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Respeite o direito autoral Reprodução não autorizada é crime Revista Brasileira de História da Educação

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Respeite o direito autoralReprodução não autorizada é crime

Revista Brasileira deHistória da Educação

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Conselho DiretorDermeval Saviani (UNICAMP); Marta Maria Chagas deCarvalho (PUC-SP); Ana Waleska Pollo CamposMendonça (PUC-Rio); Libânia Nacif Xavier (UFRJ).

Comissão EditorialDiana Gonçalves Vidal (USP); José GonçalvesGondra (UERJ); Marcos Cezar de Freitas (PUC-SP);Maria Lucia Spedo Hilsdorf (USP).

Conselho Consultivo

Membros nacionais:Álvaro Albuquerque (UFAC); Ana Chrystina VenâncioMignot (UERJ); Ana Maria Casassanta Peixoto (SED-MG); Clarice Nunes (UFF e UNESA); Décio Gatti Jr.(UFU e Centro Universitário do Triângulo); Denice B.Catani (USP); Ester Buffa (UFSCAR); Gilberto Luiz Alves(UEMS); Jane Soares de Almeida (UNESP); José SilvérioBaia Horta (UFRJ); Luciano Mendes de Faria Filho(UFMG); Lúcio Kreutz (UNISINOS); Maria ArisneteCâmara de Moraes (UFRN); Maria de Lourdes de A.Fávero (UFRJ); Maria do Amparo Borges Ferro (UFPI);Maria Helena Camara Bastos (UFRGS); MariaStephanou (UFRGS); Marta Maria de Araújo (UFRN);Paolo Nosella (UFSCAR).

Membros internacionais:Anne-Marie Chartier (França); António Nóvoa (Por-tugal); Antonio Viñao Frago (Espanha); Dario Ragazzini(Itália); David Hamilton (Suécia); Nicolás Cruz (Chile);Roberto Rodriguez (México); Rogério Fernandes(Portugal); Silvina Gvirtz (Argentina); Thérèse Hamel(Canadá).

Revista Brasileira de História da EducaçãoPublicação semestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE

A Sociedade Brasileira de História da Educação(SBHE), fundada em 28 de setembro de 1999, é umasociedade civil sem fins lucrativos, pessoa jurídica dedireito privado. Tem como objetivos congregarprofissionais brasileiros que realizam atividades depesquisa e/ou docência em História da Educação eestimular estudos interdisciplinares, promovendo in-tercâmbios com entidades congêneres nacionais einternacionais e especialistas de áreas afins. É filiadaà ISCHE (International Standing Conference for theHistory of Education), a Associação Internacional deHistória da Educação.

DiretoriaPresidente: Marta Maria Chagas de Carvalho (PUC-SP)Vice-Presidente: Ana Waleska Pollo CamposMendonça (PUC-Rio)Secretária: Libânia Nacif Xavier (UFRJ)Tesoureiro: Jorge Luiz da Cunha (UFSM)

Diretores RegionaisNorte: Maria das Graças Pinheiro da Costa (UFAM) eAnselmo Alencar Colares (UFPA)Nordeste: Marta Maria de Araújo (UFRN) e AfonsoCelso Scocuglia (UFPB)Centro-Oeste: Silvia Helena Andrade de Brito (UFMS)e Nicanor Palhares de Sá (UFMT)Sudeste: Maria de Lourdes de A. Fávero (UFRJ) e JoséCarlos de Souza Araújo (UFU)Sul: Maria Thereza Santos Cunha (UDESC) e MarcusLevy Bencosta (UFPR)

SecretariaCentro de Memória da EducaçãoFaculdade de EducaçãoUniversidade de São PauloAv. da Universidade, 308 - Bloco BTerceira Fase - Sala 40CEP 05508-900 São Paulo-SPTel.: (11) 3091-3194.E-mail: [email protected]

Revista Sociedade Brasileira de História daEducação – SBHE

COMERCIALIZAÇÃO

Editora Autores AssociadosAv. Albino J. B. de Oliveira, 901CEP 13084-000 – Barão Geraldo

Campinas (SP)Pabx/Fax: (19) 3289-5930

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Revista Brasileira deHISTÓRIAEDUCAÇÃO

SBHESociedade Brasileira de História da Educação

da

janeiro/junho 2003 no 5

ISSN 1519-5902

Dossiê “O Público e o Privadona Educação Brasileira”

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EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA

Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira

Av. Albino J. B. de Oliveira, 901Barão Geraldo – CEP 13084-000Campinas - SP – Pabx/Fax: (19) 3289-5930e-mail: [email protected]álogo on-line: www.autoresassociados.com.br

Conselho Editorial “Prof. Casemiro dos Reis Filho”Dermeval SavianiGilberta S. de M. JannuzziMaria Aparecida MottaWalter E. Garcia

Diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis

Diretora EditorialGilberta S. de M. Jannuzzi

Coordenadora EditorialÉrica Bombardi

Assistente EditorialAline Marques

RevisãoTaís GasparettiErika G. de F. e SilvaCleide Salme Ferreira

Diagramação e ComposiçãoEdnilson Tristão

Projeto Gráfico e CapaÉrica Bombardi

Impressão e AcabamentoGráfica Paym

Revista Brasileira de História da Educação

ISSN 1519-5902

1º NÚMERO – 2001Editora Autores Associados – Campinas-SP

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SUMÁRIO

EDITORIAL 7

ARTIGOS

Tempo de balanço: a organização do campo educacional e aprodução histórico-educacional brasileira e da região nordeste 9Marta Maria de Araújo

“A educação brasileira e a sua periodização”: vestígio de umaidentidade disciplinar 43Bruno Bontempi Júnior

La educación física argentina en los manuales y textos escolares (1880-1930)Sobre los ejercicios físicos o acerca de cómo configurar cuerpos útiles,productivos, obedientes, dóciles, sanos y racionales 69Pablo Scharagrodsky, Laura Manolakis y Rosana Barroso

Historia de la cultura escrita: ideas para el debate 93Antonio Castillo Gómez

O itinerário de formação de Lourenço Filho por descomparação 125Mirian Jorge Warde

RESENHAS

Luzes e sombras: a ação da maçonaria brasileira (1870-1910) 169Por Fernando Antonio Peres

Coroa de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos deDemerara em 1823 177Por Surya Aaronovich Pombo de Barros

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Destino das letras: história, educação e escrita epistolar 183Por Eliane Marta Teixeira Lopes

DOSSIÊ: O PÚBLICO E O PRIVADO NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA 189

Apresentação 191Libânia Nacif Xavier

A construção da escola pública no Rio de Janeiro imperial 195Tereza Fachada Levy Cardoso

A quem cabe educar? Notas sobre as relações entre a esfera pública e aprivada nos debates educacionais dos anos de 1920-1930 213Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi

Oscilações do público e do privado na história da educação brasileira 233Libânia Nacif Xavier

O público e o privado na educação brasileira: inovações e tendênciasa partir dos anos de 1980 253Alicia Maria Catalano de Bonamino

ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES 277

CONTENTS 279

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Editorial

A Revista Brasileira de História da Educação chega ao seu quintonúmero. Já se pode afirmar que a publicação idealizada pela SociedadeBrasileira de História da Educação, desde seus atos inaugurais, está con-solidada e conta com uma ampla e crescente circulação acadêmica, noBrasil e fora dele.

O Editorial deste número, que comparece à presença da comunidadede leitores e investigadores da história da educação com artigos de “fôle-go” e grande envergadura intelectual, acompanhado do dossiê “O públi-co e o privado na educação brasileira”, enseja, também, um chamado, umaconvocação aos historiadores da educação que atuam no Brasil.

É necessário ocupar este fecundo espaço editorial com uma grandevariedade de contribuições, incessantemente. É fundamental que cadahistoriador da educação sinta-se investido da obrigação de acrescentar àRevista Brasileira de História da Educação (RBHE) os seus pontos devista, seus achados investigativos, suas conclusões e suas polêmicas. Umarevista que se oferece para dar visibilidade a um campo de pesquisa tor-na-se, ato contínuo, um fórum para o diálogo, a convergência e a diver-gência entre pares. A Revista Brasileira de História da Educação deveser assumida como “nosso” espaço dialogal.

Por tudo isso, a Comissão Editorial da RBHE convida seus parespara que façam deste projeto um investimento acadêmico nacional. Emsua abrangência, a revista pode se tornar uma frente avançada, através daqual as investigações de cada um têm a possibilidade de obter, comoresultante desse processo, uma frente de segura respeitabilidade acadêmica.

Comissão Editorial

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Tempo de balançoa organização do campo educacional e a produção

histórico-educacional brasileira e da região nordeste

Marta Maria de Araújo*

Procede-se a uma análise histórica do processo de organização do campo educacional,incluindo a pesquisa, por parte do grupo dos Renovadores da Educação, no período com-preendido entre 1924 e 1964. Mostra-se que a partir dos anos de 1970, com a institucio-nalização do segmento pós-graduação e pesquisa no interior das universidades brasilei-ras, coube à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd),dinamizar uma rede organizativa no campo da pesquisa educacional nacionalmente. Porfim, retoma-se alguns balanços dos estudos da História da Educação realizados em dife-rentes instâncias educativas para, em seguida, apresentar parte de um inventário sobre aprodução histórico-educacional de pesquisadores da região Nordeste, apresentada no GTHistória da Educação dos Encontros de Pesquisa Educacional do Nordeste (EPENs), entre1991 e 2001.ORGANIZAÇÃO DO CAMPO EDUCACIONAL; RENOVADORES DA EDUCAÇÃO;PESQUISA EDUCACIONAL; PRODUÇÃO HISTÓRICO-EDUCACIONAL; GT HISTÓ-RIA DA EDUCAÇÃO DOS ENCONTROS DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NOR-DESTE (EPENs).

It is proceeded by a historical analysis of the organizational process in the educationalfield, including the research, by the Educational Renovators, between 1924 and 1964. It isshown that from 1970 on, with the institutionalization of the post graduation segment andresearch in the Brazilian universities, the Associação Nacional de Pós-Graduação e Pes-quisa em Educação (National Association of Post-Graduation and Research Education) –ANPEd –, had to deal with bringing onward an organizational network in the educationalresearch field nationwide. Finally, some study accounts are taken in the History of Educationdone in different educational instances so as to present part of an inventory about theeducational-historical production of researchers in Northeastern Brazil, afterwards,

* Professora do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Edu-cação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coordenadora da Base dePesquisa de Estudos Histórico-Educacionais, na qual desenvolve atualmente o pro-jeto de pesquisa Modernidade Pedagógica da Educação Escolar nos Governos doImpério e da Primeira República no Rio Grande do Norte, como trabalho de estágiopós-doutoral desenvolvido no Instituto de Estudos Avançados da Universidade deSão Paulo. E-mail: [email protected]

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presented in the teamwork História da Educação dos Encontros de Pesquisa Educacio-nal do Nordeste (EPENs, Education History on Educational Research Meetings inNortheastern Brazil), between 1991 and 2001.EDUCATIONAL FIELD ORGANIZATION; EDUCATION RENOVATORS; EDUCA-TIONAL RESEARCH; EDUCATIONAL-HISTORICAL PRODUCTION; EDUCATIONHISTORY ON EDUCATIONAL RESEARCH MEETINGS IN NORTHEASTERN BRAZILTEAMWORK (EPENs).

As iniciativas dos Renovadores da Educação...

Neste texto são tratados aspectos da formação do campo da educa-ção e da pesquisa educacional no Brasil, que, em grande parte, é obra deintervenções dos Renovadores da Educação, através do Movimento Re-novador que se expandiu nacionalmente. Pretende-se, aqui, caracte-rizar as motivações que presidiram a organização e a reorganização docampo da educação e da pesquisa educacional e refletir sobre as medi-das adotadas nessa direção, seus agentes e prioridades de temas, bemcomo do campo da pesquisa histórico-educacional, dando ênfase à pro-dução dos pesquisadores da região Nordeste, estudo muito pouco exa-minado pela historiografia da educação brasileira.

Durante os anos de 1920, o Brasil, como se sabe, é tomado por ummovimento de novas idéias no plano cultural, econômico, social e edu-cacional. Nesse período, os assuntos educacionais estavam entreguesao então Ministério da Justiça e Negócios Interiores, cabendo aos go-vernos estaduais as iniciativas quanto à organização do ensino primá-rio, normal e secundário.

Em 1924, formou-se, no Rio de Janeiro, a Associação Brasileira deEducação (ABE), congregando um grupo de intelectuais que ficaramconhecidos como Renovadores da Educação. Com o lançamento doManifesto, em 1932, e inspirados no momento cultural vivido pelo país,intitularam-se Pioneiros da Educação Nova, dando origem ao Movi-mento Renovador Educacional.

Por mais de meio século os Renovadores conquistaram e consolida-ram uma hegemonia no campo educacional em âmbito nacional, pelaintensa atividade que desenvolveram como idealizadores e organizadores

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dos sistemas públicos de ensino e da pesquisa educacional, também,como promotores de cursos, palestras, semanas de educação e da difu-são de uma vasta e diferenciada produção educacional através de obraspróprias ou coleções especializadas e, principalmente, como organiza-dores das Conferências Nacionais de Educação. Politizaram, ainda, odebate sobre a escola pública, gratuita, laica e universal.

O processo de organização do campo da educação, por parte dosRenovadores da Educação, tem, nas Conferências de Educação, segun-do Cunha (1981, p. 6), “o momento da consciência da especialidade daeducação, em particular da educação escolar” moderna, que tem, na pe-dagogia escolanovista, o seu principal paradigma. O debate voltado paraa implementação de uma política de organização do campo escolar se-gundo as proposições da pedagogia da Escola Nova, por meio dos espa-ços das conferências de educação, por sua vez, veio acompanhado dapretensão de organização do campo da pesquisa educacional.

Assim, a criação da Universidade do Rio de Janeiro (URJ)1, em 7 desetembro de 1920, pelo Presidente Epitácio da Silva Pessoa, primeirainstituição universitária criada pelo Governo Federal na República,mobilizou os Renovadores da Educação para a discussão intelectual domodelo de universidade a ser adotado no Brasil. Já por ocasião da Pri-meira Conferência Nacional de Educação, realizada em Curitiba, noperíodo de 19 a 23 de dezembro de 1927, o renovador e professor daEscola Politécnica do Rio de Janeiro, Manoel Amoroso Costa, foi oresponsável pela apresentação da tese: “As universidades e a pesquisacientífica”.

Nela, propõe o desenvolvimento da pesquisa científica como umadas funções básicas da universidade pública, devendo, para tanto, as“Faculdades de Ciências das Universidades ter como finalidade, alémdo ensino da ciência feita, a de formar pesquisadores, em todos os ra-mos do conhecimento humano” (Abe apud Fávero, 1998). Pela impor-

1 A Universidade do Rio de Janeiro (URJ) nasceu da aglutinação de três escolassuperiores existentes na época em que o Rio de Janeiro era capital federal: a EscolaPolitécnica, a Faculdade de Medicina e a Faculdade de Direito do Rio de Janeiro(Fávero, 1998).

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tância dessa I Conferência no debate da organização do campo do ensi-no e da pesquisa educacional é que Ferreira (1988, p. 40) a sobrelevacomo sendo “uma das primeiras e mais significativas iniciativas no con-graçamento de esforços para remodelação do ensino no Brasil”. O mo-vimento de modernização educacional levado a efeito pelos Renovadoresda Educação, sinaliza vários indícios de que a organização do campoeducacional, nesse momento, tem, nas prescrições das novas ciências, aprincipal referência no trato das questões educacionais, não somente ao“como ensinar” e “como organizar os conteúdos e procedimentos deensino” mas, sobretudo, ao “como educar”.

Em 1930, após seis anos da atuação dos Renovadores em âmbitonacional, sobretudo na estruturação do campo da educação, foi que oGoverno Provisório instalado com a Revolução de 1930 criava, imedia-tamente, o Ministério da Educação e Saúde Pública (MES), tendo, comoprimeiro titular, Francisco Campos (1930-1932) que implementa o des-locamento de uma política educacional de âmbito local e estadual para aesfera federal.

Essa política oficial de educação contava, primeiramente, com a in-tervenção técnica e política de alguns dos intelectuais já legitimadoscomo Renovadores da Educação. Tal política nacional, estabelecida porFrancisco Campos e continuada por Gustavo Capanema (1934-1945),seu substituto no MES, primando por uma organização de caráter cen-tralizador, arbitrário e distribuída desigualmente, levou a maioria dosRenovadores da Educação, desta vez, a apresentar – ao povo e ao gover-no – uma plataforma para a reconstrução educacional no Brasil, expres-so no célebre Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de março de1932. O Manifesto foi assinado por 26 educadores, entre eles AnísioTeixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Afranio Peixoto, Cecí-lia Meirelles. Lançado em 1932, constituiu-se no principal marco doMovimento Renovador Educacional pela escola pública, gratuita e laicano Brasil republicano.

Apresentada essa plataforma, o redator do Manifesto, Fernando deAzevedo, e seus signatários propugnavam a urgente necessidade demudanças paradigmáticas na educação escolar tendo em vista as novasexigências nacionais, procurando empreendê-la com sentido unitário e

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de bases científica e democrática. Sem dúvida, supunham os Renova-dores uma reorganização do campo educacional “nitidamente de carátercientífico, assentado em corpo de doutrina, numa série fecunda de pesqui-sas e experiências, e nos princípios da educação nova” (Azevedo et al.1984, pp. 416 e 424). Vale lembrar, como faz Marcus Vinicius da Cunha(2000), que a ordem social é, constantemente, percebida como passan-do por variações, ou seja, mudanças, fazendo com que os pensadores daeducação, de tempos em tempos, considerem ultrapassados os modelosvigentes de organização do campo educacional.

Portanto, cinco anos após o lançamento do Manifesto, o MinistroGustavo Capanema criava, em 1937, diante do intenso debate dos Re-novadores sobre o Programa de Reconstrução Educacional, propostono Manifesto, o Instituto Nacional de Pedagogia, instalado no ano se-guinte com a denominação de Instituto Nacional de Estudos Pedagógi-cos, passando, por fim, a partir de 1964, a chamar-se Instituto Nacionalde Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP).

Reconhecendo a importância desse órgão do MES como centro de es-tudos e pesquisas da problemática escolar e educacional, Gustavo Capa-nema autorizava ao seu primeiro diretor, o renovador Manuel BergstrõmLourenço Filho (1938-1952), o lançamento, em 1944, da Revista Brasi-leira de Estudos Pedagógicos, na qual o empenho dos seus primeiroscolaboradores – Anísio Teixeira, Antonio Ferreira de Almeida Júnior,Fernando de Azevedo e o próprio Lourenço Filho – traduziu-se no deba-te sobre a organização da educação nacional, assim ressaltado porCamargo e Vidal (1992, p. 427) como “nada mais claro que os primeirosmovimentos e direções da Revista tenham sido para o predomínio de uma‘educação nacional’ a ser situada no conjunto do plano da cultura”.

Assim sendo, durante a gestão de Lourenço Filho, a revista, respal-dada nos propósitos do INEP, tornou-se um importante canal para divul-gação de estudos que tratavam dos processos de ensino-aprendizagem edos instrumentos de avaliação, alternados com os de desenvolvimentopsicológico da infância e da juventude, ou seja, estudos de naturezapredominantemente psicopedagógico, o que, não por acaso, veio juntocom a campanha de distribuição de livros didáticos e manuais de ensi-no, destinada a “fazer chegar às mãos dos professores guias e manuais

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escritos especialmente para a sua orientação” (Gouveia, 1971, p. 3).Coube, pois, ainda, à revista, projetar as diretrizes escolares e pedagógi-cas para uma organização da educação nacional, cuja tônica consistiana acepção de uma política nacional de educação.

A primazia da pesquisa educacional

Entre 1952 e 1964, durante a gestão de Anísio Teixeira no INEP, aorganização do campo da educação foi substancialmente alargada. Omovimento de modernização do país, conduzido pelos processos de ur-banização, industrialização e abertura democrática fazia com que a re-construção educacional de base científica e democrática, reivindicadadesde o lançamento do Manifesto pelos Renovadores da Educação, de-vesse ser então empreendida com o aval teórico de uma aproximaçãoentre as áreas da educação e das ciências sociais de predominânciaempírica, como uma sistematizada política para se fundar as bases deuma “ciência da educação”. Para tanto, numa direção, a recorrência àpesquisa empírica em ciências sociais deveria estar subordinada, a prin-cípio, aos interesses objetivos da ação escolar. Noutra direção, a pes-quisa educacional deveria ser explorada de maneira que permitisse oaproveitamento regular dos resultados das pesquisas sociais. Com efei-to, ambas possibilitavam o ajuste do sistema educacional “às condiçõesdas exigências do desenvolvimento econômico, social e cultural das di-versas regiões do país” (Plano de organização..., 1956, p. 52).

Com base nessa lógica, que presidiu a reorganização do campo edu-cacional pela convergência entre educação, ciências sociais e mudançasculturais, foi que Anísio Teixeira, como Diretor do INEP, instituiu o Cen-tro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE)2, na capital da Repú-blica, o Rio de Janeiro, e os Centros Regionais de Pesquisas Educacionais

2 O Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e os Centros Regionais dePesquisas Educacionais (CRPE) a ele vinculados foram criados pelo decreton. 38.460, do governo federal, de 28 de dezembro de 1955. A iniciativa de Anísio

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(CRPE), sediados nas capitais dos estados do Rio Grande do Sul, SãoPaulo, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, espécie de “laboratório pe-dagógico”, usando a expressão de Xavier (1999), com o claro objetivode intervir no desenvolvimento regional.

Aliás, uma interpretação do país sublinhava uma preocupação comos aspectos culturais da sociedade local, regional e nacional. Essa inter-pretação ancorava-se numa recomendação da Organização Educativa,Científica e Cultural das Nações Unidas (UNESCO), segundo a qual a so-lução dos problemas brasileiros passaria, efetivamente, pela análise dasreais condições regionais e nacionais do país (Brandão et al. 1996).Dessa perspectiva, vinha a orientação anisiana de que o exame da edu-cação e de seus problemas não mais comportava “posições pessoais deleigos e profissionais” (Discurso de posse do professor Anísio Teixeira,1952, p. 77).

De Fernando de Azevedo, por ocasião da instalação do Centro dePesquisas Educacionais de São Paulo e da sua posse como diretor, em11 de junho de 1956, vinha a observação de que a institucionalização dapesquisa educacional marcava a tentativa “a maior de todas – para pro-mover a transição de uma política empírica de educação para uma polí-tica científica, realista e racional” (Discurso de posse do professor AnísioTeixeira, 1952). E a reorganização do campo educacional com base numapesquisa científica, experimental, deveria, sim, fundamentar-se em “umnovo ângulo em que as idéias e doutrinas, a organização das escolas edos sistemas educacionais, as técnicas pedagógicas e o próprio tipo derelação entre mestres e discípulos [...] não sejam compreendidos e ex-plicados senão em face e à luz das estruturas econômicas, sociais e po-líticas” (Discurso proferido na inauguração..., 1956, p. 8).

Azevedo argumentava que o exame da problemática educacionaldeveria ser feito pela mediação da sociedade “no seu dinamismo profun-do, nas transformações técnicas e econômicas, sociais e culturais, de queresultam, em conseqüência, as mudanças na esfera educacional”, o que

Teixeira contou com o apoio do ministro da Educação e Cultura, professor AbgarRenault (Cf. Teixeira, 1956 e O INEP e os órgãos executores..., 1957).

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indicava a busca de uma compreensão social, ou melhor, sociológica, daeducação, em suas relações com a estrutura social mais ampla que a en-volve e condiciona (Discurso proferido na inauguração..., 1956, p. 10).

Por conseguinte, no Nordeste do país, Gilberto Freyre, na instala-ção do Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife, em 18de novembro de 1958, cujo raio de ação envolvia toda a região Nordes-te, e na sua posse, como diretor desse centro, anunciava e confirmava ameta do desenvolvimento da pesquisa educacional numa íntima asso-ciação – científica – entre as ciências sociais e as educacionais, massegundo o seu critério predileto: “o critério regional de pesquisa ou deestudo mais de campo do que de gabinete”. Nessa empreitada no solonordestino, com o aval hegemônico da antropologia, ao pesquisadorcaberia surpreender a realidade viva,

buscá-la e observá-la nas suas vivências mais cruas. O antropólogo ou soció-

logo de hoje sabe, tanto quanto o pintor impressionista do fim do século pas-

sado, que a realidade varia com a luz, o tempo, com a circunstância, daí

resultando a necessidade de ser o homem, a vida ou a passagem surpreendida

não num lugar só, mas em vários; não de um só ponto de vista, mas de diver-

sos; não como se fosse uma realidade parada definitiva, mas como a realida-

de viva e sempre em transição que em grande parte é [Discurso pronunciado

pelo sociólogo-antropólogo Gilberto Freyre, 1959, p. 109].

Nessa perspectiva freyreana, os objetos de estudos das pesquisaseducacionais devem ser vistos na contextura do local, do regional, dourbano, do rural, em suas composições, decomposições, especificida-des e circularidades nacionais.

Encampando tanto a perspectiva de Fernando de Azevedo quanto ade Gilberto Freyre, e para além de uma e outra, o programa de pesquisaeducacional do INEP, voltado para a reconstrução do campo educacionalsegundo uma convergência entre as ciências sociais e as da educação,foi dinamizado pela ação institucional dos pesquisadores dos Centrosde Pesquisas Educacionais, demarcado pela problemática local e regio-nal contrastada com a dimensão nacional, conjugando iniciativas inter-disciplinares em múltiplas direções, começando pela instalação das

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“Cidades-Laboratório”3, segundo as “condições culturais e escolares,assim como sobre as tendências do desenvolvimento de cada região edo meio social brasileiro como um todo” (O INEP e os orgãos executi-vos..., 1957, p. 147).

Elaboraram-se “diagnósticos, planos, recomendações e sugestõespara a revisão e a reconstrução educacional do país – levando em contaas diferenças regionais – nos níveis primário e médio”. Levaram “a efei-to o preparo de livros-fontes e textos, de material de ensino, de estudosespeciais sobre administração escolar, currículos, psicologia educacional,filosofia da educação, medidas escolares, formação de mestres e reco-mendaram providências outras que concorreram para o aperfeiçoamentodo magistério nacional”. Fizeram, ainda, “treinamento e aperfeiçoamen-to de administradores escolares, orientadores educacionais, especialistasem educação e professores de escolas normais primárias” (As atividadesdo INEP e dos Centros de Pesquisas Educacionais, 1959, p. 32). Por esserol de atividades, sabe-se, todavia, que os centros de pesquisa contribuí-ram, sobremaneira, para o desenvolvimento e o prestígio das disciplinasde sociologia, psicologia, antropologia e economia.

Dentro daquela visão interdisciplinar de Anísio Teixeira, desde quan-do atuou na educação baiana nos anos de 1920 e 1940, tais investiga-ções e intervenções pedagógicas contaram com a consultoria e aparticipação de especialistas em antropologia cultural, sociologia e eco-nomia urbana e rural, lingüística, história e psicologia social, geralmen-te da UNESCO, mas também de universidades americanas, canadenses,francesas e inglesas.

A reconstrução do campo educacional de uma tríplice base – demo-crática, científica e tecnológica – abrangeu uma variedade de estratégias

3 O Projeto Cidades-Laboratório ou Municípios-Laboratório [...] realizou uma sériede “estudos de comunidade” em cidades típicas das diversas regiões do país com oobjetivo de reunir material necessário para a elaboração do Mapa Cultural do Bra-sil e alcançar um conhecimento acurado dos condicionantes socioculturais do pro-cesso educacional. As cidades do Rio de Janeiro (DF), Leopoldina (MG), Cataguases(MG), Timbaúba (PE), Catalão (GO) e Santarém (PA) foram os núcleos de experiên-cias socioeducacionais desse projeto (Ação do INEP e Centros de Pesquisas no quin-quênio 1956-1960, 1961).

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alinhadas e até superpostas dentre as quais a editorial, que incluía a Re-vista Brasileira de Estudos Pedagógicos, a revista Educação e CiênciasSociais do CBPE, os livros-texto, as coleções de livros e os CadernosRegionais, os quais tornaram-se canais de difusão da orientação doutri-nária que se vinha consubstanciando na redefinição do campo e de seusresultados práticos.

A ANPEd na criação de uma rede organizativa dapesquisa educacional

Convém lembrar que as intervenções locais e regionais, objetivandotodo o processo de reorganização do campo educacional, fundavam “no-vos estilos de pensamento” e desaguavam na iniciativa de outras expe-riências de educação e cultura popular visando à conscientização sociale política do povo brasileiro. No entanto, para Mendonça (1997), todauma tradição de pesquisa que se estabeleceu no interior dos centros depesquisas educacionais e que se interrompeu com o fechamento dessescentros não teve continuidade nem foi retomada com a posterior im-plantação dos programas de pós-graduação.

A rigor, as universidades brasileiras, nos anos de 1970, partirampara a institucionalização do segmento da pós-graduação e da pesquisa,articulados à carreira docente – motor da renovação da universidadebrasileira. Na verdade, o deslocamento do modelo anisiano de reorgani-zação do campo educacional não derivou, apenas, das motivações polí-ticas, sociais e econômicas da conjuntura pós-1964. Ele foi determinado,acima de tudo, pelas mutações no paradigma de organização da pesqui-sa, a ser continuada de acordo com a orientação dos programas de pós-graduação em educação, advinda da Comissão de Aperfeiçoamento dePessoal de Nível Superior (CAPES), e dinamizado pela ação de entidadesprofissionais de docentes, especialmente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd).

Assim, para colaborar no intento da reconfiguração do campo edu-cacional, desta feita, respaldada pela pesquisa gerada no segmento pós-graduação, a CAPES apoiava a criação da ANPEd, em 1978, com o objetivo

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de congregar os programas de pós-graduação em educação e os pesqui-sadores a eles vinculados para instaurar, nacionalmente, uma redeorganizativa do campo da pesquisa educacional.

Para tanto, a ANPEd definiu a realização de reuniões anuais comofator programático para implementação dessa rede organizativa de pes-quisa educacional. A sua 4ª Reunião Anual, realizada em Belo Horizonte,em março de 1981, fez do tema central, “Núcleos temáticos em pesqui-sa educacional”, a estratégia posta em prática, como uma possibilidadede aproximação de pesquisadores que trabalhavam com objetos etemáticas afins, fazendo com que, pela divulgação e ampliação da parti-cipação desses pesquisadores em diferentes regiões, a atividade de pes-quisa ganhasse maior destaque científico e social e houvesse um avançodo conhecimento sobre a educação (Calazans, 1995).

Na 5ª Reunião Anual, realizada no período de 10 a 13 de março de1982, na Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro, estavam presen-tes oito GTs, distribuídos pelas denominações Educação do 1º Grau, Edu-cação do 2º Grau, Educação e Linguagem, Educação Rural, EducaçãoPré-Escolar, Educação Popular, Educação Superior e Educação e Traba-lho. Enquanto na 18ª Reunião Anual, realizada entre 17 a 21 de setembro1995, em Caxambu (MG), 13 GTs já estavam em funcionamento, agoracom as denominações de Alfabetização, Leitura e Escrita, Currículo, Edu-cação da Criança de 0 a 6 Anos, Ensino Fundamental, Estado e PolíticaEducacional no Brasil, Filosofia da Educação, Formação de Professores,História da Educação, Metodologia Didática, Movimentos Sociais e Edu-cação, Política de Educação Superior, Sociologia da Educação e Traba-lho e Educação. Foi realizada, entre uma e outra reunião anual, umaavaliação sobre os GTs, apontando para a necessidade de discutir políti-cas ou prioridades de pesquisas em educação, para promover o seu de-senvolvimento, a sua prática social (Calazans, 1995, p. 54).

Todavia, a maneira pela qual cada universidade organizou seu pró-prio segmento pós-graduação em educação pareceu resultar de situa-ções emergenciais bem particulares. De modo geral, no âmbito da ANPEd,tinham-se como notório, em 1986, um “escasso apoio e incentivo à pes-quisa educacional, deficiências estruturais dos cursos de Pós-Gradua-ção, falta de participação da comunidade educacional na definição da

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política de pesquisa”, além de impasses metodológicos nas pesquisasem curso (Calazans, 1995, p. 30). Entre as constatações das agências definanciamento da pesquisa educacional falava-se de “uma relativa distân-cia entre a produção de pesquisas e sua utilização para a implementaçãode mudanças desejadas no sistema de ensino” (Financiamento de publi-cações..., 1981, p. 150).

A pesquisa e a produção histórico-educacional naregião Nordeste

É particularmente no interior dos Programas de Pós-Graduação emEducação, iniciados na década de 1970, na região Nordeste – como osda Universidade Federal da Bahia (1972), da Universidade Federal doCeará e da Paraíba (1977), da Universidade Federal do Rio Grande doNorte e de Pernambuco (1978), com as áreas de Concentração em Ensi-no e Ciências Sociais Aplicadas à Educação (UFBA)4, Ensino (UFCE),Educação de Adultos (UFPB), Tecnologia Educacional e Educação Pré-Escolar (UFRN) e Planejamento Educacional (UFPE) – que a comuni-dade de pesquisadores levantava como um dos problemas prementes,no início dos anos de 1980, a ausência de uma melhor definição dasáreas de concentração, tendo em vista que as demandas socioeducacionaisda região não eram contempladas pelas referidas áreas (Resolução doIV Simpósio de Estudos e Pesquisa em Educação, 1980).

Por parte dessa comunidade de pesquisadores, reunida no Semináriosobre Pesquisa Educacional no Nordeste, a cargo do Conselho Nacionalde Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Superinten-dência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), no período de 17 a 19de novembro de 1980, na cidade de Recife, firmaram-se, ali, como parâ-

4 No Relatório do I Simpósio de Estudos e Pesquisas (1977), realizado pelo Progra-ma de Pós-Graduação em Educação da UFBA, de 17 a 21 de outubro de 1977, emSalvador, consta que a primeira área de concentração desse programa foi Pesquisaem Educação, redefinida em 1974, para Ensino e Recursos Humanos. Diferente-mente do que consta na Resolução do IV Simpósio (1980).

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metros a se perseguir no desenvolvimento da pesquisa educacional, a“existência de uma relação direta entre a pesquisa e a solução de proble-mas da realidade social onde esta se insere [...] e a representatividade per-manente dos temas a serem pesquisados” (Relatório Final..., 1981, p. 142).

E para o conhecimento das atividades de pesquisa educacional noNordeste, especialmente dos Programas de Pós-Graduação em Educa-ção, coube à UFBA, através do seu Centro de Estudos Interdisciplinarespara o Setor Público (ISP), realizar um Levantamento da Pesquisa Educa-cional no Nordeste, no segundo semestre de 1981, patrocinado pelo Con-selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),pela sua coordenação de educação, tendo sido identificados 31 gruposde pesquisas institucionais, 137 projetos em andamento ou programa-dos e 240 pesquisadores, sendo que 7 deles pertenciam a órgãos estaduaise municipais de educação. No tópico pesquisa, o ensino de 1º grau res-pondia por 40,9%, o ensino superior, 33,6%, a educação não formal,21,9%, o ensino de 2º Grau, 16,8%, o ensino pré-escolar, 11,7% e a edu-cação especial, 2,2%.

Quando agrupados os 137 projetos de pesquisa em termos de disci-plinas acadêmicas, Planejamento Educacional incidia com 17,5%,Metodologia de Ensino com 16,5%, Psicologia Educacional, 15,3%,Política Educacional, 13,1%, Currículo, 12,4%, Estrutura e Funciona-mento do Ensino de 1º e 2º Graus, 0,7%, Legislação do Ensino, 0,7% eSupervisão com 0,7%. Considerando que a maioria dos grupos de pes-quisa está situada em universidades federais havia uma certa associaçãoentre ensino e pesquisa universitária (Levantamento da pesquisa..., 1982).

Todavia, verifica-se que, para o quinqüênio 1980-1985, o CNPq,através do Plano Brasileiro de Desenvolvimento Científico e Tecnológico(PBDCT), fixava como temas prioritários para a área de educação eCultura: 1) aqueles relativos ao ensino de 1º e 2º Graus; 2) os que “ca-racterizassem os determinantes econômicos, sociais e políticos que in-fluem sobre o sistema educacional brasileiro”; 3) os referentes “àeducação no meio rural e à educação nas periferias urbanas”; 4) os queindicassem “novas formas de produção e disseminação de inovaçõestecnológicas adequadas à realidade brasileira”; 5) os que “resgatasseme preservassem a memória cultural do país especialmente nas suas

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vinculações com a educação em sentido amplo” (grifo meu); 6) os quetratassem da “difusão educacional e análises do problema do materialdidático”, tendo em vista, “principalmente, a sua adequação àsespecificidades locais e regionais” e 7) os referentes “às vinculaçõesentre Educação e Trabalho, especialmente os que questionassem o cará-ter profissionalizante do ensino de 2º Grau, apontando caminho parapossíveis reformulações na lei n. 5.692 e no sistema como um todo”(Definição de temas..., 1981, p. 153).

Tais prioridades de temas de estudos e pesquisas definidos peloCNPq, pelo PBDCT, direcionavam, por sua vez, uma articulação de pro-jetos de pesquisa em torno dessas temáticas, da mesma forma que se tor-naram indicativos para a constituição dos GTs da ANPEd. Destarte, noâmbito do Levantamento da Pesquisa Educacional no Nordeste, feito pelaUFBA/ISP, nenhum estudo aparece no tópico história da educação.

Entretanto, o balanço dos estudos em história da educação de 1971a 1988, promovido por Warde (1984) e retomado por Barreira (1995)em sua tese de doutorado, com base em dissertações de mestrado e emteses de doutorado aprovadas em programas de pós-graduação na áreade educação5, foi constatado que, das 3.657 dissertações analisadas, ape-nas 279 (cerca de 8% do total) podiam ser classificadas como estudostendencialmente voltados, em sua totalidade, à história da educação brasi-leira, e das 157 teses de doutorado analisadas, apenas 34 (cerca de 22%do total) receberam a mesma classificação. Especialmente em relaçãoao segmento dissertação, a região Sudeste correspondeu a 64% da pro-dução nacional, seguida pelas regiões Sul (24%), Nordeste (8%) e Centro-Oeste (4%). E quanto ao segmento dissertação em história da educação,a região Sudeste correspondeu a 82% da produção nacional, seguidapelas regiões Nordeste (8%), Centro-Oeste (7%) e Sul (3%).

Desses registros, 287 títulos correspondiam às dissertações demestrado concluídas nos Programas de Pós-Graduação em Educação da

5 Barreira (1995) optou por restringir o campo da sua investigação à região Sudestedo país, por ter ela apresentado os maiores índices de concentração de títulos nasmodalidades dissertações e teses. Pretendeu o autor identificar as visões históricasque emergem das escritas recentes da história da educação brasileira.

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região Nordeste, sendo 23 da área de história da educação. A UFBA eraresponsável por 114 títulos aprovados e 4 em história da educação, aUFPB com, respectivamente 62 e 8, a UFC com 52 e 3, a UFRN com 39e 5 e a UFPE com 20 e 3. De qualquer maneira, o resultado de um eoutro levantamento não deixa de mostrar que a produção da história daeducação no Brasil é, portanto, herdeira de uma tradição em que, segun-do Carvalho (1998, p. 330), foi apartado o ensino da pesquisa, dificul-tando “a sua constituição como área de investigação historiográfica capazde se autodelimitar e de definir, com base em sua própria prática disci-plinar, questões, temas e objetos de estudos”. E herdeira, também, deuma outra tradição, marcada pela fator empírico de uma relação diretaentre a pesquisa e a solução de problemas da realidade social na qual seinsere.

Reportando-se ao contexto do I Congresso Luso-Brasileiro de His-tória da Educação, realizado em Lisboa, de 23 a 26 de janeiro de 1996,depara-se com o balanço vindo, por exemplo, de Nunes (1998, pp. 17 e25), a propósito do conjunto de trabalhos apresentados por pesquisado-res brasileiros. Neste, a autora apontava para o fato de que a “produçãohistórica da educação brasileira vai abdicando das sínteses generalizantese abraçando análises específicas. Essas análises têm o mérito de resga-tar o que denominamos de o ‘propriamente pedagógico’”. Todavia, paraa autora, o locus dessa produção é maciçamente proveniente da regiãoSudeste (90 dos 140 trabalhos aprovados), seguindo, em ordem decres-cente, a região Sul, Nordeste, Centro-Oeste e Norte. Assim sendo, com-preendia que era “preciso não perder de vista, portanto, que o quechamamos de História da Educação no Brasil, neste congresso, é, defato, uma produção delimitada regionalmente ao Sudeste e Sul do país”.

Mais adiante, no contexto do II Congresso Luso-Brasileiro, realiza-do em São Paulo, de 16 a 19 de fevereiro de 1998, Alves (1998, p. 201),com base no conjunto dos trabalhos nele apresentados, avalia que aspesquisas de âmbito regional, como contribuição para o enriquecimen-to de matrizes teóricas, fortalecem o quadro da história da educação eda cultura. Lamenta, porém, que as “desigualdades regionais, tão forte-mente estabelecidas no Brasil, não possam ser superadas pela pesquisaque, inegavelmente, as reflete e repete na sua produção”. Por conse-

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guinte, o estado que esteve mais representado nesse encontro foi SãoPaulo, seguido do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Aautora considera que a presença de universidades e instituições de pes-quisa em regiões que detêm maior poder econômico e mais recursospara financiamento de pesquisa é determinante na produção intelectual.

O balanço apresentado por Veiga e Pintassilgo (2000) sobre os tra-balhos do III Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, reali-zado em Coimbra de 23 a 26 de fevereiro de 2000, atesta mudançassignificativas na produção da história da educação no Brasil e em Portu-gal, cujos ritmos têm sido, porventura, mais intenso no seio da comuni-dade brasileira do que no da portuguesa. Constatam, ainda, mudançasna configuração regional e informam que, nesse Congresso, a predomi-nância ainda foi das regiões Sudeste e Sul, mas constataram um cresci-mento no número de pesquisadores da região Nordeste (53), Centro-Oeste(15) e Norte (6), com destaque para a participação do Rio Grande doNorte com uma produção de 33 trabalhos.

Eis, por conseguinte, num outro contexto, o balanço indicativo fei-to por Xavier (2000), com base no conjunto dos trabalhos inscritos noI Congresso Brasileiro de História da Educação, realizado de 6 a 9 denovembro de 2000, no Rio de Janeiro, por iniciativa da Sociedade Bra-sileira de História da Educação, sugerindo a existência de uma produ-ção substancial no campo da história da educação. A predominância doenfoque local e regional sobre o nacional é notória. Nesse sentido, ostrabalhos que incidem nas configurações locais e regionais da educa-ção apontam para alguns espaços privilegiados como a região Sudeste(Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais), a região Sul (Paraná, RioGrande do Sul e Santa Catarina) e também as regiões Norte e Nordeste(Pará, Bahia e Rio Grande do Norte). Diz, ainda, a autora, que a reno-vação fica por conta da ampliação do diálogo interdisciplinar com asciências sociais, com destaque para a antropologia, além do diálogocom os diversos ramos da história, com os estudos literários, e, cadavez mais, com os estudos específicos de determinados temas educacio-nais, como a educação infantil, a didática etc.

Posteriormente aos balanços feitos por Nunes (1998) e Alves (1998),mas anteriormente ao apresentado por Veiga e Pintassilgo (2000), por

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ocasião do XIV Encontro de Pesquisa Educacional do Nordeste (EPEN),em Salvador, no período de 16 a 18 de junho de 1999, na qualidade deexpositora, em outubro de 1999, da mesa-redonda História e Educação:Dilemas e Perspectiva, do Encontro do Grupo de Estudos e PesquisaHistória, Sociedade e Educação no Brasil, GT Paraíba, da UniversidadeFederal da Paraíba, e, por fim, do XV Encontro de Pesquisa Educacio-nal do Norte e Nordeste (EPENN), realizado em São Luís, de 19 a 22 dejunho de 2001, com base em seus Anais, é que me detive a inventariar aprodução historiográfica sobre a educação no Brasil, de pesquisadoresda região Nordeste, apresentada no GT História da Educação dos EPENs,entre 1991 e 20016.

É a partir dessa tradição intelectual (Araújo, 2001), especificamentedo GT História da Educação, que venho reconstituindo a periodização,as fontes, as temáticas abrangentes e os referenciais que têm sido privi-legiados pelos pesquisadores da história da educação da região. Para arealização desse intento, considerou-se o espaço do objeto investigado.Para uma adequada compreensão da evolução geral da investigação his-tórica da educação na região Nordeste dos anos de 1991 a 2001, foipreciso considerar a criação dos GTs no interior do EPEN.

Se os primeiros GTs da ANPEd começaram a funcionar no ano de1982 e o de História da Educação foi instalado durante a VII ReuniãoAnual, realizada na Universidade de Brasília de 23 a 25 de maio de1984, os GTs do EPEN somente surgem após 11 anos da sua existênciainstitucional, ou seja, em 1991, no X EPEN realizado na UniversidadeFederal do Ceará, em Fortaleza, de 11 a 13 de dezembro desse ano. Atemática escolhida “A educação, ciência e tecnologia: Nordeste na tra-jetória da política nacional de educação” desdobrou-se, por sua vez, naconstituição de Grupos de Trabalho (GTs), aqui denominados “grupostemáticos” pretendendo-se tornar uma “contribuição relevante para acompreensão das tendências atuais da pesquisa educacional no Nordes-te, em particular da produção docente e discente realizada nos cursos de

6 Data o I EPEN de 1980. De 1980 até 1991 os encontros eram anuais. A partir de1991 passaram a ser bianuais (Cf. Araújo e Paiva, 1999 e Araújo, 2001).

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mestrado em educação e demais programas de pós-graduação e pes-quisa da região” (X Encontro de Pesquisa Educacional do Nordeste,1991, p. 1).

Ante a compreensão das tendências da pesquisa educacional no Nor-deste, foram criados 12 grupos temáticos para o X EPEN de Fortalezacategorizados pela ordem como: O Ensino de 1º, 2º e 3º Graus (13),Educação e Movimentos Sociais (13), Educação de Crianças de 0 a 6anos/Alfabetização (10), Educação Popular/Educação de Adultos (14),Trabalho e Educação (8), Metodologia Didática/Práticas Pedagógicas(9), História da Educação (5), Estado e Política Educacional no Brasil(13), Licenciatura/Formação do Educador (9), Currículo (8), EducaçãoEspecial (1) e Novas Temáticas (7), categorização mais ou menoscorrelata à dos GTs da ANPEd e à dos temas fixados pelo CNPq/PBDCTpara a área de educação.

Considerando o conjunto dos 12 grupos temáticos que formavam oX EPEN de Fortaleza e os 110 trabalhos aprovados, o GT História daEducação ficava em décimo segundo lugar com cinco títulos – em segui-da tem-se apenas Educação Especial, com um título –, dos quais quatroeram provenientes de pesquisadores da UFBA (80%) e um da UFPI(20%) e há evidências de que, pela trilha dos objetos de estudo, essestrabalhos ajudam a descortinar esse momento da organização do campoda pesquisa histórico-educacional. Entre esses cinco títulos, três delestinham como objeto de estudo o levantamento de fontes em acervospúblicos e privados, tendo em vista a elaboração de guias de fontes do-cumentais e fotográficas para subsidiar os estudos sobre a educação naBahia, sendo um deles mais voltado para a constatação de fontes escri-tas que pudessem “contar” as origens e evolução da escola no Piauí.

Os três últimos trabalhos acima citados, pelo recurso à pesquisa do-cumental e historiográfica, tratavam de estudar a história de uma insti-tuição escolar religiosa feminina em Salvador, de 1945 a 1955, e a práxispedagógica dos jesuítas na Bahia, no período colonial de 1500 a 1700.Todavia, nota-se que, ainda pela ausência de uma maior visibilidade domovimento de reconfiguração do campo da pesquisa histórico-educa-cional, no conjunto dos sete trabalhos reunidos no GT Temática Diver-sas, três deles tratavam da festa, do conto popular e do resgate da memória

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de Canudos, que podiam, sim, se situar, inevitavelmente, no GT Histó-ria da Educação.

O XI EPEN, ocorrido em Recife, de 9 a 12 de julho de 1993, durante a45ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência(SBPC), integrava-se às suas atividades e associava-se à sua temática, como título: “Ciência e qualidade de vida: contribuição da pesquisa educacio-nal”, na congregação de esforços para a melhoria da qualidade de vidaregional e nacional (XI Encontro de Pesquisa do Nordeste, 1993). EsseEPEN inaugura a bianualidade como periodicidade para esses encontros.

Dentre os 169 trabalhos apresentados nos 17 Grupos de Trabalho –Política Educacional (13), História de Educação (13), Currículo (11),Prática Pedagógica (12), Educação e Linguagem (11), Educação e Mo-vimentos Sociais (11), Prática e Formação do Educador (14), EducaçãoMatemática (8), Gestão da Educação (10), Avaliação de Políticas e Pro-gramas Educacionais (9), Universidade e Ensino Superior (6), Educa-ção e Trabalho (11), Arte/Cultura/Comunicação/Educação (9), EducaçãoInfantil/Alfabetização (10), Educação Popular/Educação de Jovens eAdultos (9), Questões Teóricas da Educação (6) e Temáticas Diversas(6)7 – percebe-se uma inscrição de trabalhos equilibrada entre GTs, di-ferenciando-se os GTs Universidade e Ensino Superior, Questões Teóri-cas da Educação e Temáticas Diversas, com um número reduzido, deseis em cada um.

Considerando os 17 Grupos de Trabalho que fizeram parte do XIEPEN/Recife e os 169 trabalhos aprovados, o GT História da Educaçãoficava em primeiro lugar, ao lado de Política Educacional, com 13 títulos,e eram provenientes de pesquisadores da UFBA 5 (38,4%); UFPE 3(23,1% ); UFMA 3 (23,1%); UFRN 1 (7,7%) e UFPB/UFMG 1 (7,7%).Desse conjunto, oito deles mantinham, ainda, como objeto de estudo, olevantamento de fontes como problema teórico-metodológico, bem comoa confecção de guias de fontes documentais, incluindo cartas, fotografias,literatura, fundamentando o exercício da reflexão histórica e metodoló-

7 O GT Temáticas Diversas concentrou trabalhos relativos a recursos computacionaisem pesquisa social, feira de ciências, à imagem da política entre estudantessecundaristas e educação ambiental.

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gica sobre os objetos educacionais nos espaços locais, regionais e nacio-nais. Os cinco títulos restantes circunscreviam-se em espaços específicosem Pernambuco, Bahia e Maranhão, tratando de descortinar a relaçãoentre o poder local e/ou nacional, a política educativa e os atores envolvi-dos, nos períodos da Colônia, do Império, da Primeira República e doEstado Novo, e cujos recortes temporais, sobremaneira diversificados,atendiam à dinâmica do próprio objeto educacional.

Relacionando o objeto fonte à preocupação com a temporalidade ea indispensabilidade do documento no feitio da pesquisa histórica, comoadverte José Murilo de Carvalho (1999, p. 454), nesse momento sobres-saía-se uma tremenda preocupação com a identificação de fontes especí-ficas e gerais, no sentido de “guiar o investigador quanto à sua utilização,mas também de armazenar e organizar acervos” (Nunes, 1998, p. 20),ao mesmo tempo em que se reconfigurava a história da educação comocampo de pesquisa, “pondo em questão o seu caráter de saber subsidiá-rio de outras pesquisas sobre educação” (Carvalho, 1997, p. 9).

No XII EPEN, ocorrido em Teresina, no período de 6 a 8 de julho de1995, 207 trabalhos foram aprovados para as sessões de comunicaçõesnos 14 GTs, sendo eles: Formação de Professores (36), História da Edu-cação (19), Currículo (16), Ensino Fundamental (16), Trabalho e Edu-cação (15), Alfabetização, Leitura e Escrita (15), Movimentos Sociais eEducação (13), Temáticas Diversas (13)8, Estado e Política Educacionalno Brasil (12), Sociologia da Educação (11), Educação Popular (12),Metodologia Didática (9), Educação de Criança de 0 a 6 anos (7) e Po-lítica de Ensino Superior (6) (XII Encontro de Pesquisa do Nordeste,1995). O GT História da Educação com 19 títulos foi o segundo emnúmero de trabalhos apresentados, ultrapassado, apenas, pelo GT For-mação de Professores.

Nesse XII EPEN, a produção no campo da história da educação, qua-se toda ligada aos Programas de Pós-Graduação das Universidades Fede-rais, está distribuída entre a UFPI 7 (36,9%); UFRN 4 (21,1%); UFPB 3

8 O GT Temáticas Diversas concentrou trabalhos de Educação Especial, Educação eComunicação, Filosofia da Educação, Educação Ambiental, Novas Tecnologias eQualidade de Vida, Informática e Educação.

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(15,8%); UFBA 2 (10,6%); UFMA 1 (5,2% ); UFSE 1 (5,2%) e UFC 1(5,2%). Os temas sobre os quais incidiram os estudos historiográfico-educacionais no caso desse XII EPEN, estão relacionados, particularmente,à história da educação escolar e do ensino, da prática docente, das insti-tuições e de atores educacionais. No entanto, 3 trabalhos situam-se nomarco da referência política; 2 circunscrevem-se ao período colonial,destacando-se um deles pela utilização da fotografia como fonte docu-mental, e o outro, ao período da Nova República.

Constata-se, entretanto, que, na produção apresentada neste EPEN deTeresina, atribui-se uma certa primazia à utilização de fontes secundá-rias advindas da historiografia em geral, da educacional em particular, eoriundas de outras áreas do conhecimento, privilegiando-se análisescontextuais gerais, onde se observa, por um lado, que contexto e objetode estudos são geralmente tratados de forma desarticulada, sem umaorganicidade entre um e outro, e por outro, até como decorrência desseprocedimento, que uma parte desses estudos não decorre de um efetivoesforço em historicizar a educação como objeto de interpretação. Pode-se dizer que tais estudos resultam de preferências manifestas de disser-tações e teses em que a função da história da educação erapredominantemente subsidiária e, como contrapartida, dedicava-se poucaatenção às tendências teórico-metodológicas em ascensão.

No XIII EPEN, ocorrido em Natal, de 17 a 20 de junho de 1997, 337trabalhos foram aprovados para as sessões de comunicação nos 19 GTsque integravam esse EPEN, a saber: Formação de Professores (54), Esta-do e Política Educacional no Brasil (33), História da Educação (24),Currículo (24), Trabalho e Educação (23), Educação Popular (21), Edu-cação Fundamental (21), Movimentos Sociais e Educação (17), Filoso-fia da Educação (17), Educação e Representações Sociais (17), Didática(13), Alfabetização, Leitura e Escrita (13), Educação e Comunicação(12), Educação Matemática (12), Projeto Nordeste (12), Sociologia daEducação (9), Educação Especial (7), Educação da Criança de 0 a 6anos (4) e Política de Educação Superior (4). O GT História da Educa-ção com 24 títulos foi o segundo em número de trabalhos apresentadosjuntamente com o GT Currículo, superados pelos GTs Formação de Pro-fessores (54) e Estado e Política Educacional no Brasil (33).

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O conjunto da produção do GT História da Educação ficou distri-buído em 12 trabalhos pela UFRN (50%); 2 pela UFSE (8,3%); 2 pelaUFBA (8,3%); 2 pela UFPE (8,3%); 2 pela UNIPÊ (8,3%); 1 pela UFPB(4,2% ); 1 pela UFC (4,2%); 1 pela UFMA (4,2%) e a Secretária munici-pal de Educação de Aracaju com 1 (4,2%). No EPEN em Natal, de acor-do com os recortes estabelecidos, identificou-se uma opção, ainda quepequena, por momentos específicos do século XIX, ao lado de um certopredomínio dos anos de 1940 a 1960, período que engloba o pós-guerrae antecede o golpe de estado de 1964. Incidiam os estudos sobre a histó-ria das práticas de leitura femininas, de instituições e atores educacio-nais, das idéias pedagógicas, da imprensa feminina, do livro escolar, daescrita da história da educação, das trajetórias de pesquisa e do fatorétnico-racial na educação escolar. Com uma predominância consagradaà análise da externalidade dos processos educativos, nesse EPEN há in-dícios, porém, que possibilitam deduzir uma maneira de se olhar commais atenção para a internalidade do trabalho escolar, como recomen-da Nóvoa (1999, p. 13), incluindo os processos culturais e intelectuais.A relativização do Estado brasileiro como principal agente educacionalfoi flagrante.

No XIV EPEN, realizado em Salvador, de 16 a 18 de junho de 1999,435 trabalhos foram apresentados nos 19 GTs já consolidados: Forma-ção de Professores (69), Estado e Política Educacional no Brasil (43),História da Educação (37), Trabalho e Educação (35), Currículo (32),Educação Matemática (27), Movimentos Socais e Educação (22), Filo-sofia da Educação (22), Educação e Comunicação (20), Alfabetização,Leitura e Escrita (19), Educação Fundamental (19), Educação Popular(15), Didática (14), Política e Educação Superior (14), Psicologia daEducação (14), Educação da Criança de 0 a 6 anos (10), Alfabetizaçãode Pessoas Jovens e Adultas (9), Sociologia da Educação (7) e Educa-ção Especial (7). O GT História da Educação foi o terceiro com 37 títu-los, ultrapassado, mais uma vez, pelo GT Formação de Professores (69)e o GT Estado e Política Educacional (43) (XIV Encontro de Pesquisado Nordeste, 1999). Os que mais se aproximaram do GT História daEducação em número de trabalhos inscritos foram o GT Trabalho e Edu-cação (35) e GT Currículo (32).

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No plano institucional, no âmbito do GT História da Educação com37 títulos, a UFRN responde por 19 trabalhos (51,4%); a UFC por 5(13,5%); a UFPE por 4 (10,8 %); a UFSE por 2 (5,4%); Universidade Es-tadual do Sudoeste da Bahia (UESB) por 2 (5,4 %); a UFBA por 1 (2,7%);a UFPB por 1 (2,7%); a UFMA por 1 (2,7 %), e, saindo do âmbito regio-nal, a Universidade Federal de Uberlândia por 2 (5,4%). Nesse EPEN, emSalvador, houve uma diversidade de momentos históricos estudados,quando agrupados os trabalhos por recortes temporais. Tentando, pois, darordem à diversidade, foi constatada uma primeira opção pelo período quecomeça em torno de 1880 e prossegue até 1930, uma segunda, seguidapelos anos de 1930 a 1960 e uma terceira, cujos objetos de estudo situam-se nos anos de 1990. É importante destacar a apresentação de quatro tra-balhos cujos objetos de estudo levaram seus pesquisadores a um passadodistante localizado nos séculos XVI, XVII e XVIII, incluindo o antigoregime colonial.

De certa forma, há uma tendência de se pesquisar a educação noséculo XX, já que ele proporciona ao historiador da educação maiorquantidade e variedade de fontes, a exemplo da charge e da imprensapedagógica. No entanto, os estudos que tratam da produção e da trajetó-ria de educadores e intelectuais foi a grande tônica desse XIV EPEN. Sãoeducadores, escritores e pensadores clássicos e de vanguarda redesco-bertos pela pesquisa histórico-educacional. São educadores como o pa-dre Joaquim D’Azeredo; é a obra do jesuíta italiano Jorge Benci, publi-cada em 1700: A economia cristã dos senhores no governo dos escravos;são as indicações pedagógicas de John Locke e Jean Jacques Rousseau;é a produção literária e pedagógica de intelectuais norte-rio-grandensescomo Zila Mamede, Newton Navarro e Miriam Coeli; é a produçãointelectual de Manuel Bonfim e Caio Prado Júnior; são as diferentesformas de intervenção de educadores e intelectuais na criação de entida-des culturais e educativas e em congressos pedagógicos; as iniciativasde políticos e intelectuais que se associaram no desenvolvimento doprograma liberal da modernidade educacional; é a memória de forma-ção de professores pela ação de instituições educacionais, para citar al-guns exemplos. A premissa geral, trazida por Falcon (1996), de que oshistoriadores produzem um conhecimento e o fazem por um discurso

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próprio cujo objeto se situa na realidade histórica (passada) e a específi-ca, exposta por Reis (1998), de que o vivido humano, individual e cole-tivamente, se dá ao conhecimento, são aqui contempladas por distintaslinguagens historiográficas e – num esforço de renovação – se situamem áreas de fronteira que se traduzem pela não exclusividade da histó-ria da educação.

No XV Encontro de Pesquisa Educacional do Nordeste, realizadoem São Luís, de 19 a 22 de junho de 2001, dentro do que já é caracteri-zado como uma tradição intelectual – como antes realçado por seus 21anos de uma trajetória sinuosa e dessa vez incluindo também a regiãoNorte – estão inscritos os apuros e os esforços acadêmicos da produçãoda pesquisa educacional na região Nordeste. Em conseqüência, a temáticade XV EPENN “Educação, desenvolvimento humano e cidadania” teve anotável intenção política de pôr em “destaque o caráter excludente dodesenvolvimento econômico e das políticas públicas para a maioria dapopulação situada geograficamente nas regiões nordeste e norte do Bra-sil” (XV Encontro de Pesquisa do Nordeste, 2001, p. 14).

Certamente, por causa desse caráter excludente e contra ele, houve, nocenário do XV EPENN, 46 pôsteres expostos, 24 painéis/debates, 21 mini-cursos realizados e 697 trabalhos apresentados nos 21 GTs: Formação deProfessores (125), Trabalho e Educação (62), História da Educação (52),Estado e Política Educacional no Brasil (49), Currículo (49), EducaçãoMatemática (48), Movimentos Sociais e Educação (43), Filosofia daEducação (35), Ensino Fundamental (31), Educação e Comunicação (26),Educação Especial (21), Educação de Pessoas Jovens e Adultas (21),Psicologia da Educação (20), Política de Educação Superior (19), Didá-tica (17), Educação Popular (16), Alfabetização, Leitura e Escrita (15),Educação de Criança de 0 a 6 Anos (14), Sociologia da Educação (13),Educação e Diversidade Cultural (11) e Novas Tecnologias e Educação(10) (XV Encontro de Pesquisa do Nordeste, 2001).

Um aspecto previsível e notável é o crescimento do GT História daEducação, que vem disputando um segundo lugar entre os GTs, maisespecificamente com o GT Estado e Política Educacional no Brasil que,neste XV EPENN, de São Luís, ficou em quarto lugar, juntamente com o GTCurrículo (49), depois do GT História da Educação, que contribuiu com

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52 trabalhos inscritos e apresentados. O GT Formação de Professores nãosomente tem mantido uma constância entre os primeiros mas também ocrescimento vertiginoso de trabalhos inscritos nos fórum do EPEN.

Analisando-se o conjunto das instituições de ensino superior queparticiparam do XV EPENN, constata-se a predominância de trabalhos daUFRN com 21 (40,4%); seguida da UFC com 11 (21,3%); da UFPE com5 (9,6); da UFMA com 4 (7,7% ); da UFPB com 4 (7,7%); da UFBA com1 (1,9%); da UFSE com 1 (1,9%); da UFAM com 1 (1,9%); da UFPI com1 (1,9%); da UECE com 1 (1,9%); da UEPA/UNAMA com 1 (1,9%) e daUNICAMP com 1 (1,9%). A rigor, verifica-se a inconstância e o declínio emnúmero de trabalhos inscritos nos EPENs, como é o caso da UFBA. Toda-via, tal instituição, como já se registrou, foi quem saiu à frente na largadados estudos histórico-educacionais na região, com o levantamento defontes em acervos públicos e privados para subsidiar os estudos sobre aeducação na Bahia. Resultou dessa iniciativa a constituição do primeirogrupo organizado em torno do levantamento de fontes variadas no interiorde uma instituição universitária, ainda em 19839.

Houve, no XV EPENN de São Luís, uma razoável mobilidade no quese refere ao predomínio de fontes, temáticas, orientações teóricas emetodológicas. Por tudo isso, a periodização continua perseguindo maiso objeto estudado do que as clivagens da história política brasileira,mesmo assim, permite visualizar uma ampla preferência pela fase repu-blicana, desde a instalação do regime até os anos 2000. O período colo-nial foi quase o grande ausente.

É pouco notável a ampliação das fontes utilizadas nas pesquisas.Fontes tradicionais como coleção de leis do império, circulares, parece-res, jornais, anais, relatórios de diretores da Instrução Pública, mensa-gens governamentais, obras de época e entrevistas ainda são muitoutilizadas, embora algumas tendências recentes já revelem o recurso aoutras fontes. Este é o caso da revista, literatura, charge, fotografias,livros escolares e romances que se tornam objetos de estudo. Outrasfontes, ainda, como programas de disciplinas, textos teatrais, obras clás-

9 Essa informação me foi passada durante o EPENN de São Luís, pelo professor LuizFelippe Perret Serpa, da UFBA, na época coordenador do referido grupo.

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sicas, músicas, orações e memória subterrânea, conquistam, aos pou-cos, seu espaço nesse universo, atentando-se, mais ou menos, para arelação entre texto, contexto e subtexto, como bem insiste Nagle (1984).

Em linhas gerais, a produção historiográfica educacional caracteri-za-se por uma multiplicidade de temas e enfoques. Uma tendência se-guramente consolidada e crescente são os estudos de gênero. Os aspectosmais variados são abordados, como a feminização do magistério; ima-ginário feminino; educação feminina sexual e física; mídia e mulher eimprensa e mulher. Nesse sentido, conjuntos temáticos correlacionadostendem a ser valorizados, como família, política, romances regionais eações missionárias para meninas em “casas de caridade”.

Alguns temas permanecem em evidência, a exemplo da política deformação de professores no Brasil imperial, do currículo de formaçãode professores nos primeiros anos do século XX, do pensamento educa-cional, do programa de qualificações profissionais para professores pri-mários atuais, da institucionalização da escola republicana nos estadosde Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Sergipe e Maranhão, dapolítica educacional brasileira dos anos de 1920 a 1960 e, por fim, daspráticas educativas da Igreja católica no Nordeste.

Outros conjuntos temáticos em evidência são os estudos que abor-dam o teatro, a festa, a escola de arte infantil, a literatura infantil, con-gressos, organizações comunitárias, partidos políticos e educaçãopermanente. Correlacionados a esse conjunto, alguns trabalhos proble-matizam a educação japonesa pós-Segunda Guerra e, em termos com-parativos, a configuração nacional do sistema educacional alemãoe brasileiro nos anos de 1920.

O que se pode dizer desse considerável aumento da produçãohistoriográfica educacional, segundo os trabalhos inscritos no fórumdesse EPEN? Trata-se de um crescimento do campo impulsionado, so-bretudo, pela criação de cursos de doutorado na região, pois, exceto aUFBA, a produção predominante vem das duas instituições de ensinosuperior com doutorado: UFRN e UFC.

De maneira geral, se já é possível afirmar a existência de uma buscapor fontes diversas, multiplicidade de temas e enfoques, certo rigor teó-rico-metodológico, objetos específicos e diálogos interdisciplinares com

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a historiografia, já não muitos discretos, para tratarem do fenômenoeducacional em situações locais, regionais e nacionais, com suas pro-blemáticas próprias e necessidades de melhor compreender as “tradu-ções dos processos de modernização nacional e a regionalização dessamodernidade” (Bastos, 1999, p. 183), todavia falta-nos identificar osmomentos de conflito e ruptura dos processos educativos analisados.Apesar disso, parece oportuno perguntar-se em que medida a reorgani-zação do campo disciplinar da história da educação, como campo deinvestigação histórica, tendo em vista o deslocamento da predominân-cia da análise sociológica, é produto da constituição de redes organi-zativas de pesquisa e de pesquisadores, representadas por instituições egrupos de pesquisa.

Foi, sem dúvida, a instalação do Grupo de Trabalho em História daEducação da ANPEd, durante a VII Reunião Anual, realizada na Univer-sidade de Brasília, de 23 a 25 de maio de 1984, que veio a se constituirnum “importante fórum de debates, orientado tanto pelo imperativo deconciliar uma postura de incentivo à inovação teórica, temática emetodológica, no campo da história da educação, quanto por um esfor-ço de construção coletiva de referências críticas que permitam fazeravançar a reflexão sobre o conhecimento produzido e sobre a própriaprática da pesquisa que o produz” (Carvalho e Nunes, 1993, p. 35),grupo esse aqui tomado como “ponto de partida para a formação de umacomunidade de pesquisadores dotada de recursos para socializar conhe-cimentos e canais próprios para promover trocas profícuas entre seusmembros” (Xavier, 2000, p. 13).

Mas foi, acima de tudo, com a formação, em 1983, na UFBA, doGrupo de História da Educação, voltado para a “Elaboração de guia defontes documentais para a história da educação na Bahia”, que se torna-ram perceptíveis os produtos de suas pesquisas nos espaços dos EPENsde Recife e Fortaleza, por exemplo, determinando, a partir dessa práticaempírica de pesquisar, a recorrência a fontes primárias e num segundoplano, as secundárias e o diálogo com a historiografia, na reconstituiçãoda história da educação baiana e brasileira.

Por conseguinte, foi com a constituição, em 1986, e a formalização,em 1991, do Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Edu-

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cação no Brasil (HISTEDBR), sediado na Faculdade de Educação daUNICAMP, coordenado pelo professor Dermeval Saviani, dessa institui-ção, e organizado na forma de GTs estaduais no interior de 29 institui-ções de ensino superior em todo Brasil, que se intercambiou entrepesquisadores dessas instituições, por meio do Projeto Levantamento eCatalogação das Fontes Primárias e Secundárias da Educação Brasilei-ra, um conhecimento das fontes disponíveis, “daí partindo para estudosde caráter temático de acordo com as perspectivas teóricas entendidas, àluz das informações a que tinham acesso, como as mais adequadas àanálise dos temas definidos como objetos de investigação” (Saviani,1998, pp.14 e 15), segundo a confluência entre os estudos da história eos da história da educação.

A formação de uma comunidade de pesquisadores em história daeducação em instituições de ensino superior na região, institucionalizandoredes organizativas de pesquisa e entre pesquisadores, é motivada, ain-da, pelas bases de pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande doNorte, sendo elas “Gênero e práticas culturais: abordagens históricas,educativas e literárias”; “Educação história e práticas culturais”; “Estu-dos histórico-educacionais” e “Cultura, política e educação”, fomenta-doras, por sua vez, de linhas e projetos de pesquisa no interior dosProgramas de Pós-Graduação em Educação e Ciências Sociais.

Este texto – ao reconstituir, parcialmente, o percurso da organiza-ção do campo Educacional no Brasil – buscou pôr em cena o modocomo o passado educacional foi historicamente produzido até os nossosdias e dar evidência ao campo disciplinar da pesquisa em história daeducação. Como assinala o historiador Braudel (1992, p. 335): “tam-bém no presente [cada um de nós], poderá, a seu gosto, se tiver vontade,sonhar com o que poderia ter sido, refazer a história de seu própriotempo para melhor compreendê-la”. E, em alguma medida, ampliá-la.

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Este artigo reúne informações e análises a respeito de “A educação brasileira e a suaperiodização”, documento de grande relevância para a historiografia da educação brasi-leira. Por conter uma proposta original de periodização da história da educação no Brasil,o texto de autoria de Laerte Ramos de Carvalho, aqui analisado, condensa as diretrizespor ele impressas ao ensino e à pesquisa na cadeira de História e Filosofia da Educação daFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo ao longos dosanos de 1950 e 1960. Agregaram-se à análise informações sobre o contexto em que o docu-mento foi produzido e apresentado.HISTORIOGRAFIA; PERIODIZAÇÃO; HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO;LAERTE RAMOS DE CARVALHO; UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO.

This paper gathers information and analyses on “The brazilian education and the periodsit can be divided in”, a document of great relevance for the historiography of the brazilianeducation. As it contains an original proposal for assigning the periods of the history ofeducation in Brazil, the text written by Laerte Ramos de Carvalho condenses the guidelineshe asserts to the teaching and research of History and Philosophy of Education in theCollege of Philosophy, Sciences and Literature of the University of São Paulo in the1950’s and 60’s. The analysis also includes information about the context when the firstedition of the document was produced and released.HISTORIOGRAPHY; PERIOD DIVISION; HISTORY AND PHILOSOPHY OFEDUCATION; LAERTE RAMOS DE CARVALHO; UNIVERSITY OF SÃO PAULO.

* Bruno Bontempi Júnior é doutor em educação pela Pontifícia Universidade Católica deSão Paulo. Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História,Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (EHPS-PUC/SP). Participa dos seguintes grupos de pesquisa: Americanismo e educação: a fabrica-ção do homem novo (líder Mirian Jorge Warde); História das disciplinas escolares e dolivro didático (líder Kazumi Munakata). E-mail: [email protected] e [email protected]

“A educação brasileira e a suaperiodização”

vestígio de uma identidade disciplinar

Bruno Bontempi Júnior*

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Em recente número da Revista Brasileira de História da Educação(n. 2, julho/dezembro de 2001) foi publicado um texto de autoria deLaerte Ramos de Carvalho, “A educação brasileira e a sua periodização”.Certamente, e não obstante os méritos instrínsecos à obra, creio que apublicação encontra sua mais forte justificativa na necessidade de di-vulgar um documento de grande relevância para a historiografia da edu-cação brasileira, cuja existência era sabida pelos poucos que tiveramacesso à restrita edição mimeografada de 1971 e aos Anais do EncontroInternacional de Estudos Brasileiros, de 1972. Aproveitando a oportu-nidade oferecida por sua publicação, este artigo dispõe-se a sublinhar aimportância do documento e a comentar o modelo de periodização neleproposto, agregando à análise informações sobre o contexto e o propó-sito de sua primeira impressão1. Por fim, neste artigo, fornecem-se ele-mentos para compreender o texto em tela como um produto das diretrizesque o então diretor da Faculdade de Educação da Universidade de SãoPaulo (1969-1972) e antigo regente da cadeira de História e Filosofia daEducação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidadede São Paulo (1955-1968) imprimiu ao ensino e à pesquisa em históriada educação.

Da natureza e origem do documento

O texto “A educação brasileira e a sua periodização” abre a obraIntrodução ao estudo da história da educação brasileira, volume queintegra os quatro estudos do Grupo de Trabalho História da EducaçãoBrasileira, coordenado por Ramos de Carvalho e reunido por ocasião doEncontro Internacional de Estudos Brasileiros e I Seminário Internacio-nal de Estudos Brasileiros, realizado entre 13 e 25 de setembro de 1971no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB).

1 Para não fugir ao escopo deste artigo, não serão comentadas as considerações refe-rentes à história da educação nos primórdios do período colonial, que perfazem asegunda parte do capítulo escrito por Ramos de Carvalho.

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De acordo com o coordenador geral do IEB, José Aderaldo Castello,na fala solene de abertura, o evento visava possibilitar um levantamentoda situação passada, presente e futura dos estudos brasileiros na área dehumanidades, no Brasil e no estrangeiro, congruentemente aos objeti-vos originais do instituto, definidos por seu mentor Sérgio Buarque deHolanda:

[...] incentivar a pesquisa isolada ou de grupo, específica ou integrada, dentro

do complexo da cultura e da civilização do Brasil, no passado e no presente: na

Geografia, na História Social, Política, Econômica, na Antropologia, na Lite-

ratura e na Arquitetura, enquanto se projeta a sua ampliação em conjunto com

outras áreas de interesse, como as Artes Plásticas e a Música, as Idéias, a His-

tória da Educação e a Sociologia [Universidade de São Paulo, 1972b, p. 139]2.

A importância do evento organizado pelo IEB revela-se primeira-mente nos nomes dos participantes, dentre os quais se destacam oscoordenadores dos grupos de trabalho Sérgio Buarque de Holanda,Alice Piffer Canabrava e Nícia Villela Luz (História); Dirceu Lino deMatos e Nice Lecocq Müller (Geografia); Maria Isaura P. de Queiroz(Sociologia); Egon Schaden e João Baptista Borges Pereira (Antropo-logia); João Cruz Costa (Pensamento Brasileiro); José AderaldoCastello (Literatura Brasileira); Eduardo Kneese de Mello (História daArquitetura) e Laerte Ramos de Carvalho (História da Educação).Quanto aos estrangeiros presentes no evento, no relatório publicado naRevista do Instituto de Estudos Brasileiros (Universidade de São Pau-lo, 1972b, pp. 149-153) destacam-se alguns dos notáveis mestres daantiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de

2 Criado pela Universidade de São Paulo em 1962, o IEB anunciava como principaisobjetivos: “1. propiciar o desenvolvimento de trabalhos conjuntos de professores epesquisadores que, espalhados por várias unidades da USP, estudavam, cada umem sua área, aspectos da cultura brasileira; 2. Abrigar estudiosos que desenvolves-sem pesquisas permanentes e de longa duração; 3. Também preenchendo uma la-cuna na Universidade, esse centro interdisciplinar deveria ser capaz de colher,preservar e organizar fontes primárias para os estudos brasileiros, colocando-as aserviço da pesquisa” (Universidade de São Paulo, 1997, p. 13).

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São Paulo, tais como Charles Morazé, Roger Bastide, Pierre Monbeig,Paul-Arbousse Bastide e Emilio Willems, além de Jacques Lambert eCharles Wagley, personalidades que haviam participado ativamente daconcepção, da criação e do desenvolvimento do Centro Brasileiro dePesquisas Educacionais, órgão instituído na gestão de Anísio Teixeira(1952-1964) do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos.

Vários fatores justificariam o convite feito pelo Conselho Diretordo IEB a Ramos de Carvalho para coordenar o Grupo de Trabalho His-tória da Educação: a longa trajetória pela Universidade de São Paulo –fora aluno e assistente de Cruz Costa na antiga Cadeira de Filosofia(1940-1955) e também assistente e depois regente da Cadeira de Histó-ria e Filosofia da Educação da Seção de Pedagogia da Faculdade deFilosofia, Ciências e Letras (1951-1968)3–, a recente ocupação do postode diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo(1961-1965) e a condição em que se encontrava naquele momento, dediretor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Não foi, porém, o prestígio pessoal do coordenador que motivou ejustificou a criação do Grupo de Trabalho História da Educação no Semi-nário de Estudos Brasileiros. Havia também o reconhecimento da comu-nidade acadêmica uspiana, representada no Conselho Diretor do IEB4,do valor das pesquisas em história da educação brasileira, que vinhamsendo realizadas desde a década de 1960. Afinal, àquela altura, algunsresultados de tais pesquisas já haviam sido submetidos, em forma de tesesde doutoramento, à apreciação de bancas examinadoras multidiscipli-nares formadas na Universidade de São Paulo (e, ainda, nos InstitutosIsolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo) – e nelas aprova-dos. O conhecimento sobre história da educação brasileira veiculado nas

3 Após a reforma universitária de 1969, os antigos catedráticos continuaram suascarreiras na Universidade de São Paulo como professores titulares.

4 O Conselho Diretor do IEB era formado por regentes de algumas cadeiras da uni-versidade, escolhidos segundo os critérios do instituto; depois, os professores pas-saram a ser eleitos nos vários departamentos da Faculdade de Filosofia, Letras eCiências Humanas, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Faculdade deEconomia e Administração e, posteriormente, da Faculdade de Educação (Univer-sidade de São Paulo, Instituto de Estudos Brasileiros, 1997, pp. 13-14).

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teses já recebera, pois, a legitimidade acadêmica, conferida no crivo dospadrões exigidos dos candidatos ao grau de doutor em todas as áreas dasciências humanas, naquela mesma instituição.

Considerando que a educação não tinha assento no Conselho Dire-tor do IEB, formado pelos representantes das ciências humanas convi-dadas a reger os estudos brasileiros5, não havia, com exceção das boasrelações pessoais existentes entre os veteranos da universidade, outrajustificativa para a inclusão da história da educação na pauta dos traba-lhos do encontro, senão a consideração de que ela consolidava-se comouma extensão da história, ou seja, como uma das “outras áreas de inte-resse” para as quais as pesquisas promovidas pelo IEB deveriam pro-gressivamente se projetar. Sendo assim, a inclusão da história da educaçãoem um evento destinado a recensear os estudos brasileiros parece com-provar que a titulação dos oriundos da seção de pedagogia modificoupositivamente o status de “pedagogo” na Faculdade de Filosofia, Ciên-cias e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP), ao dissipar,com os diplomas chancelados pela instituição, a desconfiança geral quehavia vitimado por quase três décadas os lentes do Instituto de Educa-ção, para lá transferidos em 19386. A indicação do GT parece demons-trar que, embora fazendo parte da Faculdade de Educação, aos olhos dacomunidade acadêmica a história da educação encontrava-se mais dis-

5 O Conselho Diretor do IEB era então formado pelas historiadoras Alice PifferCanabrava e Nícia Villela Luz, pelos geógrafos Antônio Rocha Penteado e DirceuLino de Matos, pelo arquiteto Eduardo Kneese de Mello, pelos antropólogos JoãoBaptista Borges Pereira e Carlos Drummond e pelo especialista em literatura brasi-leira José Aderaldo Castello.

6 Com a extinção do Instituto de Educação da Universidade de São Paulo, tanto ascátedras como os acervos, os lentes e seus assistentes foram de lá transferidospara a Seção de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Como adisputa pelo posto maior de catedrático na FFCL era acirrada, dados o carátervitalício do cargo e o peso das relações pessoais no processo de nomeação, oprovimento automático dos lentes a professores catedráticos produziu manifesta-ções de descontentamento por parte dos alunos daquela escola superior, conside-rados “candidatos naturais” à substituição dos professores estrangeiros, quelecionavam com um contrato temporário. Para maiores desdobramentos dessaquestão, consultar Bontempi Júnior (2001).

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tante de suas origens normalistas e de sua “especificidade” educacionale mais próxima do idioma geral das ciências humanas7.

De acordo com o Regulamento Geral do Encontro Internacional deEstudos Brasileiros, cada grupo de trabalho deveria produzir uma mono-grafia contendo a exposição da situação dos estudos na respectiva área,acompanhada de levantamento e atualização bibliográfica. A coordena-ção sugeria que as “introduções monográficas” contivessem uma“conceituação da área em relação de destaque com a cultura e a civiliza-ção do Brasil”; um “panorama de seu desenvolvimento histórico ou deseus estudos”; “sugestões, condições e perspectivas de estudos e pes-quisas”; “conclusões ou síntese geral”; a própria pesquisa; uma biblio-grafia, com fontes primárias e secundárias arroladas. Cópias dessamonografia deveriam ser entregues com antecedência mínima de trintadias da realização do seminário a quatro (ou até a seis) comentadores,sendo dois da mesma área e os outros de áreas conexas, para que elabo-rassem seus comentários por escrito (Universidade de São Paulo, 1972b,p. 146).

O Grupo de Trabalho História da Educação, coordenado por Ramosde Carvalho e Heládio Antunha, realizou seis sessões, tendo como se-cretárias as professoras Maria de Lourdes Mariotto Haidar, Maria deLourdes Santos Machado e Sebastiana Fanhani. Houve duas “sessõesplenárias” reservadas à história da educação, uma realizada no dia 17 desetembro e destinada a comunicações e debates e outra reservada para aapresentação de seus resultados, no dia 23. Em tais sessões o presidenteda mesa foi Laudelino Freitas Medeiros e a monografia apresentada,composta de capítulos assinados por Ramos de Carvalho, José FerreiraCarrato, Maria de Lourdes Mariotto Haidar e Heládio GonçalvesAntunha, foi comentada por José Querino Ribeiro, Maria de LourdesSantos Machado, Raquel Volpato Serbino e Nilce Aparecida Lodi. Osconvidados especiais Jacques Lambert e Claude-Henri Frèches apre-

7 Essa suposta melhoria de status não se manteve nas décadas de 1970 e 1980, em quea pesquisa acadêmica em história da educação viveu um novo momento de retraçãoe de confinamento à propalada “especificidade” da educação. Ver, a respeito, os ar-tigos de Nagle (1984) e Warde (1984) no periódico Em Aberto, Brasília, n. 23 e 47.

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sentaram, respectivamente, as comunicações “História da educação econjuntura democrática” e “Joaquim Nabuco e o ensino superior” e fo-ram convidados a comentar os resultados dos colaboradores (Universi-dade de São Paulo, 1972b, p. 161).

O coordenador abre a publicação com o capítulo denominado “Aeducação brasileira e a sua periodização”, seguido dos capítulos “A edu-cação brasileira em fins do período colonial”, de Carrato; “A educaçãobrasileira no período imperial”, de Haidar; e “Tendências da educaçãobrasileira durante a República”, de Antunha. Em obediência ao regula-mento, os comentários dos debatedores e as contribuições dos demaispresentes na sessão plenária, assim como as respostas dos participantesdo GT, foram incorporados à versão final da monografia, publicada nosAnais do Encontro, em 1972. O documento traz também acréscimos aotexto publicado, tais como argumentos complementares e detalhamentosquanto à periodização.

Os colaboradores da monografia, todos pesquisadores da Universi-dade de São Paulo durante a década de 1960, foram convidados pelopróprio Ramos de Carvalho a participar do encontro no IEB8. Na Facul-dade de Educacão da Universidade de São Paulo foram recrutados Ma-ria de Lourdes Mariotto Haidar, então professora assistente doutora doDepartamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação eHeládio Cesar Gonçalves Antunha, professor assistente doutor do De-partamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada. Da Es-cola de Comunicações e Artes foi chamado um de seus professorescolaboradores, José Ferreira Carrato, então livre-docente, que fora orien-tado em seu doutorado em história por Sérgio Buarque de Holanda.

Dentre os colaboradores do Grupo de Trabalho, apenas Carrato nãofazia parte do grupo que transitava em torno de Ramos de Carvalho9,

8 Entrevista de Maria de Lourdes Mariotto Haidar ao autor em 15/6/98.9 Carrato inicia sua fala no Encontro Internacional de Estudos Brasileiros agrade-

cendo o convite, feito por Ramos de Carvalho, para que se associasse ao seu grupode trabalho, lembrando ser aquela a terceira vez, em menos de um ano, que colabo-rava com “a jovem e dinâmica Faculdade de Educação da USP e com seu ilustrediretor” (Universidade de São Paulo, 1972a, p. 184).

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uma vez que Haidar e Antunha eram antigos parceiros de pesquisa dodiretor da Faculdade de Educação. Antes mesmo de se tornarem profes-sores da Faculdade de Educação, como licenciados da Faculdade deFilosofia, Ciências e Letras, haviam participado do mencionado projetode escrever a história da educação brasileira em moldes acadêmicos.Assim, embora date de 1971, a monografia em tela pode ser considera-da como um dos produtos da linha de pesquisa iniciada formalmente em1962, quando o então regente da cadeira de História e Filosofia da Edu-cação reuniu em torno de si um grupo de doutorandos, com o objetivode realizar monografias de base para o estudo da história da educaçãobrasileira.

Antes, pois, de dispor as considerações a respeito da monografia doGrupo de Trabalho de História da Educação, cabe recuar ao tempo dasprimeiras pesquisas promovidas por Ramos de Carvalho na cadeira deHistória e Filosofia da Educação.

As pesquisas em história da educação brasileira

A intenção de produzir monografias para fundamentar o estudo dahistória da educação brasileira na cadeira de História e Filosofia da Edu-cação surgiu da consciência de seu regente de que ainda não havia sufi-ciente conhecimento acumulado sobre o assunto para que a matéria viessea ocupar um espaço importante nos cursos regulares. Um dos objetivosperseguidos por Ramos de Carvalho ao promover a realização de pesqui-sas originais era, portanto, justamente produzir o conhecimento que fal-tava ser incorporado ao ensino da história do ensino paulista e brasileiro,uma vez que acreditava não haver “legítima história sem sério e criteriosolevantamento de dados de toda ordem” (Carvalho, 1956, p. 600). Comefeito, podem-se verificar nos programas dos cursos de 1966 em diante,ou seja, alguns anos depois de terem se iniciado os trabalhos do grupo,incorporações substantivas de assuntos tratados nas pesquisas realiza-das pelos doutorandos.

As pesquisas foram sendo estimuladas pelo regente no interior dospróprios cursos regulares da cadeira de História e Filosofia da Educa-

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ção, principalmente no curso de especialização, cumprido no quarto anopor alunos escolhidos, e já tendo em vista o doutoramento em futuropróximo. A tese de doutoramento de Heládio Antunha, A reforma de1920 da instrução pública no estado de São Paulo (1967), por exem-plo, surgiu da combinação de um seminário realizado sobre a ReformaSampaio Dória com a organização de uma pesquisa baseada em entre-vistas feitas com educadores coetâneos. Na introdução à tese, Antunhadestaca ainda o decisivo apoio que sua pesquisa recebeu do Centro Re-gional de Estudos Educacionais de São Paulo, que era dirigido na oca-sião pelo próprio Ramos de Carvalho:

Felizmente, com o auxílio de alunos do quarto ano do Curso de Pedagogia da

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e

também de servidores do Centro Regional de Pesquisas Educacionais “Prof.

Queiroz Filho”, postos à nossa disposição, pudemos realizar um levanta-

mento quase que exaustivo de todo o material relacionado com o assunto de

nossas pesquisas, a maior parte do qual não se encontrava, até então, reunida

e catalogada e se espalhava por um sem número de órgãos e instituições.

Conseguimos assim mergulhar em quase toda a documentação da época, ten-

do examinado também quase toda a legislação educativa do Estado, desde a

implantação do regime republicano, até a lei que institui a reforma de 1920,

bem como a legislação educativa posterior que a regulamentou e a derrogou.

Reunimos e pudemos estudar um grande número de artigos, bem como a

produção bibliográfica mais diretamente relacionada com o objeto de nossas

investigações. Estatísticas do período, relatórios de autoridades escolares,

bem como estudos, propostas e sugestões de reformas, vindas de diferentes

fontes, foram também examinadas e interpretadas à luz da problemática da

época [Antunha, 1967, pp. 7-8].

De fato, durante sua gestão como diretor do centro, o catedráticoRamos de Carvalho lançou mão da estrutura e do pessoal do CRPE-SP,a fim de que seus alunos-pesquisadores pudessem ter acesso ao maiornúmero de documentos e fontes bibliográficas. Foi graças a essa inicia-tiva que eles puderam usufruir do Serviço de Documentação e Inter-câmbio, que contava com equipamento reprográfico completo, quinze

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funcionários treinados para diversas funções (inclusive para atender aconsultas por telefone), e que oferecia, além do conjunto da documenta-ção legislativa referente à República, resumos analíticos sobre teses,pesquisas, artigos, e estatísticas sobre educação, discutidos em congres-sos ou publicados10. Mediante essa relação institucional, os doutoran-dos cooperavam com as atividades do centro, participando de seminários,realizando palestras ou escrevendo artigos para a publicação periódicaPesquisa e Planejamento, e beneficiavam-se das instalações e do pre-cioso auxílio de seus funcionários.

Tal relação simbiótica entre a cadeira de História e Filosofia daEducação e o CRPE-SP contribuiu para que fossem realizados algunsdos projetos de pesquisa que originaram as teses defendidas pelos li-cenciados na USP e nos Institutos Isolados de Ensino Superior do Es-tado de São Paulo, no decorrer dos anos de 1960 e 1970. Jorge Naglefoi um dos professores convidados a colaborar com a realização de umamplo programa de investigações sobre a história da educação brasi-leira no período republicano, que previa pesquisas sobre a História daEducação no Estado de São Paulo e teses de doutoramento a seremdefendidas pelos licenciados na Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras. Esse programa de investigações, comandado pelo próprio Ra-mos de Carvalho, incluiria em sua sistemática reuniões regulares comos pesquisadores, para levantamentos dos trabalhos já realizados, tro-cas de informações e pontos de vista e, eventualmente, reformulaçõesdos programas e dos trabalhos em andamento, para evitar super-posições e repetições11.

10 Entrevista da ex-bibliotecária do CRPE/SP, Flora Vieira de Barros, concedida aoautor em 4/11/1999.

11 De acordo com carta constante do arquivo pessoal de Jorge Nagle. Em 1962, dalista de títulos e pesquisadores do grupo organizado por Ramos de Carvalho, cons-tavam os nomes de Casemiro dos Reis Filho, Jorge Nagle, Maria Alice AzevedoFonseca, Regina Célia Bicalho Monteiro da Silva, Maria da Penha Villalobos,Heládio César Gonçalves Antunha, João Eduardo Villalobos, Maria de LourdesMariotto Haidar, Tamás Szmrecsányi e Rivadávia Marques Júnior. Vale observarque nem todos os inscritos na lista participaram diretamente das reuniões ou mes-mo concluíram os trabalhos nela anunciados e que outros pesquisadores e “apren-

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O projeto foi desenvolvido e ampliado ao longo da década de 1960,tendo como marcas fundamentais os esforços de localização e sociali-zação das fontes documentais e de busca de uma periodização para ahistória da educação brasileira que fosse independente dos critériospolítico-administrativos até então utilizados. Quanto às fontes docu-mentais, os depoimentos destacam as grandes dificuldades enfrenta-das pelos pesquisadores para localizar e fazer uso das fontes primárias,seja pela ausência de arquivos organizados e de boas bibliotecas, sejapela escassez de bibliografia especializada, ou ainda, pela necessidadede copiar os originais à mão, dada a inexistência de máquinas de foto-cópia. De acordo com Antunha (1967, p. 7), diante de tais condições,“tornava-se [...] necessário partir do nada, ou melhor, de muito poucacoisa”. Por essa razão, a procura e a socialização de fontes eram consi-deradas tarefas necessárias e fundamentais para a realização dos traba-lhos, assim como o eram os recursos e a cooperação dos funcionáriosdo CRPE. Os inventários que os pesquisadores eram estimulados aproduzir deveriam servir não apenas para fundamentar as próprias te-ses, mas também para auxiliar outros interessados, motivo pelo qualRamos de Carvalho aconselhava os pesquisadores a indicar, em cadareferência arrolada, o local em que a obra ou o documento poderia serencontrado.

Quanto à periodização, Ramos de Carvalho acreditava que o estabe-lecimento de balizas temporais propriamente educacionais para as pes-quisas em história da educação brasileira traria uma substantiva vantagemde ordem prática a esse pesquisador, ao evitar que ele, ao iniciar umtrabalho, tivesse que começar “tudo de novo, na busca de datas, pontosde referência, fontes documentais” (Universidade de São Paulo, 1972a,p. 189).

dizes de pesquisa” (Cf. Tanuri, 1999) foram mais tarde incorporados. Tudo indica,além disso, que a referência corrente ao “grupo” de Ramos de Carvalho em váriosdepoimentos extrapole a idéia de indivíduos que, reunidos com certa freqüência,trabalharam juntos e com vistas às mesmas finalidades. Conforme procurei demons-trar em minha tese, o “grupo” distingue-se por uma marca disciplinar, para a qualRamos de Carvalho contribuiu de maneira decisiva (Bontempi Júnior, 2001).

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Com relação às obras a respeito de história da educação no Brasil deque dispunham os sujeitos das pesquisas, Marta Carvalho (2000, pp. 919-920) sustenta que A cultura brasileira, de Fernando de Azevedo, e osvolumes de Primitivo Moacyr12 foram “as principais ferramentas, senãoas únicas, para todo o estudante ou pesquisador que trabalhasse com his-tória da educação brasileira”, tendo sido “utilizados como instrumentosfundamentais de iniciação ao trabalho sobre os arquivos e a localizaçãode fontes primárias”.

De fato, A cultura brasileira foi um livro bastante utilizado peloorientador Ramos de Carvalho como ponto de partida para a escolha detemas para as pesquisas dos licenciados. Maria de Lourdes MariottoHaidar comenta que, para a sua investigação a respeito do Ato Adicio-nal de 1834, partiu exatamente de uma frase retirada daquela obra13. Porsua vez, na “Introdução” a sua tese, Antunha (1967, pp. 5-6) afirma que

as observações de Fernando de Azevedo [sobre as transformações havidas

nos anos 20, dentre as quais o surgimento do movimento renovador], feitas

em caráter geral e apenas de passagem, pareceram-nos, contudo, dar um es-

pecial relevo à reforma encetada por Sampaio Dória, indicando-a como pre-

cursora dos movimentos de renovação educacional em todo o país.

Resolvemos, assim, seguindo a orientação do Dr. Laerte Ramos de Carvalho,

catedrático de História e Filosofia da Educação da Faculdade de Filosofia,

Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, tomar o mencionado trecho

de Fernando de Azevedo como o ponto de partida para as investigações que

estávamos iniciando no campo da história da educação paulista.

12 Os títulos de Primitivo Moacyr são: A Instrução e o Império – 1823-1853; A Ins-trução e o Império, II: Reforma do Ensino – 1854-1888; A Instrução e o Império,III – 1823-1889; A Instrução e as Províncias – 1834-1889, I; Das Amazonas àsAlagoas; A Instrução e as Províncias, II – 1823-1853; Sergipe, Bahia, Rio de Ja-neiro, São Paulo e Mato Grosso. Lançadas na série “Subsídios para a História daEducação Brasileira”, as obras de Moacyr foram apresentadas como exemplo da po-lítica de pesquisa que Lourenço Filho desejava implantar no INEP (Marta Carvalho,2000, pp. 919-921).

13 Depoimento concedido ao autor, 15/6/1998.

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Já os livros de Primitivo Moacyr não eram muito estimados porRamos de Carvalho. Na sessão de defesa de sua tese de doutoramentoem filosofia (“A Formação Filosófica de Farias Brito”, 1951), o candi-dato apresentara suas divergências quanto à propriedade e utilidade domodelo de pesquisa e exposição presente na obra de Moacyr, considera-da um mero “repositório de documentos”, que não atendia à ambição decompreensão da história, que ele próprio perseguira na elaboração desua tese (Barros, 1952, p. 523)14.

Critérios de periodização

Quando, em “A educação brasileira e a sua periodização”, Ramos deCarvalho (2001, p. 138) reconheceu o “incipiente estado em que se achamas investigações históricas relacionadas com a escola brasileira” e apre-sentou como objetivo do grupo de trabalho “traçar um quadro que sirvade orientação àqueles que porventura venham a se interessar pelo estu-do da nossa realidade e do nosso passado educacional”, o diretor da Fa-culdade de Educação demonstrava amplo conhecimento de causa. Defato, os trabalhos disponíveis até então quase se retringiam aos clássi-cos mencionados e aos próprios produtos das investigações que empreen-dera, além de alguns capítulos esboçados em livros e alguns manuaisdidáticos15.

Das grandes tentativas de síntese da história da educação brasilei-ra, A cultura brasileira, de Fernando de Azevedo, e Primórdios da edu-

14 A respeito da apropriação que Ramos de Carvalho faz da noção de compreensão,concebida por Dilthey, para o estudo do pensamento e da história da educação noBrasil, consultar as teses de Laerte Ramos de Carvalho, “A formação filosófica deFarias Brito” (doutorado em filosofia de 1951, republicada em 1977) e “As refor-mas pombalinas da instrução pública” (tese de cátedra em história e filosofia daeducação de 1952, republicada em 1978).

15 Havia ainda L’Instruction Publique au Brésil, obra pioneira de José Ricardo Piresde Almeida, alguns capítulos – ou apêndices – nos manuais de Afrânio Peixoto,Raul Bricquet e Theobaldo Miranda Santos, menções mais ou menos substantivasnos livros de Hélio Viana, Serafim Leite e Pedro Calmon, além de artigos esparsosem periódicos.

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cação no Brasil, de Luiz Alves de Mattos16, foram as obras escolhidaspor Ramos de Carvalho para parametrar a sua tentativa de periodizaçãoda história da educação brasileira. A despeito das semelhanças comalguns dos marcos nelas apresentados, a periodização sugerida estabe-lece critérios próprios, que levam em conta certos aspectos da históriada educação, trazidos à tona pelas pesquisas originais realizadas pelogrupo de pesquisadores unidos a Ramos de Carvalho ao longo da déca-da de 1960.

De acordo com Ramos de Carvalho (2001, p. 138), o modo que foraanteriormente traçado para a distribuição dos capítulos na monografiateve de ser alterado, por força dos fatos trazidos por “pesquisas maisaprofundadas”. Assim, em lugar do modo “tradicional”, ou seja, inte-gralmente paralelo à periodização que caracteriza a evolução da históriapolítico-administrativa brasileira, optou o grupo de trabalho por adotaruma maneira mais adequada ao estudo da “história da escola brasilei-ra”, muito embora a organização dos capítulos na monografia tenha sidopreservada. Tal proposta foi criticada em plenária por José Querino Ri-beiro, para quem a reperiodização poderia ser interessante e viável paraa história das idéias educacionais, que seria “muito menos dependentedas realidades contemporâneas”, mas o mesmo não valeria para a histó-ria das instituições escolares, a qual, “diretamente presa às suas baseslegais”, altera-se substancialmente “nos tempos histórico-políticos queatravessamos”. O ajuste permitido ao pesquisador da história das insti-tuições escolares limitar-se-ia, de acordo com Querino Ribeiro, a elabo-rar subdivisões, “sem prejuízo da conveniência de respeitar as divisões

16 Luiz Narcizo Alves de Mattos (1907-1980) foi catedrático de filosofia educacionale história da educação (1938-1939) da Faculdade de Educação da Universidade doDistrito Federal, da qual foi também diretor e membro do Conselho Universitário;professor titular de didática geral e especial e diretor do Colégio de Aplicação daFaculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Ocupado com as ques-tões em torno da didática e da formação de professores, escreveu, entre 1954 e1961, vários livros abordando a temática (Vilarinho, 1999, pp. 348-355). Primórdiosda educação no Brasil foi o seu único livro dedicado à história da educação brasi-leira, tendo sido concebido como o primeiro de uma série que corresponderia àperiodização proposta, mas que não se realizou.

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[colônia, monarquia e república] de nossa evolução” (Universidade deSão Paulo, 1972a, pp. 174-175).

As reservas de Querino Ribeiro quanto ao modelo autônomo pro-posto por Ramos de Carvalho são inteiramente coerentes, aliás, com suaprópria experiência como professor de história da educação brasileirana cadeira de História e Filosofia da Educação, de 1939 a 1948, ano emque foi substituído pelo próprio Ramos de Carvalho no cargo de assis-tente de Roldão Lopes de Barros17. Querino Ribeiro ministrava naquelecurso algo dos conhecimentos e interesses que absorvera em seudoutoramento na matéria, “Ensaios sobre a significação e importânciada memória sobre a reforma dos estudos da Capitania de São Paulo,escrita em 1816 por Martim Francisco Ribeiro de Andrade Machado”(Universidade de São Paulo, 1998, p. 171), tese orientada por AlfredoEllis Jr., catedrático de história da civilização brasileira da FFCL-USP emembro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que segue o tra-dicional modelo do IHGB, ou seja, uma narrativa em que prevalecema “reunião de informações, atos, legislativos e regulamentares, as notí-cias e o fatos pertinentes” (Marta Carvalho, 2000, p. 921)18 e que, por-tanto, respeita fielmente a divisão temporal consagrada pela historiografiapolítica brasileira.

Quanto às referências em história da educação brasileira, QuerinoRibeiro afirmou em depoimento ter obtido a informação sobre a exis-tência da reforma de Martim Francisco na obra de um autor “que escre-veu sobre toda a legislação de ensino no Brasil, desde João VI até aRepública” (Baptista, 1997, pp. 104-105). Esse autor é certamente Pri-

17 Querino Ribeiro migrou, nessa ocasião, para a cadeira de Administração Escolar eEducação Comparada.

18 Querino Ribeiro trata, sucessivamente, da vida econômica e social da colônia e daCapitania de São Paulo, do estado geral da educação no início do século XVIII, daobra educacional dos jesuítas, da reforma pombalina e da chegada e acomodaçãoda Família Real no Rio de Janeiro, avaliando a influência desse episódio para avida da colônia. Adiciona ao volume uma biografia de Martim Francisco, acompa-nhada de explicações sobre as origens e razões de sua obra. O capítulo final fazalgumas considerações gerais sobre o conteúdo do documento, que foi reproduzi-do, ao lado de outros, em Apêndice (Ribeiro, 1945).

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mitivo Moacyr, que gozava de grande prestígio entre os cardeais dacátedra de história da civilização brasileira da FFCL-USP. Com efeito,em discurso de paraninfo da turma de formandos da FFCL-USP em1939, Afonso d’Escragnolle Taunay não só afirma ser Moacyr “o gran-de especialista da História da Instrução Pública no Brasil”, autor de “es-tudos tão probos quanto lúcidos” e pesquisas acuradas, como também oelege como “guia seguro” para o esboço que arrisca fazer dos projetosnacionais de universidade desde o século XIX (Universidade de SãoPaulo, 1953, p. 224).

As divergências entre Ramos de Carvalho e Querino Ribeiro se es-tendem, pois, da opinião sobre a qualidade da literatura disponível naárea à forma de balizar o tempo nos estudos em história da educaçãobrasileira, manifestando analogamente a existência, na área, de pelomenos dois modos de compreendê-la e de empreender a sua escrita.Como será visto adiante, ao fundar a periodização da história da educa-ção brasileira nos resultados peculiares da “íntima associação entre Igrejae Estado” (Carvalho, 2001, p. 139) desde o povoamento até a Repúblicasobre a evolução das instituições escolares do país, Ramos de Carvalhonão só marcava posição distinta à “história tradicional”, para a qual osacontecimentos macropolíticos deveriam ser os fatos por excelência deuma história objetiva e científica, como, ao elevar o seu objeto à alturade constituir marcos temporais, promovia a autonomia da disciplina/ciência história da educação com relação à história política, que vinhalhe emprestando os seus marcos.

Não obstante a mencionada posição “antitradicionalista” com rela-ção à história, o fato é que Ramos de Carvalho sustenta a opção porrecortes temporais propriamente educacionais na tese da coexistênciade “idades históricas diversas” no país, antiga interpretação da realida-de brasileira que, remontando a Pedro Calmon e a Euclydes da Cunha,ganhara com Jacques Lambert um novo fôlego19. Com efeito, Ramos deCarvalho afirma que

19 A rigor, a tese dualista recebeu o seu golpe de morte somente na década de 1970.Isso ocorreu, de início, no campo da história econômica do Brasil, em que as tesesde Celso Furtado em Formação econômica do Brasil (1959) foram refutadas pelas

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o desigual nível do desenvolvimento sócio-econômico nacional, a existência

no presente, como assinalou entre outros, Jacques Lambert [em Os dois Brasis

(1959)], do “arcaico” e do “moderno”, haveria forçosamente de refletir na

consideração global dos fatos que assinalam a evolução de nossas institui-

ções escolares [Carvalho, 2001, p. 139]20.

Em reforço à tese da inexistência de um paralelismo entre a vidacultural e a “estrutura política” de uma nação, Ramos de Carvalho acres-centa o argumento de Ortega y Gasset, para quem a pedagogia padece-ria de um “anacronismo constitutivo”, havendo assim uma defasagemdas idéias pedagógicas com relação ao movimento científico, cultural efilosófico de qualquer país (Universidade de São Paulo, 1972a, p. 187).Essa maneira de ver a questão amplia a visão sobre o problema, umavez que, se o argumento anterior o circunscrevia à realidade brasileira,este último argumento apresenta um postulado filosófico a respeito doanacronismo das idéias pedagógicas de uma maneira geral.

Outro fator a observar é a eleição da evolução das instituições esco-lares como objeto da história da educação, mediante a qual Ramos deCarvalho dá menor relevância às idéias que não engendraram conseqüên-cias de natureza institucional. Mais uma vez Querino Ribeiro expressousuas reservas na sessão plenária, apontando que todos os estudos apre-sentados pelos membros do grupo de trabalho pareciam ignorar que aeducação não se restringe aos “fatos de ensino institucionalizados nossistemas escolares”, sugerindo que a monografia fosse intitulada “Intro-dução ao estudo da história da escola brasileira” (Universidade de SãoPaulo, 1972a, p. 174). A sugestão do comentador foi laconicamente recu-sada pelo coordenador do grupo de trabalho, que alegou que a monografia

vigorosas críticas dos marxistas Caio Prado Jr., (1968), e Francisco de Oliveira(1972). Ramos de Carvalho, que faleceu em 1972, não chegou a acompanhar ooutono das interpretações dualistas.

20 Nas palavras escritas pelo próprio Lambert, “entre o velho Brasil e o novo existemséculos de distância; no correr dos anos a diferença dos ritmos de evolução ocasio-nou a formação de duas sociedades, diferentes porque não são contemporâneas”(Lambert, 1972, p. 105).

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não tratou “exclusivamente do processo de escolarização” (Universidadede São Paulo, 1972a, p. 188).

A posição de Ramos de Carvalho quanto ao objeto da história daeducação difere, aliás, não só da opinião de seu antecessor, como tam-bém do entendimento de um de seus primeiros seguidores na Cadeira deHistória e Filosofia da Educação, Roque Spencer Maciel de Barros. Naspáginas iniciais de “A educação brasileira e a sua periodização”, Ramosde Carvalho faz referência aos debates ocorridos no Segundo Impérioem torno dos projetos para a instauração da universidade, assunto cen-tral da tese de livre-docência A ilustração brasileira e a idéia de univer-sidade (1959), de seu ex-aluno e assistente. Para Ramos de Carvalho,

a luta pela instauração da Universidade que se traduziu em inúmeros proje-

tos constituiu, como o demonstrou o Prof. Roque Spencer Maciel de Barros,

um capítulo de relevante significado para o perfeito conhecimento do signi-

ficado ideológico de nossos bacharéis do Segundo Império. Mas resultou

num simples capítulo da história de idéias sem positivas conseqüências de

ordem institucional [Carvalho, 2001, pp. 140-141].

Ramos de Carvalho considera que o mencionado trabalho de Macielde Barros ocupa-se de “história de idéias” e não de história da educa-ção, matéria que tem como objeto as “positivas conseqüências de or-dem institucional” daquelas idéias. Não entendia, pois, como Maciel deBarros, que o objeto da história da educação emana da filosofia, e simque as realizações concretas relativas à educação observadas ao longoda história seriam mais bem compreendidas se nelas pudesse ser identi-ficado o “ideal” ou a “filosofia” que as animou. Não se tratava, pois, doestudo puro e simples de “idéias pedagógicas”, mas de iniciativas queprocuraram realizar, seja no universo da legislação, seja no âmbito prá-tico, determinados ideais e aspirações dos homens de uma época21.

21 Ver, a respeito, a tese de cátedra de Ramos de Carvalho, As reformas pombalinasda instrução pública (1978).

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A periodização

O modelo de periodização proposto por Ramos de Carvalho em “Aeducação brasileira e a sua periodização” dispõe os seguintes marcos:de 1549 a 1759, ou seja, dos primeiros estabelecimentos jesuíticos até odecreto de sua expulsão; de 1759 a 1889, data da Proclamação da Repú-blica; de 1889 à Revolução de 1930 – além de um quarto período, ape-nas esboçado, que começa com a promulgação da Lei de Diretrizes eBases de 1961 (2001, pp. 139-143). Tal modelo assemelha-se bastanteao proposto por Luiz Alves de Mattos em Primórdios da educação noBrasil, para quem os seis períodos da educação nacional seriam: Herói-co (1549 a 1570); de Organização e Consolidação (1570 a 1759); Pomba-lino (1759 a 1827); Monárquico (1827 a 1889); Republicano (1889 a1930) e Contemporâneo (1930 até os nossos dias). Comparando as duaspropostas, percebe-se que Ramos de Carvalho reduz a dois os quatroprimeiros períodos de Mattos, mas as datas de início e fim (1549 e 1759;1579 e 1889) coincidem rigorosamente.

Na proposta de Ramos de Carvalho, o primeiro período caracteriza-se pela prevalência absoluta da Igreja na organização e controle da edu-cação na Colônia, tendo o cristianismo como religião oficial, o regime dopadroado, a identificação da educação com a obra missionária e, pedago-gicamente, o ensino humanista, “verdadeiro monopólio da Companhia deJesus”. Com a expulsão dos jesuítas inicia-se um período marcado por umprocesso de secularização do ensino “de acentuado feitio regalista”, emque o Estado, ainda que permanecesse unido à Igreja, assumia a respon-sabilidade de cuidar da instrução pública (Universidade de São Paulo,1972a, p. 167).

Com relação aos períodos imediatamente posteriores à expulsão dosinacianos, as diferenças entre os autores ganham uma maior proporção,já que, para Ramos de Carvalho, um subperíodo do “período pombalino”poderia ser demarcado pela criação do subsídio literário em 1772, “ins-trumento que permitiu a criação, consolidação e expansão do sistema deaulas régias previstas nos alvarás pombalinos”; e outro poderia ser de-marcado a partir da chegada da corte portuguesa ao Brasil, assinalandonossas primeiras instituições de ensino superior. É bem provável que

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esse refinamento, da parte de Ramos de Carvalho, tenha resultado doconhecimento haurido das pesquisas que realizara, no início dos anosde 1950, para a sua tese de cátedra As reformas pombalinas da instru-ção pública.

Em “A educação brasileira e a sua periodização”, o impacto daindependência política do Brasil para o âmbito educacional vê-se bas-tante reduzido, uma vez que

o novo status político que se configurou a partir da Independência não modi-

ficou de modo fundamental as linhas orientadoras de nosso desenvolvimento

educacional. [...] Sobrevivem ainda, em pleno período imperial, os traços da

antiga educação colonial, [...] [o] modelo coimbrão [Carvalho, 2001, p. 140].

Do mesmo modo, o Ato Adicional de 1834 não tem o poder de impin-gir a descentralização que consagrara, pois, na realidade, a centralização,“qual força atávica, insinua-se sub-repticiamente, impondo-nos o velhomodelo coimbrão”. Mais decisivo, pois, que a Independência e o AtoAdicional para a história da educação brasileira é a persistência do “mo-delo coimbrão”, “ponto de referência invariável de nossa problemáticaeducacional” e definido na obra de Ramos de Carvalho como um con-junto de caracteres herdados da educação colonial, relativos às suas fina-lidades, estrutura e funcionamento, cuja marca fundamental é a centrali-zação, ou seja, o controle da educação por um estado central, com padro-nização uniforme, em detrimento da autonomia das unidades provinciais/estaduais. A tendência à centralização, que foi aqui reforçada pela influên-cia da estrutura escolar francesa sobre Portugal, representaria para o autora mais importante permanência de longa duração no sistema de ensinobrasileiro22.

22 No texto publicado nos Anais, Ramos de Carvalho apresenta a subperiodização doperíodo de 1824 a 1889, confiada a Maria de Lourdes Mariotto Haidar. SegundoHaidar, o período de 1824 a 1834 se caracterizaria pela disseminação, num regimeconstitucional ainda marcado pelo despotismo, da idéia de educação como direitodo cidadão e como dever do Estado. O subperíodo seguinte (1834-1854) teria sidoinaugurado pelo Ato Adicional, que consagrou às províncias a tarefa de promover

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No período que se estende de 1889 a 1930, em que a concordância deRamos de Carvalho e Mattos a respeito das datas é total, as característi-cas fundamentais são: o regime de separação do Estado e Igreja; olaicismo e a descentralização educacional; a vitória do ensino livre e osesforços posteriores para a organização de um sistema escolar nacional.Poucas modificações estruturais, no entanto, tiveram lugar no âmbito dasinstituições escolares brasileiras, em grande parte pela dispersão de açõesque teria marcado o período. No ensino superior, por exemplo, apesar daexpansão, “o modelo que lhe servia de fundamento continuava a ter omesmo arcabouço da escola imperial” (Carvalho, 2001, p. 142) e o en-sino médio permanecia cindido em “secundário” e “profissional”.

Como principal novidade trazida pela República, Ramos de Carva-lho destaca a quebra da linha de desenvolvimento que condicionara aestruturação das instituições escolares sob a égide da união entre Estadoe Igreja. Com a República inicia-se, “dentro dos quadros do descentra-lismo federativo e através de sucessivas reformas” (idem, p. 141), o pro-cesso de organização do sistema escolar brasileiro e completa-se oprocesso de secularização do Estado.

A Revolução de 1930 torna-se um marco do período de expansão econsolidação do sistema escolar brasileiro, por ter sido “o centro polari-zador de tendências inovadoras que se manifestaram nos últimos anosda década de 1910 e, particularmente, ao longo de toda a década dosanos de 1920” (idem, p. 142). De acordo com Ramos de Carvalho,

É a partir de 1930 que o esforço nacional pela educação começa a ganhar

índices significativos. A criação do Ministério da Educação e Saúde (1930),

as reformas do Ministro Francisco Campos (1931), o Manifesto dos Pionei-

o ensino primário e médio local. O subperíodo 1854-1868, iniciado com as refor-mas de Couto Ferraz, marcaria o início do processo de uniformização do ensino nopaís, embora as condições em que se davam as práticas políticas nas provínciastivessem impedido que as reformas inspiradas naquela do Município da Corte saís-sem do papel. No último período, 1868 a 1889, começaria a ganhar espaço nasdiscussões em torno da educação no país o movimento favorável à liberdade deensino, anteriormente adstrito às províncias (Cf. Universidade de São Paulo, 1972a,pp. 166-173).

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ros da Educação Nova (1932), a fundação da Universidade de São Paulo

(1934) e da Universidade do Distrito Federal (1935) são os primeiros marcos

de um processo de estruturação orgânica do ensino nacional [Carvalho, 2001,

p. 142].

É notável a semelhança do trecho citado com a famosa passagem de“A transmissão da cultura”, o tomo III de A cultura brasileira, de Aze-vedo, em que igualmente as intervenções do governo federal, da Comu-nhão Paulista e dos Pioneiros da Educação Nova provocam grandeimpacto no “organismo” de nosso ensino. Se a República, porém, podeser considerada como um marco da laicização e como o ponto de parti-da da organização do sistema educacional brasileiro, entretanto, do pontode vista cultural e pedagógico, ela não promoveu “a transformação radi-cal no sistema de ensino, para provocar uma renovação intelectual daselites culturais e políticas, necessárias às novas instituições democráticas”(Azevedo apud Carvalho, 2001, p. 142). O fracasso cultural da Repúblicainstituída em 1930 não tardou a se manifestar na educação brasileira: oEstado Novo, ainda de acordo com Ramos de Carvalho, tratou de res-taurar o centralismo do antigo “modelo coimbrão”.

O derradeiro período começa em 1964, esboçado com as sucessivasleis que, desde 1942, marcaram “a tendência à integração entre os grausde ensino e à eliminação da dualidade existente entre ensino secundárioe profissional”. Essa fase caracteriza-se pela organização de um sistemaescolar nacional; pelo planejamento educacional; pela reforma, moder-nização e expansão do sistema escolar; pela democratização do proces-so escolar e privatização do ensino médio; pela ampliação da faixa doensino obrigatório e gratuito; pela luta pela concretização da idéia deuniversidade e pela renovação dos objetivos e métodos pedagógicos(Universidade de São Paulo, 1972a, p. 169)23.

23 Não cabe aqui comentar as opiniões manifestadas por Ramos de Carvalho a respei-to das tendências que vislumbrava no regime implantado em 1964. Ao fazê-las, oautor estava se deslocando da posição de historiador para a de observador de fatosainda em processo. Além disso, como se sabe, Ramos de Carvalho havia sido leva-do à reitoria da Universidade de Brasília em 1965 a fim de resolver questões polí-

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Considerações finais

A periodização de Ramos de Carvalho se estabelece fundamental-mente pela conjugação de um elemento dinâmico – o processo de secu-larização do ensino – a um elemento quase estático, de longa duração – o“modelo coimbrão”. As mudanças políticas, tal como as espumas nametáfora de Braudel, não têm em sua narrativa o poder de alterar asregiões mais profundas da história da educação. Assim, a Proclamaçãoda Independência não altera, para todo o período imperial, o modelo deeducação colonial herdado dos jesuítas, assim como a Proclamação daRepública, ainda que signifique o início da instauração de um projeto deorganização do sistema em novas bases, nele não promove uma verda-deira revolução. Ela apenas principia com os efeitos institucionais daseparação entre Igreja e Estado e só passa a marchar resolutamente após1930, com as medidas legais que expressam o esforço de reestruturaçãoda educação nacional. Essa marcha, no entanto, interrompe-se em plenoEstado Novo, quando o modelo coimbrão emerge e volta a respirar.

A proposta de periodização ancorada nos eventos propriamenteeducacionais minimiza, pois, a importância das mudanças de regimepolítico na história da educação no país. Com esse artifício, Ramos deCarvalho instiga um deslocamento do olhar, que passa das determina-ções macropolíticas para as instituições escolares, projetando luz sobreos acontecimentos que produziram impactos na organização do sistemae das instituições de ensino no Brasil. Com essa lógica, torna-se possí-vel dar à criação do subsídio literário, por exemplo, maior destaque doque a qualquer uma das circunvoluções políticas havidas no períodomonárquico.

ticas que, envolvendo alunos, professores e funcionários daquela instituição, vi-nham transformando a UnB em palco de atribulações consideradas ameaçadoraspara a estabilidade do regime. Sua missão fracassou estrepitosamente e, tendo sidohostilizado de parte a parte, Ramos de Carvalho sofreu enorme desgaste político epessoal. Sua relação com o regime instaurado em 1964 é, portanto, bastante eivadade experiências e emotividade para que à análise apresentada em 1971 sejam atri-buídos o peso e a objetividade com os quais foram considerados por ele os perío-dos pretéritos da história do Brasil.

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Os grandes marcos políticos, quando ganham importância no mo-delo de Ramos de Carvalho, valem exclusivamente para os momentosem que o Estado de fato intervém no transcurso da “evolução da esco-la”, por meio dos mecanismos legais de reforma e organização do ensi-no. No entanto, não são úteis para balizar o passado colonial, momentoem que prevaleceram a condução da Igreja e o “modelo coimbrão”. Dessaforma, ainda que haja coincidências entre os marcos macropolíticos eos educacionais (por exemplo, a Proclamação da República e a Consti-tuição de 1891 serão sempre balizas obrigatórias do processo delaicização do ensino), o fundamento básico da periodização permancecesendo o fato educativo, o que representa um duro golpe na história daeducação, tal como era contada por Primitivo Moacyr e pelos manuaisdidáticos que circulavam na época de formação dos pesquisadores do“grupo de Laerte”.

O modelo de periodização analisado neste artigo carrega indubita-velmente os princípios e diretrizes pelos quais Ramos de Carvalho sem-pre pautou o estudo da escola brasileira e compreendeu as relações entrehistória, filosofia e os meandros do mundo da educação e da políticanacionais. Desembocam nele os interesses que o professor nutria pordeterminados aspectos e períodos da história do ensino no Brasil e emSão Paulo e com os quais dirigiu as pesquisas dos doutorandos de seu“grupo” para determinados temas, abordagens, recortes geográficos etemporais, inaugurando ou consolidando certos cânones de longa dura-ção em nossa historiografia, tais como a dicotomia centralização-descen-tralização, o estudo das reformas educacionais e a preocupação com aação educativa do Estado.

“A educação brasileira e a sua periodização” esboça, ainda, uma lei-tura panorâmica de toda a “evolução da história da educação brasileira”,empreendimento acalentado e jamais realizado por seu autor, e, emboraesteja longe de expressar toda a riqueza dos resultados obtidos pelos pes-quisadores do “grupo de Laerte”, o texto em tela comporta uma parte sig-nificativa dos esforços por eles envidados para conquistar a autonomiada disciplina história e filosofia da educação no quadro das ciências hu-manas, motivo pelo qual foi aqui considerado como um documento re-levante para a historiografia da educação brasileira.

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El trabajo tiene como objetivo central analizar los textos o manuales de educación físicadel nivel primario desde 1884 hasta 1930. La selección de dicho período responde a lanecesidad de indagar las prácticas, los saberes y los discursos que en la época fundacionalde la educación física fueron instalando y prescribiendo cierto orden corporal.La indagación se focalizará en la estructura del manual o del texto individualizando lossiguientes ejes: los diferentes términos utilizados para denominar la disciplina, los

* El artículo denominado “Sobre los ejercicios físicos o acerca de cómo configurarcuerpos productivos, obedientes, sanos y racionales (1880-1930)” ha sido revisado yevaluado por el Dr. Mariano Narodowski y por el Comité evaluador de las XII Jorna-das Argentinas de Historia de La Educación realizadas en Rosario los días 14 al 16de noviembre de 2001 en la Universidad Nacional de Rosario, Argentina

** Pablo Scharagrodsky es profesor de educación física, licenciado en ciencias de laeducación y magister en ciencias sociales con mención en educación (FLACSO Argen-tina). Miembro del Programa de Investigación Sujetos y Políticas en Educación,dirigido por el Dr. Mariano Narodowski, en la sede de la Universidad Nacional deQuilmes, Buenos Aires, Argentina. Docente de la Universidad Nacional de La Plata.E-mail: [email protected] Manolakis es licenciada en educación y candidata a magister en cienciassociales con mención en educación (FLACSO Argentina). Miembro del Programa deInvestigación Sujetos y Políticas en Educación, dirigido por el Dr. Mariano Naro-dowski, en la sede de la Universidad Nacional de Quilmes, Buenos Aires, Argentina.Becaria Fundación Gobierno y Sociedad. E-mail: [email protected] Barroso es licenciada en educación y estudiante de maestría en gestióneducativa de la universidad de San Andrés. Miembro del Programa de InvestigaciónSujetos y Políticas en Educación, dirigido por el Dr. Mariano Narodowski, en la sedede la Universidad Nacional de Quilmes, Buenos Aires, Argentina. Becaria FundaciónGobierno y Sociedad. E-mail: [email protected]

La educación física argentina en losmanuales y textos escolares (1880-1930)*

Sobre los ejercicios físicos o acerca de cómoconfigurar cuerpos útiles, productivos, obedientes,

dóciles, sanos y racionales

Pablo Scharagrodsky,Laura Manolakis y Rosana Barroso**

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contenidos a enseñar y sus justificaciones, el lugar que ocupa el docente, el lugar queocupa el alumno, las consideraciones temporales y espaciales de las actividades adesarrollar, los materiales mencionados, la vestimenta necesaria, la distinción varón-mujer, las partes del cuerpo mencionadas en las ejercitaciones, el tipo de iconografía,entre otros.Dicho análisis nos permitirá identificar la forma en que el cuerpo – tanto masculinocomo femenino – es pensado y problematizado a partir de una de las asignaturasobligatorias en el nivel primario argentino. Las fuentes a utilizar serán los libros omanuales de la época dirigidos a los docentes de la disciplina en cuestión.EDUCACIÓN FÍSICA; MANUALES Y TEXTOS ESCOLARES; NIVEL PRIMÁRIO;NIVEL PRIMARIO ARGENTINO; 1880-1930.

This article has as central objective, to analyze the texts or manuals of physical educationof the primary level, from 1884 up to 1930. The selection of this period responds to thenecessity of inquire about the practices, the knowledge and the discourses that wereinstalling and prescribing certain corporal order in the fundacional time of the physicaleducation.The investigation will center in the structure of manuals or texts, individualizing thefollowing axes: the different terms used to denominate the discipline, the contents toteach and their justifications, the place that occupies the teacher, the place that occupiesthe pupil, the temporary and space considerations of the activities to develop, thementioned materials, the necessary clothes, the distinction male-woman, the parts of thebody mentioned in the exercises, the iconography type, among others.This analysis will allow us to identify the form in that the body -so much masculine asfeminine – it is thought in one of the obligatory subjects of the Argentinean primarylevel. The sources to use will be the books or manuals of the time, directed to the teachersof the discipline in question.PHYSICAL EDUCATION; TEXTS AND MANUALS; PRIMARY LEVEL; ARGEN-TINEAN LEVEL; 1880-1930.

Introducción

El siguiente trabajo tiene como objetivo central analizar los textos omanuales de educación física desde 1884 hasta 19301. La selección dedicho período responde a la necesidad de indagar las prácticas, los sabe-res y los discursos que en la época fundacional de la educación físicaescolar fueron instalando y prescribiendo cierto orden corporal.

1 A pesar de no estar dirigidos explícitamente a un solo nivel de enseñanza, muchosde los textos y manuales de ejercicios físicos estaban destinados al nivel primario.

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La indagación se focalizó en la estructura del manual o del textoindividualizando los siguientes ejes: los diferentes términos utilizadospara denominar la disciplina, las justificaciones y los fines, los contenidosa enseñar, el lugar que ocupa el docente, el lugar que ocupa el alumno,las consideraciones temporales y espaciales de las actividades a desar-rollar, los ejercicios prescriptos, los materiales mencionados, la vestimen-ta necesaria, la distinción varón-mujer, las partes del cuerpo mencionadasen las ejercitaciones, el tipo de iconografía, entre otros.

Dicho análisis nos permitió identificar, aunque provisionalmente, laforma en que el cuerpo – tanto masculino como femenino – ha sidopensado y problematizado a partir de una de las asignaturas obligatoriasen el nivel primario argentino.

Las fuentes utilizadas han sido los libros o manuales de la épocadirigidos especialmente a los docentes de la disciplina en cuestión. Lostextos analizados fueron seleccionados por haber estado directa oindirectamente relacionados con la conformación del campo disciplinaren la escuela pública argentina. Cuando hablamos de vinculación directa,estamos haciendo referencia a que la misma se ha dado a partir de dife-rentes mecanismos de regulación estatal que legitimaron la circulacióny apropiación de ciertos saberes y de ciertas prácticas en la disciplinaconocida tradicionalmente como ejercicios físicos. Por ejemplo, la publi-cación en El Monitor de la Educación de artículos o reseñas, la traducciónde ciertos textos por educadores argentinos relevantes como el libro deWatson2, la fuerte presencia de algunos escritos del Dr. E. Romero Brest3,la producción escrita de los primeros egresados de los institutos de

2 José María Torres – quien fue dos veces director de la Escuela Normal del Paranádesde 1876 hasta 1885 y de 1892 a 1894 –, realizó la traducción del Manual decalistenia y gimnasia: libro completo de ejercicios para escuelas, familias ygimnasios, cuyo autor fue J. Madison Watson. Dicho manual tuvo una fuerte pre-sencia en el ámbito educativo ya que fue editado, por lo menos, cuatro veces entrelos años 1887 y 1899. Asimismo ha sido mencionado por varias revistas de educaciónargentinas de la época.

3 Romero Brest ha tenido una fuerte influencia en la educación física argentina. Hasido el primero en organizar cursos para formar docentes en educación física y fueel creador del método único de educación física argentino. También fue directordel Instituto Nacional de Educación Física (INEF) de la República Argentina.

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formación en educación física, la donación de diversos textos a las bi-bliotecas públicas escolares, entre otros. Entre los libros analizados pode-mos mencionar los siguientes: Gimnasia higiénica para niñas en laescuela y en casa de familia del Dr. A. G. Drachmann de 1879, Juegoescolares para las escuelas de niñas por Berta Wernicke de 1904, Ron-das escolares: sus condiciones pedagógicas y fisiológicas por ManuelL. Górdon de 1913, La educación física en la escuela primaria por PedroFranco de 1926, Breves reflexiones sobre la educación física por S.Pourteau de 1897, Educación física: guía teórico-práctica del profesorpor A. Thamier de 1907 o diversos escritos de E. Romero Brest comoCursos normales de educación física de 1903, La educación física en laescuela primaria. Su organización y sus resultados de 1909, Pedagogíade la educación física de 1911, Educación física de la muger (sic) de1903, entre otros.

Por otro lado, cuando hacemos mención a la vinculación indirectaestamos haciendo referencia a la presencia de textos o manuales de ladisciplina que no aparecen en los mecanismos descriptos anteriormente,pero que de alguna manera han circulado en dicha época. En especial,textos extranjeros como, por ejemplo, La educación gimnástica de Pe-dregal Prida de 1895 editado en Madrid, España o el libro La educaciónfísica racional de Fischer de 1916 editado en Sucre, Bolivia4.

Excluimos de nuestro análisis aquellos textos escritos por pedagogosimportantes que incluyen algún capítulo o apartado sobre la enseñanzade los ejercicios físicos.

Las preguntas del presente trabajo pueden sintetizarse de la siguientemanera: ¿Cómo estaban organizados los manuales y textos escolares delo que hoy se entiende por educación física5?, ¿Qué tipo de justificacionesvalidaban a la misma?, ¿Cuáles han sido las prescripciones didáctico-pedagógicas?, ¿Qué actividades se presentaban como legitimas dentro

4 En relación con estos libros, no se posee información acerca de su circulación enlos ámbitos educativos argentinos por no estar referenciados por ningún mecanis-mo de regulación estatal.

5 La educación física de dicho período a pasado por diferentes denominaciones. Lasmismas son tomadas en este trabajo.

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de este campo disciplinar? y ¿Cómo se contribuía a configurar cuerposmasculinos y cuerpos femeninos?

El Estado y los textos de educación física

De acuerdo a investigaciones recientes, (Narodowski y Manolakis,2001, 2002) con la sanción de la Ley 1420 de Educación Común en1884, el Estado pretende constituirse, en la Argentina, como Estado-Docente. Estado que intentará regular, durante más de un siglo, a tra-vés de disposiciones minuciosas y de políticas centralizadas, todo loque tenía que ocurrir en seno de las instituciones educativas, con el finde lograr un efecto homogeneizador y masificador ante la diversidadcultural de la población del territorio nacional. Bajo la atenta miradadel Estado-Docente de fines del siglo XIX, se conformó el ConsejoNacional de Educación, con el objetivo de lograr, bajo distintas opera-ciones discursivas, una matriz de legitimación de los saberes y prác-ticas que debían circular y ser apropiados en la escuela pública. Dentrode esta matriz, un elemento central de preocupación ha sido los librosde texto. La Ley 1420 hace referencia a ellos, al explicitar que es partede sus funciones: “prescribir y adoptar los libros de texto más adecua-dos para las escuelas públicas, favoreciendo su edición y mejora pormedio de concursos u otros estímulos y asegurando su adopción uni-forme y permanente a precios módicos por un término no menor dedos años”6. Para atender estos postulados específicos sobre los librosde texto, el Consejo Nacional de Educación creó en 1884 una ComisiónDidáctica, conformada por miembros prestigiosos de la corporaciónde educadores.

En este marco general, es importante destacar que los textos deeducación física no fueron objeto de evaluación por parte de éstaComisión Didáctica. La misma evaluaba, a través de educadores destaca-

6 Ley 1420 de Educación Común, Ministerio de Justicia e Instrucción Pública, 1884,(art. 57, inc. 15).

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dos, los libros de textos que estaban dirigidos a los alumnos y pertenecíana las siguientes áreas de conocimiento: lectura, idioma nacional, caligra-fía, aritmética, geometría, geografía, historia, moral e instrucción cívi-ca, idioma extranjero, dibujo y música. Los criterios de aprobación noestaban definidos a priori, sino que, en cada concurso, los integrantes dela misma establecían sus propios parámetros, con lo cual, típico de unacorporación, los criterios se modificaban según la configuración de lamisma.

No obstante, el Estado intervino a través de otros mecanismos me-nos explícitos y menos formales entre los que se pueden destacar los si-guientes:

1) Publicaciones de reseñas de textos del área en la sección biblio-gráfica de la revista El Monitor de la Educación Común7. Entre las citasregistradas se pueden mencionar, a modo de ejemplo, las siguientes:

La profesora de Educación Física de las Escuelas Normales Srita. Berta

Wernike ha publicado un precioso libro que contiene más de 50 juegos para

niñas entre los cuales los hay de carrera, de persecución, de carrera de

velocidad, de saltos, de movimientos mixtos y a la pelota. El juego, dice la

autora del libro, es el ejercicio por excelencia para las niñas de grados

infantiles, es el complemento para los ejercicios de los grados elementales y

el ejercicio creativo para los superiores8.

7 El Monitor de la Educación Común, era una revista mensual editada por el ConsejoNacional de Educación de acuerdo al art. 57 inc. 19 de la Ley 1420 dependiente delMinisterio de Justicia e Instrucción Pública desde 1881-1976. Su publicación sesuspendió en dos periodos: entre 1950-1958 y entre junio 1961-agosto 1965. Larevista contenía dos partes: la primera era una sección oficial donde se publicabanlas actas de las sesiones del Consejo Nacional y otros documentos oficiales y lasegunda contenía literatura pedagógicas y didácticas, reseñas bibliográficas derevistas nacionales y extranjeras, notas literarias e históricas.Para mayor información consultar: <http://www.bnm.me.gov.ar/bnmdigital/monitor/monitor.htm>

8 Juegos escolares (1904) en El Monitor de la Educación Común, Ministerio deJusticia e Instrucción Pública, Buenos Aires, n. 378, p. 1173.

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Otro ejemplo, es la que hace referencia al Manual de juegos físicospara niños y jóvenes de ambos sexos de Olivé:

El infatigable educacionista Don Emilio Olivé ha publicado en el retiro en el

que vive un manual de juegos físicos para niños y jóvenes de ambos sexos,

coleccionados y arreglados con esmero. No es la primera vez que el Sr. Olivé

se ocupa de un trabajo de esta clase, pues hemos publicado en 1893 y en esta

revista una buena colección de juegos que durante mucho tiempo hemos es-

tado facilitando a los maestros en la biblioteca. El manual actual reúne la

ventaja de venir ilustrados con grabados que facilitaron al personal docente

la enseñanza de esos juegos, tan útiles bajo el punto de vista de la Educación

Física como de la Educación Intelectual9.

2) Otro de los mecanismos ha sido las traducciones y publicacionesde libros completos y/o ensayos en la misma revista. Por ejemplo,“Gimnasia escolar sin aparatos. Sistema de ejercicios físicos para lasescuelas” (ilustrado con 236 fotograbados) de J. H. Bancroft traducidodel inglés por Etelvina Wallace (BANCROFT, 1904) y el “Ensayo de unmétodo positivo de educación física” traducido del francés y cuyo autores el famoso fisiólogo Demeny (1907).

3) Un tercer mecanismo que permitió la circulación de ciertasprácticas y saberes ha sido las referencias de los textos y/o autores endiscusiones sobre el área de educación física en la misma revista. Porejemplo:

Sin negar las excelencias de los juegos al aire libre, creo que hacer consistir

exclusivamente en ellos la Educación Física de los niños de 6 a 14 años, es

un error porque esos juegos desarrollan armónicamente el organismo dando

a los músculos preponderancia marcada sobre otros que no ejercitan o se

ejercitan poco. En cambio, el método Sandow consiste esencialmente en eso,

9 “Juegos escolares”, 1901 en El Monitor de la Educación Común. Ministerio deJusticia e Instrucción Pública, Buenos Aires, n. 341, p. 45.

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es decir en ser un método de desarrollo gradual, armónico, simultáneo de

todos los músculos del cuerpo humano. En consecuencia, creo que deben

combinarse ambos sistemas: los sistemas al aire libre y gimnasia que se ha

llamado racional y metódico. En apoyo a esta opinión podría citar antece-

dentes muy conocidos como puede ser la Gimnasia sueca, universalmente

difundida y el conocido libro de Watson que encierra un sistema de gimnasia

racional traducido por el Sr. Torres10.

4) También, se cita la compra y/o donación y distribución de textosa las bibliotecas escolares y/o biblioteca publicas, como por ejemplo, ladel Maestro11:

Educación Física de la Mujer. Acusamos recibo del discurso que sobre tan

importante asunto pronunció en el Club Atlanta el Dr. Romero Brest Director

de los cursos sobre Educación Física en las escuelas normales y de otro libro

sobre los resultados de esos mismos cursos. Estas dos publicaciones nos

interesan vivamente, lo mismo que a muchos lectores de la Biblioteca del

Maestro en cuyos anaqueles ocupan desde hoy un lugar. Agradecemos al

autor tan valioso obsequio12.

5) Un quinto mecanismo se da a través de los escritos vinculados acursos y a problemas sobre la educación física en el marco de institucionesencargadas de la formación de docentes en ésta área dependiente delEstado Nacional, como por ejemplo, los Cursos normales de educación

10 El destacado es nuestro. La cita hace referencia a una carta escrita al InspectorGeneral el 4 de septiembre de 1900 por Esteban Lamadrid sobre la discusión dela compra de aparatos de gimnasia Grip Dumb Bell de Sandow que habían apare-cido recientemente en Londres. La misma fue publicada en Ministerio de Justiciae Instrucción Pública (1901), El Monitor de la Educación Común, Buenos Aires,n. 335, p. 868.

11 También en el Archivo Histórico de la ciudad de La Plata se han registrado la ofertade libros de educación física por parte de la Dirección General de Escuelas de laProvincia de Buenos Aires, como por ejemplo, el texto “Gimnasia higiénica paraniñas” en el año 1879.

12 El Monitor de la Educación Común (1904). Ministerio de Justicia e InstrucciónPública, Buenos Aires, n. 371, p. 752.

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física de 1903 o el libro El Instituto Nacional Superior de EducaciónFísica de 1917 ambos escritos por Romero Brest.

Estructura de los manuales o textos de educaciónfísica

Los manuales o textos de educación física estaban dirigidos especial-mente a los maestros y en ningún caso a los alumnos, como sucedía conlos manuales pertenecientes a otras áreas escolares. Asimismo, es im-portante destacar que algunos manuales estaban dirigidos, además de alos docentes y a las escuelas, a las familias, a los padres y a los gimnasios.Esto último, fue frecuente particularmente en los textos de finales delsiglo XIX.

Los manuales de educación física del período 1880-1930 puedenser clasificados de la siguiente manera: aquellos que son completamenteteóricos, aquellos que son completamente prácticos (que en general estánacompañados de muchas imágenes) y aquellos que combinan justificacio-nes teóricas con prescripciones acerca de los ejercicios prácticos. Losprimeros incluyen un gran número y diversidad de justificaciones queprovienen, especialmente, del saber médico e higiénico. Entre los puntosa desarrollar se mencionan recurrentemente: las razones fisiológicas delos ejercicios, el organismo como ser susceptible de perfección y modifi-cación, las condiciones fisiológicas de la clase, la gradación muscularen los ejercicios, criterios médicos para realizar correctamente un ejer-cicio, medición de la salud, medición de la fuerza y de otras aptitudesespeciales (Romero Brest, 1911) y otras del mismo carácter. Todas estasargumentaciones “teóricas” estaban firmemente instaladas a partir delsaber médico. Éste fue instaurado en la escuela a partir de la prácticahigiénica teniendo la misma un alto componente moralizador. Los ejer-cicios, la gimnasia, los juegos, la gimnasia calisténica, la gimnasia meto-dizada, las rondas y los cantos tuvieron en la medicina y, particularmente,en la fisiología, su más fiel defensora. También han tenido un lugar, enla estructura del texto, las argumentaciones pedagógicas de la disciplina,en particular, las relacionadas con el lugar del docente, el lugar del alu-

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mno, el método correcto, la organización de la clase y los criterios peda-gógicos de los ejercicios.

Los textos, o mejor dicho los manuales de neto corte práctico, pre-sentan una estructura con unas pocas páginas destinadas a justificar muyescuetamente la práctica y en su mayor parte, a formular prescripcionesacerca de las diferentes ejercitaciones y de su universo de posibilidades:preparatorios acompañados por el canto, con diferentes elementos (palos,argollas, bastones), de orden, de andar y orden, de pecho, vocales, delhombro, codo, brazo y mano, cabeza y cuello, tronco y cintura, rodilla,pierna y del pie y combinados, rondas escolares13, rondas metodizadas,juegos de carrera de persecución, de carrera de velocidad, de saltos, demovimientos mixtos y juegos a la pelota, juegos intensos y sencillos,ejercicios gimnásticos, metodizados y de respiración, entre otros. Lamayoría de los ejercicios están acompañados de imágenes que muestrancómo realizarlos correctamente. La corrección no sólo regula lo que sepuede o no se puede hacer con ciertas partes del cuerpo; sino que confi-gura una geometría espacio-temporal con su respectiva gradación. To-das las prescripciones están acompañadas de voces de mando (voz deprevención o atención, voz preparatoria y voz de ejecución). Muy raravez se explican las razones de todas estas indicaciones.

Los textos o manuales mixtos combinan ambas formas. Por un lado,amplia justificación teórica (higiénica, moral y pedagógica) y, por elotro, pormenorizada prescripción de las ejercitaciones a realizar, acom-pañada de una importante cantidad de iconografía a modo de ejempli-ficación.

Todos estas modalidades tenían una característica en común en suestructura, la ausencia de bibliografía consultada. Sólo algunas excepcio-nes mencionaban ciertas notas al pie de página o hacían referencia adeterminados autores, los cuales han sido citados recurrentemente:Demeny, Chavigny, Spencer, Tissie, Herbert y, especialmente, el Dr.Lagrange. La mayoría de ellos médico-fisiólogos.

13 Las rondas escolares son una forma de ejercicios con el fin de asociar en al escuelaprimaria el canto a la gimnástica. Ver: Górdon (1913).

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Por último, con independencia de tal clasificación, la mayoría de losmanuales de educación física muestran la siguiente característica: laforma de denominar a la disciplina en cuestión es múltiple y variada,pasando por un amplio abanico léxico: educación física, ejercicios físi-cos, ejercicios metodizados, educación gimnástica, juegos escolares,rondas escolares, gimnasia higiénica, juegos y actividades naturales ycalistenia y gimnasia, entre otras. Dichas denominaciones, aparecen enlos títulos o subtítulos de los textos o manuales. Las mismas no son unmero cambio terminológico sino que implican tratamientos corporalesdiferentes para el ámbito escolar.

Justificaciones y fines de la educación física

En primer lugar, la educación física, la gimnástica higiénica, lagimnasia, el juego, el ejercicio y las rondas se reseñaron como mediosprivilegiados para educar íntegra y totalmente a las personas, adoptandoun tratamiento diferenciado según se tratara de un niño, de una niña o demujeres y hombres adultos. Esta forma de justificar la asignatura seríauna constante en todos los textos revisados. Por ejemplo, el famosoManual de calistenia y gimnasia de Watson argumenta lo siguiente: laimportancia de la cultura física está vinculada con la necesaria“compensación de la cultura intelectual o moral”. El fuerte énfasis en laeducación integral, cuyos aspectos abarcaban la moralidad, laintelectualidad y la parte física daban cabida a la necesidad de un cuerposano, robusto y ejercitado. Romero Brest en el libro La educación físicaen la escuela primaria: su organización y sus resultados de 1909, insis-te en que “el criterio fundamental que preside la enseñanza física estriple: fisiológico, social y educativa” (Romero Brest, 1909, p. 42). Enotro libro escrito en 191314 por un inspector de educación física de lasescuelas de la provincia de Buenos Aires y ex alumno del Instituto Su-perior de Educación Física, Manuel Górdon, con prólogo de Romero

14 Rondas escolares; sus condiciones pedagógicas y fisiológicas.

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Brest, se afirma que “si el Sistema Argentino de Educación Física pre-coniza la ronda como elemento capaz de educar, es persiguiendocondiciones físicas, morales, sociales e intelectuales, que son las queredondean la educación integral” (Górdon, 1913, p. 16).

Tal integralidad legitimó a los ejercicios físicos como parte de laformación física en particular y de la educación de la escuela, en general.De esta manera, Pedro Franco en el texto La educación física en laescuela primaria explicita que “mente del niño, alma del niño, cuerpo delniño. La escuela primaria debe estar al servicio de estos tres elementos,simultánea y paralelamente, y sino, no será nada” (Franco, 1926, p. 7).

En segundo lugar, la educación física, la gimnástica higiénica, lagimnasia, el juego, el ejercicio y las rondas fueron justificadas a partirde los saberes médico-higiénicos. Como afirma Watson “todos los ejer-cicios están arreglados de acuerdo con los principios bien conocidos dela anatomía, de la fisiología y la higiene”. Sea a través de la calistenia, lagimnasia o las rondas escolares; los criterios de justificación de las acti-vidades a realizar son siempre los mismos: “rondas metodizadas conarreglo a las exigencias fisiológicas que preconiza el sistema argenti-no”. “Las rondas fisiológicamente contribuyen al desarrollo intenso delos pulmones por intermedio de sus cantos, a la ampliación toráxica y ala educación de los centros volitivos siendo consecuencia de esto lamejor disciplina mental” (Watson, 1887, p. 22). “La ronda debe tenerefectos fisiológicos (excitación de la circulación, de la respiración, delos músculos, de las masas musculares y regularización de los fenóme-nos fisiológicos excitados) y pedagógicos (la ronda debe ser completa,debe ser interesante, debe ser disciplinada, debe ser simultánea)” (idem,pp. 44-45).

La propuesta de Franco va en la misma dirección: “el ejercicio por losjuegos es higiénico y fisiológico: hace trabajar todos los músculos y to-das las partes del cuerpo; despierta la necesidad de respirar y acelera lafunción respiratoria. Al recibir la sangre más oxígeno, la circulación tam-bién se acelera, y todo el organismo recibe sangre renovada” (Franco,1926, p. 19).

Todas estas justificaciones que perseguían un efecto higiénico estabanrevestidas por un halo de cientificidad. Como afirma Romero Brest, en

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los Cursos normales de educación física (sus resultados) es necesario“encarar con criterio científico la resolución del problema de la educaciónfísica en su doble faz de objetivo y de aplicación práctica” (RomeroBrest, 1903 p. 50). En otro texto del mismo autor expresa que la metáfo-ra de la cientificidad estará representada muy especialmente por el mé-todo didáctico: “los procedimientos de la Educación Física debieran sercientíficos y no abandonados al empirismo más absoluto” (Romero Brest,1909, p. 12).

En tercer lugar, y en relación con los fines, hay una clara orientaciónde esta disciplina a la moralización de la vida saludable. Entre los valo-res a inculcar a través de los ejercicios físicos aparecen insistentementela obediencia, la disciplina, el orden, la formación de la voluntad, laformación del carácter, el vigor, las fuerza, la prontitud, la firmeza, laseguridad, la gracia y la perfecta uniformidad.

Como afirma Thamier en el libro Educación física: guía teórico-práctica del profesor, “nuestro concepto es amalgamar a nuestro carác-ter el hábito de la gimnasia racional, como medio de educar al cuerpo yhacer fuerte nuestro organismo, queremos cimentar la practica delorden porque lo reputamos una virtud, queremos que los niños jueguen,porque la alegría y el entusiasmo que resultan de la competencia se for-talece al corazón y se aprende a tener resolución y energía” (Thamier,1907, p. 20).

Al mismo tiempo, que los ejercicios contribuyen a configurar ununiverso moral como parte de un proceso civilizador más amplio tambiénse apela a que a través de los mismos se logre la construcción de unfuerte sentido de argentinidad, de patria y de grandeza. Como afirmaGórdon, “la moralidad que descansa en las condiciones físicas eintelectuales [...] crea el tipo que la humanidad busca, de carácter ho-nesto y de inteligencia sana, que sepa en su vida posterior cumplir consu misión de ciudadano y padre de familia” (Górdon, 1913, p. 18). “Laobligación de la escuela es formar el carácter nacional, despertar el amora la patria, crear hábitos de labor y lucha, desarrollar la solidaridad so-cial, despertando un instinto único que marque el timbre de nuestranacionalidad, al más alto tope de nuestra independencia” (idem, p. 19).Estos son los fines a que se tiende con “el Sistema Argentino de Educa-

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ción Física con sus diferentes formas de aplicación entre las cuales sesitúa a las rondas” (idem, ibidem). Górdon finaliza la cita repetiendo lafrase de Guth Muth: “es por la patria que trabajamos aún cuando parez-ca que jugamos” (idem, ibidem, el destacado es nuestro).

Thamier, no sale de estas normas cuando explicita los fines de laeducación física “Nuestro país, quizás sea el que más necesite de laeducación del carácter, debido a la diversidad de razas que lo pueblan.Seguramente no será recojido inmediatamente el fruto, pero, buena esnuestra tierra, no es toda mala la semilla que en ella se arroja y nadiepodrá afirmar que este ideal no llegara a tomar las proporciones queanhelamos, siempre que se cuide, como cuidamos de nuestra propiaexistencia, de la buena educación del niño” (Thamier, 1907, p. 12). Amodo de ejemplo, este autor destaca el rol de la disciplina en el contextoanglosajón: “Todos sabemos que los juegos al aire libre son estimulan-tes, vivificantes y predisponen al espíritu a la combatividad; esos tonos,aparte de sus efectos fisiológicos son bien aprovechados en los paísescuyo temperamento tiene por base linfáticos y a los biliosos mas que anerviosos y sanguíneos y de ahí resulta que los pueblos anglosajonesaprovechen en todas sus fases los juegos, el foot-ball, el criquet, el poloetc., por cuanto cuentan en su haber el carácter y la educación esencial-mente práctica y respetuosa y la educación de la familia es otra fuentede importantes recursos prestando una grande ayuda a los institutos ycolegios” (idem, ibidem).

Luego de analizar estas regularidades presentes en los textos ymanuales queda claro que la distinción de los efectos higiénicos y moraleses difusa ya que al lado de criterios fisiológicos, de búsqueda de unacierta noción de salud y de un desarrollo de ciertas cualidades motricescomo agilidad, fuerza, resistencia, gracia o destreza se entremezclanvalores como la perseverancia, el hábito al trabajo, la puntualidad, elrespeto a la norma, la obediencia a la rutina, entre otros. Todo ello hacontribuido a la conformación de un proceso civilizatorio.

Tanto las justificaciones como los fines de la educación física semanifiestan de forma diferente en caso de estar dirigida a varones o a lasmujeres. Tal diferencia no implicó reciprocidad sino más biendesigualdad y cierta jerarquización. Tal como afirma Wernicke, “a

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primera vista, y desgraciadamente interpretado así por muchos, es elvarón el favorecido en este caso y sólo a él se refieren los que hablan dela educación física; y no obstante, es la naturaleza física de la mujer laque reclama doblemente esa ayuda, pues su vida toda, reglamentada porel qué dirán, por falsos prejuicios, por la moda, por consideraciones detoda especie y por sus ocupaciones, pide una ayuda para luchar contrasu debilidad natural” (Wernicke, 1904, p. 5).

La persistencia en la conceptualización de una cierta naturalezafemenina no hizo más que esencializarla y en consecuencia, someterla.En nombre de la naturaleza femenina se ocultó la exclusión histórica demuchas mujeres.

En este punto, la educación física no ha quedado al margen de esteproceso, insistiendo en un “supuesto destino femenino” y manteniendo ladistinción jerárquicamente diferenciada. Como afirma el Dr. Drachmann“es a ella a quien hay que fortalecer para que obtenga las fuerzas necesa-rias para el cumplimiento de su deber, de su alta misión, apartándola deesa vida indolente, sedentaria; haciéndola tomar gusto por los juegos alaire libre, por el movimiento, por esos placeres sanos e higiénicos, sin quepor ello pierda nada de su dignidad de mujer, sin que esté expuesta a llegara ser una copia ridícula del hombre” (Drachmann, 1879, p. 6).

En todos los casos, las argumentaciones de la educación física de lamujer están vinculadas con “cierta estética femenina” apetecible para elvarón y con aspectos relativos a supuestas enfermedades que deben sercorregidas y extirpadas. Con relación a lo anterior, el Dr. A. G. Drachmannindica que “los ejercicios satisfacen las exigencias de la belleza comode la salud [...] La anemia y la nerviosidad son dos enfermedades conque tienen que luchar las niñas. Las dos se producen por falta de ejercicioy demasiada ocupación de la inteligencia y la fantasía. Son enfermedadesque aparecen principalmente en las niñas de clase acomodadas”.

Cuestiones didácticas-pedagógicas

En el marco del discurso pedagógico moderno, todos los autoresconfiguran el lugar del docente como aquel que detenta el lugar del

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saber a través del método de instrucción simultanea, es decir, un docen-te enseña al mismo tiempo, los mismos conocimientos a un grupo dealumnos. Este método, en el marco de los ejercicios físicos, tendía cla-ramente al control y a la vigilancia del cuerpo infantil, en el proceso deescolarización. El docente era quien ejercía la “vigilancia” delcomportamiento de los alumnos. Su efecto se producía a través de lamirada del maestro, quien cuidaba que cada uno ocupe el lugar exactoasignado por la institución escolar. Para ello, recurrió a una de lasestrategias centrales de la propuesta instaurada, en esta pedagogía: lavoz de mando. La misma permitió prescribir no sólo cuando debíanrealizarse los movimientos y como hacerlos, sino también prevenir ycorregir aquellas ejercitaciones incorrectas o equivocadas. Como afir-ma Watson “el instructor jamás les exige (al alumno) que tomen unaposición o que ejecuten un movimiento, hasta que lo ha explicado exacta-mente y él ejecuta el movimiento, uniendo así el ejemplo al precepto”(Watson, 1887, p. 18).

El modelo de enseñanza se basa en la imitación o copia del ejerciciodesde el instructor hacia el alumno. Siguiendo a Bancroft “cuando setoma por primera vez un nuevo ejercicio, la maestra ejecutará elmovimiento ante la clase, para que los alumnos, dándose cuenta de él loejecuten por imitación y no por explicaciones verbales que le sean dadas[...] por medio del método imitativo los resultados serán más rápidos y nose perderá la atención” (Bancroft, 1904, p. 1123). En éste modelo pedagó-gico-didáctico, predomina esencialmente el binomio imposición/aceptación. Queda claro que la posición del alumno es de repetir y aceptartodo aquello que el docente o instructor propone. Como afirma Górdon“el alumno debe ser disciplinado [...] y debe habituarse a la subordinacióny absoluta obediencia racional, al sentido de la palabra o de la música,conforme a las indicaciones del maestro” (Górdon, 1913, p. 45).

En relación con lo anterior, Thamier indica que el “profesor estableceuna buena base de orden y disciplina para lograr desarrollar leccionesde gimnasia con éxito. La desorganización y la poca disciplina influyenperniciosamente en el espíritu de los escolares y hacen peligrar esaenseñanza [...] El orden, la disciplina y el hábito por los trabajos degimnasia elemental tiene en su contra la tendencia del niño que prefiere

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jugar, correr, disfrutar la libertad, no verse cohibido por las exigenciasde la educación” (Thamier, 1907, p. 13).

En relación con el método pedagógico-didáctico las consideracionesno sólo se circunscriben a la imitación sino también a la una pormenori-zada metodización de la enseñanza y a una gradualización exacta detodas las actividades. Como ha juzgado Romero Brest era necesario y“oportuno comenzar la metodización de las clases” (1909, p. 28) y la“graduación exacta y dosificación científica” (idem, p. 39).

La metodización de la enseñanza construye una geometría espacio-temporal. En la misma, el grupo no era una masa indefinida sino que seubicaba en un espacio que era serial. Vale decir, un lugar para cada uno,una persona por cada lugar. El todo constituía una serie que tenía senti-do como conjunto en un orden particular, en donde la cuadriculacióndel espacio escolar fijaba los cuerpos de acuerdo al lugar que ocupabaen la relación de saber-poder.

Esta organización espacio temporal debía realizarse a través demovimientos rítmicos, con sus respectivas repeticiones. Se insistía en elpalmoteo, en el ritmo perfecto y en los movimientos simultáneos. Latendencia a la uniformidad se establecía ya que muchos estudiantespractican el mismo ejercicio bajo la dirección del instructor. En general,se prescribía un orden de los movimientos, siendo al principio más len-tos y más acelerados al final. La regulación del tiempo llega al extremo,cuando el docente brindaba el descanso al final de cada parte de la lección.

Es importante destacar que, no solo hay una regulación del tiempoal interior de las actividades desarrolladas en las clases de ejerciciosfísicos, sino que estos tienen establecidos un lugar temporal en relacióncon las restantes asignaturas. Como afirma, Romero Brest “las horasde la mañana serían dedicadas a las disciplinas mentales y las de latarde a las físicas, en términos generales” (idem, p. 17). En este punto,no hay plena coincidencia, algunos autores afirman que “es mejorhacer gimnasia una hora por la mañana” (Drachmann, 1879). Tampocohay acuerdo respecto a la cantidad de tiempo que debe emplearse parala realización de las clases ni en la periodicidad de las mismas. Algunossugieren veinte minutos todos los días y otros una hora, tres veces porsemana.

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La contribución en la construcción de este orden corporal no era igualpara los varones que para las mujeres. En todos los textos y con indepen-dencia de la actividad prescrita se indica que se deberá tener en cuenta,entre las múltiples diferencias: la del sexo. Es decir, todos los autoreshacen referencia a la necesaria adaptación y adecuación de los ejerciciosen función a los sexos. Sin embargo, las cualidades y los fines a educareran diferentes; siendo la fuerza una propiedad históricamente asociada algenero masculino: “la niña es tan amiga de la actividad y del movimientocomo el varón: la carrera, el salto en la soga, los juegos a la pelota, gustantanto a uno como a la otra. Es un error creer que esos movimientos no seande su agrado ni naturales en ella. El varón no la aventajará en velocidad,agilidad y destreza, pero sí en la fuerza. Es esta razón que me ha guiadopara cambiar las leyes de algunos juegos conocidos y practicados ya porlos varones” (Drachmann, 1879, pp. 7-8).

Esta diferenciación esta claramente visibilizada cuando se prescriben,juegos solo para varones o juegos solo para niñas.

En relación con la vestimenta y a los materiales sucede algo similar.Se determina cómo debe vestirse el varón y la mujer (con qué tipo deropa, los colores que más se adaptan a la actividad “masculina” o “feme-nina”, la calidad de las telas etc.). Por ejemplo, en el texto de Watson sedetalla que “un hombre no debe usar una capa española, mientras mane-ja un mayal o un par de mazas indias. Una mujer no debe hacer mantecacuando lleva anchas mangas colgantes ni caminar por calles enlodadasarrastrando las faldas. El vestido de la mujer es corto y ancha la faldaalcanzando solo la mitad de la pantorrilla. Los calzones van hasta lostobillos. La tela es franela en todas las estaciones del año tanto paravarones como para mujeres. El traje de caballero es suelto y cómodo. Siusan ropa de calle, los caballeros se quitarán sus levitas y las damas usarántiras elásticas para levantar las faldas” (Watson, 1887, pp. 22-23). Lavestimenta además debía ser cómoda y decente, conveniente y adecuada,bella de forma y color, sencilla, genuina en armonía con la naturaleza.En relación con la vestimenta femenina todos los autores coinciden enmostrarla con todo el cuerpo cubierto.

Tomando como referencia, los materiales básicamente las diferen-cias entre los utilizados por los varones o por las mujeres se fijan a partir

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del tamaño y del peso de los mismos “mazas largas y mazas cortas estándivididas para hombres y para mujeres y jóvenes. La diferencia radicaen el peso y en la longitud” (idem, pp. 148-149).

Por último, la iconografía que se encuentra predominantemente pre-sente en los textos prácticos muestran dibujos y/o fotografías de varonesy en menor medida mujeres ilustrando los ejercicios explicados. Laelección de ilustraciones de mujeres o de varones no es aleatoria sinoque están vinculadas a ciertas cualidades ligadas “imaginariamente” alo masculino o a lo femenino.

Consideraciones finales

Una de las primeras particularidades que se pueden destacar en lostextos y manuales que hacen referencia a los ejercicios físicos (la gimnás-tica higiénica, la gimnasia y el canto, el juego, las rondas, la gimnasiametodizada, entre otras en el período fundacional de fines del siglo XIXy primeras décadas del XX es que los mismos no fueron objeto de regu-lación por parte del Estado Nacional; no obstante, parte de los materialesque se han registrado han sido puestos en circulación por mecanismosimplícitos, o más bien sutiles, que emanaban de éste.

Una segunda particularidad es que todos los textos estuvieron diri-gidos a docentes y otros actores que ocupaban el lugar de poder-saber,no registrándose textos dirigidos a los alumnos. En los mismos estabanclaramente delimitados el lugar del docente como el poseedor del saber,el lugar del alumno como receptor y ejecutor de las ordenes establecidaspor el docente o quien ocupará ese lugar y el método a ser utilizadodestacándose la imitación a través de la instrucción simultánea.

Todas las prescripciones estaban dirigidas al cuerpo con un nivel dedescripción minucioso contribuyendo a configurar un cierto orden cor-poral detallado y meticuloso. El cuerpo se constituyó en objeto demúltiples prácticas – que excedían a los ejercicios físicos – orientadas ahomogeneizar y uniformar ciertas actitudes, movimientos, gestos, pos-turas, posiciones y sentimientos, que se definieron como “normales” enel marco de la institución escolar. Dicho orden, construyó diferencial-mente cuerpos masculinos y cuerpos femeninos.

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Este universo de prácticas estaba legitimado a partir de los saberesmédico e higiénicos y en menor medida, saberes provenientes de lapedagogía y de la psicología. En todos los casos las prescripciones teníanun alto poder moralizador.

Todo lo analizado hasta aquí ha contribuido a la conformación deun proceso civilizatorio que, en términos educativos, persiguió el idealde formar al buen ciudadano (varón), útil, productivo, obediente, dócil,sano, y racional que necesitaba un Estado moderno. Para consolidareste proceso, los ejercicios físicos se convirtieron en una táctica necesaria,dentro de una estrategia más general, para la construcción de un cuerpoapto para el trabajo, para un determinado estilo de vida moral y para ladefensa del territorio nacional.

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Historia de la cultura escrita

ideas para el debate

Antonio Castillo Gómez*

* Universidad de Alcalá. E-mail: [email protected]

Ante el desarrollo alcanzado en los últimos decenios por los estudios sobre la culturaescrita, el presente artículo ofrece una recapitulación de las principales trayectorias segui-das hasta la fecha junto a una serie de reflexiones con vistas al porvenir de dicho campo deinvestigación. En la primera parte se examinan las dos principales corrientes que han dadolugar a la historia de la cultura escrita: la historia social de la escritura, muy ligada a la miradarenovadora de ciertos paleógrafos encabezados por el italiano Armando Petrucci; y lahistoria del libro y de la lectura, con mayor arraigo en el mundo anglosajón, Francia oAlemania. En la segunda se entra de lleno en la definición de la historia de la cultura escritacomo una forma específica de historia cultural cuyo objetivo debe estar en la interpretaciónde las prácticas sociales del escribir y del leer. En tal sentido se considera imprescindibleque la historia de la cultura escrita se plantee como historia social y que otorgue unaespecial relevancia al análisis de las formas materiales de lo escrito, tanto por lo que indicanrespecto a los diferentes grados de competencia gráfica como por lo que sugieren enrelación a las modalidades de apropiación de lo escrito.HISTORIA DE LA CULTURA ESCRITA; HISTORIA CULTURAL; HISTORIA SOCIAL;ESCRITURA; LECTURA; HISTORIOGRAFÍA.

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A modo de balance

Conste, para empezar, que no pretendo sostener una concepción ex-clusiva de lo que debe ser o no la historia de la cultura escrita ni registrarsu denominación de origen; pero tampoco quiero rehuir la oportunidad deeste convite para presentar mi postura al respecto y, en lo que pueda,para salir al paso de la confusión y mescolanza que suele darse cada vezque se “descorcha” una nueva forma de hacer historia. En cierto senti-do, con la historia de la cultura escrita puede estar sucediendo algo simi-lar a lo que Josep Fontana dijo respecto del auge que la historia de lasmentalidades tuvo en otros momentos: que “por las muchas aberturasque deja la indefinición conceptual se pueden introducir en el campo – yno hay duda de que lo han hecho – toda clase de embaucadores. Y, loque es peor, podemos estar ofreciendo a las jóvenes generaciones dehistoriadores que se inician en la investigación una cobertura puramentenominal – tanto más atractiva por la libertad que ofrece – para una prácticacarente de rigor, que puede producir un enorme volumen de literaturainsustancial”1.

Si así fuera quedaría invalidado tal campo de investigación. Por ello,ante la sola presunción del riesgo, entiendo que urge reflexionar sobresus cometidos y límites partiendo de una condición sin la cual no es posibleplantear ni esta ni cualquier otra forma de aproximarnos al devenir de la

historia: su carácter esencialmente social.

1. La escritura en toda su complejidad

“La escritura puede ser todo aquello que nosotros seamos capacesde leer en ella”2. Esta apreciación de Cardona muestra en su esencia lariqueza de matices que podemos valorar el analizar el lenguaje escrito, la

1 Josep Fontana, La historia después del fin de la historia, Barcelona, Crítica, 1992,pp. 111-112.

2 Giorgio R. Cardona, Storia universale della scrittura, Milano, Mondadori, 1986, p. 11.

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pluralidad de perspectivas desde las que se puede abordar su estudio. Y,sin embargo, este proceder ha estado prácticamente ausente de la laborde muchos de los estudiosos que se han ocupado de la historia de laescritura. Hasta hace poco la mirada puesta en ella era excesivamentelineal, empeñada tan sólo en la vana pretensión de clasificar y medirdicho instrumento de comunicación; como si estuviera desprovista decualquier implicación con las sociedades que lo han empleado a lo largodel tiempo. Insistía, pues, en una concepción de la escritura en términospuramente mecánicos y gráficos, sin descender a cuanto comporta sucarácter de sistema de comunicación, cual signo descontextualizado.

Mas allá de esos corsés, al recorrer las sendas abiertas por determi-nados investigadores, nos topamos de inmediato con las inteligentesobservaciones del antropólogo Jack Goody. Para éste, el estudio del hechoescrito no se puede abordar como si la escritura fuera una “entidadmonolítica” o una “destreza indiferenciada”; sino justamente al contra-rio, siendo conscientes de que todas “sus potencialidades dependen de laclase de sistema que prevalece en cada sociedad”3. Sin duda alguna loque no han sabido hacer cuantos han prescindido de la multiplicidad queencierra y la han reducido a un mero signo lingüístico. Recuperar la ampliariqueza del vocablo es, por ello, unas de las condiciones de partida sobrelas que debe levantarse la historia de la cultura escrita, donde viene comoanillo al dedo la definición aportada por Attilio Bartoli Langeli, para quienla escritura, término complejo donde los haya,

significa un universo, y no sólo un instrumento, comunicativo, cognoscitivo,

expresivo; un punto de intersección entre lo individual y lo colectivo; un

sistema de signos y de normas, su apropiación y su uso (activo y pasivo); el

acto del escribir y su producto, tanto en la cualidad técnico-material como en

la cualidad de texto (contenido y estructura)4.

3 Jack Goody, Introducción, en Jack Goody (comp.), Cultura escrita en sociedadestradicionales (1968), Barcelona, Gedisa, 1996, p. 13.

4 Attilio Bartoli Langeli, “Ancora su paleografia e storia della scrittura: a proposito diun convegno perugino”, Scrittura e civiltà, n. 2, 1978, p. 281.

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Desde esta perspectiva la escritura adquiere pleno valor comocategoría de análisis histórico cuyo estudio debe atender a las conse-cuencias sociales y culturales derivadas de la implantación y extensióndel código escrito5. En suma, el proyecto que sostiene la historia de lacultura escrita trasciende la consideración de la escritura como un merosistema gráfico para interrogarse principalmente por sus distintasfunciones y las consiguientes prácticas materiales, siempre en refe-rencia a las respectivas sociedades históricas y teniendo en cuenta queen cada momento la sociedad ha estado formada por alfabetizados yanalfabetos. Por esa razón, la cultura escrita en cuanto práctica socialnos sumerge en una aventura tan apasionante como la de reconstruir, apartir de los propios testimonios escritos y sin obviar su análisis formal, elsignificado y el uso que le han dado las respectivas sociedades a lo largodel tiempo.

El hecho escriturario, fuera de su instrumentación intelectual o literaria,es, en sí mismo, en la cotidianeidad de sus aplicaciones, un fenómeno llenode matices, objeto de distintos puntos de vista, y su estudio debe contribuira recomponer el puzzle de la historia. A la postre, saber por qué razonesse ha hecho uso de la escritura en cada momento y sociedad, conocer ladistribución de las capacidades de escribir y de leer, las materialidades delo escrito, y los distintos lugares, espacios y maneras en los que se haexperimentado su recepción y apropiación, en fin, las prácticas de la es-critura y de la lectura, es una forma de hacer historia cultural.

Entendida así, la cultura escrita pone de manifiesto la rica gama de susmatices y se configura como un espacio de investigación abierto al diálo-go interdisciplinar. Al hilo de esto es obvia la conveniencia de deslindar lasveredas de este proyecto científico aunque sólo sea para que no terminedisuelto en una especie de indigesta acumulación de las llamadas “cienciasauxiliares”. Comparto totalmente que la erudición de éstas, cuyo concurso

5 Jack Goody, La domesticación del pensamiento salvaje (1977), Madrid, Akal, 1985,p. 145. Forma parte de una larga discusión sobre las virtualidades del fonocentrismoy el logocentrismo, cuyos rastros se encuentran en Platón, siguen en Aristóteles,continúan con Bacon o Rousseau y, tras pasar por el estructuralismo lingüístico,llegan hasta la teoría de la deconstrucción de Jacques Derrida.

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se ha reclamado en diferentes ocasiones, es indispensable para elaboraruna historia de la cultura escrita que haga honor a su nombre y que tengaperfilados sus contornos en el ámbito de la más heterogénea historiacultural; pero sin caer en el error de convertirla en una mezcla confusa deconocimientos técnicos y descriptivos. Lejos de esta tentación, debe asumirlos conocimientos reportados por la erudición para situarlos en un proyectosingular y distinto que aspire a captar y determinar el papel desempeñadopor la cultura escrita en cada una de las sociedades que se han sucedidoa lo largo del acontecer histórico.

Algo, en fin, que no debe confundirse ni con la mera identificación delos tipos gráficos usados en un determinado momento ni tampoco con lapura descripción de un documento, un libro, una inscripción o cualquier otrotestimonio escrito. Bajo ese enfoque se hace imprescindible que la historiade la cultura escrita se plantee como un proyecto de alcance interdisci-plinar alimentado por los problemas y enfoques propios de cada una de lasmaterias implicadas en su construcción. Al decir de Gimeno Blay, como“una práctica de lectura que vagabundea, que liba distintos pólenes, queaprovecha las invenciones y sugerencias de los demás, que se proponesuperar el nivel alcanzado por sus predecesores”6. Veamos ahora loscaminos seguidos en algunas de esas libaciones.

2. Escritura y lectura: trayectorias separadas

En el caso de que hubiera que hacerlo, es difícil establecer un mo-mento fundacional para la historia de la cultura escrita. Como muchopodría sostenerse que el reconocimiento y uso del término prácticamentese circunscribe a la segunda mitad de la pasada década de los noventa.Ha sido en ésta cuando su campo de investigación se ha empezado aperfilar como fruto de una triple conjunción: historia de las normas, capa-cidades y usos de la escritura; historia del libro y, por extensión, de losobjetos escritos (manuscritos, impresos, electrónicos o en cualquier otro

6 Francisco M. Gimeno Blay, De las ciencias auxiliares a la historia de la culturaescrita, Valencia, Universitat de València: Seminari Internacional d’Estudis sobre laCultura Escrita, 1999 (arché, 3), pp. 19-20.

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soporte); e historia de las maneras y prácticas de la lectura7. En otraspalabras, debe constituir el punto donde confluyan dos tradiciones quehasta la fecha habían descrito caminos paralelos: de un lado la historia dela escritura, y de otro la historia del libro y de la lectura.

La primera de esas trayectorias está directamente relacionada con elpaso desde las teorías que vieron en la escritura un signo desarraigado deltejido social hasta la conceptuación de la misma como un productoinseparable de la sociedad que lo usa. De un lado, hasta bien entrado elsiglo XX, la paleografía y otras disciplinas eruditas centraron sus objeti-vos en la fijación de los textos y en la determinación de la autenticidad: bienpor las reclamaciones de tierras planteadas por la nobleza y la Iglesia enlos siglos XVIII y XIX8; bien por la fe ciega en los documentos que sostuvoel proyecto de historia-nación tan característico del positivismo decimo-nónico. De otro, con la publicación del Curso de lingüística general(1915) de Ferdinand Saussure se impuso la idea, largo tiempo mantenidaen los estudios sobre el lenguaje, de que la lengua era un código autónomomientras que la escritura no era más que “un disfraz” que “vela y empañala vida de la lengua”, de forma que desprenderse de ella era el “primeropaso hacia la verdad, pues el estudio de los sonidos por los sonidos mismoses lo que nos proporciona el apoyo que buscamos”9.

Así pues desde varias disciplinas se difundió una concepción de laescritura como algo ensimismado, cual Orfeo absorto en su propia con-templación. Ajena, por lo tanto, a cualquier planteamiento que la reclamaracomo un medio de comunicación inseparable del avatar humano y de las

7 Roger Chartier y Jean Hébrard, “Prólogo: morfología e historia de la cultura escrita”,op. cit, p. 11.

8 En ese sentido Francisco Gimeno Blay señaló hace algún tiempo cómo el nacimientode la paleografía en España se debió a esas circunstancias y ha vuelto sobre ello alinterpretar las imágenes empleadas en la tercera edición napolitana del De rediplomatica (1789) de Jean Mabillon. Véase respectivamente: Francisco M. GimenoBlay, Las llamadas ciencias auxiliares de la historia. ¿Errónea interpretación?Consideraciones sobre el método de investigación en paleografía, Zaragoza.Diputación Provincial: Institución “Fernando el Católico”, 1986; y De las cienciasauxiliares a la historia de la cultura escrita, op. cit., pp. 1-8.

9 Ferdinand de Saussure, Curso de lingüística general, Madrid, Alianza, 1987, pp. 47y 50.

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transformaciones acontecidas a lo largo de la historia en las formas depensamiento y de organización social. Sin embargo, la ruptura con esecorsé se hizo evidente a partir de los años cincuenta y sesenta; es decir,coincidiendo con el ingreso en la época de las comunicaciones de masas,y al rebufo de las incertidumbres y cuestiones suscitadas por éstas.

El lingüista francés Marcel Cohen apuntó lo que debía ser el nuevocamino en sus obras L’écriture (1953) y, sobre todo, La grande inventionde l’écriture (1958), en cuyo comienzo puso una frase que era toda unadeclaración de intenciones: “El uso de la escritura está en función de suutilidad en una sociedad dada”. De hecho unos años antes, en 1955, altiempo que Claude Levi-Strauss afirmaba que “la escritura es una cosabien extraña”, el ruso V. A. Istrin, otro lingüista, al comentar la primeraobra de Cohen, no perdió la oportunidad de advertir que “las necesidadessociales de escritura, unidas estrechamente al desarrollo de toda lasociedad, condicionan las leyes históricas del desarrollo de la escritura”.

Aunque desde otro frente de investigación, vino a ser lo mismo quesostuvieron contemporáneamente el historiador polaco Alexander Gieystory el paleógrafo húngaro Istvan Hajnal. Para éste, en concreto, era insos-tenible pensar que la escritura hubiera evolucionado “a partir de sí misma,del mismo modo que ningún otro medio técnico se desarrolló a partir deun medio precedente, sino por su reciprocidad continuada en la sociedad”;por lo que “la escritura, al igual que las otras formas de civilización, es unmedio nacido del conjunto de la sociedad: su porvenir depende del caráctersistemático de su penetración en la sociedad”. Estas tesis, según ha evo-cado Armando Petrucci, adquirieron mayor relieve cuando el historiadorrumano Sigismund Jakó las difundió en el marco del X Congreso Inter-nacional de Ciencias Históricas (Roma, 1955), donde presentó un trabajocon el significativo subtítulo de Considerations sur l’étude de lapaléographie sur des nouvelles bases. En éste reservaba a la paleo-grafía “un papel independiente e importante en el terreno de la clarificaciónde las relaciones de la sociedad con la cultura”, partiendo de unamodificación de sus cometidos: “esta disciplina nueva – es decir, lapaleografía fundada sobre nuevas bases – debe ocuparse – además dela escritura y de su uso – de la historia del conocimiento de la escritura ydel corpus de presupuestos que conlleva, así como de la historia de todas

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las capas sociales que conocen su uso, es decir, de su papel social”.Entendida así, la paleografía tenía las puertas abiertas para evolucionar“de una disciplina empírica de la escritura, tal como ha sido concebidahasta hoy, en una historia de la escritura en la acepción más amplia deltérmino”10.

Al finalizar los años sesenta, estas llamadas de atención dieron lugara una verdadera revolución del concepto y método de la paleografía. Noya porque se dejara de lado la labor tradicional de la lectura y descripciónde las escrituras antiguas cuanto por la incorporación de nuevas pregun-tas. Hasta entonces, conforme apuntó Armando Petrucci, la paleografíase había mostrado muy experta al distinguir las tipologías gráficas y altratar de situarlas en el tiempo y en el espacio; mientras que prácticamentehabía renunciado a otras dos preguntas no menos fundamentales, el quiény el por qué de los testimonios escritos11. Puede decirse que, como resul-tado de esto, emergió entonces una nueva forma de hacer paleografíacuyo discurso estaba bien claro: “poner de relieve y convertir en objetode estudio las relaciones que se establecen, en diversas situaciones his-tóricas, entre los sistemas de escritura, las formas gráficas y los procesosde producción de los testimonios escritos, por un lado, y las estructurassocioeconómicas de las sociedades que elaboran, utilizan y manipulanestos productos culturales, por otro”12. Su trayectoria posterior ha condu-cido a una concepción de la paleografía cual historia global de la culturaescrita; esto es, según Petrucci, como una “historia de la producción, de

10 Tomo estos datos de Armando Petrucci, Historia de la escritura e historia de lasociedad (1989), Valencia, Universitat de València: Seminari Internacional d’Estudissobre la cultura escrita, 1999 (Arché, 1), pp. 5-6, a quien me remito para máspormenores sobre estos primeros pasos. Cito por esta edición pero debo recordarque el texto se remite a una conferencia pronunciada en junio de 1985 y que suprimera publicación, en italiano, data de 1989.

11 Armando Petrucci, “Scrittura e libro nell’Italia altomedievale. Il sesto secolo”, Studimedievali, año 2, vol. X, pp. 157-158, 1969.

12 Armando Petrucci, Historia de la escritura e historia de la sociedad, op. cit., p. 1.Evito entrar en más detalle dado que ya lo he hecho en otros trabajos: AntonioCastillo Gómez y Carlos Sáez: “Paleografía versus alfabetización. Reflexiones sobrela historia social de la cultura escrita”, Signo. Revista de Historia de la cultura es-crita, 1, pp. 133-168, 1994; Antonio Castillo Gómez, “De la paleografía a la historia

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las características formales y de los usos sociales de la escritura y de lostestimonios escritos en una sociedad determinada, independientementede las técnicas y de los materiales empleados”13.

Entre otras consecuencias, dicho enfoque ha tratado siempre de cor-regir y matizar la visión excesivamente cuantitativista de ciertos estudiossobre el alfabetismo, más si sabe los que integran la primera generación14.Además, su primera formulación coincidió con un periodo de especial aten-ción a las consecuencias sociales de la escritura, sin duda influido por elingreso en la época de las comunicaciones de masas. Recuérdese que en1962 Herbert Marshall McLuhan había publicado su emblemática obraThe Gutenberg Galaxy. The Making of Typographic Man, y que en1968 apareció el volumen Literacy in Traditional Societies, compiladopor Jack Goody, con el cual se puso de relieve el interés de la antropologíapor las implicaciones de la cultura escrita en las sociedades inicialmenteágrafas. En la introducción a la obra, el propio Goody, tras mostrar su extra-ñeza por la “poca atención que se ha prestado a la influencia ejercida porla escritura en la vida social de la humanidad”, a pesar de la importanciadesempeñada en los últimos 5.000 años, consideraba aún más llamativoel desafecto manifestado por investigadores de varios ramos:

Especialmente sorprendente es el escaso interés en la cultura escrita – y en los

modos de comunicación en general – que han mostrado los científicos sociales.

Los que trabajan en sociedades “avanzadas” dan por descontada la existencia

de la escritura y, en consecuencia, tienden a pasar por alto sus efectos

facilitadores sobre, por ejemplo, la organización de partidos, sectas y linajes

dispersos. Por otro lado, los antropólogos sociales han tomado como objeto

de las prácticas del escribir”, en Carlos Barros (ed.), Historia a Debate, II. Retornodel sujeto, Santiago de Compostela, Historia a Debate, 1995, pp. 261-271; y CarlosSáez-Antonio Castillo Gómez, “Paleografía e historia social de la cultura escrita: delsigno a lo escrito”, La Coronica. A Journal of Medieval Spanish Language andLiterature, 28/2, pp. 155-168, 2000.

13 Armando Petrucci, Prima lezioni di paleografía, Roma-Bari: Laterza, 2002, p. VI.14 Huelga decir que la periodización en tres generaciones se debe a Harvey J. Graff,

“Gli studi di storia dell’alfabetizzazione: verso la terza generazione”, QuaderniStorici, XXII, 64/1, pp. 203-222, 1987 (Publicado originalmente en la revistaInterchange, 17/2, pp. 122-134, 1986).

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principal de su disciplina a las sociedades “prealfabéticas”, “primitivas” o

“tribales”, por lo que en general han considerado la escritura (en los casos en

que existía) simplemente como un elemento “intruso”. Pero aún cuando se han

investigado específicamente las diferencias entre sociedades, pueblos y menta-

lidades “simples” y “avanzadas”, los autores han omitido examinar las conse-

cuencias de la característica habitualmente empleada para definir la clase de

sociedad que están analizando, es decir, la presencia o ausencia de la escritura15.

Como resultado de estas distintas aportaciones el punto de mira sepuso en el estudio de la escritura en cuanto tecnología de comunicación.De un lado interesaba conocer los efectos de la razón gráfica en elpensamiento y en la organización social. De otro, las funciones atribuidasa la escritura y las consiguientes prácticas sociales considerando quecada sociedad está formada siempre de alfabetizados y analfabetos.

En la medida que hablamos de los usos dados al escrito, otro de losfilones que más ha contribuido a la actual definición de la historia de lacultura escrita concierne a la evolución experimentada por los estudiossobre el libro y la lectura. En principio, según puede verse por los trabajosgerminales de Henri-Jean Martin16, el interés estuvo puesto: por un lado,en el recuento de la producción libresca, sobre todo impresa, existenteen un determinado momento o lugar; y por otro, en el cálculo de su distri-bución de acuerdo a la condición de la persona, al sexo, la ocupación o ellugar de residencia. A partir de los asientos de libros consignados en losinventarios de bienes se pudo saber y evaluar el número de títulos poseídospor las distintas personas y la representatividad de las diferentes materias,lo que llevó a establecer auténticas radiografías librescas desde una pers-pectiva social. Al hilo de esto el libro pasó a ser reconocido como uno delos “nuevos objetos” que definieron el giro antropológico y cultural de laescuela de los “Annales” en la segunda mitad de los setenta, a la vez quese empezaban a sentar las bases de un cambio de rumbo. Significativa-

15 Jack Goody, “Introducción”, en J. Goody (comp.), Cultura escrita en sociedadestradicionales, op. cit., p. 11.

16 Henri-Jean Martin, Livre, pouvoirs et société à Paris au XVII e siècle (1598-1701),2 vols., Paris-Genève, Droz, 1969.

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mente Roger Chartier y Daniel Roche dijeron por entonces que el obje-tivo era “captar lo que una sociedad entera escribe o lee”17; pero paraesto fue necesario superar la historia de los libros como posesión y pen-sar en una historia propiamente de la lectura, es decir, de las maneras deleer y de las apropiaciones experimentadas por los lectores, incluyendolos oyentes de las lecturas en alta voz.

Este desplazamiento, que empezó a hacerse efectivo en la década delos ochenta, implicaba un nuevo objeto de estudio y, en consecuencia,nuevos métodos y nuevas fuentes18. De un lado, la historia de la lecturase ha enriquecido con ciertos préstamos tomados de la crítica literaria, enparticular de la estética de la recepción, dado el acento puesto por ésta enel acto de la lectura, esto es, en el momento en el que acontece el encuen-tro entre las categorías estéticas de las obras – la lectura implícita – y lasinterpretativas de los lectores – la lectura real. De otro, la mirada puestaen las modalidades del leer ha dado particular relieve a las formasmateriales, toda vez que éstas contienen claves importantes para apreciartanto los horizontes de lectura establecidos por los textos como las con-cretas apropiaciones señaladas por las notas autógrafas dejadas por loslectores y usuarios de los libros. Ciertamente al final es la libertad del lectorla que define el contenido específico de la apropiación; pero ésta puedeestar enunciada por la forma de los productos escritos, la composición delos textos o las diversas tipologías librescas19.

Ante la existencia de tantos lectores sin traza la reconstrucción de lalectura puede formularse a partir de las reglas de funcionamiento de los

17 Roger Chartier y Daniel Roche, “El libro: un cambio de perspectiva” (1978), enJacques Le Goff y Pierre Nora (dirs.), Hacer la historia, III. Objetos nuevos, Barce-lona, Laia, 1980, p. 119.

18 Roger Chartier, “De la historia del libro a la historia de la lectura” (1989), en su libroLibros, lecturas y lectores en la Edad Moderna, Madrid, Alianza, 1993, pp. 13-40;del mismo, el capítulo “Comunidades de lectores”, en El orden de los libros.Lectores, autores, bibliotecas en Europa entre los siglos XIV y XVIII (1992), Bar-celona, Gedisa, 1994, pp. 23-40; y Robert Darnton, “Historia de la lectura”, enPeter Burke (ed.), Formas de hacer historia (1991), Madrid, Alianza Editorial,1993, pp. 177-208.

19 Roger Chartier (dir.), Histoire de la lecture. Un bilan des recherches, Paris, IMEC

Éditions/Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme, 1995.

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textos, esto es, de las categorías y esquemas de percepción utilizados ensu producción, ya sean literarios, documentales o de cualquiera otra índo-le20. Esto último ha supuesto que la historia de la lectura reclame de factola colaboración de aquellas disciplinas que, como la bibliografía material,la paleografía o la codicología, más tienen que decir en el análisis mor-fológico de los testimonios escritos21. Naturalmente esto requiere que lasmismas rebasen la pura descripción técnica de los objetos escritos paraocuparse de las motivaciones sociales, económicas o políticas que rigenla producción textual, así como de las determinaciones de sentido implíci-tas en la materialidad de lo escrito. La forma entraña un acto de comuni-cación que se debe interpretar a partir de los contextos de producción yrecepción, valorando las estrategias culturales e ideológicas de las que sehace portador y las maneras en que se verifica la descodificación delmensaje, e incluyendo igualmente la reescritura que el texto puede expe-rimentar una vez en manos del lector.

Estas tesis comportan un claro rechazo de las posiciones sostenidaspor el New Criticism, que, “en estricta ortodoxia saussuriana, considerael lenguaje como un sistema cerrado de signos cuyas relaciones producensignificación por sí mismas”, de modo que “la construcción del sentidoqueda así desvinculada de cualquier intención o de cualquier control sub-jetivo, ya que se atribuye a un funcionamiento lingüístico automático eimpersonal”22. La aplicación de las leyes del estructuralismo al discursohistórico supondría explicar los textos como si fueran objetivos y

20 Roger Chartier, “Historia intelectual e historia de las mentalidades. Trayectorias ypreguntas” (1983), en El mundo como representación. Estudios sobre historia cul-tural, Barcelona, Gedisa, 1992, p. 40.

21 Donald F. McKenzie, Bibliography and the sociology of texts, London, The BritishLibrary, 1986 y Making meaning: “printers ot the mind” and Other Essays, ed.Peter D. McDonald y Michael F. Suarez, S. J., University of Massachusett Press,2002. Así mismo véase Peter Stallybrass, “Shakespeare, the individual, and thetext”, en Lawrence Grossberg, Cary Nelson y Paula A. Treicler (ed.), Culturalstudies, Nueva York–Londres, Routledge, 1992, pp. 593-612; y Margreta de Graziay Peter Stallybrass, “The materiality of the shakespearean text”, Shakespearequarterly, vol. 44, 1993, n. 3, pp. 255-283.

22 Roger Chartier, “De la historia social de la cultura a la historia cultural de lo social”,Historia Social, n. 17, 1993, p. 97.

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estuvieran provistos de una lógica interna ajena a las circunstancias dediverso cariz que influyen en su materialidad y contenido. Sería tantocomo negar la especificidad de los mismos, ocultar las condiciones socia-les que intervienen en el momento de su producción y poner en el mismoplano un texto histórico y otro literario, reducidos a la sola consideraciónde su narratividad. Un riesgo que la historia no puede correr por cuantosupondría sustituir los problemas reales del ser humano por los discursosreferentes a ellos, cuando no ocultarlos directamente; pero tampoco lahistoria de la cultura escrita dado que ésta carece de significado almargen del uso que le han dado las respectivas sociedades así como decuantos testimonios expresan las distintas competencias y formas deapropiación.

El porvenir de la historia de la cultura escrita

Si hasta hace poco la escritura y la lectura se han considerado como“objetos de estudio separados, movilizando saberes específicos y tradi-ciones nacionales extrañas las unas a las otras”, el objetivo de la historiade la cultura escrita pasaría justamente por “ensamblar, en una historia dela larga duración, los diferentes soportes del escrito y las diversas prácticasque lo producen o lo apropian”23. Se configura, en fin, como una formaespecífica de elaborar la historia cultural.

1. Historia cultural e historia de la cultura escrita

Naturalmente los objetivos y temas de la historia cultural son muchomás amplios, pues se vinculan a un concepto de cultura que podríacompendiarse en la definición de Peter Burke: “Cultura es el sistema designificados, actitudes y valores compartidos, así como de formas simbó-

23 Roger Chartier, “Avant-propos. Lire pour écrire, écrire por lire”, en Alfred Messerliy Roger Chartier (dirs.), Lesen und Schreiben in Europa, 1500-1900. VergleichendePerspektiven. Perspectives comparées. Perspettive comparate, Verlag-Basel,Schwabe & Co Ag, 2000, p. 10.

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licas a través de las cuales se expresa o encarna”24. Dicha propuestaentronca con la visión que de la historia cultural ofrece la moderna antro-pología, cuyas diferencias con los modelos precedentes, clásico y mar-xista, se pueden resumir en cuatro puntos:

1º. La ruptura con la división tradicional entre sociedades con culturay sin cultura, de manera que, al igual que los antropólogos, los his-toriadores culturales prefieren hablar de “culturas” en plural.

2º. La extensión del significado del término a fin de englobar una gamade actividades más amplia que antes, de tal forma que la vida coti-diana o la “cultura” cotidiana pasa a ser algo esencial.

3º. La incorporación de la ideas de la “recepción” y con ella el cambiode enfoque desde el que da al que recibe, lo que tanto tiene que vercon los actos de apropiación y las circunstancias que los envuelven.

4º.El rechazo del concepto marxista de la “superestructura”reemplazado por la tesis de que la cultura es capaz de resistir a laspresiones sociales e incluso de conformar la realidad, lo que hadespertado el interés creciente por la historia de las “represen-taciones” y, en particular, por la historia de la “construcción”,“invención” o “constitución” de los hechos sociales25.

Es evidente que dichas posturas han servido para rectificar un cierto“delito historiográfico”26: el que había llevado a pensar que lasmanifestaciones culturales eran meras correas de transmisión de losmodelos ideológicos dominantes. Retomando las tesis de Batjin sobre la“circularidad cultural”, distintos historiadores, caso de Carlo Ginzburg,Peter Burke o Roger Chartier, rompieron con toda visión estrechamenteclasista de la cultura, ya que el estudio de ésta demuestra que ciertos temas

24 Peter Burke, La cultura popular en la Europa Moderna (1978), Madrid, AlianzaEditorial, 1991, p. 29. Véase también Francisco J. Falcon, História cultural. Umanova visão sobre a sociedade e a cultura, São Paulo, Editora Campus, 2002.

25 Peter Burke, “Unidad y variedad en la historia cultural” (1997), en Formas dehistoria cultural, Madrid, Alianza Editorial, 2000, pp. 244-249.

26 La expresión la tomo de Armando Petrucci, “Dietro lo specchio”, en Alfred Messerliy Roger Chartier (dirs.), Lesen und Schreiben…, op. cit., p. 617.

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y motivos atribuidos a la llamada cultura “sabia” llegaron también a lacultura “popular”, y al revés. Abundando en ello, Chartier llamó la atenciónsobre el orden de las prácticas y sus varias “apropiaciones”, esto es, lasdistintas interpretaciones que cada sujeto puede elaborar de las mismaso similares producciones culturales. De manera que la distinción no habríaque hacerla tanto entre una cultura “sabia” y otra “popular”, cuanto en lasdiferentes maneras en las que unos y otros se apropian de los textos, y enel sentido que dan a los mismos. Las coordenadas que encierran esapropuesta corresponde a lo que Chartier ha llamado la historia culturade lo social en la medida que, según él, todas las relaciones entre loshombres son siempre de orden cultural.

Sin duda se trata de una perspectiva muy sugerente que ha venido acorregir cierta rigidez del determinismo marxista; pero considerotambién que la cultura no es algo que pueda entenderse como suspen-dido en al aire, al margen de las respectivas sociedades que la produceny le dan significación. Sin caer en los errores del reduccionismo clasis-ta, comparto con Robert Darnton que los sistemas de comunicación, lacultura y el mundo simbólico no se pueden pensar “como cualquier cosaque se baste a sí misma, sino como una lengua a través de la que el po-der, las relaciones sociales y la economía se expresan. Es una manerade pensar la cultura no como distanciada y diferenciada de esas otrascosas sino, más bien, al contrario, como integrada profundamente en losocial”27.

Y esto, que se ha señalado para el conjunto de las manifestacionesculturales, sirve igualmente para la más concreta historia de la culturaescrita. Después de todo, ésta se puede entender perfectamente comouna forma de historia cultural centrada específicamente en los objetosescritos y en los testimonios, de cualquier índole, que conciernen a susdistintos usos y a sus varias funciones. Por lo tanto, al igual que se hadicho respecto de los historiadores culturales, también los que nos ocu-pamos de la historia de la cultura escrita debemos poner de relieve las

27 Pierre Bourdieu, Roger Chartier y Robert Darnton, “Diálogo a propósito de historiacultural”, Archipiélago, Cuadernos de crítica de la cultura, n. 47, p. 55, 2001.

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conexiones entre las distintas actividades y manifestaciones de lo escritode cara a reconstruirlas como un todo. Frente a los riesgos de la fragmen-tación, me parece ejemplar la propuesta de Armando Petrucci, que estanto una exigencia de método como una auténtica declaración deprincipios, a saber

que el universo de los testimonios escritos de una determinada civilización, de

un determinado periodo, de una determinada comunidad, es decir, sus libros,

sus documentos, sus epígrafes, sus cartas, sus cuentas y así sucesivamente,

constituyen un todo único, un tejido inseparable, afrontado siempre con una

consciencia global28.

2. Discursos, prácticas y representaciones

Reconstruir las conexiones entre las diferentes materialidades de loescrito de cara a comprender su significado global en una sociedad de-terminada se presenta como referencia fundamental de lo que debe serla historia de la cultura escrita. En suma, como ya se ha dicho, ésta sepuede entender como la conjunción de tres historias que habían avanzadoen paralelo: la historia de las normas, de las capacidades y de los usos dela escritura; la historia de los libros o, más ampliamente, de los textosmanuscritos e impresos (y electrónicos, habría que añadir ya); y la historiade las maneras de leer.

Indagar en esa triple perspectiva entraña asumir que la historia de lacultura escrita se distingue de otras formas de practicar la historia cultu-ral por la valorización que otorga al análisis morfológico de los productosescritos. Una especificidad que reserva un papel destacado a las disci-plinas eruditas pues son éstas las que poseen las herramientasconceptuales más adecuadas para el examen de las formas materialesde los objetos escritos. En definitiva, la historia de la cultura escritaconstituye un nuevo espacio científico para dichas materias, pero esto no

28 Armando Petrucci, Medioevo da leggere. Guida allo studio delle testimonianzescritte del Medioevo italiano, Torino, Einaudi, 1992, p. 8.

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debe confundirse con la equiparación de sus objetos y métodos de estudio.Al contrario, tiene los suyos propios puesto que de la misma manera queno debe perder de vista las determinaciones de sentido inherentes a lamorfología de los productos de la cultura escrita, tampoco eludir otrosmodos de afrontar su significado social. Retomando algunas ideas deRoger Chartier, considero que la historia de la cultura escrita debe man-tener el frente abierto en tres direcciones: los discursos, las prácticas ylas representaciones.

Entiendo el discurso como la doctrina o ideología que trata dereglamentar y sistematizar el funcionamiento de una sociedad. A su vezcada discurso se debe a unas pautas de funcionamiento donde estánplanteadas sus propias contenciones y exclusiones, lo que se acepta y loque se rechaza, las personas admitidas y las personas excluidas29. Encuanto fruto de una voluntad de normalización, el discurso conlleva a lainstitución productora o a los individuos socialmente autorizados paraelaborarlo y aplicarlo, incluso imponerlos. Hablo, claro está, del discursoen cuanto espacio y forma de poder, esto es, como el conjunto de textosque la clase dominante o las personas socialmente autorizadas producencon el objeto de ordenar las relaciones y prácticas sociales.

Esos discursos pueden afectar a cualquiera de los aspectos queinforman la vida en sociedad: la política, el derecho, la religión, la economía,la cultura, el sexo, o la cultura escrita, pues ésta comporta también unaforma de poder. El poder, por ejemplo, de adquirir una capacidad – leery/o escribir – que no siempre ha estado al alcance de todos; el poder deproducir un determinado texto; o el poder, en fin, de acceder a los sabe-res y conocimientos vertidos en los libros. Por ello, en la medida que con-tiene las claves para abrir las puertas de numerosos secretos, la culturaescrita es objeto de una producción discursiva relacionada con los valo-res que se le atribuyen en cada momento de la historia. Allí donde estárevestida de argumentos sagrados, el discurso trata de legitimar las razonesdel acceso restringido y del monopolio ostentado por determinada castao corporación. Y por el contrario, allí donde se concibe como un factor

29 Michel Foucault, El orden del discurso [1970], Barcelona, Tusquets, 1999.

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de promoción social, el discurso vendrá a sostener las ventajas que tienela alfabetización extensiva y la democratización del acceso a lo escrito.Éstas son exclusivamente dos modalidades de discurso aplicadas a lacultura escrita, pero cada época histórica y cada sociedad tienen las suyaspropias.

La historicidad de las normas es una parte fundamental de la historiade la cultura escrita que debe ponerse en conexión con la realidad másconcreta de las prácticas, esto es, con los testimonios específicos dondese expresan los usos y funciones atribuidas al escrito. Al hacerlo así sepone sobre el tapete el contraste entre la función reglamentista de losdiscursos y la potencialidad subversiva de las apropiaciones, del lectorpero también de la persona que escribe. Así la valorización de las prácticasforma parte de una revisión historiográfica que ha traído el retorno delsujeto al análisis histórico30. Con ello no se trata de negar la importanciade las estructuras sociales o económicas, sino de introducir los conceptosde libertad y de transgresión en el estudio de las prácticas culturales. Ensuma, la posibilidad que los individuos tienen de evadir ese “orden pensa-do – el texto concebido – [que] se produce en cuerpos – los libros – quelo repiten, al formar empedrados y caminos, redes de racionalidad a tra-vés de la incoherencia del universo”31. La norma establece su propuestapero finalmente es la persona quien la acata o no. En el ámbito de lahistoria cultural, esta revalorización del sujeto tiene mucho que ver con labrecha abierta por la microhistoria y, sobre todo, con la constatación delo equivocado que era establecer una relación unívoca entre nivelessociales y culturales, cuya mejor demostración está en la trayectoria quehan seguido los estudios sobre la cultura popular32. Un cambio de para-

30 Giselle Martins Venancio, “Arquivos pessoais: dos vestigios da memória à escritade história”, Revista Humanas, Universidade Estadual de Londrina, vol. 2, n. 1,2001.

31 Michel de Certeau, La invención de lo cotidiano. I. Artes de hacer (1990), nueva edi-ción, establecida y presentada por Luce Giard, México, Universidad Iberoamericana,1996, p. 157.

32 Una excelente síntesis e interpretación de la misma nos la proporciona del libro deAna María Zubieta (dir.), Cultura popular y cultura de masas. Conceptos, recorri-dos y polémicas, Buenos Aires, Paidós, 2000.

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digma que, en opinión de Chartier, ha hecho de la problemática de losusos, del empleo dado a los objetos culturales, el eje principal de la historiacultural en los últimos años33.

Aplicado al ámbito más específico de la cultura escrita, la confronta-ción entre las normas y las prácticas se ha visto claramente tanto por loscontenidos y temáticas de las lecturas “populares”, como por la incidenciade la estética de la recepción y de la teoría de la acción en el análisis delas danzas que se establecen entre los textos y los lectores34, justo ahídonde, como sostiene Michel de Certeau, “una doctrina ortodoxa habíaplantado la estatua de “la obra” rodeada de consumidores conformes eignorantes”35. Dichos planteamientos han apeado a la obra del pedestaldonde se encontraba para enfocar con mayor detenimiento el acto de lalectura y la figura del lector. De éste como el “productor de jardines queminiaturizan y cotejan un mundo”, como el “Robinson de una isla pordescubrir”, como el viajero que explora las tierras del prójimo, o como elnómada que caza furtivamente en los campos que no ha escrito. De lalectura, en fin, situada “en la conjunción de una estratificación social (derelaciones de clase) y de operaciones poéticas (construcción del texto pormedio de su practicante): una jerarquización social trabaja para conformaral lector a ‘la información’ distribuida por una élite (o semiélite); las ope-raciones lectoras se las ingenian con la primera al insinuar su inventividaden las fallas de una ortodoxia cultural”36.

Las prácticas corrigen la lógica de los discursos y sitúan el análisis dela cultura escrita en el plano de los usos dados a la misma, de las com-petencias efectivas del escribir y del leer, y de los modos de ponerlo en uso.Por un lado, aluden a las evidencias materiales de cada ejercicio de escri-tura y de lectura; y por otro, señalan las condiciones en las que se hacenposibles. En suma, la historia de la cultura escrita debe atender al rastreo

33 Pierre Bourdieu, Roger Chartier y Robert Darnton, “Diálogo a propósito de historiacultural”, op. cit., p. 44.

34 Paul Ricoeur, “Mundo del texto y mundo del lector”, en P. Ricoeur, Tiempo ynarración, III. El tiempo narrado [1985], México, Siglo XXI editores, 1996,pp. 864-900.

35 Michel de Certeau, La invención de lo cotidiano…, op. cit., p. 188.36 Michel de Certeau, La invención de lo cotidiano…, op. cit., pp. 185-186.

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y explicación de los gestos, las maneras y los lugares que enmarcan cadauna de las apropiaciones.

La atención a las prácticas y, en el orden de los textos, a los dispositi-vos discursivos y materiales que constituyen el aparato formal de la enun-ciación, no se puede entender sin tener en cuenta su vinculación con elconcepto de representación, tomada en su doble sentido, su doble función:hacer presente una ausencia, representar algo; y exhibir su propia presen-cia como imagen, es decir, presentarse representando algo, que se cons-tituye como tal en la medida que existe un sujeto que mira (o que lee)37.Bajo estos enunciados determinadas prácticas de la cultura escrita, caso,por ejemplo, de las inscripciones monumentales, se entienden mejor silas interpretamos como estrategias de significación por parte de las ins-tancias enunciativas. Se comprenden mejor si pensamos que buena par-te de dichas escrituras visibles recurrieron a lenguas y tipologías gráficasextemporáneas a su momento de producción y exposición, pero que seexplica claramente si aplicamos una clave de lectura que no sea analógica,sino más bien visual38. En definitiva, como ha dicho Pierre Bourdieu, larepresentación que los individuos y los grupos revelan a través de susprácticas y de sus propiedades “forma parte integrante de su realidadsocial”39.

37 Inspirada en las tesis del historiador del arte Louis Marin, la tomo de Roger Chartier,“Poderes y límites de la representación. Marin, el discurso y la imagen” (1994), ensu libro Escribir las prácticas. Foucault, de Certeau, Marin, Buenos Aires, Manantial,1996, pp. 73-99. Ahora también en Roger Chartier, Entre poder y placer. Culturaescrita y literatura en la Edad Moderna, Madrid, Cátedra, 2000, pp. 73-87.

38 Armando Petrucci, La scrittura. Ideologia e rappresentazione, Torino, Einaudi,1986 (versión inglesa: Public lettering. Script, power, and culture, Chicago-London,The University of Chicago Press, 1993) y “Escritura como invención, escrituracomo expresión” (1996), en A. Petrucci, Alfabetismo, escritura, sociedad, op. cit.,pp. 171-180. Personalmente he seguido esta línea de interpretación en varios trabajos,en particular: Antonio Castillo Gómez, “Artificios epigráficos. Lecturas emblemáticasdel escribir monumental en la ciudad del Siglo de Oro”, en Víctor Mínguez, Del librode emblemas a la ciudad simbólica. Actas del III Simposio Internacional deEmblemática Hispánica (Castellón-Benicàssim, 30 de septiembre-2 octubre 1999),Castellò, Publicacions de la Universitè Jaume I, vol. 1, 2000, pp. 151-168, y “Entrepublic et privé. Stratégies de l’écrit dans l’Espagne du Siècle d’Or”, Annales...Histoire, Sciences Sociales (HSS), 4-5, 2001, pp. 813-816.

39 Pierre Bourdieu, La distinción, Madrid, Taurus, 1998, pp. 563-564.

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Cada producción cultural, un cuadro o un libro, enuncia también unadeterminada imagen de aquello que representa, la cual se constituye enla medida que existe un sujeto receptor de la misma, ya sea el especta-dor de un cuadro o el lector de un texto cualquiera. En un sentido amplio,esta segunda posibilidad del término de representación implica tanto elanálisis de las estrategias formales de los escritos – donde de nuevoreclaman su lugar las disciplinas eruditas – como el de las tácticas discur-sivas – aquí el campo se abre al más intrincado mundo del análisis deldiscurso. En una versión más precisa, dicha acepción otorga un especialvalor a los modelos relacionados con la cultura escrita que cada sociedadproduce y transmite. Piénsese, por ejemplo, en la gran importancia queen el imaginario narrativo del siglo XIX tuvieron las representaciones delos lectores y de la lectura, incluyendo la celebración de la mujer lectorapor más que dicha imagen distara bastante de la realidad social. El recienteestudio de Nora Catelli sobre ese tema pone en evidencia los poderes ylímites de la representación: de un lado, la capacidad de la misma paraproponer e incluso establecer modelos en relación con el valor de la cul-tura escrita y las prácticas de ésta; y de otro, la mayor o menor historici-dad de dichos modelos40. Por otra parte, la existencia de éstos entroncacon las producciones discursivas de las que muchas veces son extensión,cerrando así el ciclo de una historia de la cultura escrita que no debe pres-cindir de ninguno de sus dominios de posibilidad: los discursos, las prácticasy las representaciones.

3. Otra mirada a las fuentes

Éstos, a su vez, determinan la amplitud que han experimentado lasfuentes susceptibles de ser empleadas para la elaboración de la historiade la cultura escrita, sobre todo si las comparamos con las que más setuvieron en cuenta en las primeras etapas. Entonces, la historia del alfabe-tismo puso su ojo en aquellas donde aparecían suscripciones autógrafasque se pudieran cuantificar; la historia del libro se centró en los inventarios

40 Nora Catelli, Testimonios tangibles. Pasión y extinción de la lectura en la narrativamoderna, Barcelona, Anagrama, 2001.

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de bibliotecas, los catálogos de librerías, las tipobibliografías de lasciudades con imprenta y los inventarios post-mortem; en tanto que lahistoria de la escritura trabajó con testimonios autógrafos de caráctercualitativo, caso del famoso libro de cuentas de la tendera Magdalena ola matrícula de la Cofradía de San Ignacio en Perugia, por mencionaralgunos de los trabajos más significativos41. Hoy, sin embargo, esasfuentes siguen siendo válidas pero situadas en una dimensión distinta ydentro de un repertorio mucho más amplio que debe atender las tresdominios que vengo considerando:

1. Fuentes del discurso. Comprenden todos aquellos textos socialmen-te autorizados a través de los cuales se establece y se propaga unadeterminada concepción de la escritura y de la lectura. Incluyen,por lo tanto, los textos emanados de las diferentes instancias de poderproductoras de discursos: la política, el derecho, la iglesia, la acade-mia, las gentes de letras o los profesionales de la escritura y del libro.Naturalmente la incidencia de unas y otras modalidades estará enconsonancia con el peso de las mismas en la respectiva sociedad.Un excelente ejemplo de esto lo tenemos en las obras de Anne MarieChartier y Jean Hébrard sobre los discursos de la lectura en Franciaentre 1880 y 2000, estudiados en relación con las tres esferas deproducción con atribuciones en la práctica educativa: la Iglesia, losbibliotecarios y la escuela42.

2. Testimonios de las prácticas. Sin duda el corpus más extenso e im-preciso puesto que comprende la totalidad de los objetos escritos, yasean de carácter oficial o privado, impresos, manuscritos o electróni-cos, pintados, garabateados o incisos. La elección de unos o de otros

41 Armando Petrucci, “Scrittura, alfabetismo ed educazione grafica nella Roma delprimo cinquecento: da un libretto di conti di Maddalena pizzicarola in Trastevere”,Scrittura e civiltà, n. 2, pp. 163-207, 1978; y Attilio Bartoli Langeli, Scrittura eparentela. Autografia collettiva, scritture personali, rapporti familiari in una fonteitaliana quattrocinquecentesca, Brescia, Grafo, 1989.

42 Anne-Marie Chartier y Jean Hébrard, Discursos sobre la lectura (1880-1980) (1989),Barcelona, Gedisa, 1994 y Discours sur la lecture, 1880-2000, Paris, Fayard-Bibilio-thèque publique d’information, 2000.

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dependerá siempre de los objetivos planteados en cada investigación.No obstante debo señalar que las orientaciones seguidas en los últi-mos años han concentrado la atención sobre el valor cotidiano de laescritura, algo que normalmente había pasado desapercibido porcuanto los estudios anteriores se habían centrado preferentemente enlos testimonios escritos vinculados al poder. Como consecuencia deello, las fuentes más solicitadas son las cartas privadas, los diarios, loslibros de cuentas, los cuadernos de memorias, los cuadernos escola-res, en fin, una lista casi interminable integrada por todas las escritu-ras cotidianas y personales, donde no falta tampoco la relevanciaconferida a los escritos de las clases populares43.

3. Representaciones. Se trata de los distintos tipos de imágenes que ca-da sociedad construye a propósito de los temas y objetos de la cul-tura escrita. Naturalmente la parte más suculenta del pastel se lallevan tanto las manifestaciones de la escritura y de la lectura, de losescritores y de los lectores, en el arte; pero tampoco faltan las quetienen su espacio en los textos literarios44.

43 Entre las referencias más claras del reciente interés hacia éstas puedo mencionar:Daniel Fabre (dir), Écritures ordinaires, Paris, Éditions P.O.L./Centre GeorgesPompidou, 1993; Daniel Fabre (dir.), Par écrit. Ethnologie des écritures quotidiennes,Paris, Éditions de la Maison des sciences de l’homme, 1997; Quinto Antonelli yAnna Iuso (eds.), Vite di carta, Nápoles, L’Ancora, 2000; Ana Chrystina VenancioMignot, Maria Helena Camara Bastos y Maria Teresa Santos Cunha (org.), Refúgiosdo eu: educação, história, escrita autobiográfica, Florianópolis, Mulheres, 2000;Antonio Castillo Gómez (ed.), Cultura escrita y clases subalternas: una miradaespañola, Oiarzun, Sendoa, 2001; Antonio Castillo Gómez (coord.), La conquistadel alfabeto. Escritura y clases populares, Gijón, Trea, 2002; Piero Conti, GiulianaFranchini y Antonio Gibelli (eds.), Storie di gente comune nell’Archivio Ligure dellaScrittura Popolare, Génova, Editrice Impressioni Grafiche, 2002; y Maria HelenaCamara Bastos, Maria Teresa Santos Cunha y Ana Chrystina Venancio Mignot (org.),Destinos das letras: história, educação e escrita epistolar, Passo Fundo, Universi-dade de Passo Fundo, 2002.

44 François Dupuigrenet Desrouissilles, La symbolique du livre dans l’art occidentaldu haut Moyen Âge à Rembrandt, Paris, Institut d’étude du livre, 1995; EmmanuelFraisse, Jean-Claude Pompougnac y Martine Poulain, Discours et représentations,París, Bibliothèque publique d’information-Centre Georges Pompidou, 1989; oFlávio Carneiro, Entre o cristal e a chama. Ensaios sobre o leitor, Rio de Janeiro,Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2001.

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En suma, un elenco interminable cuya amplitud pretende corroborarla vocación global de la historia de la cultura escrita. Acaso sea éste suprincipal rasgo de distinción respecto de etapas anteriores, más centradasen otras problemáticas – los libros o la competencia gráfica – y, por ello,más restringidas en sus fuentes. Retoma, en parte, la ruptura con laseparación decimonónica entre los estudios históricos y los literarios;pero, por supuesto, sin llegar al extremo de considerar que la realidad noexiste si no es a través de los restos textualizados, a través del lenguaje,como han sostenido los más conspicuos representantes del postmo-dernismo.

4. Los tiempos del escrito: producción, uso yconservación

Desde otro punto de vista, la historia de la cultura escrita también sepuede definir como aquélla que trata de explicar el escrito en cada una delas etapas que jalonan su trayectoria. En cierto modo, cada tiempo deter-mina sus problemas de estudio y las maneras de afrontarlo, aunque, porsupuesto, con esto no quiero decir que haya que romper la unidad del hechoescrito. Por otro lado, lo que de específico pueda tener cada uno de lostiempos de la escritura dota de un contexto más preciso a cada uno de losaspectos que se engloban bajo lo que Armando Petrucci llamó la “difusiónsocial” y la “función” de la escritura45, sin duda, dos conceptos claves enlo que ha sido la construcción de la historia de la cultura escrita.

El primero de esos momentos es el tiempo de la adquisición, esto es,cuando se accede a la competencia gráfica. Su estudio debe prestar par-ticular atención a las condiciones sociales de tal posibilidad; lo que, entérminos más exactos, podemos relacionar con la función atribuida a lacultura escrita en cada época y sociedad, y, en consecuencia, con la his-toricidad de las políticas de alfabetización. Así, por ejemplo, el hecho deque los egipcios se refirieran a los signos jeroglíficos con el término Medu

45 Armando Petrucci, “Para la historia del alfabetismo y de la cultura esrita: métodos,materiales y problemas” (1978), en ID., Alfabetismo, escritura, sociedad, op. cit.,pp. 25-26.

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netcher (“palabra de dios”) dice bastante de lo que la escritura represen-taba para ellos y, por lo tanto, del monopolio escriturario de los escribas;como también la concepción cristiana del libro en cuanto Dios hecho verboestá vinculada con el fenómeno altomedieval del control clerical de la escri-tura; sin olvidarnos que tampoco por entonces su conocimiento era con-siderado imprescindible o necesario, ni siquiera para las clases dirigentes,que disponían de escribas o notarios para solventar la eventual necesidadde escribir. Por el contrario, la convicción ilustrada de que el progreso esta-ba ligado a la alfabetización llevó a un cambio de las políticas educativasa partir del siglo XIX, cuyo resultado es el alfabetismo casi generalizadode las sociedades occidentales contemporáneas.

Son sólo un par de calas en la historia, y seguramente reducidas almáximo, pero entiendo que perfectamente válidas para comprender laimportancia de las circunstancias que rodean la apropiación de lacapacidad de escribir. Abundando en esto, es obvio que detrás de ellasse encuentran los respectivos discursos sobre la escritura y la lectura.De manera que el análisis del tiempo de la adquisición debe conjugarestas dos variables del problema: no puede despreciar la individualidadde los sujetos pero tampoco eludir lo que la escritura ha significado encada período y para las diferentes clases sociales. Insisto en este aspec-to, a veces olvidado tras la máscara culturalista, porque pienso que lahistoria de la cultura escrita no puede rehuir que la desigualdad en elacceso a la misma es la evidencia más clara de la estructura social exis-tente y de las discriminaciones. No quiero con esto reproducir los viciosde toda visión unívoca de las relaciones entre los niveles sociales yculturales, pero tampoco eludir las implicaciones del orden que reglamentacada sociedad. En esto, reclamo la validez de la teoría marxista, así comola necesidad de asumir las reflexiones aportadas por los estudios degénero. Respecto a estos, es obligado incidir en las implicaciones delgénero en los testimonios escritos producidos por las mujeres o dirigidosa ellas.

Adquirida o detentada la competencia gráfica, entramos en lo quepodemos llamar el tiempo de la producción, de nuevo ligado a las cir-cunstancias que intervienen en el momento de crear o fabricar un pro-ducto de cultura escrita. Empleo conscientemente el término “fabricar”

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porque con ello pretendo llamar la atención sobre la intencionalidad po-lítica que se “oculta” detrás de ciertos usos de la escritura motivadosclaramente por la voluntad de transmitir una determinada ideología.Piénsese, por ejemplo, en la operación gráfica efectuada en el templo deMalatesta en Rímini entre 1447 y 1461 por iniciativa de SigismondoPandolfo Malatesta con el objeto de convertirlo en un monumento personal,o en el amplio programa monumental y gráfico patrocinado por el PapaSixto V en Roma entre 1585 y 1591, ambos magníficamente estudiadospor Armando Petrucci46; o en las estrategias formales y discursivas adop-tadas en la confección de los privilegios rodados en la España medie-val47. Prestando atención a los detalles, aparentemente menudos, de lamorfología de los testimonios escritos se percibe más claramente la hondasignificación política que rodea la composición de algunos de ellos, con-cebidos, sin duda, como verdaderos actos de poder, del poder consuma-do por medio de la escritura. No obstante, dilucidar el tiempo de laproducción de la cultura escrita no debe confundirse con una mera descri-pción de sus atribuciones materiales o gráficas. Ciertamente éstas soninexcusables en la medida que transmiten y representan la función confe-rida a ciertos escritos; pero siempre que se valoren al mismo tiempo quese profundiza en las circunstancias históricas que envuelven cada monu-mento escrito.

Llevado a otros dominios, el tiempo de la producción complementa labrecha abierta por los estudios sobre la educación gráfica introduciendoel concepto más elaborado de “prácticas de cultura escrita”. Ya no se tratatan sólo de valorar los distintos niveles de competencia escrituraria segúnse infieren de los testimonios autógrafos; sino de profundizar en sus ras-gos y, en especial, en el análisis morfológico de los testimonios escritos.

46 Armando Petrucci, La scrittura. Ideologia e rappresentazione, op. cit. y “Poder,espacios urbanos, escrituras expuestas: propuestas y ejemplos” (1985), en ID.,Alfabetismo, escritura, sociedad, op. cit., pp. 57-69.

47 Véase, por ejemplo, Carlos Sáez, “Documentos para ver, documentos para leer”,Anuario de Estudios Medievales, n. 29, pp. 899-910, 1999, y Elisa Ruiz, “Clavesdel documento artístico bajomedieval en Castilla”, en El documento pintado. Cincosiglos de arte en manuscritos, Madrid, Museo Nacional del Prado-Afeda, 2000,pp. 23-43.

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Esto “permite reconocer las posibilidades (o los límites) que la formamaterial de inscripción de los discursos propone (o impone) en el procesomismo de la construcción del sentido”48. Como el propio Roger Chartierhabía dicho con anterioridad, “las formas en las que un individuo o un grupose apropian de un motivo intelectual o una forma cultural son más impor-tantes que la distribución estadística de ese motivo o de esa forma”49.Reporto ahora una atinada reflexión del escritor Marcel Proust que vienemuy a propósito de esa cuestión y, en particular, de la significado de losdispositivos gráficos en el destino último de los textos, en el momento dela lectura:

Más aún, no son únicamente las frases las que dibujan ante nuestros ojos las

formas del alma antiguas. Entre las frases – y estoy pensando en libros muy

antiguos que fueron antes recitados –, en el intervalo que las separa se conser-

va todavía hoy en día como dentro de un hipogeo inviolable, colmando sus

intersticios, un silencio muchas veces secular. A menudo, en el Evangelio de

San Lucas, al tropezar con los dos puntos que interrumpen el texto delante de

todos los pasajes casi en forma de cántico de que está plagado, he escuchado

el silencio del fiel que acababa de interrumpir la lectura en voz alta, para

entonar los versículos siguientes como si fueran un salmo que le trajera a la

memoria los salmos más antiguos de la Biblia50.

Aquí es indiscutible que la historia de la cultura escrita puede entablarun diálogo muy fructífero con la corriente del análisis crítico del discurso,pero sin confundir sus campos e intereses. La primera debe atenderpreferentemente al hecho de la escritura y a la materialidad de los testi-monios escritos; en tanto que la teoría del discurso entiende éste no sólocomo “una práctica social que estructura áreas de conocimiento, que nosólo expresa o refleja entidades, prácticas, relaciones, sino que las consti-tuye y conforma”; es decir, asumiendo que “adoptar una definición como

48 Roger Chartier y Jean Hébrard, “Prólogo: Morfología e historia de la cultura escri-ta”, op. cit., p. 12.

49 Roger Chartier, “Historia intelectual e historia de las mentalidades…”, op. cit., p. 31.50 Marcel Proust, Sobre la lectura (1905), Valencia, Pre-Textos, 1996, p. 66.

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ésta, supone dejar de considerar el discurso como un conjunto de signos,de elementos significantes que remiten a contenidos y representaciones,y pasar a considerarlo, en cambio, como prácticas que conforman sistemá-ticamente los objetos de los que hablan”51. La singularidad de la historiade la cultura escrita estará en tener presentes las elaboraciones de la teoríadel discurso y ligarlas con la forma específica de los objetos escritos.

La forma material puede orientar las expectativas de significaciónde los textos; pero finalmente el sentido dado a éstos no puede prescindirde las circunstancias que actúan en el tiempo de la recepción, donde elprotagonismo pasa del autor, sujeto central de las más convencionaleshistorias de la literatura, al lector, ascendido al primer plano de la repre-sentación por causa directa de la estética de la recepción. Ésta corrientede la crítica literaria, personalizada en las figuras de Hans Robert Jaussy Wolfgang Iser52, planteó la necesidad de estudiar las obras como tex-tos, esto es, como productos pensados para un consumo, para una utili-zación determinada por un grupo de receptores. Ello condujo a destacarla importancia de la temporalidad como el marco en que la obra se de-sarrolla, la historicidad que la envuelve y, sobre todo, la estética del efectoreceptivo, que es justamente el plano donde el lector asume todo elprotagonismo: “A medida que el lector – sostiene Iser – utiliza las diver-sas perspectivas que el texto le ofrece a fin de relacionar los esquemasy las “visiones esquematizadas” entre sí, pone a la obra en marcha, yeste mismo proceso tiene como último resultado un despertar de reac-ciones en su fuero interno”53.

Son estas reacciones las que, en último extremo, pueden hacer quela construcción de sentido no se corresponda exactamente con los hori-zontes de expectativas desarrollados en la obra, de ahí la conocida

51 María Laura Pardo y Luisa Martín Rojo, “Editorial: Con-fines del discurso”, Revis-ta Iberoamericana de Discurso y Sociedad, Editorial Gedisa (Barcelona), vol. 1,n. 1, p. 7, 1999.

52 Hans Robert Jauss, La historia de la literatura como provocación (1970), Barcelo-na, Península, 2000; y Wolfang Iser, El acto de leer. Teoría del efecto estético (1976),Madrid, Taurus, 1988.

53 Wolfgang Iser, “El proceso de lectura: enfoque fenomenológico” (1972), en J.A.Mayoral (ed.), Estética de la recepción, Madrid, Arco/Libros, 1987, p. 216.

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distinción entre el lector implícito y el lector real: el primero, identifica“un proceso de transformación, mediante el cual se transfieren las estruc-turas del texto, a través de los actos de representación, al capital deexperiencia del lector”54; en tanto que el segundo es aquel que pone enfuncionamiento una determinada cantidad de experiencia para recons-truir las “imágenes” de que el texto es portador. Este lector real puedeverse afectado tanto por los modos narrativos desarrollados por el autorcomo por las estrategias formales usadas en la presentación del texto(por ejemplo, por escriba y copistas en la actividad manuscrita o por lostrabajadores de la imprenta en las ediciones tipográficas); pero, en últi-mo término, tiene la posibilidad de “inventar” en los textos algo distinto alo que era la intención de éstos: la lectura como una cacería furtiva, deacuerdo al planteamiento de Michel de Certeau55.

Estas teorías que han sido muy útiles para plantear una nueva manerade entender las obras literarias no tienen por qué restringirse exclusiva-mente a éstas. Asumidas por la historia de la cultura escrita son válidaspara entender la función de otros muchos tipos de textos – administrati-vos, políticos, jurídicos e incluso privados – construidos también conformea la modalidad de su recepción. Así, por mencionar un caso, la apropiaciónpública, a veces comunitaria, de los pasquines está en la base de unapráctica de escritura en la que abundan las rimas, las locuciones hiperbó-licas, los toques de humor y el empleo de palabras corrientes, y de unaconstitución gráfica que recurre a la mayor visibilidad de las letras mayús-culas (que, además, servían para proteger el anonimato).

Cualquiera que sea el texto, literario o no, éste conlleva un tiempo yun espacio de la recepción que está afectado tanto por las distintas manerasde leer o de efectuar el texto como por la experiencias previas de loslectores. Por eso cada acto de consumo o apropiación cultural es tambiénun acto de producción, de creación; es decir, la ocasión para fabricar untexto nuevo aunque éste no se materialice en una práctica de cultura escritay se quede más bien en la imaginación de cada lector. La historia de la

54 Wolfgand Iser, El acto de leer (1976), Madrid, Taurus, 1987, p. 70.55 Michel de Certeau, La invención de lo cotidiano…, op. cit., pp. 177-189.

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lectura será siempre la de los textos leídos, las maneras de leerlos y lasconstrucciones de sentido a que dieron lugar, e igualmente de las inve-rosímiles apropiaciones sin traza. Éstas resultan más huidizas pero sepuede deducir a partir de las formas materiales de los objetos escritos yde las orientaciones de sentido que ellas plantean; las otras tienen su pruebamás clara en las notas que han ido dejando los lectores, aunque fuera,como dijo Benedetti del Quijote, para testimoniar su más “aburridaadmiración”56.

Sin embargo, la trayectoria de la escritura no concluye en el momen-to de su consumo a través de un determinado acto de lectura. En cuanto“ilimitado territorio de la experiencia y la memoria”, según la precisaafirmación de Emilio Lledó57, el escrito tiene otra vida más allá de losmomentos concretos de su producción y consumo, en lo que podemosllamar el tiempo de la conservación, cuyo estudio tampoco es ajeno alos intereses de la historia de la cultura escrita. Ésta debe indagar en laspolíticas de la memoria, en particular la escrita, es decir, en los discursos,las personas y las instituciones que han ejercido históricamente la com-petencia sobre el patrimonio escrito, en uso de la cual han intervenido ensu selección y transmisión58. El resultado es la construcción de una de-terminada memoria hecha tanto de presencias como de ausencias, todavez que, como ha dicho el escritor argentino Mario Benedetti, el “olvidoestá lleno de memoria”59. Interesará conocer la historia y la función delo que Armando Petrucci ha llamado “instituciones memorizadoras”, estoes, los archivos, bibliotecas y museos donde se ha conservado la memoria

56 Mario Benedetti, Buzón de tiempo, Madrid, Alfaguara, 1999, p. 174.57 Emilio Lledó, “Lenguaje y memoria” (1997), en ID., Imágenes y palabras. Ensayos

de humanidades, Madrid, Taurus, 1998, p. 166.58 En torno a esta problemática, véase Jacques Le Goff, El orden de la memoria. El

tiempo como imaginario (1982), Barcelona, Paidós, 1991; Academia Universal delas Culturas, ¿Por qué recordar? Foro Internacional Memoria e Historia (UNESCO,25, marzo 1998/La Sorbonne, 26, marzo, 1998) (1999), bajo la dirección de FrançoiseBarret-Ducrocg, Barcelona, Granica, 2002; y Francisco M. Gimeno Blay, “Conser-var la memoria, representar la sociedad”, Signo. Revista de Historia de la CulturaEscrita, 8, pp. 275-293, 2001.

59 Mario Benedetti, El olvido está lleno de memoria, Madrid, Visor, 1995.

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escrita60; pero igualmente las distintas formas y figuras de la destrucción,unas veces casual y otras como fruto de expresas estrategias dedampnatio memoriae61.

La consideración de todas esas posibilidades permitirá que la historiade la cultura escrita no sea, como ha acontecido otras veces, una nuevaetiqueta para “vender la historia entre los profesionales”62; sino una dis-ciplina comprometida con el conocimiento de “las sociedades pretéritas através del prisma constituido por las diferentes formas de producción, usoy conservación de la cultura escrita, de los textos (de todos los textos), deluniverso textual que constituye la memoria escrita de una sociedaddada”63. Desde esa perspectiva dos son las coordenadas principales a lasque habrá que atender: el estudio de las estrategias de dominación simbó-lica y el de las prácticas de apropiación de los objetos culturales. Despuésde todo no olvidemos las palabras de Virginia Woolf: “Saber para quién seescribe es saber cómo hay que escribir”. En suma prácticamente lo queenunció Spinoza al ocuparse de los contenidos que debía asumir la historiade la Sagrada Escritura, sólo que ahora tocaría sustituir la mayúscula poruna minúscula y desacralizarla de significado para considerarla en suacepción más amplia, esto es, aplicada al conjunto de los testimoniosescritos, sean sagrados, literarios, administrativos o privados, entre otros:

La historia de la Escritura debe describir, finalmente, los avatares de todos los

profetas, de los que conservamos algún recuerdo, a saber: la vida, las costumbres

60 Armando Petrucci, “Escrituras de la memoria y memorias de lo escrito. Del orden delos objetos escritos al desorden de la escritura virtual”, en Alfabetismo, escritura,sociedad, op. cit., p. 292.

61 Leo Löwenthal, I roghi dei libri. L’eredità di Calibano (1984), Genova: Il Melan-golo, 1991; Francisco M. Gimeno Blay, Quemar libros... ¡qué extraño placer!,València, Universidad de València:Centro de Semiótica y teoría del espectáculo/Asociación Vasca de Semiótica, 1995; y Maria Luiza Tuci Carneiro, Livros proibi-dos, idéias malditas. O DOPS e as minorias silenciadas (1997), São Paulo, AteliêEditorial/Projeto Integrado Arquivo do Estado-Universidade de São Paulo/FAPESP,2002 (2. ed. ampliada).

62 Eric H. Hobsbawn, “¿Ha progresado la historia?” (1979), en Sobre la historia(1997), Barcelona, Crítica, 1998, p. 79.

63 Francisco M. Gimeno Blay, De las ciencias auxiliares a la historia de la cultura escri-ta, op. cit., p. 14.

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y gustos del autor de cada libro; quién fue, con qué ocasión, en qué época, para

quién y, finalmente, en qué lengua escribió. Debe contar además los avatares

de cada libro: primero, cómo fue aceptado y en qué manos cayó; después,

cuántos fueron sus diversas lecturas y quiénes aconsejaron aceptarlo entre los

libros sagrados, cómo, finalmente, todos los libros, una vez que todos los

reconocieron como sagrados, llegaron a formar un solo cuerpo64.

Y todo ello en la perspectiva de la larga duración, en diálogo y confron-tación con las prácticas precedentes y las posteriores, dado que los estudiossobre la cultura escrita no pueden prescindir de la historicidad del campoescriturario.

64 Spinoza, Tratado teológico-político, Madrid, Alianza, 1986, p. 198.

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O itinerário de formação de LourençoFilho por descomparação

Mirian Jorge Warde*

* Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política eSociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Em diversos estudos relativos à história dos renovadores e das renovações educacionaisLourenço Filho e Anísio Teixeira foram colocados lado a lado p ara fins de comparação dosseus modos de pensar e intervir sobre o campo educacional brasileiro. Neste artigo, amboscomparecem por força de uma circunstância em que foram flagrados face a face (1935);condição privilegiada para explorar a singularidade dos intelectuais envolvidos; a escolharecaiu sobre Lourenço Filho e seu itinerário de formação no interior de redes intelectuais epolíticas paulistas. O corpus conceitual por meio do qual as análises foram efetuadas,assim como os procedimentos de tratamento das fontes selecionadas estão expostos nopróprio transcurso da exposição.LOURENÇO FILHO; ANÍSIO TEIXEIRA; REDE INTELECTUAL E POLÍTICA; COM-PARAÇÃO; DESCOMPARAÇÃO.

In several studies associated with the history of educational renewers and renovations,Lourenço Filho and Anísio Teixeira have been placed side by side for the purpose ofcomparing their ways of thinking and taking action onto the brazilian educational field. Inthis paper, both are present by virtue of a circumstance in which they happened to be faceto face to each other (1935); that was a special condition to explore the singularity of theintellectuals involved; the choice was on Lourenço Filho and education itinerary withinintellectual and political networks in the state of São Paulo. The conceptual corpus throughwhich the analyses were conducted as well as the way of handling the selected sources areshown throughout the exposition.LOURENÇO FILHO; ANÍSIO TEIXEIRA; INTELLECTUAL AND POLITICAL NETWORK;COMPARISON; DE-COMPARISON.

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Lourenço Filho e Anísio Teixeira: um tema e umacircunstância

Durante a sua estada nos Estados Unidos, nos três primeiros mesesde 1935, Lourenço Filho manteve correspondência com Anísio Teixeira.

De Lourenço, foram examinadas duas cartas, nas quais presta contasde suas atividades e dos seus dois companheiros de viagem – Delgadode Carvalho e Carneiro Leão1. De Anísio Teixeira, apenas uma2. Númeroreduzido frente ao volume de registros legado por Anísio Teixeira das via-gens que efetuara aos Estados Unidos, entre 1927 e 1929, bem como dasimpressões provocadas por aquele país e pela educação que nele se rea-lizava3.

Ainda que poucas, as três cartas são suficientemente densas para, apartir delas, pensar as ferramentas mentais que Lourenço Filho dispunhapara compor um determinado quadro compreensivo do que lhe fora dado

1 Em 1935, Lourenço Filho empreendia sua primeira viagem aos Estados Unidos;salvo engano, era sua primeira viagem internacional. Carneiro Leão já havia realizadovárias para muitos países; aos Estados Unidos viajava com regularidade, desde osanos de 1920 (cf. Warde, 2002d). Quanto a Delgado de Carvalho, destacam-se oscursos de ciências sociais que freqüentara na Inglaterra e na França, nos quais foraaluno de Durkheim e Hobhouse (cf. Meucci, 2000).

2 Do arquivo pessoal de Anísio Teixeira, depositado no Centro de Pesquisa e Documen-tação de História Contemporânea do Brasil Fundação Getúlho Vargas (CPDOC/FGV),constam duas cartas de Lourenço Filho com as datas de 30/1/1935 e 18/2/1935; aprimeira enviada de Nova York e a segunda de Washington, D.C. No arquivo pessoalde Lourenço Filho, depositado no CPDOC/FGV, consta uma carta de Anísio Teixeiradatada de 28/2/1935, enviada do Distrito Federal. Na segunda carta, Lourenço Filhose refere à alegria de ter recebido uma carta de Anísio; tudo indica que se tratava datão esperada “primeira carta” do amigo e chefe. Por outro lado, a única carta de Anísiolocalizada nos arquivos referidos, datada de 28 de fevereiro, sugere que ele estariarespondendo ponto por ponto àquela primeira carta do Lourenço. Portanto, há umlapso na correspondência que não me foi dado, até o momento, estabelecer a nature-za. Tendo examinado com cuidado a lógica que comanda as cartas, explorei a corres-pondência nos diferentes significados que o termo guarda: troca de cartas; relação deconformidade e correlação; regra por meio da qual se associam a cada elemento de umconjunto um ou mais elementos de outro.

3 Refiro-me, aqui, aos registros de Anísio Teixeira que constam de documentos farta-mente explorados pela historiografia da educação: diário da viagem de 1927 aosEstados Unidos; correspondência que antecedeu e sucedeu essa e a segunda viagem,

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a ver, ouvir e ler da educação norte-americana e dos Estados Unidos.Esse é o foco principal da primeira parte deste artigo4.

O Lourenço Filho, do qual se parte, foi flagrado em diálogo com Aní-sio Teixeira. Falavam dos padrões norte-americanos de educação. Em fun-ção dessa circunstância, o Anísio Teixeira das viagens e das impressõessobre os Estados Unidos foi mobilizado para as explorações pretendidas5.

Lourenço Filho viajou como chefe da missão de trabalho encomen-dada pela Diretoria Geral da Instrução Pública. Assim como Delgado deCarvalho e Carneiro Leão, ele ocupava um cargo na gestão de AnísioTeixeira à testa da Diretoria Geral da Instrução Pública do Distrito Fe-deral; especificamente, respondia pela direção do Instituto de Educação.

Nas duas cartas que envia ao chefe, Lourenço Filho adota o estilo dequem está a discorrer sobre matérias bastante sabidas; não é arrogante,porque invoca do interlocutor saber equivalente. Os Estados Unidos do

entre 1928 e 1929; o relatório publicado em 1928 com o título Aspectos americanosda educação, para destacar alguns. Para efeito deste artigo, considerei ainda, outrosmateriais, tais como: caderno de apontamentos do período em que permaneceu emNova York entre 1928 e 1929; documentação institucional relativa aos estudosrealizados no Teachers College da Universidade de Columbia e o livro Em marchapara a democracia, publicado em 1934 (cf. Teixeira, 1927, 1928, 1928-1929, 1934;Teachers College, 1927-1929).

4 Uso a expressão “ferramenta mental” para contrapor pontos de vista tais como:idéias geram idéias; indivíduos geram idéias e a cultura gera ela mesma. Pensar é umaprática humana que requer instrumentos específicos, dentre as quais se incluemidéias. O pensamento, as idéias que se criam etc., não seguem uma lógica interna,pois a produção, a distribuição, a circulação e os usos dos instrumentos de pensarsão sempre socialmente determinados (cf. Collins, 2000; Menand, 2001).

5 O que se pretende é explorar uma circunstância em que Lourenço Filho e AnísioTeixeira estavam interagindo; compartilhavam um tema. Como o foco deste artigorecai sobre o primeiro, Anísio Teixeira comparece como o “outro” de LourençoFilho. Quero crer que esse esclarecimento seja suficiente para dar clareza de umprocedimento oposto aos atos comparativos. Comparar implica sempre o uso deartifícios espúrios para tornar “comparáveis” os objetos que se pretende comparar(no caso, pessoas) e a criação de um cenário (circunstância) virtual no qual os objetosjá formatados são postos para funcionar por contraste. Aqui, a estratégia metodológicaadotada implica explorar uma circunstância de interação com vistas a dar realce àssingularidades em jogo (cf. Warde 2002e). Entre os títulos recentes relativos aosestudos comparados em educação, ver Schriewer, 2002; Saviani, 2001; Gvirtz, 2001;Vidal, 2001a; Nunes, 2001; Sobe, 2002. Dentre os títulos mais antigos e consagra-dos ver Osburn, 1922; Hans, 1953; Kandel, 1923, 1933, 1938.

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qual fala é, por suposto, familiar a ambos. Lourenço Filho detalha, es-miuça, ao mesmo tempo que sintetiza agudas e firmes impressões.

Refere-se às escolas, às práticas que observa e às suas variantespedagógicas como se cada informação e cada dado contivesse, por suaprópria enunciação, um saber mais do que decantado. Aparenta a mes-ma desenvoltura ao considerar as condições mais gerais nas quais osEstados Unidos estariam envolvidos.

Em carta de 30 de janeiro, de Nova York, reclama o silêncio de Aní-sio depois de quarenta dias da partida. Confessa-se “quase sentido”, poisviajara com a promessa de encontrar na chegada uma carta do chefe eamigo, com determinações, recomendações e perguntas. Pela carta queAnísio lhe endereça, pode-se entender que os três viajantes não conta-ram com roteiro prévio nem com contatos pré-determinados pela Dire-toria Geral (Carta de L. F. para A. T., 30/1/1935, CPDOC/FGV).

Lourenço discorre sobre as atividades de um mês de “trabalho sé-rio” em Nova York, que na maior parte do tempo gravitaram em torno daUniversidade de Columbia “em aulas, conversas técnicas, observações,meetings anuais do ensino elementar”. Conta que foram muito bem re-cebidos por professores do Teachers College – Duggan e Kandel(“gentilíssimos, cada um com seu feitio próprio”); que jantaram com oDean Russell e um grupo de professores do Teachers College (entre osquais Kilpatrick, Counts, Wilson, Bagley, MacMurray, Del Manzo); quetivera duas conversas com Kilpatrick e outra a ser realizada e três encon-tros técnicos com Thorndike, Gates, Wilson, Kandel e Rugg sobre progra-mas escolares e sobre o ensino de Geografia e História (interesse especialde Delgado de Carvalho)6.

6 Dos nomes citados por Lourenço Filho, merecem destaque acadêmico: Isaac Kandel,William H. Kilpatrick, George Silvester Counts, William C. Bagley, Edward L.Thorndike e Arthur I. Gates. Stephen Duggan, Lester M. Wilson, Milton Del Manzotinham bastante poder no Instituto Internacional embora não fossem proeminentesdo ponto de vista acadêmico; o mesmo se pode dizer do Dean William Russell.Lourenço Filho refere-se a MacMurray, registro provavelmente incorreto de um dosMcMurry, Charles ou Frank, dois importantes professores do Teachers CollegeHarold Rugg era docente de pouco destaque. Kandel, Counts, Duggan, Wilson e DelManzo trabalhavam com estudos comparados em educação. Bagley, Thorndike e

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O missivista anota, ainda, os muitos dias de observações em seis es-colas primárias e secundárias e em escolas normais; além de uma longaconversa com o superintendente das escolas de Nova York. Houve tem-po, também, para um dia inteiro de visita à Universidade de Nova York.

Destaca a coleta de “material abundante e excelente bibliografia”;presta contas dos preços vantajosos oferecidos pelo livreiro da Barnes& Noble, que justificam muitas compras com o dinheiro que a prefeituralhe havia dado como ajuda de custo7.

De Nova York, o trio partiria para Filadélfia, Baltimore, Washington eAtlantic City. Na capital, assistiriam ao Congresso Anual do ProgressiveEducation Association e, em Atlantic City, ao Congresso da National Edu-cation Association8.

No meio da quinta página, Lourenço Filho prepara o fecho da cartacom um balanço mais geral – e ao mesmo tempo detalhado – do que estavaentendendo daquele momento norte-americano. Um traço curto, na ho-rizontal, dá destaque ao que vem.

Gates trabalhavam com Psicologia Educacional e com temas associados a disciplinase currículos escolares. Kilpatrick era professor de Filosofia da Educação. Nenhumdeles ombreava com Thornidke em projeção acadêmica; seu principal oponente,John Dewey, era professor da Faculdade de Filosofia da Universidade de Columbia(cf. Cremin, 1954).

7 Lourenço Filho se refere na carta ao livreiro da livraria Barnes & Noble que à épocamantinha apenas uma casa de venda na qual se misturavam livros antigos e novos (nacarta, ele se refere à livraria como “sebo”). Hoje, é a maior rede de livrarias de NovaYork. Sobre as compras efetuadas por Lourenço Filho para compor a biblioteca doInstituto de Educação (cf. Vidal, 2001b).

8 A National Education Association (NEA), criada nos anos cinqüenta do século XIX,foi por mais de um século o grande centro decisório em todas as matérias pertinentesà educação, graus e ramos de ensino. Nela ou a partir dela se travaram os grandesdebates educacionais, desencadearam-se as principais reformas de ensino, as princi-pais lideranças foram promovidas e apagadas entre os anos de 1880 e 1930. Pelaassociação passavam os nomes que compunham os conselhos de educação e osdiretores ou superintendentes de ensino. Nas viagens que empreendeu aos EstadosUnidos, Anísio Teixeira estabeleceu relações com essa associação. A ProgressiveEducation Association ganhou projeção nacional nos anos vinte graças a presença deJohn Dewey nos seus quadros, bem como Kilpatrick e Counts. Não se tratava deuma associação com pretensões de enfrentar a NEA, pois seus alvos eram outros eas posições defendidas colidiam com as que prevaleciam nos quadros administrati-vos da NEA (cf. dentre outros Cremin, 1988; Fenner, 1945; Graham, 1964).

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“Momento realmente interessante” pelo qual os Estados Unidos es-taria passando. Lourenço Filho percebia “espíritos agitados no debate”,ao mesmo tempo em que os defeitos estavam sendo fixados, “já perfei-tamente bem instalados, do regime social e da filosofia de vida america-na: individualismo, especialização precoce, capitalismo”. Entre os defeitos:“o entusiasmo pelas pesquisas sociais já é um obsessão”9.

A “economia dirigida” parece ser aceita como necessária; a tendên-cia à centralização, decorrente da “economia dirigida cresce também”10.

Em educação – “a julgar pelos jornais e pela conversas” – cresce ese impõe a idéia de “controle estadual, ao menos em relação às taxas,para mais eqüitativa distribuição de fundos”.

“Das teorias da educação à prática, há ainda uma longa distância, namaioria das escolas”, Lourenço pede a confirmação de Anísio: “comovocê bem sabe”, embora os esforços estariam sendo feitos para melhoriada escola primária e secundária.

No que tange à formação de professores, destaca que as escolas es-tavam tomando consciência da “necessidade de maior cultura geral, ao

9 Ao que tudo indica, o sintoma de “obsessão pelas pesquisas sociais” começou a serapresentado pela Universidade de Chicago, nos anos de 1910, quando bilhões dedólares foram aplicados em pesquisas sobre os mais diversos temas da vida urbanae industrial. Chicago teria se tornado o próprio laboratório dessas pesquisas domi-nantemente sociológicas, antropológicas e econômicas que incidiam sobre o com-portamento das gangs de jovens, adolescentes, diversas comunidades de imigrantes,grupos operários, mulheres operárias e imigrantes, só para citar um número pequenode exemplos. A obsessão tomou conta da Universidade de Columbia a partir de finsdos anos de 1920, atingindo seu apogeu nos anos de 1940; nesse caso, a cidade deNova York oferecia campo ainda mais amplo e diversificado para as pesquisassociais a que se refere Lourenço Filho em sua carta (cf. dentre outros, Ross, 1991).

10 Lourenço Filho está evidentemente referindo-se ao quadro econômico e social insta-lado nos Estados Unidos por força da chamada Depressão Econômica que ganhou suafeição mais dramática com a quebra da bolsa de Nova York em 1929. Seus comentá-rios sobre a “economia dirigida” dizem respeito ao New Deal, política econômica esocial adotada por Roosevelt ante a quebra de milhares de empresas e suas enormesseqüelas sociais, tais como o desemprego, a pobreza etc. Política que, ao mesmotempo, centralizou no poder executivo decisões no campo econômico, de sorte areduzir os riscos do livre jogo do mercado, e criou frentes de proteção social. Paramuitos analistas, o New Deal representou a implantação do estado do bem estar nosEstados Unidos.

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invés do aprendizado técnico ‘one side’”, associando sua posição à deAnísio: “idéia muito sua, aliás, sempre preocupado com este problema”.

Feito o balanço, o missivista passa outro traço como se fechasse orelatório ao Diretor Geral para então se dirigir ao amigo e companheiro.

Você me disse que eu viria a ter algumas decepções aqui. Lembra-se? Por ora,

ainda não. Mas a maioria de meus pontos de vista se têm confirmado. A admi-

ração por certos aspectos da vida intelectual, da amplitude da vida educacio-

nal é a mesma. A verificação da desigualdade do preparo dos professores, mesmo

universitários, alguns dos quais espíritos perfeitamente primários, não me

espanta [Carta de L. F. para A. T., 30/1/1935, CPDOC/FGV].

Para Lourenço, nos Estados Unidos como Brasil, eram raros os pro-fessores primários excepcionais.

A Horace Mann School – anexa ao Teachers College – que ele visi-tou atentamente, classe por classe, um dia todo, pareceu-lhe decadente.Abre parênteses e pergunta a Anísio: “ou sempre foi assim?”11.

No mais, a depressão que estende sua influência profunda sobretudo: muita miséria, muitos pedintes (junto ao hotel e nas ruas próximas àColumbia).

A América passa pelo grande teste, meu caro Anísio. Recebe-o com otimismo e

se esforça para resolvê-lo por meios inteligentes. Mas a crise não está passada.

Refletindo sobre tudo o que vejo e o que leio (sou um grande ledor dos jornais

e revistas) ganho confiança em nós e em nossa gente... [Carta de L. F. para A.

T., 30/1/1935, CPDOC/FGV].

Escrito em letra apertada no papel que lhe resta, o último parágrafovale por um capítulo:

11 A Horace Mann School foi criada com o Teachers College, em 1884, e a LincolnSchool em 1917. Nos dois casos, havia expectativas de serem escolas de experimen-tação e de inovação educacional. Embora a Lincoln tenha nascido com melhoresrecursos financeiros e pedagógicos, em ambas fracassaram os intentos originais. Em1940, as escolas foram fundidas, aproximando-se mais das direções adotadas para asescolas da cidade de Nova York (cf. Cremin, 1954).

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Quanto a certos aspectos sociais e do pensamento, verifico que você é menos

americano do que eu próprio o supunha. Na Columbia, verifico que há alguns

professores com a mesma disposição de espírito. Havemos de conversar...

[Carta de L. F. para A. T., 30/1/1935, CPDOC/FGV].

Em 18 de fevereiro, Lourenço envia outra carta a Anísio que, naque-la altura, já teria destinado uma alentadora resposta aos viajantes acome-tidos pelos sentimentos de abandono e preocupação pelo que se passava.

A segunda carta, Lourenço escreve de Washington, D.C., já tendopassado por Baltimore e Filadélfia. É uma carta mais curta, duas pági-nas, usadas quase integralmente para repassar detalhes das visitas eencontros de trabalho em Nova York.

Declara objeções aos trabalhos observados no 5º e 6º graus e no ensinodas artes nas classes do “high school” da Lincoln School que, apesar detudo, em seu conjunto não poderia nem ser comparada à decadente HoraceMann. Tal como havia previsto, diz ele, a visita às escolas de outros es-tados contrabalançou as impressões não muito positivas das escolas deNova York12. Em Filadélfia encontrou pessoas ótimas e as escolas atra-sadas; em Baltimore, deparou-se com pessoas mais interessantes, po-rém menos agradáveis. Das escolas de Baltimore, verificou os mesmostraços positivos que Anísio teria destacado em Aspectos americanos daeducação.

“Na Divisão de Pesquisa and Results” teve conversa “proveito-síssima” com “notáveis técnicos” que estariam “na trincheira, lutandocomo você e nós outros, com o pé na realidade”13.

12 Curioso comentário de Lourenço Filho a respeito da situação das escolas em NovaYork, a se considerar o fluxo imigratório intenso e a diversidade étnica e cultural dosimigrantes que marcou a cidade desde início do século XX. Para o quadro socialextremamente complexo, as escolas públicas novaiorquinas foram bastante inovado-res, pois sem dúvida contribuíram para a mistura cultural e o cosmopolitismo quecaracterizaram a cidade ao longo do século XX.

13 Nos Estados Unidos, a obsessão às pesquisas sociais certamente foram antecedidasda obsessão pelas pesquisas educacionais, destacadamente as estatísticas. Os rela-tórios apresentados pelos Estados Unidos, com especial participação da NEA, nas

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Seguem outros comentários, que se encerram num provisório balanço:

De tudo, por ora, a não ser em pequenos detalhes, a conclusão é que o trabalho

que aí vamos fazendo sob a sua direção, é um trabalho em que se pode ter

confiança. Sua carta reafirmou a impressão de que você, ao contrário do que se

pensa, sabe guardar a atitude objetiva para julgar a América, e que você com os

conhecimentos aqui colhidos, tem sabido criar algo de seu, interpretando o

meio social tão diverso em que vivemos.

Na sua carta resposta, Anísio justifica-se por não ter fornecido car-tas, recomendações, itinerários. Não queria interpor suas impressões àsque Lourenço formaria por conta própria; não queria induzi-lo com seus“parti-pris”, seus julgamentos que seriam inúteis ou prejudiciais. Queriade Lourenço seus próprios julgamentos e avaliações que já constavamas cartas que recebera.

Anísio segue conferindo, a cada passo, as observações de Lourenço:a) nunca visitara uma escola em Nova York, embora lá tivesse vivido dezmeses; b) realmente nunca visitara a Horace Mann; c) a obra de renova-ção escolar, consciente e integrada, não estaria generalizadamente ocor-rendo nos Estados Unidos, apenas em alguns estados, mais ao Centro eao Oeste; no Norte, no Leste e no Sul, eram apenas esporádicos os exem-plos de reconstrução escolar.

Por tudo isso,

sem pretensão, sempre pensei que a nossa obra no Rio, seria tão revolucioná-

ria aqui quanto na maior parte dos Estados Unidos. Isso, porém, não importa

em pensar que temos aqui os recursos, sobretudo de investigação e inquérito,

que ai já foram elaborados. Em técnica a coisa aí é muito melhor, em filosofia

e plano, porém... tanto há a fazer aí quanto aqui.

Prolonga-se em críticas duras a Kandel e “seu complexo contra aAmérica e contra as ciência da educação”. Kandel, um europeísta viru-

exposições internacionais, criaram tradição dentro e fora do país. Merecem atençãoos relatórios datados desde a Exposição de Filadélfia em 1876 (cf. Warde, 2002a).

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lento; “sophisticated, maligno, crítico etc.”14. Europeístas, também, Rugge Russell. Bagley “um típico americano, estreito, profundo e puritano”.Quanto a Counts, “um pouco de ar crítico [em] mar alto”.

Antes de virar a folha para lamentar o tempo que Lourenço e com-panheiros teriam perdido com Kandel, Anísio sentencia:

“Dewey, Kilpatrick, Counts [...] são absolutamente revolucionáriosem plena América... É o tal pensamento de fronteira, que, em rigor, foio pensamento que me absorveu no período em que estive nos EstadosUnidos” (Carta de A. T. para L. F., 28/2/1935, CPDOC/FVG).

São julgamentos, avisa Anísio, que ele quer rever com Lourenço,pois “nada é definitivo”.

No total, em torno de dez páginas, somadas as de Anísio Teixeira eLourenço Filho, dão a impressão de 100; a cada leitura, elas se multiplicam,como se compendiassem parte significativa dos debates educacionais daépoca. Reunidas, no entanto, as dez páginas não produzem um manual defácil consulta. Elas exigem muitos anexos para serem decifradas.

Aqui, como se sabe, elas estão sendo consideradas tão somente comopontos de partida para um movimento regressivo em direção ao itinerá-rio de formação de Lourenço Filho.

Na sua carta, Anísio Teixeira mescla críticas duras e ressalvas cau-telosas; confessa desinteresse pelo que lhe parecia velho nas escolasdos Estados Unidos; um velho tão dominante lá como no Brasil; separa ojoio do trigo ao reafirmar sua admiração por Dewey e Kilpatrick que,acrescidos de Counts, seriam os únicos pensadores “absolutamente re-volucionários em plena América”, “pensadores de fronteira”.

Esse não era o Anísio Teixeira usual, dado a público. Esse Anísio nãoera de todo sabido; Lourenço Filho faz transparecer estar ciente de que,em se tratando de assuntos norte-americanos, a imagem pública que sefazia do amigo não correspondia à imagem que dele se podia formar emsituação privada. “Sua carta”, diz Lourenço em 18 de fevereiro, “reafir-

14 Curioso o comentário de Anísio sobre I. Kandel, considerando-se que se tratava deum europeu (romeno com permanência na Inglaterra para estudos) que, por meio deestudos comparados, projetava a educação norte-americana para o mundo.

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mou a impressão de que você, ao contrário do que se pensa, sabe guar-dar a atitude objetiva para julgar a América...”.

Ao contrário de outras pessoas, ele conhecia o Anísio capaz de “ati-tude objetiva”. A quem Lourenço aludia? Quem o impelia a denegar ojuízo de que Anísio não sabia julgar objetivamente a América?

Estaria ele atenuando a avaliação que emitira ao término da carta de30 de janeiro – “quanto a certos aspectos sociais e de pensamento, verifi-co que V. é menos americano do que eu próprio supunha...” – na qual sedelatou, ao confessar as suposições que Anísio até então lhe provocara?

Lourenço Filho se esforçara para aliviar o peso do juízo anterior,porém isso não fora o suficiente para elidir o tanto de ironia contido noseu elogio a Anísio, pois decidira aplaudir a capacidade do amigo dejulgar a América objetivamente quando não havia colocado a Américaem tela; Anísio centrara toda a atenção em aspectos educacionais queLourenço Filho havia levantado.

Anísio, por sua vez, revela-se empenhado em responder ponto porponto as observações e perguntas de Lourenço relativas às matérias edu-cacionais, porém não se manifesta a respeito dos comentários de Lourençosobre a crise econômica, a pobreza que se alargava, a filosofia individua-lista e outros aspectos da vida norte-americana. Na passagem em quedeclara concordância com a avaliação de Lourenço de que os avançoseducacionais norte-americanos eram tão pontuais quanto os brasileiros econfessa, sem pretensão, que a obra que estariam realizando (no DistritoFederal) era tão revolucionária quanto as que estariam sendo realizadasem alguns lugares dos Estados Unidos, Anísio esboça uma avaliação maisabrangente das condições de renovação educacional no Brasil e nos Es-tados Unidos que borram, furtivamente, a agudeza das análises até entãodesenvolvidas. As condições, lá e cá, seriam equivalentes, descontadas asconquistas já efetuadas pelos norte-americanos; eles tinham recursos,sobretudo de investigação e inquérito, técnica, filosofia e plano.

Anísio Teixeira acionou índices, pode-se dizer, ecológicos, à luz dosquais as condições dos dois países eram, de plano, desiguais.

O que seria mesmo “ser americano” para Lourenço Filho? Algunssignificados podem ser inferidos dos comentários que antecedem o usoda expressão. Ele acabara de apresentar uma avaliação dos problemas

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que os Estados Unidos estavam enfrentando; das mazelas de que pade-cia a educação norte-americana, tanto quanto a brasileira; do contrasteentre as atitudes que os norte-americanos manifestavam diante dos pro-blemas, dispostos a convertê-los em desafios, ao mesmo tempo que elevia os defeitos serem fixados, “já perfeitamente bem instalados, do regi-me social e da filosofia de vida americana: individualismo, especializaçãoprecoce, capitalismo...”.

“Ser americano” seria, assim, enfrentar de modo objetivo, direto, semgrandes volteios, os problemas postos. Como também, seria aceitar a filo-sofia de vida individualista, especializada, capitalista. Ainda, acreditarmenos na filosofia dos filósofos e aceitar mais a filosofia de vida do ho-mem comum.

Essas faces que compunham a imagem de Lourenço Filho do “seramericano”, então, não corresponderiam exatamente ao que Anísio Tei-xeira lhe parecia ser.

Lourenço Filho vinha de muitas observações do que se passava nocotidiano de escolas de diversos estados, nos padrões de formação e deprática dos professores primários; por essas e outras observações, Lou-renço Filho não revelou encantamento. A educação norte-americana, aoque é dado a verificar pelas cartas, não o maravilhou.

Entre essa realidade escolar tão diferençada quanto ao padrões deorganização e de ensino em curso e os avanços teóricos e propositivos dosprofessores das universidades visitadas havia uma grande distância aser preenchida. Tanto quanto no Brasil. Essa questão também não o es-pantara.

O Anísio Teixeira que se dava a saber, até mesmo a Lourenço Filho,talvez ajuizasse positivamente a educação norte-americana e o seu lugarna construção de uma cultura democrática, menos pelo que sabia dasescolas em funcionamento, e mais pelos incitamentos intelectuais vindosde pensadores como Dewey, Kilpatrick e Counts. Resguardadas as dife-renças, nesses três pensadores Anísio Texeira encontrava um manancialde argumentos em favor da tradição democrática norte-americana paraa qual a escola havia contribuído sobejamente; com base nessa tradição,eles argumentavam em favor de alargar e levar mais longe as fronteirassociais nas quais a sociedade norte-americana estava balizada. Não se

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tratava de efetuar a crítica da tradição democrática norte-americana –tal como ela havia sido postulada pelos seus pais fundadores – mas deretornar aos seus fundamentos nos quais estava inscrito o princípio deque para a democracia norte-americana não havia fronteiras intrans-poníveis; democracia nos Estados Unidos queria dizer a prática de sem-pre alargar e levar mais longe as fronteiras sociais (sobre o lugar das“fronteiras sociais” na filosofia social de John Dewey, cf. dentre outrosMills, 1966).

À época que Anísio Teixeira foi absorvido, como ele mesmo diz, poresse “pensamento de fronteira”, os seus proeminentes defensores estavammuito próximos e trabalhando praticamente nas mesmas frentes,destacadamente em associações e periódicos comuns. De qualquer modo,havia entre eles consideráveis diferenças, não só quanto ao vulto de suasobras como pela originalidade e alcance de suas análises. Dewey e Counts,ao mesmo tempo que se situavam nas pontas do espectro das posições quearregimentavam, por certo, respondiam pelos estudos sociais mais densose originais.

Haviam chegado a um grau considerável de concordância quanto àgrandeza da tradição democrática norte-americana; partilhavam críticasduras à escola pública que estreitando os horizontes da formação, tor-nava mais fortes seus mecanismos de exclusão social. Falavam de umaescola pública que fora alicerce da democracia e que agora estava fo-mentando uma sociedade segregada. Divergiam em muitos outros as-pectos. Naquele momento, no entanto, apontavam para direções sociaisdistintas.

O programa social de J. Dewey implicava no reecontro idílico comos fundamentos democráticos da sociedade norte-americana, suposta-mente perdidos na entrada do século XX. Á época dos estudos de AnísioTeixeira no Teachers College, G. Counts manifestava baixa expectativaem programas sociais que implicavam ajustes espirituais, pois tinha críti-cas ao suporte material da sociedade norte-americana (Warde, 2003).

As referências de Anísio Teixeira a esses intelectuais sugerem queas diferenças entre Counts e Dewey não o teriam atingido de modo es-pecial. Os escritos de Anísio até meados dos anos de 1930 indicam, talcomo ele mesmo declarou por muitas vezes, que sua escolha filosófica

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havia recaído com toda a força em John Dewey, que funcionou paraAnísio como um instrumento de aglutinação de diversas tendências dopensamento social; serviu também para guiá-lo na leitura da tradiçãodemocrática norte-americana e no entendimento da escola pública comoalicerce daquela tradição. O fato de ter lido Dewey pelo filtro de Kilpatrickcontribuiu consideravelmente para dissolver as zonas de impermeabilidadeentre as tendências de pensamento norte-americanas com as quais en-trou em contato.

Na sua carta resposta, há indícios que ali estava o Anísio tal comoteria se “revelado” aos olhos de Lourenço: o que ele tinha de muitopositivo a destacar era aquele trio de pensadores aos quais, ele confessa,teria se dedicado a estudar na sua permanência em Nova York; eles ohaviam instigado. As críticas duras que enceta contra Kandel e outrosprofessores do Teachers College não cabiam, de fato, senão em umacircunstância reservada. Com eles, Anísio Teixeira mantinha relaçõesde cooperação política mais do que intercâmbios intelectuais; nesse âm-bito, seria de todo insensato tornar públicas as suas objeções. Dos diferen-çados padrões de funcionamento administrativo e pedagógico das escolasnorte-americanas, Anísio tinha pouco a acrescentar a Lourenço, postoque em sua viagem de 1927, havia visitado escolas nas quais os padrõesrenovadores já estavam consagrados, dentre as quais a Horace Manndo Teachers College não estava incluída; o que o impedia de responder àpergunta de Lourenço Filho: afinal, essa escola estava em decadência“ou sempre foi assim?”.

O relatório de Anísio Teixeira Aspectos americanos da educação, pu-blicado em 1928, é referido em carta de Lourenço Filho de sorte a su-gerir que essa era a peça com a qual ele aferia as suas impressões e as deAnísio Teixeira em matéria de educação norte-americana, na ausência deroteiros, recomendações e perguntas prévias. O Anísio daquele relatóriooferece a imagem dos Estados Unidos como um país – quiçá o único – noqual teria verificado a passagem, não traumática, porque metódica, dateoria à prática. Crença de cristão-novo no poder prático de teorias cien-tificamente orientadas; empatia imediata e irrestrita pela “teoria da educa-ção” de John Dewey na qual teria encontrado o vetor espiritual capaz defazer face e de derivar positivamente apelos desenfreados da materia-

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lidade moderna – problema com o qual estivera inteiramente envolvido emsua viagem à Europa, em 1925 (cf. Warde, 2002b, 2002e).

A compreensão das “idéias educacionais” de John Dewey como fun-damento das iniciativas escolares modernizadoras, porque nelas os avan-ços educacionais pretéritos teriam encontrado sua melhor síntese, falamde um Anísio que se iniciava em matéria de educação, que pensava a es-cola e os problemas de ensino a partir do posto de Diretor Geral da Instru-ção Pública da Bahia. Tinha olhos argutos e ouvidos refinados para pensaro pensamento; mas não formatados pela prática, pela experiência, pelotreino ou pelo experimento pedagógico.

O roteiro de observação e estudo que orientou a visita de 1927 aosEstados Unidos pode ser pensado como um “guia para dirigentes educa-cionais” (cf. Warde 2002b, 2002e). Uma mapa por demais seletivo, pu-rificado em demasia; dele constaram apenas os “casos exemplares”; asexperiências com bons resultados; as “evidências” da renovação norte-americana em matéria de educação (cf. Teixeira, 1928). Não o estimula-ram, sequer, a usar a permanência mais prolongada que lhe fora facultadano ano seguinte, para verificar o destino que aquele grande centro de estu-dos superiores em educação, o Teachers College, conferia à sua própriaescola secundária, a Horace Mann. Oportunidade desperdiçada, pois lápoderia ter observado como práticas pedagógicas sedimentadas resistiamà pressão direta e imediata dos professores do Teachers College desdeos mais até os menos “revolucionários”.

O Horace Mann estava ali, compondo o mesmo conjunto arquitetô-nico do Teachers College; excelente lugar para verificar como e por que,além de umas tantas paredes, fronteiras espessas impediam o livre trân-sito entre a Escola e o College, “entre a teoria e a prática”.

O indivíduo e suas circunstâncias

As circunstâncias em que Anísio Teixeira se vira obrigado a pensar emeducação e a dispor com agilidade políticas de intervenção renovadora, nãolhe deram tempo para incorporar à sua bagagem mental instrumentosmuito distintos daqueles de que já era portador. Naquelas circunstâncias

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marcadas pela urgência, a destreza de que dera provas, de manejar deter-minadas ferramentas mentais, pode ter lhe servido, a um só tempo, pararesponder com inteligência aos desafios interpostos pelo cargo de direção,bem como para bloquear aventuras mentais mais arriscadas.

Formado por jesuítas com tal esmero que a Ordem o queria entre seusquadros; socializado num ambiente político no qual a defesa de posiçõesliberais e republicanas de alguns grupos ou facções não haviam quebradoas camadas graníticas do coronelismo, do apadrinhamento, do favoritismo,estendidas dos meios rurais para os urbanos15. A profunda crise religiosapela qual passara nos anos vinte, não oferta qualquer evidência de que, areboque, Anísio Teixeira se colocara problemas de escolhas teóricas queultrapassassem os seus próprios limites pessoais ou pudessem, inclusive,inviabilizá-lo para o cargo16.

Não há lapso entre a crise religiosa e o cargo de Diretor Geral daInstrução Pública da Bahia; a crise religiosa foi superada no exercíciomesmo do cargo público. Nesse, Anísio deu provas de que estava nopleno uso do seu equipamento mental; íntegro e operativo; provas da suadestreza intelectual e política.

Pelos registros que deixou das duas viagens aos Estados Unidos, noque cabe destacar as disciplinas que decidiu freqüentar, além da dispensade visitas a escolas – tal como deixa claro em carta a Lourenço Filho –,Anísio Teixeira dá a conhecer os procedimentos mentais que adotou paraenfrentar os desafios de fincar raízes num campo que não estivera no seu

15 Há de se pensar no pai de Anísio Teixeira como um médico, membro das elitesbaianas que, por isso mesmo, tinha uma série de compromissos políticos dos quaisnem ele nem o filho podiam se ver livres. A escolha dos estudos em Direito parecedizer mais do peso das circunstâncias sobre o Anísio do que da liberdade de escolha.Em escritos posteriores à sua formação, Anísio dá a saber que seus estudos emDireito não o empolgaram. Sobre os compromissos políticos que pesaram sobreAnísio Teixeira (cf. Miceli, 2001).

16 É pertinente pensar os processos de racionalização, no sentido weberiano, pelosquais as ações públicas de Anísio Teixeira teriam passado, considerando-se as pres-sões vindas dos jesuítas, do pai e do cargo público. A adesão ao credo pragmatista deJohn Dewey deve ter se somado favoravelmente a esses processos de racionaliza-ção, pois se trata de um credo nascido do esforço extremo de racionalização docristanismo (cf. a respeito Weber, 1944).

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horizonte de formação17. No campo educacional, demarcou com linhas níti-das o seu território; nele se assentou com o mesmo instrumental e a mes-ma habilidade com que fora muito bem formado. Escolheu o territóriodelimitado entre a filosofia e a administração política da educação18. Nãoera e nem escolheu ser um pedagogo nascido da docência19.

Enfim, ao que parece, é a esse Anísio Teixeira que Lourenço Filho serefere como “menos americano”.

17 “Da ficha de estudos realizados por Anísio Teixeira no Teachers College constam:duas disciplinas de Filosofia da Educação com Kilpatrick (ambas denominadasPhylosphy of Education), duas disciplinas voltadas à formação de professores(Professional Education of Teachers, com Bagley, Alexander e outros, e Reseacrh ofEducation of Teachers, com os Bagley, Alexander e Evenden); duas disciplinasrelativas à administração educacional (Administration of Teachers College, comEvenden, e Principles of educational administration, com Alexander, Mort e Elsbree);duas voltadas ao tema da educação rural (Field work in rural education and ruralsociology e Rural education and country life, com Carney e outros) e quatro comperfis diferençados (Educational Psychology - for foreign students, com Wilson,American Educators, com Counts, The economic effect of education, com Clark,European Education, com Kandel e Curriculum: Basic Considerations, com Bonsere outros). Os nomes dos professores que constam da ficha escolar de Anísio Teixeira,localizada nos arquivos reservados do Teachers College, não coincidem plenamentecom aqueles arrolados no catálogo do ano letivo de 1928-1929, bem como os que opróprio Anísio registrou no seu caderno de notas. Não há incongruências entre essasfontes e sim ausências. Por exemplo, do caderno consta o nome do professor Reisnerque no entanto não comparece na ficha escolar de Anísio; Counts comparece só umavez da ficha mas está anotado entre outros professores de uma outra disciplina. Asexplorações em torno desses materiais serão apresentadas em outra oportunidade(cf. Teachers College, 1927-1929)”.

18 A correspondência que Anísio Teixeira manteve em 1929 com Monteiro Lobato,Lourenço Filho dá conta do seu sofrimento por estar confinado em uma sala de aulada Escola Normal de Caiteté, das lamentações de Lobato de ver o amigo “burilado”pela América naquele sertão baiano e os esforços de Lourenço Filho de convencê-loa trabalhar em São Paulo (cf. L. F. 30/31.05.15; A. T. 29.11.01; Vianna e Fraiz, 1986).

19 Anísio Teixeira faz lembrar mais uma vez as análises de Weber: a realização plena daburocracia dispensaria, no topo da hierarquia, o especialista em favor do diletante,cuja competência para o cargo seria testada pela habilidade de selecionar assessorescompetentes e de cobrar dos quadros subordinados as especializações, em nome dasquais teriam sido selecionados. A escolha do dirigente pela especialidade poderiatorná-lo vulnerável, alvo direto das reclamações do público – que não poderiam sertransferidas aos assessores – e o nivelaria aos subordinados – com os quais se veriaobrigado a aferir os conhecimentos (cf. Weber, 1971).

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“Mais americano” seria ele mesmo, Lourenço Filho, que, infirmandoas expectativas do amigo, declarava não estar se decepcionando nosEstados Unidos, porque a maioria de seus pontos de vista estavam seconfirmando: continuava admirando aspectos da vida intelectual e aamplitude da vida educacional norte-americana; do mesmo modo quenão estava espantado ao verificar a desigualdade no preparo dos profes-sores... Reporta as suas observações do ambiente escolar e acadêmiconorte-americano como peixe nadando em águas claras.

Lourenço Filho, àquela altura, já detinha um amplo saber pedagógi-co, parte dele acumulado em experiências docentes orientadas por pa-drões pedagógicos renovadores.

Quer na formação como normalista, quer na docência primária e nor-mal, desde a segunda parte dos anos de 1910, Lourenço Filho constituírao seu arsenal intelectual em ambientes escolares tangidos pelos vetoresmais diversos. Na sua formação, instrumentou-se para pensar e condu-zir suas práticas na direção da renovação; mas as escolas nas quaisLourenço Filho trabalhou eram amálgamas de práticas antigas e novas;de intervenções renovadoras e de resistências. O seu arsenal pedagógi-co, portanto, não fora constituído desde fora da escola, nem em idílicascondições. A perspectiva que sedimentou sobre o que e como fazer paraformar professores habilitados para as lidas do ensino foi composta de umaparte nodal de suas experiências docentes diretas; uma outra parte foifornecida pelos experimentos psicopedagógicos que controlou, dos quaisextraiu uma série de diagnósticos de processos de ensino-aprendizagemtanto em ambientes de práticas consagradas como em ambientes de prá-ticas renovadas.

Por esses meios, Lourenço Filho formou um equipamento peculiarno qual mesclavam-se leituras e práticas por meio das quais colocou emsituação de teste a validade das teorias pedagógicas estudadas.

O pragmatismo havia entrado na sua composição e ordenação men-tais desde os idos dos seus estudos com Roldão Lopes de Barros e, demodo mais definitivo, com Sampaio Dória que, por sua vez, já havia seapropriado, quando professor de Lourenço Filho, do pragmatismo norte-americano como filosofia, como psicologia individual e como psicologiasocial (cf. Dória, 1914, 1923, 1926). Pelas mãos daqueles professores,

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estudara William James. Pelas referências que vai dispondo em seusescritos, espraiou-se em várias direções quer européias quer norte-ame-ricanas; percorreu diferentes modalidades de propostas de renovaçãoescolar. Suas iniciativas educacionais entre a segunda metade dos anosvinte à primeira metade da década seguinte indicam que, no emaranhadodas tendências, ele estava conformando sua pedagogia na direção dopragmatismo de corte experencial e experimental20.

As trajetórias ou os itinerários de formação (cf. Sirinelli, 1988) deAnísio Teixeira e Lourenço Filho foram crivados de experiências bas-tante distintas. Por meio delas, dificilmente teriam partilhado das mes-mas ou equivalentes ferramentas mentais. Quando se colocaram face àeducação norte-americana, Anísio e Lourenço apresentaram equipamentomental diverso para decifrá-la.

Lourenço Filho se envolveu em laços de sociabilidade e pertenceu aredes intelectuais e políticas que impulsionaram sua inscrição geracional(cf. Sirinelli, 1988) em uma direção bastante peculiar. Mediante aqueleslaços e pertenças, em Lourenço Filho se depositaram tanto ferramentasque compunham o arsenal dos primeiros republicanos reformistas de SãoPaulo – como João Köpke, Rangel Pestana, Caetano de Campos, GabrielPrestes21 –, dos homens e mulheres que lhe deram base de sustentação

20 Os dicionários dão como sinônimos as palavras “experencial” e “experimental”, po-rém não é comum na bibliografia pertinente ao assunto tomá-los como tal, por isso atautologia cometida no texto. O pragmatismo norte-americano, nascido das descober-tas de Darwin em torno da evolução das espécies, não concebe a distinção posto queo conceito de “experiência” implica tanto o acúmulo de respostas satisfatórias (já tes-tadas) como a projeção de uma situação futura mais satisfatória. A lógica de JohnDewey deixa claro que “experiência” remete a uma situação presente que demandado sujeito (indivíduo) projeções para o futuro pautadas em respostas já acumuladasou testadas. As tentativas de se dispensar o passado – as respostas já testadas – paraprojetar o futuro apontam na direção do insucesso (cf. Warde, 1984).

21 De Gabriel Prestes destaque-se: assumiu em 1893 a direção da Escola Normal de SãoPaulo, abrindo mão do cargo de deputado para o qual havia sido eleito com expres-siva votação e em cujo exercício vinha se projetando; Prestes estudara na escolanormal nos anos oitenta, nela se destacando como líder estudantil. Ressalte-se quePestana e Kökpe titularam-se pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1863 e1875, respectivamente; por sua parte, Caetano de Campos colou grau em Medicina,no Rio de Janeiro, em 1867. Sobre João Köpke, Francisco Rangel Pestana e AntonioCaetano de Campos (cf. verbetes, 2002).

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pedagógica na direção de escolas e na sala de aula – como Marcia Brownee Oscar Thompson –, assim como o arsenal da geração seguinte formadaem cursos normais, em dezenas de anos na sala de aula, na direção esco-lar, em laboratórios psicopedagógicos, lugares nos quais experimentaramas renovações e inovações do ensino paulista – como Roldão Lopes deBarros, Almeida Júnior e, de forma muito especial, Sampaio Dória22.Nesse grupo, Oscar Thompson aparece como um importante elo, a um sótempo, de continuidade e de atualização entre as gerações.

De João Köpke a Sampaio Dória, todos os membros da rede intelec-tual e política na qual Lourenço Filho se formou tiveram expressiva ex-periência escolar quer como professores quer como criadores e diretoresde escola. Do método intuitivo como “lição de coisas”, no formato deKöpke à fórmula “analítica”, que Sampaio Dória lhe conferiu, acumula-ram-se experiências escolares, bem como descontinuidades decorrentesde muitas disputas em torno do método adequado para o ensino do sabe-res elementares, atravessadas pela “querela” do melhor método para oensino da leitura. Lourenço Filho, em 1916, já se evidencia o depositáriodesse legado: foi ele que organizou as entrevistas para o inquérito promo-vido pelo jornal O Commercio de São Paulo sobre o método analíticono ensino da leitura, que envolveu figuras paulistas destacadas na maté-ria e João Köpke, que há muito não residia em São Paulo (cf. Braslavsky,1971; verbete João Köpke, 2002; Mortatti, 2000).

22 Sobre Oscar Thompson, Antonio Ferreira de Almeida Júnior e Antônio de SampaioDória ver os respectivos verbetes (2002). De Roldão Lopes de Barros (1884-1951)destaque-se que: formou-se no Curso Normal e no Curso de Direito de São Paulo,entre as duas primeiras décadas do século XX, além de ter realizado curso e experi-mentos com Ugo Pizzoli no Laboratório de Pedagogia Experimental da Escola Nor-mal Secundária de São Paulo (1914); desde 1911, lecionou na Escola Normal Primáriada Capital a cadeira de Psicologia, Pedagogia e Educação Cívica, que Lourenço Filhoocupou, em 1920, substituindo-o, quando R. Lopes de Barros assumiu a direção daescola. Thompson e Dória também se formaram pela Faculdade de Direito de SãoPaulo, respectivamente em 1899 e 1908, sendo que o primeiro cursara a EscolaNormal da Capital entre 1889-1891. Almeida Júnior se formou em medicina, em1921, em São Paulo; em Pirassununga, foi seu professor de francês e pedagogia naEscola Normal Primária (1912-1914). Destaque-se ainda que, em 1927, LourençoFilho fundou o Liceu Rio Branco com A. Sampaio Dória, A. Almeida Júnior eRoldão Lopes de Barros (cf. Bontempi Jr., 2001).

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Inscrição geracional, pertença a redes intelectuais ou políticas, laçosde sociabilidade; para cada um desses marcos, há que se prestar atençãona reconstituição do que se pode chamar de trajetória ou itinerário deformação de um intelectual. Em se tratando de um intelectual, ainda quenão estritamente acadêmico, como Lourenço Filho, não há como dispen-sar em meio a esses marcos o papel específico que professores possamter exercido como balizadores do trajeto (cf. Sirinelli, 1988; Collins, 2000).

Sampaio Dória se afigura o principal balizador da formação de Lou-renço Filho, não em termos genéricos, mas naqueles traços que singula-rizam Lourenço Filho como intelectual da educação.

A diferença de idade entre Dória e Lourenço não explica as direçõesque o mestre apontava ao discípulo, como se fossem legados deixadosem testamento; Dória perseguia essas mesmas direções. Partilhandoorientações, a distância etária de quatorze anos não interceptou umaconvergência geracional, no sentido sociológico e não cronológico dotermo.

Dória mediou o ingresso de Lourenço Filho em redes de relaçõesintelectuais e políticas que atravessavam espaços institucionais como aFaculdade de Direito e a Escola Normal da Praça; com menos intensi-dade, as Faculdades de Medicina e Engenharia lhe abriram um leque depossibilidades determinadas. Incluindo também, ambientes editoriais comoo jornal O Estado de S. Paulo, a Revista do Brasil e associações como aLiga Nacionalista de São Paulo. Esses ambientes comportavam umacerta heterogeneidade social e econômica dos seus membros. Dentremuitos outros, a Lourenço Filho foi dado ganhar proximidade com o pró-prio Sampaio Dória; Oscar Thompson; Fernando de Azevedo; MonteiroLobato e Oswald de Andrade (cf. Hilsdorf, 1998; Larizzatti, 1999; Mer-cado, 1996).

Lourenço Filho não conviveu com figuras como Rangel Pestana,Gabriel Prestes, Caetano de Campos, Márcia Browne e João Köpke –alguns vivos outros mortos –, mas a presença deles era, quiçá, tão fortequanto a dos vivos. Faziam parte do imaginário daquelas redes; eram sím-bolos potentes do passado recente, responsáveis pelos atos inaugurais deinserção do ensino público no coração da república paulista. A repúblicados republicanos paulistas, aqui em tela, foi proclamada com um vetor

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socioeducacional. Em 1890, havia uma reforma pronta a ser implantada(cf. dentre outros Reis Filho, 1981).

Nesse sentido, eram americanófilos. Como legatório, Lourenço Filhoparece ter entendido que as primeiras operações republicanas tinhamque ser concluídas – como a extensão da alfabetização a todos – ao mes-mo tempo em que se desencadeavam as operações de fabricação dohomem novo operativo, psicofisicamente treinado para ser industriosoquer no manejo da maquinaria quer no comando dos negócios. LourençoFilho não era americanófilo, ou já estava dispensado de sê-lo; era ameri-canista.

Thompson e Dória contribuíram sobremaneira para fazer Louren-ço Filho portador dos mesmos símbolos e do mesmo passado, por elesglorificado. Esses dois destacados educadores eram pessoal e profissio-nalmente íntimos; foram mutuamente importantes nas escolhas políticase pedagógicas que fizeram ao longo dos anos dez23.

Porém, tivesse sido Oscar Thompson o balizador dos primeiros mo-mentos da sua formação, é provável que Lourenço Filho tivesse investi-do mais no acúmulo da experiência pedagógica e apostado mais no sentidoda docência como “arte de ensinar”.

A configuração, a ordenação e as modalidades de ferramentas quecompuseram o arsenal mental de Lourenço, no entanto, apontam paraSampaio Dória, com quem se iniciou em leituras teóricas mais complexas,familiarizou-se com as novas tendências da pedagogia e da psicologia,tendo por vetor científico o pragmatismo de William James e as primeiraspsicologias educacionais, quer as funcionalistas, como a de Ed. Claparède,

23 É preciso prestar atenção na própria trajetória de Oscar Thompson. Vindo de expe-riências com o método intuitivo e com a diferenciação e seriação das matérias deensino, Thompson assumiu, a partir de 1901, a direção da Escola Normal de SãoPaulo e, por duas vezes, a Direção Geral da Instrução Pública, até se afastar das lidaseducacionais em 1920. Nos anos de 1910, as suas intervenções como diretor dainstrução pública de São Paulo falam de um Thompson bastante próximo das ten-dências de renovação educacional norte-americanas. São muito conhecidas suas ini-ciativas na primeira gestão entre 1910 e 1911 – quando fez circular pelas escolaspúblicas cartilhas e livros trazidos dos Estados Unidos –; em contrapartida, é dadopouco destaque aos seus planos renovadores dados à público, em 1917, quandoretorna ao cargo. Thompson volta propondo a Escola Nova (cf. Gonçalves, 2002).

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quer as de base experimental, tais como: o behaviorismo de J. B. Watson,o conexionismo de E. L. Thorndike e R. S. Woodworth, com as quaisdialogou até compor o seu próprio modelo24.

Nos registros que Noemy Rudolfer legou sobre a sua própria trajetó-ria de formação, consta com destaque aquele período em que Lourenço

24 A historiografia da educação que vem trabalhando com temas pertinentes à interven-ção da psicologia no campo escolar ou pedagógico tem insistido em interpretaçõesum tanto duvidosas, tais como: a) todas as psicologias experimentais são pautadasno princípio da prevalência das determinações biológicas sobre as sociais ou ambien-tais; b) tendo a mesma base biológica, todas as psicologias experimentais são psico-logias do indivíduo; c) todas as psicologias experimentais investem na conservaçãoe não na mudança; d) como tal, essas psicologias abstraem suas condições concretaspara mensurar e controlar habilidades, comportamentos inteligência etc. O primeiropostulado, do qual decorrem os demais, é falso. As psicologias experimentais do fimdo século XIX e começo do século XX nasceram da incorporação das pesquisas deDarwin, assim têm como preocupação central investigar que tipos de relações osindivíduos estabelecem com seu ambiente (há de se agregar, ambiente social). Obehaviorismo de Watson e, a fortiori, o behaviorismo radical de Skinner interrogamo comportamento, ou seja, as relações objetivas dos indivíduos com outros indiví-duos, dos indivíduos como agrupamentos e assim por diante. O foco recai sobre ocomportamento, e não sobre o gesto, por exemplo, porque o primeiro tem um vetorsocial, um ambiente criado, não natural. Fosse biológica a base sobre a qual obehaviorismo se apoia no sentido de os comportamentos serem determinados biolo-gicamente, os behavioristas não teriam por alvo o desenvolvimento de novos com-portamentos. Outra vertente experimental diversa do behaviorismo é o conexionismotal como foi desenvolvido por E. Thorndike que se distancia plenamente do postu-lado da prevalência do biológico. Thorndike centrou sua atenção em questõescognitivas, tais como as operações mentais efetuadas pelos indivíduos para adquirirdeterminada habilidade, para reter determinadas informações, para solucionar pro-blemas etc. Por meio dos seus experimentos, princípios pedagógicos pautados nosuposto da transferibilidade genética dos conhecimentos foram rebatidos. Essaafirmação ainda é precária se a ela não se agregar que Thorndike potencializou seusexperimentos incluindo sujeitos de diversas etnias: asiáticos, europeus de diversasregiões, negros e assim por diante, para patentear que as habilidades cognitivas dosindivíduos não são determinadas biologicamente, porque são aprendidas. No quetange aos testes de Lourenço Filho (Testes ABC) para preparação e acompanhamen-to das primeiras fases da escolarização das crianças, eles não têm qualquer funda-mento biológico; dizem respeito às condições prévias para aprendizagem; préviasnão quer dizer inatas, orgânicas ou biológicas. Por fim, diante das controvérsias emtorno de ser o indivíduo o foco privilegiado das psicologias experimentais, WilliamJames deu a seguinte resposta: [“mas é claro! A Psicologia diz respeito a indivíduose, em última análise, a vida é apenas a solidão do homem ‘inteiro em sua própriapele’”] (cf. Warde, 2002e).

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Filho, substituindo Sampaio Dória na cadeira de Pedagogia e Psicologiada Escola Normal da Praça (1925-1930), reativara o Laboratório de Psico-logia da Escola, atualizara os equipamentos, modificara as relações entreas aulas da disciplina e as atividades laboratoriais tornando-as mais ín-timas. Foi naquele período que se abriu a oportunidade de se tornar aomesmo tempo aluna ad hoc de Lourenço Filho e sua auxiliar nas práticaslaboratoriais. Por dois anos, N. Rudolfer relata, enquanto colaborava nastestagens, retestagens e padronizações, que seguira um plano de estudosde psicologia educacional montado por Lourenço Filho, no qual estavamincluídos os autores e obras que tinham sido por ele estudados comSampaio Dória, bem como novos autores e obras que Lourenço Filho haviaacrescentado em seus exercícios de atualização.

Do rol de autores herdado por Lourenço Filho de Sampaio Dória,Rudolfer destaca William James, acrescentando tratar-se de pensadornorte-americano que há muito Dória havia se dedicado a estudar (cf.Warde, 2000a, 2000b; Monarcha, 2001).

Ter manejado tendências contemporâneas da psicologia e da psicologiaeducacional, pelo crivo do pragmatismo de William James e da experi-mentação, para compor suas próprias ferramentas pedagógicas, facul-tou a Lourenço Filho um enfrentamento dos modelos pedagógicos ado-tados pelas escolas norte-americanas com a familiaridade com que umpeixe mergulha na água.

A sua atuação na Reforma de 1920, posta em execução por SampaioDória, facultou a Lourenço a experiência de trabalhar com um plano deintervenção no qual estavam presentes tanto o objetivo de nacionalizar oBrasil pela alfabetização extensiva, como a adoção de princípios psico-pedagógicos cientificamente orientados (cf. Hilsdorf, 1998).

Pelos passos subsequentes, essa experiência de reforma, bem comoo fracasso político sofrido por Dória para dar a ela seguimento nos ter-mos por ele planejados, parecem ter sido decisivos para Lourenço Filhocompor um modo peculiar de tomar assento nos debates em torno dareforma do ensino público e para singularizar-se entre as lideranças domovimento escolanovista: a alfabetização extensiva como meio de nacio-nalizar o país converteu-se em um princípio da sua própria pedagogia debase experimental.

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Essa amálgama de saber, feita de ferramentas para incisões de diversoalcance, é a expressão, quiçá mais clara, do pragmatismo de Lourenço Filho.

Lourenço Filho inscreveu-se assim no movimento escolanovista brasi-leiro. De seu arsenal mental constavam instrumentos para elaborar políticaseducacionais, planos de reformas, criação de instituições de ensino – cer-tificados de posse de uma “concepção de educação”, indicadores de umahabilidade que Lourenço Filho e seus pares fizeram constar no rol daselevadas credenciais de um bom profissional da educação. Habilidadeatestada por outros líderes escolanovistas, como Fernando de Azevedo eAnísio Teixeira, para citar dois que lhe foram bastante próximos. LourençoFilho, no entanto, detinha outros instrumentais peculiares ao pedagogocoetâneo dos movimentos de renovação educacional nascidos da moder-nidade pautada na ciência e na tecnologia: foi teoricamente orientado,treinado em experimentos e na experiência de sala de aula (cf. sobre operfil socioprofissional de Lourenço Filho, Miceli, 2001).

Formação, redes sociais e cidade

A remissão do itinerário de formação de um intelectual como Lou-renço Filho a redes de relações sociais determinadas, intelectuais e polí-ticas, nas quais e pelas quais aquela trajetória foi percorrida, deve-se àfertilidade e originalidade desse enquadramento para estudos sistemá-ticos dos intelectuais da educação, no caso específico, dos intelectuaisescolanovistas.

Distorção comum é converter o itinerário de formação de um intelec-tual na “sua autogênese” ou “de como um indivíduo extraiu de si mesmoo intelectual que se tornou”. Fazer do “intelectual o parteiro de si mes-mo” é conceder ao indivíduo uma margem de liberdade abusiva, para alémdos constrangimentos interpostos pelas circunstâncias sociais vividas. Deum lado, pode ser pela redução dos constrangimentos sociais pelas quaisqualquer intelectual é sujeito qua indivíduo; de outro lado, pode ser pelovício romântico de pensar o intelectual como o indivíduo que se distinguedos demais exatamente por ser o portador das chaves (mentais ou volitivas)que o libertam dos grilhões sociais constrangedores.

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Por outro lado, tem baixo alcance heurístico a remissão da trajetóriade formação de um intelectual às suas genéricas condições sociais, poisos constrangimentos sociais operam por meio de agentes específicos eagências determinadas que, por isso mesmo, facultam modos diferençadosde adaptação e ajustamento.

Como os coletivos intelectuais são nominados pelas funções ou luga-res sociais que os seus membros ocupam; como os coletivos intelectuaisorganizados detêm as regras da nominação e a legitimidade social parausá-las, então, são esses mesmos coletivos que controlam as condições nasquais e palas quais um indivíduo pode ser consagrado como intelectual.

Pensar os intelectuais como coletivos que se organizam e funcionamem rede, aponta, de um lado, para a singularidade das regras que os regem.Tornar-se membro de uma rede intelectual, por exemplo, não se impõecomo lei sobre um indivíduo que pode decidir dela participar ou não. Deoutro lado, pensar os intelectuais em rede – por oposição à imagem de umcipoal de indivíduos cujos caminhos se cruzaram por força do acaso –aponta para a existência de regras de inclusão e exclusão, de pertença oude oposição.

Aponta, ainda, para uma dimensão específica da rede como o coleti-vo articulado de agências e agentes de formação do intelectual. Face ao seumembro, a rede opera como o veículo de acesso a um conjunto determi-nado de ferramentas mentais disponíveis em um tempo e lugar; valida elegitima aquele conjunto, admitindo, dispensando ou se opondo a outros;funciona como base de apoio para investidas individuais dos seus mem-bros, assim como opera como filtro dos novos arranjos morfológicos queas criações originais desencadeiam.

As redes que formaram o intelectual Lourenço Filho têm raízes naintelectualidade que se formou na ou manteve relações diretas com a Aca-demia de Direito de São Paulo. Suas lideranças acumularam lutas políticase experiências escolares na capital e cidades circunvizinhas. Por veículosdiversos, é possível flagrá-las compondo um caldo de cultura rebelde aoImpério, instalado para a preservação dos poderes políticos centralizadose a garantia dos monopólios econômicos concentrados nas mãos de pou-cas, mas grandes famílias fluminenses enobrecidas na troca de favorescom a coroa portuguesa (cf. Mattos, 1994).

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Ao percorrer a diversificada, em regra fugaz, mas persistente im-prensa alimentada pelos estudantes e uns tantos professores da Acade-mia de Direito, é dado saber que o centralismo para o qual convergia oImpério era denunciado nas páginas dos pequenos jornais acadêmicospor ser mais pesado a São Paulo do que teria sido o fisco colonial e asordenações impeditivas de toda e qualquer forma de organização política.

Não teria sido preciso esperar quer por Aureliano Tavares Bastos querpor Rangel Pestana para que viessem a público os discursos mais virulentoscontra os gravames do Império, que não beneficiavam qualquer provín-cia mas que pesavam superiormente sobre aquelas cujos recursos natu-rais e a disposição dos seus habitantes abriam horizontes para a diversi-ficação da agricultura e a instalação da manufatura. Aureliano TavaresBastos insistiu em regiões, como a Amazônica, para o incremento e a li-beração da navegação de cabotagem. Rangel Pestana insistiu em SãoPaulo, nos recursos que já dispunha para a substituição do trabalho escravopor mão de obra livre caso lhe fosse dado conter e controlar o escoamentodo seu dinheiro em impostos sem retorno (cf. Bruno, 1991; Martins &Barbuy, 1999; Adorno, 1988).

Lançado em 1828, o jornal O Farol Paulistano contou desde o iníciocom a colaboração de lentes e ex-lentes da Academia que mal havia entra-do em funcionamento (cf. Martins & Barbuy, 1999). Com um novo nome,o jornal O Novo Farol Paulistano, em 1935, publicava em editorial:

Quanto mais atento para o Brasil, mais me convenço de que não está prepara-

do para a republica. Todos reconhecem que esta forma de Governo, onde o

povo é tudo, exige, para se manter, que o mesmo seja proporcionalmente ins-

truído; e tenha muita morigeração, muito amor ao trabalho, finalmente muitas

virtudes. E está por acaso n’estas circunstancias a população do Brasil? ...

Não macaqueemos os Estados Anglo-Americanos, que tiverão outros princí-

pios, outra educação, outro regimen: sim, os Estados Unidos forão povoados

e educados por Filosofos; o Brazil por criminosos profugos e degredados. Os

Estados-Unidos começarão logo com a Constituição Ingleza; o Brasil com as

barbaras e goticas Instituições de Portugal, com a Ordenação do Livro 5º, &c.

Os Estados-Unidos tiverão, desd’o seu começo, suas Assembleias Provinciaes,

e forão criados com o leite da Liberdade; o Brasil estabeleceo-se sob o mais

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duro regimen colonial, nem conheceo outros direitos senão os caprichos de

seus Verres, chamados Capitães Generaes, e a trapaça do Foro. Nos Estados-

Unidos introduzio-se logo o trabalho e a industria; no Brasil a calaçaria e fausto

dos mandões [apud Morse, 1970, pp. 91-92].

A partir das turmas ingressantes na década dos anos quarenta, a Aca-demia se tornou centro da imprensa literária, da imprensa política, de umteatro que ensaiava a crítica social dos costumes, além de lugar atrativopara manifestações de rebeldia e contestação. Por pressões diversas, aAcademia ganhou a partir daquela década, o perfil de uma escola de for-mação política, que nutriu tanto o estado imperial quanto as bancas de advo-cacia e os colégios provinciais (cf. Morse, 1970; Martins & Barbuy, 1999).

No registro de Castro Alves, bacharel pela academia de São Paulo,São Paulo de “casas que parecem feitas antes do mundo, tanto são pre-tas; ruas que parecem feitas depois do mundo, tanto são desertas...” Em1877, Américo de Campos, também bacharel pela Academia e republi-cano de primeira hora, falou de São Paulo como “uma grande cidade,populosa e florescente, a transbordar de vida e progresso...”; deixava deser o “burgo de estudantes” (cf. Martins & Burbuy, 1999).

A escolha de São Paulo como sede de um dos dois cursos de ciên-cias jurídicas e sociais, pelas vantagens do seu clima e a distância doscentros urbanos mais agitados, apesar dos protestos de deputados quetemiam os riscos da má influência do português arrevesado das gentesdaquela cidade, potencializou a distância e facultou a aglomeração dejovens dispostos a fazer mais do que noitadas românticas e alcoolizadas.Na segunda metade do século XIX, a cidade congregava o maior núme-ro de bacharéis republicanos dispostos a transformar suas escolhas inte-lectuais em armas de luta contra o centralismo político e os poderes daIgreja católica para decidir os destinos das almas.

Conviveram na Academia, em meados dos anos de 1950, AméricoBrasiliense (1851-1855) e Aureliano Tavares Bastos (1854-1858). Com-puseram a mesma turma de 1859-1963, Bernardino de Campos, FranciscoQuirino dos Santos, Rangel Pestana, Manoel de Campos Salles e Prudentede Moraes. Todos republicanos de primeira hora. Republicanismo que nãocontagiou os liberais Francisco de Paula Rodrigues Alves, Affonso

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Augusto Moreira Penna, Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo, RuiBarbosa e Antonio de Castro Alves que compuseram a turma de 1866-1870, Republicanismo contra o qual se organizaram em luta os agitadoresdo Círculo Católico: João Mendes Filho, Filadelfo de Castro, ManoelAlvarenga, Eduardo Prado, Raphael Correa da Silva e Fernando deMendes, de diferentes turmas dos anos setenta (cf. Adorno, 1988; Martins& Barbuy, 1999).

De São Paulo, os republicanos formados pela Academia de Direito,se espalharam por outras cidades da província que se converteram, tam-bém, em pólos irradiadores dos ideais republicanos – Campinas, Rio Cla-ro, Piracicaba, Sorocaba, Amparo –, nas quais atuaram tanto em atividadesderivadas diretamente da formação como em colégios, tal como ocorreucom Rangel Pestana e Américo Brasiliense que lecionaram por um tem-po em colégios campineiros. O Colégio Culto à Ciência e o ColégioFlorence, ambos em Campinas, foram dois pólos ideológicos e pedagógi-cos para Pestana e Köpke. Em São Paulo, criaram, dirigiram e leciona-ram Rangel Pestana, o positivista Silva Jardim, João Köpke e Caetanode Campos, seja no Colégio Pestana, criado e dirigido por Rangel e aesposa (1876), seja no Colégio Neutralidade, criado e dirigido por Jardime Köpke (1884) (cf. Barbanti, 1977; Hilsdorf, 1986; verbetes FranciscoRangel Pestana e João Köpke, 2002).

Em meados do século XIX, vetores políticos diversos já se inscreviamnas grandes famílias que monopolizavam o poder econômico da província,como os Prado, ou ocupavam postos-chave em ramos profissionais mo-dernos, como os Paula Sousa, distribuídos entre as engenharias e a me-dicina: Martinho Prado Júnior lutava pela República e Eduardo Prado pelaIgreja católica. Os Paula Sousa pensavam em uma república nos moldesdos Estados Unidos, para onde os jovens profissionais da família estavamsendo enviados para a obter seus títulos superiores.

O jovem engenheiro R. Paula Sousa que fora aos Estados Unidos,remete a um amigo uma carta datada de 1869, na qual expressa seu en-tusiasmo com o padrão de educação que ele observava:

Nós, míseros cidadãos brasileiros, não temos idéa, nem podemos ter, do

immenso apreço em que o yankee tem a eschola. É uma das principaes, sinão

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a principal questão, do condado, da cidade. Os homens mais activos e concei-

tuados são eleitos para fazer parte do conselho de educação... É que a educa-

ção é para o americano do norte como a carne e o pão de que necessitam todos

os dias. Por isso é também o povo o mais instruído, o mais activo, o mais livre

e o mais poderoso do mundo.

Pudessemos nós imita-lo! Pudessemos esquecer as velhas e corruptas formu-

las a que vivemos subjugados, olvidando-nos de que vivemos também no

continente americano! [apud Morse, 1970, p. 188]

São Paulo de bacharéis conquistados pelas idéias democráticas, libe-rais, positivistas e republicanas; cidade marcada por hábitos da distânciae da indiferença às agitações políticas dos velhos centros de poder; revol-tosa dos impostos que não lhe davam retorno. Os sentimentos separatis-tas foram racionalizados em lutas pela descentralização e pela instauraçãode uma república nos moldes federalistas.

A instalação em São Paulo da prática de tomar os Estados Unidoscomo espelho, não há como explicar senão pela confluência de fatoresde diversa ordem, pois que se trata de prática não episódica, fortuita oumesmo periférica. Os Estados Unidos como espelho de São Paulo nãose constrangeu à metáfora nem ao recurso do referente exterior parabalizar o horizonte sonhado de uma nação civilizada que a Europa preen-chia a contento em outras plagas (cf. Mattos, 1994).

O sentimento de pertença ao mundo efetivamente novo, no qual umanova civilização poderia ser construída desde o marco zero, ganhou umsentido operacional em São Paulo, anunciado pelo editor do jornal O NovoFarol Paulistano, pelo jovem engenheiro Paula Sousa e por Rangel Pesta-na, cujo jornal A Província de São Paulo, depois O Estado de S. Paulo,foi modernizado nos padrões do New York Times, de sorte a ganhar alcan-ce nacional, com porte para ser veículo de formação de opinião25.

25 Segundo Hilsdorf, Rangel Pestana, em 1888, “rompido com os fazendeiros e a suapolítica evolucionista [...] abrirá o jornal aos adeptos da linha mais revolucionária depropaganda – deu ao A Província, como programa, a tarefa de convencer a opiniãopública acerca do bom modelo de organização social que ela deveria reivindicar:aquele que combinava princípios liberais e administratação descentralizada (PSP,

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Os Estados Unidos foram criados por filósofos; as qualidades dopovo americano foram moldadas pela educação. Os bacharéis republi-canos paulistas se viram como os filósofos capazes de criar em SãoPaulo o sucedâneo dos Estados Unidos, assim como fazer de suas gen-tes menos ibéricas um povo educado para o gosto do trabalho e da in-dústria. Os normalistas ou os normalistas-bacharéis em Direito se virampelos mesmos olhos.

A confluência de republicanos, como Rangel Pestana e AméricoBrasiliense, com outros bacharéis, como Silva Jardim e João Köpke, naspráticas escolares modernizadas pelos princípios do cientificismo, nãoresultou em uma experiência acidental nem em um investimento secun-dário em meio às lutas políticas travadas.

A educação do povo e a descentralização foram dois pilares sobreos quais erigiu-se o caldo da cultura republicana paulista (cf. Adduci,2000).

Assim, a primeira reforma do ensino público paulista pôde ser acio-nada em 1890, no governo de Prudente Moraes, com base em um pro-grama de ação elaborado por Rangel Pestana, que por anos havia usadoas primeiras páginas do jornal A Província de São Paulo para denun-ciar as tacanhas condições da educação do povo oferecida pelo Império,enquanto desenhava o perfil de uma educação moderna, laica, autônomadas ingerências políticas comprometidas com o “regime corrompido”,capaz de dar suporte à construção da república26.

5/1/1875). Educado no jornal, Pestana bateu-se, então, por autonomia, trabalholivre, imigração, eleições diretas, separação entre Igreja e Estado, laicização, ensinolivre e descentralizado e aprendizagem obrigatória” (cf. verbete Francisco RangelPestana, 2002, p. 392; Paris, 1980).

26 Caetano de Campos não cessou de declarar publicamente, até a sua morte prematuraem 1891, que a Rangel Pestana cabiam as glórias da reforma de ensino de 1890. Asmatérias educacionais que por anos Pestana escreveu e publicou nas primeiraspáginas de A Província de São Paulo dão provas suficientes de que a Campos, queassumira o posto chave de diretor da Escola Normal da Capital, sobravam razõespara a transferência dos louros ao amigo e companheiro de mais de duas décadas (cf.verbete Antonio Caetano de Campos, 2002). Hilsdorf, por outro lado, chama JoãoKöpke de “o alter ego em pedagogia” de Rangel Pestana (cf. verbete FranciscoRangel Pestana, 2002).

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Quatro meses haviam se passado desde a Proclamação da Repúbli-ca, quando o decreto da reforma foi publicado. Para a difusão de uma novamentalidade, a escola normal foi reformada e as escolas primárias ane-xas convertidas em escolas-modelo. Nelas, o ensino intuitivo já experi-mentado por Rangel Pestana e João Köpke serviu de guia para que novosprocedimentos para o ensino da leitura e os demais saberes elementaresfossem experimentados.

A presteza com que a reforma foi decretada dá provas de que aslideranças republicanas que assumiram o governo do estado de São Pauloestavam de prontidão para começar a república pela educação do povo.A educação moderna, guiada por princípios ativos, se apresenta, nasprimeiras medidas reformadoras paulistas, matéria decantada passívelde ser convertida em operações de intervenção.

Àquelas lideranças, na sua quase totalidade formada nas Arcadas,Democracy in América de Tocqueville, havia se tornado acessível. A obralhes teria ensinado, antes de qualquer outro relato, a construir a imagemde que a riqueza material e o mesmo espírito público que grassava nos Es-tados Unidos decorria da obra educacional lá empreendida pelos pais-fun-dadores da República (cf. Lane, c1847-1912).

Não teriam lido, então, obra menor nem relato episódico de viajanteocasional. A democracia na América foi convertida, nos Estados Uni-dos, em marco fundante da rendição européia às grandezas do NovoMundo. Não se tratava do prenúncio hegeliano de que o sol se deslocarianaquela direção (Warde, 2002a). A obra de Tocqueville era a exposiçãominuciosa e analítica de um intelectual e homem público capaz de enxer-gar como e por que os Estados Unidos estavam se fazendo herdeiros daobra civilizatória que a Europa não podia mais completar. A “América”era obra da educação do seu povo (cf. Introdução a Tocqueville, 2000).

À presença de missionários norte-americanos na cidade de São Paulo,seguida da instalação da Escola Americana, somou-se consideravelmentepara que práticas culturais norte-americanas ganhassem não só visibili-dade mas dessem “provas empíricas” das condutas educadas dos ho-mens e mulheres norte-americanos.

Quando Horace Lane, então diretor da Escola Americana, foi cha-mado a colaborar diretamente com o governo paulista na condução e

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implementação da reforma do ensino – por meio de aconselhamentospedagógicos, fornecimento de materiais e equipamentos pedagógicos,indicação de nomes27, contatos com produtores e fornecedores nos Es-tados Unidos – a americanofilia dos dirigentes já estava se convertendono americanismo das práticas da cidade. Os sentidos já estavam sendomoldados para “a modernidade de tipo americana”.

A função modelar que a Escola Americana exerceu sobre o ensinopúblico paulista, pelo menos até os primeiros anos do século XX , depen-deu em larga medida da troca do referente europeu pelo norte-america-no em matéria de ensino público, que estava sendo realizada há muitasdécadas, compondo já o imaginário das gentes da cidade.

A adoção de postulados pedagógicos de Pestalozzi e Fröebel, queestavam na base do ensino intuitivo, não se deu por relações diretas coma Alemanha. Foram postos em circulação no formato adotado pelas esco-las norte-americanas, ou seja, na forma em que aqueles postulados ganha-ram circulação internacional (cf. dentre outros Humphrey, 1980; Monroe,1969; Shapiro, 1980). Não dependeram, nesse caso, apenas dos pre-biterianos da Escola Americana. Uma vez posicionadas na direção dosEstados Unidos, as viagens para fins de observação, estudos e compras

27 É bastante conhecida a carta que Caetano de Campos endereçara a Rangel Pestana,então deputado federal, instalado no Rio de Janeiro, na qual conta com entusiasmo:“Depois de uma lua que talvez possa lhe contar um dia, descobri por intermédio doDr. Lane, da Escola Americana – a quem ficarei eternamente grato pelo muito quese tem interessado pelo êxito da nossa reforma –, uma mulher que mora aí no Rio[...] e que esteve quatro anos estudando nos Estados Unidos [...], D. Maria Gui-lhermina Loureiro de Andrade vem, pois, reger a aula de meninas da escola-mode-lo”. Dos atos de nomeação (há várias cópias no Arquivo do Estado de São Paulo)e do pedido de afastamento (com cópia no mesmo arquivo), constam datas quefazem supor que D. Guilhermina não chegara a assumir efetivamente o cargo. SobreMiss Browne que permanecera em ativa até princípios... diz Campos na carta:“Faltava-me, porém, um homem para os meninos [...]. Achei por fim, não um ho-mem, mas uma mulher-homem. Eis sua fé de ofício: Miss Browne, 45 anos [...]. Ex-diretora de uma Escola Normal de senhoras em S. Luíz (Massachussets) [...] Istocusta dinheiro, mas ao menos, pela primeira vez, o Brasil vai ter uma verdadeiraescola com o ensino de Perstallozzi não falsificado, e é em São Paulo que se fundaessa escola (cf. verbetes Antonio Caetano de Campos e Oscar Thompson, 2002;Abreu, 2003).

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compuseram o rol de medidas necessárias ao preparo e atualização doprofessorado paulista28.

Oscar Thompson foi o primeiro herdeiro imediato dos primeirosreformadores republicanos. Herdou e intensificou as relações com HoraceLane, que manteve vivo o diálogo da escola pública paulista com a expe-riência pedagógica presbiteriana, além disso, abriu canais diretos de co-municação de Thompson com os Estados Unidos, tanto em Nova Yorkcomo em Massachussets, o que teria facilitado viagens do próprioThompson como de outros professores do ensino público paulista29.

28 De um certo ângulo, o papel dos missionários norte-americanos como mediadoresdos padrões norte-americanos para o ensino público paulista foi decisivo na passa-gem do regime imperial para o republicano, a considerarmos as relações de RangelPestana com os missionários presbiterianos sediados em São Paulo, Campinas, quedatam dos anos setenta, bem como com os metodistas que mantinham em Piracicabao Colégio Piracicabano para meninas. Referindo-se à Escola Americana criada em1870 pelos presbiterianos em São Paulo e do Piracicabano criado em 1881 pelosmetodistas, Hilsdorf afirma: “[Pestana] apreciou tanto o trabalho pedagógico e socialnelas realizados que, como legislador, tomou-as como um dos modelos das reformasdo ensino paulista que promoverá na transição do Império para República” (cf.verbete Francisco Rangel Pestana, 2002, p. 293). De um outro ângulo, o caldo decultura americanista foi densamente engrossado por outras mediações que não passa-vam pelos missionários, nem diziam respeito exclusivamente às ações pedagógicasvoltadas ao ensino normal e primário. No primeiro caso, não há como obscurecer asrelações diretas que Kökpe estabelecia com a literatura e os materiais pedagógicosnorte-americanos; as viagens que Manoel Cyridão Buarque empreendeu aos EstadosUnidos entre a primeira e a segunda década do século XX para estudos relativos àPsicologia, destacadamente a experimental; os contatos diretos que o próprio OscarThompson acumulou após a primeira viagem aos Estados Unidos, em 1904, guiadapor Horace Lane; há que se lembrar, ainda, que Aprígio Gonzaga assumiu a direção daEscola Profissional Masculina do Brás, em 1991, portanto, conhecimentos dos pro-cessos de formação profissional diretamente colhidos em fontes norte-americanas.Aqui, ainda, não se pode dar como secundário o fato de que Horace Lane não eraexatamente um ortodoxo em assuntos religiosos, ainda que diretor da presbiterianaEscola Americana. No segundo caso, por meio dos engenheiros e médicos, dos pro-fessores das matérias científicas do ensino secundário, dos preparatórios e dos cursossuperiores, padrões norte-americanos entraram em circulação, ainda que não tenhamganhado estatuto de oficialidade ou mesmo que não tenham se convertido de prontoem pauta de reformas de ensino. Por uma e outra vertente, Lourenço Filho foi depo-sitário de um arsenal mental que guardava apenas parcialmente débitos com os missio-nários norte-americanos (cf. Monarcha, 1999; Warde, 2000b).

29 É o caso de Cyridião Buarque e João Lourenço Rodrigues. Noemy Rudolfer faz constarnos seus registros pessoais que Roldão Lopes de Barros começara ler William James,

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É nessa rede intelectual e política que Lourenço Filho se formou. Doconjunto de ferramentas que lhe foram disponibilizadas, já não se faziamnecessárias ou indispensáveis obras de intermediação para acesso aospadrões educacionais e pedagógicos norte-americanos. Mesmo queRangel Pestana tenha lido Buisson (cf. Hilsdorf, 1996; verbete de Fran-cisco Rangel Pestana), os relatórios desse renomado educador francêscomo os de Hippeau, relativos ao ensino norte-americano, não estavamentre as chaves mestras do seu arsenal, como se fizeram indispensáveisao liberal Rui Barbosa para escrever seus pareceres (1882) (cf. Bastos,2000, 2001). Os norte-americanos com os quais mantinha relações dire-tas e a presença de Tocqueville na biblioteca dos seus contemporâneos lhederam gazuas de “fabricação americana”. A democracia na América, deTocqueville, serviu de espelho europeu até para os próprios norte-ameri-canos se enxergarem. Essa é a obra referida como marco fundante dosestudos comparados de perfil acadêmico metódico, porque os antecedenteseuropeus eram registros impressionistas de viageiros; os sucessores sãocópias mais ou menos bem feitas do que o francês Tocqueville foi capazde registrar por ter olhos e ouvidos treinados nas mazelas de uma Euro-pa em decadência, flagelada pelas lutas sociais.

Lourenço Filho, que dedicou palavras elogiosas a Buisson e Hippeaujá deles não careceu30, como não foi dependente do Méthodes américai-

se não antes, pelo menos ao mesmo tempo que Sampaio Dória, introduzindo-o emseus cursos desde meados dos anos dez. Lera James em francês, como o fizera pelaprimeira vez Dória que, posteriormente, passara a ler a literatura norte-americana nasua língua original. Buarque, Lopes de Barros e Sampaio Dória que ocuparam desdea primeira década do século XX aos anos vinte pelas cadeiras relativas à Psicologiae à Pedagogia, incluíram nos seus programas de ensino um tópico relativo ao “pragma-tismo norte-americano”.

30 Bastos (2001) sugere um reparo à afirmação de Lourenço Filho, em seu livro Apedagogia de Rui Barbosa, na passagem em que destaca a presença dos relatórios deBuisson e Hippeau entre as fontes dos famosos pareceres do parlamentar baiano:“dos primeiros grandes estudos de educação comparada que o mundo conheceu” (cf.Lourenço Filho, 2001, p. 63). A educação comparada como foi moldada e internacio-nalizada por Isaac Kandel no Teachers College da Universidade de Columbia, obscu-recendo as iniciativas de N. Hans na Inglaterra e outras tantas, efetivamente confereàqueles educadores franceses papel proeminente, entre os primeiros grandes estu-dos comparados, embora secundário ante o trabalho de Tocqueville, no que tange aosEstados Unidos. Há significativa diferença entre essas modalidades de registros e os

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nes de l’éducation génerale et téchnique, do belga Omer Buyse para setornar familiarizado, por via européia dos métodos de educação adotadosnos Estados Unidos (cf. Warde, 2003).

Em 1917, Lourenço Filho estava em São Paulo quando estourou amaior onda de greves do país31. Operários imigrantes e não imigrantesmisturados protestando e reivindicando (cf. Fausto, 1995; Dean 1971).Nesse quadro, a proposta da nacionalização do país por meio da alfabe-tização, ou seja, do ler, escrever e falar na língua pátria, assim como doensino profissional, o escotismo, da puericultura, da higiene de outras tantasiniciativas, tal como em 1917 Oscar Thompson as anunciou em sua pla-taforma de ação à testa da Diretoria Geral da Instrução Pública de SãoPaulo, é de todo contemporânea à palavra de ordem norte-americana paratempos de imigração massiva. Thompson denominou a sua plataformade “escola nova”; nos Estados Unidos, o movimento de nacionalizaçãopor meio da educação foi denominado de “americanismo” e o objetivo aser atingido a “americanização” de todos e de cada um (cf. Lane, 1919;Warde 2001a, 2003).

O prefeito de São Paulo, em 1914, pensava em Chicago. AnísioTeixeira pensava em São Paulo como o único lugar onde se pode mataras saudades dos Estados Unidos (estaria pensando em Nova York?).Monteiro Lobato praticamente se inviabilizou para outro roteiro que nãoSão Paulo/Nova York (cf. Morse, 1970; Vianna 1986; Miceli, 2001).

Morse (1954, 1970) e Freyre (2000) viram em São Paulo, desdefinais do século XIX, a ausência de sinais latinos em favor dos sinaisnorte-americanos.

Lourenço Filho foi formado nessa cidade. Em 1935, seus sentidos jáestavam plenamente moldados pelo tanto que ela lhe dera a ver e a ouvir.

registros de viageiros que, ontem como hoje, são movidos pela prática consuetudi-nária da comparação. Aqueles são relatos de viajantes que se deslocaram a outrospaíses com o fito de comparar, porque eles mesmos são “efeitos de comparação” .

31 Anos depois, contestando a visão educacional de Dewey, Lourenço Filho dirá queao filósofo norte-americano teria faltado clareza quanto aos conflitos sociais, porque“a cultura não se faz só para a adaptação e transmissão biológica das sociedades.Para tormento e glória dos homens, ela se faz também para o conflito, e assim comoserve à vida, pode servir à morte também...” (apud Vidal, 2001b, p. 98).

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Resenhas

Luzes e sombras: a ação da maçonaria brasileira(1870-1910)

autor Alexandre Mansur Barata

cidade Campinas

editora Editora da UNICAMP / Centro de

Memória – UNICAMP

ano 1999

O livro Luzes e sombras: a ação da maçonaria brasileira (1870-1910), de Alexandre Mansur Barata, é a publicação de sua disserta-ção de mestrado, defendida em 1992 no Programa de Pós-graduaçãoem História Social da Universidade Federal Fluminense, sob orienta-ção da professora doutora Angela de Castro Gomes. Para os historia-dores da educação, essa obra permite fecundas reflexões, seja noâmbito do universo maçônico, seja no campo da história comparada,ao propiciar paralelos entre iniciativas educacionais desenvolvidasno Brasil na Primeira República.

O autor procura situar-se entre a pequena produção acadêmicasobre a temática da maçonaria no Brasil e a grande produçãohistoriográfica de estudiosos maçons. Os textos produzidos nos cír-culos dos pedreiros-livres – assim como a grande maioria das fontesprimárias sobre temáticas maçônicas – não se encontram inteiramenteao alcance dos historiadores “profanos”. Entretanto, Alexandre Mansurafirma a possibilidade de escrever a história da maçonaria no Brasilcom base na documentação disponível: jornais, constituições, regula-mentos, relatórios, manifestos, discursos e conferências. Parte dessadocumentação pode ser encontrada na Biblioteca Nacional. Por exem-plo, o Boletim do Grande Oriente do Brasil, jornal oficial da maçonariabrasileira e editado no Rio de Janeiro entre 1871 e 1910.

O livro se divide em quatro capítulos. No primeiro, o autor procu-ra, de uma forma bastante didática, traçar um quadro histórico geralda maçonaria, particularmente quanto à sua estrutura organizacional.A maçonaria moderna – surgida na Inglaterra em 1717 – é caracteri-zada como uma sociedade de pensamento. Partindo das reflexões de

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Maurice Agulhon, Augustin Cochin e François Furet, o autor situa amaçonaria como uma instituição “profundamente vinculada à novasociabilidade pré-democrática que se consolidava na França do sé-culo XVIII” (p. 36). Através de diversas iniciativas, as lojas torna-ram-se o instrumento privilegiado para a divulgação do ideário liberale dos princípios da “Ilustração”. O autor também procura destacaros elementos da tradição medieval européia presentes na organiza-ção maçônica: a disposição dos objetos e do mobiliário, a “arquite-tura” da loja, a rígida hierarquia, os ritos – em particular, a cerimôniade iniciação.

O segundo capítulo é uma síntese da atuação da maçonaria noBrasil, desde os primeiros anos do século XIX. O autor afirma que aintrodução da “Ordem” no Brasil resultou das transformações ocor-ridas em Portugal a partir das reformas pombalinas. A sociabilidademaçônica foi trazida na bagagem dos jovens brasileiros que iam es-tudar na Universidade de Coimbra (aliás, reformada por Pombal emfins do século XVIII). Muitos desses estudantes brasileiros prosse-guiam seus estudos em universidades inglesas e francesas, nas quaisaprofundavam seus vínculos com os círculos maçônicos. A Facul-dade de Medicina de Montpellier, muito procurada pelos estudantesbrasileiros na época, constituía-se num dos núcleos de pedreiros-livres no sul da França.

As lojas estabelecidas no Brasil no início do século XIX – emPernambuco, Bahia e Rio de Janeiro – assumiram um caráter predo-minantemente antimetropolitano. Nesse sentido, o autor, em con-cordância com a historiografia, reafirma o profundo vínculo entre amaçonaria e a emancipação política do Brasil.

O movimento maçônico brasileiro foi marcado por um clima dedissensão e insuperáveis divergências internas – reflexo, aliás, daheterogênea composição interna de seus quadros. O autor apresentaalgumas épocas como as de maior intensidade nas divisões internasdo “povo maçônico” no Brasil. Nos momentos decisivos de nossaemancipação política, as divergências manifestaram-se na oposiçãoentre “republicanos” (ou “democratas”), capitaneados por Gonçal-ves Ledo), e os partidários da monarquia centralizada, liderados porJosé Bonifácio. Após o término do I Reinado, dois “Grandes Orien-tes” são organizados: o Grande Oriente do Brasil, sob o comando deBonifácio, e o Grande Oriente Nacional Brasileiro da Rua do Pas-

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seio, constituído pelos inimigos políticos dos Andradas. Nas décadasfinais do II Reinado, o Grande Oriente do Brasil (GOB) voltou adividir-se: havia o GOB do vale do Lavradio, aglutinando os maçonsdefensores da monarquia e influenciados pela maçonaria inglesa; eo GOB do vale dos Beneditinos, que reuniu os maçons republicanose que estava alinhado à maçonaria francesa. Além disso, após a Pro-clamação da República, houve a “federalização” da maçonaria brasi-leira, com o surgimento dos “Grandes Orientes” estaduais, particular-mente em São Paulo e no Rio Grande do Sul (1893) e também emMinas Gerais (1894). De qualquer forma, convém ressaltar que, en-tre 1883 e 1927, a maçonaria brasileira esteve unida pelo do GrandeOriente Unido e Supremo Conselho do Brasil – o que representou,segundo o autor, um vitorioso esforço de fortalecimento institucionalda ordem maçônica, iniciado no período de transição entre o Impé-rio e a República.

Em termos da organização do espaço maçônico, Mansur Baratadestaca duas fases de crescimento da maçonaria brasileira: 1860-1880 e 1890-1910. A essa última fase seguiu-se um período de reflu-xo. São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais foram as principaisregiões brasileiras com forte presença maçônica entre fins do séculoXIX e princípio do XX. Em contraste com a época da independên-cia, quando a maçonaria predominara na Bahia, em Pernambuco eno Rio de Janeiro. Sem aprofundar a análise, o autor esboça algunsfatores que auxiliam a compreensão dessa “geografia do esquadro edo compasso”: densidade populacional, crescimento econômico, taxade alfabetização da população masculina e infra-estrutura de comu-nicação.

No terceiro capítulo, o autor dedica-se a acompanhar a aproxi-mação dos maçons com o movimento da “Ilustração” brasileira, pormeio dos debates e embates, conflitos e confrontos que ocorreramentre a maçonaria e a Igreja. A “Ilustração” brasileira, na concepçãode Roque Spencer Maciel de Barros, foi um amplo movimento deidéias que se estendeu de 1870 a 1914 e marcou toda uma geraçãode intelectuais. No contexto da questão religiosa, o autor resgata odiscurso maçônico, na verdade múltiplos discursos de maçons, quese apresentavam ou como partidários do regalismo e opositores doultramontanismo (o círculo do Lavradio) ou como defensores dosprincípios liberais, consubstanciados na liberdade de consciência e

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baseados num amplo processo de secularização da sociedade e deseparação entre a Igreja e o Estado (círculo dos Beneditinos). Comocontraponto, o autor apresenta as transformações sofridas pela Igre-ja católica no Brasil, que paulatinamente se afastou de uma orienta-ção mais “heterodoxa” (pois em termos doutrinários assentava-se noregalismo e no jansenismo) em direção à ortodoxia, representada peloprocesso de romanização do clero sob influência dos princípiosultramontanos. A fragilidade organizacional católica foi suplantada,a partir de meados do século XIX, por um forte processo de “cons-trução institucional” da Igreja, capacitando-a para se tornar um pólode difusão do discurso conservador. O momento de inflexão, situa-do por Alexandre Mansur a partir de 1870, ocorreu, entretanto, umpouco antes. Na província de São Paulo, pelo menos, desde o bispa-do de D. Antônio Joaquim de Melo (1851-1861) e a abertura do Semi-nário Diocesano (em 1856) para promover amplas medidas disci-plinadoras do clero paulista, como nos informa Maria Lúcia S.Hilsdorf Barbanti (1977) e Augustin Wernet (1987). Afinal, no Con-cílio Vaticano, em 1870, todos os bispos do Brasil foram favoráveisà tese da infalibilidade papal, marca do triunfo do ultramontanismoe da romanização da Igreja.

No último capítulo, o autor se propõe a “repensar o papel de-sempenhado pela Maçonaria no final do século XIX e início do sé-culo XX” (p. 115), vinculando-a à “Ilustração” brasileira e apresen-tando elementos para a compreensão dos mecanismos utilizadospelos pedreiros-livres para a efetivação de seus objetivos políticos.Em contraste com a historiografia mais tradicional, AlexandreMansur Barata nega que a maçonaria tenha apresentado uma atua-ção inexpressiva após os momentos decisivos da emancipação polí-tica do Brasil, na primeira metade do século XIX.

Entre 1870 e 1910 as lojas brasileiras transformaram-se em “cen-tros de discussão e de formação de consenso sobre os grandes temasque procuravam construir uma nova identidade nacional” (p. 117).Duas temáticas merecem destaque: a “questão servil” e a questão darepública como forma de governo ideal.

Em relação à questão da mão-de-obra escrava, os pedreiros-livresatuaram como formadores da opinião pública, por intermédio da im-prensa e dos debates no parlamento, apresentando duas posturas bá-sicas: como defensores da “emancipação” do elemento servil, através

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de sua libertação gradual mediante indenizações aos proprietários; oucomo partidários da “abolição”, isto é, da libertação imediata e sem in-denizações. E como as lojas fundadas na década de 1870 estavam –em sua maioria – vinculadas ao Grande Oriente dos Beneditinos, docírculo republicano de Saldanha Marinho, e situavam-se em provín-cias de expressiva mobilização republicana (a Corte, São Paulo, RioGrande do Sul e Minas Gerais), o autor reforça a conclusão de pesqui-sadores que estabeleceram vínculos entre a maçonaria e o ideário re-publicano, como Maria Lúcia Hilsdorf Barbanti (1977) e CarmenSylvia Vidigal Moraes (1981 e 1990).

Outra forma de atuação dos maçons entre 1870 e 1910 refere-sea esforços para “fortalecer a própria organização maçônica” (p. 133),através da ampliação da quantidade de lojas e de políticas de formaçãodos membros da maçonaria. O ideário maçônico recebeu ampla divul-gação: nos debates parlamentares, com a edição de boletins de circu-lação restrita, com a criação de pequenos jornais destinados ao públicoem geral, além das inúmeras contribuições de maçons na “grandeimprensa”. Ao mesmo tempo, diversas iniciativas concretas são efeti-vadas, com destaque para as que resultaram na criação de instituiçõesde auxílio mútuo, de beneficência e de educação. Se as instituições deauxílio mútuo eram restritas ao “povo maçônico”, as de beneficência(asilos, hospitais e orfanatos) e as educacionais estavam, entretanto,destinadas a todos os homens, fossem maçons ou “profanos”.

Para Alexandre Mansur, de todas essas iniciativas, a que apre-sentou melhores resultados foi a “construção de uma ampla rede deescolas primárias e de bibliotecas” (p. 138), com aulas diurnas e notur-nas, para os filhos dos maçons e para as classes populares, atenden-do tanto aos homens quanto às mulheres. As escolas criadas e man-tidas pelas lojas propunham-se a difundir a instrução para promovero progresso e alargar a civilização, disseminando os princípios demo-cráticos e a defesa da liberdade, principalmente a liberdade de cons-ciência. Dessa forma, a universalização do ensino laico transformou-se na principal bandeira de luta contra os conservadores. As lojas as-sumiram uma função pedagógica, ao promover a formação políticana mais ampla acepção do termo. Na batalha que se travava entre as“luzes” da ciência, do progresso e da civilização em oposição às “tre-vas” da ignorância, da intolerância e do atraso, os maçons atuavamdiscretamente, nas “sombras”. A estratégia maçônica voltava-se para

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os setores populares, através da ampliação quantitativa das escolasleigas, em oposição à estratégia da Igreja católica, centrada na edu-cação das elites.

Em junho de 1922 – conforme o Livro Maçônico do Centenário(Rio de Janeiro, 1922), documento citado pelo autor – a maçonariabrasileira mantinha 132 escolas em 16 estados, com 7.030 alunosmatriculados (quadro 2, p. 141). Desses total, 59 escolas com 4.626alunos eram mantidas pelos “homens do esquadro e do compasso”no estado de São Paulo. Ou seja, cerca de 45% das escolas maçôni-cas (com 66% dos alunos) estavam estabelecidas no território paulista.

Para o autor, a maçonaria assumiu um papel primordial noenfrentamento da “questão social”, através da busca da harmonizaçãoentre capital e trabalho, com a adoção de uma estratégia de “incenti-vo à formação de associações operárias e a ampliação do número deescolas voltadas para o operariado” (p. 143).

A leitura de Luzes e sombras: a ação da maçonaria brasileirareveste-se de grande importância, seja para os estudiosos dastemáticas maçônicas, seja para os que buscam a compreensão dahistória da Primeira República no Brasil. Todavia, algumas observa-ções fazem-se necessárias. O estudo de Jean-Pierre Bastian (1989)sobre os “dissidentes” mexicanos entre 1872 e 1911 mereceria, por-tanto, ser citado. Bastian, mesmo tratando da história do México,poderia auxiliar no esclarecimento das relações e no mapeamentodas aproximações entre pedreiros-livres e “ilustrados”. Outra ques-tão refere-se à adoção, pelo autor, do conceito de “Ilustração” brasi-leira para o entendimento do período abrangido. No nosso entender,a análise de Maciel de Barros parece adequar-se satisfatoriamenteapenas ao período que se estendeu de 1868 ao término da QuestãoReligiosa. Por último, a abordagem do modo maçônico de enfrentara “questão social” nos primórdios da república – que o autor mencionano final do quarto capítulo – exigiria uma abordagem mais apro-fundada, que contemplasse as aproximações mas também os emba-tes entre maçons e o movimento operário de orientação libertária e osindicalismo revolucionário.

E qual é a relevância do texto de Mansur Barata para os estudosno campo da história da educação?

O conceito de sociabilidade, analisado ao longo do texto, assu-me uma importância capital para a compreensão da presença maçô-

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nica e da ação dos maçons na história brasileira. “A sociabilidadeproporcionada pela Maçonaria a transformava em sede de umaracionalidade e de uma pedagogia ilustrada, mediante as práticas dosufrágio, do debate entre os pares e da deliberação” (p. 91). Alémdisso, esta sociabilidade “por ser secreta, exclui todos os que nãoestão implicitamente incluídos, mas que, paradoxalmente, tem porprincípio moral abarcar em seu seio toda a humanidade” (p. 136).Ou seja, configurava-se um grupo, herdeiro da Ilustração, que seprotegeria nas sombras do segredo para difundir ideais políticos deintensa luminosidade e destinados a toda a humanidade. A estraté-gia maçônica organizava-se em torno de procedimentos pedagógi-cos, com a divulgação do ideário liberal pela palavra, seja escrita oufalada, por jornais, conferências, debates e escolas para alfabetiza-ção do povo.

Os ideais políticos da maçonaria podem ser explicitados pelaidentificação dos possíveis aliados e adversários, como se percebeno texto abaixo, discurso pronunciado numa cerimônia do GrandeOriente, em 1897, por Quintino Bocaiúva, líder republicano e grão-mestre do GOB entre 1901 e 1904:

É isto que nós Maçons chamamos de ALTA POLÍTICA; tal qual

delineada na nossa constituição. [...] A nossa política, tão grande

como a nossa instituição, é aquela que nos faz amar o CRISTIA-

NISMO, e detestar o JESUITISMO; que nos impele a estudar e

ouvir os SOCIALISTAS e rebater os ANARQUISTAS; que nos

obriga a aceitar e manter a REPÚBLICA e repelir a MONAR-

QUIA; que nos dá a diferença profunda entre o JACOBINISMO e

PATRIOTISMO; pois este é um sentimento de amor, e é aquele

um mau sentimento de ódio, contrário ao nosso lema de FRATER-

NIDADE universal, dos homens e dos povos [pp. 116-117].

Para os historiadores da educação, o texto de Alexandre MansurBarata torna claro a possibilidade de investigação do universo ma-çônico, ao apresentar pistas para a localização de séries documen-tais acessíveis aos pesquisadores. E, ao mencionar a existência de umnúmero significativo de pequenas escolas no Brasil (principalmenteem São Paulo) nas primeiras décadas republicanas, proporciona umcampo fértil e um caminho promissor para as pesquisas das escolas

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e das instituições escolares enquanto iniciativas concretas. Além disso,essas pequenas escolas foram criadas à margem das grandes insti-tuições de educação escolar da época, fossem públicas ou confes-sionais. Convém lembrar que houve também algumas grandesiniciativas educacionais maçônicas, como o Colégio Culto à Ciên-cia de Campinas ou o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. Entre-tanto, a existência dessas pequenas escolas – que nasceram, viverame desapareceram à sombra das colunas das lojas – possibilita estu-dos de história comparada, particularmente se confrontadas com ini-ciativas semelhantes de outras “sociedades de pensamento”, comoas escolas dos protestantes ou as dos libertários. Por último, possibi-lita a reflexão sobre aquela “nova” sociabilidade que se procuravainstaurar na jovem república brasileira, em consonância com amodernidade e que, pelo menos em alguns momentos “de profundaescuridão”, aglutinara liberais, maçons, protestantes, cientificistas elibertários.

Fernando Antonio PeresMestrando em Educação

Universidade de São Paulo

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ção (Mestrado) – FEUSP, São Paulo.

. (1990). A socialização da força de trabalho: instrução popular e

qualificação profissional no estado de São Paulo – 1873 a 1934. Tese

(Doutorado) – FFLCH-USP, São Paulo.

WERNET, Augustin (1987). A Igreja paulista no século XIX – a reforma de

D. Antônio Joaquim de Melo (1851-1861). São Paulo, Ática. (coleção

Ensaios, 120).

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Coroa de glória, lágrimas de sangue: a rebeliãodos escravos de Demerara em 1823

autora Emília Viotti da Costatradução Anna Olga de Barros

Barretocidade São Pauloeditora Companhia das Letrasano 1998

Contar a história de uma das maiores rebeliões escravas ocorridasno Caribe do século XIX, na forma de um “romance polifônico”, emque a fala de todos os envolvidos é resgatada a fim de contar umahistória que não é apenas memória, mas principalmente metáfora, é oobjetivo de Emília Viotti da Costa no livro Coroas de glória, lágrimasde sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em 1823.

Emília Viotti da Costa, professora de história, foi livre-docenteda Universidade de São Paulo, tendo sido aposentada pelo AI-5 em1969. Foi para os Estados Unidos, onde leciona na Universidade deYale. É autora de Da senzala à Colônia (1966) e Da monarquia àRepública: momentos decisivos (1977), entre outras obras.

Criticando tanto a visão simplista herdada da Nova História quevaloriza apenas o cotidiano, os feitos pessoais, em que a estruturanão é levada em conta, quanto a história do ponto de vista marxista,em que apenas o macro é importante, em que os acontecimentos, asapropriações, as pessoas não são resgatadas, como se a conjunturanão influenciasse na estrutura, Emília Viotti da Costa tem semprepresente a preocupação de “unir macro e micro-história, já que éimpossível compreender uma sem a outra” (p. 19).

O livro se divide em sete capítulos: “Mundos contraditórios:colonos e missionários”, “Mundos contraditórios: senhores e escra-vos”, “A fornalha ardente”, “Um devotado missionário”, “Vozes noar”, “Um homem nunca está seguro” e “Uma coroa de glórias quenão se esvanece”.

Primeiramente é apresentado o contexto histórico em que seencontram colônia e metrópole. Demerara é uma colônia cheia de

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especificidades: originalmente holandesa, em conseqüência das guer-ras européias muda de mãos diversas vezes durante os séculos XVIIIe XIX. Em 1815 é definitivamente incorporada ao Império Britâni-co; alguns holandeses permanecem como fazendeiros, assim comotraços de sua administração e costumes. Produz cacau, algodão, cafée açúcar, sendo utilizada a mão-de-obra escrava africana, mesmonum período em que a abolição já havia sido decretada na metrópo-le. O padrão de povoamento da ilha, em que os canais e rios repre-sentam papel fundamental no escoamento da produção, fez com queas fazendas fossem organizadas ao lado desses, o que proporcionouuma alta concentração dos escravos, a maioria esmagadora da popu-lação (apenas quatro por cento eram brancos), em uma área geográ-fica relativamente circunscrita.

O século XIX, período tratado no livro, era um período de intensaagitação na Inglaterra: Independência das Treze Colônias, a Revoltado Haiti e, principalmente, a Revolução Francesa estavam no imagi-nário da população. Ao mesmo tempo era o início da Revolução In-dustrial, com a superexploração dos trabalhadores. Nesse contextoeclode a campanha abolicionista, que arregimenta milhares, pessoasprincipalmente oriundas da classe popular. Com sua preocupaçãoconstante em demonstrar que a história é sempre apreendida comometáfora da realidade, Viotti mostra a importância dessa participaçãopopular na luta abolicionista: para os trabalhadores, “a abolição esta-va firmemente vinculada à questão da reforma na metrópole” (p. 25).A própria elite que lutava pela abolição alarma-se com a proporçãotomada pela campanha abolicionista e tenta reprimi-la.

É nesse ambiente que os missionários evangélicos enviados paraas colônias inglesas são formados. A maioria deles é oriunda de cama-das baixas da população e imbuída dos ideais dessa classe. Assim, osmissionários – apoiados pelo governo metropolitano – são rechaçadospelos colonos, que os vêem como dupla ameaça: de um lado perce-bem a subversão contida em suas práticas, de outro temem a interven-ção metropolitana em seus domínios. É nesse contexto de conflitosque o primeiro missionário da London Missionary Society (LMS) vaipara Demerara. A LMS foi uma tentativa de organização não-sectáriaque congregava missionários de diferentes seitas, tanto dissidentescomo membros da Igreja Anglicana, numa cruzada universal: a instru-ção religiosa dos gentios. Seus missionários estavam espalhados nas

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colônias do Caribe, na Ásia e na África. Demerara nunca receberamissionários dessa sociedade por resistência dos colonos. Entretanto,é um colono holandês, cristão e preocupado com a salvação de seusescravos que manda vir o primeiro missionário, John Wray. Isso é umsinal também de que os conflitos não são apenas externos, contra ametrópole ou os abolicionistas, mas também internos, entre os pró-prios colonos. A autora demonstra como os conflitos estão presentesem diferentes instâncias: colonos x metrópole, colonos ingleses x co-lonos holandeses, brancos x escravos, brancos x negros livres, mula-tos x negros, libertos x escravos etc. Wray tem grande importância nahistória da revolta, pois foi o iniciador da prática religiosa entre os es-cravos. Ele sofre diversas dificuldades: resistência e hostilidade doscolonos, dificuldade de compreender o mundo dos escravos, o que éacirrado pelo momento histórico, em que convivem crise econômica,concorrência dos mercados asiáticos e crise no sistema escravista. Os confrontos com a metrópole são instigados pela presença dos missio-nários, usados como bodes expiatórios dos colonos.

A autora realiza uma ampla discussão sobre o protestantismoinglês. O debate é fundamentalmente entre historiadores que seguema linha de Thompson, que consideram o metodismo como uma ten-tativa dos líderes domarem – através da ética do trabalho, da disciplinaetc. – o impulso radical vivido pela classe trabalhadora, e a preocupa-ção de Emília Viotti em demonstrar a diferença entre o que é emitidoe o que é recebido. Para ela a visão de Thompson é incompleta, poisnão leva em conta o modo como a mensagem é recebida: ela argumen-ta que por meio de cisões, como Nova Conexão e Metodismo Primi-tivo, surgiam interpretações mais radicais da Bíblia, com participaçãomais popular e democrática. O discurso evangélico é apreendido pelaclasse trabalhadora e arregimenta milhares com seus ideais de frater-nidade universal, vocação, autodisciplina, autoconfiança, frugalida-de etc., práticas bem diferentes das que os trabalhadores percebem naclasse dominante. A ética desse novo cristianismo evangélico é sub-versiva tanto na colônia escravocrata (onde os senhores não deseja-vam a presença de missionários entre os escravos) quanto na Inglater-ra (onde o que reinava era a hierarquia e o patronato).

John Wray permanece em Demerara por mais de uma década,mas por fim não resiste à “fornalha ardente” que é, segundo suaspalavras, a vida lá, e é transferido para Berbice. A LMS envia para

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Demerara John Smith e sua esposa, Jane. A autora frisa que foi na“atmosfera de revolta e repressão, intensa polarização de classes emudanças sociais e econômicas que John Smith atingiu a maiorida-de. Como muitos outros de sua geração, ele encontrou no cristianis-mo evangélico um antídoto para as ansiedades e confusões desenca-deadas por tais processos” (p. 28). Ele é de origem modesta, carpin-teiro, muito jovem, para quem a carreira missionária é vista comopossibilidade de ascensão tanto social (ir para o trabalho missionáriosignifica deixar para trás as preocupações mundanas com a sobrevi-vência) quanto moral – trabalhar para a “obra do Senhor” é motivode orgulho, um trabalho que traria como resultado uma “coroa deglória” para Smith.

Smith teve apenas seis meses de treinamento para o trabalhomissionário. Quando ele chega em Demerara encontra uma situaçãoainda mais tensa do que Wray, em razão do acirramento da criseeconômica e resistência dos colonos. Eles acusam os missionáriosde incutirem a subversão entre os escravos. Viotti mostra como asdiferentes apreensões são realizadas. John Smith crê piamente queestá salvando apenas almas, não corpos, que suas palavras servempara que os escravos se submetam a seu destino, que ele está apazi-guando a situação. Ele não percebe que as mesmas palavras usadascom esses objetivos são apreendidas pelos escravos de modo muitodiferente, ainda mais quando se trata da linguagem ambígua da Bí-blia. Ao mesmo tempo em que acredita nisso, o missionário é conta-minado pela causa abolicionista. Vivendo na fazenda, tendo comomaioria de companheiros os escravos, ele é influenciado por eles,sofre com os castigos, com a arbitrariedade dos senhores, com asinjustiças. A tentativa de impor a moralidade cristã aos escravos es-barra nas práticas coloniais, nas quais nem os próprios brancos se-guiam aquelas regras. Assim se dá, para Smith, a percepção daincompatibilidade entre escravidão e cristianismo: “tudo que eraimportante para Smith – ‘justiça’, ‘sentimento cristão’, ‘dignidadehumana’ – estava degradado na sociedade escravista” (p. 185).

A revolta eclode depois de sete anos de Smith na colônia. Viotti apresenta dois elementos-chave para a eclosão da revolta: primeiro, osdebates que ocorriam na Inglaterra sobre novas leis que melhorariama vida dos escravos e num segundo momento trariam a abolição; esegundo, a proibição feita pelos senhores de os escravos freqüentarem

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a capela sem sua autorização por escrito. Essa era uma norma queexistia na colônia, mas havia muito tempo vinha sendo desrespeitada.Quando essa regra é resgatada pelos senhores, os escravos percebemisso como uma afronta às resoluções da Inglaterra sobre melhoriaspara eles. Cerca de dez mil escravos se sublevam em Demerara, masa rebelião é considerada pacífica, já que apenas quatro ou cinco bran-cos foram mortos, principalmente se considerarmos a proporção en-tre brancos e escravos. A repressão – como era de se esperar – foiviolenta. Mais de 200 escravos foram mortos no mesmo dia, além dospresos e condenados à morte em julgamentos sumários. As puniçõessão exemplares, os senhores não se preocuparam em punir quem eramais ou menos culpado. No mesmo dia John Smith é preso e vai a jul-gamento, acusado de ser conivente com a revolta. A autora mostracomo o julgamento “ilumina com claridade rara o abismo ideológicoque separa acusadores de acusados” (p. 293). Para os colonos, esse erao momento da vingança: acusar abolicionistas, missionários e aque-les que no Parlamento e na imprensa apoiavam escravos contra seussenhores: “ao atribuir aos outros a culpa pela rebelião, eximiam-se deresponsabilidade e liberavam-se de toda a culpa. Eles anunciavam aomundo que o que motivara os escravos não tinha sido a opressão oua exploração, mas o engano e a ilusão” (idem). Para Smith, “era sus-tentar sua inocência, acusar o sistema escravista e condenar a escravi-dão e, por fim, pronunciar seu último sermão. Dessa vez, entretanto,ele pregaria aos senhores e não aos escravos” (idem). John Smith foicondenado à morte e seu julgamento usado como metáfora, por todosos lados e pelos colonos, para demonstrar a necessidade do sistemaescravista e o perigo subversivo inscrito em práticas missionárias nacolônia. Outros missionários foram perseguidos e acusados sem pro-vas. Por abolicionistas, para demonstrar os horrores da escravidão edefender suas demandas perante o Parlamento e o mundo. Pelas socie-dades missionárias, para defender a importância de suas missões,sendo Smith tratado como mártir. A revolta foi utilizada segundo di-versos interesses, tanto no período contemporâneo quanto depois,segundo os diferentes autores de obras que contaram sua história.

Viotti chama a atenção para o modo como as interpretações darevolta são ideológicas. Os abolicionistas culpavam os senhores pelarebelião e os defensores do sistema escravista culpavam os missio-nários. Nenhum dos lados percebeu os escravos como sujeitos de

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sua própria história. Eles aparecem como abstração, sem vontades,percepções e reações próprias. Foram vistos como vítimas ou doengodo dos missionários ou da opressão do sistema. Entretanto, traba-lhando com uma vastíssima documentação primária da revolta, alia-da a uma ampla bibliografia, a autora resgata não só a voz de colonose missionários, mas também a dos escravos.

É interessante ressaltar o papel da educação dos escravos. Viottimostra a percepção que os escravos tinham da importância da edu-cação, sua luta para aprender a ler e escrever e o papel desempenhadopela leitura, quando dá o exemplo de como os escravos liam escon-dido documentos de seus senhores, aumentando o imaginário coleti-vo sobre a existência de homens poderosos na metrópole que estariama seu lado, dando forças para a idéia de uma rebelião. É interessanteresgatar a frase de John Smith, numa carta a seu superior: “[...] masa impressão é de que os fazendeiros não consideram que o aumentodo saber entre os escravos exija que se altere o modo de tratá-los”(p. 250).

A historiadora utiliza em seu trabalho fontes primárias diversascomo: autos do processo; revistas evangélicas; cartas trocadas entremissionários, superiores, amigos e famílias; diários e jornais de épo-ca; além de uma vastíssima bibliografia que abarca desde livros pro-duzidos no período da revolta e clássicos da historiografia, até obrassobre escravidão, lingüística e influências africanas, entre outrosassuntos. Aliado a esse vasto material, Viotti, com pertinentes preo-cupações sobre a história e grande talento literário, produziu um li-vro que é fundamental para pesquisadores dos assuntos mais di-versos. Aqueles que pesquisam escravidão, história da educação,história do protestantismo, bem como interessados pela história emgeral, poderão se valer da obra. Emília Viotti da Costa conseguedemonstrar, “a partir da análise de um acontecimento histórico par-ticular, que na vida de cada um dos personagens envolvidos pulsamos ritmos da história, que as suas múltiplas subjetividades são tantoconstituídas pela história quanto constitutivas da história” (p. 9).

Surya Aaronovich Pombo de BarrosMestranda no Programa de História e

Historiografia da Educação da Faculdade deEducação da Universidade de São Paulo

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Destinos das letras: história, educação e escritaepistolar

autores Maria Helena CamaraBastos; Maria TeresaSantos Cunha;Ana Chrystina VenancioMignot (orgs.)

cidade Passo Fundoeditora UPFano 2002

Um livro começa a ser bom e instigante pelo título, diria um “mar-queteiro”, e isso, nesse caso, é a pura verdade. Que letras são essas? AB C? E por que se preocupar se têm destino ou não? Letras, nesse li-vro, não são letras, são “carta, missiva, epístola” e o que elas contêm:letras. Que jogo interessante esse que as organizadoras encontrarampara o título de um livro... Letras contêm letras e têm destinos e des-tinatários. Abramos o livro e olhemos de perto que cartas são essas.

[...] cartas que criaram laços e que guardam consigo os sinais de

parte de um tempo, mostram formas próprias e singulares de um

relacionamento social [...] cartas que compõem arquivos pessoais

e institucionais [...] escritas a mão, datilografadas ou digitadas,

pessoais, de cunho político ou comercial [...].

As cartas – mas se é correspondência tanto melhor – são umimportante instrumento de trabalho, tanto para o historiador, quantopara os críticos de arte, literários ou musicais e aguçam, deliciosa-mente, o voyeurismo de leitores e leitoras aflitos para flagrar seusídolos, seus gurus, ou mesmo aquele desconhecido em atos... pura-mente humanos.

Mozart escreveu cartas de amor – “Beijo-lhe as mãos, abraço-ade coração e serei sempre seu verdadeiro e sincero amigo...” (Pahlen,1992, p. 8) – que revelam carinhos e segredos de amantes – “fidelís-simo até a morte stu-stu- Mozart”. Entre Schumann e Clara Wieckmuita provação, separação, compreensão humana e artística: “con-

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fessar-te, meu querido esposo, que jamais vivi dias tão formososquantos esses últimos, e que sou certamente a mulher mais feliz daterra...” (Pahlen, 1992, p. 94).

Poetas escreveram cartas, Henriqueta a Mário, Drummnond aZila Mamede e Fernando Pessoa a Ophélia Queiroz: “Meu amorzi-nho, meu Bébé querido... Adeus, meu anjinho bébé. Cobre-te debeijos cheios de saudade o teu, sempre, sempre teu Fernando”, ins-pirando os versos que escreveria depois “Todas as cartas de amorsão ridículas”1.

E há, famosas, cartas de Freud2. Atenção: todo psicanalista é an-tes de mais nada um ser humano. Em 1989, conheciam-se 4.899 car-tas, das quais 3.123 publicadas e 1.776 até então inéditas. Calculou-seque Freud tenha escrito talvez 20 mil cartas. Não é pouco para quemteve uma vida pessoal bastante atribulada, com um importante e in-tenso trabalho intelectual de escritor e de clínico. Também mantinhaum registro em um caderno dividido em duas colunas datadas: car-tas recebidas e cartas enviadas e ainda com um resumo pequeno dasmesmas. Nessas cartas encontra-se como que o making of da trajetó-ria da disciplina e ajuda a desfazer mal-entendidos e suposições equi-vocadas. Observa-se a grande afinidade entre Freud e Fliess para aconstrução da Interpretação dos sonhos; entre o amor e o ódio comJung. De particular interesse para a educação são as cartas entre Freude o Pastor Pfister (1909-1939)3. Seja pelo aspecto da discussão sobrereligião, seja pelo aspecto educacional propriamente dito, pois essepastor suíço foi o primeiro a intuir que a psicanálise tinha muito acontribuir para a educação. O futuro de uma ilusão, que teve comotroco A ilusão de um futuro, foi escrito sob a vibração dessa corres-pondência e é, ainda hoje, mesmo que digamos que a educação é laica,indispensável para a reflexão sobre o caráter sacro da educação e doexercício do magistério.

1 Kurt Pahlen, Apassionata. Cartas de amor dos grandes músicos, São Paulo,Melhoramentos, 1992. Fernando Pessoa, Cartas de amor de Fernando Pessoa,Lisboa, Ática, 1983.

2 Todos os dados e referências às cartas de Freud foram extraídas do texto deRenato Mezan, “As cartas de Freud”, em R. Mezan, Interfaces da psicanálise,São Paulo, Companhia das Letras, 2002, pp. 83-99.

3 Sigmund Freud, Correspondance avec le pasteur Pfister, Paris, Gallimard, 1966.(Há uma tradução brasileira: Freud e Pfister, Um diálogo entre a psicanálise ea fé cristã, Viçosa, Ultimato, 1998).

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No livro que resenhamos, são 12 os artigos, são 12 tipos de car-ta, são 13 autores, alguns deles europeus. Cartas são textos endere-çados, isto é, dirigidos a e por isso sempre considerou-se o seu caráterprivado e não devassável. No entanto, mais depressa que outras, ascartas foram consideradas fontes para a história (da educação ycompris) mesmo quando sabidamente ficcionais. Durante muito tem-po, escrever cartas era considerado uma arte (além, claro, de ser umaconquista, vide o filme Central do Brasil) e proliferavam manuaiscom fórmulas e equações considerando-se o perfil do(a) destina-tário(a) e o objetivo que elas pudessem ter, prática cultural não total-mente superada tendo em vista os formulários que ainda vêm nospacotes dos softwares. Sem ainda falar nos artigos desse livro, se sepuder tomar todas as cartas como um conjunto de cartas, sua diver-sidade fascina: de homens/de mulheres; de famosos/de anônimos;de escritores/de professoras; laicas/religiosas; do século XVI/do sé-culo XX. Rol e, espectros de pessoas, de vidas, de modos de viver,como bem mostra o título do artigo de Cécile Dauphin e DanièlePoublan.

Visto assim de perfil, vejamos, agora, o livro em corpo inteiro.

� Abre o livro o historiador espanhol Antonio Castillo Gómez,professor titular de história da cultura escrita da UniversidadeAlcala de Henares, com o texto “ Como o polvo e o camaleãose transformam”: modelos e práticas epistolares na EspanhaModerna. Sobre esse aspecto se debruça o autor, que nos trazgrande quantidade de fontes e exemplos de manuais, formulá-rios e estilos que acabaram por produzir tanto o caráter reveladorquanto encobridor das cartas. Notável é sua generosa biblio-grafia: 83 títulos.

� O artigo de Marcos Cezar de Freitas, pesquisador e professorda história da educação, nos traz as cartas pastorais no sugesti-vo título “Por quem os sinos dobram?” (é inevitável lembrar aresposta: “eles dobram por ti”). Independente da boa qualida-de do artigo por suas fontes, por sua montagem e por sua baseteórica, destaco a explícita intenção de seu autor em tomar oassunto e suas fontes como “contribuição da história da educa-ção à história das mentalidades”, um cruzamento mais que ne-cessário.

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� As pesquisadoras francesas Cécile Dauphin e Danièle Poublan,do Centre de Recherches Historiques da EHESS de Paris, par-ticipantes de primeira hora das pesquisas que deram origem àhistoire des femmes, trabalham cartas familiares do século XIX.Embora não seja longo, mostra um caminho metodológico eescolhas que podem constituir a análise do pesquisador quetiver a sorte de encontrar um material assim e trabalhar nele.

� As “Cartas sobre a educação de Cora”, escritas em 1849 porJosé Lino Coutinho (médico) e tratadas nesse livro por MariaHelena Camara Bastos, pesquisadora e professora de históriada educação, revelam a intenção da educação dos pais-homensde um futuro para suas filhas-mulheres, mas ocultam essa re-lação entre amantes-homens e amantes-mulheres. IldefonsaLaura César, mãe-natural(?) de Cora, instiga a mais saber.

� Nos anos de 1930, preocupava-se com a educação e educado-res foram para a prisão, como foi o caso de Edgar Sussekindde Mendonça. Os pedaços de cartas trazidos pela pesquisado-ra e professora Ana Chrystina Venancio Mignot, permitem, demaneira sensível, traçar o perfil desse professor, diretor de es-colas, escritor, tradutor e editor, mas também daqueles que comele conviveram, que criaram estratégias de convivência. Maisuma vez, há uma mulher, sua esposa, a educadora ArmandaÁlvaro Alberto, de quem ainda há muito o que se falar, como ofez a própria autora do artigo em recente Congresso Brasileirode História da Educação (Natal, 2002).

� De uma pesquisadora da Universidade de Gênova, AugustaMolinari, nos chegam os fragmentos e a análise da correspon-dência que em 1920 foi estabelecida entre os operários de umgrande complexo naval e o “patrão”. Foi através dela que se tra-çou a história da fábrica do ponto de vista da cultura operária.

� Francisca Izabel Pereira Maciel, pesquisadora e professora daUFMG, analisa as carta enviadas – “Cartas Pedagógicas: frag-mentos de um discurso” – à formadora de inúmeras geraçõesde alfabetizadoras, Lúcia Casasanta. Nessas cartas aparecema saudade – Ah! Que saudades eu tenho da escola da minhavida... – das aulas, das experiências compartilhadas e as dúvi-das angústias pedagógicas vivenciadas pelas professoras,além de vários pedidos de orientação: peço-lhe que me orien-

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te. Podemos pensar se essas cartas são pedagógicas, mas semdúvida há nelas um apelo.

� Quem acha que a troca de cartas é coisa do século XIX, veráque essa prática começou muitos séculos antes e estende-seaté finais do século XX (quiça hoje). O texto da pesquisadoraMaria Rosa Rodrigues Martins de Camargo, com bases teóri-cas sobretudo em Bakhtin, estuda cartas de duas escolares –Escreva-me urgente... – com o objetivo de mostrar a carta comoobjeto cultural ao lado da escrita e da leitura, estudo esse capazde dar pistas sobre a constituição do sujeito que escreve.

� Também do século XX, o acervo obtido pela professora e pes-quisadora Maria Teresa Santos Cunha é composto por 171 car-tas trocadas entre duas jovens professoras entre 1967 e 1968.“Nessas cartas, as autoras, através de um pacto epistolar explí-cito, compartilham segredos, aconselham-se mutuamente e,principalmente, trocam experiências sobre seus cotidianos deprofessoras primárias, revelando pela escrita, um capital devivências da época.” Para quem viu, ouviu ou ouviu falar decoisas contadas e comentadas nas cartas, reviver esse capitalde vivências da época é delicioso. É a lembrança delas pescan-do a nossa lembrança...

� A correspondência de Oliveira Viana é analisada por GiselleMartins Venancio, doutoranda na época em que escreveu o ar-tigo. Os intelectuais deixaram em meio aos seus guardados ascartas que receberam e também, muitas vezes, cópias das queescreveram e é esse acervo tomado pela autora que vai nosmostrar como as cartas foram uma “estratégia de organizaçãoe de desenvolvimento de suas relações de sociabilidade”; é umtipo de correspondência, com editores e outros intelectuais, queevidencia sua relação com o mundo. Consta ainda no artigo o“tráfego” de livros entre os escritores e os admiradores em umquadro bem montado, que nos mostra o valor desse utensíliometodológico, infelizmente um pouco em desuso.

� Uma parte do imenso acervo da correspondência passiva deMário de Andrade foi enfrentado por Marilda Ionta, do depar-tamento de história da Universidade de Viçosa. Trata-se dascartas de Anita Malfatti. Através das cartas a autora do artigovai nos revelando traços de personalidade de um e outro, o

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lugar social que se atribuíam e ainda o entendimento da gran-de amizade entre os missivistas.

� É ainda o tema da amizade que volta na menção às cartas entreMonteiro Lobato e Godofredo Rangel. Jane Fadel Gracioso,da Universidade de Maringá, ficcionaliza um balanço da lite-ratura infantil brasileira e do projeto literário que os unia. ABarca de Gleyre tomou mais uma passageira que uniu pontosem torno da literatura e os oferece em forma também de litera-tura, ou de uma ficção.

As cartas sempre exerceram enorme fascínio sobre mim. Quepobre é a história... onde estarão as cartas de ódio? Onde estarão ascartas dos amantes abandonados, dos filhos que foram rejeitados oudos filhos perdidos, as que não foram enviadas (obterei resposta?).E há aquelas que não foram abertas, que é a coisa mais triste domundo. Cartas fechadas, postas de lado, com um destinatário surdoao remetente, ou morto.

É claro que uma resenha ou é muito menos ou muito mais doque um livro. Nunca é o livro. Por isso mesmo, sempre pretende serum convite a que se leia o livro. Não desapontem a resenhista, vocêsé que sairão lucrando.

P.S. Uso esse artifício permitido às cartas para fazer notar duas coi-sas: ficou muito interessante o tipo de fontes usadas na transcrição dascartas. Na impossibilidade de se ter uma transcrição fac-similar, afonte utilizada dá a idéia de aconchego, digamos assim. Ainda umaobservação aos possíveis leitores: relevem os erros (não muitos, masbastante) de impressão, digitação etc. É que fazer livro não acabanunca, muito embora quem faz, às vezes, seja obrigado a pôr umponto final.

Eliane Marta Teixeira LopesDoutora em Educação, escritora e psicanalista

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DOSSIÊO Público e o Privadona Educação Brasileira

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1 Em um levantamento preliminar, destacam-se os seguintes estudos: Buffa (1979),Ideologias em conflito: escola pública e escola privada, São Paulo, Cortez; Cunha(1981), “Escola particular x escola pública”, Revista ANDE, 1 (2); Cury (1988),Ideologia e educação brasileira: católicos e liberais, e Cury (1992), “O público eo privado na educação brasileira: posições e tendências”, Cadernos de Pesquisa,81 (maio); Pinheiro (1996), “O público e o privado na educação: um conflito forade moda, em Fávero (org.), A educação nas constituintes brasileiras, Campinas,Autores Associados; Vieira (1998), “O público e o privado nas tramas da LDB,”em Brzezinski (org.), LDB reinterpretada: diversos olhares se cruzam, São Paulo,Cortez.

2 A saber, UFRJ, CEFET-RJ, UERJ e PUC-Rio.

A idéia de reunir artigos que tomam como objeto de investigação opúblico e o privado na educação brasileira justifica-se com base em doisargumentos principais. Em primeiro lugar, busca somar esforços de todauma tradição de estudos que abordam essa temática, geralmente produ-zindo análises conjunturais em momentos de redefinição política elegislativa1. Em segundo lugar, pretende convidar o leitor a dar um mer-gulho na história com vistas a buscar, em diferentes temporalidades,elementos que permitam ampliar a compreensão de questões que afe-tam a educação brasileira no tempo presente. Em certa medida, o con-junto de textos aqui reunidos expressa a forma pela qual pesquisadoresde diferentes instituições sediadas na cidade do Rio de Janeiro2 desen-volveram suas análises sobre determinados aspectos da relação entre opúblico e o privado no âmbito da educação brasileira.

Acreditamos que o conhecimento da questão em uma perspectiva delongo prazo nos permitirá perceber com maior nitidez o fluxo estrutural

Apresentação

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de nossa história3, permitindo-nos articular as inflexões ocorridas no pró-prio processo de constituição das noções de público e privado em articula-ção com o movimento dinâmico que envolveu o debate de idéias em tor-no da educação das crianças e do povo brasileiro de uma maneira geral,assim como das disputas e dos consensos que acompanharam a estrutu-ração e generalização das instituições escolares no Brasil.

Nessa perspectiva, o primeiro artigo, intitulado “A construção daescola pública no Rio de Janeiro imperial”, recompõe aspectos relevan-tes da trajetória de construção do sistema público de ensino brasileiro,abordando a sua gênese no Rio de Janeiro imperial, quando foram implan-tadas ao Aulas Régias ou Aulas Públicas, como eram chamadas. Segun-do a autora, mesmo na fase final do Império, as instâncias do público edo privado confundiam-se ora em projetos comuns e em alianças, oradisputando interesses diferentes, observando-se, todavia, sua relação comas propostas que eram discutidas tanto no âmbito do governo imperialquanto no âmbito da sociedade, como, por exemplo, a obrigatoriedadedo ensino primário, o desenvolvimento do ensino profissional e a alfa-betização de adultos em cursos noturnos, entre outras.

O segundo artigo intitulado “A quem cabe educar? Notas sobre as re-lações entre a esfera pública e a privada nos debates educacionais dos anosde 1920-1930” aborda a preocupação com a (re)construção na nação, nosentido já clássico de republicanização da república, que marcou o am-biente cultural brasileiro do início do século XX. A autora demonstra quea cruzada pela educação em curso na época, ao mesmo tempo em quemobilizou esforços em prol da expansão da escola pública a segmentosamplos da sociedade, também produziu um conjunto de ações educativasdestinadas às famílias, sendo tais ações educativas entendidas como deresponsabilidade do Estado, da escola ou da Igreja. Como se poderá veri-ficar com a leitura do texto, se a preeminência da escola e do Estado dianteda família aparece como um dos eixos norteadores do pensamento reno-vador, no pensamento católico a família ocupa lugar primordial como

3 O termo foi tomado por empréstimo de Novais (1997) no Prefácio à obra Históriada vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa, SãoPaulo, Companhia das Letras.

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instituição educativa, atuando ao lado do Estado e da Igreja, porém, navisão do padre Leonel Franca, gozando de primazia ante essas duas ins-tituições.

O artigo intitulado “Oscilações do público e do privado na história daeducação brasileira”, apresenta uma interpretação acerca dos limites, dainteração e dos conflitos estabelecidos entre o público e o privado, ao lon-go do processo de institucionalização da educação em nosso país. Se aperspectiva de longo prazo não permite um aprofundamento das questõesali esboçados, ela propicia, em contrapartida, uma visão global do tema.

O quarto e último artigo, intitulado “O público e o privado na edu-cação brasileira: inovações e tendências a partir dos anos 1980”, insere-se no debate sociológico sobre o papel do Estado e do setor privado naeducação brasileira, buscando esclarecer o sentido que vem tomando arestruturação das relações entre essas instâncias. Ao levantar os proble-mas básicos presentes na tensão entre o público e o privado, a autoraidentifica alguns pontos-chave no redesenho operado nessas relações apartir dos anos 1980, recorrendo a exemplos selecionados entre as inicia-tivas educacionais recentes. Assim, apresenta uma visão geral dos me-canismos responsáveis pela definição de um novo padrão de políticaeducacional, diferente daquele que se consolidou entre os anos de 1930e 1970. Medidas associadas à descentralização político-administrativae financeira dos sistemas educacionais, assim como a tendência à redu-ção do volume, da capacidade e da qualidade dos serviços produzidospelo Estado no âmbito da educação compõem o repertório da análisedesenvolvida no referido estudo.

A soma desses artigos mescla abordagens características dos estu-dos históricos e dos estudos de caráter sociológico, entendendo que ainteração entre essas duas áreas disciplinares permite a fertilização dareflexão em torno da relação presente e passado, assim como potencializaa interseção entre teoria e empiria, entre interpretação e descrição. Osquatro estudos procuraram compor, cada um com seu recorte específi-co, um conjunto no qual se buscou abordar a relação público e privadona educação brasileira, inventariando as suas formas históricas de ma-nifestação, observando as imbricações, as aproximações e os afastamen-tos operados entre essas duas dimensões e procurando identificar os

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termos da oposição que marcou o conflito entre publicistas e privatistasno âmbito do debate e da participação nos rumos da política educacio-nal. Fez parte de nossas preocupações verificar a emergência de novasformas de relacionamento entre o Estado, a sociedade e os setores pri-vados no que tange à questão educacional, reafirmando, assim, acentralidade desse tema na educação brasileira contemporânea.

Libânia Nacif Xavier

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No Brasil, as fronteiras, ainda que tênues, entre o público e o privado foram sendo construídas,ao longo do século XIX, a partir, principalmente, de alguns marcos fundamentais da históriapolítica brasileira: quando deixamos de ser América portuguesa para sermos país indepen-dente em regime monárquico, em 1822, e depois em regime republicano, em 1889.O presente artigo pretende contribuir para uma reflexão sobre essa questão ainda em abertoda vida brasileira, pelo viés da escola pública no Rio de Janeiro imperial, buscando subsí-dios em diferentes instâncias de análise como a legislação, as aulas ministradas nas casasdos professores, a construção de prédios para as escolas públicas e a participação dascomunidades.Propõe também apresentar as características que marcaram a trajetória do sistema deensino público, especialmente na sua criação, com o advento das Aulas Régias e posterior-mente ao Ato Adicional de 1834.HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; ESCOLA PÚBLICA; AULAS RÉGIAS.

In Brazil, the borders between the public and the private, however tenuous they mayseem, were being built along the 19th century, mainly from some fundamental marks of thebrazilian political history: when it stopped being a Portuguese America to become anindependent country under a monarchical regime, in 1822, and later under a republicanregime, in 1889.Such an article intends to contribute for a reflection on that still open issue of the brazilianlife, through the public school in the imperial Rio de Janeiro, looking for subsides indifferent levels of analysis such as the legislation, the classes taught at the teachers’ houses,the construction of buildings for the public schools and the communities’ participation.This article also intends to present the characteristics that marked the path of the publiceducational system, especially when it was created, with the coming of the Aulas Régias,and after the Additional Act in 1834.HISTORY OF EDUCATION; PUBLIC SCHOOL; AULAS RÉGIAS.

* Tereza Fachada Levy Cardoso é doutora em história (IFCS/UFRJ) e professora domestrado em tecnologia do Centro de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonse-ca (CEFET/RJ). E-mail: [email protected]

A construção da escola pública no Riode Janeiro imperial

Tereza Fachada Levy Cardoso*

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No Brasil, as fronteiras, ainda que tênues, entre o público e o privadoforam sendo construídas, ao longo do século XIX, a partir, principalmen-te, de alguns marcos fundamentais da história política brasileira: quandodeixamos de ser América portuguesa para sermos país independente emregime monárquico e depois em regime republicano.

Segundo Novais (1997, p. 10) “se entendermos os marcos divisórioscomo ‘momentos de transição’, estamos absolutamente convencidos deque os dois momentos (fim do século XVIII e início do XIX e fim do XIXe início do XX) configuram de fato pontos de inflexão em nossa história”.

Ou seja, tanto o início do século, que testemunhou a Independência(1822), quanto o fim, que proclamou a República (1889), foram marcantespelas implicações que geraram na construção e delimitação do público edo privado em nossa história.

O presente artigo pretende contribuir para uma reflexão sobre essaquestão ainda em aberto, pelo viés da escola pública no Rio de Janeiroimperial, buscando subsídios em diferentes instâncias de análise, como alegislação, as aulas ministradas nas casas dos professores, a construçãode prédios para as escolas públicas e a participação das comunidades.

Rio de Janeiro: o centro do poder político

O Rio de Janeiro, sede do vice-reinado desde 1763, era uma cidadecom um porto ativo e um comércio internacional intenso, onde havia, porexemplo, 22 oficiais livreiros atuantes entre 1754 e 1799, que comercia-lizavam com regularidade edições vindas de diferentes países europeuscom os quais os livreiros mantinham relação direta. Além disso, consti-tuiu-se no grande centro distribuidor de produções variadas, como livrosou calendários (Cavalcanti, 1997, p. 228).

Evidentemente havia uma censura imposta pela metrópole em rela-ção aos impressos que circulavam em sua mais importante colônia, prin-cipalmente quanto aos livros proibidos por divulgarem os “abomináveisprincípios franceses”, de matriz iluminista, que aqui chegavam, por con-trabando, trazidos pelas embarcações estrangeiras que aportavam nacidade.

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Em 1808, com a transferência da corte para o Brasil, o Rio de Janei-ro transformou-se na nova sede da metrópole portuguesa. Motivada pelainvasão de Portugal, pelas tropas francesas de Napoleão, essa mudança,estratégica para preservar a monarquia, as suas colônias e a integridadedo império luso, tornou a cidade capital do Império e também o centro pola-rizador de todo o processo político. Pessoas de todo o país eram atraídaspara a cidade, além dos estrangeiros que vinham como pesquisadores,naturalistas, comerciantes, professores, médicos ou mercenários nas tro-pas militares, estimulados pelas possibilidades de ganho, pela curiosidadecientífica e também pelo exótico e pelo diferente.

O ambiente cultural da cidade renovou-se, em decorrência dessasmudanças e da política promovida por D. João VI, que se preocupou emtransformar a nova sede da corte num centro de cultura, com acesso a ummundo de conhecimento e produção intelectual antes muito controlado pelametrópole.

De acordo com Lyra:

É certo que a distinção clássica entre o público e o privado começou a se delinear

com mais clareza no Brasil a partir da transferência e resultante instalação da

Corte portuguesa no Rio de Janeiro, quando o funcionamento das instituições

públicas começou a refletir o peso interno do aparato centralizador do Estado

monárquico. E quando a chegada de novos contingentes populacionais com

hábitos e costumes inovadores, tanto quanto a abertura dos portos ao comércio

exterior, influiu no traçado mais nítido da vida privada [Lyra, 1999, p. 284].

Deve-se enfatizar, contudo, que em termos de educação essa ques-tão é anterior, porque desde a segunda metade do século XVIII já existiaa distinção entre educação pública, implantada pelo Estado, e educaçãoprivada, patrocinada predominantemente pelas ordens religiosas ou ain-da por particulares leigos.

Nesse contexto de transferência da Corte, a educação ganhou maiorprestígio. Entretanto, o acesso aos estudos continuava prioritário paraaqueles que, por sua posição na sociedade, podiam vir a ocupar cargosna administração pública, uma vez que as oportunidades de trabalho seampliaram com a necessidade de formar funcionários na nova sede do

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Império. O interesse do Estado monárquico, no reinado de D. João VI,direcionou-se para a formação de quadros dirigentes para a Administra-ção e o Exército. Os cursos instalados pelo príncipe regente revestiram-se de cunho formativo-profissional exclusivo, pois a tarefa de edificaçãodo novo império requeria a formação de técnicos.

Entretanto, a situação política do reinado mudou de forma radical em1820, quando eclodiu em Portugal a Revolução do Porto, de caráter libe-ral. Esse acontecimento provocou grandes debates na corte, mas tam-bém espalhou-se pelas ruas do Rio de Janeiro, por meio de panfletos, peloseditoriais dos jornais e na forma de manifestações públicas, gerando umclima de intensa efervescência política, observado também nas princi-pais cidades do Brasil, atingindo um público mais amplo, e não necessa-riamente vinculado às esferas de poder do Estado ou dos grandes senhoresde terra e escravos, o que demonstrava a intensa atividade pública entãoexistente e que esteve bastante presente na conjuntura de estruturaçãodo Estado liberal brasileiro durante a primeira metade do século XIX,quando

as discussões políticas e intelectuais, antes realizadas em recintos fechados e

em conversas secretas ou reuniões ocultas, alcançam as ruas das cidades mais

populosas, sob o impulso do ideal de liberdade do homem e do anseio de

participação nas diretrizes da sociedade que se organizava. [...] Tais manifes-

tações envolveram parcela considerável da população urbana, seja em festivi-

dades religiosas ou celebrações dinásticas, seja engajada na vida política

propriamente dita, aí considerada como vida pública, através de associações e/

ou movimentos reivindicatórios [Lyra, 1999, pp. 287 e 289].

A propósito, vale lembrar que em 1821, por instância da populaçãodo Rio de Janeiro, foi mais uma vez instalada uma escola, no prédio doSeminário de São Joaquim. Dessa vez com caráter profissionalizante,incluindo no plano de estudos as cadeiras de desenho e geometria etambém a construção de oficinas, dentro das características já aponta-das para o reinado joanino. Desde o período colonial, os seminários tive-ram papel importante para a educação dos filhos de famílias ricas, mastambém recebiam meninos, órfãos ou não, originários de famílias de pou-

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cas posses que, muitas vezes, vislumbravam na carreira religiosa umapossibilidade de ascensão social. Os Seminários de São Joaquim e SãoJosé, ambos criados em 1739, eram os mais prestigiados da cidade, posi-ção que foram perdendo ao longo do tempo, até que em 1818, D. JoãoVI destinou o prédio do Seminário de São Joaquim para o aquartelamen-to de tropas, transferindo os alunos para o de São José. Em 1821, após amobilização popular que o reabilitou como estabelecimento escolar, rece-beu o nome de Seminário Imperial e ficou sob a administração da Câma-ra Municipal. Pelo decreto de 2 de dezembro de 1837, foi transformadoem estabelecimento de ensino secundário, com o nome de Colégio dePedro II (Ribeiro, 1873, t. IV pp. 356 e 357; Haidar, 1972, p. 22).

Em 1822, foi instituído o Estado Brasileiro na forma de Império liberale a pauta de debates públicos incluiu temas como, por exemplo, a consti-tucionalidade da monarquia e a definição da nacionalidade brasileira. Numasociedade escravista, como a nossa, parece paradoxal vincular educaçãoe cidadania, entretanto, ao longo de 1823, a Assembléia Nacional Consti-tuinte discutiu amplamente essa questão e, de modo geral, os deputadosparticipantes dos debates sobre a educação nacional concordavam quan-to à situação de penúria em que se encontrava o ensino público e quantoà necessidade de se expandirem as luzes aos cidadãos brasileiros, via edu-cação (Cardoso, 2002, p. 191).

Nos debates em torno da definição de quem seria ou não cidadãobrasileiro, os constituintes estabeleceram algumas condições, como, porexemplo, a distinção entre cidadãos ativos, que seriam detentores dedireitos políticos e civis, e os cidadãos passivos, que teriam direitos civismas não políticos. A diferença entre essas duas categorias seria exercidapelo voto. Entretanto, como a propriedade era o fundamento da cidada-nia, seria possível se tornar cidadão ao se tornar proprietário.

Ficava excluída assim, da sociedade política brasileira, grande parteda população, formada por escravos e por homens livres pobres, comotambém do acesso à educação, porque a Constituição de 1824, em seuart. 179, parágrafo 32, só garantia educação gratuita aos cidadãos.

É possível inferir naquele contexto legislativo a intenção de ampliar ouniverso dos estudantes que freqüentavam as escolas, notadamente osdo ensino primário, embora no texto do projeto constitucional não cons-

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tasse a garantia da gratuidade do ensino e a matéria necessitasse aindade posterior regulamentação, o que na prática não alterava, significativa-mente, o panorama que já existia na área escolar.

Entretanto, o setor mais radical e conservador da política soube tra-var as propostas liberais que avançavam na questão das conquistas so-ciais e da cidadania. O fechamento da Assembléia Constituinte, em 1824,exemplifica essa ação.

A escola pública no início de século XIX

A escola pública brasileira, em sua forma e função, foi concebida emPortugal, em conseqüência da política reformista ilustrada levada a efei-to no reinado de D. José I (1750-1777) e capitaneada por seu poderosoministro, o Marquês de Pombal.

Implementada em todo o reino luso com o advento das Aulas Régias,a partir do alvará de 28 de junho de 1759, extinguiu o sistema de ensinobaseado nos princípios sustentados pela Companhia de Jesus, que vigo-ravam havia dois séculos, tornando obrigação do Estado garantir a edu-cação gratuita à população, estabelecer suas diretrizes e pagar os profes-sores, subordinados todos a uma política fortemente centralizadora. Apartir de então a educação tornava-se leiga, conduzida por organismosburocráticos governamentais e não mais na diretriz dos jesuítas, sem,contudo, abolir o ensino da religião católica nas escolas, que permaneceuobrigatório.

O segundo momento da reforma dos estudos, termo utilizado oficial-mente, ocorreu através da lei de 6 de novembro de 1772, destinada à refor-ma da universidade e também com o intuito de sanar vários problemasocorridos na implementação da etapa anterior.

Deve-se ressaltar que a educação não era obrigatória e que seu des-tino não era a população em geral, partindo o governo do princípio de queera “impraticável” montar uma rede escolar em todos os territórios lusose, portanto, visando o bem do “interesse público”, é que se classificavamos súditos em grupos diversos: aqueles aos quais as “instruções dos pá-rocos” seriam suficientes e que, portanto, permaneceriam dentro da cul-

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tura oral; aqueles aos quais bastaria saber os “exercícios de ler, escrevere contar”; aqueles que chegariam “à precisa instrução da Língua Latina”,destinando-se, por fim, ao menor número deles a universidade, ou seja, “asFaculdades Acadêmicas que fazem figurar os homens nos Estados”(Cardoso, 2002, pp. 152-153).

As Aulas Régias foram o caminho político escolhido para conciliar atarefa de modernizar Portugal, preservando a monarquia absolutista. Suascaracterísticas marcantes eram o seu caráter centralizador, a falta de au-tonomia pedagógica, a existência de dois níveis de ensino – Estudos Meno-res e Estudos Maiores – e o acesso à educação restrito a uma parcela dapopulação, evidenciando seu caráter excludente. Entretanto, foram umavanço em sua época, por procurar contemplar novos referenciais dentrode uma perspectiva que o universo filosófico de seu tempo reclamava.

A denominação de Aulas Régias para as escolas públicas predomi-nou entre 1759 e 1822, quando passaram a ser chamadas de Aulas Pú-blicas, sendo também utilizada a denominação de Escola Nacional emalguns documentos posteriores a 1827.

A designação de Estudos Menores, ou ainda a de Escolas Menores ede Primeiros Estudos, correspondia ao ensino primário e ao ensino secun-dário, sem distinção. Depois de concluídos os Estudos Menores, o estudan-te habilitava-se a cursar os Estudos Maiores, aqueles oferecidos pelauniversidade. Só mais tarde, após a Independência do Brasil, é que osEstudos Menores aparecem separados, nos documentos oficiais, em doisníveis distintos, o primeiro com o título de ensino primário ou instruçãoprimária e o segundo, referente à educação secundária, como ensinodas humanidades ou aulas de estudos menores, mantendo a denomina-ção original. No Brasil, foi a partir de 1835 que o ensino secundário pas-sou a reunir as aulas, ou cadeiras avulsas, em estabelecimentos de instru-ção secundária denominados de liceus (Cardoso, 2002, p. 113).

A escola era uma unidade de ensino com um professor. O termoescola era utilizado com o mesmo sentido de cadeira, ou seja, uma aularégia de gramática latina ou uma aula de primeiras letras, correspondia,cada uma, a uma cadeira específica, o que representava uma unidadeescolar, uma escola. Cada aluno freqüentava as aulas que quisesse, nãohavendo articulação entre as mesmas.

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As aulas eram dadas na casa do próprio professor e apenas eventual-mente aproveitou-se um prédio anteriormente ocupado pelos jesuítas ououtro tipo de convento para local de ensino. Assim, não era preciso ha-ver um edifício escolar para que a escola existisse.

Portanto a escola, enquanto locus privilegiado de educação, era nacasa do professor, onde o espaço educativo, público, confundia-se com oespaço privado e onde o Estado, apesar de produzir uma legislação norma-tiva minuciosa sobre o funcionamento escolar, na prática não chegavacom tanta facilidade.

Entretanto, na década de 1840, a necessidade de se erguerem pré-dios públicos escolares já aparecia em manifestações de autoridades,como por exemplo, do ministro Araújo Viana, para quem a conjunturapolítica da Maioridade não permitia ao governo dar a devida atenção aoproblema do ensino, mas reconhecia que “além do regulamento, um dosprimeiros passos a dar é levantar planos e fazer orçamentos de edifíciosescolares, ao menos nas freguesias da cidade do Rio de Janeiro”. Trêsanos depois, o mesmo ministro afirmava que “as plantas para os edifíciosescolares acham-se prontas com os respectivos orçamentos e a desig-nação dos lugares onde devem levantar os sobreditos edifícios nas qua-tro freguesias mais centrais da cidade” (Moacyr, 1938, pp. 522-523).

A idéia, contudo, não se concretizou e em 1846 foi a vez do ministroAlmeida Torres pedir fundos para construir prédios escolares ao parla-mento, que se arrastou nas discussões e não liberou verba alguma.

Foi só na segunda metade do século XIX que edifícios começaram aser construídos para funcionarem como escolas públicas no Brasil. Deacordo com Baltar (2001), as primeiras escolas construídas no país, a partirda década de 1870, estavam no Rio de Janeiro, localizadas nas freguesi-as urbanas mais importantes e populosas, como Santana, Santa Rita, SantoAntonio, São José e Glória (Schueler, 2001, p. 99).

Quanto ao corpo docente, a admissão ao cargo de professor era fei-ta por concurso público, sendo que o primeiro realizado no Brasil foi emRecife, em 20 de março de 1760. Menos de dois meses depois, em 7 demaio, o Rio de Janeiro realizou os seus primeiros exames, para professo-res régios de gramática latina, na residência do recém nomeado comis-sário, o desembargador João Castelo Branco. Todavia, o início oficial das

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Aulas Régias no Rio de Janeiro só aconteceu em 28 de junho de 1774,marcado solenemente pela abertura da aula de filosofia racional e moral,do professor régio Francisco Rodrigues Xavier Prates.

Havia então se passado exatamente 15 anos desde o alvará de 28 dejunho de 1759, que implantou o novo sistema público de ensino em todo oreino português. Naquele tempo, os habitantes da cidade, bem como osdemais da América Portuguesa, recorreram às aulas particulares ou àgenerosidade alheia para suprirem esse aspecto da ausência do Estado.

Não havia disputa entre a escola pública e a particular, nesse contex-to, o que não deixa de ser um paradoxo, porque a Coroa portuguesa teveum grande empenho em elaborar uma legislação bastante restritiva, mi-nuciosa, comprometida com uma idéia de progresso e de civilização,voltada tanto para a implantação da escola pública quanto para o funcio-namento da particular, sem no entanto promover condições reais deaplicabilidade da mesma. Sequer durante o Império brasileiro se observaessa disputa, uma vez que a escola pública nunca preencheu as necessi-dades da população, portanto a escola particular mantinha um espaço deatuação que era complementar e não concorrente.

Aliás, merece registro que tanto no Rio de Janeiro quanto no Brasilem geral, havia um incentivo do Estado para a proliferação do ensino par-ticular, tanto no período em que ainda era América Portuguesa ou já comopaís independente, durante o Império. Traduzia-se essa política por dife-rentes meios, como por exemplo o descaso e a omissão quanto aos assun-tos da educação pública, a necessidade de dividir a tarefa com a sociedade,a prática das subscrições populares para arrecadar fundos, o incentivo ea parceria com as sociedades e associações voltadas para a promoçãoda instrução.

Ilustrativo a esse respeito é o decreto de 30 de junho de 1821, quedeve ser compreendido com base nas mudanças liberalizantes desencadea-das pela Revolução do Porto e no qual “a Regência do Reino em nomede El-rei o Senhor D. João VI faz saber que as Cortes Gerais Extraordi-nárias e Constituintes da Nação Portuguesa” permitiram a qualquer ci-dadão o acesso ao ensino e a abertura de escola de primeiras letras,independente de exame e licença, estimulando a liberdade de organiza-ção do ensino fundamental, tendo em vista que para o governo não era

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possível bancar “escolas em todos os lugares deste Reino” e tambémporque desejava “assegurar a liberdade que todo Cidadão tem de fazer odevido uso dos seus talentos, não se seguindo daí prejuízos públicos”.Assim, decretavam:

Que da publicação deste em diante seja livre a qualquer cidadão o ensino e

abertura de Escolas de primeiras letras em qualquer parte deste Reino, quer

seja gratuitamente, quer por ajuste dos interessados, sem dependência de

exame, ou de alguma licença. A Regência do Reino o tenha assim entendido e

faça executar [Decreto de 30 de junho de 1821].

Ou seja, o decreto das Cortes isentava o Estado de responsabilidadeapenas quanto ao ensino fundamental, em nome da liberdade do cidadãode fazer suas escolhas, como se a grande massa da população pobre quehabitava o Brasil pudesse dispor, como regra geral, de qualquer educaçãocusteada por seus próprios meios. No entanto, era esse o teor do discur-so liberal.

Após a Independência, a Constituição promulgada em 1824 garantia,no art. 179, parágrafo 32, “a instrução primária gratuita a todos os cida-dãos”. No entanto, esse parágrafo só seria aplicado após a publicação,pela Assembléia Legislativa, da lei de 15 de outubro de 1827, em conse-qüência das discussões travadas na Assembléia Legislativa em 1826, so-bre o projeto apresentado pelo cônego, deputado e também professorpúblico de filosofia racional e moral, Januário da Cunha Barbosa. Dentroda política de ensino em termos de projeto nacional, a lei de 1827 instituiuum mesmo programa de estudos para todo o país nos estabelecimentos deprimeiras letras, moldando uma escola nacional, mas ainda não obrigató-ria, além de criar uma escola em cada freguesia do Rio de Janeiro.

Portanto, educação pública não significava educação popular, com-prometida com a cidadania e a constituição da nacionalidade.

A mudança do sistema de ensino

As Aulas Régias abrangeram um período importante, durante o qual apolítica do reformismo ilustrado se firmou em Portugal, o Rio de Janeiro

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assumiu a posição de sede do vice-reinado em 1763 e consolidou-se nocenário político-cultural brasileiro, passando à condição de sede da mo-narquia portuguesa em 1808. Em 1822, quando o Brasil tornou-se naçãoindependente, constituindo-se em Estado imperial e constitucional, a cida-de continuou a ser o centro mais importante de poder. Nesse quadroconjuntural destaca-se, ainda, a abdicação do imperador D. Pedro I, em1831, em favor do imperador menino, D. Pedro II, além da instalação dosgovernos regenciais, quando o Brasil passava, pela primeira vez, a sergovernado por brasileiros natos.

Trata-se, portanto, de um longo período que abarca diferentes con-junturas, durante o qual o sistema de ensino público, inaugurado com asAulas Régias, se manteve quase inalterado em suas características essen-ciais e, por isso mesmo, manteve um conjunto de elementos que funcio-naram com uma estrutura organizada, pressupondo uma unicidade,caracterizando-se como um sistema.

A alteração desse sistema de ensino público, implantado com as AulasRégias, só ocorreu em 1834, com a lei de 12 de agosto, que o substituiu porum outro sistema de ensino, caracterizado pela descentralização, uma vezque tanto o ensino fundamental de ler, escrever e contar, quanto o ensinomédio das humanidades ficaram a cargo das Assembléias Legislativasprovinciais, como pode ser apreendido com base no texto do art. 10, pará-grafo 2º, do citado Ato Adicional à Constituição do Império, segundo o qualcompetia às mesmas Assembléias legislar

sobre instrução pública e estabelecimentos próprios para promovê-la, não

compreendendo as faculdades de Medicina, os Cursos Jurídicos, Academias

atualmente existentes e outros quaisquer estabelecimentos de instrução que

para o futuro forem criados por lei geral.

Dessa forma, o poder central limitava-se a promover a educação noRio de Janeiro, então município neutro e a educação superior.

A conjuntura política brasileira desse período regencial é fortementemarcada pelas disputas entre os partidários da descentralização e os quedefendiam a centralização política. Em 1840, em nome da garantia dapreservação do Estado imperial, ocorre a antecipação da maioridade do

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imperador, que assumiu o trono como D. Pedro II, simbolizando a autori-dade que asseguraria a permanência e a unidade do Estado imperial bra-sileiro. A centralização do poder envolvia a definição de todas as questõesda administração civil e militar e a aplicação da justiça, aliada à concen-tração das rendas públicas, que

desvirtuou o sentido do exercício da política nas áreas municipais e provinciais

distantes da capital do Império. O governo imperial dirigia tudo, controlava

tudo, e todos os anseios dependiam da decisão dos agentes da autoridade má-

xima, o imperador, que atuava segundo as regras estabelecidas na Constituição

e nas leis aditivas, criadas e reformuladas sempre que se fez necessário fortalecer

a autoridade do Estado imperial e constitucional [Lyra, 2000, p. 118].

Apesar da historiografia registrar diferentes pontos de vista quanto aoefeito que a descentralização advinda do Ato Adicional provocou na edu-cação, não se pode imputar a essa nova característica constitucional aresponsabilidade pelo fracasso da instrução primária no Império. Comomostra Sucupira (1996, p. 66), quando mostra que não faltaram apelos paraque o governo central participasse mais efetivamente da educação, no en-tanto: “O que se verificou foi justamente a omissão das classes dirigentes,o seu desinteresse pela educação popular”.

O controle da escola

Por outro lado, até 1834, o Estado pretendia exercer um controlerígido sobre os professores, prevendo claramente as sanções a que esta-vam sujeitos os mesmos, que em última instância, seriam agentes dessapolítica centralizadora e estatizante. Sendo assim, era preciso inspecio-nar alunos e professores. De que maneira?

Quanto aos alunos, a primeira determinação legal referente à obriga-toriedade de exames públicos para a avaliação do rendimento escolarencontra-se no decreto de 6 de julho de 1832. Até então, as pesquisasindicam que essa responsabilidade ficava a cargo exclusivamente doprofessor.

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Quanto à avaliação de desempenho dos professores, para conferir ocumprimento de suas obrigações, até a Independência, a preocupação,em geral, era observar apenas a sua conduta pessoal. Nesse caso, opároco, o chefe de polícia e os pais dos alunos eram as principais fontesde informação de que dispunha o poder do Estado.

Como no Rio de Janeiro as aulas efetivamente só começaram em1774, o órgão responsável pela administração dos Estudos das EscolasMenores era a Real Mesa Censória. Depois da Independência, essa res-ponsabilidade passou a ser das Câmaras Municipais, que continuaramresponsáveis por essa tarefa, principalmente depois de 1834, quando osistema descentralizado de ensino foi implantado.

Na tentativa de padronizar os procedimentos de avaliação destina-dos não só às escolas públicas, mas também às particulares, foi elaboradauma lei específica sobre a matéria, a lei de 1o de outubro de 1828, refor-çada posteriormente por outras medidas legais que visavam manter ocumprimento dos interesses públicos que o Estado representava, dentroda escola-residência, local da vida privada do professor, de sua família epor vezes até de alunos que, vindos de outras localidades, moravam empensões que alguns professores mantinham na mesma residência.

Entretanto, após a mudança de orientação política, em conseqüênciada descentralização promovida pelo Ato Adicional de 1834 e, embora oensino do município neutro estivesse a cargo do governo imperial, essesmecanismos de controle não eram eficazes, como reconheceu em 1840o ministro Araújo Viana.

Com o objetivo de reverter esse quadro, o ministro indica que umaprovidência a ser tomada pelo governo é o direito de inspeção “sobre to-das as aulas e colégios particulares”, principalmente aqueles “que sãodedicados à instrução primária” e justifica assim essa necessidade:

É porventura a educação da mocidade objeto de tão pequena monta que se

consinta na existência de uma multidão de casas daquela natureza sem que o go-

verno tenha mui particular conhecimento do cabeça de cada uma dessas casas,

das habilitações de seus professores, das matérias de ensino, da pureza de suas

doutrinas e da maneira por que tanto o diretor do estabelecimento, como os

mesmos professores desempenham as obrigações para com as pessoas que lhes

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confiam os seus filhos ou tutelados? Parece incrível, mas é uma triste verdade

que tudo isto se ignora nesta capital do Império [Moacyr, 1938, p. 522].

Em 1847, o governo nomeou uma comissão de cidadãos “distintos”,com a tarefa de visitar as escolas públicas “para conhecerem exatamen-te o seu estado”, mas além disso também visitar os estabelecimentosparticulares. Era a primeira vez que o Estado se intrometia no ensinoprivado, após a descentralização do ensino em 1834. Pires de Almeidaregistra que esta autorização ministerial

deu lugar a polêmicas muito vivas nos jornais, que viam nisso uma grave

transgressão da lei. Sustentava-se que o governo não tinha nada a ver com a

instrução particular, quando na realidade a moralidade pública exigia há tempo

esta intervenção; porque, chegara-se a tal ponto que cada um podia abrir o

curso que lhe aprouvesse, sem informar qualquer autoridade seja policial,

administrativa ou municipal, e havia instrutores ou professores que infligiam

aos seus discípulos punições muito rigorosas. A Câmara Municipal, estimu-

lada pelos avisos sucessivos do Ministério do Império, tentou um novo esfor-

ço para manter a disciplina escolar e recuperar sua própria força moral. Retirou

de seus agentes fiscais a vigilância das escolas e confiou-a aos curas das

paróquias e aos juízes de paz [1989, p. 81].

Ou seja, retomava-se a prática colonial de fiscalizar a escola atravésde outras instâncias de poder, além daquelas nomeadas especificamentepara tal fim pela Câmara Municipal, como era o caso dos fiscais. Note-se como essa questão reflete ainda a construção dos limites do Estado,gestor da vida pública, portanto da escola pública, e o que seria pertinen-te ao setor privado, no caso, a escola particular.

Mesmo na fase final do Império, após 1870, as instâncias do público edo privado mesclavam-se e confundiam-se ora em projetos comuns, alian-ças, ora disputando interesses diferentes, observando-se, todavia, sua re-lação com as propostas que eram discutidas tanto no âmbito do governoimperial quanto no da sociedade, como por exemplo a obrigatoriedade doensino primário, o desenvolvimento do ensino profissional, a alfabetizaçãode adultos em cursos noturnos, entre outras (Schueler, 2001, p. 112).

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Para a segunda metade do século XIX, deve-se registrar que a legis-lação sobre educação foi pródiga quanto a regulamentos – por exemploo da Instrução Primária e Secundária da Corte, elaborada pelo Barão doBom Retiro em 1854 e reformas como a proposta em 1859, passandopela de Paulino de Souza, Reforma João Alfredo, Leôncio de Carvalho,Rui Barbosa, Almeida de Oliveira e Barão de Mamoré. Essa onda re-formista continuou durante os primeiros anos da República, com as Re-formas Benjamin Constant (1890-1892), o Código Fernando Lobo (1892-1899), o Código Epitácio Pessoa (1900-1910) e a Reforma Rivadávia eC. Maximiliano (1911-1924).

Apesar disso, a situação do ensino público elementar ou secundáriocontinuava precária, como se depreende dos discursos parlamentares doperíodo. Isso se evidencia, por exemplo, na Reforma Rui Barbosa, quan-do Rui levanta as grandes mazelas do ensino nacional e expõe a situaçãode absoluta miséria do ensino popular, secundário e dos incipientes estu-dos superiores, além do problema das despesas com a instrução pública.

A Proclamação da República, em 1889, e a conseqüente Constituiçãoda República de 1891, instituíram o sistema federativo de governo e con-sagraram tanto a descentralização do ensino quanto a dualidade de sis-temas, herança do Império, uma vez que pelo artigo 35, itens 3 e 4, eraprerrogativa da União “criar instituições de ensino superior e secundárionos Estados” e “prover a instrução secundária no Distrito Federal”, de-legando aos estados a competência sobre a educação primária. Assim,oficializava-se a “distância que se mostrava, na prática, entre a educa-ção da classe dominante (escolas secundárias acadêmicas e escolassuperiores) e a educação do povo (escola primária e escola profissional)”(Romanelli, 1983, p. 41).

Também Fernando de Azevedo (1950, p. 75) considerou que a descen-tralização do ensino fundamental, em 1834, característica mantida pelaRepública, “não permitiu, durante um século, edificar, sobre a base sólidae larga da educação comum, a superestrutura do ensino superior, geralou profissional, nem reduzir a distância intelectual entre as camadas in-feriores e as elites do país”.

O tradicional descaso do governo com o ensino público no Brasil,que desponta ontem e hoje como um problema em termos de conquista

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da cidadania, evidencia a importância da análise feita por Anísio Teixeirasobre o tema, que reproduzimos como uma síntese final deste trabalho:

a educação em todo esse período refletiu a cultura dominante da sociedade

dividida entre o conservadorismo de hábitos e o liberalismo de gestos, entre a

estrutura social reacionária e opressora e a superestrutura intelectual formal

de constituição e liberdade. Numa sociedade patriarcal, escravagista como a

brasileira do Império, num estado patrimonialista dominado pelas grandes

oligarquias do patriciado rural, as classes dirigentes não se sensibilizavam com

o imperativo democrático da universalização da educação básica. Para elas, o

mais importante era uma escola superior destinada a preparar as elites políti-

cas e quadros profissionais de nível superior em estreita consonância com a

ideologia política e social do Estado, de modo a garantir a “construção da

ordem”, a estabilidade das instituições monárquicas e a preservação do regime

oligárquico [apud Sucupira, 1996, p. 66].

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Tendo como referência os debates educacionais em curso na sociedade brasileira dos anosde 1920-1930, o artigo pretende analisar nuanças quanto à compreensão das competênciasdos diferentes agentes no exercício da função educativa. Focalizando o movimento daEscola Nova e o movimento de renovação católica, estão sendo examinadas, com base nodiscurso de intelectuais representativos das duas tendências, formas diferentes de se con-ceber o papel da esfera pública – representada pelo Estado/escola pública – e o da esferaprivada – representada pela família – na educação dos indivíduos e na conformação dasociedade brasileira, bem como as relações entre essas esferas.HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA; DEBATES EDUCACIONAIS; PENSAMENTOEDUCACIONAL; RELAÇÕES ESCOLA-FAMÍLIA.

With reference to the current educational debates in the brazilian society during the years1920-1930, the article intends to analyze some nuances concerning the comprehension ofthe capacities of the different agents exercising the educational function. Focalizing themovement of New Education and the movement of catholic renovation, based on thediscourses of intellectuals representing the two tendencies, different procedures ofconceiving the role of the public sphere – represented by the State/public school – and therole of the private sphere – represented by the family – in the education of the individualsand in the configuration of the brazilian society, as well as the connections between thosespheres, are being examined.HISTORY OF EDUCATIN; EDUCATIONAL DEBATES IN BRAZIL; EDUCATIONALIDEAS; SCHOOL-FAMILY RELATIONSHIP.

* Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi é doutora em história cultural – Programa dePós-Graduação em História – pela UFF. Faculdade de Educação da UERJ e Departa-mento de História da PUC-Rio. E-mail: [email protected]

A quem cabe educar?Notas sobre as relações entre a esfera

pública e a privada nos debates educacionaisdos anos de 1920-1930

Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi*

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A escola que pretende, aliás, elevar apenas acriança não considera o que há de limitado

em tal pretensão. Ela pode elevar, ao mesmotempo – embora com outras proporções –, todo

o ambiente social que rodeia cada geração.Por que furtar-se a obra tão ampla?

CECÍLIA MEIRELES

[...] as famílias são o viveiro daPátria [...]

PADRE LEONEL FRANCA

Da educação como via de construção da nação

No horizonte dos movimentos culturais e políticos que pontuaram ahistória da sociedade brasileira no século XX, os anos de 1920-1930 fi-caram conhecidos como tempos marcados pela fertilidade de idéias e pelaprofundidade dos debates. Nesse quadro em que se observa a mobilizaçãode setores expressivos de nossa vida política, cultural e artística, pode-se dizer que o tema da nação foi alvo da reflexão de intelectuais diver-sos, de vertentes variadas, que se posicionaram com base na compreensãode que não haveria se constituído até então uma nação organizada noBrasil. Com base nesse diagnóstico, apoiado, em grande medida, na frus-tração das expectativas de mudança depositadas na república recém-ins-taurada, os intelectuais enxergavam na organização da nação – ou, paraalguns, na sua construção – uma tarefa fundamental e urgente a ser rea-lizada. Assinalavam, ainda, a crença em sua responsabilidade, como in-tegrantes de uma elite dotada do instrumental apropriado, em conduziresse processo, compreendido como verdadeira missão que envolveriaainda um outro aspecto a ser enfrentado: a instituição de uma ordemmoderna no país1.

Em meio a expressões diversas de nacionalismo conduzidas emmúltiplas direções e dotadas de tonalidades variadas, um dos caminhos

1 Ver, a este respeito, Herschmann e Pereira, 1994; Pécaut, 1990.

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comumente assinalados como dos mais importantes na afirmação deuma realidade nacional em bases modernas foi o da educação. Nessemomento, decisivo na definição do campo educacional no Brasil, é dig-no de nota o envolvimento de intelectuais de destaque, alçados progres-sivamente ao lugar de “especialistas da educação”, em um movimentorenovador inspirado nas idéias da chamada Escola Nova.

Embora no interior desse movimento não se observe homogeneidadede posições, pode-se assinalar a convergência de idéias de um contin-gente expressivo de educadores em torno de alguns eixos. Um dos te-mas que aproximaram muitos integrantes daquela geração renovadorafoi o da constituição de um sistema de educação pública em bases nacio-nais. A defesa dessa idéia é claramente expressa no Manifesto dos Pio-neiros da Educação Nova, documento que reuniu muitos dos nomes queiam se afirmando então no campo da educação e se identificavam com amodernização do cenário educacional. Na concepção desses educado-res, a instituição escolar adquiria um destaque indiscutível, ao ser eleva-da ao papel de irradiadora da modernidade e da civilização. “Regeneraras populações brasileiras, núcleo da nacionalidade, tornando-as saudá-veis, disciplinadas e produtivas” era “o que se esperava da educação”(Carvalho, 1989, pp. 9-10), esse objetivo seria alcançado de modo pri-vilegiado pela escola pública2.

Para além da defesa de princípios, cabe mencionar que vários des-ses intelectuais aproximaram-se do Estado, passando inclusive a ocupar

2 Cabe ressaltar que alguns representantes do campo renovador – dotado de importan-tes nuanças – assinalavam também a relevância do concurso da iniciativa particu-lar na resolução do problema da “educação nova”. Armanda Álvaro Alberto, porexemplo, foi uma das signatárias do Manifesto dos Pioneiros que compartilhavadessa compreensão, também divulgada pela Associação Brasileira de Educação(ABE), de que fazia parte. A professora Armanda inclusive tornou-se conhecidapor ter sido diretora de uma escola particular destinada às camadas populares einspirada nas idéias da Escola Nova, fundada na década de 1920, no atual municí-pio de Duque de Caxias (RJ). Apesar de ser importante a menção às nuanças obser-vadas no movimento, cabe destacar a primazia, em seu interior, do discurso queenfatizava a idéia da educação como função pública e responsabilidade do Estado.Sobre a trajetória da professora Armanda no cenário educacional brasileiro (verMignot, 2002).

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postos relevantes na esfera governamental, através dos quais puderamcontribuir com ações concretas para as mudanças que defendiam na áreado ensino. Tal foi o caso, por exemplo, de Fernando de Azevedo, AnísioTeixeira, entre outros, responsáveis pelas Reformas de Instrução Públi-ca que produziram repercussões significativas em nosso cenário educa-cional.

Em relação ao aspecto da aproximação entre intelectuais e Estado,deve-se assinalar que essa não foi uma tendência observada apenas nocampo educacional. Em diversas áreas de nossa vida política e culturala partir dos anos 1920, em tempos de crítica ao liberalismo característi-co da Primeira República e de denúncia de todo um quadro de desorga-nização social e de ausência de “consciência nacional” associado àqueleregime, era bastante compartilhada a visão do papel do Estado comocondutor do processo de construção da nação3. Afinado com essa cren-ça, Alceu Amoroso Lima, intelectual católico fortemente envolvido nosdebates da época, assinalava: “[...] o poder público não é apenas o refle-xo do povo e sim o orientador, o guia, o verdadeiro formador do povo”(Lima, 1944, p. 145).

“Formar o povo” e “construir a nação” constituíram-se, portanto,em objetivos norteadores das práticas de um importante contingente deintelectuais-educadores que procuraram, na medida do possível, esta-belecer uma parceria com o poder público na verdadeira “cruzada pelaeducação” em curso na época. Nesse quadro, a extensão do acesso àescola pública a segmentos amplos da sociedade aparecia como bandei-ra bastante valorizada, sendo o combate ao analfabetismo visto comoum eixo importante do debate e da ação governamental. Configurava-se, também, para além do olhar dirigido ao “ler, escrever e contar”, umapreocupação com a educação formal de maneira mais ampla, em cujaesfera seriam veiculadas lições de sentimento pátrio. Mas a constituiçãode uma nação organizada deveria incluir ainda outros elementos funda-mentais que mobilizaram a atenção das elites intelectuais daquele tem-

3 Mônica Velloso analisa o movimento através do qual intelectuais e artistas de diferen-tes vertentes que tiveram expressão em nosso cenário cultural dos anos de 1920 apro-ximaram-se do Estado, durante a vigência do governo Vargas. Ver: Velloso, 1987.

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po, como a transmissão de hábitos e comportamentos à população, demaneira a se conformar um “corpo social saudável”4 e coeso em tornode referenciais comuns.

Lições da escola à família

Tendo em vista esse processo de modelação da sociedade, um outroaspecto assinalado com freqüência pelos atores sociais envolvidos nosdebates da época foi o da importância da interferência dos educadoresno espaço privado. Diante da compreensão de que as lições de “civiliza-ção” dirigidas à sociedade somente seriam realmente assimiladas sepenetrassem na intimidade do lar, de modo que ao atingir os recônditosda privacidade individual, foram muitos os intelectuais que se mobili-zaram em ações educativas destinadas às famílias e defenderam a açãodo Estado e da escola nessa mesma direção.

É digno de nota, por exemplo, o destaque dado pelo movimento daEscola Nova à reflexão sobre as relações entre esfera pública e privadano âmbito da educação. No Manifesto dos Pioneiros, a educação é assi-nalada como “uma função social e eminentemente pública” e como umadas tarefas “de que a família se vem despojando em proveito da socie-dade política”, incorporando-se “definitivamente entre as funções essen-ciais e primordiais do Estado”. Embora acentuasse o papel do Estadoante a família na matéria educacional, o documento não deixava de men-cionar a importância da instituição familiar, vista ainda como o “quadronatural que sustenta socialmente o indivíduo, como o meio moral emque se disciplinam as tendências, onde nascem, começam a desenvol-ver-se e continuam a entreter-se as suas aspirações para o ideal”. Poressa razão, segundo o texto, “o Estado, longe de prescindir da família,deve assentar o trabalho da educação no apoio que ela dá à escola e na

4 Essa caracterização da realidade social, com base num instrumental organicista,pode ser considerada bem típica daquele tempo, em que o discurso científico e, emespecial, o discurso médico, gozavam de um grande prestígio e influenciavam, emgrande medida, as formulações intelectuais.

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colaboração efetiva entre pais e professores, [...] associando e pondo aserviço da obra comum essas duas forças sociais – a família e a escola –que operavam de todo indiferentes, senão em direções diversas e às vezesopostas” (Azevedo, 1958, p. 66).

Ainda que a idéia sugerida no Manifesto seja a de parceria entreescola e família, também enfatizada no contexto das Reformas de Ins-trução Pública5, o que se observa nos discursos e nas ações conduzidaspelos renovadores na direção do espaço privado é uma marca claramen-te normativa. Tratava-se, portanto, de educar a família para que assimi-lasse as novidades trazidas a público pelo movimento escolanovista, demodo a colaborar com essa obra. Com vistas, portanto, a transformar afamília em uma agência civilizadora sintonizada com os desígnios da mo-dernização educacional, procurava-se, por exemplo, através das liçõescotidianamente dirigidas aos alunos nas escolas, adentrar suas casas efamílias, orientando atitudes e modelando comportamentos.

Segundo pensamento amplamente compartilhado pelos educadoresda época, ações educativas dirigidas às famílias eram justificadas combase nas lacunas observadas no funcionamento das mesmas, que davammargem a críticas diversas em relação a múltiplos aspectos, entre osquais situava-se a forma como vinham exercendo seu papel educativo.Era comum que os “especialistas da educação” apontassem a inadequaçãodas atitudes dos pais ante a educação das crianças, já que, segundo suavisão, o cotidiano doméstico estaria permeado por práticas totalmenteafastadas dos paradigmas científicos valorizados então, como os da psi-cologia e da higiene. Por isso, fazia-se necessário ensinar as famílias aeducar, o que foi realizado naquele contexto, por intermédio de váriasfrentes, conduzidas tanto na esfera estatal, por exemplo, pelos Círculosde Pais e Professores das escolas públicas, quanto no âmbito da socie-dade civil, por iniciativas variadas6.

5 No âmbito dessas Reformas, foram encaminhadas políticas no sentido do incenti-vo ao estabelecimento de Círculos de Pais e Professores nas escolas públicas.

6 Sobre as diferentes iniciativas de cunho pedagógico encaminhadas na direção dafamília por intelectuais diversos a partir de instituições e lugares sociais tambémvariados, (ver Magaldi, 2001).

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Cecília Meireles foi, por exemplo, uma educadora que militou emprol da causa educacional por caminhos diversos, entre os quais, sua atua-ção como jornalista. Na coluna que publicava diariamente entre os anosde 1930 e 1933 na “Página de Educação” do Diário de Notícias, envol-veu-se com muita dedicação à tarefa de “educar” seus leitores7, entre osquais haviam pais de família. Esses pais eram ensinados a compreendermelhor as crianças e alertados sobre a nocividade de inúmeras atitudescomuns na criação dos filhos. Eram ainda estimulados a entender e acei-tar as novidades introduzidas no panorama educacional e observáveis pelaação das escolas renovadas, bem como a colaborar com as mudanças emcurso.

Criticando as resistências comumente observadas nas famíliasdiante das inovações pedagógicas, ressaltava o valor dessas últimas:“É um crime trair uma obra assim ...” (Meireles, 7/6/1932). Demons-trava, em outro artigo, a crença na competência dos especialistas namatéria educacional, razão que justificaria a submissão da família aseus desígnios, ao afirmar: “Por muito boa vontade que tenham certospais, não devem acreditar que entendem também de pedagogia, porqueisso geralmente vem prejudicar de maneira grave e irremediável quero trabalho do professor quer a própria situação do aluno” (Meireles,23/1/1931).

Cecília, afinada com seus parceiros no movimento escolanovista,defendia, portanto, a idéia da escola – e tratava-se, no seu caso como noda maior parte de seus companheiros de geração, da escola pública –como a instituição responsável pela organização da sociedade e da pró-pria nação. Em um de seus artigos, deixava claro seu ponto de vista emque, identificando a escola à própria causa educacional, questionava:“Por que abrir mão de uma possibilidade que a torna [a escola] a maiorpotência para o progresso humano? Por que recusar-se a ser o que podeser na responsabilidade da civilização?” (Meireles, 6/11/1931).

7 Cecília, em vários de seus artigos publicados na “Página de Educação”, afirmava suacrença na função educativa da imprensa. Ver, por exemplo, Meireles, 20/3/1932.

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Do lar como escola de civilização

Se a preeminência da escola e do Estado diante da família aparececomo um dos eixos norteadores do pensamento renovador, esse posicio-namento não foi o único observado no quadro dos debates educacionaisdos anos de 1920-1930. Na reflexão sobre as relações entre Estado, es-cola e família, entre esfera pública e esfera privada, torna-se importantefazer referência ao pensamento dos intelectuais católicos, cuja projeçãono cenário educacional da época foi extremamente significativa.

Cabe destacar que, ao nos utilizarmos do termo “educadores católi-cos”, estamos considerando não a fé religiosa – de natureza individual –do intelectual em questão, mas sua adesão a um projeto de educaçãoinserido no movimento mais amplo de renovação católica que teveexpressão na sociedade brasileira a partir da década de 1910. Nascido docombate ao clima laicista proveniente do rompimento dos laços entreIgreja e Estado, ocorrido por ocasião da instauração do regime republica-no no país, esse movimento foi conduzido por estratégias e instânciasvariadas.

Partilhando das preocupações de outros segmentos da intelectua-lidade brasileira de seu tempo sobre o tema da identidade nacional, ogrupo em questão – constituído por clérigos e leigos – distinguia-se porter como núcleo comum de seu discurso a defesa da religião católica comoreferencial básico para a construção da nação. Jackson Figueiredo, um deseus principais líderes, lançando mão de referências históricas, expres-sava as posições do movimento ante a questão: “A verdade religiosa é aalma mesma da Pátria, a base espiritual da nacionalidade, a única forçaque, desde os nossos primórdios, fez a coesão, a unidade entre os elemen-tos mais díspares” (apud Pécaut, 1990, p. 28).

Na defesa de uma “nação católica”, a educação foi um campo de atua-ção extremamente valorizado pelos intelectuais do grupo. No entanto,como vimos, não o foi apenas por esses, mas também por vários outrossetores da intelectualidade brasileira daquele tempo. Constituiu-se, porisso, em um campo permeado por fortes disputas, por embates que opu-seram partidários de concepções diferenciadas de educação e de socieda-de, como foi o caso, por exemplo, dos educadores católicos, de um lado,

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e daqueles identificados ao “escolanovismo” e ao ensino laico, de outro8.No caso do projeto educacional dos católicos, pode-se afirmar que pos-suía como núcleo a temática da orientação religiosa, considerando-a emclara articulação com a visão do papel essencial da família na formaçãodo indivíduo e de seu lugar inviolável na definição do modelo a ser segui-do na educação dos filhos, aspectos, por sua vez, articulados com umoutro ponto muito enfatizado nas formulações do grupo e que diz respei-to às competências dos diferentes agentes educativos.

Leonel Franca, sacerdote jesuíta que representou uma das mais im-portantes lideranças do movimento católico, envolvido de modo espe-cial nos debates relativos à família a partir de fins dos anos de 1920 e aolongo dos anos 1930-1940, assinalava: “na sociedade doméstica transmi-te-se e educa-se a vida; o lar é a primeira escola do dever e do sacrifícioonde se enrijam os organismos, se formam as vontades e se temperamos caracteres” (Franca, 1954c, vol. 1, p. 420). Sublinhando repetidamenteem seus textos e conferências o lugar primordial da família como insti-tuição educativa, seu discurso, afinado com as posições da hierarquiaromana, apoiava-se na (Sobre a educação oristã da juventude) encíclicaDivini Illius Magistri de Pio XI, que compreendia a missão dessa insti-tuição como de ordem natural, constituída por Deus. Nesse texto papal,são assinaladas as duas outras sociedades a que a educação do homemestaria afeita: a Igreja e o Estado, devendo as três se manterem “unidasharmonicamente por Deus” (Pio XI, 1962, pp. 6 e 13). Se o destaqueconferido à Igreja é também evidente no texto, a primazia da famíliadiante das outras instituições aparece como tônica nos discursos de pa-dre Franca, bem como de outros intelectuais católicos.

8 Entendo importante mencionar que, embora os escolanovistas em sua tendênciamajoritária defendessem a educação laica, ela não deve ser considerada a únicaface do movimento renovador. Nos identificamos, nesse ponto, com trabalhos re-centes que vêm assinalando o equívoco de se definir o embate entre educadorescatólicos e escolanovistas em termos de polaridades estanques, já que se oposiçõessão observadas entre os integrantes dos grupos, interfaces também se mostrampresentes. Considero interessante a tendência interpretativa que, sinalizando paraessas interfaces, tem trabalhado com o conceito de “escolanovismo católico”. Ver aesse respeito Carvalho (1994) e Sgarbi (1997).

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Embora consideremos importante relativizar a postura interpretativaque estabelece um corte radical entre as posições dos escolanovistas eas dos educadores católicos nos debates educacionais, devemos assina-lar que no aspecto mencionado, da visão sobre as competências relacio-nadas ao ato de educar, pode ser observado um forte contraste entreambos os lados, como fica claro nas reflexões de padre Franca. Refle-tindo sobre o movimento da Escola Nova, o educador católico criticava“uma das tendências bem acentuadas de certa fração da pedagogia mo-derna” que “é diminuir na função educadora a missão da família embenefício do Estado” (Franca, 1954a, p. 272).

Ainda que insistisse na defesa da instituição familiar como a maisimportante mandatária da “missão” de educar, padre Franca sublinhavaque ela não estaria sendo cumprida a contento, no que se aproximava deoutros contemporâneos seus, dentre os quais os próprios “escolano-vistas”. Dava, desse modo, seu parecer: “São relativamente poucos oslares que realizam o ideal da família de todo suficiente a levar a termo aformação completa dos filhos” (Franca, 1954a, p. 273).

Segundo ele, esse despreparo das famílias, passível de conduzir a“uma impossibilidade real de dar educação pessoal aos filhos”, somen-te poderia ser compreendido quando associado à falta de condiçõesmateriais dos pais. O mesmo educador considerava como um malinjustificável a tendência no sentido da transformação “em regra geral euso comum o hábito de afastar a criança das influências domésticas”.Denunciava, dessa maneira, “as mães, ao menos certas mães, que – egoís-mo em algumas, despreocupação em outras, influências da modernidadeem quase todas – vão consentindo sem protestos nesta abdicação pro-gressiva de seus direitos mais sagrados” (Franca, 1954a, p. 273).

Se, de acordo com o que aparece no Manifesto, a tendência no sen-tido de o poder público assumir um papel mais significativo na educa-ção das crianças era vista como fruto de um processo evolutivo “natural”e até mesmo desejável, porque associado à própria complexificação doato de educar – cada vez mais embasado em “saberes competentes”detidos por “especialistas” –, para os católicos esse era um processo quedeveria ser interrompido a todo custo. A incompetência das famílias eem especial das mães – vistas como as educadoras da família por exce-

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lência –, no exercício de sua tarefa educativa precípua, independente domotivo, deveria necessariamente ser sanada, justificando, assim, a açãoeducativa da Igreja católica a ser conduzida por meio de várias estratégias.Além das iniciativas conduzidas pelos sacerdotes no âmbito das comu-nidades paroquiais, cabe ainda destacar aquelas promovidas por grupose associações ligadas ao Movimento de Ação Católica, entre outras. Tam-bém através de textos e conferências – muitas delas dedicadas especifica-mente às mulheres – procurava-se fazer com que as mensagens educativascatólicas chegassem até as famílias, de modo a prepará-las para sua fun-ção primordial.

Um outro caminho voltado para o mesmo objetivo era ainda valoriza-do. Segundo as palavras de padre Franca, era fundamental o recurso ao

educador especializado que venha prestar aos pais o auxílio de sua colabora-

ção, em ambiente adaptado particularmente a este fim: a escola. O seu traba-

lho virá acrescentar-se ao da família e completá-lo mesmo com inegáveis

vantagens. [...] Destarte a escola, que não substitui nem pode substituir a

família, é o seu prolongamento natural [Franca, 1954a, p. 278].

Se a ação da escola na direção da família era então ressaltada, o senti-do de complementaridade em relação à ação dos pais de que a mesmadeveria se revestir remetia à compreensão, sempre enfatizada pelos católi-cos, da autoridade familiar como soberana. Segundo a visão do jesuíta, aescola, “continuadora da primeira formação, é o complemento do lar; deveprolongar-lhe a obra educadora, não destruí-la ou embaraçá-la”. E “o pro-fessor, público ou particular, é, por função, um delegado e representanteda autoridade paterna”, não lhe assistindo “direitos contra os direitos dasfamílias” (Franca, 1953, p. 45). Nesse mesmo sentido, situa-se a fala deAlceu Amoroso Lima, um dos principais líderes leigos do grupo católico:

[...] é necessário que a educação longe de ser uma substituição da Família

pelo Estado ou pela Escola, seja uma exaltação da Família em seus direitos,

tanto no âmbito da vida privada, como ainda até certo ponto no da vida públi-

ca. E muito particularmente, no da vida pedagógica que é, de certo modo,

uma transição da vida particular para a vida pública [Lima, 1944, pp. 36-37].

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Acentuando a importância da garantia dos direitos dos pais perantea escola, Alceu Amoroso Lima orientava a reflexão de seu leitor paraum outro ponto da maior importância presente nas formulações do gru-po católico, que dizia respeito à defesa da orientação religiosa no ensi-no ministrado nas escolas públicas. Em resposta à tendência de laici-zação da educação que vinha se expressando em nossa sociedade desdea adoção do regime republicano, adquirindo um maior fôlego com omovimento escolanovista, os católicos assumiam uma posição clarasobre o sentido de que deveria se revestir o ato de educar, tal como se podedepreender das palavras de padre Leonel Franca: “Se a educação nãopode deixar de ser essencialmente religiosa, a escola leiga, que, por prin-cípio, ignora a religião, é essencialmente incapaz de educar” (Franca,1953, p. 28).

Em muitos de seus textos, o mesmo educador questionava a justifi-cativa comumente utilizada para a defesa do ensino laico, que era a derespeito à liberdade individual9. Partindo da crítica à visão dos escola-novistas em sua tendência majoritária e pondo em destaque a necessida-de de o Estado respeitar a orientação religiosa das famílias de um paísde maioria católica, o sacerdote comentava:

O princípio é que ao Estado se impõe o dever de não violentar a consciência

dos cidadãos. Tratando-se de crianças confiadas às suas escolas, incumbe-

lhe a mais estreita obrigação de respeitar as convicções religiosas da família

desde que não se achem em oposição com as exigências da moralidade pú-

blica, expressas no Código Penal. A criança não pertence ao Estado; aos pais,

incumbe o dever e assiste o direito de lhe ministrar a educação física, intelec-

tual, moral e religiosa a que tem direito inviolável [Franca, 1953, p. 45].

9 Cecília Meireles foi, no movimento escolanovista, uma das principais opositorasdo ensino religioso no currículo das escolas públicas. Em um dos artigos em quedefendia a educação laica, explicava: “É justamente em atenção aos sentimentosde fraternidade universal que a escola moderna deve ser laica. Laica não quer dizercontrária a nenhuma religião; significa, somente: neutra, isenta de preocupaçõesdessa natureza” (Meireles, 2/5/1931).

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Segundo a visão do grupo católico, sendo os pais aqueles que inves-tiriam na escola de autoridade para educar, seriam também eles que de-veriam ter sua crença religiosa respeitada na educação dos filhos a serdada na escola. Percebe-se, entretanto, que as famílias que deveriaminfluir nas escolas públicas – pensadas como escolas de orientação cató-lica, ainda que em tese se acentuasse a possibilidade de atenção àmultiplicidade de credos – seriam aquelas já catolicizadas, isto é, edu-cadas anteriormente pela Igreja católica em outras instâncias.

Assim, embora no discurso dos católicos houvesse menção freqüenteà autoridade e ao poder de escolha em relação à educação dos filhos,que deveriam se situar na esfera privada e sagrada do lar, deve-se aten-tar para as importantes limitações observadas em relação à autonomiadas famílias, já que elas, tratando-se de famílias católicas, estariam en-volvidas em uma teia institucional poderosa, cuja dinâmica pressupu-nha graus de constrangimento. Sendo a Igreja católica uma instituiçãoda qual a hierarquia é um elemento constitutivo fundamental e que, nolimite, tem o seu discurso autorizado por uma instância divina, deve-seconsiderar o peso representado pelas orientações provenientes de esfe-ras superiores10.

Se, de acordo com as palavras de Pio XI, a Igreja deveria ser vista em“seu ofício de mestra e educadora”, posta “à disposição das famílias”(1962), pode-se concluir que caberia às suas instâncias competentes,capitaneadas pela cúpula eclesiástica, orientar as famílias na direçãoconsiderada apropriada pela instituição. Tratava-se, portanto, de estabele-cer um princípio comum, uma diretriz única no seio da “nação católica”,de modo que aqueles que a compusessem interferissem na esfera públi-ca e privada da sociedade, com vistas a fazer da “verdade católica” a baseda própria nação brasileira. O que estava então sendo mobilizado pelomovimento católico era um projeto de organização da sociedade brasilei-ra, compreendido em sintonia com as preocupações daquele tempo, comoas de “construção da nação”. E, nesse projeto, cabe lembrar que a defe-

10 Sobre a questão da margem de decisão dos indivíduos e de sua variabilidade emsituações históricas diferenciadas (cf. Elias, 1994a, pp. 159-160).

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sa do núcleo familiar, identificado como “viveiro da Pátria” (Franca,1955, p. 30) ocupava um lugar central.

Era fundamental, portanto, na visão dos católicos, garantir a “esta-bilidade das famílias”. Com essa preocupação é que seus líderes, entreos quais padre Franca de forma destacada, envolveram-se em debates eações voltadas para o combate ao que era percebido como as “síndromesque minam a vitalidade do mundo contemporâneo”, expressadas, porexemplo, pela adesão das populações à “restrição artificial da natalida-de” (Franca, 1941, pp. 10 e 11) e, em especial, pelas ameaças representa-das pelo divórcio, cuja adoção estava em pauta, por ocasião da discussõessobre a modificação do Código Civil nos anos 1930.

Através da estabilidade da vida familiar, obtida, segundo a concep-ção do grupo, pela garantia do casamento indissolúvel e pela obediênciadas famílias aos preceitos católicos, seria possível atingir a “estabilida-de da nação”. Essa idéia pode ser percebida através das palavras, emtom de alerta, de padre Leonel Franca:

Desmantelai agora os lares estáveis; com eles tereis destruídos os baluartes

que defendem e os veículos que transmitem o precioso tesouro das tradições

nacionais. A continuidade das famílias permanentes é o penhor da unidade,

da coesão, da vitalidade dos povos livres [1955, p. 32].

Se nesse trecho são ressaltados alguns valores a preservar na esferasocial, é sugerido também que haveria uma ameaça rondando a socieda-de. Esta pode ser compreendida no quadro de uma grave crise social emoral que, segundo a visão dos católicos, se manifestaria na sociedadebrasileira como parte de uma crise generalizada da própria sociedadeocidental e de cuja superação dependeria a conformação da ordem so-cial desejada.

A crise em questão, na visão do autor – apoiada nas formulações dasencíclicas papais –, estaria associada aos malefícios produzidos peloliberalismo. Se a ordem liberal era denunciada como indesejável, porimplicar na desumanização do trabalho e no comprometimento dos pró-prios valores humanos, também o era o regime constituído em oposiçãoao primeiro: o regime comunista. Tanto no capitalismo – fosse ele emba-sado no liberalismo, ou ainda no positivismo, também fortemente criti-

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cado –, quanto no comunismo se expressaria uma grave crise de valo-res, que se constituiria no núcleo de todos os demais problemas. Segun-do as palavras do autor:

A crise social que na sua amplitude domina e absorve as nossas preocupa-

ções prende as suas raízes numa inversão de valores. A nossa civilização

sofre de uma visão da vida, pervertida e falseada. Cumpre reedificar o mun-

do dos valores e reordená-los em harmonia com uma concepção integral e

coerente da existência humana [Franca, 1941, p. 246].

Toda essa inversão estaria assentada em uma profunda ausência dereferências espirituais em que progressivamente o homem ocidental vi-ria mergulhando11. O materialismo, visto como uma questão de fundoem ambos os regimes, era então diagnosticado como um dos mais im-portantes “males da modernidade”. Cabe destacar que, de formacontrastante em relação a outras vertentes intelectuais da época, forte-mente comprometidas com projetos de constituição de uma “ordemmoderna” no país – projetos esses pautados, por sua vez, em referenciaiscientíficos, de base racional –, os católicos embasavam sua concepçãode sociedade na noção de tradição, ainda que a compatibilizassem coma bandeira da renovação12, apoiada, no entanto, em bases espirituais.

Ainda na visão de padre Leonel Franca, os efeitos da crise dirigiam-se a um destinatário preferencial e claramente identificável: “[...] a famíliaé o alvo predileto a que miram os importadores de exotismos e construi-dores improvisados do futuro” (Franca, 1933). Assumindo, nesse tre-cho, uma posição francamente contraposta às tendências renovadoraspartidárias do laicismo na educação e na cultura – entre as quais, situavacom destaque a escolanovista –, o educador católico criticava o descom-promisso delas com as nossas “tradições nacionais”, compreendidascomo católicas.

11 A respeito da compreensão de padre Franca sobre as origens e o desenrolar da criseda civilização moderna, ver Franca, 1941, pp. 58, 74, 111 e 147.

12 Sobre a idéia de renovação presente no discurso dos católicos ver os trabalhos jácitados e apoiados no conceito de “escolanovismo católico” e ainda Magaldi, 2001,cap. 3.

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Se a família seria, na visão do grupo, a principal atingida por umprocesso de secularização da cultura que se expressaria então, identifi-cado como “sintoma de dissolução e prenúncio de morte” (Franca, 1941,p. 288), a mesma instituição também representaria, por outro lado, aprópria chave para a superação da crise social. Considerada a celula-mater da sociedade, a família precisaria, portanto, restabelecer seu pa-pel modelador pela adoção de uma dinâmica regida pelo signo daharmonia. Esta, segundo o pensamento católico, teria como eixo casa-mentos indissolúveis unindo “bons maridos e bons pais”, dotados de“força e dignidade”, a suas “esposas e boas mães”, cujas almas seriam“tesouros de bondade e abnegação”, ambos dedicados à “formação dosjovens” apoiada no catolicismo (Franca, 1954, p. 264). Ainda de acordocom os educadores católicos, tal cenário familiar exerceria, na direçãoda sociedade, uma admirável força irradiadora, podendo contribuir paraa conformação de uma ordem social estável, assentada nos princípiosda hierarquia, autoridade e colaboração entre as classes e sintonizadacom as posições defendidas pela Igreja desde suas instâncias superiores.

Por considerar o fortalecimento da instituição familiar como estra-tégico para a vitória da Igreja nos embates então observados entre pro-jetos de organização da sociedade brasileira, é que o movimento católicoprocurou, a partir de 1930, influir no Estado varguista, de maneira aobter a implementação de políticas públicas destinadas à garantia daliberdade das famílias – como vimos, no caso da defesa do ensino reli-gioso nas escolas públicas –, bem como de sua proteção social13. Sobrea tarefa imposta aos católicos, assim comentava padre Franca: “E nadefesa da família, hoje na estacada, se acha, quase só, num esplêndidoisolamento, a Igreja Católica. [...] Esta luta impõe-nos a nós católicosum dever indeclinável [...]” (Franca, 1954a, p. 283).

Se, como afirma padre Franca, a Igreja se considerava isolada na ta-refa que via como um “magnífico combate [...] que à nossa geração impõea Providência” e que adquiria uma relevância tão indiscutível, fazia-se

13 Sobre as ações do movimento católico com vistas a interferir, em nome da doutrinasocial da Igreja, no governo Vargas e ainda sobre a política social do Estado Novodestinada à família (ver Vilhena, 1988).

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então necessário envolver o Estado nessa missão. De forma especial,porque o grupo católico, em consonância com as posições observadasmajoritariamente no panorama intelectual de seu tempo, enxergava o Es-tado como condutor por excelência do processo de organização da socie-dade e de construção da nação.

É nesse quadro que se pode entender, portanto, a atuação tão vigorosado grupo católico nos debates educacionais dos anos de 1920-1930, emprol da família e de sua função educativa. Se, de acordo com as palavrasde Alceu Amoroso Lima, “a educação de um homem” era vista como a“obra de arte mais difícil, mais complexa e mais sublime” que qualqueroutra, os católicos acreditavam na família como “a oficina em que setrabalham essas obras primas” (1944, p. 38). Ainda segundo esse grupo,a função modeladora a ser exercida por essa “oficina” não seria absolu-tamente restrita, já que se estenderia, em seu entender, desde o espaçoprivado, do interior das casas, até o espaço público, compreendido, nes-se caso, para além até mesmo das fronteiras nacionais, o que se explica-ria pelo caráter universal do projeto da Igreja. Por isso, segundo os cató-licos, sua missão relativa à família assumiria tamanha magnitude; porque,segundo pensavam, a Igreja – e de modo particularmente eficiente como apoio do Estado – “salvando a família, terá salvado a nossa civiliza-ção” (Franca, 1954a, p. 283).

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Oscilações do público e do privadona história da educação brasileira

Libânia Nacif Xavier*

O artigo apresenta uma interpretação acerca dos limites, da interação e dos conflitos estabe-lecidos entre o público e o privado ao longo do processo de institucionalização da educa-ção no Brasil.HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA; EDUCAÇÃO PÚBLICA; POLÍTICAEDUCACIONAL.

The is article presents an interpretation of the limits, the integration and the conflicts esta-blished between public and private sectors along the history of institutionaliazed educationin Brazil.HISTORY OF BRAZILIAN EDUCATION; PUBLIC EDUCATION; EDUCATIONALPOLICY.

* Libânia Nacif Xavier é doutora em educação brasileira (PUC-Rio). Vinculação insti-tucional: Faculdade de Educação; Programa de Estudos Educação e Sociedade –PROEDES/UFRJ. E-mail: [email protected], [email protected].

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Em grande parte dos estudos que abordam a relação entre o públicoe o privado na educação brasileira destacam-se as questões pertinentes àconstrução da nacionalidade e sua articulação com a organização de sis-temas formais de ensino no Brasil, particularmente no âmbito da açãoestatal (Buffa, 1979; Cury, 1988 e 1992; Vieira, 1998; Pinheiro, 1996;Cunha, 1985). Nesses estudos, a identificação dos conceitos de públicoe de privado remete-se, via de regra, aos processos de construção e/oureestruturação do Estado Nacional, centrando foco na operação de nor-matização legal da educação, com destaque para a análise dos debatesque acompanharam a elaboração da legislação específica para a educa-ção, incluindo-se a observação da mobilização social a elas relacionadase, também, a análise dos próprios documentos legais como as constitui-ções e as chamadas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

O ensaio que ora apresentamos adota a mesma perspectiva de análi-se, ou seja, parte do princípio de que a construção do público na educa-ção brasileira encontra-se relacionada à organização do Estado e, parti-cularmente, às formas de intervenção estatal no processo de estruturaçãoe generalização das instituições destinadas a promover a educação dopovo. Acreditamos que a observação de alguns aspectos da vida social edo debate intelectual, ao lado dos estudo das orientações políticas ado-tadas no âmbito da educação, nos permitirá perceber em que medida asoscilações entre o público e o privado atuaram como elementos defini-dores das diferentes configurações que o campo educacional foi assu-mindo ao longo da história1.

Centrando foco no processo de institucionalização da educação emnosso país2, podemos perceber que as fronteiras entre o público e o pri-

1 Empregamos a noção de campo educacional como um sistema de linhas de forçasno qual os agentes que nele transitam se opõem e se agregam, mobilizando ações erealizações específicas, de acordo com suas concepções e interesses, conferindo-lhe uma estrutura própria. Quando a movimentação dos agentes e grupos em lutaoutorga a uma das partes o exercício da hegemonia, pode ocorrer um rearranjo narede de relações já estabelecidas no interior do campo, redefinindo-se posiçõesadquiridas em lutas anteriores, o que provocará alterações na própria configura-ção do campo educacional. Ver a respeito: Bourdieu (1969).

2 Entendemos por institucionalização o processo por meio do qual se formampadrões estáveis de interação e organização social baseados em comporta-

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vado nem sempre exibiram a nitidez que hoje apresentam. Nesse as-pecto, uma abordagem de longo prazo pode propiciar uma visão geral arespeito das inflexões ocorridas no próprio processo de constituição dasnoções de público e privado no âmbito da educação. É nesse ponto quereside o objetivo central do presente trabalho, apresentar uma interpre-tação, ainda que provisória, acerca da relação público-privado na edu-cação brasileira em contextos históricos diferenciados.

Pretendemos traçar um quadro panorâmico que – destacando as re-lações entre Estado, educação e sociedade – nos permita perceber ainteração de indivíduos e grupos mobilizados em torno de interessespolíticos, sociais e econômicos em nome dos quais foram formuladasestratégias de potencialização dos benefícios advindos da universa-lização da educação escolar, seja no que tange à consolidação do poderdo Estado, seja na busca por ascensão na hierarquia social ou, ainda, noembate político que permeou as disputas entre diferentes propostas deorganização do ensino no país. Por fim, registramos a tendência àretração das funções sociais do Estado, sugerindo alguns possíveis des-dobramentos dessa tendência no âmbito da educação e da vida socialnos dias atuais.

Educação doméstica e aulas públicas: uma tênuefronteira

Como sabemos, a formação da sociedade brasileira sofreu forte in-fluência do Estado português e da Igreja católica. Enquanto o primeiroatuou fundamentalmente no sentido de organizar a economia e a adminis-tração, preocupado que estava em impulsionar atividades que garantissema exploração das terras do Novo Mundo, a Igreja, por meio da Companhiade Jesus, desempenhou o papel de agente educacional e cultural da colo-nização. Fernando de Azevedo (1942) destacou o papel civilizador dosjesuítas, responsáveis pela unificação lingüística, religiosa e cultural na

mentos, normas e valores formalizados e legitimados. Ver a respeito: Weber(1996).

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América Portuguesa, fatores decisivos, segundo o autor, para a constru-ção da identidade nacional brasileira nos séculos XIX e XX.

Em Sobrados e mocambos, Gilberto Freyre (1977, p. 76), destacou aação integradora que os jesuítas exerceram na sociedade brasileira, parti-cularmente no século XVIII, um período marcado pela “tendência paraexcessos, rebeldias e desmandos e para a preponderância dos interesses defamília sobre os gerais”. De acordo com Freyre, apenas a autoridade reli-giosa – legitimada pela ação cultural desempenhada pelos jesuítas – foracapaz de fazer sombra ao exercício do poder pessoal dos grandes senho-res. Atuando na formação das elites coloniais, os seminários e colégiosjesuíticos foram, na visão do autor, um elemento sobre o qual desenvol-veu-se, em meio aos alunos, um certo gosto de disciplina, de ordem e deuniversalidade. Nessa linha, a ação pedagógica exercida pelos jesuítasassocia-se ao mundo urbano, em oposição ao mundo rural e patriarcal,estando ligada a valores universais, no sentido da cultura clássica européiae ao gosto da ordem e da disciplina, contidas na doutrina católica.

Após a expulsão da Ordem dos Jesuítas da Colônia, na segunda me-tade do século XVIII, o Estado Português assumiu a responsabilidadesobre a instrução escolar no Brasil, cobrando um imposto, o subsídio lite-rário, e introduzindo as Aulas Régias ou Aulas Públicas3. No século XIX,a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro impulsionou odesenvolvimento de pesquisas científicas e a abertura de instituições deensino. A decisão do Estado metropolitano em promover na colônia oensino das primeiras letras foi efetivada por meio de aulas avulsas, em umprocesso pedagógico marcado pela fragmentação. Diversos estudos(Villalta, 1997; Faria Filho, 2000; Gomes, 2002) destacam a insuficiênciados recursos orçamentários destinados a custear a educação pública, ha-vendo atrasos no pagamento dos mestres. Em determinadas ocasiões, aCoroa chegou mesmo a delegar aos pais a responsabilidade pelo paga-mento dos mestres, o que mostra como a educação, tornada pública pelalei, esteve, em grande parte, circunscrita ao âmbito da vida familiar.

3 Sobre o assunto, ver o artigo de Cardoso, “A construção da escola pública no Riode Janeiro imperial”, publicado neste dossiê.

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Mesmo após a Independência, a situação educacional não se modi-ficaria em essência. Certamente, no projeto político das elites imperiais,o espaço para a organização de um sistema público de ensino encontra-va-se limitado em virtude da própria organização social vigente, marcadapela superposição de uma reduzida elite proprietária de terras, a quemestava reservado o direito à instrução, e uma massa de escravos, homenslivres pobres, mestiços e pequenos comerciantes e prestadores de servi-ços, desprovidos do estatuto de cidadania. Configurava-se um país decaráter agrário, onde as elites ministravam o ensino privado, considera-do desnecessário para a (e pela) população pobre.

As cartas escritas por uma jovem professora alemã que veio trabalharno Brasil, nos anos finais do Império (Binzer, 1982), revelam que aindano final do século XIX, apesar da existência de algumas escolas públi-cas nos principais centros urbanos do país, a educação dos filhos das fa-mílias patriarcais era feita no interior das casas-grandes, com a orientaçãode professoras, geralmente estrangeiras (preferencialmente francesas oualemãs) contratadas e sustentadas pelas próprias famílias. Percebe-se, as-sim, que a educação doméstica no Brasil Imperial era privilégio das eli-tes econômicas e tinha como função primordial garantir a seus filhos aaquisição de uma cultura ornamental, permeada por símbolos de distin-ção do status social de seus usuários, expressos na busca de apreensãode habilidades e conhecimentos típicos de certos hábitos das elites euro-péias, como, por exemplo, o aprendizado da música (em particular dopiano) e das línguas estrangeiras (em especial a francesa) em um ritmode horários rigorosos que a professora alemã descreveu como um afã deengolir a cultura (européia) às colheradas (ver Carmen & Xavier, 2000).

Angela Castro Gomes (2002) nos lembra que a forte presença dos pre-ceptores, na virada do século XIX para o XX, encontra-se ligada à exis-tência de uma extensa rede de escolarização doméstica que chegou aultrapassar a rede de escolas públicas, fossem elas imperiais ou republi-canas. Essa rede doméstica podia incluir professores pagos por um chefede família ou por um grupo de pais, ou ainda o professor podia ser pagopelo Estado mas permanecer trabalhando em locais improvisados, comoa casa de uma das famílias contratantes ou a casa do próprio professor.Observa-se que mesmo a educação ministrada pelo Estado apresenta um

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caráter restrito, seja por permanecer limitada a um grupo privilegiado, sejapor não contar, ainda, com um espaço próprio para seu funcionamento,efetivando-se no âmbito doméstico. Nessa época, os colégios confessio-nais, masculinos e femininos, constituíam as maiores exceções no que dizrespeito à existência de um local específico para a educação. A autoraregistra, ainda, a existência de escolas criadas em colônias estrangeiras,localizadas no sul do país, onde o ensino se fazia na língua do grupo ét-nico, que podia mandar vir um professor de seu país de origem, buscan-do conservar e transmitir seus costumes e valores.

No que tange à compreensão da ação estatal sobre a educação brasi-leira no período imperial, Luciano Mendes de Faria Filho (2000) assi-nala a importância de se relativizar o papel e o lugar ocupado peloEstado, assim como a própria legitimidade social da escola, naquelecontexto. A despeito da pulverização das ações do Estado, associada àinsuficiência de investimentos na educação e à carência de professores,manuais e livros sugeridos pelos novos métodos que circulavam nospaíses europeus, a discussão em torno das formas mais adequadas delevar a instrução às camadas inferiores da sociedade se fez presente nointenso debate parlamentar que marcou o período. Como demonstrou oautor, ao lado da normatização legal, que foi o ponto forte da ação esta-tal no âmbito da educação, as discussões propriamente pedagógicaspromoveram, paulatinamente, a definição de espaços específicos, equi-pados com materiais adequados à educação de um grupo mais amplo dealunos. Isso vai exigir uma organização particular do espaço físico, dedistribuição do grupo de alunos nesse espaço e do tempo destinado àsatividades de ensino, sem falar na definição dos conteúdos que deve-riam figurar no currículo e na escolha dos métodos pedagógicos consi-derados como os mais adequados.

O processo de especialização da atividade educativa, assim como aconfiguração física do espaço da escola pública, tornou-se visível comas primeiras construções públicas destinadas à educação primária: oschamados grupos escolares. Com eles, reafirmaram-se os contornos doefetivo controle do Estado sobre a educação do povo, demarcando-se ovalor social da educação escolar e o sentido mais aproximado do que seentende, hoje, como educação pública-estatal.

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Educação pública-estatal e ensino privado particular:os termos da oposição

A generalização dos grupos escolares pelo território nacional forne-ceu as bases materiais e simbólicas do projeto republicano de moderni-zação do país pela educação do povo. Nesse projeto, destacaram-se oseducadores conhecidos como os Pioneiros da Educação Nova4. Eles fo-ram responsáveis por um conjunto de formulações, críticas e propostasde organização relativas ao ensino público brasileiro que constituemum ponto de partida crucial para se entender a relação entre educação,Estado e sociedade no Brasil republicano.

Contra as correntes nacionalistas favoráveis a uma maior soma depoderes à União, os Pioneiros defenderam a organização de um sistemanacional de ensino, unificado, porém, pautado na descentralização ad-ministrativa. Isso porque, ao mesmo tempo em que confiavam na açãoagregadora de um Estado que deveria definir-se como encarnação dointeresse público, eles não deixavam de considerar as possibilidadescriadoras resultantes da articulação entre a escola e as realidades locaise regionais. Dessa forma, reafirmavam os ideais republicanos, federa-listas e democráticos contra os quais opunha-se o poder das oligarquiasagrárias, os interesses universais da Igreja católica e os anseios dos na-cionalistas conservadores.

No Manifesto de 1932, eles apresentaram ao povo e ao governo, oseu projeto pedagógico. Nesse documento, eles criticam a subordinaçãoda educação brasileira a interesses político-partidários, bem como con-denam a interferência da Igreja católica nas questões ligadas ao ensino.Apresentando soluções ao que criticavam, os pioneiros conclamam oEstado a viabilizar, por meio da ação de grupos de comprovada compe-tência técnica, a transformação da educação em uma função social epública. Dessa forma, eles pretendiam inaugurar um processo de espe-

4 Estamos nos referindo ao grupo de intelectuais que assinaram o Manifesto dosPioneiros da Educação Nova, em 1932, por meio do qual apresentaram ao povo eao governo as bases para a organização do ensino público, universal, leigo e gratui-to. Ver a respeito: Xavier (2002).

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cialização e autonomização do campo educacional, com base na con-vicção de que a secularização da cultura associada à busca da autono-mia do sujeito privado suplantariam o enfraquecimento do papel socialda família, promovendo uma ruptura entre poder político e religião, con-tribuindo assim para o afrouxamento dos laços de dependência que pren-diam as instituições educacionais às órbitas doméstica e religiosa.

Nessa linha, a educação deixa de ser considerada tarefa primordialda família que, a partir de então, passa a ser vista como coadjuvante datarefa educacional juntamente com a instituição escolar e o Estado. Des-crevendo as instituições e os grupos sociais da Primeira República como“elementos desarticulados, isolados do meio social, confinados a seto-res isolados”, o Manifesto de 1932 refuta o controle da educação brasilei-ra pela Igreja católica, defendendo a idéia de que, nas sociedades mo-dernas, a educação devia ser entendida como um setor e um serviço denatureza pública e, portanto, precisava ser assumida como tarefa pri-mordial do Estado. Daí a necessidade de articulação da escola com aesfera política (representada pelo Estado) e a demarcação do sentido doque se defendia como educação pública.

A defesa do ensino público, gratuito e laico desencadeou um confli-to inevitável com os intelectuais ligados à Igreja católica. Assim, os pio-neiros foram acusados de comunistas pelos católicos, por defenderem aeducação pública estatal, identificada pelos intelectuais católicos com adefesa do monopólio do Estado sobre a educação. No calor desse emba-te, Alceu Amoroso Lima (1932, p. 319) advertia que a defesa da laicizaçãodo ensino expressava o desprezo pela tradição católica do povo brasileiro,o que lhe permitia tachar os Pioneiros de “desnacionalizadores e decris-tianizadores da infância brasileira”5.

Diante da força desses argumentos, os Pioneiros adotariam na Consti-tuinte de 1934 a estratégia de evitar o confronto direto com a Igreja ca-tólica, a fim de garantir avanços em outras áreas relevantes para o proje-to educacional que defendiam. Nesse quadro, o Estado mediaria com os

5 Sobre o debate educacional nos anos de 1920-1930 ver o artigo de Magaldi, “Aquem cabe educar? Notas sobre as relações entre a esfera pública e a privada nosdebates educacionais dos anos de 1920-1930”, publicado neste dossiê.

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dois grupos em contenda, aprovando o ensino religioso nas escolas públi-cas. Diante desse fato, os Pioneiros voltaram-se para a definição das atri-buições do Estado relativas à educação, retomando a defesa da descen-tralização da administração do ensino. Favoráveis à fixação de diretrizesgerais de ensino pela União, além de uma ação supletiva quando neces-sário, os pioneiros também pontuaram a importância de se promover aracionalização do sistema público de ensino, propondo, para isso, a for-mulação de políticas para o setor com base na apreciação de inquéritos,demonstrações e subvenções. De acordo com Rocha (1996, p. 127), aequiparação entre escolas públicas e particulares, pela oficialização eequivalência de ambas, aliada ao rompimento com o exame oficial paraingresso no ensino superior, abolida no texto constitucional, abririamum canal direto de comunicação entre os representantes das escolas par-ticulares e o Estado, acentuando, posteriormente, a disputa entre inte-resses privados e interesses públicos, particularmente no que tange àdefinição dos critérios de distribuição de verbas estatais. Como observouo autor, nesse caso, a dimensão pública ficou restrita, no ensino secundá-rio, às funções de regulamentação e fiscalização, contrariamente à von-tade dos pioneiros que a queriam mais fundamentalmente financeira etécnica.

Equilíbrio aparente, embate e parceria: publicistas,privatistas e o terceiro setor

Durante o Estado Novo, a longa gestão do ministro Gustavo Capa-nema (1937-1945) foi responsável pela organização do MEC segundo ummodelo altamente centralizador. Como demonstrou Schwartzman (1985),o apoio que ele deu a grupos de intelectuais, especialmente arquitetos eartistas plásticos, de orientação moderna cercou sua administração deuma imagem de modernização da esfera educacional, ao mesmo tempoem que atrelava certas decisões da alçada do Ministério da Educação aossetores mais tradicionais da Igreja católica. A acomodação entre Igreja eEstado fez com que perdesse muito de sua nitidez o confronto entre os de-fensores do ensino privado e confessional e os defensores do ensino pú-

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blico, universal, leigo e gratuito, produzindo-se um aparente equilíbrioentre os dois grupos. No período, a presença do Estado na educação efeti-vou-se por meio da extrema centralização administrativa e decisória epelo cerceamento a qualquer tipo de inovação ou manifestação de plura-lismo, incluindo-se o esforço de nacionalização da educação com o fecha-mento das escolas de colônias imigrantes no sul do país.

O fim do regime ditatorial, em 1945, reverteu a situação anteriormen-te descrita, recolocando na cena política a disputa entre os representan-tes dos interesses da Igreja católica, apoiado pelo já constituído grupo dosempresários de escolas particulares e os intelectuais empenhados nauniversalização da educação pública. O retorno da vida democráticaevidenciou a necessidade de redefinição da legislação educacional.

O debate em torno da redação e aprovação da Lei de Diretrizes eBases da Educação Nacional (LDBEN), iniciado em 1948, priorizou asquestões relativas ao papel da União e dos estados na condução da polí-tica de ensino, colocando em lados opostos os adeptos da centralizaçãorígida, do ponto de vista normativo e fiscal, e os autonomistas, que re-clamavam ampla liberdade de iniciativas para os poderes locais. Para osúltimos, a União deveria apenas traçar diretrizes gerais, deixando paraos estados a liberdade (ou responsabilidade) de adequar o ensino às pe-culiaridades locais mediante legislação supletiva complementar.

No centro da disputa estava a organização do ensino secundário eprofissional, para o qual os Pioneiros propunham a escola comum, nosmoldes da escola “compreensiva” americana, defendida por AnísioTeixeira. Esse modelo de escola pautava-se na integração entre o interessecultural e o interesse prático, constituindo, na visão de seus defensores,em uma escola adequada à sociedade democrática e às característicaspróprias do estilo de vida urbano e industrial. Nesse modelo, a descen-tralização administrativa e a autonomia financeira e técnico-pedagógicaeram elementos essenciais.

Contra essa concepção, colocavam-se os adeptos da separação entreas preocupações culturais e aquelas de cunho profissional, preservando-se no ensino secundário o seu caráter intelectual e humanístico, própriopara a formação das elites dirigentes. A polêmica em torno da inclusão ounão do ensino do latim como disciplina obrigatória no currículo das es-

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colas secundárias é uma demonstração da forma pela qual se deu a dis-puta entre visões opostas. Na verdade, a polêmica girava em torno docaráter que se queria dar ao ensino de nível médio: se democrático ouelitista, se aberto ao público sem restrições ou se restrito a um grupo pri-vilegiado.

Na disputa em torno do controle sobre a organização do ensino,outra questão importante era: que grupo social ou instituição detém auto-ridade e legitimidade para interferir na educação das crianças? Em finsda década de 1950, a definição das funções da família, da Igreja e doEstado na esfera educacional constitui um dos eixos em torno do qual oconflito entre público e privado se desenvolveu.

A apresentação do substitutivo Lacerda, em fins de 1958, foi ummarco no processo de reformulação da legislação educacional. De acor-do com Villalobos (1969), a partir da apresentação do substitutivo Lacer-da, os problemas técnico-pedagógicos passariam para o segundo planoe as pressões dos interesses da iniciativa privada começariam a dar si-nais de avanços, desencadeando várias manifestações em prol da edu-cação pública, como a Campanha em Defesa da Escola Pública e oManifesto Mais Uma Vez Convocados (1959).

Avaliando a organização do sistema público de ensino, o Manifestode 1959 condena a ineficiência dos gestores de políticas públicas ematender às demandas em relação ao ensino com base em critérios técni-cos e apoiados no planejamento racional, deixando que ainda permane-cessem imperando os critérios de natureza política eleitoral. O objetivodo Manifesto era preservar a escola pública, definida como um dos maispoderosos fatores de assimilação e de desenvolvimento das instituiçõesdemocráticas.

O debate educacional predominante no período ressaltou a situaçãode crise da educação pública que, somada à expectativa de ascensão so-cial, alimentou as constantes manifestações sociais em prol de melhoriasno ensino e de ampliação das oportunidades escolares, particularmentedo ensino médio e superior. Como observou Florestan Fernandes (1978,p. 42), a competição pelas oportunidades educacionais associava-se à pre-servação de status e logo, à abertura ou continuidade da participação dasclasses médias nas estruturas de poder. De fato, as camadas médias urba-

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nas passaram a buscar o alcance de graus escolares cada vez mais eleva-dos a fim de ingressarem nas organizações burocráticas e progredirem emsuas ocupações, galgando níveis mais altos de remuneração, de prestígioe de poder.

Durante a segunda metade da década de 1940 e ao longo de toda adécada de 1950, o governo federal promoveu a incorporação de estabe-lecimentos privados de ensino superior, logrando ampliar o número devagas em universidades criadas por meio do processo de federalização.De acordo com Cunha (1983, p. 37), tal processo interessava aos seto-res médios nas categorias de professores, que se tornavam funcionáriospúblicos, e de estudantes, que passavam a receber ensino gratuito, o quejustificou as greves ocorridas no início dos anos 1960, promovidas porestudantes de universidades e escolas isoladas.

Se as décadas de 1950 e 1960 assistiram à crescente manifestaçãodos interesses privados no âmbito legislativo, não se pode negar que operíodo também foi marcado pela exaltação da dimensão pública daeducação. A educação passa a ser requerida como direito cívico, comomeio de ascensão social e, ainda, como instrumento indispensável aodesenvolvimento econômico e, portanto, como requisito para o progressodo país.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei n. 4.024) – san-cionada pelo presidente João Goulart, em 20 de dezembro de 1961 –garantiu maior autonomia na medida em que permitiu a descentralizaçãoadministrativa e didático-pedagógica das partes formadoras do sistemanacional de ensino. No entanto, no que tange à distribuição de recursos,a LDB contemplou os interesses privados em detrimento dos interessespúblicos pois, ao mesmo tempo em que definia que os recursos públicosseriam aplicados preferencialmente na manutenção e desenvolvimentodo sistema público de ensino, a lei também previa a concessão de recur-sos aos estabelecimentos privados na forma de bolsas de estudos, bemcomo a cooperação financeira da União com estados, municípios e ainiciativa particular na forma de subvenção e/ou assistência técnica efinanceira (Ver Saviani, 1998, p. 20).

O reconhecimento da educação pública como direito de todos justi-ficou as possibilidades abertas pela concessão de bolsas de estudo me-

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diante restituição regulamentada por lei, permitindo ao setor privado apossibilidade de expandir os negócios com o ensino, justificado peloentendimento de que esse setor estaria arcando com uma responsabili-dade que cabia ao setor público.

Como demonstrou Cunha (1980), a política educacional pós-1964 ca-racterizou-se por ações voltadas para a contenção das demandas de aces-so ao ensino superior. Nesse sentido, a Reforma Universitária de 1968procurou dar às universidades (as públicas especialmente) uma organiza-ção docente-administrativa que permitisse o aumento das matrículas acustos médios menos que proporcionais às matrículas adicionais. Mas,para que a expansão das matrículas no ensino superior não fosse muitogrande, de modo a resultar em possível desemprego de pessoal altamen-te escolarizado, nem pressionasse demais os orçamentos governamentais,determinou-se a profissionalização compulsória de todo o ensino médio.Com isso, imaginava-se poder deslocar para o mercado de trabalho, su-postamente carente, uma parte crescente da demanda de candidatos aoensino superior. Por meio desse mecanismo, diferenciou-se o tipo deensino destinado aos alunos das escolas públicas do ensino ministrado nasescolas privadas. Nestas escolas, onde estudavam os alunos oriundos dascamadas de mais alta renda, o ensino tendeu a ser profissional apenas naaparência, voltando-se, de fato, para a preparação para os exames vesti-bulares.

O processo de Abertura Democrática iniciado pelo presidente ErnestoGeisel (1974-1979) e continuado pelo sucessor João Batista Figueiredo(1979-1985), diante da pressão dos movimentos sociais, resultou na pau-latina restauração dos direitos democráticos. Esse processo se estendeuaté março de 1985, quando teve início a Nova República e determinou-se a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. Durante oprocesso constituinte ficaram bastante caracterizadas as posições dosdiversos partidos em relação à questão educacional. Pode-se agrupar,de um lado, os que defendiam a manutenção de dispositivos que visa-vam o fortalecimento da escola pública e, de outro, aqueles que se colo-cavam contra a ingerência do Estado nos estabelecimentos particulares.

No que tange às emendas populares encaminhadas à Subcomissãode Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados, destaca-

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ram-se as propostas do Fórum Nacional de Educação na Constituinteem Defesa do Ensino Público e Gratuito (Fórum)6. Entendendo a edu-cação pública como área prioritária da ação do Estado e, portanto umaatribuição do poder público, o Fórum defendeu os seguintes princípiosgerais: ensino público, laico e gratuito em todos os níveis, sem discrimi-nação econômica, política ou religiosa; democratização do acesso, per-manência e gestão da educação; qualidade do ensino; e pluralismo deescolas públicas e particulares. Quanto à distribuição de recursos, a pro-posta do Fórum foi de extinção de isenção fiscal para as escolas particu-lares, deixando-as sujeitas às obrigações tributárias pertinentes às em-presas privadas em geral. Contrariamente, a Federação Nacional dos Es-tabelecimentos de Ensino (FENEM) defendeu a concessão de bolsas deestudos pelas escolas particulares como forma de atender às demandasde empresas beneficiadas com o salário-educação e, também, a imuni-dade tributária e fiscal. O argumento utilizado era de que as escolas par-ticulares, de maneira geral, prestavam um serviço que demarcava o ca-ráter público de sua função. A FENEM defendeu, ainda, o ensino religiosocomo disciplina integrante do currículo das escolas oficiais. Visando di-ferenciar-se das demais escolas privadas, a Associação de EducaçãoCatólica do Brasil (AEC) conceituou três tipos de escolas: a pública es-tatal, a particular (que visa o lucro) e a comunitária, que por não visar olucro, identificava-se por sua função pública e por ser definida como“escola do povo”. Percebe-se o desdobramento do conceito de públicoem significados diversos, de acordo as estratégias mobilizadas pelosgrupos em disputa. Assim, três concepções de público foram mobiliza-das no processo constituinte da década de 1980: o público mantido pelo

6 O Fórum reuniu, numa proposta única, reivindicações das seguintes organizações:Associação Nacional de Educação (ANDE), Associação Nacional de Docentes doEnsino Superior (ANDES), Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa emEducação (ANPED), Associação Nacional de Profissionais de Administração daEducação (ANPAE), Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES), Central Ge-ral dos Trabalhadores (CGT), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Ordem dosAdvogados do Brasil (OAB), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência(SBPC), União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e União Nacionaldos Estudantes (UNE), entre outras.

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Estado, o público não estatal e o público como serviço público (Pinhei-ro, 1996).

A apresentação de novo projeto da LDB pelo senador Darcy Ribei-ro, do Partido Democrático Trabalhista (PDT/RJ), e sua rápida aprovaçãopela Comissão de Educação do Senado Federal, em fevereiro de 1993,dividiu os partidos e entidades que inicialmente aglutinaram-se em tor-no do projeto da Câmara e determinou o afastamento do PDT da mesa denegociações. O projeto de Darcy Ribeiro estabelecia um novo eixoorientador, diferente do projeto gestado na Câmara, pois, apesar de reco-nhecer como dever do Estado a garantia de gratuidade da educação básicae da educação de nível médio, a lei n. 9.394/96 considerou como obriga-tório e gratuito apenas o ensino fundamental. Ainda, a ação de DarcyRibeiro foi duramente criticada pelas entidades envolvidas na reformu-lação da legislação educacional, em razão de ele ter intercalado no proces-so decisório sua proposta oriunda do Senado, desconsiderando a partici-pação desempenhada pelo Fórum na formulação das diretrizes da políticaeducacional7.

O texto da LDB – que ficou conhecido como Lei Darci Ribeiro – foiaprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Fernando Henri-que Cardoso, em 20 de dezembro de 1996. A justificativa do governofoi que a LDB deveria ser uma lei do possível, que pudesse ser cumpri-da com base nos recursos financeiros disponíveis nos esquemas orça-mentários convencionais. Além disso, deveria ter flexibilidade suficientepara se adequar às diferentes situações da educação nacional. (Jornaldo Brasil, 9/1/1997).

7 Observando-se o processo de tramitação da lei n. 9.394 (1996), sobressaem os esfor-ços sistemáticos do Fórum na defesa da escola pública de qualidade juntamente comparlamentares progressistas e em oposição aos grupos representados por parlamen-tares afinados a interesses privatistas. Em meio a uma situação de impasse, DarcyRibeiro apresentaria uma “terceira via” para solução do problema, intercalando –ante o avanço dos setores descompromissados com a universalização da educaçãopública brasileira – um projeto que, se não tinha a abrangência do projeto do Fórum,incorporava alguns dispositivos democratizantes, apesar não se enquadrar, nem delonge, na expressão conciliação aberta cunhada por Florestan Fernandes para des-crever a transparência que permeou a fase inicial de negociação entre os grupos quedisputavam a aprovação de seus projetos de LDBEN na Câmara.

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No âmbito das diretrizes políticas gerais que orientaram a ação doEstado a partir dos anos 19808, verifica-se a proposição de um conjuntode reformas que incluiu a descentralização administrativa e o estabele-cimento de novas formas de parceria entre os diferentes níveis de gover-no (União, estados e municípios) e, sobretudo, com entidades dasociedade civil organizada. Nessa última modalidade de parceria, asOrganizações Não-Governamentais (ONGs) vêm preenchendo os va-zios deixados pela atuação estatal em áreas de políticas sociais e deserviços públicos em geral. Transferindo recursos públicos para as ONGs,o governo também transfere para elas a responsabilidade de suprir asdeficiências do Estado em áreas como habitação, saúde, educação, sa-neamento, infra-estrutura e alimentação.

Tal deslocamento tem alimentado o temor de que a transferência deresponsabilidades antes assumidas como dever do Estado estimule acorrida por financiamentos e recursos federais e internacionais, refor-çando-se a tendência à privatização dos serviços públicos. Porém, aspossibilidades abertas pela política de parcerias também podem ser en-caradas como potencial estímulo à ampliação da participação de diver-sos setores sociais no processo de construção da democracia e da justiçasocial com sentido universal.

A observação de algumas ações realizadas no âmbito da sociedadecivil sinalizam a emergência de diferentes redes de solidariedade9. Entreelas, as Organizações Não-Governamentais e outras formas associativasque buscam promover a escolarização fundamental e garantir o acesso aoensino superior a grupos sociais marginalizados dos direitos básicos decidadania constituem exemplos positivos das novas tendências presen-

8 Sobre as diretrizes gerais da política educacional a partir dos anos 1980 ver o textode Bonamino, “O público e o privado na educação brasileira a partir dos anos1980”, publicado neste dossiê.

9 No Rio de Janeiro, há várias ONGs que visam proporcionar aos jovens o reforçoem todas as disciplinas que são exigidas no exame para ingresso nas universidades,com vistas a democratizar o acesso ao ensino superior. Dentre estas, destacam-se oPré-vestibular para Negros e Carentes e o Centro de Estudos e Ações Solidárias daMaré. Para maiores detalhes sobre o assunto, ver: Jaílson Silva, Porque uns e nãooutros?, Tese (doutorado) – PUC-Rio, 1999.

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tes na relação entre Estado, educação e sociedade e das novas formas dearticulação entre o público e o privado na educação e na sociedade bra-sileira.

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O artigo aborda o tema da relação público e privado na política contemporânea de educa-ção básica. Toma como referência a reforma do Estado brasileiro e procura caracterizá-lacomo transição de uma forma de regulação burocrática e fortemente centralizada parauma forma de regulação híbrida que conjuga o controle pelo Estado com estratégias dedescentralização, autonomia e auto-regulação das instâncias educacionais e das instituiçõesescolares. Com base nesse cenário, o texto identifica o modo como se redesenham osnovos espaços do público e do privado na educação básica brasileira e os analisa emarticulação com os processos de descentralização e centralização (administrativa, finan-ceira e pedagógica) que caracterizam a política educacional dos anos 1990.EDUCAÇÃO BÁSICA; POLÍTICA EDUCACIONAL; EDUCAÇÃO BRASILEIRA.

This paper approaches the relation between public and private in contemporany policy ofbasic education. It takes as reference the reform of the brazilian State and seek caracterizeit as a transicion from one form of burocratic regulation, stronlgy centralized to a hibridform of regulation that congregate state control with discentalized strategies, autonomyand self-regulation of education stages and of the school institucions. Given this scenariothe text identify the way how new public and private spaces are reshaped in the basicbrazilian education. And analisys follows in time with centralization and discentralizationprocess (administrative, fanancing and pedagogical) that characterize the educational policyof the 90’s.BASIC EDUCATION; EDUCATIONAL POLICY; BRAZILIAN EDUCATION.

* Alicia Maria Catalano de Bonamino é doutora em educação e professora do Departa-mento de Educação da PUC-Rio. E-mail: [email protected]

O público e o privado naeducação brasileira

inovações e tendências a partir dos anos de 1980

Alicia Maria Catalano de Bonamino*

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O debate sobre o papel do Estado e do setor privado na educaçãobrasileira está presente ao longo da história republicana, incidindo deforma privilegiada sobre os aspectos financeiros e doutrinários do ensi-no (Buffa, 1979; Cunha, 1981; Cury, 1985; Horta 1989).

Mais contemporaneamente, especificamente ao longo das três últi-mas décadas, o sistema educacional e o cenário sociopolítico e econômicodo Brasil sofreram mudanças que recolocaram a relação público-priva-do na agenda do debate educacional.

Por um lado, estão as mudanças introduzidas nas estratégias demodernização do capitalismo brasileiro. Orientadas para um modelo dedesenvolvimento aberto ao mercado internacional, essas mudanças man-tiveram, em geral, amplos segmentos da população excluídos dos benefí-cios do desenvolvimento e levaram ao aumento da concentração de rendae riqueza. Além disso, a crise mais recente do Estado produziu restriçõesnos orçamentos públicos, afetando a destinação de verbas para a educação(Velloso, 1992).

Por outro lado, está o processo de redemocratização da sociedade bra-sileira, marco da elaboração da nova Constituição e da nova Lei de Dire-trizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que propiciaram a retomadados debates em torno da liberdade de ensino e de sua laicidade, e sobreo financiamento e o papel do Estado na educação (Cury, 1992; Cunha,1995; Gadotti, 1990; Pinheiro, 1991).

A partir dos anos de 1980, a relação entre o público e o privado noque tange à educação foi alterada, no quadro mais geral da reforma doEstado e da restruturação das políticas sociais.

Antes de abordar as inovações e os mecanismos responsáveis poressas mudanças, registro uma breve discussão sobre duas formas dife-renciadas de entendimento do espaço do privado, de modo a estabelecero ponto de vista que norteará o desenvolvimento deste trabalho.

Em uma dessas formas, a mais corrente, o setor privado assume osignificado bastante restrito de mercado. Mais especificamente, essa for-ma de entendimento do privado focaliza as firmas e empresas que operamno mercado com objetivos lucrativos. Nessa perspectiva, são considera-das privatizantes apenas as políticas educacionais que envolvem o finan-ciamento público de consumo de serviços privados, por meio de contra-

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tação, reembolso ou indenização dos consumidores, da adoção de ticketsou vales como pagamento direto dos provedores privados, a transferênciada propriedade pública de estabelecimentos educacionais ou de infra-estrutura para a propriedade privada (Draibe, 1989).

Todavia, a complexidade e a multiplicidade de novos arranjos paraa oferta de bens e serviços têm levado os estudiosos das políticas sociaisa considerar o setor privado e os movimentos de privatização de um pontode vista mais amplo. Trata-se de uma perspectiva que considera os dife-rentes mecanismos que levam ao encolhimento da presença do Estado eque incluem movimentos de diminuição do investimento e gasto estatal,de eliminação do papel produtivo e distributivo do Estado, ou mesmo querestringem as atividades estatais reguladoras e de gestão.

Essa perspectiva ampla também concebe o setor privado num sentidomuito mais geral do que como sinônimo de setor privado lucrativo. Enten-dido como não-estado, o setor privado passa a incluir atividades informais,associações voluntárias, corporações privadas não-lucrativas e organiza-ções não-governamentais, que, em conjunto, formam o chamado setor pri-vado não-mercantil, não-lucrativo ou terceiro setor (Draibe, 1989).

Em lugar de tratar detalhadamente das relações entre o público e o pri-vado na educação brasileira, o presente estudo se propõe a levantar pro-blemas e a identificar pontos-chave no redesenho dessas relações, recor-rendo a exemplos selecionados entre as iniciativas educacionais recentes.Busca, assim, apresentar uma visão mais geral dos mecanismos responsá-veis pela restruturação das relações público-privado na educação e, por-tanto, pela definição de um novo padrão de política educacional diferentedaquele que se consolidou entre os anos de 1930 e 1970.

Inovações e tendências: o público e o privado naeducação brasileira a partir dos anos de 1980

A década de 1980 foi tempo de democratização da educação, nocontexto de (re)construção da democracia no Brasil. Embora lento, oretorno à democracia política levantou expectativas de desenvolvimen-to de processos correlatos no conjunto das instituições da sociedade.

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Essas expectativas eram levantadas sobre um pano de fundo de in-tensa mobilização da sociedade civil, de revitalização dos partidos polí-ticos e de ocupação da periferia do Estado por novas forças progressistas.Em conjunto, essas forças levaram estados e municípios à implantaçãode programas sociais que se caracterizavam por exigir poucos recursos,por dirigir-se às populações mais desfavorecidas e por estimular a parti-cipação popular.

Em contrapartida, no nível federal, o advento da Nova República, em-bora tenha reforçado as demandas que reivindicavam uma ampliação naprodução de bens e serviços pelo Estado, representou uma experiênciabastante tímida e hesitante no campo das políticas sociais. Em concreto,essa experiência se pautou pelo incremento de programas emergenciaise assistencialistas, implementados com fins eleitoreiros e clientelistas peloGoverno Sarney.

Por sua vez, o mandato de Fernando Collor de Mello, cancelado rapi-damente pelo impeachement em 1992, representou uma tentativa desa-jeitada de implementação de uma a agenda de corte neoliberal, pautadanas privatizações, na desregulamentação estatal e na abertura do merca-do brasileiro ao capital econômico internacional.

Seguiu-se ao Governo Collor a breve gestão de Itamar Franco, cujofoco esteve basicamente concentrado na implementação do Plano Realcomo estratégia de controle inflacionário.

No plano educacional, as políticas adotadas nesse contexto começa-ram a movimentar-se na periferia do Estado, em municípios e estadosque passaram a ser governados por setores de oposição ao governo mi-litar e que procuravam impelir modificações de envergadura no sistemaeducativo, com base em reformas estruturais que tinham como foco aampliação e melhoria da escola pública.

Apesar dos limites impostos ao retorno à institucionalidade demo-crática e da persistência do autoritarismo, a política educacional impul-sionada pelas forças de oposição aglutinou, em torno da ênfase no ensi-no público de boa qualidade e da descentralização e democratização daeducação, propostas partidárias, experiências político-administrativasmunicipais e estaduais e movimentos sociais, sindicais e acadêmicos(Cunha, 1995).

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Já em nível nacional, as demandas da sociedade acabaram sendoacolhidas pela nova Constituição Federal de 1988, que ampliou consi-deravelmente os direitos sociais e os estendeu a categorias não contem-pladas anteriormente, num movimento que levou a um maior compro-metimento do Estado no financiamento dos gastos sociais.

A Constituição Federal de 1988

Promulgada em outubro de 1988, a Constituição Federal se refere àeducação como direito de todos e dever do Estado e da família, que deveser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade (art. 205).Complementarmente, diz que o ensino deve ser ministrado com base noprincípio de “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas”, na “co-existência de instituições públicas e privadas” (art. 206, parágrafo 3o).

Em continuidade com Constituições anteriores, o “direito de todos edever do Estado” continua dever da “família”, o ensino é livre à inicia-tiva privada (art. 209), desde que atenda a determinadas condições, e osrecursos públicos podem ser destinados às modalidades não-lucrativasda iniciativa privada em educação.

Nesses enunciados, observa Cunha (1995, p. 445), atenua-se o pa-pel do Estado na educação: família e sociedade aparecem no lugar doEstado ou junto dele, como eufemismos que ocultam o nome das socieda-des comerciais e religiosas que, de fato, interessam ao privatismo educa-cional.

No texto constitucional, há também outras evidências de favoreci-mento das instituições educacionais privadas. O art. 208, por exemplo,abre possibilidades para que o Estado garanta a gratuidade do ensino bá-sico nas escolas privadas, ao dispor que o dever do Estado com a educa-ção se efetivará mediante garantia de ensino fundamental gratuito, agorasem que se “prescreva” uma faixa etária específica, incluindo, no incisoIII, a progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensinomédio. As escolas privadas também conseguiram ficar à margem de cer-tos avanços constitucionais que foram reconhecidos apenas para o ensinopúblico, como a valorização do magistério em termos trabalhistas e agestão democrática da escola (Cunha, 1995, pp. 447-448).

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No entanto, a nova Constituição adota uma concepção ampla desetor privado. Como observa Cury (1992), no art. 213, que trata da trans-ferência de recursos e da liberdade de ensino, há uma inovação constitu-cional. Pela primeira vez, um texto legal faz distinção clara entre o públicoe o privado e entre diferentes modalidades de escola privada, com im-plicações diretas para as diferentes maneiras de qualificar os possíveisbeneficiários dos recursos públicos.

Dentro do setor privado de ensino, o art. 209 se refere às escolas volta-das para o lucro numa economia de mercado e o art. 213 diferencia as es-colas não-lucrativas – comunitárias, filantrópicas e confessionais.

No primeiro caso, as escolas privadas com fins lucrativos são regu-ladas por acordos entre as partes baseados no sistema contratual de mer-cado, desde que respeitadas as normas gerais da educação nacional e nacondição de funcionar com autorização e avaliação de qualidade pelo Po-der Público.

No caso das escolas comunitárias, sua postulação aos recursos públi-cos deriva da abertura da Constituição de 1988 para o conceito de públi-co não-estatal. Embora as escolas comunitárias não sejam estatais porquenão fazem parte do aparelho do Estado, o ensino que oferecem se destinaà compensação de necessidades não atendidas na implementação da edu-cação escolar como “dever do Estado e direito do cidadão”. Nessa pers-pectiva, não somente se fazem beneficiárias da doação de recursospúblicos como são consideradas “públicas”, em função de sua aberturaao controle público do recurso oficial repassado e da abstenção do lucro.

A nova Constituição também alterou as relações federativas do país,por meio de uma significativa transferência de funções, decisões e re-cursos do plano federal para os estados e municípios, que, na educação,foi consagrada pelo art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Tran-sitórias (ACDT).

Por meio da Constituição Federal de 1988, foi então desenhado umnovo quadro de responsabilidades educacionais, que alterou tanto o ar-ranjo federativo do país quanto as relações entre o Estado, o setor priva-do lucrativo e não-lucrativo na oferta e distribuição de educação escolar.

É preciso, no entanto, registrar que as prescrições constitucionaispara a educação foram objeto de emendas, de detalhamento da legisla-

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ção complementar e de inovações da política educacional, que levaram àintrodução de inovações e à definição de novas tendências na oferta deeducação escolar nos níveis: a) político-intintucional ou estatal, b) dasrelações entre o Estado e a sociedade civil organizada e c) das relaçõesentre o Estado e o setor privado lucrativo.

A seguir, o texto trata das tendências que se desenham em cada umdesses níveis, explicitando sua lógica intrínseca e recorrendo a algumasinovações educacionais que permitem evidenciá-la.

a) Nível político-institucional: a descentralização marcao sentido das transformações do Estado na educação

No nível político-institucional, entre as inovações introduzidas nadécada de 1990, destaca-se a adoção de medidas que visavam consoli-dar a tendência à descentralização administrativa, financeira e pedagó-gica que vinha se desenhando desde a década de 1980.

Pode-se ter uma idéia do alcance dessa tendência, levando em contaque durante o regime militar, e até o início da década de 1990, as ativi-dades relativas à gestão das políticas de proteção social eram centraliza-das no governo federal (Arretche, 1999, p. 111).

No contexto dos governos militares, houve um forte processo de cen-tralização da política educacional no governo federal. Os programas damerenda escolar e de material escolar, por exemplo, eram, no pós-1964,geridos centralmente pelas agências governamentais que se encarrega-vam da compra dos itens próprios a cada programa e de sua distribuiçãopor todo o país.

Esse quadro foi alterado com a retomada da democracia nos anos de1980, quando a descentralização fiscal permitiu a governadores e prefei-tos eleitos pelo voto popular direto expandir sua autoridade sobre os re-cursos fiscais, passando a assumir funções de gestão de políticas públicas.

Foi esse processo de descentralização que levou a merenda escolar aser inteiramente gerida por estados e municípios, embora em outros pla-nos, como no caso da municipalização da oferta de vagas escolares naeducação fundamental, ainda seja variável o grau de descentralização.Para além das diferentes intensidades com que avançam as diferentesdimensões do processo de descentralização, o importante é perceber que

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o padrão centralizado do sistema de proteção social, constituído ao lon-go das décadas de 1960 e 1970, foi dando lugar à redefinição de papéise atribuições dos diversos níveis federativos.

Na educação, a defesa da descentralização teve, nos anos de 1980, umforte viés municipalista. O Brasil conseguia se desatrelar do regime au-toritário e centralizador recentemente e a municipalização da educaçãoera capaz de amalgamar variadas expectativas, desde os argumentosneoliberais em defesa do Estado mínimo1, passando pelos interesses edu-cacionais dos grupos privatistas, até chegar nos argumentos progressis-tas que viam na municipalização uma contribuição à construção do poderlocal ou popular.

O consenso gerado em torno da descentralização das ações gover-namentais se configurou desde os anos de 1980 como uma mudançanecessária à reorganização das bases institucionais de um novo poder.

Por um lado, a descentralização respondia à necessidade do gover-no central de enxugar suas responsabilidades diante do aguçamento dacrise financeira e da ineficiência do Estado brasileiro para responder àspressões da sociedade por bens e serviços de natureza social. Nesse pla-no, descentralizar tinha o significado de transferir responsabilidades ede desafogar a agenda do governo no plano federal.

Por outro lado, atendia a interesses políticos das elites governamen-tais de base local que reivindicavam a ampliação de seus espaços nopoder tolhidos pela centralização. Respondia, assim, à busca de legiti-midade política e de ampliação das bases eleitorais de grupos no poderque estavam, mais do que nunca, dependentes das alianças políticas debase local ou regional.

Por último, para os movimentos sociais e para os partidos políticosde esquerda, descentralizar significava democratizar as ações do gover-no e, principalmente, o estabelecimento de novas relações entre o Esta-do e a sociedade, que poderiam consubstanciar modelos participativos de

1 Para a compreeensão dessa expressão, deve-se ter presente que o neoliberarismoquestiona a organização social e política decorrente do aprofundamento da inter-venção estatal. “ Menos Estado e mais mercado” é a máxima que sintetiza suaspostulações (cf. Azevedo, 1997, p. 11).

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gestão. Nessa variante, descentralizar tinha o sentido de recuperar prer-rogativas ou de dotar os estados e municípios de novos poderes que, dealguma maneira, tinham sido esvaziados em mais de duas décadas deautoritarismo militar.

No entanto, a experiência brasileira também mostrava que nem sem-pre a descentralização da educação podia ser considerada sinônimo dedemocratização. No Brasil, a tendência é que a municipalização do en-sino fundamental se concentre nas regiões mais pobres, justamente naque-las que têm a menor taxa de professores titulados, as que oferecem umensino de pior qualidade e as mais sujeitas ao controle direto das oligar-quias locais (Cunha, 1995, p. 421).

Por isso, mesmo para quem olhava a municipalização pelo ânguloda democratização da educação e da participação popular pareciampreocupantes algumas das teses que acompanhavam a defesa damunicipalização, como as restrições ao papel da União e o esvaziamentodas funções dos estados na política educacional, que poderiam contri-buir para a estagnação ou para a acentuação das desigualdades educacio-nais brasileiras.

Acompanhando as propostas da década de 1980, o novo governo em-possado em 1995 desempenhou um importante papel no processo deconsolidação da descentralização da educação, cujo sentido se eviden-cia em iniciativas governamentais como a Reforma Constitucional intro-duzida pela Emenda Constitucional (EC) n. 14/1996, a criação do Fundode Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valori-zação do Magistério, conhecido como FUNDEF, a elaboração da nova LDBe na adoção de outras medidas periféricas que se colocam na perspectivada autonomia escolar.

Essas medidas legais, que antecedem e sucedem a nova LDB, naforma de projetos de reforma da Constituição, medidas provisórias, pro-jetos de leis e decretos, ilustram o papel ativo que o governo instaladoem 1995 tem desempenhado na reforma da educação2. Principalmente,em tempos de pós-LDB, a atividade reformadora acontece no espírito

2 Registre-se, além das inovações abordadas neste trabalho, por exemplo, as refor-mas introduzidas no campo educacional e nas funções regulatórias do governo

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de flexibilidade consagrado pela nova legislação educacional, que in-troduz possibilidades de atuação mais livre, seja para as instituiçõesescolares, seja para a sociedade civil ou para o próprio MEC, ao mesmotempo em que concretiza, ao lado de outras mudanças introduzidas pelogoverno na estrutura do sistema de proteção social brasileiro (assistên-cia social, saúde, saneamento e habitação popular), a transferência deatribuições de gestão aos níveis estadual e municipal.

A Emenda Constitucional n. 14/1996

A Emenda Constitucional (EC) n. 14, aprovada antes da nova LDB,em 12 setembro de 1996, pode ser considerada a estratégia mais impor-tante acionada pelo novo Governo Federal para garantir a adesão dosgovernos locais à descentralização administrativa e financeira da edu-cação fundamental.

Em matéria educacional, a EC n. 14/1996 atribui à União “funçãoredistributiva e supletiva, de forma a garantir a equalização de oportuni-dades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino medianteassistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aosMunicípios” (art. 211, parágrafo 1º). Por sua vez, através do art. 5º, a ECaltera o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias(ACDT), passando a contribuição dos estados, do Distrito Federal e dosmunicípios de 50% para 60% dos recursos a que se referia o art. 212 daConstituição Federal e reduzindo a contribuição da União de 50% para30%. Estabelece, também, que os 25% de recursos dos estados e muni-cípios a serem aplicados na educação devem passar a ser distribuídos deacordo com o número de alunos atendidos pelas redes estaduais e muni-cipais de ensino.

Desse modo, o governo federal redefine seu papel na educação, atéentão baseado na oferta, financiamento e implementação de parte do

central, por meio da elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o En-sino Fundamental e Médio, da criação de sistemas nacionais de avaliação do ensi-no fundamental e médio (SAEB), do ensino médio (ENEM) e do superior (Provão).

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ensino fundamental. Para desincumbir-se da responsabilidade pela ma-nutenção desse nível escolar, o governo federal acabou por alterar aperspectiva colaborativa e por reduzir sua parcela de contribuição finan-ceira que tinham sido definidas originalmente pela Constituição Fede-ral de 1988.

A nova Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional (LDB)

A atual LDB insere a educação nacional na tensão descentralização-centralização. Sancionada pelo presidente da República em 20 de de-zembro de 1996, a nova LDB teve origem num projeto que se sobrepôsa um outro gestado durante oito anos no âmbito da Câmara dos Deputa-dos. O projeto finalmente aprovado, que incorporou aspectos do projetooriginal da Câmara, foi apresentado por Darcy Ribeiro ao Senado emmarço de 1996, constituindo-se numa versão em co-autoria com o MEC,que se empenhou em sua aprovação.

Expressões como “LDB minimalista”, “negação de um sistema na-cional de educação”, “texto inócuo e genérico”, e outras semelhantes,têm sido empregadas para caracterizar a nova lei de educação (Cunha,1996; Cury, 1998; Saviani, 1997).

As críticas são encetadas mais especificamente à estratégia adotadapor Darcy Ribeiro em conjunto com as autoridades educacionais do novogoverno para ver aprovada a versão do Senado. Cunha (1996, p. 25) con-sidera que essa estratégia permitiu reduzir o alcance do projeto, de modoque abriu caminho para que o MEC formulasse as diretrizes e bases daeducação nacional pela via da legislação setorial e ordinária.

Saviani (1996, p. 20), por sua vez, resgata a versão de LDB da Câma-ra, vencida pelo projeto do Senado, mostrando que a mesma trabalhavacom a idéia de estabelecimento de um sistema nacional de educação quenão foi incorporada no projeto finalmente sancionado, percebendo nessaausência um grande risco de fragmentação e de dispersão dos recursosdestinados à educação e um comprometimento das condições mínimaspara o trabalho docente e para o funcionamento das escolas.

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Um terceiro tipo de crítica acaba por destacar a tensão descentra-lização-centralização que passa a constituir o pano de fundo da políticaeducacional a partir dos anos de 1990. Para Cury (1998, p. 8), a novaLDB não apenas abandona a idéia de um Sistema Nacional de Educa-ção mas, em seu lugar, “cria um real Sistema Nacional de Avaliação tala importância conceitual, estratégica e operacional que a avaliação, sobo controle da União, passa a gozar a partir de agora”.

Segundo Cury (1998, p. 75), eixos claros e coerentes, como a flexi-bilidade e a avaliação, estariam a estruturar, articuladamente, o núcleoduro da nova LDB. Com efeito, dentro do espírito de flexibilidade, a LDBreflete o primeiro pólo da tensão ao estabelecer, nos arts. 9º, 10, 11, 16,17, 18 e 67, as competências e atribuições educacionais das diferentes ins-tâncias federativas numa perspectiva descentralizada. Ao passo que, osegundo pólo da tensão, o da centralização, está contido no eixo da ava-liação educacional e, mais especificamente, no art. 9 que introduz, comoprerrogativa da União, o controle sobre o processo avaliativo do rendi-mento escolar nos três níveis de ensino e o controle da avaliação dasinstituições e cursos de ensino superior, além da incumbência de baixarnormas gerais sobre os cursos de graduação e pós-graduação.

Desse modo, há nesses dispositivos da LDB um claro contraste en-tre a proposta de regulação centralizada e o federalismo cooperativopresente na Constituição de 1988. Ou seja, a LDB, ao mesmo tempo emque alavanca a descentralização das responsabilidades educacionais nonível dos estados e municípios, concorre para o fortalecimento do poderregulatório que o governo federal passou a exercer em todos os níveiseducacionais, pela via da avaliação e das reformas curriculares.

Essa perspectiva é confirmada por Maria Helena Guimarães de Cas-tro (1997, p. 9), presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas(INEP)3, desde fevereiro de 1997, quando afirma que a

3 O INEP é uma autarquia responsável pela realização dos censos escolares, do pro-fessor e do ensino superior, pelo Exame Nacional de Cursos (ENC) e pelo ExameNacional do Ensino Médio (ENEM). O ENC foi criado em 1996 para avaliar oscursos de graduação, com caráter obrigatório para os formandos. O ENEM, por suavez, é um exame de saída, facultativo aos que já concluíram e aos concluintes doensino médio, aplicado pela primeira vez em 1997 (Bonamino, 2001).

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remodelação do papel do Estado, passa por adoção de medidas semelhantes

em todos os países, como a privatização das empresas estatais, a desregula-

mentação da economia tendo por escopo estimular os investimentos priva-

dos, a realização de parcerias com o setor empresarial para ampliação da

oferta de serviços públicos e o fortalecimento do papel regulador do Estado

[Guimarães de Castro, 1997, p. 9].

Nesse enquadramento, avaliação e descentralização passam a serentendidas como parte da atual reforma do Estado, na qual “sai de cenao Estado-executor, assumindo seu lugar o Estado-regulador e o Estado-avaliador” (Guimarães de Castro, 1997, p. 9).

No eixo da descentralização das competências educacionais, o Títu-lo IV: “Da Organização da Educação Nacional” da LDB define a orga-nização do sistema educacional e regulamenta a transferência de atri-buições de gestão aos níveis estadual e municipal de governo. Com anova distribuição descentralizada de competências e responsabilidadesentre as esferas do Estado, à União ficam destinadas funções supletivase redistributivas em matéria financeira, o papel de assessorar tecnica-mente os estados, o Distrito Federal e os municípios, a tarefa de organi-zar o sistema federal de ensino e de financiar as instituições públicasfederais de ensino.

Dessa forma, à destinação descentralizada de recursos financeirosalia-se a distribuição descentralizada de competências: os municípios fi-cam responsáveis, prioritariamente, pelo ensino fundamental e pela edu-cação infantil e os estados devem operacionalizar, principalmente, osensinos fundamental e médio.

Na relação descentralização-centralização que caracteriza a novaLDB, à União fica reservada a prerrogativa de estabelecer o processo eo controle avaliativo do rendimento escolar de todos os níveis e institui-ções de ensino. Na medida em que cabe à União avaliar os resultados deuma política social que, além do ensino federal, não oferece nem adminis-tra, Cury (1998, pp. 7-8) afirma que o governo federal passa a se colocar“quase como um agente externo deste processo”.

Em síntese, pode-se dizer que a LDB acaba por colocar a política edu-cacional ante uma nova forma de gestão estatal, na qual, através da des-

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centralização, se flexibiliza a base da oferta escolar, enquanto a União sereserva o poder de avaliar centralizadamente os resultados educacionais.

Para Cury (1998, p. 8), há nessa relação um processo de redefiniçãodas atribuições e competências na área social e de reordenação no apa-rato político-institucional do Estado que não pode ser ignorado: no pla-no da estrutura organizacional do sistema de educação pública, o governofederal passa de sujeito direto da função e da ação docentes, na perspec-tiva do serviço público, para sujeito indireto, incumbido de funções res-tritas de controle e avaliação.

O FUNDEF

O FUNDEF (lei n. 9.424/1997) representa o marco operacional da des-centralização da educação, constituindo o novo mecanismo de distribui-ção de recursos financeiros baseado no número de alunos efetivamentematriculados nas redes públicas de ensino fundamental. Do ponto devista oficial, a implantação do FUNDEF, a partir de 1º de janeiro de 1998,responde à necessidade de eliminar, no espírito da descentralização e daautonomia escolar, os níveis intermediários da administração educacio-nal. Trata-se de excluir a intermediação dos estados na distribuição dosrecursos, redirecionando-a diretamente para as escolas ou para os muni-cípios.

Para alavancar essa descentralização, o FUNDEF determina que 60%dos recursos recolhidos pelos estados e municípios devem ser destina-dos à manutenção e ao desenvolvimento do ensino fundamental. Essefundo, que redistribui mas não adiciona novos recursos, pretende asse-gurar “um padrão mínimo de oportunidades educacionais”, fixando umvalor mínimo, para 1998, de R$300,00 por aluno/ano.

Complementarmente ao FUNDEF, o governo federal acionou outras es-tratégias destinadas à regulação da educação, em termos de participaçãocomunitária e de indução da autonomia escolar (Souza, 1999, p. 23).

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b) Nível das relações entre o Estado, a educação e asociedade civil: a indução à sociabilidade marca osentido das transformações

O segundo nível de inovações pode ser ilustrado por medidas comoo Programa Dinheiro Direto na Escola, criado oficialmente para “aten-der a política de descentralização dos recursos públicos, para a melhoriada qualidade do ensino fundamental, possibilitando a escola gerenciar averba que é depositada em conta corrente da própria escola”4.

A transferência dos recursos financeiros se destina às escolas públi-cas do ensino fundamental estadual, federal e municipal e para escolasde educação especial, mantidas por organizações não-governamentaissem fins lucrativos.

As escolas que recebem o benefício podem utilizá-lo com autono-mia numa variedade de iniciativas, como a aquisição de material per-manente e de consumo da escola, a manutenção, conservação e pequenosreparos da unidade escolar, a capacitação e aperfeiçoamento de profis-sionais da educação, a avaliação de aprendizagem, a implementação deprojeto pedagógico e o desenvolvimento de atividades educacionais.

Se até 1998, a transferência de recursos dependia de convênios entreo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e os gover-nos estaduais, Distrito Federal, prefeituras municipais e Organizações

4 Segundo informações oficiais, esse Programa foi implantado originariamente em1995 com a denominação de Programa de Manutenção e Desenvolvimento do En-sino Fundamental (PMDE), mas, a partir de 1998, passou a chamar-se ProgramaDinheiro Direto na Escola. Implantado em 1995, o Programa destinou, no período1996-1998, R$845,1 milhões a estabelecimentos públicos e escolas de educaçãoespecial. Foram beneficiadas anualmente, em média, 134,7 mil escolas, sendo 87,7mil nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e 47 mil nas regiões Sudeste e Sul.Em 1999, foram atendidas 42,5 mil escolas nas regiões Sudeste e Sul e 96,4 milnas demais regiões, atendendo cerca de 32 milhões de alunos com o repasse deR$299,1 milhões. Para o quadriênio 2000-2003, será conferida prioridade às re-giões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, onde ocorreu grande expansão do númerode matrículas no ensino fundamental. Prevê-se que, já em 2000, sejam beneficia-das 80% das escolas dessas regiões. Em 1998, 88% das escolas urbanas e 71% dasescolas rurais públicas de ensino fundamental foram atendidas pelo programa.Programa Dinheiro Direto na Escola. Disponível em: <http://www.mec. gov.br>.Acesso em: 1/12/2002.

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Não-Governamentais (ONGs), a partir de 1999, os recursos passaram aser depositados numa conta específica da Associação de Pais e Mestres(APM) ou do Conselho Escolar (CE) que os administra em pareceria coma direção da escola.

Na medida em que a existência de uma APM ou de um CE tornou-secondição para o recebimento direto do dinheiro pela escola, o programanão só elimina a intermediação dos governos estaduais e municipais comotambém envolve a sociedade no seu acompanhamento.

Implementado como mecanismo destinado a atender à política maisampla de descentralização, o Programa de Desenvolvimento do EnsinoFundamental (PMDE) pode ser entendido como parte da transferênciade responsabilidades do nível central para o local, ou seja, como partede um movimento no qual a União não apenas redefine suas funções eas repassa para os estados e os municípios, mas também projeta essadinâmica sobre a unidade escolar e sobre a sociedade, que passam a serenvolvidas na implementação, acompanhamento e fiscalização de polí-ticas educacionais.

Pode se ter uma idéia do efeito desse programa na indução do envol-vimento social, levando em conta que apenas nos primeiros quatro anosde sua implantação, o governo federal repassou mais de R$ 1 bilhão àsescolas e estimulou a formação de quase 50 mil novas Associações de Paise Mestres5.

Nessa perspetiva, o PMDE se insere num conjunto de ações gover-namentais que se situam no nível do que Draibe (1989, p. 35) chama desociabilidade básica das políticas sociais, expressando uma nova facetado processo de descentralização e um novo estágio de envolvimento dasociedade civil com as políticas educacionais.

Apesar da consabida fragilidade das organizações voluntárias noBrasil, a faceta “conselhista” e comunitária desse tipo de ações sociais éressaltada pela literatura especializada como uma possível via de reorga-

5 Pode se ter uma idéia da dimensão dessa questão, acompanhando o crescimentodas associações ligadas à chamada comunidade escolar. Se até 1995, o Brasil pos-suía 11 mil Associações de Pais e Mestres registradas, em 1999 esse número tinhaaumentado para 60 mil unidades executoras, entre Associações de Pais e Mestres,centros de pais e outras entidades ligadas a escolas (Souza, 1999, p. 24).

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nização do tecido social e de redução do grau de passividade com que, emgeral, a população beneficiada recebe as políticas sociais.

c) Nível das relações entre o Estado, o setor privadolucrativo e a educação

O terceiro nível a ser abordado no presente trabalho se refere aoreordenamento das relações entre o Estado e o setor privado lucrativono campo da política educacional.

De um lado, temos uma inovação que vem alterando, embora deforma lenta, o modo como se concretiza a presença do Estado na dispensae operação de determinadas políticas educacionais. Em áreas como a deeducação de jovens e adultos, por exemplo, a predominância dos equi-pamentos coletivos públicos vem sendo abalada pela introdução de ou-tros mecanismos, nos quais embora permaneça a responsabilidade estatal,há diminuição do grau em que o Estado opera as políticas educacionaisdirigidas a esse setor da população, como pode ser ilustrado pelo Pro-grama Alfabetização Solidária.

O Programa Alfabetização Solidária

Esse programa foi criado em 1997 pelo Conselho da ComunidadeSolidária com o objetivo oficial de reduzir o analfabetismo entre jovense adultos, principalmente, na faixa etária dos 12 a 18 anos, por meio deaulas realizadas em módulos com duração de seis meses6.

Todo o trabalho da Alfabetização Solidária é realizado com base emparecerias, mantidas entre o MEC, empresas e instituições, governosestaduais, instituições de ensino superior públicas e privadas e pessoasfísicas. Inicialmente voltadas para os municípios que apresentaram maiornúmero de analfabetos num ranking elaborado pelo IBGE com base no

6 Constata-se que o programa se dirige preferencialmente a uma faixa etária que jádeveria estar sendo contemplada pela universalização da educação básica regularprescrita no art. 208 da Constituição Federal.

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censo de 1991, atualmente essas parcerias vêm expandindo suas ações,fazendo-se presentes em mais de dois mil municípios com altos índicesde analfabetismo e também nos grandes centros urbanos de São Paulo eRio de Janeiro, Distrito Federal, Fortaleza e Goiânia, onde o índice deanalfabetismo não é elevado mais a concentração de pessoas não alfa-betizadas é alta.

O custo mensal de R$34,00 por aluno nos municípios é dividido en-tre as empresas, instituições, organizações e governos estaduais parceirose o MEC. Nos centros urbanos, o mesmo valor é dividido entre o MEC epessoas físicas que participam da campanha Adote um Aluno.

Às instituições de ensino superior parceiras cabe a execução dasatividades de alfabetização desenvolvidas pelo programa, desde a sele-ção e capacitação de alfabetizadores até o acompanhamento e avaliaçãodos cursos.

Organizado em torno de parcerias entre o Estado e o setor privado lu-crativo e não-lucrativo, o Programa Alfabetização Solidária parece evi-denciar um dos sentidos que toma a remodelação do papel do Estado.Com efeito, a realização de parcerias com o setor privado empresarial enão-lucrativo para a alfabetização de jovens e adultos expressa uma ten-são entre a ampliação do espaço privado e a redução da presença doEstado-executor na produção e implementação de um serviço públicoque, por definição constitucional e legal, é dever do Estado.

As organizações sociais e o ensino superior públicofederal

Ainda no plano do reordenamento das relações entre o Estado e osetor privado lucrativo está o projeto das organizações sociais e a pro-posta de autonomia universitária, que constituem iniciativas do gover-no articuladas em torno da estrutura do ensino superior público federal.

Para entender essas iniciativas é necessário lembrar que o projetopiloto de reforma do Estado consistia em transformar fundações e autar-quias integrantes do Estado, entre elas as cinqüenta e duas universida-des federais existentes, em Organizações Sociais.

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Com essa reforma, o governo objetivava diminuir o déficit federalpelo enxugamento da máquina estatal, uma vez que repassaria ao cha-mado terceiro setor órgãos públicos da administração indireta “cujasatividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica e desenvolvi-mento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultu-ra, à saúde...” (Mare, 1997, p. 17).

De acordo com o projeto, as Organizações Sociais são concebidascomo entidades públicas não-estatais, de interesse nacional e de utilida-de pública, sendo por isso isentas de tributação. Essas organizações se-riam geridas por órgão colegiado composto por representantes do poderpúblico e por membros da comunidade e estariam dotadas de completaautonomia financeira e patrimonial. Seus recursos financeiros adviriamdos “contratos de produção e comercialização de bens ou serviços” deconvênios com órgãos governamentais e entidades privadas, de doa-ções, legados e heranças de terceiros e/ou associados, pelo recebimentode royalties e direitos autorais, pela possibilidade de aplicação financei-ra de seus ativos e pelo “contrato de gestão firmado com a União atra-vés do Ministério Competente” (Mare, 1997, p. 17).

Por sua vez, a Proposta de Emenda Constitucional n. 370/1996 (PEC370/1996), conhecida como proposta de autonomia universitária, visagarantir a reestruturação das universidades federais nos moldes das Or-ganizações Sociais. A PEC 370/1996 propõe a extinção da estabilidade,da isonomia salarial e do regime jurídico único para os recursos huma-nos nas universidades, o que significa a definição do regime de trabalhoceletista para as Organizações Sociais. O conceito de autonomia é defi-nido como a liberdade que as universidades disporão para gerir seuspróprios recursos orçamentários sem depender de autorização legislativa.

Trata-se, assim, de duas iniciativas de reforma do ensino superiorsolidárias na tentativa de retirar as universidades federais do aparelhodo Estado. Por um lado, o projeto das Organizações Sociais pode servisto como um mecanismo seletivo de instituições, que visava propiciarsua especialização em áreas de conhecimento e em atividades distintasde ensino ou de pesquisa, na expectativa de atrair um volume maior deinvestimentos financeiros do setor privado lucrativo para as universida-des federais (Rocha Borba, 1998).

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Complementarmente, a autonomia das Organizações Sociais e a li-berdade para subsistir com sua capacidade própria de gerar recursosfinanceiros introduzem a possibilidade de cobrança pelos serviços queoferecem à sociedade.

Essas iniciativas enfrentaram significativas resistências sociais e oprojeto de autonomia financeira e administrativa das universidades fe-derais até hoje continua em debate.

Considerações finais

Com este trabalho, pretendo ter contribuído para esclarecer o senti-do que vem tomando a restruturação das relações entre a educação, oEstado, a sociedade e os setores privados lucrativo e não-lucrativo.

Identifico nessa restruturação, a estabilização da tendência a redese-nhar um novo arranjo federativo, derivado da transferência de funções,decisões e recursos educacionais do plano federal para os estados e muni-cípios.

Considero que essa tendência coloca em pauta, em maior ou menormedida, o problema da eficácia dos mecanismos de descentralização daeducação, em termos de municipalização e de participação social, e apon-to a necessidade de realizar estudos que revelem a capacidade real dosmunicípios para assumir seu novo papel na oferta de educação funda-mental.

Essa necessidade deriva das limitações enfrentadas historicamentepela experiência brasileira de municipalização. De fato, após a promul-gação da Constituição de 1988 foram criados perto de 1.400 municípiosnovos, nem sempre capacitados para lidar com as várias dimensõesimplicadas na descentralização das responsabilidades sociais com a edu-cação. São municípios que nasceram pobres e pequenos, que têm osmaiores indicadores de pobreza e cujo único montante de recursos fi-nanceiros provém da transferência do fundo de participação dos muni-cípios. A realidade é que existem muitos municípios no Brasil – e nãoapenas da região Nordeste – que não contam com nenhum tipo de con-selho da comunidade.

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Por outro lado, este trabalho mostrou que as inovações educacionaisvêm dirigindo a descentralização no sentido de elevar o grau de parti-cipação da sociedade. De fato, no Brasil, o tecido social vem modifican-do-se nas últimas décadas e há estudos que mostram, com base na con-tagem de associações com registro em cartório, que nos anos de 1980 opaís tinha uma das mais altas taxas de associativismo na América Lati-na. Apesar desse crescimento, o Brasil não chega a possuir a tradição deassociação comunitária que pode ser encontrada em outros países lati-no-americanos.

A literatura especializada também mostra que uma das premissas paraque a participação social aconteça é a existência de uma sociedade civilorganizada e de forças políticas diferenciadas que dêem vitalidade à vidapolítica local. O Brasil, entretanto, ainda convive com formas conserva-doras, autoritárias e de submissão ao poder local, pautadas no clientelismoque continua a estabelecer relações políticas de troca com parlamentarese governadores, facilitando-lhes o acesso a recursos públicos para a rea-lização de pequenas obras e para a distribuição de bens, que revertem emapoio político eleitoral.

Por essas razões, apesar do processo de descentralização incluir ini-ciativas de indução da participação comunitária na implementação dedeterminadas políticas educacionais, as associações e conselhos escola-res que devem garantir essa participação geralmente têm seu funciona-mento comprometido pela própria realidade municipal.

Se esse quadro pode estar indicando para o governo que o Brasil pre-cisa que lhe sejam “outorgados” mecanismos facilitadores da participa-ção, também parece mostrar que tais mecanismos precisam ser realmenteapropriados pela população que quer ou está sendo chamada a participar.

Assim, seja por razões teóricas, seja por evidências empíricas, osefeitos da adoção pelo governo central de políticas de indução da partici-pação comunitária pela via da criação de conselhos como mecanismosformais para o recebimento de recursos, precisam ser estudados em pro-fundidade. É necessário pesquisar o funcionamento dessas associa-ções, sua eficácia e as parcelas de poder que de fato detém, o que envolveo estudo das relações dessas associações com o governo federal e comas autoridades locais.

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Este texto também analisou as alterações introduzidas nas relaçõesentre o Estado e o setor privado lucrativo e não-lucrativo. Nesse nível, etipicamente na educação de jovens e adultos, o estudo registrou a existên-cia de novas formas de relação público-privado que tendem a impor res-trições no volume, na capacidade e na qualidade dos serviços educa-cionais publicamente produzidos. São restrições que demarcam umatendência à diminuição do grau em que o Estado se faz presente na dis-pensa e operação de certas políticas educacionais, que corre em paraleloà ampliação do grau de envolvimento do setor privado.

Por último, analisamos os projetos das Organizações Sociais e daAutonomia Universitária, mostrando o comprometimento com a refor-ma do papel do Estado no que tange ao ensino superior público federal,mediante seu repasse para o terceiro setor. Nesse último nível, a análisemostrou que não se tratava de medidas de privatização imediata do en-sino superior, nem de um descompromisso do poder público federalcom relação à manutenção financeira das instituições públicas de ensi-no superior, mas de uma privatização indireta e de longo prazo mediadapela introdução de mecanismos de especialização institucional e de auto-sustentação financeira.

O que, em síntese, este estudo permitiu evidenciar é a vigência detransformações no modo como se concretiza e se faz presente o Estadoe o reordenamento das relações entre o Estado, o setor privado lucrativoe o setor privado não-lucrativo no campo educacional, além de um cresci-mento significativo da descentralização administrativa e financeira dosserviços educativo-escolares.

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A Revista Brasileira de História da Educação publica artigos,resenhas, traduções e notas de leitura inéditos no Brasil, relacionadosà história e à historiografia da educação, de autores brasileiros ouestrangeiros, escritos em português ou espanhol, reservando-se o di-reito de encomendar trabalhos e compor dossiês. Os artigos devemapresentar resultados de trabalhos de investigação e/ou de reflexãoteórico-metodológica. As resenhas devem discorrer sobre o conteúdoda obra e efetuar um estudo crítico, além de poder versar sobre textosrecentes ou já reconhecidos academicamente. As notas de leitura de-vem trazer uma notícia de publicação recente.

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CONTENTS

EDITORIAL 7

ARTICLES

The Educational Field Organization and the Brazilian and Northeastern BrazilEducational-Historical Production 9Marta Maria de Araújo

The Brazilian Education and the periods it can be divided in 43Bruno Bontempi Júnior

The Argentinean Physical Education in the school’s manuals and texts of theprimary level (1880-1930) 69Pablo Scharagrodsky, Laura Manolakis e Rosana Barroso

History of the Written Culture 93Antonio Castillo Gómez

Lourenço Filho and his educational itinerary within intellectual andpolitical networks in the State of São Paulo 125Mirian Jorge Warde

BOOK REVIEWS

Luzes e sombras: a ação da maçonaria brasileira (1870-1910) 169By Fernando Antonio Peres

Coroa de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravosde Demerara em 1823 177By Surya Aaronovich Pombo de Barros

Destino das letras: história, educação e escrita epistolar 183By Eliane Marta Teixeira Lopes

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DOSSIER: THE PUBLIC AND THE PRIVATE IN THEBRAZILIAN EDUCATION 189

Presentation 191Libânia Nacif Xavier

The Construction of the Public School in the Imperial Riode Janeiro 195Tereza Fachada Levy Cardoso

Notes on the connections between the state and the private spheres in the currenteducational debates in the Brazilian society duringthe years 1920-1930 213Ana Maria Bandeira de Mello Magaldi

Oscilations between the public and the private in the History ofBrazilian Education 233Libânia Nacif Xavier

The public and the private in the Brazilian Education: the educationalPolicy of the 90’s 253Alicia Maria Catalano de Bonamino

GUIDES FOR AUTHORS 277