes que Euribíades lhes declarasse o assuntopara o qual os havia convocado, falou-lhes como um homemvivamente empenhado em fazer prevalecer a sua opinião. MasAdimanto, filho de Ocito e general dos Coríntios,ínterrompeu-o: “Temístocles — disse-lhe ele —, são fustigadoscom varas aqueles que, nos jogos públicos, partem antes dosoutros”. “Sim — replicou Temístocles —, mas aqueles queficam na retaguarda nunca são coroados”.

LX — Dando essa resposta, em que não transpareciaarrebatamento ou cólera, voltou-se para Euribíades e, evitandorepetir-lhe que os aliados se dispersariam tão pronto a frotalevantasse âncoras de Salamina — pois desejava guardar as

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conveniências e achava que faltaria com elas acusando alguémna presença dos aliados —, assim lhe falou, alegando outrosmotivos:

“Euribíades, a salvação da Grécia está agora em tuasmãos; tu a salvarás se, convencido pelas minhas razões,ofereceres combate ao inimigo aqui mesmo, não dando ouvidosaos que são de parecer que a frota deve seguir para o istmo.Escuta e pensa as razões das duas partes. Oferecendo batalha noistmo, terás de combater em mar aberto, onde é perigosofazê-lo, já que os nossos navios são mais pesados e em menornúmero do que os dos inimigos; e, mesmo que obtenhamosêxito, não deixaremos por isso de perder Salamina, Mégara eEgina, pois as forças terrestres dos bárbaros seguirão a sua forçanaval, resultando daí que tu próprio as conduzirás aoPeloponeso, expondo toda a Grécia a um maior risco.

“Seguindo os meus conselhos, eis as vantagens que nosadvirão: primeiro, combatendo em lugar estreito, com umpequeno número de navios contra um número maior de naviosinimigos, alcançaremos, segundo todas as probabilidades daguerra, uma grande vitória, pois um braço de mar nos é tãovantajoso quanto o será o mar largo para o inimigo. Emsegundo lugar, conservaremos Salamina, onde deixamos nossasesposas e filhos. Vejo nisso ainda outra vantagem, que tumesmo já deves ter pensado. Permanecendo aqui, nãocombaterás menos pelo Peloponeso do que se estivesses pertodo istmo. Por conseguinte, se fores sensato não levarás,absolutamente, a frota para o Peloponeso.

“Se, como espero, batermos no mar os inimigos, elesretornarão em desordem, sem alcançar o istmo e sem poderemavançar para adiante da Ática. Salvaremos Mégara, Egina eSalamina, onde, aliás, um oráculo nos vaticinou completavitória. Quando tomamos um partido de acordo com a razão,quase sempre logramos êxito; mas quando nos decidimos contra

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todas as possibilidades, o próprio deus não costumaapoiar-nos”.

LXI — Nesse ponto, Adimanto de Corinto interrompeupela segunda vez Temístocles, e, impondo-lhe silêncio, disse aEuribíades que não se deixasse levar pela opinião de um homemque não tinha mais pátria. Referia-se dessa maneira ao generalateniense porque Atenas tinha sido tomada e se achava empoder do inimigo. Temístocles, não podendo conter-se, dirigiuacerbas palavras a Adimanto e aos Coríntios, fazendo-lhes verque os Atenienses teriam uma pátria e uma cidade maispoderosa que a deles, tão pronto tivessem à sua disposiçãoduzentos navios(7) tripulados por seus cidadãos, porquanto nãohavia na Grécia um Estado mais forte para resistir a qualquerataque.

LXII — Dirigindo-se, em seguida, a Euribíades,completou a sua oração dizendo: “Permanecendo em Salaminae agindo como homem sensato, salvarás a Grécia, se partires,serás o seu destruidor. Em nossos navios estão depositadastodas as nossas esperanças. Segue, pois, o meu conselho. Deoutro modo, iremos com as nossas esposas, filhos e escravospara Siris, na Itália, que nos pertence de longa data e da qual,segundo os oráculos, devíamos ter sido os fundadores. Esperoque, quando te vires abandonado por aliados como nós, telembrarás, então, de minhas palavras”.

LXIII — Esse discurso fez Euribíades mudar deresolução. Penso que assim procedeu com receio de ver-seabandonado pelos Atenienses se levasse a frota para o istmo. Sea força naval ateniense se afastasse da luta, o resto da frota nãoseria suficientemente forte para resistir aos ataques dosbárbaros. Por conseguinte, mostrou-se ele favorável ao parecerde Temístocles, ficando decidido que a batalha seria travada emSalamina.

LXIV — Acatando a resolução de Euribíades, os

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comandantes da frota prepararam-se para o combate que seriatravado com os persas no local escolhido. No dia seguinte, aonascer do sol, registrou-se forte tremor de terra, sentido tambémno mar. Ante o fenômeno, as tripulações resolveram dirigirpreces aos deuses e chamar os Eácidas em socorro da Grécia.Invocaram Ájax e Télamon, e enviaram um navio a Egina paratrazer Éaco e o resto dos Eácidas.

LXV — Diceu de Atenas, filho de Teócides, banido desua pátria e gozando então de grande prestígio entre os Medos,contava que, achando-se, por acaso, na planície de Tria, emcompanhia de Demarato da Lacedemônia, depois que a Ática,abandonada pelos Atenienses, fora devastada pelo exército deXerxes, viu erguer-se de Elêusis imensa nuvem de poeira, queparecia produzida por muitos milhares de homens em marcha.Espantados e não sabendo a que homens atribuí-la, ouviram, derepente, uma voz semelhante à do místico Iaco(8). AcrescentavaDiceu que Demarato, não instruído sobre os mistérios deElêusis, perguntou-lhe o significado das palavras que acabavamde ouvir. “Demarato — respondeu ele —, alguma grandedesgraça paira sobre o exército do soberano, e ele não podeevitá-la — pois, estando a Ática deserta, é, certamente, algumadivindade que fala. Ela saiu de Elêusis e vai em socorro dosAtenienses e dos aliados, isso me parece evidente. Se ela sedirige para o Helesponto, o rei e seu exército de terra correrãogrande perigo; se tomar a direção de Salamina, onde seencontram os navios, a frota de Xerxes corre o risco de serdestruída. Os Atenienses celebram todos os anos essa festa emhonra de Ceres e de Prosérpina, e iniciam nesses mistérios todosos que dentre eles e os outros gregos assim o desejam. Os hinosque ouves são os cantados na festa em louvor de Iaco”. Ante aexplicação dada pelo amigo, Demarato observou-lhe: “Vamos,Diceu; sê discreto e não fales de semelhante presságio a quemquer que seja. Se chegar ao conhecimento do rei o que acabasde contar, perderás a cabeça, pois nem eu nem pessoa algumapoderá obter o perdão para ti. Tranqüiliza-te; os deuses velarão

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pelo exército”.

Diceu acrescentava que a nuvem formada pela poeiradirigia-se para Salamina, onde se encontravam as forças gregas,e que ele e Demarato deduziram disso que a frota de Xerxesestava votada ao aniquilamento.

LXVI — Quando as tropas navais de Xerxes tiveramcomo certa a perda dos lacedemônios, dirigiram-se de Tráquis aHistieu, onde permaneceram três dias, depois do queatravessaram o Euripo, atingindo Faleros três dias depois. Asforças terrestres e navais dos bárbaros não eram menosnumerosas, penso eu, ao entrarem na Ática, do que ao chegaremàs Termópilas e ao promontório de Sépias; pois, em lugar dosque haviam perecido na tempestade, na passagem dasTermópilas e no combate naval de Artemísio, coloco os outrospovos que só depois passaram a acompanhar o soberano persa,tais como os Málios, os Dórios, os Lócrios e os Beócios. Xerxesfoi ainda seguido pelos Carístios, pelos Ândrios, pelos Tênios epor outros insulares, com exceção dos habitantes das cinco ilhascujos nomes já mencionei aqui. Com efeito, à medida queXerxes avançava na Grécia, suas fileiras iam sendo engrossadascom tropas fornecidas por outros povos.

LXVII — Quando todas essas tropas chegaram, umas aAtenas e as outras a Faleros — com exceção dos pários, queesperavam em Citnos o desenrolar dos acontecimentos —Xerxes dirigiu-se à frota, para conferenciar com seus oficiais esaber quais os seus pontos de vista sobre as operações.Chegando a bordo de uma das embarcações, sentou no tronoque lhe havia sido preparado, e ao seu lado tomaram lugar ostiranos das diferentes nações que participavam da expedição eos comandantes dos navios, cada um segundo a dignidade quelhes havia sido conferida pelo soberano, vindo em primeirolugar o rei de Sídon, depois o de Tiro, e assim por diante. Todosacomodados de acordo com a categoria, Xerxes, querendo

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sondá-los, perguntou-lhes, por intermédio de Mardônio, se eramde opinião que ele devia travar a batalha no mar, e todos, acomeçar pelo rei de Sídon, manifestaram-se favoráveis, excetoArtemisa, que se dirigiu a Mardônio nestes termos:

LXVIII — “Mardônio, transmite ao rei estas minhaspalavras. Senhor, depois das provas do meu valor que dei noscombates travados no mar, perto da Eubéia, considero justo queme permitais expor a minha opinião e dizer-vos o que julgomais vantajoso para os vossos interesses. Sou de parecer quedeveis poupar os nossos navios e que eviteis oferecer essabatalha naval, porque os Gregos são tão superiores no mar àstuas tropas, quanto os homens o são com relação às mulheres.Haverá necessidade de arriscar as vossas forças num combatenaval? Não sois senhor de Atenas, o objetivo principal destaexpedição? O resto da Grécia já não está ao vosso alcance?Ninguém pode resistir-vos, e os que tentam fazê-lo têm o fimque merecem. Permiti que vos diga de que maneira deveis, naminha opinião, agir, encarando a situação presente dos vossosinimigos. Se, em lugar de apressardes a batalha naval,mantiverdes vossos navios na enseada, ou se avançardes até oPeloponeso, tereis atingido o vosso objetivo final, pois as forçasgregas não podem manter uma resistência prolongada, desdeque não possuem, como estou informado, víveres suficientesnesta ilha; dispersar-se-ão, refugiando-se nas suas respectivascidades. Não acredito que, se enviardes as vossas tropas para oPeloponeso, os peloponésios que se encontram em Salamina alipermaneçam tranqüilos e ofereçam ajuda aos atenienses; mas seprecipitardes a batalha, receio muito que a derrota da vossaforça naval acarrete também a das forças de terra. Sois o melhordos soberanos, mas existem maus escravos entre os vossosaliados, tais como os egípcios, os cíprios e os cilícios, que denada vos servirão”.

LXIX — Os amigos de Artemisa recearam que essaspalavras atraíssem sobre eles algum castigo da parte do rei. Os

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que a invejavam e sentiam despeito pela maneira altamentehonrosa com que o soberano a tratava, mais do que a qualqueroutro dos aliados, mostraram-se intimamente satisfeitos com oseu procedimento, não duvidando das desastrosasconseqüências. Todavia, quando Mardônio transmitiu a Xerxesas opiniões dos vários comandantes, este mostrou particularagrado pela de Artemisa. Ele, que já encarava essa princesacomo uma mulher de valor, tributou-lhe, na ocasião, os maioreselogios. Apesar disso, preferiu seguir a opinião da maioria; ecomo pensava que as suas tropas não tinham cumprido bemcom o seu dever no combate nas proximidades da Eubéia, compropósito deliberado, por não se achar ele presente, dispôs-se aser espectador da batalha que ia ser travada em Salamina.

LXX — Dada a ordem de partida, a frota persa avançoupara Salamina, colocando-se facilmente em linha de batalha;mas, estando próximo o fim do dia, resolveram adiar o ataque,e, durante a noite, prepararam-se para a manhã seguinte.Entretanto, o terror apoderou-se dos gregos e, sobretudo, dospeloponésios, que receavam, no caso de insucesso na luta, ficarcercados na ilha, deixando seu país sem defesa.

LXXI — As forças terrestres dos bárbaros partiramnessa mesma noite para o Peloponeso. Os peloponésios que alihaviam permanecido tinham tomado todas as medidas paraimpedir o inimigo de penetrar nas suas terras pelo continente.Sabedores da morte de Leônidas e do aniquilamento de suastropas nas Termópilas, acorreram de todas as cidades para oistmo, sob o comando de Cleômbroto, filho de Anaxandrido eirmão de Leônidas. Chegando ao istmo, interceptaram ocaminho que conduzia a Círon, e, seguindo a deliberaçãotomada em conselho, entregaram-se logo à tarefa de fechar oistmo com uma muralha, de ponta a ponta. A obra progrediarapidamente, e ninguém, entre tantos milhares de homens,estava isento do trabalho. Uns carregavam pedras, outrostijolos, madeira e cestos cheios de areia. O serviço era mantido

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ininterrupto, dia e noite.

LXXII — Os povos gregos que concorreram para adefesa do istmo foram os Lacedemônios, os Árcades, os Eleus,os Coríntios, os Siciônios, os Epidáurios, os Trezênios e osHermioneus. Tais os povos que, vendo o perigo que ameaçava aGrécia, vieram em seu auxílio. O restante dos peloponésios nãose inquietaram, absolutamente, com a situação, permanecendoem suas cidades, embora os jogos Olímpicos e as festas Cárniasjá tivessem passado.

LXXIII — O Peloponeso é habitado por sete naçõesdiferentes. Duas, originárias do país, ocupam ainda hoje omesmo território que ocupavam outrora: os Árcades e osCinúrios. Uma terceira, a dos Aqueus, deixou apenas o cantãoque habitava, para fixar-se em outro, sem nunca ter abandonadoo Peloponeso. As outras quatro nações — os Dórios, os Etólios,os Dríopes e os Lêmnios — são estrangeiras. Os Dóriospossuem muitas cidades célebres; os Etólios, apenas a de Élis;os Dríopes possuem as de Hermíone e Ásine, nas vizinhançasde Cardâmile da Lacônia. Os Paroreatas são todos Lêmnios. OsCinúrios, embora autóctones, são considerados iônios poralguns, tornando-se dórios sob o domínio dos Árgios, assimcomo os Orneatas e seus vizinhos. Todas as cidades das setenações de que acabo de falar abandonaram a causa dos aliadosgregos, mantendo-se neutras, favorecendo com essaneutralidade, segundo penso, os interesses dos Medos.

LXXIV — Os gregos que se encontravam no istmoocupavam-se da construção da muralha com o maior ardor,como se ela lhes fosse o último recurso e já tivessem perdido aesperança de conseguir êxito no mar. Os que se encontravamem Salamina, informados da marcha dos bárbaros, sentiram-seigualmente tomados de terror, embora menos por eles própriosdo que pelo Peloponeso. Perplexos com a imprudência deEuribíades, trocaram impressões, secretamente, sobre a

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situação, acabando por manifestar-se abertamente ereunindo-se, então, em conselho. A questão foi novamenteagitada. Uns achavam que deviam seguir para o Peloponeso,sendo preferível expor-se pela defesa deste, do que permanecerem Salamina e ali combater por um país já subjugado. Osatenienses, os eginetas e os megários, porém, eram de parecerque deviam lutar no lugar onde se encontravam.

LXXV — Notando que a opinião dos peloponésiostendia a prevalecer, Temístocles abandonou secretamente oconselho e enviou, sem perda de tempo, um mensageiro numabarca ao local onde se encontrava a frota dos persas, instruídosobre o que devia fazer aos invasores. Esse emissário, de nomeSicínio, era da família de Temístocles e preceptor dos filhosdeste. Algum tempo depois de terminada a guerra, Temístoclescumulou-o de riquezas, incluindo-o entre os cidadãos deTéspias quando essa cidade foi repovoada. Chegando a bordode um dos navios da frota persa, Sicínio assim se dirigiu àoficialidade: “O comandante dos atenienses, estando bemintencionado com relação ao vosso soberano, preferindo o êxitodas vossas armas ao dos Gregos, enviou-me secretamente aquipara vos comunicar que estes últimos, atemorizados ante aaproximação da vossa frota, estão decidindo se devem ou nãoempreender a fuga. Não vos resta senão praticar a mais bela detodas as vossas ações, não permitindo que eles escapem. Nãoexiste acordo perfeito entre eles, levantando discussões estéreisentre si, em lugar de concertar planos para resistir às vossasforças”. Desincumbindo-se da missão que lhe confiaraTemístocles, Sicínio deixou a frota sem mais demora.

LXXVI — Considerando sincera a declaração doemissário, os persas enviaram um contingente de tropas para ailha de Psitália, situada entre Salamina e o continente. Cerca dameia-noite, a ala esquerda da frota avançou para Salamina, afim de envolver os gregos, ao mesmo tempo que os navios quese achavam em torno de Ceos e de Cinosura começaram a

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movimentar-se, cobrindo todo o estreito, até Muníquia. Essamanobra tinha por fim impedir que os gregos escapassem,podendo eles, os persas, vingar-se finalmente da derrota quelhes fora imposta em Artemísio. Quanto ao desembarque detropas em Psitália, assim o fizeram porque essa ilha, achando-seperto do local onde devia travar-se a batalha, os guerreirosbatidos na luta certamente procurariam refúgio ali, e elespoderiam, então, salvar seus adeptos e matar os adversários.Essas medidas foram tomadas secretamente, durante a noite, afim de que os gregos nada percebessem.

LXXVII — Quando reflito sobre esses acontecimentos,não posso contestar a verdade dos oráculos, quando eles seexprimem de uma maneira tão clara como esta: “Quando elescobrirem com seus navios a margem sagrada de Diana e a deCinosura, e, cheios de louca esperança, tiverem devastado ailustre cidade de Atenas, a Vingança reprimirá o Desdém, filhoda Insolência, que, no seu furor, pretende fazer ressoar o seunome por todo o universo. O bronze fundir-se-á com obronze(9), e Marte tingirá de sangue o mar. Então, o filho deSaturno e a augusta Vitória levarão aos Gregos o dia daliberdade”.

Exprimindo-se Bácis de maneira tão clara, não ousocontradizer os oráculos e não aprovo que outros o façam.

LXXVIII — As discussões continuavam em Salaminaentre os comandantes da frota grega, que ignoravam estar sendoenvolvidos pelos bárbaros e julgavam que estes permaneciamno mesmo lugar onde os tinham visto durante o dia.

LXXIX — Mantinham-se ainda em conselho, quandochegou de Egina, Aristides, filho de Lisímaco. Aristides eraateniense, tendo sido relegado ao ostracismo pelo povo, emborafosse um homem de bem e amante da justiça, como vim a saber,analisando os seus costumes. Apresentando-se diante doconselho, Aristides dirigiu-se a Temístocles, que, por certas

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razões, o detestava, para conferenciar com ele. As proporçõesdos males presentes faziam-nos esquecer todos osressentimentos, e Temístocles dispôs-se a escutá-lo. Aristides jáouvira falar do empenho dos peloponésios em retirar-se para oistmo. Por isso, foi logo dizendo a Temístocles: “Esqueçamospor um momento as nossas desavenças e tratemos de ver, nascircunstâncias atuais, de que maneira poderemos prestarmaiores serviços à pátria. Não importa que os peloponésiosestejam ou deixem de estar interessados na partida da frota. Oque interessa é que o inimigo investe decididamente contra nós,pois sou testemunha ocular das suas manobras. Os coríntios e opróprio Euribíades não poderiam retirar-se agora, mesmo quequisessem. Volta à reunião e transmite a eles o que acabo de tedizer”.

LXXX — “Tua opinião me parece acertada —respondeu Temístocles — e folgo deveras com a notícia que nostrazes de que o inimigo toma a iniciativa de nos atacar. Era issoo que eu mais desejava, e fui eu próprio quem o forçou a agirassim, ao ver que os nossos não se decidiam a dar-lhe combate.Peço-te que faças, tu mesmo, essa comunicação ao conselho, afim de que não pensem que estou procurando enganá-losdizendo-lhes que o inimigo já iniciou as manobras de ataque.Entra, pois, e dize-lhes em que pé estão as coisas. Seacreditarem em ti, tanto melhor; se não, não faz diferença, poisse, como dizes, estamos cercados por todos os lados, nãopoderemos fugir ao combate”.

LXXXI — Apresentando-se aos chefes aliados reunidosem conselho, Aristides disse-lhes que vinha de Egina e queencontrara dificuldade em passar, sem ser percebido, por entre afrota persa, que envolvia por todos os lados a dos gregos. Porisso, aconselhava-os a se porem de atalaia. Feita a comunicação,Aristides deixou a reunião, e os comandantes aliadosmantiveram-se ainda por algum tempo discutindo acerca danotícia, a maioria não lhe querendo dar crédito.

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LXXXII — A dúvida prevalecia ainda no seu espírito,quando viram chegar um trirreme cheio de fugitivos tênioscomandados por Panécio, filho de Sosímenes, trazendo-lhesnotícias exatas sobre a situação. Para perpetuar esse fato,mandaram gravar no tripé consagrado a Delfos os nomes dostênios entre os dos que haviam contribuído para a derrota deXerxes. Esse navio tênio, que passou para o lado dos gregos emSalamina, completou, com o de Lemnos que se juntara antes emArtemísio, o total de trezentos e oitenta navios da frota grega,cujo número original era de trezentos e setenta e oitoembarcações.

LXXXIII — Os comandantes aliados, dando fé àcomunicação dos tênios, prepararam-se para o combate,reunindo suas tropas logo ao raiar a aurora. Temístocles, agindoda mesma maneira, arengou às suas, insuflando-lhes ânimo.Fez, no seu discurso, um paralelo entre as grandes ações e osprocedimentos covardes, entre os gestos que dependem danatureza e da condição humana, exortando-os a adotar a atitudeque lhes parecesse mais gloriosa. Terminada a arenga, ordenouaos combatentes que subissem aos seus navios. Mal haviam elesembarcado, chegava de Egina o navio enviado em busca dosEácidas. Momentos depois, os gregos faziam avançar toda afrota ao encontro do inimigo.

LXXXIV — Logo que a força naval grega se pôs emmovimento, os persas lançaram-se sobre ela. Os navios gregosrecuaram um pouco na direção da costa, sem virar de bordo,para cair em seguida sobre o inimigo, quando Amínias,ateniense e habitante do burgo de Palena, avançou à frente dosoutros e abordou um navio persa, ficando, todavia, em situaçãoembaraçosa. Os outros acorreram em seu auxílio; e assim teveinício o combate, segundo a versão dos Atenienses. Dizem,porém, os Eginetas, que foi o navio enviado aos Eácidas oprimeiro a entrar em contato com a frota persa. Há quem digatambém que um fantasma apareceu aos combatentes gregos sob

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a forma de uma mulher e, com voz bastante forte para serouvida por toda a frota, animou-os a avançar, depois de tê-losassim censurado ao vê-los indecisos e receosos: “Infelizes,quando cessareis de recuar?”

LXXXV — Os fenícios formavam lado a lado com osatenienses, na ala que dava para Elêusis, a oeste; e os iônios emfrente aos lacedemônios, na ala voltada para leste e para oPireu. Alguns destes últimos conduziram-se covardemente, compropósito premeditado, atendendo às exortações deTemístocles; mas a maioria agiu com hombridade e bravura.Poderia citar aqui os nomes de muitos dos seus capitães quecapturaram navios aos gregos; mas limitar-me-ei a declinar osde Teomestor, filho de Androdamas, e o de Fílaco, filho deHistieu, ambos de Samos. São os únicos a que faço mençãoporque a bravura valeu a Teomestor a soberania de Samos,concedida pelos Persas, e porque Fílaco, incluindo-se nonúmero dos que angariaram a admiração e estima do soberano,teve como recompensa uma grande extensão de terra.

LXXXVI — Grande parte da frota persa foi destruídapelos atenienses e eginetas. Os bárbaros, combatendodesordenadamente, sem tática alguma, contra forças que sebatiam em boa ordem e obedecendo a um método de luta,estavam mesmo fadados a esse revés. Portaram-se, no entanto,com maior bravura do que em Eubéia, superando mesmo aatuação até ali mantida, cada um esforçando-se ao máximo evendendo caro a derrota, pelo temor que lhes inspirava Xerxes,que supunham estar observando o desenrolar da batalha.

LXXXVII — Dado o grande número de combatentes deambos os lados empenhados no combate, não posso precisar amaneira com que se houveram, em particular, bárbaros egregos. Posso, contudo, mencionar uma façanha de Artemisa,que veio aumentar ainda mais a estima que já lhe tributava osoberano persa. Quando grande era a desordem entre os navios

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de Xerxes, essa princesa, vendo que não podia escapar àperseguição de um navio ateniense, porque tinha pela frentevários navios amigos e o seu era o que mais próximo se achavadas embarcações inimigas, tomou, de súbito, uma decisãoarrojada, conduzindo-se de maneira feliz. Acossada pelo navioateniense, lançou-se sobre um navio amigo, tripulado pelosCalíndios e no qual se achava Damastino, soberano destesúltimos. Ignoro se ela havia tido alguma diferença com essesoberano enquanto os persas ainda se encontravam noHelesponto, se assim agiu premeditadamente, ou simplesmenteporque o navio dos calíndios se achava, por acaso, na frente doseu, no momento em que procurava, de todas as maneiras,escapar à perseguição que lhe movia a embarcação ateniense.Como quer que seja, Artemisa atacou-o e fê-lo soçobrar, e oresultado foi que o comandante do trirreme ateniense, vendo-aatacar um navio bárbaro e imaginando que o seu navio eragrego, ou que, tendo passado para o lado dos aliados, combatiapor eles, fez-se de bordo para ir juntar-se ao resto da frota.

LXXXVIII — Usando desse artifício, Artemisa logrouconservar a vida e atrair ainda mais sobre si a estima de Xerxes,embora tivesse prejudicado a causa deste, que jamais supôsfosse amigo o navio por ela atacado e destruído. Dizem que osoberano, atento ao desenrolar do combate, viu quando o navioda princesa se lançou sobre um outro, e que alguém que seachava ao seu lado observou-lhe: “Senhor, vede com quecoragem Artemisa combate e como pôs a pique aquele navioinimigo!” Então Xerxes procurou saber se aquela façanha tinhasido realmente praticada por Artemisa. Todos disseram que sim;que conheciam muito bem o navio da princesa pela figura quetrazia na proa, não duvidando que a embarcação posta ao fundofosse inimiga. Para maior felicidade de Artemisa, ninguém donavio calíndio se salvou para acusá-la. Assegura-se haverXerxes declarado na ocasião: “Os homens estão-se conduzindocomo mulheres, e as mulheres como homens”. Tal a frase quelhe atribuem.

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LXXXIX — Ariabines, filho de Dario e irmão deXerxes, um dos comandantes das forças navais persas, pereceunessa batalha, bem como grande número de figuras de altacategoria, tanto persas como medos e da parte dos aliados. Nãoforam grandes as perdas registradas entre os gregos. Como eramexímios nadadores, os que não pereciam pela mão dos inimigosquando seu navio era destruído, ganhavam a costa a nado. Masos bárbaros, na sua maioria, eram tragados pelas águas, por nãosaberem nadar. Os persas perderam grande parte dos seusnavios da seguinte maneira: quando os que iam na frente batiamem retirada, os que navegavam logo atrás, esforçando-se portomar a dianteira, para dar provas ao soberano da sua bravura eintrepidez, chocavam-se com os que viravam de bordo,espatifando-se.

XC — Os fenícios, tendo perdido seus navios nessaconfusão, acusaram, perante o rei, os iônios de traição e deserem os responsáveis pela sua perda; mas um fato inesperadoveio salvar a cabeça dos generais iônios e fazendo com que ocastigo revertesse sobre os próprios fenícios. Faziam estes aindasuas acusações, quando um navio samotrácio, lançando-se sobreuma embarcação ateniense, enviou-a para o fundo do mar. Aomesmo tempo, um navio egineta caiu sobre o da Samotrácia,metendo-o também a pique. Os samotrácios, porém, excelentesguerreiros, rechaçando a golpes de dardo os combatentes donavio egineta e abordando-o, conseguiram tornar-se senhores domesmo. Essa façanha salvou os iônios. Testemunhando o fato,Xerxes, que se sentia deprimido com o resultado da batalha eacusava a todos de serem os culpados, mandou imediatamentedegolar os fenícios acusadores, para que não mais caluniassemgente mais brava do que eles. Sentado ao pé do monte Egaleu,situado diante de Salamina, o soberano persa assistia aodesenrolar da luta; e quando percebia alguma ação de vulto daparte dos seus, informava-se logo sobre quem a tinha praticado,anotando um dos seus secretários o nome do autor da façanha,bem como do seu pai e da cidade a que pertencia. Ariaramnes,

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nobre persa e amigo dos iônios, achando-se presente na ocasiãoem que os fenícios os acusaram, tomou a sua defesa, muitocontribuindo para a perda dos últimos.

XCI — Enquanto essas coisas se passavam, os bárbaros,postos em fuga, procuravam alcançar o porto de Faleros; mas oseginetas que se mantinham no estreito caíram sobre eles,praticando feitos memoráveis. Aproveitando-se da confusãoreinante entre os inimigos, os atenienses iam destruindo osnavios que resistiam e os que fugiam, o mesmo fazendo oseginetas com os que caíam ao seu alcance, de maneira que,quando um navio persa conseguia livrar-se dos atenienses,vinha cair nas mãos dos eginetas.

XCII — Em meio a esses acontecimentos, Temístocles,perseguindo os persas, encontrou Polícrito, filho de Crio deEgina, que atacava um navio sidônio. Este havia capturado umnavio egineta enviado em missão de reconhecimento à ilha deCíatos e comandado por Piteu, filho de Isquenous, que recebeuinúmeros ferimentos ao bater-se contra os persas e cuja vidaestes pouparam por admiração à sua coragem. Piteu recuperouassim a liberdade, regressando a Egina. Polícrito, reconhecendologo o navio do almirante ateniense pela figura que o ornava,chamou em voz alta Temístocles, censurando-o de modo acerbopela acusação feita aos eginetas de se inclinarem para os medos;e enquanto o invectivava, mantinha o ataque contra o naviosidônio. Quanto aos bárbaros que conseguiram conservar seusnavios na fuga, retiraram-se eles para o porto de Faleros sob aproteção das forças de terra.

XCIII — Os eginetas foram os que mais se distinguiramnessa batalha, e depois deles os atenienses. Entre os primeirossobressaiu-se Polícrito, e entre os segundos Eumenes deAnagironte e Amínias de Palena, que perseguiu o navio deArtemisa. Se ele soubesse que essa princesa estava no navio,não teria cessado de dar-lhe caça enquanto não o capturasse,

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pois era essa a ordem que havia recebido dos comandantesatenienses, que prometeram uma recompensa de dez mildracmas a quem a fizesse prisioneira, de tal forma ficaramindignados de ter uma mulher vindo combatê-los. Artemisa,porém, conseguiu ludibriar seu perseguidor, como relatei maisatrás.

XCIV — Dizem os atenienses que Adimanto, tomado depavor no primeiro choque com o inimigo, abriu velas e fugiu, eque os coríntios, vendo o navio capitânia da sua frota fugir,retiraram-se também. Chegando perto do templo de MinervaCiras, na costa de Salamina, estes últimos encontraram umafalua enviada pelos deuses. Supõe-se ter havido nisso qualquercoisa de divino, pois a falua, aproximando-se dos coríntios, queignoravam o que se passava com o restante da frota, os que atripulavam disseram-lhes: “Adimanto, traidor dos gregos;tiveste pressa em fugir, e, entretanto, eles estão vitoriosos eobtêm todas as vantagens que visavam”. Não tendo Adimantoacreditado no que diziam, os tripulantes da barca acrescentaramque se dispunham a ficar como reféns e que eles, os coríntios,podiam executá-los, se os aliados já não tivessem alcançado avitória. Diante disso, Adimanto e os que o acompanhavamviraram de bordo, regressando para junto da frota, já depois dabatalha. Tal o boato espalhado pelos Atenienses, mas oscoríntios negam essa versão, pretendendo ter-se destacado maisque todos no combate naval, tendo muitos gregos a apoiá-los.

XCV — Aristides, filho de Lisímaco e natural deAtenas, a quem já me referi como homem de bons princípios ealtas qualidades, distinguiu-se também nessa jornada. Tomandoconsigo um bom número de soldados atenienses bem armados,que encontrou à beira-mar, em Salamina, levou-os para apequena ilha de Psitália(10), matando todos os persas que ali seencontravam.

XCVI — Terminado o combate, os gregos rebocaram

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para Salamina todos os navios danificados que se encontravamnas imediações da ilha e prepararam-se para uma nova açãobélica, contando que o soberano persa lhes desse uma segundabatalha com o que restava da sua frota. Entretanto, grande partedos navios persas que escaparam à destruição foi impelida pelovento oeste para a costa da Ática denominada Cólis, ficando oinimigo praticamente privado da sua força naval. Cumpriam-se,assim, os oráculos de Bácis e de Museu com relação à batalhanaval, da mesma forma que um outro divulgado muitos anosantes desses acontecimentos, por Lisístrato, adivinho ateniense,e concernente aos despojos dos navios arrastados para a costa.Este último oráculo, cujo sentido havia até então escapado aosgregos, era concebido nestes termos: “As mulheres de Cólisfarão grelhas com os remos”. Isso devia acontecer depois dapartida do soberano.

XCVII — Logo que Xerxes reconheceu a sua derrota,receando que os gregos, a conselho dos iônios ou por iniciativaprópria, se dirigissem ao Helesponto para destruir as pontes, eque, surpreendido na Europa, ali corresse o risco de perecer,pensou em fugir; mas, desejando ardentemente vingar-se daderrota sofrida, procurou ligar Salamina ao continente por meiode uma ponte, feita com os navios de carga dos fenícios,realizando todos os preparativos, como se pretendesseoferecer-lhes nova batalha naval. Vendo-o agir dessa maneira,os gregos ficaram persuadidos de que ele se preparava paracontinuar a guerra; mas sua intenção não escapou à sagacidadede Mardônio, que lhe conhecia perfeitamente a maneira depensar.

XCVIII — Enquanto se entregava a esses preparativos,Xerxes despachou um correio para a Pérsia levando a notícia dogrande insucesso das suas forças navais ante os gregos. Oserviço de correios dos Persas era realizado com grandeeficiência e rapidez, estando muito bem coordenado. De léguaem légua havia um posto, onde se mantinham homens e

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cavalos, prontos para partir a qualquer momento, de dia ou denoite, sob quaisquer condições de tempo, correndo celeremente.Chegando ao primeiro posto, o primeiro correio entregava odespacho a um segundo, este a um terceiro, e assimsucessivamente, passando o despacho de uma mão para outra,da mesma maneira que entre os Gregos o facho passa de mãoem mão nas festas de Vulcano. A essa corrida de posto emposto os Persas denominam na sua língua angareion.

XCIX — Quando chegou a Susa a notícia, trazida peloprimeiro correio, de que Xerxes se tornara senhor de Atenas, ospersas que ali haviam permanecido sentiram-se tomados deintenso júbilo, juncando as ruas de mirto, queimando essênciasaromáticas, realizando festins e entregando-se a toda espécie deprazeres. A segunda notícia, porém, deixou-os consternados.Puseram-se a rasgar as vestes em desespero, soltando gritoslamentosos e acusando Mardônio de ter sido o causador de tãogrande desgraça. A perda dos navios, contudo, afligia-os menosdo que a idéia de vir o seu soberano a perecer ou ser feitoprisioneiro, e só se sentiram tranqüilos quando o viram deregresso.

C — Por sua vez, Mardônio, vendo Xerxes perturbado eaflito com o resultado desfavorável da batalha naval, supôs logoque o soberano pensava em abandonar a Ática, e acreditandoque seria punido por havê-lo aconselhado a atacar a Grécia,achou que devia expor-se a novos riscos, considerando que lheera forçoso, ou subjugar o país ou ali perecer de maneirahonrosa. Depois de muito refletir, prevaleceu no seu espírito odesejo de submeter a Grécia. Com essa idéia a martelar-lhe amente, dirigiu-se a Xerxes, dizendo-lhe: “Senhor, não voscontristeis com o duro golpe que acabais de sofrer no mar. Adecisão desta guerra não depende da vossa frota, mas das vossasforças de terra, isto é, da vossa cavalaria e da vossa infantaria.Se fizerdes uso delas, os gregos, que supõem estar tudoterminado, não deixarão os seus navios para se oporem às

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vossas tropas, e os aliados do continente não ousarãoenfrentar-vos. Os que já tentaram fazê-lo foram punidos comomereciam. Ataquemos, pois, imediatamente, o Peloponeso, seassim estiverdes disposto. Se achais, porém, que não devemosfazê-lo, obedeceremos do mesmo modo. Não vos desencorajeis,todavia. Os gregos não contam com recursos suficientes parauma guerra prolongada, e não poderão evitar nem a escravidãonem o ajuste de contas final que então exigireis pelo presente epelo passado. Eis como, na minha opinião, deveis proceder,senhor; mas se estiverdes resolvido a bater em retirada com ovosso exército, não permitais, senhor, que os persas sirvam dejoguete aos gregos. Vossos interesses ainda não foramprejudicados por culpa dos persas, e não podeis acusar-nos denos termos portado covardemente em qualquer circunstância. Seos fenícios, os egípcios, os cíprios e os cilícios não cumprirambem o seu dever, a culpa deles não nos atinge, e não deveisvoltá-la contra nós. Por conseguinte, senhor, não sendo ospersas os culpados do vosso insucesso, dignai-vos seguir o meuconselho. Se, não obstante, estiverdes decidido a nãopermanecer aqui por mais tempo, voltai para os vossosdomínios; mas dai-me trezentos mil homens à minha escolha, etudo farei para submeter a Grécia ao vosso jugo”.

CI — Xerxes, sentindo com essas palavras sua doracalmar-se e a alegria renascer-lhe na alma, respondeu aMardônio que ia pensar bem na sua sugestão e que depois lheanunciaria suas intenções. Enquanto deliberava sobre o assuntocom os persas que havia convocado, desejou o soberano ouvirtambém a opinião de Artemisa, em cujos conselhos depositarasempre maior confiança do que nos dos outros. Mandou, pois,chamá-la, e quando ela chegou, ordenou aos persas e aosguardas que se retirassem do recinto da conferência, e falou-lhenestes termos:

“Mardônio exorta-me a permanecer aqui e a atacar oPeloponeso, procurando mostrar-me que os persas e as minhas

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forças de terra nada têm a ver com o insucesso que vimos deexperimentar. Oferece-se mesmo para dar-me provas disso.Insinua-me, também, a tentar novamente a sorte das armas, ou avoltar para os meus Estados com as minhas tropas, deixando-lhetrezentos mil homens de sua escolha, com os quais me prometesubjugar a Grécia. Dize-me, Artemisa, tu que tãoprudentemente me aconselhaste a não oferecer combate navalaos gregos, qual dos dois partidos devo tomar?”.

CII — “Senhor — respondeu Artemisa —, é difícilindicar-vos o melhor caminho; mas, nas circunstânciaspresentes, acho que deveis regressar à Pérsia, deixando aquiMardônio com as tropas que vos pede. Já que ele assim odeseja, que tente subjugar a Grécia. Se ele for bem sucedido,tereis todas as honras da façanha, pois essa conquista terá sidoobra dos vossos escravos. Se, ao contrário, a empresa não forcoroada de êxito, como ele espera, isso não constituirá umagrande infelicidade para vós, uma vez que continuais vivendo evossa casa se mantém florescente. Enquanto viverdes e vossacasa subsistir, os Gregos terão de sustentar muitas batalhas paradefender sua liberdade. Se Mardônio sofrer um revés, poucoimporta. Levando à derrota e à morte um dos vossos servos, osGregos só terão alcançado com isso uma fraca vantagem sobrevós. Não deveis, todavia, senhor, regressar sem haverdes ateadofogo à cidade de Atenas, como o prometestes ao empreenderesta expedição”.

CIII — Essa opinião de Artemisa agradou sobremaneiraa Xerxes, tanto mais que ela se coadunava com a sua própriamaneira de pensar. Não obstante, ainda que todos os seus oaconselhassem a permanecer e continuar a luta, creio que elenão o teria feito, de tal maneira se achava aterrorizado. Depoisde fazer os maiores elogios a Artemisa, disse-lhe que partissepara o Éfeso levando em sua companhia alguns dos seus filhosnaturais que se haviam incorporado à expedição. Hermotimo dePédaso, que ocupava lugar de destaque entre os eunucos do

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soberano, foi encarregado de acompanhá-los e protegê-los.

CIV — (Os Pedásios habitam ao norte de Halicarnasso.Dizem que quando se encontram ameaçados por algumadesgraça, tanto eles como os seus vizinhos vêem crescer umalonga barba na sacerdotisa de Minerva, que vive em Pédaso, eque esse fenômeno já se verificou em duas ocasiões.)

CV — Não conheço ninguém que mais cruelmente setenha vingado de uma injúria do que esse Hermotimo. Tendosido, certa vez, capturado por inimigos, foi vendido a Paniônio,da ilha de Quios. Paniônio vivia de um tráfico infame:comprava jovens de bela aparência e reduzia-os à condição deeunucos, conduzindo-os a Sardes e ao Éfeso, onde os vendia amuito bom preço; pois a fidelidade dos eunucos tornava-os,entre os bárbaros, mais apreciados do que os outros homens.Vivendo desse tráfico, como já disse, Paniônio reduziu a essatriste condição grande número de jovens, entre os quaisHermotimo. Este, porém, não foi dos mais infelizes: levado paraSardes entre outros presentes destinados a Xerxes, conseguiu,em pouco tempo, conquistar junto ao soberano um prestígiomaior do que todos os outros eunucos.

CVI — Quando Xerxes se encontrava em Sardes edispunha-se a lançar suas forças contra a Grécia, Hermotimo,indo desempenhar certa missão em Atárnea, cantão da Mísia,cultivado pelos habitantes de Quios, ali encontrou Paniônio.Tendo-o reconhecido, testemunhou-lhe a maior amizade, e,começando por enumerar todos os bens que ele, Paniônio, lhehavia feito, disse-lhe que estava disposto a fazer-lhe outrostantos em sinal de reconhecimento, se seu antigo senhorquisesse estabelecer-se, com toda a família, em Sardes.Paniônio, encantado com o oferecimento, transferiu-se paraSardes, instalando-se na casa de Hermotimo, com a mulher e osfilhos. Quando o teve em seu poder juntamente com a família, oeunuco assim lhe falou: “Oh homem vil e infame! Tu, o mais

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torpe de todos os homens; que ganhas a vida com a mais iníquadas profissões! Que mal te havíamos feito, eu e os meus, parame privares do meu sexo, reduzindo-me a um farrapo dehomem? Imaginaste, porventura, que os deuses ignorariam a tuaação nefanda? Celerado! Por um justo castigo, eles te lançaram,por meio de um ardil, às minhas mãos, a fim de que pudessessofrer a pena que te vou aplicar”. Isso dizendo, Hermotimomandou buscar os quatro filhos de Paniônio e obrigou-o amutilá-los ele próprio. Paniônio, ante a atitude decidida doeunuco, não teve outro remédio senão executar as ordens.Hermotimo obrigou, em seguida, os meninos a fazerem amesma operação no pai, vingando-se assim do ultraje quesofrera.

CVII — Tendo confiado os filhos a Artemisa, a fim deque ela os conduzisse para o Éfeso, Xerxes mandou chamarMardônio e ordenou-lhe que escolhesse, em todo o exército, astropas que desejava, dizendo-lhe que agisse de maneira acumprir a promessa que lhe fizera. Nesse mesmo dia, aoanoitecer, os comandantes da frota partiram de Faleros, porordem do soberano, com os navios que lhes restavam,dirigindo-se para o Helesponto com a maior celeridade possível,a fim de guardar as pontes por onde Xerxes devia passar.Quando os bárbaros chegaram próximo a Zóster(11), tomarampor navios os pequenos promontórios que avançam mar a dentronaquele ponto, e ficaram de tal maneira aterrorizados, quefugiram em desordem. Reconhecendo, afinal, o equívoco,reuniram-se novamente e prosseguiram viagem.

CVIII — Quando o dia surgiu, os gregos, vendo asforças terrestres persas no mesmo lugar, julgaram que os naviosinimigos se achavam também em Faleros; e, supondo que osinvasores iam oferecer-lhes outra batalha, prepararam-se paradefender-se. Quando, porém, souberam da partida da frota,resolveram imediatamente sair em sua perseguição. Navegaramaté Andros, tentando localizá-la; mas não o conseguindo,

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aportaram a essa ilha, onde se reuniram para deliberar.Temístocles foi de parecer que deviam continuar perseguindo oinimigo através do mar Egeu, seguindo depois diretamente parao Helesponto, a fim de destruir as pontes por onde deveriamregressar os bárbaros. Euribíadss opinou de modo contrário,achando que, se as pontes fossem destruídas, tal fato acarretariagrandes desgraças para a Grécia, pois se o soberano tivesse aretirada cortada e fosse obrigado a permanecer na Europa, haviade aliciar novas tropas contra os Gregos; ao passo que sefugisse, seus exércitos podiam ser mais facilmente atacados.Esse parecer recebeu a aprovação dos generais do Peloponeso.

CIX — Temístocles, vendo que não conseguiriapersuadir a maioria dos aliados a seguir para o Peloponeso,mudou de tática, e, voltando-se para os atenienses, que semostravam indignados por se deixar escapar o inimigo equeriam, à viva força, ir ao Peloponeso, mesmo que os aliadosnão os seguissem, assim lhes falou: “Já tenho me encontrado emsituações semelhantes a esta, e com freqüência ouvi falar detropas vencidas e com o moral abatido que conseguiramrecuperar a energia e reagir com denodo num novo encontrocom seus adversários. Assim, pois, atenienses, já queconseguimos dissipar, contra nossa expectativa, essaameaçadora nuvem de bárbaros, não devemos perseguir oinimigo que foge. Não são às nossas forças que devemos essavitória, mas aos deuses e aos heróis, que se sentiram revoltadoscontra a ação de um mortal, de um ímpio, de um celerado, que,sem estabelecer distinção entre o sagrado e o profano, mandouqueimar os templos e destruir as estátuas das divindades,mandou fustigar o mar e aplicar-lhe um ferro em brasas. Eles,os deuses e os heróis, não puderam admitir que esse homemtivesse em suas mãos o império da Ásia e da Europa. Já que operigo foi afastado, permaneçamos tranqüilos no nosso país eocupemo-nos de nós mesmos e de nossas famílias. Que cada umtrate da reorganização da sua casa e se entregue com entusiasmoao cultivo de suas terras. Na volta da Primavera iremos, então,

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ao Helesponto e à Iônia”. Temístocles assim se expressavatendo em mente atrair as boas graças do soberano persa e nosseus domínios encontrar asilo no caso de os Atenienseslevantarem contra ele alguma questão perigosa, o que, narealidade, não deixou de acontecer.

CX — Essas palavras ardilosas convenceram osatenienses presentes às deliberações, que estavam tanto maisdispostos a acreditar em Temístocles quanto o tinham em contade homem sensato, que tantas provas já lhes dera de suaprudência e espírito esclarecido. Logo que viu sua opiniãoaceita pelos atenienses, Temístocles enviou ao encontro dosoberano um bote com emissários de sua inteira confiança eincapazes de revelar a quem quer que fosse o que lhes foraconfiado, ainda que fossem submetidos a torturas. Entre essesmensageiros figurava o escravo Sicínio. Atingindo a costa daÁtica, Sicínio, deixando os companheiros no bote, foi em buscade Xerxes, dirigindo-se a ele nos seguintes termos:“Temístocles, filho de Néocles, general dos Atenienses, o maisbravo e o mais hábil de todos os aliados, enviou-me aqui paradizer-vos que, zeloso dos vossos interesses, logrou reter osgregos que queriam perseguir a vossa frota e destruir as pontesque lançastes sobre o Helesponto. Podeis, pois, agora,retirar-vos tranqüilamente”. Feita a comunicação, osmensageiros fizeram-se de regresso.

CXI — Os gregos, tendo resolvido não mais perseguir afrota dos bárbaros e não destruir as pontes do Helesponto,cercaram Andros, com o propósito de destruí-la. Os habitantesdessa ilha tinham sido os primeiros a recusar a Temístocles odinheiro que este lhes exigira. Tendo o general, ao fazer-lhes opedido, alegado que eles não poderiam deixar de fazer umdonativo a duas grandes divindades — a Persuasão e aNecessidade, que assistiam os Atenienses — responderam elesque Atenas, protegida por essas duas divindades, era, com muitarazão, rica e florescente, e o território de Andros, ao contrário,

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pouco favorecido, isso porque duas divindades perniciosas, aPobreza e a Incapacidade, se compraziam em persegui-los, nãoquerendo jamais abandonar a ilha. Assim, estando em poderdessas divindades, não tinham meios para fornecer o dinheiroque lhes era solicitado, e que nunca o esplendor de Atenas seriamaior que a precariedade de Andros.

CXII — Ávido de dinheiro, Temístocles mandou pedi-loaos outros insulares pelos mesmos emissários, que lhes falaramna mesma linguagem, ameaçando, em caso de recusa, desitiá-los e massacrá-los a todos. Por esse meio conseguiuTemístocles obter grandes somas dos Carístios e dos Pários,receosos de represálias, pois sabiam do prestígio de que elegozava perante os generais. Ignoro se outros insularescontribuíram também, mas sinto-me inclinado a crer queaqueles não foram os únicos. Nem por isso, todavia, os Carístiosforam deixados tranqüilos. Somente os Pários conseguiramapaziguar Temístocles com altas somas de dinheiro eesquivar-se ao ataque dos gregos. Foi assim que Temístocles, naignorância dos outros generais, explorou os insulares durantesua permanência em Andros.

CXIII — Depois de terem permanecido alguns dias naÁtica, as forças terrestres persas tomaram o caminho da Beócia,o mesmo caminho que haviam percorrido antes para a invasãoda Grécia. Mardônio julgara conveniente acompanhar osoberano, porque a estação não era propícia às operações deguerra e por considerar mais vantajoso passar o Inverno naTessália, para atacar os Gregos no começo da Primavera. Assimque chegou à Tessália, escolheu para compor seu exército todosos persas chamados Imortais, com exceção de Hidarnes,comandante destes últimos, que não quis abandonar o rei.Lançou mão, em seguida, entre os outros persas, doscouraceiros e de um grupo de mil cavaleiros, aos quais juntoutodas as tropas medas, sácias, bactrianas e indianas, tanto deinfantaria como de cavalaria. Do restante dos aliados não retirou

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senão um pequeno número, preferindo os homens mais belos eos que já haviam praticado feitos notáveis e cuja bravura lhe eraconhecida. Escolheu também a maioria dos persas que traziamcolares e braceletes, e um número igual de medos, inferiores,porém, em força aos persas. Essas tropas reunidas perfaziam umtotal de trezentos mil homens, incluindo também a cavalaria.

CXIV — Enquanto Mardônio formava seu exército eXerxes permanecia nas imediações da Tessália, chegou para osLacedemônios um oráculo de Delfos ordenando-lhes quepedissem a Xerxes justiça pela morte de Leônidas, aceitando oque ele fizesse nesse sentido. Imediatamente, os Espartanosenviaram um arauto ao encontro de Xerxes. Ao chegar àpresença do soberano, que ainda se achava na Tessália com oexército, assim lhe falou: “Rei dos Persas; os Lacedemônios eos Espartanos partidários de Héracles pedem justiça pela mortede seu rei, abatido pelos vossos em combate pela defesa daGrécia”. A essas palavras, Xerxes pôs-se a rir, e depois deguardar silêncio por alguns momentos, respondeu apontandopara Mardônio, que se achava presente: “Eis aí quem há-defazer o que convém no caso”. O arauto aceitou a resposta eregressou para dar conta da sua missão.

CXV — Xerxes, deixando Mardônio na Tessália,apressou-se a ganhar o Helesponto, atingindo, em quarenta ecinco dias, a passagem do estreito. Não levava consigo senãouma pequena parte do exército; mas, por onde passavam, astropas iam lançando mão das colheitas que encontravam,alimentando-se, na falta disso, com a erva dos campos e folhasde árvores selvagens ou cultivadas. Aproveitavam tudo que lhespudesse servir de alimento, tal a fome que os devorava.Sobrevieram, logo depois, a peste e a desinteria, dizimandogrande parte delas. Xerxes ia deixando os enfermos nas cidadespor onde passava, incumbindo os magistrados de tratá-los ealimentá-los. Alguns ficaram em terras da Tessália; outros emSiris, na Peônia, e outros ainda na Macedônia. Quando

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marchava contra a Grécia, Xerxes deixara na Macedônia o carrosagrado de Júpiter, e na volta não mais o encontrou: os Peôniostinham-no oferecido aos Trácios. Quando o soberanoreclamou-o, responderam-lhe que os cavalos tinham sidocapturados nas pastagens por habitantes da Trácia Superior, quevivem nas proximidades das nascentes do Estrímon.

CXVI — Foi nesse país que o rei dos Bisaltos e daCrestónica, trácio de nascimento, praticou uma ação bem atroz.Depois de haver declarado que jamais se submeteriavoluntariamente a Xerxes, retirou-se para o monte Ródope, eproibiu os filhos de tomarem armas contra a Grécia. Mas, oupor desprezo às ordens do pai, ou por entusiasmo diante daguerra, os jovens juntaram-se ao exército persa. Ao voltarem,sãos e salvos, da expedição, o pai mandou arrancar-lhes osolhos, punindo-os assim pela sua desobediência.

CXVII — Deixando a Trácia, as forças persas atingiramrapidamente o estreito, apressando-se a atravessar o Helespontoem seus navios para alcançar Abido, porque as pontes de batéisjá não existiam, destroçadas que foram pela tempestade. Tendofeito uma curta permanência nesses lugares e encontradovíveres em maior abundância do que durante a marcha,comeram em excesso, o que juntamente com a mudança declima, fez perecer grande parte das tropas que restavam. Asoutras atingiram finalmente Sardes, e com elas Xerxes.

CXVIII — A retirada desse soberano é também contadada seguinte maneira: Chegando a Éjon, sobre o Estrímon,resolveu não continuar a rota por terra; e, deixando Hidarnesencarregado de conduzir o exército através do Helesponto,embarcou num navio fenício, que o transportou para a Ásia.Durante a viagem, ergueu-se do Estrímon um vento impetuoso,que, provocando imensos vagalhões, pôs em perigo aembarcação, tanto mais que esta se achava sobrecarregada pelogrande número de persas que vinham em companhia de Xerxes.

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Este, atemorizado e receando pela sua segurança, gritou para opiloto, perguntando-lhe se havia alguma esperança de salvação.“Há alguma esperança, senhor, se aliviarmos o barco de grandeparte dos passageiros”. Acrescenta-se que, ouvindo essaresposta, Xerxes dirigiu-se aos persas, dizendo-lhes: “Cabe avós mostrar agora o zelo que tendes pelo vosso rei; minha vidadepende de vós”. Imediatamente os persas, prosternando-se anteo soberano, correram para a amurada, lançando-se ao mar. Aembarcação, aliviada da carga, pôde enfrentar mais facilmente atormenta, chegando o rei são e salvo à Ásia. Dizem ter ele, aodesembarcar, oferecido uma coroa de ouro ao piloto por lhehaver salvo a vida, mandando, em seguida, cortar-lhe a cabeça,por ter causado a perda de um grande número de guerreirospersas.

CXIX — Esta maneira de contar a retirada de Xerxesnão me parece verossímil por muitas razões e, principalmente,no que diz respeito ao destino trágico daqueles persas. Comefeito, se realmente o piloto declarou ao soberano que eranecessário aliviar o navio, o soberano teria achado preferívelsacrificar os remadores fenícios do que os combatentes persas,tanto mais que estes eram pessoas de alta categoria, figurandoentre os primeiros da sua corte. O certo é que, como já disseacima, Xerxes regressou por terra à Ásia, com o remanescentedo seu até então invencível exército.

CXX — Como prova disso, cita-se o fato de ter ele, emseu regresso, passado por Abdera, onde conquistou a amizadedos habitantes, que o presentearam com uma cimitarra de ouro euma tiara tecida do mesmo metal. Foi nessa cidade, segundodizem os próprios habitantes, que Xerxes desapertou a cinturapela primeira vez desde sua partida de Atenas, como se só entãose sentisse livre de todo receio. Esse detalhe, todavia, não meparece aceitável, uma vez que Abdera fica mais para o lado doHelesponto do que do Estrímon e de Éjon, onde se diz ter osoberano embarcado.

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CXXI — Não conseguindo capturar Andros, os gregosvoltaram suas armas contra Caristo, e depois de lhe haveremdevastado o território, retornaram a Salamina. Dos despojosobtidos do inimigo no combate naval destinaram aos deusesuma boa parte, inclusive três navios fenícios, um dos quaisenviaram para o istmo, para ali ser consagrado aos referidosdeuses. Esse navio ainda existia no meu tempo. Outra das trêsembarcações foi enviada para Súnio, sendo a terceira dedicada aÁjax, na ilha de Salamina. Outra parte dos despojos da luta foienviada para Delfos, tendo-se também feito uma estátua de dozecôvados de altura, em cujas mãos trazia um esporão de navio.Essa estátua está colocada perto da estátua de ouro deAlexandre, rei da Macedônia.

CXXII — Depois de terem enviado essas oferendas aDelfos, os gregos mandaram perguntar ao deus, em nome detodos os aliados, se ele as tinha realmente recebido e se estavasatisfeito com as mesmas. O deus respondeu havê-las recebidode todos os gregos, exceto dos Eginetas, dos quais exigia umpresente, pois que foram eles os que mais se tinham distinguidona batalha naval de Salamina. Ante essa resposta, os Eginetasapressaram-se a enviar-lhe três estrelas de ouro, que ainda hojepodem ser vistas no templo, sobre um mastro de bronze, pertoda cratera oferecida por Creso.

CXXIII — Repartidos os despojos, os gregos abriramvelas para o istmo, a fim de oferecer o prêmio de mérito àqueleque mais se havia distinguido na guerra. Logo que ali chegaram,os generais distribuíram entre si as esferas, junto ao altar deNetuno, para dar o seu voto àqueles que lhes pareciam dignosdo primeiro e do segundo prêmio. Para o primeiro prêmio, cadageneral, julgando ter-se distinguido mais do que os outros,sufragou seu próprio nome; mas para o segundo, a maioriaconcordou em votar em Temístocles. Dessa maneira, cadageneral não teve senão um voto, enquanto que Temístoclesobteve a quase totalidade dos votos para o segundo prêmio.

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CXXIV — Embora a inveja tivesse impedido os gregosde formular um julgamento sobre a primazia do mérito,regressando cada qual à sua cidade e deixando o caso sem asolução desejada, Temístocles não foi por isso menos celebrado,passando em toda a Grécia como o mais notável dos gregos.Notando que aqueles com os quais havia combatido não lhetributavam as homenagens devidas pela vitória, dirigiu-se àLacedemônia, logo depois da partida dos aliados, a fim dereceber ali as honras de que se julgava merecedor. OsLacedemônios receberam-no magnificamente e da maneira maishonrosa possível. Ofereceram, é verdade, uma coroa de oliveiraa Euribíades, como prêmio de sua bravura; mas concederam aTemístocles o prêmio de prudência e habilidade, coroando-otambém com oliveira. Presentearam-no, além disso, com o maisbelo carro existente em Esparta; e, depois de novasmanifestações de apreço e admiração, trezentos espartanos deelite, chamados cavaleiros, escoltaram-no, no seu regresso, atéas fronteiras da Tégea(12). De todos os homens queconhecemos, este foi o único a quem os Espartanos renderamessa homenagem de conduzi-lo até a fronteira de regresso à suapátria.

CXXV — Quando Temístocles chegou a Atenas devolta da Lacedemônia, Timodemo de Afidnas, bem conhecidopelo ódio que lhe votava e pela inveja de que se achavaanimado contra ele, censurou-o pela sua viagem a Esparta,dizendo-lhe que os Lacedemônios não lhe haviam tributadohomenagens em atenção à sua pessoa, ao seu mérito, mas emconsideração à cidade de Atenas. E como repetisseconstantemente essa observação, Temístocles respondeu-lhe:“Tens razão; se eu fosse belbinita não teria recebido tantashomenagens em Esparta, e jamais eles te fariam tal coisa,mesmo que fosses ateniense”.

CXXVI — Enquanto isso se passava, Artabazes, filhode Fárnaces, que de há muito gozava de alta reputação entre os

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Persas, reputação que aumentara ainda mais com a batalha dePlateia, acompanhou o soberano até a passagem do Helesponto,com sessenta mil homens do exército que Mardônio haviaescolhido. Depois de Xerxes haver passado para a Ásia,Artabazes, encontrando-se, de regresso, nas imediações dapenínsula de Palene e vendo que Mardônio, que estabeleceraseu quartel de inverno na Tessália e na Macedônia, não seapressava a reunir-se a ele, resolveu submeter novamente osPotideus ao jugo dos Persas. Esse povo, a cujas vizinhanças oacaso levara as tropas de Artabazes de regresso do Helesponto,tinha-se revoltado abertamente contra os bárbaros logo depoisda debandada da frota persa e da partida do rei, sendo seuexemplo seguido pelos outros habitantes da península dePalene.

CXXVII — Tendo tomado essa resolução, Artabazescercou Potidéia, e, supondo que os Olíntios tencionavamtambém revoltar-se contra o soberano, cercou-os também. Acidade destes últimos estava, naquele tempo, ocupada pelosBotiênios, que tinham sido expulsos do golfo de Terma pelosMacedônios. Apoderando-se da cidade, Artabazes mandoudegolar os habitantes perto de um pântano e instalou na cidadehabitantes da Calcídia, confiando o governo a Critóbulo deTorone. Foi assim que os Calcídios tornaram-se senhores deOlinto.

CXXVIII — Depois da tomada dessa praça, Artabazesocupou-se do cerco de Potidéia. Timoxenes, comandante dosCioneus, vendo-o disposto a assenhorear-se da cidade,propôs-se, ao cabo de entendimentos, a entregá-la semderramamento de sangue. Não se sabe como tiveram origem osentendimentos entre ambos, e nada posso dizer sobre isso. Ocerto é que, todas as vezes que Timoxenes e Artabazes queriamcorresponder-se prendiam uma carta a uma flecha elançavam-na em local previamente combinado. A traição deTimoxenes foi descoberta da seguinte maneira: Artabazes,

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querendo atirar no local combinado a flecha, esta desviou-se dasua trajetória e foi atingir o ombro de um habitante da Potidéia.Como acontece em tais ocasiões, vários moradores cercaramlogo o ferido. Tomando a flecha que o atingira e notando havernela uma carta, apressaram-se a levá-la aos outros comandantes.A leitura da missiva revelou-lhes o autor da traição. Oscomandantes, todavia, acharam que não deviam acusarTimoxenes desse crime, em atenção à cidade de Cione, pois nãodesejavam que, no futuro, os Ciônios passassem a serconsiderados traidores. Assim foi descoberta a conspiração deTimoxenes visando a entrega da cidade aos persas que acercavam.

CXXIX — Havia já três meses que Artabazes cercavaPotidéia, quando se deu um refluxo considerável das águas, quedurou muito tempo. Os atacantes, vendo que a passagem setornara vadeável, aproveitaram a ocasião para penetrar emPalene. Já haviam coberto dois quintos do percurso, faltandoainda três para alcançar o ponto visado, quando, seguindo-se aorefluxo sobreveio um fluxo tremendo, o maior já verificado nopaís até aquela data, segundo afirmaram os habitantes. Osatacantes que não sabiam nadar foram tragados pelas águas, eos que sabiam foram massacrados pelos Potideus, que osperseguiram em botes. Os Potideus atribuem esse imenso fluxoe o desastre dos invasores persas a Netuno, que assim fezperecer nas águas os que haviam profanado seu templo einsultado sua estátua, opinião essa que me parece aceitável.Após o desastre, Artabazes foi reunir-se a Mardônio, naTessália, com o restante de suas tropas.

CXXX — Chegando à Ásia e depois de ter transportadoo soberano e suas tropas do Quersoneso para Abido a forçanaval persa que restou do desastre de Salamina dirigiu-se paraCimo, onde passou o Inverno. No começo da Primavera, foiconcentrar-se em Samos, onde alguns navios haviam passado aestação hibernal. As tropas que se achavam a bordo eram, em

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sua maioria, persas e medas. Com elas tinham vindo doisgenerais: Mardontes, filho de Bageu, e Artaintes, filho deArtaqueu, que se havia associado ao seu sobrinho Itamitres epartilhado com ele do comando. Em vista do tremendo revéssofrido pelos persas na batalha de Salamina, acharam eles quenão deviam avançar muito para o ocidente, evitando assimencontrar pela frente forças gregas mais consideráveis do que assuas. Tinham ainda sob seu comando trezentos navios,compreendendo os dos iônios, dos quais se utilizaram pararegressar a Samos, a fim de guardar a Iônia e impedi-la derevoltar-se. Estavam convencidos de que os gregos não viriam àIônia, achando que eles se contentariam em defender seupróprio país; e essa hipótese lhes parecia tanto mais provávelquanto em lugar de persegui-los depois da batalha de Salamina,os gregos se haviam contentado em retirar-se. Os Persas, porém,estavam convencidos de que tinham sido irremediavelmentebatidos no mar, considerando, todavia, que em terra Mardônioconseguiria com suas tropas grandes vantagens. Enquanto seachavam em Samos e deliberavam sobre os meios de prejudicara ação dos inimigos, mantinham-se atentos às manobras deMardônio, procurando ver o que aconteceria.

CXXXI — A chegada da Primavera e a presença deMardônio na Tessália vieram despertar os gregos e pô-los desobreaviso. Seu exército de terra ainda não se havia reunido,mas a frota, composta de cento e dez navios, já partira paraEgina. Comandava-a Leotíquides. Entre os ancestrais dessepríncipe contavam-se Menares, Agesilau, Hipocrátides,Leotíquides, Anaxilas, Arquidamo, Anaxandrides, Teopompo,Nicandro, Carilo, Êunomo, Polidectes, Prítanis, Eurífon,Procles, Aristodemo, Aristômaco, e Cleodeu, filho de Hilo eneto de Hércules. Pertencia ele à segunda casa real, e todos osseus ancestrais, com exceção dos sete citados após Leotíquides,tinham sido reis de Esparta. As tropas atenienses eramcomandadas por Xantipo, filho de Arífron.

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CXXXII — Quando a frota chegou a Egina, osembaixadores dos Iônios, entre os quais se achavam Heródoto,filho de Basilides, vieram ao encontro dos gregos. Eram osmesmos que, algum tempo antes, haviam estado em Espartapedindo aos Lacedemônios para restituírem a liberdade à Iônia.Eram, inicialmente, em número de sete, e tinham tramado entresi a morte de Estrátis, tirano de Quios; mas, denunciados porum dos companheiros, seis deles retiraram-se secretamente paraEsparta, depois para Egina, a fim de convencer os gregos a sedirigirem para a Iônia. Não lhes foi, contudo, fácil levá-los atéDelos, pois tudo que se encontrava adiante dessa ilhaaterrorizava os gregos, que, não conhecendo bem a região,julgavam-na cheia de tropas inimigas. Mesmo Samos lhesparecia tão distante quanto as colunas de Hércules. Assim,enquanto os bárbaros, amedrontados, não ousavam avançar paraocidente, além de Samos, os gregos, por sua vez, a despeito dasreiteradas solicitações dos habitantes de Quios, não avançaramalém de Delos, do lado do oriente. O temor impedia, uns eoutros, de transpor o espaço que os separava.

CXXXIII — Enquanto os gregos se encaminhavam paraDelos, Mardônio, que havia passado o Inverno na Tessália,punha-se em marcha com o seu exército, encarregando, aopartir, um europeu de nome Mis, de consultar o oráculo,ordenando-lhe que se dirigisse a qualquer lugar onde lhe fossepossível interrogar os deuses. Ignoro o que Mardônio desejavasaber dos oráculos e quais as ordens que dera ao seu emissário.Penso, todavia, que ele desejava saber algo sobre a situaçãopresente.

CXXXIV — Sabe-se que Mis foi a Lebadéia e que,tendo obtido com dinheiro a ajuda de um natural do país, desceuao antro de Trofônio(13), dirigindo-se, em seguida, ao oráculode Abas(14), na Fócida, e depois a Tebas, onde, logo ao chegar,consultou Apolo Ismênio pela chama das vítimas, como sepratica também em Olímpia. Igualmente por dinheiro obteve de

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um estrangeiro permissão para dormir no templo de Anfiarau,onde não é permitido a nenhum cidadão de Tebas consultar ooráculo, e isso pela razão seguinte: tendo Anfiarau concitado osTebanos, por meio de oráculos, a escolhê-lo para seu adivinhoou para seu aliado, os Tebanos o preferiram como aliado. Poresse motivo, foi-lhes vedado dormir no templo de Anfiarau.

CXXXV — Mis, tendo corrido todos os oráculos, foi terao templo de Apolo Ptous. Esse templo, conhecido peladesignação de Ptoon, pertencia aos Tebanos, estando situado aonorte do lago Cópais, ao pé de uma montanha, perto da cidadede Acréfia. Chegando ao templo, três cidadãos escolhidos pelarepública acompanharam-no para anotar a resposta do oráculo.O profeta respondeu em língua bárbara à consulta de Mis, e ostebanos que o acompanhavam mostraram-se espantados aoouvirem falar uma língua diferente da grega. Mis, vendo-osembaraçados, sem saber o que fazer em tal circunstância,arrancou-lhes os tabletes das mãos e escreveu, ele próprio, aresposta ditada pelo profeta, que era, segundo dizem, em línguacária, retornando, em seguida, à Tessália.

CXXXVI — Mardônio, tomando conhecimento dasrespostas dos oráculos, enviou como embaixador, a Atenas,Alexandre da Macedônia, filho de Amintas. Escolheu estepríncipe porque ele se havia ligado por laços de família aosPersas, pois sua irmã Gigéia, filha de Amintas, desposara umpersa chamado Bubares, do qual tivera um filho a que dera onome do avô, Amintas. Esse Amintas achava-se, então, na Ásia,tendo sido presenteado pelo rei com a cidade de Alabanda, umadas mais florescentes da Frígia. Mardônio escolheu tambémAlexandre por saber que o mesmo se achava ligado aosAtenienses pelas leis da hospitalidade, sendo considerado poreles como um benfeitor. Imaginou que, por intermédio dele,viria a reconciliar-se com os Atenienses, sobretudo, dos quaisouvira falar como um povo numeroso e valente, e que ele sabiater sido o que mais contribuíra para a derrota dos Persas no mar.

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Acreditava que, se conseguisse a aliança dos Atenienses,poderia tornar-se facilmente senhor do mar. Como se supunhamuito mais forte em terra do que os Gregos, contava vir a tergrande superioridade sobre eles. É bem possível também que osoráculos que havia consultado lhe tivessem aconselhado a fazeressa aliança, e que tenha sido essa a razão pela qual ele delegoupoderes a Alexandre.

CXXXVII — Alexandre descendia, em sétimo grau, dePérdicas, que se apoderou da coroa da Macedônia, da maneiraque passo a relatar. Gaianes, Aérope e Pérdicas, todos irmãos edescendentes de Temeno(15), viram-se, pelas circunstâncias,obrigados a fugir para Argos, na Ilíria, e, passando de lá para aAlta Macedônia, foram ter à cidade de Lebéia, onde seengajaram no serviço do rei por determinada remuneração. Umtratava dos cavalos; outro dos bois; e Pérdicas, o mais jovem,guardava o gado miúdo; pois outrora, não somente asrepúblicas, mas as próprias monarquias, não gozavam de boasituação financeira. Era a própria rainha quem lhes preparava acomida. Começou ela a observar que todas as vezes que o pãodo jovem Pérdicas, que a auxiliava na cozinha, saía do forno,vinha com o dobro do tamanho que tinha ao ser ali colocado.Admirada com o fato, que se repetia sempre, comunicou-o aomarido. O rei atribuiu logo o fato a um milagre, considerando-oo presságio de algum acontecimento importante. Mandando virà sua presença os três irmãos, ordenou-lhes que deixassem osseus domínios. Os jovens apenas declararam, em resposta, queera de justiça receberem antes o seu salário. Ao ouvir a palavrasalário, o rei respondeu à maneira de um homem a quem osdeuses tivessem perturbado a razão. “Dou-vos o sol (o solpenetrava na casa pela abertura da chaminé); esse salário édigno de vós”. Ante essa resposta, os dois irmãos mais velhos,Gaianes e Aérope, ficaram atônitos, sem saber o que dizer; masPérdicas, o mais jovem, retrucou ao soberano: “Senhor,aceitamos a oferta que nos fazeis”. Isso dizendo, tomou a facaque trazia consigo e traçou no espaço uma linha imaginária em

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torno do raio de sol que entrava na sala, e depois de o haveratravessado três vezes, afastou-se dali com os irmãos.

CXXXVIII — Logo que deixaram a casa, uma daspessoas que se achavam perto do rei advertiu-o sobre asintenções que poderia alimentar o mais jovem dos irmãos aoaceitar tão prontamente o oferecimento que lhe fora feito. O rei,entre receoso e irado, enviou cavaleiros ao encalço dos trêsirmãos, com ordem de matar o mais jovem. Existe, nesse país,um rio ao qual os descendentes de Argos oferecem sacrifícios,como a um libertador. Logo que os três irmãos o atravessaram,suas águas se avolumaram de tal forma, que seus perseguidoresnão puderam passar. Chegando a um outro cantão daMacedônia, os jovens estabeleceram-se perto dos jardins que,segundo dizem, pertenceram a Midas, filho de Górdio, ondecrescem espontaneamente rosas de sessenta pétalas, cujoperfume é mais suave do que o de quantas crescem em outraspartes. Foi também nesses jardins que Sileno foi preso, comocontam os Macedônios. Pouco adiante do referido local fica omonte Bérmio, inacessível no Inverno.

CXXXIX — Alexandre descendia de Pérdicas, o maisjovem dos três irmãos de que acabo de falar, pela linhaseguinte. Amintas, seu pai, era filho de Alcetas; Alcetas, deAérope; Aérope, de Filipe; Filipe, de Argeu, e este de Pérdicas,que havia conquistado o reino. Tal a genealogia de Alexandre,filho de Amintas.

CXL — Chegando a Atenas, como delegado deMardônio, Alexandre dirigiu estas palavras ao povo:“Atenienses, aqui estou para vos falar em nome de Mardônio epara vos transmitir esta mensagem que lhe confiou o rei econcebida nos seguintes termos: “Perdôo aos Atenienses todasas faltas. Executa, pois, as minhas ordens, Mardônio;devolve-lhes o país que lhes pertencia, e que eles escolhamainda outro à vontade e ali vivam segundo suas próprias leis. Se

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eles quiserem fazer aliança comigo, ergue de novo todos ostemplos que queimei”. E prosseguia a mensagem, como sefalasse agora Mardônio: “Foram essas as ordens que recebi, eestou disposto a cumpri-las, a menos que do vosso ladocoloqueis algum obstáculo. Dirijo-vos agora a palavra em meunome. De onde veio essa loucura de fazer guerra ao soberanopersa? Não o vencereis jamais e não podereis resistir-lheindefinidamente. Conheceis muito bem os grandesempreendimentos de Xerxes e suas legiões de soldados. Jáouvistes também falar das forças de que disponho. Mesmo queobtivésseis vantagem sobre mim; mesmo que lográsseis avitória — o que não podeis esperar, se sois sensatos — teríeisde enfrentar outros exércitos ainda mais fortes. Não vosarrisqueis, querendo igualar-vos ao rei, a ficar privados de vossapátria, se não da própria vida. Reconciliai-vos, pois, comXerxes; aproveitai a ocasião, jamais se vos apresentará outra emque o possais fazer em condições tão honrosas. O rei vos exorta;sede livres e firmai conosco uma aliança sincera, sem fraudenem dolo”.

“Eis aí, Atenienses — prosseguiu Alexandre —, o queMardônio me encarregou de dizer-vos. Quanto a mim, nãoprecisarei aludir às minhas boas intenções para convosco; nãoesperei até o momento presente para manifestá-las. Sigai, euvos conjuro, os conselhos de Mardônio. Não estais emcondições de sustentar a guerra até o fim contra Xerxes. Se euvos considerasse bastante poderosos para resistir-lhe, não teriavindo aqui falar-vos nesta linguagem. O poderio do soberano éimenso, e nada há que se lhe possa antepor. Se não aceitais aaliança que vos oferecem os Persas em condições tãovantajosas, receio muito pela vossa segurança, tanto mais queentre todos os confederados sois os mais expostos ao perigo,pois vos encontrais situados entre inimigos e vosso país cercadopor dois exércitos. As propostas de que sou portador vos sãosumamente valiosas. Não deveis recusá-las, tanto mais que soisos únicos a que o grande rei quer perdoar; os únicos cuja aliança

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ele procura”.

CXLI — Tendo sido informados de que Alexandrevinha a Atenas concitar os Atenienses a entrarem em acordocom o soberano persa, os Lacedemônios lembraram-se dapredição dos oráculos, de que eles haviam de sernecessariamente expulsos do Peloponeso, com o resto dosdórios, pelos Medos unidos aos Atenienses. Receando, pois, queestes aceitassem a referida aliança, resolveram enviar-lhesimediatamente uma delegação. Logo que chegaram, osembaixadores lacedemônios apresentaram-se ante a assembléiado povo, que os Atenienses haviam convocadopropositadamente, por estarem persuadidos de que osLacedemônios sabiam da vinda do emissário para negociar comeles em nome dos bárbaros, e a fim de darem a conheceràqueles as disposições que os moviam.

CXLII — Tendo Alexandre cessado de falar, osembaixadores de Esparta tomaram a palavra: “OsLacedemônios — disseram eles — enviaram-nos aqui parapedir-vos que não tomeis nenhuma iniciativa em prejuízo daGrécia e que não deis ouvido às propostas do rei dos Persas.Semelhante aliança seria prejudicial, e mais danosa ainda paravós do que para o resto dos gregos, e isso por várias razões.Provocastes, contra nossa vontade, a guerra presente, e emborana sua origem ela não diga respeito senão a vós, envolvestes aGrécia inteira. Não seria odioso que, sendo vós, originalmente,responsáveis por essa calamidade, contribuísseis ainda paratornar a Grécia escrava, vós que, desde os tempos maisrecuados, vos tendes mostrado defensores da liberdade dospovos?

“De nossa parte, Atenienses, compadecemo-nos devossa triste situação e vemos com pesar os vossos laresdestruídos e vós há dois anos privados dos produtos de vossasterras. Sensíveis às vossas desgraças, os Lacedemônios e os

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aliados se comprometem a alimentar, enquanto durar a guerra,vossas mulheres e todos aqueles que, dentre vós, forem julgadosincapazes para a guerra. Não vos deixeis seduzir, nós vosconjuramos, pelas palavras insinuantes que Alexandre vos dizda parte de Mardônio. Ele faz o que deve fazer. É um tiranodefendendo os interesses de outro tirano. Se sois prudentes, nãodeveis seguir-lhes os conselhos, pois bem sabeis que não sepode confiar nos bárbaros e que nada há de verdadeiro em suaspalavras”.

CXLIII — Depois de ouvirem com atenção o discursodos embaixadores de Esparta, os atenienses presentes àassembléia responderam a Alexandre nestes termos: “Há muitosabemos que o poderio dos Medos é muito superior ao nosso,sendo, por conseguinte, inútil tentar humilhar-nos com isso.Não obstante, amantes que somos da liberdade, nós adefenderemos com todas as nossas forças. Não procurai, pois,persuadir-nos das vantagens de uma aliança com os bárbaros;jamais obtereis êxito nesse terreno. Ide e levai a Mardônio aresposta dos Atenienses: enquanto o sol se mantiver na sua rotahabitual, não faremos aliança com Xerxes; mas, cheios deconfiança na proteção dos deuses e dos heróis, cujos templos eestátuas ele queimou, sem nenhum respeito, iremos ao seuencontro e o repeliremos desassombradamente.

“Quanto a vós, não vinde mais exortar os Atenienses apraticar atos iníquos, sob o pretexto de querer prestar-nosimportantes serviços; pois, como estais ligado a nós por laçosde hospitalidade e de amizade, ser-nos-ia penoso tratar-vos deuma maneira pouco agradável”(16).

CXLIV — Voltando-se, em seguida, para os emissáriosde Esparta, assim lhes falaram: “O receio que têm osLacedemônios de que tratemos com os bárbaros é natural; masnem por isso vossos temores deixam de parecer indignos de vós,que tão bem conheceis a magnanimidade dos Atenienses. Não,

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não há ouro bastante sobre a terra; não há país bastante rico;não há nada, enfim, capaz de levar-nos a tomar o partido dosMedos e impelir a Grécia para o negro abismo da escravidão. Emesmo que o quiséssemos, disso nos esquivaríamos por muitasrazões poderosas. A primeira e a mais importante: as estátuas eos templos dos nossos deuses queimados, lançados por terra etransformados num montão de ruínas. Esse motivo não é, por sisó, bastante forte para levar-nos antes à vingança do que a umaaliança com o responsável por tão monstruoso procedimento?Em segundo lugar, sendo os Helenos do mesmo sangue, falandoa mesma língua, tendo os mesmos deuses, os mesmos templos,oferecendo os mesmos sacrifícios, seguindo os mesmos usos ecostumes, não seria vergonhoso para os Atenienses traí-los?Ficai sabendo, pois, se o ignoráveis até aqui, que, enquantoexistir um ateniense no mundo, não faremos nenhuma aliançacom Xerxes. Louvamos o vosso procedimento, oferecendo-vospara alimentar nossas famílias e prover as necessidades de umpovo cujos lares e bens foram destruídos. Levais a benevolênciaao extremo; mas não vos preocupeis; subsistiremos comopudermos, sem exigirmos de vós esse sacrifício. O que deveisfazer agora é acautelar-vos, pois, logo que o rei dos bárbarossouber que não aceitamos as suas propostas lançar-se-á contranós, invadindo e devastando novamente as nossas terras.Precisamos impedi-los de penetrar na Ática, indo dar-lhescombate na Beócia”.

Satisfeitos com essa resposta e considerando cumpridasua missão, os embaixadores lacedemônios regressaram aEsparta.

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LIVRO IX

CALÍOPEMARDÔNIO APODERA-SE DE ATENAS PELA SEGUNDA

VEZ — OS ATENIENSES ENVIAM EMBAIXADORES AESPARTA — LÍCIDAS É TORTURADO — MORTE DE

MASÍSTIO, GENERAL PERSA — TLSÂMENO TORNA-SECIDADÃO DE ESPARTA — BATALHA DE PLATÉIA —

MORTE DE MARDÔNIO — SAQUE DO ACAMPAMENTO— OS GREGOS MARCHAM CONTRA TEBAS PARA

VINGAR-SE DA TRAIÇÃO DOS SEUS HABITANTES —BATALHA NAVAL DE MÍCALE, GANHA NO MESMO DIADA BATALHA DE PLATÉIA — CERCO DE SESTO — FUGA

DOS PERSAS — ARTAÍCTES CONDENADO À MORTE.

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I — Logo que Alexandre lhe comunicou a resposta dosAtenienses, Mardônio partiu da Tessália, dirigindo rapidamentesuas tropas em direção a Atenas e engrossando-as, em todaparte por onde passava, com homens aptos para a guerra. Ospríncipes da Tessália, longe de se arrependerem de sua condutaanterior, animavam Mardônio ainda mais do que antes, e Tóraxde Larissa, que havia acompanhado Xerxes na sua retirada,franqueava abertamente a passagem a Mardônio para penetrarna Grécia.

II — Quando o exército chegou à Beócia, os Tebanosprocuraram reprimir o ardor de Mardônio e dissuadi-lo de irmais adiante. Mostraram-lhe que não havia lugar mais cômodopara acampar, e que se ele quisesse ali permanecer tornar-se-ia,dentro de pouco tempo, senhor de toda a Grécia, sem precisarlutar. “Se quiserdes seguir os nossos conselhos —acrescentaram eles —, desorganizareis facilmente os melhoresplanos dos Gregos. Enviai dinheiro às pessoas de maiordestaque em cada cidade, tereis toda a Grécia dividida, e com oauxílio dos que abraçarem a vossa causa subjugareis todos osque se mostrarem contrários aos vossos interesses”.

III — Tal o conselho que os Tebanos deram a Mardônio,mas o ardente desejo de tornar-se mais uma vez senhor deAtenas impediu-o de segui-lo. Foi também levado a assimproceder pela sua louca presunção; pela esperança de podercomunicar ao soberano persa, que ainda se encontrava emSardes, a tomada de Atenas, servindo-se, para fazer essacomunicação, de tochas acesas em várias ilhas(1).

Ao chegar à Ática, Mardônio não mais encontrou ali,como esperava, as tropas atenienses. A maior parte delas estava,como veio a saber, em Salamina, com seus navios.Apoderou-se, então, pela segunda vez, da cidade deserta, dezmeses depois de Xerxes tê-la capturado pela primeira vez.

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IV — Enquanto se achava em Atenas, enviou aSalamina o helespontino Muríquides, com as mesmas propostasque Alexandre da Macedônia havia feito em seu nome aosAtenienses. Embora soubesse que eles não se achavamdispostos a transigir, mandou-lhes esse segundo emissário nasuposição de que, vendo a Ática subjugada e reduzida àimpotência, acabariam cedendo.

V — Admitido no Senado, à sua chegada, Muríquidesdesobrigou-se da missão que Mardônio lhe confiara. Umsenador de nome Lícidas foi de parecer que se devia acolher aspropostas apresentadas e comunicá-las ao povo. Manifestouessa opinião, fosse porque realmente pensasse assim, ou porquehouvesse sido subornado por Mardônio para defender seusinteresses. Indignados com essa atitude, os atenienses, tanto osde dentro como os que se achavam do lado de fora do Senado,cercaram-no em atitude agressiva, acabando por torturá-lo até amorte. Em seguida, expulsaram do recinto o helespontinoMuríquides, sem contudo fazer-lhe mal algum. Chegando aoconhecimento das mulheres de Atenas o tumulto de Salaminaem torno de Lícidas, elas se exaltaram e, incitando umas àsoutras, correram à casa do traidor e torturaram-lhe também amulher e os filhos.

VI — Vejamos as razões que levaram os Atenienses a seretirarem para Salamina. Enquanto aguardavam socorros doPeloponeso mantiveram-se na Ática. Mas a lentidão e adisplicência dos aliados, e a aproximação de Mardônio, quediziam já se achar na Beócia, levaram-nos a transportar paraSalamina todos os seus pertences e equipamento,transferindo-se eles também para lá. Ali chegando, enviaramuma delegação aos Lacedemônios, tanto para censurá-los porterem deixado Mardônio entrar na Ática, em lugar de irem aoseu encontro na Beócia, como também para lembrar-lhes aspromessas do general persa, caso eles, Atenienses, quisessemmudar de partido, e para dizer-lhes que, se eles não os

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socorressem, não deixariam por isso de encontrar os meios parase subtraírem aos males que os ameaçavam.

Celebrava-se, então, em Esparta, a festa de Jacinto, e osLacedemônios faziam questão capital de realizá-la com todapompa. Justamente nessa ocasião concluía-se a construção damuralha do istmo, que se erguia até as ameias.

VII — Chegando à Lacedemônia, os delegados deAtenas, juntamente com os de Mégara e de Plateia, que ostinham acompanhado, dirigiram-se aos éforos e falaram-lhesnestes termos:

“Os Atenienses enviaram-nos aqui para dizer-vos que orei da Pérsia se dispõe a devolver-nos a nossa pátria e a tratarconosco de igual para igual, sem fraude e sem dolo; e, além donosso país, compromete-se a ceder-nos outro qualquer à nossaescolha. Nós, entretanto, cheios de respeito para com JúpiterHelênio(2) e persuadidos de que não poderemos sem crime traira Grécia, rejeitamos essas ofertas, embora abandonados etraídos pelo resto dos gregos. Não ignoramos que um tratado dealiança com o soberano persa nos seria mais vantajoso do que aguerra. Não obstante, não o faremos jamais, devotando-nosinteiramente à causa comum. Mas vós, Lacedemônios, quetanto receais nosso acordo com o rei, que estais convencidos,conhecendo perfeitamente a nobreza dos nossos sentimentos, deque jamais trairemos a Grécia, vós, enfim, que já tendes quaseconcluída a muralha que fecha o istmo, não mostrais nenhumaconsideração para com os Atenienses. Combinastes conosco irao encontro de Mardônio na Beócia, e o deixastes penetrar, porvossa negligência, na Ática, deixando-nos em situaçãoextremamente difícil. Os Atenienses sentem-se revoltados como vosso procedimento, faltando aos vossos compromissos nasatuais circunstâncias. Eles vos exortam mais uma vez a enviar,sem perda de tempo, tropas, a fim de enfrentar o inimigo naÁtica. Como não pudemos obstar-lhe os passos na Beócia,

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esperamos que a planície de Tria nos seja propícia paraoferecermos combate aos invasores”.

VIII — Os éforos declararam aos delegados que dariamuma resposta no dia seguinte, e foram protelando durante dezdias, prometendo sempre decidir no dia seguinte. Enquanto isso,os Peloponésios trabalhavam febrilmente para concluir amuralha que fechava o istmo. Por que razão os Lacedemônios,ao saberem da presença de Alexandre em Atenas para entrar ementendimentos com os Atenienses, mostraram tanta pressa emdissuadi-los de qualquer acordo com os Persas, e agoranenhuma atenção davam às suas palavras? Não posso atinarcom outro motivo para tal procedimento, a não ser este: fechadoo istmo, julgavam eles não necessitar mais do auxílio dosAtenienses. Quando Alexandre esteve em Atenas, a muralhaestava apenas no início, e eles, apavorados ante a aproximaçãodos persas, procuraram manter o apoio dos Atenienses,enquanto trabalhavam sem cessar para concluir a muralha.

IX — Eis como, por fim, os Espartanos deram aesperada resposta aos delegados atenienses, mas pondo antessuas tropas em campo. Na véspera do dia em que deviamreunir-se para decidir sobre o assunto pela última vez, Quileu deTégea, que gozava na Lacedemônia de um prestígio maior doque os outros estrangeiros, tendo sabido por um dos éforos oque haviam dito os delegados dos Atenienses, fez-lhes estaobservação: “Éforos, devemos ter em conta a situação presente,velando, assim, pelos nossos próprios interesses. Se osAtenienses, em lugar de ficarem unidos conosco, se aliarem aosbárbaros, de nada adiantará essa muralha erguida de umextremo ao outro do istmo; o inimigo encontrará sempre outraspassagens para entrar no Peloponeso. Atendei, pois, àssolicitações que vos fazem os Atenienses, antes que eles tomemqualquer resolução funesta para a Grécia”.

X — Tendo refletido sobre esse conselho, os éforos

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decidiram colocar imediatamente em ação suas tropas, e, semnada comunicar aos delegados de Atenas, Mégara e Plateia,fizeram partir imediatamente, embora fosse noite, cinco milespartanos, acompanhados, cada um, de sete ilotas, sob ocomando de Pausânias, filho de Cleômbroto. O comandopertencia por direito a Plistarco, filho de Leônidas; mas, sendoele ainda muito criança, Pausânias devia naturalmentesubstituí-lo como seu tutor e primo. Cleômbroto, filho deAnaxandrides e pai de Pausânias, tinha sido morto pouco antes,depois de haver reconduzido ao istmo as tropas encarregadas daconstrução da muralha. Assim agira porque, enquantosacrificava as vítimas para saber se devia atacar os bárbaros, osol ficou, inopinadamente, obscurecido, tornando-se o dia emnoite(3). Pausânias, indicado, como já disse, para comandar oscinco mil espartanos, escolheu para seu lugar-tenente Euriânax,filho de Doria, da mesma casa que ele.

XI — Essas tropas partiram, pois, de Esparta, chefiadaspor Pausânias. Os delegados, que não tiveram nenhumconhecimento do fato, foram, logo ao romper do dia, à procurados éforos, com a intenção, sem dúvida, de retornar cada qual àsua pátria, fosse qual fosse o resultado do novo encontro.Chegando à presença dos éforos, disseram-lhes sem maispreâmbulos: “Lacedemônios, enquanto passais aqui o tempo acelebrar a festa de Jacinto(4) e a distrair-vosdespreocupadamente, atraiçoais a causa dos vossos aliados. Masvossa injustiça para com os Atenienses e o abandono dos seusconfederados vão levá-los a fazer a paz com o soberano, nascondições que lhes for possível obter. Tornando-nos aliados dospersas, não duvideis de que marcharemos por toda parte ondenos conduzirem seus capitães; e vereis, então, os resultadosfunestos da vossa conduta para conosco”.

Quando os delegados acabaram de falar, os éforosdeclararam-lhes, sob juramento, que as tropas de Esparta jáestavam em marcha contra os estrangeiros (era assim que

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denominavam os bárbaros), e já deviam encontrar-se emOréstis. Os delegados, que ignoravam o que se passara,pediram-lhes explicações. Ao serem postos ao corrente dosfatos, mostraram-se bastante surpresos, partindo sem demora,para reunir-se aos espartanos. Cinco lacedemônios das cidadesvizinhas de Esparta, todos homens escolhidos e muito bemarmados, acompanharam-nos.

XII — Enquanto eles se apressavam a alcançar o istmo,os Árgios, que haviam prometido a Mardônio impedir que osEspartanos se pusessem em campo, enviaram a esse general omelhor correio que puderam encontrar, assim que souberam quePausânias tinha partido de Esparta com um corpo de tropas.Chegando a Atenas, o correio dirigiu-se imediatamente aMardônio, dizendo-lhe: “Os Árgios me encarregaram dedizer-vos que a mocidade da Lacedemônia saiu ao vossoencontro, sem que eles pudessem impedi-lo. Aproveitai esteaviso para agir como achardes conveniente”. Cumprida suamissão, o correio fez-se de volta para Argos.

XIII — Essa notícia fez Mardônio perder a vontade depermanecer por mais tempo na Ática. Mantivera-se até então alipara saber em que sentido agiriam os Atenienses. Não lheshavia ainda devastado as terras nem espalhado a ruína entreeles, apenas na expectativa de um acordo. Mas, vendo aimpossibilidade de qualquer entendimento e instruído sobre osseus desígnios, resolveu retirar-se, antes que Pausânias chegasseao istmo com suas tropas. Ao deixar Atenas, incendiou edestruiu tudo que ainda restava ali, muros e edifícios, tantosagrados como profanos. Essa sua resolução de partir ele atomou principalmente porque a Ática não se prestava muito àação da cavalaria e porque não poderia, no caso de ali serderrotado, retirar-se senão pelos desfiladeiros, onde umpequeno grupo de homens bastaria para vedar-lhe a passagem.Resolveu, pois, voltar a Tebas, para combater perto de umacidade amiga e em terreno favorável ao movimento da

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cavalaria.

XIV — Já se encontrava em marcha, quando um correioveio anunciar-lhe que um corpo de mil lacedemônios se achavaem Mégara. Procurou logo tomar providências parainterceptar-lhes os passos. Voltou seu exército em direção aMégara, fazendo marchar na frente a cavalaria, que varreu aMegárice de ponta a ponta.

XV — Pouco mais tarde chegava outro correio paraanunciar que as forças gregas se achavam concentradas noistmo. Ante essa notícia, Mardônio resolveu enveredar pelocaminho da Deceléia. Os beotarcos(5) tinham-lhe enviadohabitantes das margens do Asopo para lhe servirem de guias.Estes conduziram-no a Esfendaleia e de lá a Tânagra, ondeMardônio pernoitou. No dia seguinte, reencetou a marcha,tomando a direção de Escolo. Chegando às terras dos Tebanos,devastou-as, embora eles se tivessem mantido fiéis à causa dosPersas. Procedeu dessa maneira, não como manifestação dehostilidade, mas porque precisava fortificar seu acampamento,para poder contar com um refúgio seguro no caso de umcombate que não correspondesse às suas expectativas. Oacampamento dos persas começava na Eritréia e tocava aHísias, estendendo-se até o território de Plateia, ao longo doAsopo. O muro que Mardônio mandou erguer não abrangia todaessa extensão, mas apenas cerca de dez estádios em quadra.Enquanto as tropas de Mardônio se entregavam a essa tarefa,Atagino de Tebas, filho de Frínon, preparou um grande festim,para o qual convidou o general e cinqüenta persas dos maisdistintos, que se dirigiram a Tebas, onde se efetuou o banquete.

XVI — O que ali se passou me foi relatado porTersandro, um dos mais respeitáveis cidadãos de Orcômeno.Contou-me ter sido ele próprio convidado para o banquete porAtagino, do qual também participavam cinqüenta tebanos. Àmesa, cada um dos persas sentava-se ao lado de um tebano.

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Terminado o repasto, regado com vinho e licores, de que osconvidados persas fizeram amplo consumo, o que se achava aolado de Tersandro perguntou-lhe, em grego, de que país era; ecomo ele respondesse que era de Orcômeno, disse-lhe, então, opersa: “Já que sentamos à mesma mesa e tomamos parte nasmesmas libações, quero, como prova da sinceridade dos meussentimentos, fazer-te uma triste revelação, a fim de que,informado do que deverá fatalmente acontecer, possas procederda maneira que achares mais conveniente. Vês esses persas àmesa e as tropas que deixámos acampadas às margens do rio?Pois bem; de todos esses homens só restará, dentro em pouco,um pequeno número”. Dizendo isso, o persa começou aderramar copiosas lágrimas. Espantado com tais palavras,Tersandro perguntou-lhe se não achava conveniente comunicaresse presságio a Mardônio e aos persas mais influentes depoisdele, ao que o seu comensal respondeu: “Não, não, meu caroamigo; o que Deus decide, homem nenhum pode modificar, e osmelhores conselhos são sempre desprezados. Grande número depersas já está ciente do que acabo de revelar-te; não obstante,compelidos pela necessidade, seguem Mardônio. A mais crueltristeza para o homem é ver que o sábio não tem a menorautoridade”.

Eis aí o que me contou Tersandro de Orcômeno, que,segundo ouvi dizer, relatara o mesmo fato a muitos outros antesda batalha de Plateia.

XVII — Enquanto Mardônio se achava acampado naBeócia, todos os gregos desse país que abraçavam a causa dosPersas forneceram-lhe tropas e fizeram com ele uma incursão naÁtica. Os Focídios, porém, não tomaram parte nessa sortida,pois, se haviam tomado o partido dos Medos, assim procederammenos por vontade própria do que por necessidade. Alguns diasdepois da volta de Mardônio a Tebas chegou Harmócides, umdos seus mais ilustres concidadãos, à frente de mil homensmuito bem armados. Ao saber da sua presença ali, Mardônio

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mandou-lhe dizer que acampasse na planície. Harmócides assimo fez, e logo surgiu toda a cavalaria persa. Correu logo o boatoentre os gregos acampados com os persas, de que a cavalaria iamatá-los a golpes de dardos. Chegando o boato aoacampamento dos focídios, Harmócides, seu comandante,animou-os com esta arenga: “Focídios, os Tessálios, pelo quevejo, caluniaram-nos, e nossa desgraça é certa. Chegou omomento de cada um de nós mostrar seu valor. Mais valemorrer-se lutando com coragem do que deixar-se matarvergonhosamente. Que os persas fiquem sabendo que não sãomais do que bárbaros e que aqueles cuja perda tramaram sãogregos”.

XVIII — Quando a cavalaria persa investiu contra eles,parecia querer exterminá-los num só golpe. Já os dardos eramempunhados — e talvez mesmo alguns já tivessem sidolançados quando os focídios, cerrando fileiras, lançaram-se aoencontro dos atacantes. Vendo-os tão decididos, os cavaleirospersas bateram em retirada. Não sei se esse corpo de cavalariavinha com o propósito de massacrar os focídios a pedido dosTessálios, nem se os bárbaros, vendo esses mil homens ematitude de defesa e receando sair-se mal do encontro seretiraram, como que seguindo ordens de Mardônio; ou mesmose este queria apenas pôr à prova a coragem dos focídios. Comoquer que seja, a cavalaria retirou-se, e Mardônio enviou-lhes aseguinte mensagem por um arauto: “Tranqüilizai-vos, focídios;mostrastes ser gente de coragem e não aquilo que me diziam devós. Conduzi-vos agora com ardor nesta guerra; vossa atitudenão afetará jamais a generosidade do rei, nem a minha”.

XIX — Logo que chegaram ao istmo, os lacedemôniosassentaram acampamento(6). Ao saberem da sua chegada, ospovos do Peloponeso mais ligados à boa causa, bem como osque haviam testemunhado a partida das tropas espartanas,puseram-se em marcha; uns e outros não querendo que oslacedemônios levassem nisso vantagem sobre eles. Tendo sido

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favoráveis os presságios deduzidos da análise das entranhas dasvítimas sacrificadas aos deuses, deixaram todos o istmo,dirigindo-se para Elêusis. Ali renovaram as oblatas: e como elascontinuassem pressagiando-lhes bom êxito, continuaram amarcha, já então acompanhados dos atenienses, que, tendopassado de Salamina para o continente, a eles se reuniram emElêusis. Informados, ao chegarem à Eritréia, na Beócia, de queos bárbaros estavam acampados às margens do Asopo, forampostar-se defronte deles, ao pé do monte Citéron.

XX — Como as tropas gregas não se decidiam descer àplanície, Mardônio enviou contra eles toda a cavalaria, sob ocomando de Masístio, que gozava de grande prestígio entre osPersas. Masístio montava um cavalo niseu com bridão de ouro emagnífico arnês. A cavalaria, aproximando-se dos gregos, caiusobre eles por esquadrões, causando-lhes grandes perdas edizendo-lhes, em tom de escárnio, que não estavam lutandocom homens, mas com mulheres.

XXI — As tropas megárias encontravam-se, por acaso,em local mais vulnerável ao ataque inimigo e mais acessível aoscavalos. Vendo-se sob terrível pressão da cavalaria, enviaramum arauto aos generais gregos, encarregando-o de dizer-lhes oseguinte: “Aliados; não podemos sustentar sozinhos o choqueda cavalaria persa no posto em que fomos colocados. Emborasofrendo forte pressão, temos até aqui resistido com firmeza ecoragem; mas se não enviardes tropas em nosso auxílio,abandonaremos o nosso posto e retirar-nos-emos da luta”. Antea declaração pelo arauto, Pausânias sondou os gregos para verse encontrava voluntários dispostos a defender aquele setor emsubstituição aos megários. Todos se recusaram, exceto ostrezentos atenienses de elite comandados por Olimpiodoro, quese encarregaram da tarefa.

XXII — Esse corpo de tropas que tomou a si a defesa dosetor onde os megários vinham resistindo às cargas dos persas

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incluía exímios atiradores de dardos. O combate continuoudurante algum tempo, terminando da maneira que vou relatar. Acavalaria persa mantinha-se atacando por esquadrões. Em dadomomento, Masístio, adiantando-se, teve seu cavalo ferido noflanco por uma flecha. O animal, empinando-se com o golpe,atirou o general por terra. Sobre este se lançaram os atenienses,matando-o, apesar da resistência por ele oferecida, eapoderando-se do cavalo. Os primeiros golpes vibrados contraMasístio não o afetaram muito devido à couraça bordada a ouroque ele trazia sob o traje de púrpura. Um dos atacantes,percebendo isso, golpeou-o nos olhos, fazendo-o tombar parasempre. A cavalaria não teve logo conhecimento da desgraçasofrida pelo seu general, pois, batendo em retirada ante aimpetuosidade do inimigo, não notou o que se passara comMasístio. Mas, fazendo alto em determinado ponto e notandoque ninguém lhes dava ordens, os cavaleiros ficaramapreensivos e, percebendo a ausência do general,compreenderam que algo de grave ocorrera com ele. Depois derápidas confabulações, decidiram voltar ao local do combatepara arrebatar aos adversários o corpo de Masístio.

XXIII — Os guerreiros atenienses, vendo-os avançar emformação maciça e não mais por esquadrões, pediram auxílio aoresto do exército. Enquanto a infantaria marchava rapidamenteem seu socorro, travou-se violento combate pela posse do corpodo general; e os trezentos atenienses, lutando sozinhos contraum número muito superior de persas, ficaram em desvantageme acabaram por abandoná-lo. Logo, porém, chegava o socorro, eos bárbaros, não podendo sustentar o choque, abandonaramnovamente o campo da luta, deixando ao inimigo o tãodisputado corpo de seu comandante e tendo a lamentar a perdade muitos dos seus companheiros. Tendo-se distanciado cercade dez estádios, puseram-se a deliberar sobre a conduta aseguir; mas, faltando um bom comandante para orientá-los,resolveram voltar para junto de Mardônio.

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XXIV — Chegando ao acampamento e dandoconhecimento da triste ocorrência, todo o exército pôs-se alamentar a perda de Masístio, e mais que todos Mardônio, que otinha em grande estima. Os soldados persas, em sinal de pesar,cortaram a barba e os cabelos, bem como a crina dos cavalos edos animais de carga, enquanto deixavam escapar gritoslúgubres e lamentações que repercutiam por toda parte.Acabavam de perder um grande comandante, que, pelo menosdepois de Mardônio, era o mais estimado pelos Persas e pelorei.

XXV — Os combatentes gregos, tendo sustentado comgalhardia e sucesso o choque da cavalaria persa, sentiramrobustecida sua confiança no prosseguimento da luta. De possedo corpo do Masístio, puseram-no num carro e levaram-no porentre as filas de soldados, formados para assistir àqueleespetáculo, que merecia ser visto dada principalmente a estaturae a beleza do general, sendo viva a curiosidade demonstradapelas tropas, que acorriam de todos os lados para vê-lo.Reunindo-se, em seguida, para deliberar sobre oprosseguimento da luta, os gregos julgaram acertado seguir paraPlateia, cujo terreno era mais cômodo para assentaracampamento e para manobras do que o da Eritréia, oferecendo,além disso, outras vantagens, qual seja a obtenção de água emabundância. Ficando, pois, resolvido acamparem ali, perto dafonte de Gargáfie, tomaram de suas armas e marcharam para osopé do monte Citéron, passando pelas cercanias de Hísias.Chegando ao território de Plateia, puseram-se em ordem debatalha, organizando-se por nações, nas proximidades da citadafonte e do templo consagrado ao herói Andrócrates(7),postando-se uns em colinas pouco elevadas, e os outros naplanície.

XXVI — Quando as tropas quiseram ocupar os postosque lhes haviam sido designados, surgiram contestações entreos tegeatas e os atenienses, que disputavam o comando de uma

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das duas alas. Alegavam eles, em apoio à sua pretensão, osnotáveis feitos que haviam praticado, tanto nos últimos temposcomo no passado. “Todos os aliados — diziam os tegeatas —sempre nos julgaram dignos desse posto nas expedições que osPeloponésios fizeram juntos a terras estranhas. Quando, depoisda morte de Euristeu, os Heraclidas tentaram estabelecer-senovamente no Peloponeso, coube-nos a honra de ocupar oprimeiro posto pelos serviços que prestámos nessa ocasião.Marchámos para o istmo em socorro da pátria, com os Aqueus eos Iônios, que então habitavam o Peloponeso, e acampámosdiante dos Heraclidas. Conta-se que, nessa ocasião, Hilo sugeriuque, em lugar de exporem-se os dois exércitos ao perigo de umchoque, escolheriam os Peloponésios entre os seus combatentesaquele que considerassem o mais bravo, para bater-se sozinhocom ele, sob certas condições. Os Peloponésios resolveramaceitar a proposta, comprometendo-se por juramento a respeitaro pacto. Ficou estabelecido que os Heraclidas entrariam naposse da herança de seus pais se Hilo conseguisse a vitóriasobre o chefe dos Peloponésios, e que se fosse ele o vencido, osHeraclidas retirar-se-iam com seu exército, e durante cem anosnão procurariam estabelecer-se de novo no Peloponeso.Equemo, filho de Aérope e neto de Cefeu, general e rei dosPeloponésios, foi o escolhido, pela vontade unânime de todos osaliados, para bater-se contra Hilo, a quem matou apósencarniçado combate singular. Essa façanha valeu-nos dosPeloponésios daquele tempo, entre outras honras que ainda hojenos são tributadas, a de comandar uma das alas do exército emtodas as expedições em que com eles marcharmos juntos.Quanto a vós, Lacedemônios, não vos disputamos a primeiraala; podeis comandar a que desejardes; mas o comando da outranos pertence, da mesma maneira como sempre a tivemos emtempos passados. Independentemente do feito que acabámos denarrar, somos mais merecedores desse posto do que osAtenienses, pelo grande número de combates que já travamoscom êxito contra vós mesmos e contra outros povos. Porconseguinte, é justo que tenhamos o comando de uma das alas,

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de preferência aos Atenienses, que não praticaram, nem nopassado nem nos tempos atuais, ações tão belas como asnossas”.

XXVII — “Sabemos — replicaram os atenienses — queos aliados estão aqui reunidos para combater os bárbaros e nãopara discutir questões de comando. Como, porém, os Tegeataspropõem-se a falar de atos de bravura, tanto antigos comorecentes, dos dois povos, vemo-nos forçados a mostrar-vos deonde vem o direito, transmitido pelos nossos pais, de ocuparsempre a primeira ala, de preferência aos Arcádios, enquantonos conduzirmos como gente corajosa. Os Heraclidas, cujochefe os Tegeatas se vangloriam de haver matado perto doistmo, escorraçados outrora por todos os gregos em cujas terrasse refugiavam para evitar a servidão de que os ameaçavam osMicênios, só foram acolhidos por nós, que também repelimos aafronta de Euristeu pela vitória completa que alcançámos sobreos povos que então ocupavam o Peloponeso. Tendo os Árgiosempreendido uma expedição contra Tebas, com Polinices, ehavendo perecido ingloriamente na sua quase totalidade,ficando os corpos insepultos, marchámos contra os Cadmeus,recolhemos os corpos e lhes demos sepultura em nosso país, emElêusis. Praticámos também notáveis feitos contra asAmazonas, essas terríveis guerreiras que, das margens doTermodonte, vieram atacar a Ática. Em Tróia, não nosdistinguimos menos que os outros aliados. Mas, para querelembrar essas façanhas? Os povos que ontem foram bravospodem tornar-se hoje covardes; e os que foram covardesportar-se hoje como bravos. Não voltemos aos tempos antigospara recordar feitos. Poderíamos citar muitas outras ações devalor; mas, mesmo que só tivéssemos para contar a jornada deMaratona, esta bastaria para tornar-nos dignos daquela honra ede muitas outras ainda. Essa batalha, em que fomos os únicosentre os gregos a combater unicamente com as nossas forçascontra os persas; em que, a despeito das dificuldades de uma talempresa, levamos a melhor sobre quarenta e seis nações, não

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basta para sermos atendidos em nossa pretensão? Mas, como jádissemos, não convém, nas circunstâncias atuais, estarmosdiscutindo pretensões de comando. Estamos prontos,lacedemônios, a obedecer-vos, seja qual for o posto quequiserdes conferir-nos e qualquer que seja o inimigo quetivermos de enfrentar. Em qualquer lugar que nos colocardesprocuraremos portar-nos dignamente, com galhardia.Conduzi-nos, pois, e contai com a nossa obediência”.

XXVIII — Tal a resposta dos combatentes atenienses.Todas as tropas lacedemônias foram de opinião que eles erammais merecedores do comando de uma das alas do exército doque os arcádios, e o posto lhes foi confiado. Solucionado o caso,as tropas colocaram-se em ordem de batalha, tanto as quehaviam chegado primeiro, como as que vieram depois.Compunham a ala direita dez mil lacedemônios, entre os quaiscinco mil espartanos, apoiados por trinta e cinco mil ilotasligeiramente armados, cada espartano tendo sete ilotas em tornode si. Mil e quinhentos tegeatas, muito bem armados, vinhamlogo depois deles. Os espartanos os haviam escolhido paraocupar essa posição na ala, tanto pelo seu alto espírito de luta,como para mostrar-lhes a estima e o conceito em que os tinham.Depois dos tegeatas formavam cinco mil coríntios, e depoisdestes os trezentos potideatas procedentes da península dePalene, honra que Pausânias lhes havia concedido porsolicitação dos Coríntios. Vinham, em seguida, seiscentosarcádios de Orcômeno, seguidos de três mil siciônios, e estes deoitocentos epidáurios, que tinham depois deles mil trezênios.Logo depois destes formavam duzentos lepreatas e quatrocentosguerreiros de Micenas e de Tirinto. Viam-se depois mil fliásios,trezentos hermioneus, seiscentos erétrios e estireus, e depoisdestes, quatrocentos calcídios. Havia ainda quinhentosampraciotas, oitocentos leucádios e anactórios, duzentos paleusde Cefalênia e quinhentos eginetas, seguidos de três milcombatentes de Mégara e de seiscentos de Plateia. Osatenienses, em número de oito mil, comandados por Aristides,

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filho de Lisímaco, ocupavam a ala esquerda do exército, sendo,ao mesmo tempo, os últimos e os primeiros.

XXIX — Todas essas tropas, com exceção dos seteilotas que assistiam cada espartano, estavam muito bemarmadas, totalizando trinta e oito mil e setecentos homens. Astropas ligeiramente armadas, isto é, as que formavam em tornodos espartanos, eram calculadas em trinta e cinco mil homens.As que acompanhavam o resto dos lacedemônios e dos gregoscontavam trinta e quatro mil e quinhentos, correspondendo acada hoplita um soldado ligeiramente armado. Assim o númerode soldados ligeiramente armados somava sessenta e nove mil equinhentos.

As tropas gregas concentradas em Plateia, tanto as quese achavam bem armadas, como as que traziam armamentoleve, atingiam o total de cento e oito mil e duzentos homens;mas, juntando-se a elas o resto dos téspios que faziam parte doexército e que somavam mil e oitocentos homens, tinha-se umtotal redondo de cento e dez mil. Os téspios não se achavam tãobem armados quanto os outros combatentes. Essas tropasestavam acampadas às margens do Asopo.

XXX — Mardônio e suas tropas, tendo cessado deprantear a morte de Mesístio, dirigiram-se também para oAsopo, que atravessa o território de Plateia e onde souberamacharem-se os gregos acampados. Logo que ali chegou, dispôsseus combatentes da seguinte maneira: colocou os persas diantedos lacedemônios, e como eram em maior número que estes,organizou-os em fileiras, que se estendiam até onde se achavamos tegeatas. Dessa maneira, seguindo o conselho dos Tebanos,opunha suas melhores tropas aos lacedemônios e as mais fracasaos tegeatas. Colocou os medos logo depois dos persas, frenteaos coríntios, aos potideatas, aos orcomênios e aos siciônios; osbáctrios frente aos epidáurios, trezênios, lepreatas, tiríntios,micênios e fliásios. Dispôs, em seguida, os indianos contra os

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hermioneus, erétrios, estireus e calcídios. Os sácios foramcolocados perto dos indianos, frente aos ampraciotas,anactórios, leucádios, paleus e eginetas. Em seguida aos sácios,opôs aos atenienses, plateus e megários os beócios, os málios,os lócrios, os tessálios e os mil focídios que integravam suasforças; pois nem todos os focídios se tinham declarado pelosPersas, tendo muitos abraçado a causa dos gregos. Um bomnúmero deles, isolados no Parnaso, fazia contínuas sortidas parasaquear e molestar as tropas de Mardônio e os gregos que sehaviam ligado a ele. Mardônio colocou também os macedôniose os tessálios frente aos atenienses.

XXXI — Os povos que acabo de citar e que Mardôniodispôs em ordem de batalha eram os mais consideráveis e, aomesmo tempo, os mais famosos e aos quais maior importânciase dava. Homens de diferentes nações juntavam-se econfundiam-se com essas tropas. Havia frígios, trácios, mísios,peônios e outros; viam-se igualmente etíopes e alguns daquelesegípcios guerreiros chamados hermotíbios e calasírios, e quesão os únicos que seguem a profissão das armas. Esses egípciosfaziam parte da tripulação da frota persa, e Mardônio os haviaretirado dali quando ainda se achava em Faleros. Nãointegravam, por conseguinte, as tropas de terra que Xerxesconduzira a Atenas.

O exército dos bárbaros se compunha, como já tivemosocasião de dizer, de trezentos mil homens, ignorando-se,todavia, o número dos gregos que acompanhavam Mardônio,podendo-se, apenas por conjecturas, estabelecê-lo em cinqüentamil. Tal era, como disse acima, a ordem de batalha em queformava a infantaria. A cavalaria ocupava postos isolados.

XXXII — Tendo disposto suas tropas por ordem denações e por batalhões, gregos e bárbaros fizeram, ao nascer dodia, sacrifícios às divindades. Tisâmeno, filho de Antíoco, quehavia acompanhado o exército grego na qualidade de adivinho,

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realizou os sacrifícios em nome das tropas aliadas. Embora eleue pertencente à família dos Citíades, ramo dos Jamidas, oslacedemônios o tinham admitido no número de seus cidadãos,nas circunstâncias que passo a expor. Tendo Tisâmenoconsultado o oráculo de Delfos sobre a sua posteridade, apitonisa respondeu-lhe que ele sairia vitorioso em cinco grandescombates. Não conseguindo, a princípio, apreender o sentido dooráculo, dedicou-se aos exercícios gímnicos, como se devessesair vitorioso em torneios e justas. Exercitando-se comentusiasmo no pentatlo, conseguiu levantar todos os prêmios,exceto o da luta em que teve como adversário Hierônimo deAndros. Os Lacedemônios, reconhecendo que a resposta dooráculo não dizia respeito aos combates gímnicos, mas aos deMarte, trataram de atraí-lo, com promessas de recompensa, afim de servir-lhes como condutor(8) das hostes dos Heraclidasnas guerras. Percebendo que os Espartanos buscavam comempenho sua cooperação, Tisâmeno resolveu tirar disso o maiorproveito possível, declarando que só aceitaria o convite se elesquisessem conceder-lhe o título de cidadão, com todos osprivilégios. Se não concordassem com a sua proposta, recusavaqualquer outra espécie de recompensa. Os Espartanos,indignados, não pensaram mais em servir-se dele; até que,aterrorizados com a invasão dos persas, mandaram procurá-lo,concordando com as suas exigências. Tisâmeno, vendo-osnovamente interessados pelo seu concurso, declarou já nãocontentar-se apenas com o que antes havia pedido; queria aindaque seu irmão Hégeas se tornasse igualmente cidadão deEsparta, nas mesmas condições que ele, Tisâmeno.

XXXIII — Se é permitido comparar a dignidade real aodireito de cidadão, Tisâmeno, fazendo semelhante pedido, nadamais fez do que tomar Melampo por modelo. Tendo asmulheres de Argos sido tomadas de loucura furiosa, os Árgiosofereceram a Melampo uma recompensa para transferir-se dePilos para Argos, a fim de curá-las. Melampo exigiu a metadedo reino. Os Árgios consideraram absurda a exigência e

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recusaram-se a atendê-la; mas como o número de mulheresdoentes aumentava cada vez mais, cederam às circunstâncias eenviaram novamente emissários a Pilos, dizendo-se dispostos aaceitar as condições impostas por Melampo. Este, vendo-ostransigir, procurou obter maiores vantagens, declarando-lhesque, se não dessem também a seu irmão Bias um terço do reino,não faria o que eles desejavam. Os Árgios, ante as durascontingências em que se viam, não tiveram outro remédio senãoceder.

XXXIV — O mesmo aconteceu com os Espartanos.Concederam a Tisâmeno tudo que este havia exigido, dadas ascircunstâncias em que se encontravam. Tisâmeno, eleu denascimento, tornando-se dessa maneira cidadão de Esparta,ajudou os Espartanos, na qualidade de adivinho, a conquistar avitória em cinco grandes combates. O primeiro teve lugar emPlateia; o segundo na Tégea, contra os Tegeatas e os Árgios; oterceiro em Dipéia, contra os Arcádios; o quarto em Itome,contra os Messênios, e o quinto e último em Tânagra, contra osAtenienses e os Árgios.

XXXV — Esse Tisâmeno, que os Espartanos tinhamconduzido com eles a Plateia, estava servindo agora de adivinhoaos Gregos na luta contra os bárbaros. Encarregado pelas tropasgregas de realizar os sacrifícios, viu analisando as entranhas dasvítimas, que estas lhes auguravam bom êxito se se mantivessemna defensiva, e pelo contrário o insucesso, se atravessassem oAsopo e começassem o combate.

XXXVI — Mardônio desejava ardentemente iniciar abatalha; mas o resultado dos sacrifícios não lhe era favorável, sólhe prometendo sucesso no caso de manter-se na defensiva.Também ele se serviu de um adivinho, Hegesístrato de Eléia,para sacrificar aos deuses à maneira dos Gregos. Esse adivinho,o mais célebre dos Telíadas, havia causado grande mal aosEspartanos, e estes o tinham prendido e posto a ferros, com a

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intenção de puni-lo de morte. Encontrando-se em tão tristesituação e tendo, antes de ser executado, de sofrer ainda os maiscruéis tormentos, praticou um ato de incrível temeridade.Achava-se com os pés presos em entraves de madeiraguarnecidas de ferro. Servindo-se de um instrumento cortante,que alguém, sem dúvida, lhe havia trazido, seccionou a parte dopé acima dos dedos, depois de ter examinado se poderia libertardas entraves o resto do pé. Depois de ter praticado a mutilação eretirado o pé, como a prisão estava guardada, fez um buraco naparede e fugiu, caminhando durante a noite e escondendo-se nosbosques durante o dia. Na terceira noite de caminhada chegou aTégea, apesar das buscas dos lacedemônios, que se mostraramextremamente espantados com a audácia do fugitivo ao veremnas entraves a parte dos pés mutilados. Assim Hegesístrato,tendo conseguido escapar à perseguição dos lacedemônios,refugiou-se em Tégea, que não se mantinha, naquela ocasião,em muito boas relações com Esparta. Curando-se dosferimentos praticados em si próprio, passou a usar pés demadeira e tornou-se inimigo declarado dos Lacedemônios. Maso ódio que contra estes tinha votado não lhe trouxe, no fim decontas, vantagens, pois, tendo sido capturado em Zacinto, ondeexercia sua arte divinatória, foi morto pelos seus antigosperseguidores. Esse fato, porém, verificou-se muito depois dabatalha de Plateia.

XXXVII — Hegesístrato, a quem Mardônio estimava ecumulava de bens, exercia, pois, suas funções com muito zeloàs margens do Asopo, tanto pelo ódio que votava aosLacedemônios, como pela cobiça de ganho. Mas, como já disse,o exame das entranhas das vítimas era contrário, tanto para ospersas como para os gregos, à iniciativa na luta. Enquanto isso,as forças destes últimos iam aumentando constantemente.Timegênidas de Tebas, filho de Hérpis, aconselhou Mardônioque mandasse guardar as passagens do Citéron, mostrando-lheque era por ali que os gregos tinham suas forças engrossadaspor novos combatentes e que ele poderia capturar um bom

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número destes, à medida que eles fossem chegando.

XXXVIII — Havia já oito dias que os dois exércitos semantinham frente a frente, sem que nem um nem outro sedecidisse a iniciar as hostilidades, quando Timegênidas,notando o contínuo movimento de tropas para o lado dosgregos, deu esse conselho a Mardônio. O general, que lheconhecia bem a sagacidade e o tato, enviou, logo ao anoitecer, acavalaria para guardar as passagens do Citéron que conduziam aPlateia. Os Beócios denominavam-nas Três-Cabeças, e osAtenienses, Cabeças de Carvalho. Foi uma medida proveitosa,pois a cavalaria conseguiu capturar um comboio de quinhentosanimais de carga, com os carros e seus condutores, que ia para aplanície levando víveres do Peloponeso para o acampamentodos gregos. Apossando-se do carregamento, os cavaleiros persasmassacraram impiedosamente os homens e os animais,perseguindo e matando também os que tentavam fugir, e,satisfeitos com a carnificina, retornaram ao acampamento deMardônio.

XXXIX — Depois dessa ação contra oaprovisionamento das forças gregas, mais dois dias se passaramsem nenhuma atividade bélica de parte a parte. Os bárbarosaproximaram-se um pouco mais das margens do Asopo parasondar o inimigo; mas nenhum dos dois exércitos se animou aatravessar o rio. A cavalaria de Mardônio não cessava deinquietar e provocar os gregos; pois os tebanos, muito zelosospara com os persas, faziam a guerra com o maior ardor,aproximando-se continuamente do inimigo, mas sem nuncaempreender o ataque.

XL — Durante dez dias, os dois grupos mantiveram-seinativos. No décimo primeiro dia, já estando os gregos com suasfileiras bastante reforçadas, Mardônio, que se aborrecia muitodessa situação inalterável, conferenciou com Artabazes, filho deFárnaces, que figurava no pequeno número de persas que

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Xerxes honrava com sua estima. Artabazes foi de opinião queas forças persas deviam levantar acampamento e aproximar-sedos muros de Tebas, para onde tinham transportado víveres paraas tropas e forragem para os cavalos. Disse ele que nessaposição terminariam a guerra sem muito esforço, agindo daseguinte maneira: possuíam grande quantidade de ouro e prata,bem como vasos e taças feitos desses metais preciosos. Semnada poupar, enviariam essa riqueza aos gregos, sobretudo aosque gozavam de maior influência nas cidades, que eles nãotardariam a submeter-se, eliminando-se assim os riscos de umabatalha. Os tebanos apoiaram esse parecer, considerando-obastante prudente. Mardônio, porém, manifestou-seinteiramente contrário a um tal arranjo, repelindo com vigor oconselho de Artabazes. Disse que seu exército era muitosuperior ao dos gregos e que, por conseguinte, deviamoferecer-lhes combate, sem esperar que o inimigo, cujas tropasaumentavam dia a dia, recebesse mais reforços. Era precisodesprezar os presságios de Hegesístrato, não violar as leis dosPersas e combater segundo seus costumes.

XLI — Tal a opinião de Mardônio, à qual ninguém seopôs, uma vez que era ele o comandante do exército e nãoArtabazes. O general convocou então os principais oficiais desuas tropas e das tropas gregas que tinha sob suas ordens eperguntou-lhes se tinham conhecimento de algum oráculo quehouvesse predito que os persas deviam todos perecer na Grécia.Nenhum dos oficiais se manifestou; uns por não teremrealmente conhecimento de um tal oráculo; outros temendocontrariar o seu comandante. Mardônio, vendo-os silenciosos,continuou: “Já que nada sabeis a respeito, ou que não ousaisdizê-lo, falar-vos-ei como homem bem informado. Segundo umoráculo, está determinado pelo destino que os persas saquearão,à sua chegada à Grécia, o templo de Delfos, perecendo todosdepois de terem praticado esse ato. Ora, uma vez que temosconhecimento dessa predição, evitaremos saquear o templo,ficando assim eliminada a possibilidade de virmos a perecer por

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esse motivo. Portanto, todos vós, ligados à causa dos Persas,podeis regozijar-vos com a certeza de que levaremos a melhorsobre os nossos inimigos”. Dito isso, Mardônio ordenou que sefizessem os preparativos necessários para a luta, mantendo-setudo em boa ordem, pois a batalha seria travada no dia seguintepela manhã.

XLII — Sei que esse oráculo que Mardônio julgavareferir-se aos Persas não lhes dizia respeito, mas sim aos Ilíriose ao exército dos Enqueleus. Eis aqui o oráculo de Bácis sobreessa batalha que Mardônio se preparava para travar: “Asmargens do Termodonte e os campos do Asopo ficarão cobertosde batalhões gregos; ouço os gritos dos bárbaros; e quandochegar o dia fatal, os medos ali perecerão em grande número,precedendo Láquesis e os destinos”. Este oráculo e muitosoutros semelhantes de Muséia foram concedidos com referênciaaos Persas. Quanto ao Termodonte, o rio a que o oráculo deBácis se refere, corre ele entre Tânagra e Glissante.

XLIII — Naquele mesmo dia, ao anoitecer, Mardônio,depois de examinar os preparativos para o combate, postousentinelas por todo o acampamento. Já ia alta a noite e reinavaprofundo silêncio nos dois campos, estando os combatentesmergulhados no sono, quando Alexandre, filho de Amintas,general e rei dos Lacedemônios, montou a cavalo e dirigiu-separa a guarda avançada dos atenienses. Ali chegando, pediupara falar aos seus generais. Enquanto a maioria das sentinelasatenienses se mantinha em seus postos, outras correram a avisarseus chefes de que acabava de chegar do acampamento persaum homem a cavalo, que se contentara em dizer-lhes,designando os generais atenienses pelos nomes, que desejavafalar com estes.

XLIV — Diante disso, os generais dirigiram-seimediatamente ao local onde se achava a guarda avançada,defrontando-se, ao chegarem ali, com Alexandre, que assim

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lhes falou: “Atenienses, vou confiar-vos um segredo, que vospeço não revelar senão a Pausânias, pois isso causariafatalmente a minha ruína. Jamais o confiaria a vós, não fora ovivo interesse que tenho pela Grécia inteira. Sou grego; minhaorigem remonta aos tempos mais recuados, e sentir-me-iaprofundamente desgostoso se visse a Grécia submetida ao jugoestrangeiro. Tenho a comunicar-vos que os presságiosdeduzidos das entranhas das vítimas sacrificadas aos deuses nãotêm sido favoráveis a Mardônio e ao seu exército. Não fora isso,há muito já vos teriam dado combate. Entretanto, tendodecidido desprezar esses augúrios adversos, Mardônio seprepara agora para atacar-vos ao romper do dia, pois receia, aoque suponho, que o vosso exército aumente cada vez mais.Preparai-vos, portanto, para a luta. Se, entretanto, Mardônioadiar a batalha, permanecei firmes nas vossas posições, pois elesó dispõe de víveres para uns poucos dias mais. Se esta guerraterminar bem para vós, lembrai-vos de tornar livre um homemque, pelo seu interesse pela causa grega, expôs-se a um grandeperigo vindo advertir-vos sobre os propósitos de Mardônio,evitando, assim, que os bárbaros caíssem sobre vós de surpresa.Sou Alexandre da Macedônia”. Isso dizendo, voltou o cavalo epartiu a galope, para ir ocupar novamente seu posto noacampamento persa.

XLV — Os generais atenienses dirigiram-se para a aladireita do exército grego e comunicaram a Pausânias o que lheshavia revelado Alexandre. Depois de ouvir com interesse ainformação, Pausânias, que temia os persas, assim falou aosgenerais: “Já que a batalha será travada amanhã ao nascer dodia, é preciso, atenienses, que vos coloqueis frente aos persas,enquanto que nós nos postaremos ante os beócios e os gregosque com eles se encontram. A razão que apresento para isso é aseguinte: conheceis os Persas e a sua maneira de combater; jáadquiristes experiência disso na batalha de Maratona. Nós,porém, não temos a mesma experiência, uma vez que osEspartanos nunca mediram forças com os Persas; mas

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conhecemos muito bem os Beócios e os Tessálios. Tomai, pois,vossas armas e passai para a ala direita, enquanto que nóspassaremos para a esquerda”. “A vossa sugestão é acertada eveio a tempo — responderam os generais atenienses —. Essaidéia há muito nos ocorrera, quando vimos os persas colocadosfrente às vossas tropas. Não ousámos chamar a vossa atençãopara esse fato, pelo receio de desagradar-vos. Mas como vósmesmo nos fazeis agora essa proposta, aceitamo-la com prazer eestamos dispostos a executar as vossas ordens”.

XLVI — Tendo sido a sugestão bem aceita pelos doislados, os espartanos e os atenienses trataram, logo ao romper daaurora, de ocupar suas novas posições. As tropas beócias,notando o movimento, deram ciência disso a Mardônio, quelogo tratou de modificar a disposição de suas forças, colocandoos persas contra os lacedemônios. Pausânias, notando, por suavez, a manobra do inimigo, reconduziu os espartanos para a aladireita, enquanto Mardônio, a seu exemplo, transferia os persaspara a ala esquerda.

XLVII — Quando retornaram, afinal, às suas posiçõesprimitivas, Mardônio enviou, por um arauto, a seguintemensagem aos espartanos: “Lacedemônios, sois consideradosneste país como gente valente e decidida, que não foge jamaisao combate; que nunca abandona as fileiras; que se mantémfirme no seu posto, sempre dispostos a matar ou a morrer. Não éisso, porém, o que observo; pois, mesmo antes de começar abatalha e de entrardes na liça, já vos colocais frente aos nossosescravos. Tal procedimento não é de homens bravos edecididos. Enganámo-nos redondamente a vosso respeito.Esperávamos, de acordo com a vossa reputação, que nosmandásseis desafiar para o combate por um arauto; que vós,somente vós, vos bateríeis contra os persas. No entanto, nós,que sentimos inteira disposição de enfrentar-vos, em lugar deouvir de vós uma linguagem de bravos, vos encontramostrêmulos e acobardados. Mas, já que, em vez de nos lançardes

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em primeiro lugar o desafio, somos nós que vos lançamos, porque não combateremos em número igual, vós pelos gregos e nóspelos persas? Se sois de opinião que o resto das tropas combatatambém, que entre em luta, mas depois de nós. Se julgaispreferível combatermos sozinhos, aceitamos do mesmo modo,contanto que o partido vitorioso seja considerado vencedor detodo o exército inimigo”.

XLVIII — Transmitida a mensagem, o arauto aguardoupor alguns momentos que os lacedemônios se manifestassem; e,como ninguém se dispusesse a responder-lhe, regressou aoacampamento persa para dar conta de sua missão a Mardônio. Ogeneral, conjecturando sobre o estado de espírito do inimigo ecerto de que obteria facilmente a vitória, lançou contra osgregos sua cavalaria, que, muito hábil em lançar o dardo e ematirar com o arco, causou-lhes tanto maior dano, quanto, nãopermitindo que eles se aproximassem, impossibilitava-os decombater de perto, como naturalmente desejariam. A cavalariaavançou até a fonte de Gargáfie, que fornecia água para todo oexército grego, e obstruiu-a. Somente os lacedemôniosacampavam perto dessa fonte, achando-se as outras tropasgregas afastadas dali, segundo a disposição de seus alojamentos.O Asopo corria nas vizinhanças; mas como a cavalaria persafustigava-os constantemente, impedindo-os de abastecer-se norio, eles recorriam à fonte para suprir suas necessidades.

XLIX — Ficando os gregos privados do seu manancial esendo continuamente molestados pela cavalaria inimiga, osgenerais dirigiram-se à ala direita para deliberar sobre essasituação e sobre outros assuntos; pois, além da difícil situaçãoque o inimigo lhes viera criar com o corte do seu abastecimentode água, outras coisas igualmente graves os inquietavam.Faltavam-lhes víveres, e os homens que haviam ido buscarprovisões no Peloponeso não podiam retornar ao acampamento,porquanto a cavalaria persa lhes barrava a passagem.

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L — Os generais foram de opinião que deviamtransferir-se para a ilha, caso os persas decidissem adiar abatalha. A ilha a que eles se referiam fica situada diante dePlateia, cerca de dez estádios distante do Asopo e da fonte deGargáfie, em cujas proximidades se achavam então acampados.Essa ilha denomina-se Eroe, e encontra-se no meio das terras,sendo formada pelo Asopo, que, descendo do monte Citéronpara a planície, divide-se em dois braços, que deixam entre sium espaço de cerca de três estádios, reunindo suas águas maisadiante. Dizem os habitantes da região que Eroe, a ilha assimformada, é filha do Asopo. Foi, pois, para essa ilha que osgenerais gregos resolveram transferir suas forças, tanto paraterem água em abundância, como para não serem maismolestados pela cavalaria dos bárbaros. Decidiram levantaracampamento durante a noite, com receio de que os persas,vendo-os partir, os perseguissem e lhes perturbassem a marcha.Ficou combinado que, logo que chegassem à ilha de Eroe,enviariam, naquela mesma noite, parte do exército ao Citéron, afim de desembaraçar os que tinham ido buscar provisões e que oinimigo havia encurralado nas gargantas da montanha.

LI — Durante o resto daquele dia tiveram de suportar oscontínuos ataques da cavalaria persa, que se retirou para suasposições ao cair da noite. Chegando a hora combinada para apartida, a maior parte das tropas ergueu acampamento e pôs-seem marcha, sem ter, entretanto, a preocupação de seguirdiretamente para o local determinado. Desviando-se para o ladode Plateia, a fim de evitar qualquer surpresa da cavalariainimiga, essas tropas foram ter ao templo de Juno, situadodiante daquela cidade, a vinte estádios da fonte de Gargáfie, eali acamparam.

LII — Enquanto se estabeleciam nas imediações dotemplo, Pausânias, que as tinha visto partir e julgava que elas sedirigiam para o local combinado, ordenou aos lacedemôniosque tomassem de suas armas e as seguissem. Os comandantes

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mostravam-se todos dispostos a obedecer, exceto Amofaretes,filho de Políades, que comandava um pequeno corpo depitanatas(9). Amofaretes, insurgindo-se contra essa ordem,declarou que jamais fugiria diante dos estrangeiros, e que, pelasua própria vontade, não acarretaria para Esparta essa desonra.Como não havia tomado parte nas deliberações, mostrava-seespantado e revoltado com o procedimento dos generais.Pausânias e Euriânax, contrariados com a desobediência, maisaborrecidos ficaram por terem de abandonar os pitanatas, pois,diante da atitude de Amofaretes, que se recusava a seguir aresolução tomada em comum acordo com os outros gregos,resolveram deixá-los tranqüilos com as tropas da Lacedemônia,esperando que eles acabassem por mudar de conduta.

LIII — Amofaretes foi o único entre os lacedemônios eos tegeatas que preferiu permanecer ali com suas tropas.Enquanto esforços eram feitos para convencê-lo a acompanharas outras tropas e o exortavam a obedecer, os atenienses, queconheciam bem o caráter dos Lacedemônios e sabiam que essepovo pensava de uma maneira e falava de outra, conservaram-setranqüilos nos seus alojamentos. Vendo, porém, que o exércitocomeçava a deslocar-se, enviaram um cavaleiro para saber se osespartanos se julgavam no dever de partir ou se não cogitavamdisso, e também para pedir ordens a Pausânias.

LIV — Chegando ao acampamento dos Lacedemônios,o emissário encontrou-os em seus postos e os principais oficiaisdiscutindo com Amofaretes, procurando convencê-lo aacompanhá-los. Pausânias e Euriânax concitavam-no aocumprimento do dever, dizendo-lhe que não expusesse aoperigo os lacedemônios que haviam ficado sozinhos noacampamento. À chegada do arauto dos atenienses, a discussãoacalorou-se. Foi quando Amofaretes, tomando de uma pequenapedra(10), lançou-a aos pés de Pausânias, dizendo: “Eis aqui omeu voto para que não fujamos diante dos estrangeiros”.Estrangeiros era, como já disse, a designação dada aos bárbaros.

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Pausânias, ante a atitude de Amofaretes, chamou-o de louco einsensato. Voltando-se, em seguida, para o arauto dosatenienses, que acabava de desobrigar-se da missão que ali olevara, disse-lhe que os pusesse ao corrente dos fatos que haviaali presenciado e que viessem ter com ele, a fim de instruí-lossobre os seus próximos movimentos.

LV — O arauto voltou para junto dos atenienses, e o diaveio surpreender os generais lacedemônios e Amofaretes aindaem plena discussão. Pausânias tinha protelado até ali a partida;mas, por fim, persuadido de que, se os lacedemônios sepusessem em marcha com o resto das tropas, Amofaretes não osabandonaria, como realmente aconteceu, deu o sinal de partidae pôs-se a conduzir as tropas para os pontos mais altos. Ostegeatas seguiram-no também; mas os atenienses, marchandoem ordem de batalha, tomaram um caminho diferente doseguido pelos lacedemônios. Estes, não querendo expor-se a umencontro com a cavalaria persa, enveredaram pelas colinas, emdireção ao Citéron, enquanto que os atenienses seguiram pelaplanície.

LVI — Amofaretes, na suposição de que Pausânias nãoousaria jamais abandoná-lo, nem a ele nem aos seus, empregavatodos os esforços para conter as tropas e impedi-las deabandonar seus respectivos postos. Mas ao vê-las partir comPausânias, julgou que elas o tinham abertamente abandonado; e,ordenando à sua companhia que se munisse de suas armas, comela partiu para juntar-se ao resto do exército. Pausâniasestacionou às margens do Moloeis, no lugar denominadoArgiópio, onde existe um templo consagrado a Ceres Eleusiana,e ali aguardou a chegada de Amofaretes, que ele acreditavaacabaria por mudar de opinião. Estava decidido a voltar parasocorrê-lo, caso ele se obstinasse a permanecer no seu postocom seus comandados. Finalmente, eis que surge Amofaretescom seus homens, para alívio e satisfação de Pausânias. Acavalaria inimiga pôs-se a acossar os gregos, como já vinha

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fazendo. Os bárbaros, tendo notado que as tropas adversáriashaviam abandonado o acampamento, foram em sua perseguição,e ao alcançá-las puseram-se a fustigá-las.

LVII — Quando Mardônio soube que os gregos setinham retirado durante a noite e viu o acampamento deserto,mandou chamar Tórax de Larissa, bem como Eurípilo eTrasideio, seus irmãos, aos quais assim falou: “Filhos deAleuas, que me direis ainda, vendo o acampamentoabandonado? Vós, vizinhos dos Lacedemônios, afirmáveis queeles jamais fugiam ao combate e que eram os mais bravos detodos os homens. Vós os vistes, entretanto, mudar de posição naala que ocupavam, e agora estamos todos vendo que elesempreenderam a fuga durante a noite. Quando tiveram decombater contra homens verdadeiramente bravos, mostraramque no fundo não passavam de covardes e que só se distinguiamentre os gregos, tão covardes quanto eles. Como não tivestes,até agora, ocasião de comprovar o valor dos Persas,reconhecendo apenas nos Lacedemônios alguma coragem,perdôo os elogios que lhes fizestes. Muito me surpreendeu verArtabazes mostrar temor pelos lacedemônios, achando, porcovardia, que devíamos levantar acampamento e irmos nosencerrar na cidade de Tebas, para ali sustentarmos o cerco doinimigo. Não deixarei de fazer o nosso soberano ciente dessasugestão. Mas deixemos para falar disso em outra ocasião. Oque devemos fazer agora é não permitir que os gregos nosescapem; tratemos de ir ao seu encalço para aplicar-lhes amerecida punição por todo o mal que nos fizeram até agora.

LVIII — Tendo assim se expressado, Mardônioatravessou o Asopo com as forças persas e lançou-se com elasao encalço dos gregos, seguindo-lhes as pegadas, supondo queestes tivessem realmente fugido à batalha. Essa perseguição eradirigida contra os lacedemônios e os tegeatas, pois as grandeselevações do terreno não lhe permitiam ver os atenienses, quetinham seguido pela planície. Logo que os outros generais do

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exército persa viram as tropas saírem em perseguição aosgregos empunharam seus estandartes e puseram-se a segui-loscom a maior rapidez, em atropelo, sem guardarem seusrespectivos lugares, soltando gritos de guerra e fazendo enormealarido, como se fossem desbaratar inimigos em fuga.

LIX — Pausânias, vendo-se acossado pela cavalariapersa, enviou um arauto ao encontro dos atenienses, com aseguinte mensagem: “Atenienses, numa luta como esta, de quedepende a liberdade ou a servidão da Grécia, fomos traídos, evós também, pelos nossos aliados, que nos abandonaram à noitepassada. Não estamos, por isso, menos decididos a defender-noscom vigor e a auxiliar-nos mutuamente. Se fôsseis vós osprimeiros atacados pela cavalaria inimiga, estávamos no deverde ir em vosso socorro, com os tegeatas que permaneceramconosco, fiéis à pátria; mas, já que somos nós os atacados,achando-nos, por isso, em difícil situação, é justo que venhaisem nosso auxílio, ajudando-nos a aliviar a pressão a queestamos sendo submetidos. Mostrai-nos vossa boa vontadeenviando-nos tropas armadas de dardos. A bravura e odesprendimento que tendes demonstrado nesta guerra e de quesaberemos dar testemunho levam-nos a esperar que atendereisprontamente ao nosso pedido”.

LX — Diante disso, os atenienses lançaram-se emsocorro das tropas conduzidas por Pausânias, dispostos adefendê-las com todo ardor; mas viram-se inopinadamenteatacados pelos gregos que faziam parte do exército persa. Esseinesperado ataque desnorteou-os e encheu-os de aflição,porquanto impedia-os de socorrer os lacedemônios. Estes e ostegeatas, seus inseparáveis aliados, embora privados dessereforço, contavam com cinqüenta mil homens e três mil,respectivamente, incluindo as tropas ligeiras. Dispostos aenfrentar Mardônio e suas tropas, atiraram-se à luta, ao mesmotempo que mandavam realizar sacrifícios aos deuses. Osaugúrios deduzidos do exame das entranhas das vítimas não

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lhes eram, todavia, favoráveis; e, enquanto isso, o solo iaficando juncado de cadáveres de combatentes gregos, sendomaior ainda o número de feridos; pois os persas, tendo feitouma espécie de barreira com seus escudos, lançavam contra elesprodigiosa quantidade de flechas, deixando-os desnorteados.Continuando a não lhes serem favoráveis os augúrios obtidosdos sacrifícios, Pausânias voltou os olhos para o templo deJuno, perto de Plateia, suplicando à deusa que não permitisseque os seus se vissem frustrados em suas esperanças.

LXI — Fazia ele ainda essas súplicas, quando ostegeatas, num movimento brusco, atiraram-se decididos contraos bárbaros; e mal havia concluído suas preces à deusa, ospresságios revelaram-se favoráveis, e já os lacedemônios selançavam também contra o inimigo, abandonando seus arcos esustentando o choque com galhardia. Violento combatetravou-se então junto à barreira de escudos; e quando esta sedesfez, a luta localizou-se durante algum tempo nasproximidades do templo de Ceres, os bárbaros apossando-se daslanças dos gregos e quebrando-as entre as mãos. Nessecombate, os persas não se mostraram inferiores aos gregos nemem força nem em audácia; mas não estando bem armados e nãopossuindo nem a habilidade nem a prudência dos seusantagonistas, atiravam-se um a um, ou em grupos de dez contraos espartanos, que os faziam em pedaços.

LXII — Os persas acossavam vivamente os gregos nosetor onde Mardônio, montado num cavalo branco, combatiaem pessoa, à frente de mil persas de escol. Enquanto seu chefese manteve vivo e concitando-os à luta pela vitória, elessustentaram com galhardia os ataques dos lacedemônios,defendendo-se valentemente e matando grande número deinimigos; mas quando Mardônio tombou morto, e esse grupo deelite, o mais forte do exército, no meio do qual ele combatia, foirechaçado, o resto bateu em retirada, dando a vitória aoslacedemônios. Os persas lutavam com duas desvantagens: seu

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traje longo, que lhes embaraçava os movimentos(11), e suasarmas leves. Este último inconveniente era tanto maior quandocombatiam a descoberto, contra homens muito bem armados.

LXIII — Nessa batalha os espartanos vingaram emMardônio a morte de Leônidas, como havia predito o oráculo; ePausânias, filho de Cleômbroto e neto de Anaxandrides, obtevea mais bela vitória de que temos conhecimento. Falamos dosancestrais desse príncipe ao mencionarmos os de Leônidas, poissão os mesmos, tanto de um, como do outro.

Mardônio foi morto por Aimnesto, eminente cidadão deEsparta. Algum tempo depois da guerra contra os Persas,Aimnesto pereceu com trezentos homens que comandava,batendo-se em Esteniclaro contra os Messenianos.

LXIV — Batidos e postos em fuga pelos lacedemônios,os persas refugiaram-se no seu acampamento e atrás do muro demadeira que haviam erguido em torno de Tebas. Causa-meespanto ver que, embora o combate tenha sido travado perto dobosque sagrado de Ceres, nenhum persa ali procurou refúgio;nenhum foi encontrado morto junto ao templo da deusa. Se nosé permitido manifestar nossa opinião sobre as coisas divinas,penso que a deusa lhes interditou a entrada ali, por terem elesincendiado seu templo em Elêusis.

LXV — Artabazes, filho de Fárnaces, que desde o iníciose manifestara contrário à permanência de Mardônio na Gréciaapós o regresso do soberano persa para a Ásia, vendo que,apesar de todas as razões alegadas para dissuadir o general deoferecer combate às forças gregas, nada conseguia, resolveuagir no sentido da sua segurança e da de suas tropas, poisreprovava a maneira de agir de Mardônio. Comandava ele umgrande corpo de tropas, montando a quarenta mil homens,aproximadamente. Enquanto se desenrolava a luta, como elesabia muito bem qual deveria ser o resultado da mesma,marchou adiante, ordenando aos seus comandados que o

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seguissem num só corpo, qualquer que fosse a direção por eletomada e quando o vissem apressar o passo. Dadas essasordens, avançou primeiramente como se fosse ao encontro doinimigo, mas depois de haver coberto pequena distância, vendoas outras tropas persas em completa derrocada, mudou dedireção, fugindo desabaladamente, não para o muro de madeirada cidade de Tebas, mas na direção dos focídios, com opropósito de alcançar o mais rapidamente possível oHelesponto.

LXVI — Os beócios combateram com denodo e durantemuito tempo contra os atenienses; mas os outros gregoscomponentes do exército persa conduziram-se com displicênciae covardia. Os tebanos que haviam abraçado a causa dos Medosportaram-se também com galhardia, atirando-se à luta com talardor e indiferença ao perigo, que trezentos dos mais distintos emais bravos dentre eles tombaram sob os golpes dos atenienses.Por fim, vendo-se em flagrante desvantagem, fugiram paraTebas, mas não na direção dos persas e daquela multidão detropas que, longe de haverem praticado alguma ação de relevo,bateram em retirada sem mesmo terem combatido.

LXVII — Tal fato prova a influência dos persas sobre osseus aliados. Com efeito, se estes fugiram antes mesmo deentrarem em luta com o inimigo, foi porque os persas lhesderam o exemplo. Assim, todo o exército pôs-se em fuga, comexceção da cavalaria, e particularmente a dos beócios. Estafavoreceu os persas na fuga, aproximando-se continuamente doinimigo e protegendo seus companheiros contra os ataques dosgregos, que, vendo-se senhores da situação, puseram-se aperseguir os persas, praticando grande carnificina entre osfugitivos.

LXVIII — Enquanto os bárbaros fugiam para todos oslados, vieram dizer aos gregos acampados em volta do templode Juno e que não haviam tomado parte na batalha, que esta

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tinha sido travada e que Pausânias saíra vencedor. Ante a boanova, os coríntios, os megários e os fliásios puseram-se emmarcha desordenada, os primeiros pela base da montanha, parairem ao templo de Ceres, e os outros pela planície, com omesmo objetivo.

Quando os megários e os fliásios se aproximaraminadvertidamente do local onde se encontravam estacionadastropas inimigas, a cavalaria dos tebanos, comandada porAsopodoro, filho de Timandro, vendo-os aproximar-sedesprotegidos e sem guardarem a necessária formação, caiusobre eles, deitando por terra cerca de trezentos deles eperseguindo o restante até o monte Citéron, onde os alcançou,impondo-lhes a mesma sorte que aos demais. Assim pereceramingloriamente essas tropas.

LXIX — Logo que os persas e seus aliados chegaram aoseu campo entrincheirado, trataram de fortificar a muralha damelhor maneira possível e de subir às suas torres, antes dachegada dos lacedemônios. Estes, aproximando-se, lançaram-sedecididos contra a muralha, encontrando os persas firmes nadefesa das suas posições. Os persas chegaram mesmo a obteralgumas vantagens sobre os adversários antes do aparecimentodos atenienses, pois os espartanos não conheciam bem a arte deatacar praças fortificadas. Mas quando os atenienses a eles seuniram, a luta redobrou de violência, prolongando-se por muitotempo. Finalmente, o valor e a persistência dos atacantestornaram-nos senhores do reduto. Derrubando uma parte damuralha, os gregos penetraram triunfalmente no acampamento.Os tegeatas, que foram os primeiros a entrar, saquearam a tendade Mardônio, apossando-se, entre outras coisas, da manjedourade seus cavalos, toda de bronze e de perfeito acabamento.Ofereceram-na, mais tarde, ao templo de Minerva Aléia.Quanto ao resto dos despojos, levaram-no para o mesmo localonde os gregos iam reunindo os que obtinham.

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Os persas, vendo a enorme brecha aberta na muralha,consideraram-na inútil para a sua defesa e abandonaram suasposições. No estado de estupor em que fica uma multidão deindivíduos aterrorizados ao ver-se cercada num pequeno espaço,deixaram-se matar quase sem nenhuma resistência, sendo que,dos trezentos mil que eram, não escaparam senão três mil, seexcetuarmos os quarenta mil que acompanharam Artabazes nafuga. Os espartanos não perderam, ao todo, mais do quenoventa e um soldados, os tegeatas dezesseis e os ateniensescinqüenta e dois.

LXX — A infantaria persa, a cavalaria dos sácios eMardônio, seu comandante supremo, foram os que mais sedestacaram entre os bárbaros. Do lado dos gregos, os tegeatas eos atenienses portaram-se com denodo, mas os lacedemôniossuplantaram a todos em bravura, atacando as melhores tropasinimigas e derrotando-as. Aristodemo, a meu ver, foi o que maisse distinguiu. Tinha sido o único dos trezentos espartanos deLeônidas a ver-se alvo de censuras e coberto de opróbrio porhaver fugido durante o combate das Termópilas. Possidônio,Filócion e o espartano Amofaretes foram, depois deAristodemo, os que mais belos feitos praticaram. Todaviasempre que se falava dos que mais se haviam distinguido nessabatalha, os espartanos porventura presentes replicavam queAristodemo, querendo morrer à vista do exército, a fim dereparar sua falta, atirou-se contra o inimigo como um louco,praticando feitos prodigiosos, enquanto que Possidôniopraticara ações igualmente notáveis sem o propósito deliberadode morrer, o que se tornava, sem dúvida, mais honroso para ele.Nessas observações, a inveja deve ser levada em conta, pois,enquanto tributavam-se grandes honras a todos esses bravos queacabo de citar e que pereceram na batalha, nenhumahomenagem se prestava à memória de Aristodemo, somenteporque ele quis morrer para redimir-se das suas culpas passadas.

LXXI — Foram esses os que mais se distinguiram na

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batalha de Plateia. Calícrates, tido como o homem mais belo doexército, não somente entre os lacedemônios, mas entre osoutros aliados gregos, não pereceu em ação. Encontrava-sesentado, no seu posto, quando uma flecha lançada pelo inimigoo feriu, enquanto Pausânias, ao lado, fazia sacrifícios aosdeuses. Carregado dali pelos seus companheiros, testemunhouseu pesar a Arimnesto de Plateia pelo que acabava desuceder-lhe; não que deplorasse perder a vida pela Grécia, masporque não tivera oportunidade de mostrar o seu valor, nãopraticando, assim, nenhuma façanha digna da coragem de quese achava animado.

LXXII — Dizem que Sofanes, filho de Eutíquides, doburgo de Deceléia, figura entre os atenienses que se cobriram deglória nessa jornada memorável. Os habitantes desse burgo,segundo contam os próprios Atenienses, tiveram, em tempospassados, um procedimento que lhes trouxe grandes vantagens.Tendo os Tindáridas invadido a Ática com um exércitoconsiderável para exigirem a entrega de Helena, cujo paradeiroignoravam, expulsaram os habitantes daquela região. Então osDeceleus — ou o próprio Decelo —, indignados com o raptocometido por Teseu e receando pela sorte da Ática inteira,revelaram tudo aos tindáridas e conduziram-nos a Afidnas, queTitaco, nativo do país, lhes entregou. Esse procedimento dosDeceleus valeu-lhes ficarem para sempre isentos dos tributosdevidos a Esparta, bem como o direito ao primeiro lugar nasassembléias. Tais privilégios ainda hoje lhes são outorgados; demaneira que, na guerra do Peloponeso, que se verificou muitosanos mais tarde, o exército lacedemônio poupou o burgo deDeceléia, devastando todo o resto da Ática.

LXXIII — É curiosa a versão que corre quanto àmaneira pela qual Sofanes de Deceléia conseguiu sobressair-seentre os atenienses na batalha de Plateia. De acordo com talversão, ele conduzia consigo uma âncora de ferro, presa àcintura da sua couraça por uma corrente de cobre; e todas as

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vezes que se aproximava do inimigo, lançava-a por terra, a fimde que não pudessem derrubá-lo quando se atirassem sobre ele.Quando o adversário ou adversários fugiam, ele recolhiarapidamente a âncora e punha-se a persegui-los. Afirma-se,todavia, contrariando essa versão, que a âncora que ele traziapor ocasião da batalha não era real, mas desenhada no seuescudo, do qual nunca se separava.

LXXIV — Atribui-se também a Sofanes um feito dosmais brilhantes. Por ocasião do cerco levado a efeito pelosAtenienses contra Egina, ele desafiou para um combate singulara Euríbates(12) de Argos, vencedor do pentatlo, e matou-o. Noentanto, algum tempo depois da batalha de Plateia, achando-secom Leagro, filho de Gláucon, à testa do exército ateniense, foimorto em Datos pelos edônios, lutando pela posse das minas deouro.

LXXV — Pouco depois da batalha de Plateia, vencidabrilhantemente pelos gregos, uma mulher, egressa das fileiraspersas, veio procurá-los. Era uma concubina de Farandantes,filho de Tespis, senhor persa. Ao ter conhecimento da derrotatotal dos persas ante o exército grego, a concubina dirigiu-se aoquartel dos lacedemônios num carro rebrilhante de ouro etrajando soberbas vestes. Reconhecendo imediatamentePausânias pelas ordens que o via dar aqui e ali aos seuscomandados e pelo muito que dele ouvira falar, conhecendomesmo a sua pátria de origem, aproximou-se dele e,ajoelhando-se, disse-lhe: “Rei de Esparta(13), libertai daservidão uma humilde suplicante, a quem já prestastes grandeserviço exterminando esses bárbaros que não respeitam nem osdeuses nem os gênios. Sou da ilha de Cós e filha deHegetórides, filho de Antágoras. Um persa, tendo-me raptadode minha pátria, conservou-me em seu poder”. “Mulher —respondeu Pausânias —, confia em mim, primeiro, comosuplicante que és, e, se dizes a verdade, como filha deHegetórides, o hóspede mais ilustre que já tive nesta ilha”.

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Assim falando, Pausânias confiou-a aos éforos presentes,enviando-a mais tarde para Egina, para onde ele manifestara odesejo de ir.

LXXVI — Logo após a partida dessa mulher chegavamos mantineus, quando a batalha já tinha terminado. Ao saberemque haviam chegado demasiado tarde para a luta mostraram-seaflitos e decepcionados, dizendo ser justo que punissem a sipróprios por essa negligência. Informados de que os medoscomandados por Artabazes haviam fugido, quiserampersegui-los até a Tessália, no que foram dissuadidos peloslacedemônios. Quando, porém, retornaram à pátria, baniramseus generais, responsabilizando-os pela sua ausência nabatalha. Logo depois dos mantineus chegavam os eleus, queretornaram tão acabrunhados quanto aqueles, culpando tambémseus comandantes e banindo-os do solo pátrio.

LXXVII — Lampo, filho de Pitéias, o cidadão maisilustre de Egina, então no acampamento dos eginetas emPlateia, vendo-se assaltado por um pensamento ímpio, foi àprocura de Pausânias e disse-lhe: “Filho de Cleômbroto,praticastes uma proeza admirável pela sua grandeza e pelo seualcance. Libertando a Grécia, os deuses vos concederam umaglória jamais alcançada por nenhum dos gregos queconhecemos. Concluí a vossa obra, para que a vossa reputaçãose torne ainda maior e os bárbaros receiem, daqui por diante,praticar ações criminosas contra povos ciosos da sua liberdade.Quando Leônidas tombou gloriosamente nas Termópilas,Mardônio e Xerxes mandaram cortar-lhe a cabeça edependurar-lhe o corpo num poste. Tratando Mardônio damesma maneira, sereis louvado não só pelos Espartanos, comopelo resto dos gregos, porquanto estareis vingando Leônidas,vosso tio pelo lado paterno”. Foi essa a sugestão que fez Lampoa Pausânias, julgando que este a aprovaria.

LXXVIII — “Meu amigo de Egina — replicou

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Pausânias —, estimo a tua benevolência, assim como sempreestimei a tua maneira prudente de agir; mas a tua sugestão écontrária à justa razão. Depois de enalteceres a mim, a minhapátria e as minhas ações, tu me rebaixas, considerando-mecapaz de ultrajar um morto, e acrescentas que, assim agindo,minha reputação aumentará. Semelhante conduta é mais própriados bárbaros do que dos gregos, e nós mesmos costumamoscensurá-los por assim agirem. Não permitam os deuses que euseja levado, por esse preço, e satisfazer os Eginetas e os queaprovam semelhante procedimento. Basta-me merecer a estimados Espartanos, não praticando ações que me pareçamimpróprias ou desonestas. Quanto a Leônidas, que queres queeu vingue, penso que ele já foi suficientemente vingado e quesua memória tira o seu maior esplendor daquela legião demortos que ficou nas Termópilas. Peço-te, pois, que não tedirijas mais a mim(14) para dar-me semelhantes conselhos”.Ante essa réplica, Lampo retirou-se, sem mais nada dizer.

LXXIX — Pausânias baixou uma ordem proibindo tocarnos despojos da batalha e deu instruções aos ilotas para querecolhessem todos os objetos de valor deixados pelo inimigo nocampo da luta e no acampamento. Os ilotas puseram-se aexecutar a ordem, encontrando tendas tecidas em ouro e prata,leitos dourados, leitos prateados, crateras, taças e outros vasos,e, nos carros, fogões de ouro e prata. Tiraram aos mortos osbraceletes, os colares e as cimitarras de ouro, não dandoimportância alguma às suas vestes bordadas. Os ilotasencarregados dessa tarefa apropriaram-se de muitos dessesobjetos, que venderam depois aos eginetas, apresentando apenasos que não puderam esconder. Daí o rápido enriquecimento doseginetas participantes da batalha, os quais compraram dos ilotasouro como se fosse cobre.

LXXX — A décima parte desses despojos foi destinadaaos deuses. Para o deus de Delfos mandou-se fazer um tripé deouro, sustentado por uma serpente de bronze de três

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cabeças(15), o qual ainda hoje pode ser visto ao pé do altar;para o deus de Olímpia, um Júpiter de bronze, de dez côvadosde altura; e para o deus do istmo, um Netuno de bronze, de setecôvados de altura. Separada a décima parte dos despojos, foi oresto distribuído aos guerreiros, a cada um segundo o seumerecimento, cabendo-lhes as concubinas dos persas, osanimais de carga, ouro, prata e muitos objetos de alto valor. Nãose faz menção dos despojos concedidos aos que mais sedistinguiram na batalha de Plateia. Creio, entretanto, que elesreceberam alguma recompensa particular. A Pausânias coubetambém uma décima parte dos despojos, incluindo mulheres,cavalos, dinheiro (talentos), camelos e várias outraspreciosidades.

LXXXI — Dizem que Xerxes, ao fugir da Grécia,deixara a Mardônio os utensílios que trouxera consigo naexpedição: vasilhame de ouro e prata e ricos tapetes de diversascores; e que Pausânias, ao ver essas riquezas, ordenou aoscozinheiros de Mardônio que preparassem um banquete, comose fosse para seu amo. Executada a ordem, Pausânias teve à suafrente leitos de ouro e prata com ricos adornos, mesas de ouro eprata, enfim, a aparelhagem indispensável para um festimesplêndido. Tomado de surpresa ante tão grande fausto equerendo divertir-se, ordenou a seus servos que lhe servissemuma ceia à maneira da Lacedemônia; e ao observar a enormediferença entre o seu repasto e o que fizera preparar paraMardônio, não pôde deixar de rir. Mandando vir à sua presençaos generais gregos, disse-lhes, apontando as duas mesas postaspara o ágape: “Gregos, mandei-vos chamar para mostrar-vos aestupidez do general dos persas, que, dispondo de tão boa mesa,aqui veio para privar-nos da nossa, tão miserável”.

LXXXII — Muito tempo depois dessa batalhaencontraram-se ainda vasos cheios de ouro, de prata e outrasriquezas. Descobriu-se também, entre os cadáveres descarnadosdos combatentes, um crânio formado de um só osso, sem sutura

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alguma. Distinguiam-se os dois maxilares, superior e inferior,onde os dentes se apresentavam constituídos igualmente de umsó osso. Encontrou-se, no mesmo local, o esqueleto de umhomem de cinco côvados de altura.

LXXXIII — No dia seguinte ao da batalha, o corpo deMardônio desapareceu. Quem o teria levado dali? Foi o que nãopude apurar. Ouvi dizer que vários indivíduos de diferentesnações lhe deram sepultura, pelo que foram regiamenterecompensados por Artontes, filho do general persa. Outros,porém, afirmam que quem arrebatou furtivamente o corpo esepultou-o foi Dionisiófanes de Éfeso.

LXXXIV — Repartidos os despojos da batalha dePlateia, os gregos sepultaram os seus mortos, cada naçãocumprindo esse último dever para com os seus próprios. Oslacedemônios abriram três covas; uma para os irenos(16), emcujo número se achavam Possidônio, Amofaretes, Filócion eCalícrates; a segunda para os outros espartanos, e a terceira paraos ilotas. Os tegeatas foram enterrados à parte, em mistura unscom os outros. Os megários e os fliásios procederam da mesmamaneira para com os seus compatriotas abatidos pela cavalariainimiga. Os outros povos aliados que não se achavamrepresentados por seus mortos nas sepulturas abertas em Plateia,envergonhados disso, mandaram erguer, como vim a saber,cenotáfios, a fim de se fazerem honrar pela posteridade. Aelevação de terra que marca a sepultura dos combatenteseginetas foi feita, segundo me informaram, dez anos depois dabatalha, a pedido do povo de Egina, por Cléadas, natural dePlateia e filho de Antódico.

LXXXV — Depois de se desobrigarem de seus últimosdeveres para com os seus mortos em Plateia, os gregosresolveram, ao cabo de demoradas deliberações, marchar contraTebas e intimar os habitantes a entregar-lhes os que haviamdefendido a causa dos persas, especialmente Timegênidas e

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Atagino, chefes do referido grupo, fazendo-lhes sentir que, senão fossem atendidos, manteriam o cerco da cidade até vê-latotalmente destruída. Tomada essa resolução, puseram-se acaminho, chegando diante de Tebas onze dias depois da batalha,estabelecendo logo o sítio. Enviaram a intimação aos Tebanos,e, ante a recusa destes, puseram-se a devastar-lhes as terras, aomesmo tempo que atacavam a praça forte.

LXXXVI — Ao cabo de vinte dias, Timegênidas, vendoque as devastações não cessavam, assim falou aos Tebanos:“Tebanos, já que os gregos estão decididos a não levantar ocerco desta praça enquanto não a destruírem ou não formosentregues a eles, que a Beócia não continui sofrendo, por nossacausa, tais devastações. Se a exigência que fazem é um pretextopara extorquir-nos dinheiro, que o tesouro público o forneça,pois não fomos os únicos a abraçar a causa dos Persas, e ofizemos juntamente com a república. Se, porém, eles cercamTebas com a finalidade única de apoderar-se de nós, estamosdispostos a entregar-nos. Ficai tranqüilos, pois saberemosdefender-nos”. Considerando justa e acertada essa decisão, osTebanos mandaram dizer a Pausânias, por um arauto, queestavam resolvidos a entregar-lhes as pessoas exigidas.

LXXXVII — Estabelecido o acordo, Atagino fugiu; masseus filhos foram entregues a Pausânias, que os enviou de volta,dizendo que, naquela idade, não podiam eles ter abraçado acausa dos Persas. Os outros entregues pelos Tebanos ao generallacedemônio julgavam que lhes seria permitido defender-se.Estavam, realmente, persuadidos de que com dinheiroconseguiriam justificar-se perante os gregos. Pausânias,prevendo isso, afastou as tropas aliadas e, quando teve ostraidores em seu poder, conduziu-os a Corinto, ondeaplicou-lhes a pena máxima.

LXXXVIII — Artabazes, filho de Fárnaces, que haviafugido de Plateia, já se encontrava bem longe dali. Quando

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chegou à Tessália, os habitantes convidaram-no para um festim,e como ainda ignoravam o que se havia passado em Plateia,pediram-lhe notícias do resto do exército. Sabendo que sedissesse a verdade corria o risco de ser morto, juntamente comas suas tropas, pois os Tessálios não deixariam de atacá-los aoserem informados dos acontecimentos que culminaram com asua fuga ante as forças inimigas, Artabazes resolveu ocultar oque se passara, dizendo apenas aos que o interrogavam:“Apresso-me, como vedes, a chegar o mais depressa possível àTrácia, para onde me enviaram com estas tropas para resolverassunto de suma importância. Mardônio em pessoa nos segue deperto com o seu exército, e dentro em pouco estará tambémaqui. Procurai recebê-lo condignamente, tratando-o com amaior consideração. Não havereis de arrepender-vos por isso”.Tendo dado essas explicações que lhe ocorreram no momento,Artabazes despediu-se de seus hospedeiros e atravessou emmarcha forçada a Tessália e a Macedônia, indo diretamente àTrácia, de onde seguiu com a mesma rapidez, cortandocaminho, para Bizâncio, ali chegando com suas fileirasdesfalcadas de grande número de soldados, massacrados pelosTrácios ou mortos pela fome e fadiga. Deixando Bizâncio,atravessou o Helesponto, regressando assim à Ásia.

LXXXIX — No mesmo dia em que os bárbaros forambatidos em Plateia, o foram também em Mícale, na Iônia.Enquanto a frota grega se achava em Delos, sob o comando deLeotíquides da Lacedemônia, os habitantes de Samos delegarampoderes para entrar em entendimento com os chefes navais aLampo, filho de Trásicles, Atenágoras, filho de Arquestrátides,e a Hegesístrato, filho de Aristágoras, sem o conhecimento deTeoméstor, a quem os Persas haviam confiado o governo deSamos, que ele exercia com mão de ferro. Dirigindo-se aosgenerais da frota, Hegesístrato, entre muitas outras coisas,disse-lhes que bastava que eles surgissem nas costas da Iônia,para que o país inteiro se sublevasse, pois os bárbaros não osesperavam. Invocando, em seguida, os deuses que lhes eram

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comuns, exortou os chefes gregos a libertá-los da servidão, poisque eram também gregos, e a vingá-los dos bárbaros.Expondo-lhes a facilidade da empresa, disse-lhes que os naviosdos Persas manobravam mal e que suas equipagens eraminferiores em tudo às dos gregos, acrescentando que se estessuspeitavam de um ardil para atraí-los ao perigo, estavamprontos a permanecer nos navios como reféns.

XC — Ante a insistência de Hegesístrato, Leotíquidesquis saber o seu nome, ou porque visse naquilo um bompresságio, ou por um desígnio dos deuses. Quando Hegesístratodeclinou o seu nome, o comandante grego, sem querer ouvirmais, disse-lhe que aceitava aquele presságio, acrescentando:“Quero apenas que tu e os que te acompanham nos prometam,sob juramento, que os habitantes de Samos farão aliançaconosco, auxiliando-nos com todo empenho, e podes regressartranqüilo à tua pátria”.

XCI — Prometendo, sob juramento, que eles teriam aaliança e a inteira cooperação dos habitantes de Samos, osdelegados regressaram para dar conta da sua missão, excetoHegesístrato, que recebeu ordem de embarcar em um dosnavios, incorporando-se às forças navais.

XCII — Durante todo aquele dia os combatentes gregosmantiveram-se em repouso, e na manhã do dia seguinterealizaram sacrifícios aos deuses, sendo-lhes favoráveis osaugúrios deduzidos do exame das entranhas das vítimas.Tinham eles por adivinho Deifono, de Apolônia, cidade situadano golfo Iônio, filho de Eveno, a quem aconteceu estranho fato,que passo a relatar. Existem na cidade de Apolônia rebanhosconsagrados ao sol. Durante o dia, esses rebanhos pastam àsmargens de um rio que desce do monte Lácmon, atravessaaquela cidade e desemboca no mar, perto do porto de Órico;mas à noite são guardados por um habitante da cidade,escolhido todos os anos entre os cidadãos de mais alta

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categoria, quer pelo nascimento, quer pelas suas posses; pois osApolinatas, em vista da advertência de um oráculo, cercavamesses rebanhos do maior cuidado. Passavam eles a noite numagruta afastada da cidade. Eveno, tendo sido escolhido para essamissão, dormiu quando devia velar. Os lobos, entrando nagruta, devoraram cerca de sessenta animais. Despertando evendo o que acontecera, Eveno resolveu ocultar o fato, com aintenção de adquirir outros animais para substituir os quehaviam sido devorados pelas feras. Contudo, os Apolinatasvieram a ter conhecimento da verdade, e, indignados,submeteram Eveno a julgamento, condenando-o a perder avista, por ter dormido quando devia estar vigilante. Mas depoisque lhe vazaram os olhos, os rebanhos deixaram de procriar e aterra cessou de produzir frutos. Essa calamidade lhes havia sidopredita pelo oráculo de Dodona e de Delfos. Os profetas,consultados sobre a causa de tamanha desgraça, responderamconstituir aquilo uma punição pela injustiça que haviamcometido, cegando Eveno, guarda dos rebanhos sagrados.Disseram que eles próprios tinham enviado os lobos e quecontinuariam a vingá-lo até que os Apolinatas reparassem a suainjustiça para com ele. Quando isso se desse, eles própriosconcederiam a Eveno um dom que o faria parecer a muitos umhomem verdadeiramente feliz.

XCIII — Ante essa resposta, que lhes foi dada sobsigilo, os Apolinatas incumbiram alguns de seus concidadãos deirem à procura de Eveno, a fim de sondá-lo quanto à suamaneira de sentir com relação à pena que lhe fora imposta. Osemissários foram encontrar Eveno sentado numa cadeira.Tomando assento ao seu lado, puseram-se a falar-lhe sobrecoisas banais, fazendo, aos poucos, recair a conversação sobre adesgraça que o atingira, terminando por perguntar-lhe comoreceberia uma reparação dos Apolinatas, se eles se mostrassemdispostos a assim proceder, e qual a que ele considerava maisjusta no caso. Eveno, que ignorava a resposta do oráculo,respondeu que, se os Apolinatas, em reparação ao mal que lhe

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causaram, lhe concedessem terras, escolheria as de dois de seusconcidadãos, cujos nomes citou, consideradas as melhores detodo o país. Gostaria também que lhe dessem a mais bela casada cidade. Com tais compensações ficaria satisfeito, cessando assuas queixas contra os seus concidadãos.

“Eveno — disseram os emissários —, os Apolinatas teconcedem, obedecendo às ordens do oráculo, a reparação queexiges pela perda da visão”. Posto, então, ao corrente dos fatosque se seguiram à sua punição, Eveno mostrou-se bastantecontrariado por haver sido enganado; mas os seus desejos foramsatisfeitos, pois os Apolinatas adquiriram as propriedades queele havia escolhido e fizeram-lhe presente delas. Logo depois,os deuses lhe concederam o dom da adivinhação, com o que eleadquiriu grande celebridade.

XCIV — Deifono era, como já disse, filho desse Eveno,e havia acompanhado as tropas coríntias na qualidade deadivinho do exército. Há quem diga, entretanto, que Deifononão era filho de Eveno, mas que, servindo-se do nome deste,percorreu toda a Grécia concedendo oráculos por dinheiro.

XCV — Sendo-lhes favoráveis os presságios deDeifono, os gregos partiram de Delos com a sua frota,dirigindo-se para Samos. Chegando a Cálama, nessa ilha,ancoraram nas proximidades do templo de Juno e prepararam-separa um combate naval. Os persas, tendo sabido que a frotagrega vinha contra eles, movimentaram-se em direção à costa,permitindo aos fenícios que se reparassem, já que estes não seconsideravam bastante fortes para um combate naval. A frotados bárbaros tomou a direção do continente, a fim de colocar-sesob a proteção das tropas de terra que haviam acampado emMícale e que, fazendo parte do exército, ali tinham permanecidopor ordem de Xerxes. Essas tropas montavam a sessenta milhomens e eram comandadas por Tigranes, o homem mais belo ede maior estatura entre os persas. Os generais da frota tinham

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resolvido colocar os seus navios nas praias, tanto para pô-lossob a proteção do exército de terra, como para proteger os seushomens numa retirada.

XCVI — Chegando às proximidades do templo dasEumênides, no território de Mícale, e da embocadura do Gésone do Escolopoeis, onde existe um templo dedicado a CeresEleusiana, construído por Filisto, filho de Pásicles, que haviaacompanhado Neleu, filho de Codro, quando este foi fundarMileto, arrastaram os navios para terra e cercaram-nos com ummuro de pedras e de madeira, cortando, para esse fim, grandenúmero de árvores frutíferas. Colocando pilastras em torno dabarreira, dispuseram-se a sustentar um cerco e a levar a melhorsobre o inimigo.

XCVII — Ao serem informados de que os bárbaros sehaviam retirado para o continente, os gregos ficaramdecepcionados, tanto mais que viam-nos escapar-lhes das mãos.Embaraçados e indecisos ante a fuga do inimigo ao combate,não sabiam como agir: se deviam fazer-se de regresso ounavegar até o Helesponto. Finalmente, resolveram não fazernem uma coisa nem outra, mas singrar em direção aocontinente. Tendo-se preparado para um combate naval,dispondo cuidadosamente as escadas e todo o mais necessáriopara uma abordagem, rumaram para Mileto. Aproximando-se dacosta, perceberam o acampamento dos persas e os navios emterra, cercados por uma muralha, tendo a protegê-los numerosoexército de terra, postado na orla marítima. Leotíquides,adiantando-se aos outros, chegou o mais perto possível da praiae assim falou aos iônios por intermédio de um arauto: “lóníos,que cada um de vós que me ouvis preste bem atenção às minhaspalavras, pois os persas, certamente, nada compreenderão. Quecada um de vós, no combate, se lembre, primeiro da liberdade,depois da palavra de ordem Hebe. Os que entenderemcomuniquem o que digo aos que não podem compreender-me”.O objetivo de Leotíquides era o mesmo que o de Temístocles

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em Artemísio: suas palavras visavam causar impressão noespírito dos iônios se elas escapassem à compreensão dosbárbaros, ou torná-los suspeitos aos persas se elas lhes fossemcomunicadas.

XCVIII — Feita essa breve proclamação, os gregosaproximaram seus navios da praia, saltaram em terra ecolocaram-se em ordem de batalha. Os persas, vendo-ospreparar-se para o combate e informados das exortaçõesdirigidas aos iônios, desarmaram os sâmios, suspeitando queeles estivessem em conivência com os gregos. Essas suspeitaseram tanto mais fundadas, quanto os sâmios haviam resgatadoquinhentos atenienses que, tendo permanecido na Ática, tinhamsido aprisionados pelos persas e levados para os navios destesúltimos. Depois de havê-los resgatado, os sâmios enviaram-nosde volta para Atenas, facultando-lhes todo o necessário para aviagem, embora se tratasse de inimigos de Xerxes. Pondo-se,assim, a coberto de uma possível traição daquelas tropas, ospersas ordenaram aos milésios que guardassem os caminhos queconduziam ao cimo do monte Mícale, sob o pretexto deconhecerem eles perfeitamente o país, mas, na realidade, paraafastá-los do acampamento. Assim tomaram os persas todas asprecauções contra aqueles, dentre os iônios, que podiam traí-losno caso de se sentirem bastante fortes para fazê-lo. Os escudosdos que tinham sido desarmados, eles os utilizaram parafortificar a barreira.

XCIX — Concluídos os preparativos para o combate, osgregos lançaram-se contra o inimigo. Nesse momento, surgiu napraia um caduceu de arauto, e logo correu a notícia de que asforças gregas tinham alcançado brilhante vitória sobre as tropasde Mardônio na Beócia. O que acontece pelo desígnio dosdeuses manifesta-se sempre por sinais. No mesmo dia em queos persas eram batidos em Plateia e que deviam sê-lo emMícale, a notícia daquela derrota, tendo-se espalhado entre osgregos em Mícale, fê-los sentir-se ainda mais confiantes,

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levando-os a afrontar o perigo com maior ardor.

C — Verificou-se ainda outra coincidência: as duasbatalhas foram travadas perto do templo de Ceres Eleusiana;pois, como já disse, a batalha de Plateia teve lugar nasproximidades do templo da deusa situado naquele território, domesmo modo que a batalha prestes a desencadear-se em Mícale.A notícia da vitória alcançada em Plateia pelos gregos sob ocomando de Pausânias espalhou-se muito a propósito entre ossoldados gregos em Mícale, que já se movimentavam contra oinimigo. A batalha de Plateia feriu-se pela manhã, e a de Mícaledepois do meio-dia. Só mais tarde, porém, é que se veio a saberque ambas haviam sido travadas no mesmo dia. Antes de teremconhecimento da grande vitória dos seus compatriotas emPlateia, as tropas gregas em Mícale sentiam-se inquietas ereceosas, não tanto por si próprias, mas pela sorte da Grécia;porém, ao saberem da boa nova, seus temores desapareceram eelas lançaram-se ao combate confiantes e resolutas. Gregos epersas lutaram com o mesmo ardor, uns e outros tendo em vistaas ilhas e o Helesponto, como o prêmio da vitória.

CI — Os atenienses, que compunham, com aqueles queos acompanhavam(17), cerca da metade do exército, avançaramao longo da costa, por terreno plano, e os lacedemônios porbarrancos e elevações, com as tropas que os seguiam. Mas,enquanto eles realizavam essa manobra de envolvimento, osbárbaros já cruzavam armas com a outra ala do exército grego.Enquanto conseguiram manter sua barreira de escudos, ospersas mantiveram-se firmes, defendendo-se com galhardia enão cedendo em nada aos gregos; mas quando surgiram osatenienses, dispostos a não deixarem aos lacedemônios a glóriadessa jornada e concitando os seus à luta e à vitória, o combatemudou de aspecto. A barreira de escudos foi rompida, e osatenienses precipitaram-se em massa contra os persas. Estessustentaram o choque e defenderam-se durante muito tempo,mas acabaram fugindo para o seu reduto. Os atenienses, os

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coríntios, os siciônios e os trezênios perseguiram-nos epenetraram em massa, ao mesmo tempo que eles, no reduto.Derrubada a muralha, os bárbaros não pensaram mais emdefender-se, fugindo em todas as direções, com exceção dospersas genuínos, que, embora em pequeno número, continuaramlutando contra os gregos, que se atiravam incessantementecontra as suas trincheiras. Os dois comandantes da frota persa,Artaintes e Itamitres, puseram-se em fuga; mas Mardontes eTigranes, que comandavam as tropas de terra, pereceram dearmas na mão.

CII — O pequeno grupo de persas continuava acombater no reduto totalmente invadido, mas com a chegadados lacedemônios acompanhados de suas tropas auxiliaresconsumou-se a derrota dos bárbaros.

Pereceram também em Mícale muitos combatentes dolado dos gregos, e entre outros, alguns siciônios, com o seucomandante Perilau. Os sâmios, que se mantiveram noacampamento dos persas e haviam sido desarmados, logo queviram a vitória pender para os gregos procuraram auxiliá-loscom todas as forças. O resto dos iônios, seguindo o exemplo dossâmios, revoltou-se e atacou os bárbaros.

CIII — Os persas haviam confiado aos milésios a guardados desfiladeiros, para, no caso de um insucesso, como de fatose verificou, poderem, com os guias, retirar-se para lugarseguro. Tinham encarregado os milésios dessa tarefa, tanto comesse propósito como para mantê-los afastados da luta eimpedi-los de tramar alguma sortida contra as suas tropas emluta. Os milésios, porém, em lugar de conduzir os fugitivos porcaminhos seguros e desimpedidos, levaram-nos ao encontro dosgregos, empenhando-se eles próprios, mais do que quaisqueroutros, em trucidá-los. Foi assim que a Iônia se rebelou pelasegunda vez contra os Persas.

CIV — Do lado dos gregos, foram os atenienses os que

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mais se distinguiram, e ninguém dentre eles se destacou tantocomo Hermólico, filho de Eutínoo, que havia angariadocelebridade nos exercícios ginásticos. Pouco mais tarde, porém,tendo os Atenienses entrado em guerra contra os Carístios,Hermólico foi morto num combate travado na Cirnéia, noterritório do Caristo, sendo sepultado em Cereste.

Os coríntios, os trezênios e os siciônios foram os quemais se salientaram depois dos atenienses.

CV — Terminada a batalha, com a eliminação da maiorparte dos bárbaros, tanto na refrega como quando fugiam, osgregos levaram para as praias todos os despojos, queimando osnavios e as fortificações do inimigo. Quando os viram reduzidosa cinzas, abriram velas para Samos. Ali chegando, reuniram-seem conselho para deliberar quanto à conveniência de abandonara Iônia aos bárbaros e transportar os habitantes para outraregião, examinando em que parte da Grécia haviam deestabelecê-los. Na verdade, parecia-lhes impossível proteger edefender continuamente os Iônios; mas também sabiam que, sedeixassem de fazê-lo, esses povos não poderiam gabar-se dehaverem abandonado impunemente o partido dos Persas. Emconseqüência, os chefes peloponésios foram de parecer que sedesalojassem os povos que haviam abraçado a causa dos Persas,entregando os seus territórios e cidades comerciais aos Iônios,para ali fixarem sua nova residência. Os atenienses, porém, nãoacharam conveniente retirar os Iônios do seu país, sustentandonão caber aos peloponésios deliberar sobre as suas colônias. Emvista disso, os peloponésios não mais insistiram. Os gregos,considerando o auxílio que haviam recebido dos povos deSamos, de Quios, de Lesbos e de outros insulares na guerracontra os bárbaros, firmaram aliança com eles, depois de teremrecebido deles a promessa, sob juramento, de que se manteriamfiéis ao seu compromisso e que jamais o violariam.Estabelecido o pacto, os gregos abriram velas para oHelesponto, a fim de destruir as pontes, julgando-as ainda de

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pé.

CVI — Enquanto navegavam para o Helesponto, opequeno número de bárbaros que haviam escapado ao desastrese retirara para o cimo do monte Mícale e dirigiu-se paraSardes. Masistes, filho de Dario, presente à batalha perdidapelos persas, fez, em caminho, acerbas censuras ao generalArtaintes, e, entre outras injúrias, disse-lhe que,desobrigando-se, como havia feito, das funções de general,mostrara-se mais covarde do que uma mulher, merecendo, porisso, ser impiedosamente castigado pelo mal causado à casareal. Ora, entre os Persas, constitui o maior ultraje que se podefazer a um homem dizer-se que ele é mais covarde do que umamulher. Indignado com tamanha injúria, Artaintes tirou dacimitarra para matar Masistes; mas Xenágoras, filho de Praxilasde Halicarnasso, que se achava atrás do agressor, vendo-oavançar para Masistes, agarrou-o pelo meio do corpo e atirou-opor terra, enquanto os guardas de Masistes acorriam em suadefesa. O procedimento de Xenágoras valeu-lhe as boas graçasde Masistes e de Xerxes. O soberano deu-lhe o governo de todaa Cilícia, como recompensa por ter salvo a vida de seu irmão.Esses remanescentes do exército persa chegaram finalmente aSardes, sem outras ocorrências em caminho. O soberano ali seencontrava desde que fugira de Atenas, depois da derrota dassuas forças navais na batalha de Salamina.

CVII — Durante a sua permanência em Sardes, Xerxesapaixonou-se pela mulher de Masistes, que também se achavanessa cidade; mas, apesar de suas instâncias, nada obteve, e nãoquis recorrer à violência em consideração ao irmão. A mulher,ciente dessas razões, manteve-se tranqüila, convencida de quenão usariam de violência para com ela. Xerxes, usando de umardil, resolveu casar Dario, seu filho, com a filha de Masistes,julgando poder, por meio dessa aliança, conquistar maisfacilmente as boas graças da cunhada. Fazendo-os casar comtodas as cerimônias do costume, partiu para Susa. Ali chegando,

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mandou vir ao palácio a mulher de Dario.

Deixou, então, de amar a cunhada, e sua paixão mudoude objeto, enamorando-se de Artainta, esposa de Dario e filhade seu irmão.

CVIII — O mistério acabou sendo descoberto, e damaneira que passo a relatar. Améstris, mulher de Xerxes, deu aeste um traje magnífico, de várias cores, por ela mesmaconfeccionado. Xerxes recebeu-o com alegria e vestiu-o para irver Artainta. Rendido aos encantos da princesa, perguntou-lhe oque desejava em troca de seus favores, assegurando-lhe que nãolhe recusaria coisa alguma. Como estava traçado que umagrande desgraça cairia sobre a casa de Masistes, Artaintarespondeu: “Senhor, conceder-me-eis qualquer pedido que vosfaça?” O soberano jurou imediatamente que o faria, não lhepassando pela mente que ela fosse pedir-lhe o traje. Mas foijustamente o que ela pediu depois de vê-lo jurar. Xerxesempregou todos os meios possíveis para fazê-la desistir daidéia. Sua recusa fundava-se no receio de que Améstris viesse aconvencer-se da realidade de um amor do qual suspeitava hámuito tempo. Ofereceu a Artainta, em lugar do traje, cidades,riquezas e até um exército, do qual ela seria a únicacomandante. Um exército é, entre os Persas, o maior dom quese pode fazer a alguém. Todavia, como essas ofertas não atentavam, acabou dando-lhe o traje. Artainta, encantada com otraje, encontrava o maior prazer em adornar-se com ele.

CIX — Améstris, informada de que a princesa usavaaquele traje, teve as suas suspeitas confirmadas. Querendovingar-se da afronta, resolveu tramar a perda, não de Artainta,mas de sua mãe, que ela considerava a maior culpada no caso.Esperou que chegasse a ocasião do festim real para levar a caboo plano que arquitetara. Esse festim realiza-se uma vez por ano,no dia do nascimento do soberano. Chamam-no ticta em línguapersa e perfeito em grego. É a única ocasião do ano em que o

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rei tem a cabeça perfumada e em que concede dádivas aospersas quando solicitadas. Chegando o dia tão ansiosamenteesperado, Améstris pediu a Xerxes que lhe desse a mulher deMasistes.

CX — O soberano, que não ignorava o motivo quedeterminara tão estranho pedido, achou que seria um crimeentregar à esposa a mulher de seu irmão, tanto mais que ela nãoera absolutamente culpada das suas relações com Artainta. Mas,vencido pelas insistentes solicitações de Améstris e forçado pelalei, que não permite ao rei recusar as graças que lhe pedem nodia do festim real, acabou acedendo ao pedido, dizendo àesposa, ao entregar-lhe a mulher de Masistes, que fizesse comela o que bem entendesse. Em seguida, mandou chamar oirmão, falando-lhe nestes termos: “Masistes, és filho de Dario emeu irmão, e considerado por todos um homem de bem. Peço-teque não coabites mais com tua esposa; dou-te minha filha parasubstituí-la. Aceita-a por mulher e abandona a que possuísatualmente; é essa a minha vontade”.

“Que estranhas palavras pronunciais, senhor! — volveuMasistes espantado — Quereis que me separe da mulher queamo e da qual possuo três filhos ainda crianças, e filhas, entre asquais escolhestes uma para esposa do vosso filho; ordenais-meque a mande embora e que a substitua pela vossa filha! Aprecio,como é devido, a honra que me concedeis, oferecendo-me amão de vossa filha, mas não posso aceitá-la, nem tão poucodesfazer-me de minha mulher. Não me obrigueis, senhor, aacatar as vossas ordens, e deixai-me viver com minha mulher.Encontrareis para vossa filha um partido não menos vantajoso”.Xerxes, irritado ante a negativa de Masistes, disse-lhe comazedume: “Já que assim queres, assim será, Masistes; não terásminha filha quando a quiseres e não conservarás por muitotempo a tua esposa; isso para que aprendas a aceitar meusoferecimentos”. Diante disso, Masistes retirou-se, limitando-sea dizer ao sair: “Senhor, ainda não me tirastes a vida”.

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CXI — Enquanto Xerxes falava com o irmão, Améstrismandou chamar os guardas do soberano e, entregando-lhes aesposa de Masistes, disse-lhes que a mutilassem. Os executorescortaram-lhe, por sua ordem, os seios, que foram atirados aoscães, em seguida o nariz, as orelhas, os lábios e a língua,deixando-a ir-se embora naquele lamentável estado.

CXII — Masistes ignorava o que acabava de passar-se;mas como se achava na expectativa de alguma coisa de funesto,dirigiu-se apressadamente para casa, à procura da esposa.Encontrando-a mutilada daquela maneira, deliberou ir com osfilhos e outras pessoas que quisessem acompanhá-los, para aBactriana, a fim de sublevar essa província e fazer ao soberanotodo mal que pudesse, vingando-se assim daquela afronta.Acredito firmemente que ele obteria êxito nessa empresa, se osoberano não tivesse sido prevenido das suas intenções antes dasua chegada à Bactriana, pois os Bactrianos, de quem ele eragovernador, muito o estimavam. Mas Xerxes, informado detudo, enviou contra o irmão um corpo de exército, que omassacrou em caminho, juntamente com seus filhos e as tropasque o acompanhavam.

CXIII — Os gregos, deixando Mícale, seguiram, comojá disse, em direção ao Helesponto; mas ventos contráriosobrigaram-nos a estacionar nas vizinhanças de Lacto. Daliseguiram para Abido, onde encontraram destruídas as pontesque eles supunham ainda de pé e que haviam motivado aquelaviagem. Diante disso, Leotíquides e os peloponésios foram deparecer que se devia voltar para a Grécia, mas os atenienses eseu general Xantipo resolveram permanecer ali e atacar oQuersoneso, Os peloponésios fizeram-se de regresso, enquantoas tropas atenienses passavam de Abido para o Quersoneso,iniciando o cerco de Sesto.

CXIV — Como Sestos era a mais forte das praças detodo o país, para lá se dirigiram as populações das cidades

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vizinhas, logo que souberam da chegada dos gregos aoHelesponto. Veio também da Cárdia um persa de nome Ébaso,que trazia, com sua comitiva, o material das pontes. Essa cidadeera ocupada pelos Eólios, naturais do país, e ali se encontravamtambém persas e grande número de aliados.

CXV — Artaictes, persa de nascimento, homem cruel eímpio, governava essa província sob as ordens de Xerxes. Poruma falsa informação que dera a Xerxes quando o soberanomarchava contra Atenas com suas tropas, conseguira arrebatarde Eleonte os tesouros de Protesilau(18), filho de Íficlo. Vê-senessa cidade, situada no Quersoneso, o túmulo desse herói, como trato de terra que lhe é consagrado. Ali guardavam-se imensasriquezas, inclusive vasos de ouro, prata e cobre, trajes e outrasoferendas, de que se apoderou com a permissão do rei, iludidopelas suas palavras artificiosas. “Senhor — dissera-lhe Artaictes—, há aqui a casa de um grego que, tendo penetrado em vossasterras à frente de tropas, pagou com a morte a sua ousadia.Peço-vos que me deis essa casa, para que outros aprendam quesabeis castigar os que ousam levar a guerra aos vossos Estados”.Xerxes, não suspeitando dos propósitos de Artaictes, acedeu, nasua boa fé, ao seu pedido. Artaictes dizia que Protesilau haviaentrado à mão armada nas terras do soberano, porque os Persasacreditavam que a Ásia inteira lhes pertencia. De posse dostesouros que pertenciam a Protesilau, Artaictes levou-os paraSestos, lavrou e semeou as terras consagradas a Protesilau, etodas as vezes que ia a Eleonte tinha relações com mulheres nosantuário. Como não contava com a vinda dos gregos, não sepreparara para sustentar um cerco. Assim, os ateniensestomaram-no de surpresa quando iniciaram o assédio da praça.

CXVI — O cerco foi-se prolongando, e chegou oOutono. Os atenienses, aflitos por se verem afastados da pátria epor não conseguirem tomar a praça, pediram aos seus generaisque os reconduzissem a Atenas. Estes responderam-lhes quenão o fariam enquanto não capturassem a cidade, pois que o

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povo, antes disso, não os queria ver de regresso. Então as tropasresignaram-se com a situação, continuando o cerco.

CXVII — Os sitiados viram-se reduzidos a tão extremamiséria, que cozinharam as correias que lhes sustinham os leitospara comê-las. Depois que até isso lhes faltou, Artaictes, Ébasoe os persas desceram, ao cair da noite, a uma parte da cidadeainda não ocupada pelo inimigo, e por ali conseguiram fugir.Quando raiou o dia os Quersonésios informaram os assaltantes,por meios de sinais feitos do alto das torres, da fuga dos persas,e abriram-lhes as portas. Enquanto a maioria dos atenienseslançava-se em perseguição aos fugitivos, os outros tomavamconta da cidade.

CXVIII — Ébaso refugiou-se na Trácia, onde foicapturado pelos Trácios Apsíntios, que o imolaram, segundoseus ritos, ao seu deus Plistore(19). Quanto aos que oacompanhavam, fizeram-nos morrer de outra maneira. Artaictese os seus, tendo atingido uma região um pouco além deEgos-Potamos, defenderam-se de seus perseguidores durantemuito tempo, mas acabaram, uns sendo mortos, outros feitosprisioneiros e postos sob grilhões, da mesma maneira queArtaictes e seu filho, sendo levados para Sesto.

CXIX — Aconteceu a um dos que guardavam osprisioneiros um fato assombroso, segundo relatam osQuersonésios. O guarda, tendo obtido alguns peixes salgados,dispôs-se a cozinhá-los; mas logo que os peixes foram levadosao fogo, puseram-se a saltar e a palpitar, como se estivessemvivos. Os que presenciaram o fato ficaram tomados de espanto,mas Artaictes, que estava presente, chamou o guarda edisse-lhe: “Ateniense, não te alarmes com esse fenômeno; elenão te diz respeito. Protesilau, que repousa em Eleonte,mostra-me com isso que, embora morto e salgado, os deusesconcederam-lhe o poder de punir os que o ofenderam. Quero,pois, pagar-lhe o preço do meu resgate; e para indenizá-lo das

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riquezas que lhe arrebatei, dar-lhe-ei cem talentos, e aosatenienses duzentos, se quiserem poupar a minha vida e a demeu filho”. Essas ofertas não impressionaram Xantipo. Oshabitantes de Eleonte pediam a morte de Artaictes para vingarProtesilau, e era essa também a intenção do general ateniense.Crucificaram-no no local onde Xerxes havia mandado construiruma ponte; ou, segundo dizem outros, numa colina acima dacidade de Mádito. Seu filho foi esquartejado ante os seus olhos.

CXX — Depois dessa expedição, os ateniensesretornaram à pátria com valiosos despojos e consagraram aostemplos o material das pontes construídas pelo inimigo parainvadir a Grécia.

CXXI — Esse Artaictes, que acabou sendo crucificado,era neto de Artembares, que dirigiu aos Persas este discurso,que eles depois transmitiram a Ciro: “Pois que Júpiter deu oimpério aos Persas, e depois de haver afastado Astíages dotrono, vos situou no poder de preferência a qualquer outro,deixemos o nosso país pequeno e montanhoso e ocupemos outromelhor. Há vários perto daqui e muitos outros mais afastados.Escolhei um para nele nos estabelecermos, e a maioria dospovos nos julgará mais dignos de admiração, como convém auma nação rica e poderosa. Ora, quando se apresentará melhoroportunidade do que esta em que dominamos grande número depovos e a Ásia inteira?”

Ciro não recebeu com agrado essas palavras; consentiu,entretanto, no pedido, mas dizendo aos Persas que sepreparassem para tornar-se escravos dos povos que dirigiam,pois, acrescentou, os países mais férteis não produzem,ordinariamente, senão homens fracos e efeminados, e a terraque dá belos frutos não produz homens belicosos.

Os Persas, convencidos de que a opinião de Ciro era amelhor, abandonaram o projeto de emigrar, preferindo oimpério com suas terras estéreis, à servidão em planícies férteis.

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NotasLivro I

(1) Havia duas espécies de flautas: uma com pequeno númerode furos, produzindo um som grave; a outra com maior número,produzindo um som mais claro e mais agudo. Heródotodenomina a primeira flauta de masculina e a segunda defeminina. (L.)

(2) Ária em tom vivo, próprio para excitar ao combate.Provavelmente escolheu esse tom para excitar-se e tomar aresolução desesperada a que se a que se via forçado. (MIOT)

(3) O culto dos rios é muito antigo. Já encontramosmanifestações dele em Homero, que fala dos cavalos que eramlançados no Escamandro em homenagem ao deus desse rio.Crisipo informa no quinto livro “da Natuza” que Hesíodoproibia urinar nos riachos e nas fontes. Essa proibição seencontra na sua obra “Os Trabalhos e os Dias”. (L.)

(4) O Pritaneu servia em Atenas para diversos usos. O Senadodos Quinhentos reunia-se ali. Próximo à sala onde tinhamassento, via-se o Tholus, onde tomavam suas refeições os quehaviam rendido importantes serviços ao Estado, e onde osprítanos ofertavam sacrifícios. Mantinha-se também ali o fogosagrado, e conservava-se trigo e armas. Quando se enviava umacolônia para algum lugar, tirava-se do Pritaneu armas, víveres efogo. Porque se a colônia não pudesse se prover de outro lugar;e se por acaso o fogo se extinguisse, era preciso voltar aprocurá-lo no Pritaneu da metrópole. (L.)

(5) Esta expressão tornou-se proverbial, designando uma vitóriafunesta aos vencedores. Por vitória cadmiana, os antigosentendiam a dos irmãos Etéocles e Polinice, vergonhosa eperniciosa. (L.)

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(6) Xenofonte faz morrer esse príncipe tranqüilamente no leito.Estrabão parece ser da mesma opinião quando nos diz que lhemostraram a sepultura em Pasárgada. Luciano descreve-omorrendo de pesar, com a idade de cem anos, por haver seufilho Cambises eliminado a maior parte de seus amigos. (L.)

(7) A sagara era um machado de dois gumes. As Amazonasserviam-se dessa espécie de arma. (L.)

Livro II

(1) Conclui-se daí que os Egípcios não tinham conhecimentodaqueles sete anos de esterilidade verificados no tempo de José,segundo a Bíblia. Foram eles, entretanto, famosos, chegando adeterminar uma modificação total na constituição do Estado. Opovo deu o ouro e a prata que possuía ao príncipe paraconseguir trigo; entregou-lhe depois seu gado e suas terras,submetendo-se, finalmente, à escravidão. É uma prova de queos anais do Egito não eram tão antigos como pretendiaHeródoto, ou não primavam pela exatidão. (L.)

(2) Narrativa confirmada pelo relato de exploradores modernos.“Defronte ao trono do rei (de Loango) estão sentados algunsanões, de costas voltadas para ele... Os negros do paísasseguram que há no interior das terras uma grande região quesó é habitada por homens desta estatura, e que sua únicaocupação é matar elefantes.” Histoire générale des voyages, t.IV, p. 601; ver também Voyage aux sources de Sénégal et de laGambie, de Mollien, t. II, p. 209. (L.)

(3) Íster era o antigo nome do Danúbio. Heródoto, como vemos,tinha uma idéia muito justa do curso do rio e de suaembocadura. As outras indicações, porém, são pouco exatas; enão é para se surpreender, porque então a Ásia tinha poucasrelações com a Europa. (MIOT.)

(4) Segundo Diodoro da Sicília, os homens eram, no Egito,

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escravos das mulheres. Diodor. Sical. lib. I, XXVII, pag. 31.(L.)

(5) Heródoto não inclui, sem dúvida, aí, os Gregos, que seguiamnisso os costumes dos Egipcíos. “Quando sobrevém algumadesgraça aos Gregos, — diz Plutarco — as mulheres raspam ocabelo e os homens deixam-no crescer, porque é uso entre elescortá-lo, enquanto as mulheres costumam trazê-lo comprido”.(L.)

(6) “Esses fundos não eram os únicos destinados à alimentaçãodos animais. Há um acampamento destinado a cada espécie deanimal por eles venerado e um tributo para o sustento e trato domesmo. Dava-se aos gaviões carne cortada aos pedaços e quelhes era atirada até que eles a apanhassem, para o que oschamavam aos gritos. Aos gatos eram servidos pão molhado noleite e postas de peixe do Nilo. Assim, a cada espécie de animaleram fornecidos os alimentos mais convenientes” (Diodoro daSicília, Liv. L). Como vestígio dessa antiga superstição, ospaxás do Cairo mandam servir todos os dias dois bois aos“achboba”, pássaros considerados sagrados pelos maometanos.(L.)

(7) Aristóteles acreditava, como Heródoto, que o crocodilo nãopossuía língua. Este animal tem uma substância carnudasemelhante a uma língua, e aderente em toda sua extensão àmandíbula inferior, que pode lhe servir para devolver osalimentos. (L.)

(8) Aristóteles diz também que o maxilar inferior do crocodilo éimóvel. Embora a autoridade deste sábio naturalista sejaconsiderável, não é menos verdade que a mandíbula inferior docrocodilo é a única móvel. É o que observaram os senhores daAcademia de ciências, o doutor Grcew citado por Ray, Klein eBuffon. (L.)

(9) Essa ave assemelha-se muito ao ganso, mas é manhosa e

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sagaz como a raposa. Belon denomina-a ganso nanico. Apalavra grega que lhe corresponde é chenalopex, ganso-raposa.(L.)

(10) Não se acreditava ainda no tempo de Heródoto que a fênixrenascesse das próprias cinzas. Essa opinião firmou-se maistarde. Suidas assegura que, quando a ave é queimada, nasce dascinzas um verme que se transforma em fênix. Os sacerdotes daIgreja grega e romana deram crédito a esta fábula, não deixandode citá-la como uma prova da ressurreição. (L.)

(11) M. Dupuis observou que Heródoto não falava senão daparte do Egito onde se cultiva o trigo. Aos exemplos a que sereporta o sábio para mostrar que existiam vinhas no Egito,podemos acrescentar este, de época bem anterior à do nossohistoriador: Quare nos fecistis ascendere de Ægypto, etadduxistis in locum istum pessimum, qui seri non potest, qui necficum gignit, nec vineas, nec malogranata, insuper et aquamnon habet ad bibendum. (Num., cap. XX. v. 5.) (L.)

(12) Goma arábica. É extraída da acácia, árvore muito comumno Alto Egito, onde é conhecida sob o nome de sourit, e sob ode cyale na Arábia Pétrea. Estrabão chama esta árvore deespinho da Tebaida, e nota que produz goma. (L.)

(13) Os Egípcios rendiam culto ao Nilo e erguiam-lhe templos,havendo um magnífico em Nilópolis, cidade da província deArcádia no Egito, não sendo de duvidar que existissem outros.Pelo menos, somos levados a concluir, por esta passagem deHeródoto, da existência desses sacerdotes em todas as cidades àmargem do rio; e, segundo tantas aparências, rendia-se-lhe umaespécie de culto em todas as cidades. (L.)

(14) “O lótus é uma ninfeácea própria do Egito e medra nosriachos e à beira dos lagos. Há duas espécies: uma de florbranca e outra de flor azulada. O cálice do lótus abre-se como ode uma grande tulipa, desprendendo um odor suave, semelhante

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ao do lírio. A primeira espécie apresenta uma raiz redonda,quase idêntica à da batata. Os habitantes das margens do lagoMenzalé (Tennis) alimentam-se dela. Os riachos das cercaniasde Damieta estão cobertos dessa flor majestosa, que se elevadois pés acima das águas” (Savary — “Cartas sobre o Egito”).

(15) Trata-se do papiro. Bernard Jussieu e o conde de Caylusdescreveram com fartos detalhes a maneira pela qual osEgípcios fabricam o papel com essa planta. Ver Mémoires del’Académie des inscriptions, t. XXVI, p. 267. (L.)

(16) Diodoro da Sicília diz que nas nações que vendiam carosua independência, Sesóstris mandava gravar nas colunas omembro viril. (L.)

(17) Diodoro da Sicília denomina essa cidade de Hieróbolos.Será, talvez, um erro dos copistas. De qualquer forma, ohistoriador reporta-se à mesma fábula que parece haver colhidoem Heródoto, e de onde se conclui que a corrupção doscostumes tinha chegado ao extremo no Egito. Compreende-sefacilmente a precaução tomada por Abraão ao chegar a esse paíse o excesso de impudência com que se conduzira a mulher dePutifar ante José. (L.)

(18) Ilíada — liv. II — verso 280. (L.)

(19) Odisséia — liv. IV — verso 227. (L.)

(20) Odisséia — liv. IV — verso 351. (L.)

(21) O assunto desse poema era a guerra de Tróia, desde onascimento de Helena. Vênus havia feito nascer essa princesapara poder apresentar a Páris uma beleza perfeita, e Júpiterconsentira esse nascimento a conselho de Momo, a fim dedestruir de novo o gênero humano pela guerra de Tróia, que issofatalmente provocaria. Como o autor do poema narrasse todosos acontecimentos da guerra a Vênus, deusa de Chipre, a obra

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tirou daí o seu nome. (L.)

(22) Heródoto não assegura, absolutamente, que o corpo deQuéops esteja nessa pirâmide. Diodoro da Sicília, falando daprimeira e da segunda pirâmide, diz que “embora os reis asdestinassem a servir-lhes de sepultura, aconteceu, entretanto,nenhum deles ter sido ali enterrado. O povo, indignado com ostrabalhos que lhe tinham sido impostos e com a violência e acrueldade com que haviam sido tratados, ameaçou arrancar-lhesos cadáveres dos túmulos e fazê-los em pedaços. Por isso, osdois soberanos ordenaram a seus parentes que os enterrassemsecretamente, em lugar ignorado”. (L.)

(23) Não se pode duvidar que Esopo tenha vivido no tempo deCreso e na corte deste soberano. Segundo Suidas, o fabulista eranatural de Samos ou de Sardes; outros dizem-no de Mesêmbriaou de Cotieu, na Frígia. Viveu ele na corte de Creso e foi amadopelo soberano. Pereceu em Delfos de maneira violenta e injusta:os Délfios precipitaram-no do alto da rocha Hiampéia, no fimdo ano 4.º da 5a. Olimpíada. Daí a expressão “sangueesopiano”, para designar os que perderam a vida injustamente eos culpados de crimes difíceis de expiação; pois o deus ficoumuito irritado com os Délfios por terem matado Esopoinjustamente. Ele era mais velho que Pitágoras, porque viveupor volta da quadragésima olimpíada. (L.)

(24) Eram os oráculos de Júpiter. (L.)

(25) Um rei egípcio não pode reinar no Egito se não tiverconhecimento das coisas sagradas. Se, porventura, um homemde outra casta vem a apoderar-se da coroa, deve, desde logo,ingressar na ordem sacerdotal. Os reis egípcios — informaPlutarco — “eram escolhidos entre os sacerdotes e osguerreiros, duas classes privilegiadas, uma pelo saber, a outrapelo valor. Quando um guerreiro era escolhido para rei,admitiam-no imediatamente na ordem dos sacerdotes, que oiniciavam em sua filosofia oculta. Os sacerdotes tinham o

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direito de censurar o príncipe, dar-lhe conselhos e orientar todasas suas ações. Fixavam-lhe também o tempo para os passeios,para os banhos e aquele em que poderia ver sua mulher. (L.)

(26) Os Árabes que habitavam a Arábia Pétrea e além do Jordãotinham-se submetido ao rei da Assíria. (L.)

(27) Os Egípcios estavam divididos em três classes: a dos dealta estirpe, com direito a honras e que ocupavam, como ossacerdotes, posições de destaque; a dos guerreiros, que tambémcultivavam a terra, e a dos operários, que exerciam as maisbaixas funções. A primeira classe compreendia também ossacerdotes, ou melhor, os lugares de distinção estavamreservados aos sacerdotes. A última classe, que deveria sermuito numerosa, também se subdividia. (L.)

(28) Isto é, tinham sido grandes sacerdotes gerados por outrosgrandes sacerdotes. (L.)

(29) Tifão era um mau gênio que arrebatou a coroa a seu irmãoOsíris e matou-o. Como tinha o rosto pálido e cabelos ruivos, osEgípcios passaram a evitar a companhia das pessoas queapresentavam essas características. No tempo em que ainda sesacrificavam homens, degolavam-se os louros sobre o sepulcrode Osíris, ou então, queimavam-nos vivos. (L.)

(30) O dinheiro proveniente da pesca no lago destinava-se àcompra de enfeites e perfumes para a rainha. O talento valia5.400 liv. de nossa moeda, e a mina 90 liv. As vinte minasvaliam por conseguinte 1.800 liv. Assim a pesca do lagodeixava por dia 5.400 liv. quando as águas se retiravam, e 1.800liv. somente quando voltavam. Isso dava por ano 296.000 liv.(L.)

(31) É o túmulo de Osíris. Pelo menos é este o sentimento deAtenágoras, que me parece bem verossímil. Este Padre, após terrelatado esta passagem inteira de Heródoto, acrescenta: “Não

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apenas mostram o sepulcro de Osíris, mas também seu corpoembalsamado”. (L.)Cf. Athenagoras the Athenian: A Plea For the Christians, Cap.XXVIII, The Heathen Gods Were Simply Men — In TheologyWebSite:www.theologywebsite.com/etext/athenagoras/ [N.E.]

Livro III

(1) Não sabemos o que são estes pataicos, e, segundo todas asaparências, não saberemos jamais. Heródoto é o único autor quefala deles: não lhes dá o nome de deuses; cri dever imitá-lo,embora Hesíquio (Hésychius), que só o interpreta, os decorecom este título. O que pode fazer crer que os pataicos não eramdeuses, é que os antigos colocavam as figuras dos deusestutelares só à popa, jamais à proa, e que este último lugar eradestinado apenas às figuras dos animais que davam o nome àsembarcações. (L.)

(2) Numa festa solene que se celebrava em Samos em honra deJuno, todos os cidadãos se dirigiam em procisssão ao templo dadeusa munidos das respectivas armas. Polícrates aproveitara opretexto para armar até os dentes seus partidários, chefiados porSilóson e Pantanhoto. Terminada a procissão, os Sâmiosabandonaram as armas, a fim de se prepararem para o sacrifício.Os partidários de Polícrates apoderaram-se delas, massacraramtodos os que não eram seus amigos; e, tendo ocupando ospostos mais altos, mandaram vir da ilha de Naxos Lígdamo, queera ali tirano, e, por esse meio, tornaram-se senhores dacidadela denominada Astipaléia (Astypalée). (L.)

(3) Esse tirano foi incluído entre os sete sábios. Entretanto,Platão coloca em seu lugar Míson, de Chen, na Lacônia. Nãopenso que o filósofo o julgasse indigno do título pelo fato de eleser tirano, como crê Clemente de Alexandria; julgo antes sermuito incerta a tradição sobre os sete sábios, pois colocam nolugar de Periandro, ora Anacársis, ora Epiménis de Creta, ora

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Argesislau de Argos, ora Mison de Chen. (L.) [Também Khenaiou Chenae - N.E.]

(4) Récus, filho de Fileu era não somente um hábil arquiteto,como ainda inventou, com Teodoro de Samos, a arte de modelara argila, muito antes de serem expulsos de Corinto. Foramtambém os primeiros a fundir o bronze e a fazerem com eleestátuas. Informa Pausânias que sobre a balaustrada existenteacima do altar de Diana, em Éfeso, vê-se uma estátua modeladapor Récus. É uma mulher de bronze, que os Efésios dizemrepresentar a Noite. Récus teve dois filhos, ambos estatuários.(L.)

(5) Os Persas tinham o costume de adorar o sol nascente. Deresto, não se tratava de extrair um presságio do relincho docavalo; era apenas uma convenção estabelecida pelosconjurados. As passagens em que o abade Brotier pretenteprovar que os Persas buscavam presságios com os cavalos nãoprovam coisa alguma. No primeiro caso, trata-se, como jávimos, de uma convenção; no segundo, de uma referência aoscavalos sagrados; mas não é dito que tiravam presságios daí.(L.)

(6) Quando Ciro morreu, Dario contava cerca de vinte anos.Cambises reinou durante sete anos e cinco meses, e o magoEsmérdis manteve-se no trono por apenas sete meses. Porconseguinte, Dario tinha aproximadamente vinte e nove anosquando foi aclamado rei. (L.)

(7) Encontra-se assim na tradução francesa de Larcher.[NT]Na edição de 1842 de Larcher: “La quinzième renfermait lesSaces et les..., qui donnaient deux cent cinquante talents. LesParthes, les Chorasmiens, les Sogdiens et les Ariens étaienttaxés à trois cents talents: cette satrapie était la seizième.”Na tradução para o inglês de G. C. Macaulay (1890): “TheSacans and the Caspians[81] brought in two hundred and fiftytalents: this is the fifteenth division.” Na nota mencionada: [81]

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- “{Kaspioi}: some read by conjecture {Kaspeiroi}, others{Kasioi}”.Na tradução do grego para o espanhol feita pelo Pe. BartoloméPou, S.J. (1727-1802): “Los sacas y los Caspios, alistados en elgobierno decimoquinto, contribuían con 250 talentos al año.Los Partos, los Corasmios, los Sogdos y los Arios, queformaban el decimosexto, pagaban al rey 300 talentos. [N.E. -g.n.]

(8) Trata-se do algodão. Os antigos denominavam-no bisus econsideravam-no, uns, uma espécie de linho; outros, umaespécie de lã que crescia numa árvore da Índia. Teofrasto aludeàs árvores da lã, querendo referir-se aos pés de algodão. Ctésias,num relatório a Varro, diz existir na Índia árvores produtoras delã. Pompônio Mela afirma o mesmo. “A Índia — diz ele — étão fértil, que o mel corre das folhas das árvores e a lã brota dosgalhos”. Acrescenta, em seguida, que os Indianos se vestem delinho ou dessa espécie de lã, confundindo assim linho comalgodão. Os Indianos nunca conheceram o linho. (L.)

(9) A árvore que dá o incenso só cresce na Arábia;encontramo-la particularmente nesta parte que se chamaAurifera, em um cantão que está ali pelo meio da Arábia, apósos Atramitas, próximo à cidade de Saba, capital do país dosSabeus. Este cantão é naturalmente inacessível, estando cercadopor rochedos. Aí encontramos florestas de incenso que têmvinte esquenos de altura por dez de largura. Estão vizinhas aosSideus, que habitam um outro pais pelo qual se transporta oincenso, e daí vem o que antigamente se chamava incenso thusminxum. (L.)

(10) É o nome dado pelos Gregos e Latinos do Baixo Império ànossa canela, é a “casia” de Heródoto, a “casia syrinx” ou a“casia fistula” da maioria dos autores. Os antigos, porém,compreendiam pelo nome de cinamomo a própria árvore queproduz a canela. (L.)

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(11) Para se entender bem esta passagem, convém lembrar queos Gregos freqüentemente designavam os Persas sob o nome deMedas, embora os Medas fossem povos aos quais os Persastinham arrebatado o império. (MIOT.)

Livro IV

(1) Esse poema é muito antigo, embora, segundo todas asaparências, Homero não seja o autor dele. O escoliasta deAristófanes o atribui a Antímacos. Mas Antímacos de Cólofon,que era anterior a Platão, segundo Suidas, era posterior aHeródoto, ou pelo menos seu contemporâneo. (L.)

(2) Note-se que não somente o golfo Arábico era conhecido sobeste nome como também o golfo Pérsico e o oceano Austral,isto é, toda a vasta extensão de mar situada entre os dois golfos.(L.)

(3) Heródoto não duvida, absolutamente, que os Feníciostenham feito a circunavegação da África e voltado ao Egito peloestreito de Gibraltar; mas não pode acreditar que durante opercurso eles tenham tido o sol à sua direita. Todavia, osFenícios deviam tê-lo necessariamente, depois de haverematravessado a linha equatorial. Essa circunstância importante,que não pode ser imaginada numa época em que a Astronomiaainda estava na infância, assegura a autenticidade dessa viagem,da qual, sem isso, poderíamos duvidar. (L.)

(4) Não é de admirar que Heródoto faça essa idéia da Europa eda Ásia, pois, com exceção do país dos Masságetas, da Arábia euma parte da Índia, não conhecia ele da Ásia senão o paíssubmetido a Dario. Aliás, o historiador colocava na Europa essaimensa região situada ao norte do Cáucaso, do mar Cáspio e dosMasságetas. De um lado, acrescentava à Europa grandes regiõesque faziam parte da Ásia, e do outro, localizava nessa parte domundo países de vasta extensão, ainda não conhecidos. Não nosdevemos surpreender, pois, de ele afirmar que a Europa é maior

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do que a Ásia e a África. (L.)

(5) Heródoto engana-se. O Astápus ou Abawi, o Astáboras ouAtbara, rios consideráveis, e vários outros que vêm da Abissíniae de países mais distantes, engrossados pelas chuvas tropicais,despejam suas águas no Nilo, na Etiópia. É possível, todavia,que o nosso historiador tenha querido dizer apenas que o Nilo,depois que entra no Egito, não recebe mais nem rios nemfontes, o que é absolutamente verdadeiro. (L.)

(6) Antes da invenção das caldeiras, os povos bárbaros seserviam de peles para cozinhar os alimentos. Os ÁrabesBeduínos, os Groenlandeses e vários povos da Tartária aindamantêm esse costume. (WESSELING)

(7) Outros povos bárbaros honravam o deus da guerra sob oemblema de uma cimitarra. Amiano Marcelino diz dos Hunos:“Nec templum apud eos visitur aut delubrum... sed gladius,barbarico ritu, humi figitur nudus eumque ut Martem...incolunt”. Mesmo em Roma, uma lança representava outrora odeus Marte, como nos informa Varro. (L.)

(8) Quando Henrique III entrou na Polônia para tomar possedeste reino, encontrou, à sua chegada, trinta mil cavaleiros emordem de batalha. O general, aproximando-se dele, tirou dosabre, deu uma picada no braço, e recolhendo em sua mão osangue que corria do ferimento, bebeu-o, dizendo-lhe: “Senhor,desgraçado daquele dentre nós que não estiver pronto aderramar, em vosso serviço, todo o sangue que tiver nas veias.Por isso, nada quero perder do meu ”. (L.)

(9) Não duvido que estes sacrifícios desumanos podem parecerfabulosos àqueles dentre os modernos que só julgam as naçõesestrangeiras pela sua. Saibam que na China, isto é, no país maissuave e polido que existe, o imperador Chun-Tchi, tendoperdido uma de suas esposas em 1660, fez sacrificar, sobre otúmulo dessa mulher, mais de trinta escravos. Ele era tártaro,

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isto é, cita. Este exemplo recente torna crível o que nos dizHeródoto dos antigos Citas. (L.)

(10) O famoso templo de Juno em Samos. (L.)

(11) Essa maneira de contar o tempo supõe ainda muitagrosseria e ignorância por parte dos Persas. Cerca de um séculoe meio depois dessa época, em Roma, enterrava-se todos osanos um prego no muro do templo de Minerva. Era pelo númerodesses pregos que se contava o número dos anos. Dario contavaconquistar a Cítia em dois meses; mas parece que ele gastoucinco, sem obter êxito. (L.)

(12) Expressão do mais absoluto desprezo. (L.)

(13) Οις [Ois] significa “ovelha” e λυχος [lukos] “lobo” [{oinen lukoisi}] (L.)

(14) Essas moedas de ouro eram chamadas dáricas. A dáricavalia vinte dracmas; a dracma, 18 sous de nossa moeda. Assim adárica valia 18 libras. (L.)

(15) Heródoto interrompe aqui sua narrativa para fazer adescrição da África, retomando-a mais abaixo, parágrafo CC.(L.)

(16) O asfódelo é uma planta da família das liliáceas que existeem abundância às margens do Mediterrâneo. Os caules daespécie conhecida sob o nome de asfódelo ramoso são bastanteelevados e servem por isso para a construção de habitaçõesligeiras, ou pelo menos para sua cobertura. O asfódelo eraconsagrado nas cerimônias fúnebres, e os antigos supunham queos mortos dele se nutriam. Os sítios onde aparecem as sombrasdos heróis, no décimo primeiro livro da Odisséia, são pradosonde cresce o asfódelo. (MIOT.)

(17) Aristóteles fala de asnos de um só chifre: é o asno da Índia.

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Mas como só fala pela narrativa de outrem, há grande aparênciade que o que diz na História da Índia de Ctésias. Este asno deCtésias me parece fabuloso; o de Heródoto, não menos. (L.)

(18) Homero fala também do thos. Esse animal parece ser ochacal. É de cor mais escura que a raposa, mais ou menos domesmo tamanho. Gane como este animal. Os Árabeschamam-no deebe ou chacal. (L.)

(19) Heródoto retorna aqui à narrativa interrompida noparágrafo CLXVIII para descrever a Líbia. (L.)

(20) Este episódio histórico prova que a arte de fazer minas paratomar uma praça é muito antiga, e que a de as evitar não o émenos. Este episódio histórico é precioso na arte de atacar e dedefender as praças. Enéias fez muito bem de relatá-lo. Ver:Æneas Poliorcet, § 37, p. 1711. (L.)

Livro V

(1) O Paeon ou Paean [Péon] era um hino que tinha dois tipos.O primeiro era cantado antes da batalha, em honra a Marte; osegundo, após a vitória, em honra a Apolo. Este hino começavapor estas palavras: Io Paen. A alusão de Paean, nome destehino, ao nome dos Paeônios, é sensível, e é para conservá-la quetraduzi: cantavam o Paeon. (L.)

(2) A acreditar-se em Plutarco, os Trácios, ainda no seu tempo,imprimiam, em suas mulheres, estigmas, para vingarem Orfeu,que elas tinham feito perecer. Fânocles concorda com ele numpoema sobre Orfeu, de que Estobeu nos conservou umfragmento. Se essa razão é verdadeira, é de estranhar-se que oque foi originalmente uma punição se torne, em seguida,ornamento e sinal de nobreza. (L.)

(3) O culto de Baco entre os Trácios é atestado por vários outrosautores, entre os quais Eurípedes. Também vemos, no Rhésus,

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atribuído a este poeta, que este príncipe tendo sido morto porUlisses, foi levado nos antros da Trácia pela Musa que lhe deraa dia, e que tendo se tornado deus, de homem que havia sido, alidava os oráculos de Baco. (L.)

(4) Síbaris era uma cidade poderosa, governada por Télis, queera seu demagogo. Este homem persuadiu com suas acusaçõesos Sibaritas a banirem quinhentos dos mais poderosos cidadãose a leiloarem os seus bens. Os exilados retiraram-se paraCrotona, refugiando-se junto aos seus altares. Télis enviouembaixadores a Crotona, com ordem de extraditarem osexilados, ou declararem guerra no caso de recusa. O povoestava disposto a entregá-los. O filósofo Pitágoras conseguiuconvencê-lo a protegê-los. Os Sibaritas atacaram com trezentosmil homens. Os Crotonienses, comandados por Mílon o atleta,enfrentaram-nos com cem mil. Mílon, que havia conquistadopor seis vezes o prêmio nos Jogos Olímpicos e não possuíamenos grandeza de alma do que força física, foi o primeiro alançar-se sobre eles. Os Sibaritas foram batidos, a maioriamorta na fuga e sua cidade, tomada e pilhada, reduzida a umaperfeita solidão. Cinqüenta e sete anos depois, um certo Téssaloreuniu os Sibaritas que haviam sobrevivido ao desastre de suapátria, restabeleceu a cidade, mas ela foi novamente destruídapelos Crotonienses. Seis anos depois, os Ateniensesestabeleceram uma colônia na vizinhança da antiga cidade e lhederam o nome de Thurium. A destruição de Síbaris pelosCronienses foi no ano 4.207 do período juliano, 507 anos antesda era vulgar. (L.)

(5) Ela desposou Leônidas. Quando este príncipe partiu para asTermópilas, como Gorgo lhe pedisse suas ordens, ele lhe disse:“Desposa um homem de bem e torna-te mãe de gente briosa”.Leônidas, como se vê, sabia que morreria na peleja. Estaprincesa era muito virtuosa, e é uma das mulheres que Plutarcopropõe como modelo a Eurídice. (L.)

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(6) As Panatenéias eram uma festa instituída em honra aMinerva. Havia as pequenas e as grandes Panatenéias. A origemdas pequenas data de Teseu. Quando este príncipe reuniu todosos povoados da Ática na cidade de Atenas, estabeleceu ali afesta das Panatenéias, que era comum a toda a nação.Celebrava-se todos os anos, no dia 14 do mês de hecatombeon,que corresponde a 27 de julho. Sua instituição foi no ano 3398do período juliano, 1316 anos antes da era vulgar. As grandesPanatenéias eram celebradas a cada cinco anos, no terceiro anode cada olimpíada. (L.)

(7) Isto é, peles, pergaminho. “Uma lei, diz Diodoro de Sicília,ordenava, entre os Persas, escrever a história sobre peles. Eramchamadas de difteres reais”. Esses difteres continham os anaisda nação e eram guardados nos arquivos reais. (BELLANGER)

(8) Laodamas, filho de Etéocles, sucedeu a seu pai no trono deTebas. Teve por tutor, durante a menoridade, Creonte, filho deMeneceu, regente do reino. Laodamas já era maior e governavapor si mesmo, quando os Árgios puseram-se novamente emcampo para assediar Tebas. Os Tebanos enfrentaram-nos,movimentando-se até as cercanias de Glissante. Laodamasmatou, no combate travado, Egíale, filho de Adrasto.Entretanto, os Árgios ganharam a batalha. Laodamas retirou-sena noite seguinte para o país dos Ilírios, com os Tebanos quequiseram segui-lo. Os Árgios tendo tomado Tebas, adevolveram a Tersandro, filho de Polinice. Antes de Laodamas,Cadmus também tinha se retirado para a Ilíria, junto aosEnqueleus, (L.)

(9) O nome de anfictiões era dado à mais ilustre assembléia daGrécia. Na sua origem, não tinha ela outro objetivo senão o deproteger o templo de Delfos e distribuir justiça à multidão queacorria de todas as partes da Grécia a consultar o deus.Andrócion pretende, na sua “História da Ática”, ter sido o nomede anfictiões dado à assembléia pelo fato de os povos das

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vizinhanças de Delfos costumarem reunir-se nesta cidade paratais consultas. Pode-se considerar esta assembléia como osestados gerais da Grécia. Realizava-se duas vezes por ano; naprimavera e no outono. Cada cidade que tinha o direito deanfictionia enviava dois deputados a esta assembéia. (L.)

(10) O templo de Delfos, segundo Pausânias, não era,primitivamente, senão uma capela feita com galhos do louroque cresce próximo a Tempe. Um certo Ptéras de Delfosconstruiu-o mais tarde de maneira mais sólida, sem dúvida debronze; mas o bronze fundiu-se num incêndio. Construído, pelaquarta vez, em pedra, por Tropônio e Agamedes, incendiou-senovamente no primeiro ano da 58a. Olimpíada; os anfictiõeslevantaram 300 talentos (1.620.000 fr.) para reconstruí-lo etaxaram os Délfios em um quarto desta soma. (L.)

(11) Os Cários eram desprezados por todos; consideravam-nosvis escravos, por terem sido os primeiros a fornecerem tropasmercenárias. Assim, costumavam expô-los nas ocasiões maisperigosas. Daí o provérbio citado por Pausânias no seu“Lexico”, [εν καρε τον χινδυνον] que significa fazer-se umaprova perigosa servindo-se de um homem vil. Esses povospossuíam um templo em comum com os Lídios e os Mísios, queeram seus irmãos, conhecido como o templo de Júpiter Cário.Os que sacrificavam a Júpiter Cário consideravam-sedescendentes de Cário. Assim, dizer que Iságoras ofereciasacrifícios a Júpiter Cário, era considerá-lo como pertencente auma família cária e escrava. (L.)

(12) Os filarcas eram chefes de tribos. Havia tantos filarcasquantas tribos. Obedeciam eles aos hiparcas. (L.)

(13) Cílon pertencia a uma das mais ilustres famílias de Atenas,sendo possuidor de imensas riquezas. Desposara uma filha deTeagenes, tirano de Mégara. Dando crédito a um oráculoilusório, tentou apoderar-se da cidadela de Atenas. Não obstanteisso, erigiram-lhe nessa cidadela uma estátua de bronze; mas

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supõe-se que foi por ter conquistado o prêmio nos jogosOlímpicos. (L.)

(14) Magistrados especialmente encarregados da administraçãoda marinha em Atenas. (MIOT.)

(15) Dâmia e Auxésia eram o mesmo que Ceres e Prosérpina.Davam fertilidade à terra e possuíam um templo em Tégea,onde eram chamadas Carpofores, isto é, que fornecemabundantes colheitas. (L.)

(16) Não é verdade que só se encontrassem oliveiras na Ática.Heródoto sabia-o bem, mas não quis ferir aqui a pequeninavaidade dos Atenienses, e, para salvar sua reputação dehistoriador, usou desta restrição: Diz-se. (L.)

(17) Dâmia e Auxésia. (L.)

(18) O primeiro dessa casta a reinar em Corinto chamava-seBáquis, filho de Prumnis. Sucedeu aos Aletíadas, que haviamocupado o trono de Corinto durante cinco gerações. OsBáquidas, que tiraram seu nome do de Báquis, reinaram nessacidade pelo mesmo espaço de tempo. O último a reinar foiTelestes, filho de Aristómenes, morto por Arieu e Perantas, quelhe votavam imenso ódio. A realeza terminou com ele. Emseguida, escolheu-se entre os Báquidas prítanos ou magistradosanuais, que governaram o Estado até que Cipselos, filho deEéton estabeleceu a tirania e os perseguiu. (L.)

(19) Essa arca foi conservada no templo de Juno, em Olímpia.Era toda de cedro, com cenas esculpidas em ouro e em marfim.Podemos ver a descrição dela em Pausânias liv. V, cap. XVII eseguintes, É muito provável que este não fosse o mesmo em quese escondeu Cípselo, mas um outro feito a molde daquele, a fimde conservar a memória de um acontecimento tão precioso aosCipsélios. (L.).

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(20) Famoso poeta lírico, acérrimo inimigo dos tiranos, aosquais não poupava nos seus versos eivados de amor à liberdade.Viveu na época da 42a. Olimpíada, ao que se presume. Suídasinforma-nos que Pítaco matou, nessa olimpíada, Melâncrus,tirano de Mitilene, e Diógenes Laércio diz ter sido ele auxiliadonessa empresa pelos irmãos de Alceu. Não nos restam do poetasenão fragmentos, reunidos carinhosamente por Henri Estienne,em aditamento ao seu “Píndaro” em dois volumes in-16. (L.)

(21) Entre os antigos, constituía grande honra para osvencedores arrebatar as armas aos vencidos, e para estes umagrande ignomínia perdê-las. As leis vigorantes na maioria dosEstados gregos puniam mesmo os que, numa derrota, perdiamseu escudo. Essa desgraça aconteceu ao poeta Arquíloco, naguerra dos Tásios contra os Saios, povos da Trácia. Menosprudente do que Alceu, Arquíloco ousou vangloriar-se disso nosseus versos, no que foi imitado por Horácio. Os romanos apenasriram da ingenuidade de Horácio, mas os Espartanos, maisausteros do que os Romanos, expulsaram Arquíloco de Esparta,onde a curiosidade o havia conduzido. (L.)

Livro VI

(1) As Tesmofórias eram festividades que as mulherescelebravam em honra de Ceres, porque julgavam ter sido essadeusa a primeira a dar leis aos homens. Esta festa durava cincodias (Ver Meursius, Græcia feriata) (L.)

(2) Dídimo era o nome de um local no território de Mileto, ondehavia um templo dedicado a Apolo Didimeu. (L.)

(3) Havia um caminho sagrado, muito famoso, que levava deAtenas a Elêusis, mas talvez não seja aquele a que Heródoto serefere. É bem possível que se trate daquele por onde osAtenienses acompanhavam a Delfos as pompas sagradas.(Wesseling).

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(4) Isso significa que Milcíades era muito rico. Sendo a Áticaum país estéril e muito pobre em pastos, a criação de cavalos alitornava-se bastante dispendiosa, sendo, por isso mesmo, indíciode riqueza da parte daqueles que a ela se dedicavam. (L.)

(5) “Oceano e Tétis tiveram um filho de nome Asopus, e esteuma filha, Egina, raptada de Fliunte por Júpiter e levada para ailha de Egina, onde lhes nasceu um filho de nome Éaco, que setornou rei dessa ilha. Éaco teve dois filhos, Peléia e Télamon.Peléia foi a Ftia na Tessália. Foi rei ali, e teve Aquiles. Télamonretirou-se para Salamina.” (Diodoro de Sicília, IV, IV) (L.)

(6) Os Lampsacênios haviam compreendido, em sua maioria, aameaça de Creso, mas sentiam-se embaraçados com a maneirapela qual ela lhes fora formulada. Por que — inquiriram, semdúvida — Creso escolhera o pinheiro a outra árvore qualquer?A dificuldade consistia nisso, e foi essa pequena dúvida que ovelho conseguiu esclarecer. (L.)

(7) O ancião de Lâmpsaco estava redondamente enganado. Opinheiro não é a única árvore a morrer quando cortada.Aulo-Gélio escreveu um capítulo especialmente sobre isso, doqual possuímos apenas um ligeiro resumo. Seja como for, ocerto é que a expressão contida na ordem de Creso tornou-seproverbial. (L.)

(8) Heródoto interrompe novamente o fio de sua narrativa parafalar dos antigos reis da Lacedemônia, retomando-o noparágrafo LXXII. (L.)

(9) Júpiter, de quem Perseu passava por filho. (L.)

(10) Quando o rei comparecia a uma reunião pública, todos ospresentes se levantavam, numa manifestação de respeito, excetoos éforos, cuja magistratura era, sob certos aspectos, superior àdignidade real, pois fora instituída para impor limites a estaúltima. (L.)

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(11) Os antigos calculavam pelos dedos, e isso o atestamaqueles que aludem a tal assunto. Não pretendo explicar comoprocediam eles, limitando-me a dizer que todos os números atécem eram contados pelos dedos da mão esquerda, e de cem atéduzentos, pelos da mão direita, voltando depois à esquerda.Esse costume prevalecia ainda no tempo de Santo Agostinho,como se pode verificar numa passagem da “Cidade de Deus”,liv. XVIII, chap. 53. (L.).

(12) Gimnopédias eram, em Esparta, uma festa em que ascrianças cantavam, nuas, hinos em louvor de Apolo e dostrezentos lacedemônios mortos no combate das Termópilas.Essa festa era realizada na data correspondente a 20 ou 21 deJulho entre nós. A batalha de Leuctros feriu-se no dia 5 dessemês, e a notícia chegou a Esparta no último dia dos jogos,quando o coro dos homens já havia começado. Esses jogosduravam vários dias, e os homens eram também admitidos,além das crianças. (L.)

(13) Júpiter guardião do lar. Consideravam-se como tendodireito de cidade todos os que possuíam, na sua residência, umaltar consagrado a Júpiter Herceu. É de crer-se, pois, que foimesmo a esse deus que Demarato sacrificou. (MIOT.)

(14) Heródoto retorna aqui à narrativa interrompida noparágrafo LII. (L.)

(15) Esse oráculo é bastante obscuro, e a narrativa de Heródotonão o esclarece convenientemente. A primeira parte pode serentendida muito bem pelo que nos conta Pausânias: “QuandoCleómenes lançou suas tropas contra a cidade de Argos,julgando-a desprovida de defensores, Telesila fez subir àsmuralhas os escravos e todos aqueles que, ou por serem muitojovens ou muito velhos, não podiam manejar armas. Emseguida, reuniu todas as armas que restavam nas casas e nostemplos, equipando com elas todas as mulheres jovens epostando-as no local por onde o inimigo teria de passar. Sem

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temer a aproximação dos Lacedemônios nem os seus gritos deguerra, essas mulheres enfrentaram-nos decididas. Os invasores,compreendendo que se as matassem a vitória não lhes trariahonra, e que se fossem derrotados ser-lhes-ia vergonhoso,resolveram retirar-se”. Quanto à segunda parte, não se podeentendê-la. (L.)

(16) Templo de Juno. Esta deusa se chamava em grego (Ηρα) eseu templo (Ηραιον). (L.)

(17) Artafernes, governador de Sardes, era irmão de Dario; liv.V, XXV. XXXI, LXIII, etc. (L.)

(18) Heródoto refere-se à guerra do Peloponeso, a cujo iníciochegou a assistir. (L.)

(19) O polemarca era o terceiro dos nove arcontes. Ele ofereciasacrifícios a Diana Agrotera, isto é, a Caçadora, e a Marte.Esses sacrifícios eram realizados todos os anos, em memória davitória alcançada em Maratona. Ele regulava os jogos fúnebresque eram celebrados em honra dos que haviam morrido naguerra. Fazia sacrifícios fúnebres a Hormódio e a Aristogiton.Julgava os metecos, ou estrangeiros domiciliados, e exercia emrelação a eles a mesma autoridade que o arconte epônimo emrelação aos cidadãos. (L.)

(20) Cinegiro era irmão de Ésquilo, célebre poeta trágico. Ele sedistinguiu na batalha de Maratona; mas não parece que exerceuqualquer comando, não mais que Epizelus, como pretende oautor dos Paralelos dos Gregos e dos Romanos, falsamenteatribuídos a Plutarco. (L.)

(21) Templo de Apolo na cidade de Délio. (L.)

(22) Juízes que presidiam os Jogos Olímpicos. Eram escolhidosentre os Eleus, que mais tarde foram privados destas funçõeshonoríficas pelas intrigas dos Piseus; isto levou a uma guerra

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sangrenta entre os dois povos. (MIOT.)

(23) Eis o motivo que levou as mulheres de Lemnos a trucidarseus maridos: As Lêmnias celebravam, todos os anos, uma festaem honra de Vênus, mas, tendo abandonado esse costume, adeusa vingou-se dessa desatenção, dando-lhes um odordesagradável, que as tornava repelentes aos seus naridos.Vendo-se desprezadas, as mulheres mataram-nos a todos. (L.)

Livro VII

(1) Trata-se, certamente, da tamargueira, planta que medra naFrança, na Itália, na Espanha e no Levante. (MIOT.)

(2) Parece bastante estranho que Heródoto dê ao Helesponto onome de rio, mas vamos encontrar razão para isso nestapassagem de Wood. “Quando navegávamos pelo mar Egeu, noHelesponto, fomos obrigados a enfrentar uma forte e constantecorrente, a qual, sem a ajuda de um vento norte, faz,ordinariamente, três nós por hora. Encontrávamo-nos, aomesmo tempo, cercados de terras por todos os lados. Nada seoferecia à nossa vista senão as cenas campestres comunsnaquelas paragens, e tudo nos dava a idéia de um belo rio queatravessa um país. Nessa situação, eu mal podia me convencerde que estava no mar, sendo natural que eu fosse levado apensar na vastidão do Helesponto, na sua embocadura, na suacorrente agradável, nas suas margens cobertas de vegetações eem tudo que se refere aos rios”. (Wood. Description de laTroade, p. 300). (L.)

(3) Espécie de carruagem muito cômoda e usada de preferênciapelas mulheres. Fala-se dela na História dos amores de Chéréase de Callirrhoé. (L.)

(4) Pérgamo era o nome da cidadela de Tróia. Heródotoacrescenta de Príamo para distingui-la da cidade de Pérgamo naMísia, que foi mais tarde capital de um reino, e de Pérgamo,

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cidade dos Piérios. (L.)

(5) Entre os Persas, faziam-se as tropas marchar ao encontro doinimigo sob golpes de chicote. Ver Xenofonte, Cyri expedit.,liv. III,cap. IV, § XVI. (L.)

(6) São os habitantes das ilhas do golfo Pérsico. Essas ilhas, emgrande número, estavam sob o domínio dos Persas.Estendiam-se da Caramânia à Pérsia Havia poucas delas no marda Eritréia, e se encontravam a tão grande distância da Pérsiapara jamais terem sido conquistadas pelos reis da Pérsia. (L.).

(7) Espécie de navio de grande comprimento inventado pelosCíprios. (L.)

(8) Os Bessos eram outro povo da Trácia mediterrânea, aindamais bárbaros do que os Satres. Os sacerdotes de Baco eram,provavelmente, escolhidos entre os dessa nação selvagem.(MIOT.)

(9) Teres foi um príncipe valoroso e o fundador do reino dosOdrises. Teve dois filhos, Sitalces e Esparodos, e uma filha cujonome se ignora. Desposou ela Ariapites, rei dos Citas. (L.)

(10) Aristeu comandou os Coríntios na expedição de Potidéia, eenfrentou a ala das forças atenienses que se lhe opunham. Esteacontecimento é do segundo ano da 86a. olimpíada. Ele foipreso cerca de cinco anos depois. Tendo sido conduzido aAtenas, mataram-no. A conduta injuriosa de seu pai Adimantoem relação a Temístocles, e sua fuga vergonhosa da jornada deSalamina, contribuiram bastante para sua desgraça. (L.)

(11) Dava-se o nome de teoro a um embaixador enviado paraoferecer sacrifícios a qualquer deus ou para consultar umoráculo. (L.)

(12) O Artemísio é um braço de mar (L.) que fica entre a Eubéia

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e a Grécia continental.(N.T.)

(13) Diana é denominada em grego Artemisa. Foi esse temploque, ao que parece, deu o seu nome àquele local e ao referidobraço de mar. (L.)

(14) Os sinais para dar a conhecer a chegada de inimigos ou deamigos eram feitos com tochas, erguidas acima das muralhas.Quando eram mantidas tranqüilas, anunciavam amigos; quandoagitadas, anunciavam inimigos. (L.)

(15) Os Botieus eram atenienses de origem e descendentes,segundo Aristóteles, daquelas crianças que os Ateniensestinham enviado, como tributo, a Minos, em Creta. Estascrianças cresceram nesta ilha ganhando a vida com o trabalhode suas mãos. Os Cretenses, querendo cumprir um voto,enviaram a Delfos o melhor de seus cidadãos, aos quais sejuntaram os descendentes destes Atenienses. Como não podiamviver neste lugar, foram para a Itália, e se estabeleceram nascercanias do Iapígio; passaram em seguida para a Trácia, ondetomaram o nome de Botieus. Daí que em um sacrifício solenesuas jovens cantavam o refrão: Vamos a Atenas. (L.)

(16) A assembléia dos anfictiões era realizada duas vezes porano, na Primavera e no Outono. A da Primavera tinha lugar emDelfos, e a do Outono nas vizinhanças de Antela, no templo deCeres Anfictiônida. Essa assembléia religiosa era a maisrespeitável de toda a Grécia, e era inaugurada com sacrifícios aCeres, oferecidos pelos pilágoras. Daí vem, provavelmente, onome que se dá a este templo. (L.)

(17) As Cárnias, celebradas em Esparta em honra de Apolo,duravam nove dias. Essa festa foi instituída na 26a. Olimpíada,segundo afirma Zósimo na sua Crônica, citada por Ateneu.“Todos os Dórios tinham uma veneração particular por ApoloCárnio. Sua origem vem de Carnus, que era de Arcanânia, queque tinha recebido de Apolo o dom da adivinhação. Tendo sido

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morto por Hipotes, filho de Filas, Apolo foi desabafar suacólera aos Dórios em seu campo. Hipotes foi banido por estamorte: e desde este tempo os Dórios resolveram apaziguar osmanes do adivinho de Acarnânia.” (L.)

(18) Enquanto os lacedemônios faziam sua refeição — diz oautor dos Pequenos Paralelos, atribuídos a Plutarco — osbárbaros vieram atacá-los em massa. Leônidas, vendo-osaproximar-se, disse aos seus: “Jantai como se tivésseis de cearno palácio de Plutão”. E lançou-se contra os bárbaros. Emboratodo retalhado por golpes de lança, conseguiu chegar atéXerxes, ao qual arrebatou o diadema. Quando, finalmente,morreu, o soberano mandou arrancar-lhe o coração, que estavacoberto de pêlos, como assegura Aristides no primeiro livro desua História da Pérsia. (L.)

Livro VIII

(1) Antes da introdução do uso da trombeta, o sinal de combateera dado com um facho aceso. O que o conduzia era consagradoao deus Marte. Avançando à frente do exército, lançava o fachono intervalo entre os dois grupos adversários e se retirava emseguida, sem ser molestado. Qualquer que fosse o resultado dapeleja, poupava-se sempre a vida do porta-facho, por ser eleconsagrado a Marte. Daí vem o provérbio sobre as derrotastotais: o porta-facho sequer foi poupado. Heródoto é o primeiroautor em que vemos esta expressão, que se tornou tão familiardepois que passa por proverbial. (L.)

(2) Esse Cília ensinou à sua filha Cíane a arte de mergulhar. Porocasião da tempestade que colheu os persas nas proximidadesdo monte Pélion, ambos mergulharam no ponto assolado pelovendaval e arrancaram as âncoras que retinham os navios deXerxes, causando-lhe, dessa maneira, uma perda considerável.Por ordem dos anfictiões, ergueram-se, ao pai e à filha, estátuasno templo de Apolo, em Delfos. A estátua de Cíane tirou o seunome daquela que Nero mandou levar para Roma. (L.)

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(3) Como a pitonisa transmitia os oráculos com voz confusa eininteligível, serviam-se de um intérprete sagrado que os redigiapara conhecimento dos que vinham consultar o deus. Esseintérprete era denominado profeta. No tempo de Heródoto sóexistia um, mas como a superstição fez progresso com a famacrescente do oráculo, passaram a existir vários. Esses intérpretesou profetas eram escolhidos por sorte entre os délfios da maisalta categoria, porque temia-se confiar um ministério tãoimportante a outras pessoas que não às que estavam interessadasem guardar-lhe o segredo. (L.)

(4) Constituía crime em Atenas abandonar a pátria em ocasiãode perigo, ou mesmo retirar a esposa e os filhos da cidadeameaçada, antes de ser dada permissão para isso por umdecreto. Leocrates tendo se retirado para Rodes e para Mégaraalguns tempo antes da batalha de Queronéia, foi acusado porLicurgo, quando voltou a Atenas, de ter traído a pátria; e setivesse um sufrágio a mais contra ele, teria sido banido oupunido de morte. (L.)

(5) Esse mar não era outra coisa senão um poço, onde a água domar ia ter por intermédio de condutos subterrâneos. “O quenada tem de maravilhoso — acrescenta Pausânias —, mas quemerece ser relatado, é que, quando o vento sul sopra, ouve-seum rumor semelhante ao das vagas agitadas, e vê-se na pedra dopoço a figura de um tridente, testemunho, segundo dizem, dademanda entre Netuno e Minerva por causa da Ática”. Jorravatambém água do mar no templo de Netuno Hípias, perto deMantinéia, e em Mylases, cidade da Cária, embora o porto destacidade esteja afastado do mar vinte e quatro estádios, e queMantinéia esteja tão adentrada na terra que o mar só podemesmo chegar ali, diz Pausânias, por milagre. (L.).

(6) Cécrope reinou na Ática, que se denominava outrora Actéiae a que ele chamou de Cecrópia, do seu próprio nome. Conta-seque, no seu reinado, os deuses escolheram as cidades onde

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desejavam ser honrados com um culto particular. Netuno foi oprimeiro a vir à Ática, e, fendendo a terra com o seu tridente,bem no meio da cidadela, fez brotar um mar, que hoje sedenomina Eréctida. Em seguida, veio Minerva, que fez crescer aoliveira que ainda hoje se vê no Pandrósion. Júpiter entregou acidade a Minerva, e Atenas tomou o nome dessa deusa, que emgrego é Atenéia. (L.)

(7) Aristóteles, segundo Plutarco, escreveu que o senado doAreópago deu oito dracmas a cada soldado, e que por esse meioconseguiu-se completar as tripulações dos navios. AcrescentaPlutarco que Clidemo afirma ter sido esse dinheiro obtido porum artifício de Temístocles. Porque, enquanto os Atenienses,diz ele, juntavam-se no Pireu para embarcar, a égide da estátuade Minerva se perdeu. Temístocles, simulando procurá-la portoda parte, encontrou entre as bagagens uma soma imensa dedinheiro que, sendo distribuída, deu abundância à frota. (L.)

(8) No dia 20 do mês boedromion, que era o sexto dia da festados mistérios de Ceres, levava-se do Cerâmico para Elêusis umafigura de Iaco ou Baco, coroada de mirta e tendo na mão umatocha. Durante a caminhada cantava-se em louvor ao deus umhino chamado o místico Iaco, no qual repetia-se constantementeo nome Iaco. Era esse hino que Diceu dizia ter ouvido. Estehino não se cantava em honra ao Baco Tebano, filho de Júpitere de Semele, mas do Baco filho de Júpiter e de Proserpina. Esteera, segundo Cícero, o primeiro dos cinco Bacos, entre os quaisnão se incluia o filho de Semele. (L.)

(9) Esta expressão faz alusão ao bronze de que eram revestidasas proas dos navios, ou aos tempos antigos em que as armaseram de bronze, quando o ferro ainda não tinha sido achado?(L.)

(10) “Aristides, sabendo que Psitália, pequena ilha situada noestreito, nas proximidades de Salamina, estava cheia de tropasinimigas, tomou consigo os mais ativos e os mais bravos dos

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seus concidadãos, e, embarcando em botes ligeiros, realizouuma abordagem nessa ilha, deu combate aos bárbaros,passando-os todos a fio de espada, com exceção dos de maisalta categoria, que foram feitos prisioneiros. Entre estes últimosfiguravam três irmãos, filhos de Sandauce, irmã de Xerxes.Aristides enviou-os a Temístocles, e dizem terem sido elesimolados a Baco Omestes, por ordem do adivinho Eufrantides,em virtude da decisão de um oráculo” (Plutarco — Vida deAristides). (L.)

(11) “Dizem que estando Latona grávida de Júpiter, a ciumentaJuno a perseguiu por mar e por toda a terra. Surpreendida pelasdores de parto em nosso país, desapertou sua cintura, e estelugar se chama por esta razão deste este tempo Zoster (cintura),e que tendo em seguida passado à ilha de Delos, deu à luz doisdeuses gêmeos, Diana e Apolo.” (Joan. Sicetiotes, Comment.mss, in Hermogenem.) (L.)

(12) A arte de montar a cavalo não entrava na educação militardos Lacedemônios. Estes raramente se serviam da cavalaria, equando a possuíam, desempenhava ela sempre um papelsecundário nos combates, sendo bastante inferior à dos outrosGregos. Na primeira guerra de Messênia dispunham de umapequena cavalaria, como os Messênios, e não fez nada dememorável, pois os Peloponésios não sabiam ainda manobrar oscavalos. A cavalaria lacedemônia só começou a distinguir-sequando nela foram admitidos cavaleiros estrangeiros. (L.)

(13) Trofônio descendia de Atamas por Frixo, Présbon,Clímeno e Ergino. Pretendende-se que ele tenha sido tragadopela terra. Tendo sido a Beócia assolada por terrível seca, oshabitantes recorreram ao oráculo de Delfos, que lhesaconselhou ir a Lebadéia consultar Trofônio, que possuíria oremédio para os seus males. Tendo os emissários dos Beócioschegado àquela cidade e não podendo encontrar o oráculo emquestão, Saon, o mais idoso dentre eles, percebeu um enxame

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de abelhas que voava para uma gruta; ele as seguiu e descobriudesta maneira o oráculo. Pretende-se que Trofônio o instruiupessoalmente sobre todas as cerimônicas que era precisopraticar para consultá-lo. (L.)

(14) Apolo concedia seus oráculos nessa cidade, que lhe eraconsagrada. Os persas queimaram seu templo quando entraramna Grécia. Um corpo de Focídios tendo aí se refugiado durantea guerra sagrada, os Tebanos puseram fogo no templo econseguiram destruí-lo. Este oráculo tinha reputação e foi umdos que Creso mandou consultar. (L).

(15) Temeno descendia de Hércules por parte de Aristômaco.Tendo, com Procles, Eurístenes e Cresfontes, disputado pelasorte três reinos do Peloponeso, coube a ele Argos, aLacedemônia a Procles e Eurístenes, filhos de Aristodemo, eMessena a Cresfontes. Os descendentes de Temeno foramchamados de Temênidas. Gaianes, Aérope e Pérdicas eramdesta casa. Eles subjugaram a Macedônia, e sua posteridade aíreinou por séculos, até Felipe que perdeu uma batalha contra osromanos. Pausânias relata a predição de uma sibila, concebidanestes termos: “Macedônios, que vos glorificais de ter reisoriginários de Argos, dois Felipes farão vossa felicidade e vossainfelicidade. O primeiro dará reis a cidades e a nações; osegundo, vencido por povos saídos do Ocidente e do Oriente,vos cobrirá de toda espécie de ignomínia.” (L.)

(16) Essa expressão encerra uma ameaça bastante grave. Comefeito, pouco faltou para que Alexandre fosse apedrejado.“Nossos ancestrais amavam de tal forma sua pátria — dizLicurgo —, que por pouco não apedrejaram Alexandre,embaixador de Xerxes e amigo deles, porque lhes exigia terra eágua”. Parecia para Heródoto que Xerxes não exigia terra eágua dos Atenienses, o que é confirmado por Aristides. Diz ele:“Em lugar de terra e água, que havia exigido deles antes, elelhes fazia dons imensos. Ele lhes entregava sua cidade com todo

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o seu país. Ofertava a Grécia inteira em doação, e aindariquezas que não existiam em toda a Grécia.” Mas, para voltar aAlexandre, o mesmo Aristides acrescenta que sua qualidade dehóspede dos Atenienses lhe salvou a vida; mas que eles,todavia, não o deixaram partir muito tranqüilamente, pois lheordenaram deixar seu país antes do pôr do sol, sob pena demorte. (L.)

Livro IX

(1) Homens colocados de distância em distância advertiam detudo que se passava. O primeiro que percebia alguma coisa,dava aviso por meio de tochas acesas que levantava. O segundoerguia, por sua vez, tantas tochas quantas havia percebido. Oterceiro fazia o mesmo. Dessa maneira um aviso qualquerchegava em pouco tempo àqueles aos quais importavaconhecê-lo. (L.)

(2) Júpiter Helênio, o mesmo que Júpiter Pan-helênio. Tendosido a Grécia assolada por terrível seca, a pitonisa respondeuaos que foram consultar o oráculo que era necessário apaziguarJúpiter, e empregar para isso a mediação de Éaco. Enviaram-sede todas as cidades emissários a esse príncipe, que fezsacrifícios e preces a Júpiter Pan-helênio (comum a toda aGrécia), e tiveram chuva. A montanha sobre sobre a qual estavacolocado este templo chamava-se também monte de JúpiterPan-helênico. (L.)

(3) Esse eclipse ocorreu, segundo o astrônomo Pingré, no dia 2de Outubro de 479 antes da era vulgar. Heródoto situa-o emépoca anterior à batalha de Plateia; mas ele se engana, ele foiposterior a esta batalha. (L.)

(4) Jacinto, filho de Amiclas, era amado por Apolo. Este deusjogava disco com ele. Mal o disco tocava a terra, Jacintoapressava-se a levantá-lo. O disco ricocheteou, atingiu-o norosto e o matou. Os Lacedemônios celebravam em sua honra

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uma festa no mês hecatombeon. Esta festa durava três dias. (VerAthénée, lib. IV, cap. VII). (L.)

(5) Os magistrados dos Beócios. (L.)

(6) Quando as forças gregas se concentraram no istmo,resolveram fazer um juramento selando sua união e que osforçava a sustentar corajosamente os perigos. Era concebidonestes termos: “Não preferirei a vida à liberdade; nãoabandonarei meus generais nem vivos nem mortos; dareisepultura a todos os aliados que morrerem no combate. Depoisde ter vencido os bárbaros não destruirei nenhuma cidade quehouver contribuído para sua derrota; não levantarei novamentenenhum dos templos que tiverem queimado ou derrubado, masos deixarei no estado em que estão, para servir à posteridade demonumento da impiedade dos bárbaros”. (Diodoro, lib. XI) (L.)

(7) Andrócrates fora, em tempos antigos, um chefe dos Plateus.Tendo Aristides mandado consultar o oráculo de Delfos, o deuslhe respondeu que os Atenienses obteriam a vitória se fizessemvotos a Júpiter, a Juno, adorada no Citéron, a Pã e às ninfasEsfragítides, e se oferecessem sacrifícios aos heróisAndrócrates, Lêucon, Pisandro, Damócrates, Hípsion, Actéon ePolíido, que haviam sido chefes dos Plateus. O templo do heróiAndrócrates estava situado nas cercanias de um denso bosque, àmargem direita da estrada que conduzia de Plateia a Tebas. (L.)

(8) Os antigos gregos serviam-se sempre de um adivinho paraconduzi-los e guiá-los em todos os empreendimentos, mesmonos que se relacionavam com a guerra. (L.)

(9) Havia na Lacedemônia um quarteirão denominado Pitana;mas ignora-se se veio daí o nome desse corpo de tropas. (L.)

(10) Os antigos gregos costumavam servir-se de pequenosseixos para a votação. (L.)

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(11) Ignora-se qual era originalmente a maneira de trajar dosPersas. Sabe-se, porém, que, quando eles subjugaram os Medos,Ciro, observando que as vestes destes eram mais graciosas,adotou-as e levou os grandes da corte a imitá-lo, porque estavestimenta habilmente oculta os defeitos do corpo, dá graça, efaz os homens parecerem maiores. (L.)

(12) Não confundir esse Euríbates com o Euríbates que traiuCreso e cujo nome ficou como sinônimo de traidor. Este era deÉfeso, e o outro de Argos. (L.)

(13) Não tendo Cleómenes deixado filhos varões, o reinopassou para Leônidas, filho de Anaxandrides e irmão de Dorieu.Leônidas foi morto nas Termópilas. Após ele, Pausânias, filhode Cleômbroto, governou na qualidade de tutor de Pistlarco,filho de Leônidas. Esta mulher o chama de rei, porque eledesempenhava a função. (BELLANGER.)

(14) Pausânias mudou inteiramente depois. Entregou-se aofausto e ao luxo; tornou-se altivo, colérico, aspirou à tirania equis submeter sua pátria a um jugo férreo. Foi essa a verdadeiracausa de sua morte. (L.)

(15) Os chefes dos Focídios utilizaram esse tripé por ocasião daguerra sagrada; mas a serpente de bronze subsistia ainda notempo de Pausânias. (L.)

(16) Os Lacedemônios denominavam irenos os que tinhamsaído da classe das crianças desde os dez anos, e melirenos osde idade mais avançada. Quando o ireno completava vinte anos,ele podia exercer o comando de tropa nos combates.(PLUTARCO, de Licurgo (L.)

(17) Os Coríntios, os Siciônios e os Trezênios. (L.)

(18) Protesilau era tessálio. Tomou parte no cerco de Tróia àfrente das tropas de Fílaco, de Pirraso, de Iton, etc. Foi morto

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por um dardânio ao desembarcar. (L.)

(19) Essa divindade, tão bárbara quanto o povo que a adorava, ébem desconhecida. Os sacrifícios que lhe faziam levam-nos asupor tratar-se do deus da guerra, representado pelos Tráciossob a forma de uma espada. Os Citas costumavam degolar numvaso a centésima parte de seus prisioneiros, embebendo asespadas no sangue dos mesmos. Os Cilícios rendiam ao deus daguerra um culto igualmente bárbaro. Dependuravam a vítima,homem ou animal, numa árvore, e, afastando-se a umadeterminada distância, matavam-na a golpes de dardos. Quandoatingiam a vítima, acreditavam que o deus aceitava o sacrifício.(L.)

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