Historia Da Medicina Do Trabalho

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Cincia & Sade ColetivaPrint version ISSN 1413-8123

Cinc. sade coletiva vol.13 no.3 Rio de Janeiro May/June 2008doi: 10.1590/S1413-81232008000300009

ARTIGO ARTICLE

A Associao Brasileira de Medicina do Trabalho: locus do processo de constituio da especialidade medicina do trabalho no Brasil na dcada de 1940*The Brazilian Association of Workers' Medicine: a space for the constitution of occupational health as a medical specialty in Brazil in the 1940sAnna Beatriz de S Almeida Departamento de Pesquisa em Histria das Cincias e da Sade, Fiocruz. Av. Brasil 4036/400, Manguinhos. 21040361 Rio de Janeiro RJ. [email protected] RESUMO O artigo analisa a Associao Brasileira de Medicina do Trabalho (ABMT), criada em fins de 1944 como lcus de consolidao do campo da medicina do trabalho no Brasil. O grupo dos primeiros especialistas no campo da higiene e medicina do trabalho que trabalhavam no Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio (MTIC) foi o responsvel pela fundao da ABMT, nas prprias dependncias do Ministrio. Contando com um ncleo inicial de 35 mdicos e cinco engenheiros, todos oriundos do MTIC, a ABMT destacava como seu objetivo primordial, o estudo, a discusso e a divulgao dos assuntos referentes medicina do trabalho. Entre as principais atividades promovidas pela ABMT, destacavam se as reunies cientficas mensais (palestras de mdicos convidados e de mdicos e engenheiros do prprio MTIC), a organizao de eventos cientficos e a publicao de um peridico especializado. Logo aps a sua criao, j em 1945, a ABMT passou a integrar o Bureau Internacional de Segurana do Trabalho, com sede em Montreal, Canad e o Bureau Internacional do Trabalho, da Organizao Internacional do Trabalho. Em dezembro de 1945, no momento da eleio da nova diretoria, criouse a Revista Mdica do Trabalho, cuja primeira publicao foi em 1946. Palavraschave: Histria dos mdicos do trabalho, Histria da especialidade medicina do trabalho, Histria da sade do trabalho ABSTRACT This article analyzes the Brazilian Association of Workers' Medicine, created in the end of 1944 as a space for consolidating occupational health as a medical specialty in Brazil. The Association was founded by the first group of specialists in the field of occupational hygiene and medicine with seat at the facilities of the proper Ministry of Work, Industry and Commerce, where the founders were working. Counting on an initial core group of 35 physicians and five engineers, all of them coming from the Ministry, the main objective of the Association was to study, discuss and promote the issues related to

workers' medicine. Among the most relevant activities promoted by the Association were the monthly scientific meetings (with lectures held by invited physicians and physicians and engineers of the Ministry itself), the organization of scientific events and the publication of a specialized periodical. In 1945, only one year after its foundation, the Association passed to make part of the International Bureau of Safety at Work, with seat in Montreal, Canada, and the International Bureau of Work of the International Labor Organization. In December 1945, on occasion of the election of the new board of directors, the Association created the Journal of Workers' Medicine, whose first issue was published in 1946. Key words: History of occupational physicians, History of the specialty occupational health, History of health at work

IntroduoTecer a trama que envolve a construo de um campo de saber e de prticas especficas, inserindoo em seus diferentes contextos histricos, o principal objetivo deste artigo. Desenredar as inmeras condies que tornaram possvel que se constitusse a especialidade medicina do trabalho, quais os grupos envolvidos e suas tticas, quais as disputas e projetos em jogo, de que forma tais grupos se inseriam nos contextos sociais, polticos e econmicos da sociedade, que veculos e espaos criaram e utilizaram para tanto, so algumas das questes enfrentadas1. Nesse sentido, analisar a Associao Brasileira de Medicina do Trabalho (ABMT) tornase um caminho para analisar a prpria constituio do campo da medicina do trabalho no Brasil. Ao trabalhar com a consolidao de uma especialidade dentro do campo da medicina a medicina do trabalho estamos dialogando muito proximamente com o trabalho de Srgio Carrara2 sobre a constituio da especialidade da sifilografia. Analisar o processo de constituio do campo da medicina do trabalho enfocando o papel dos mdicos do trabalho nos aproxima dos mltiplos planos destacados pelo autor no seu estudo sobre a sifilografia: estabelecimento de uma comunidade cientfica (congressos, sociedades, centros de pesquisa, peridicos e fontes de financiamento); a instituio do ensino especializado (ctedras, concursos, teses) e a abertura e expanso de um mercado de novos servios. A ABMT est sendo considerada como um importante espao no processo de constituio da especialidade, em especial, pela aglutinao dos especialistas, atravs dos seus eventos e publicaes. Ao analisarmos o campo da medicina e higiene do trabalho, buscaremos compreender as diversas injunes e interaes que o instituram, considerando de fundamental importncia delimitarmos os atores/agentes e os locus desta "luta"3. Dessa forma, os campos sociais funcionam na medida em que existam agentes competentes, comprometidos e interessados nessa luta, tanto no sentido de conservlos, como no sentido de transformlos. A realidade das instituies no pode ser compreendida tomando por base unicamente as vontades de indivduos nem de grupos, devendo ser considerado o campo de foras no qual a instituio se encontrava inserida: Governo Vargas, Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio, contexto de 2 Guerra Mundial, movimento de partidos de esquerda... Assim, trabalharemos tendo como questo de fundo o processo histrico de formao de uma tecnocracia de Estado no Brasil, buscando perceber seus 'habitus', seus grupos, suas diferenas, inserindoo no conjunto das polticas pblicas, sociais e econmicas ao longo das dcadas de 1940 e 1950. Desta forma, estaremos enfocando de que forma estes atoresmdicos do trabalho atuaram na constituio de um campo especfico da medicina, organizandoo culturalmente e participando da construo dos seus saberes, ao mesmo tempo em que estavam se especializando no mesmo.

Eram determinados atores, emitindo, de determinados lugares, as suas opinies e concepes, dando corpo a uma nova especialidade do saber mdico. Sendo um campo em construo, era ainda palco de incertezas, imprecises, espao privilegiado para disputas por reconhecimento e poder em diferentes nveis: entre indivduos, grupos e/ou instituies. Autoridade cientfica disputada pelos mdicos do trabalho, autoridade poltica disputada pelas agncias pblicas para a formulao e implementao das aes no campo da medicina do trabalho no Brasil. As dcadas de 30, 40 e 50 do sculo XX foram, no entender da literatura que trata do assunto, fundamentais para a formulao de polticas pblicas voltadas para o trabalhador, das quais destacamos as relativas sade do trabalho/trabalhador. No conjunto maior da obra de construo do trabalhador nacional e de "reviso moralizadora" do conceito de trabalho, tem espao e vai sendo construdo o campo da medicina do trabalho. Cuidar da sade do trabalhador nacional, e por extenso de sua famlia, era cuidar da nao, do conjunto da nacionalidade4. Cabe destacar o papel relevante das agncias do Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio (MTIC), criado em 1931, atravs do Decreto n 19.443, de 26 de novembro, com papel de destaque na agenda do ento instalado Governo Vargas e considerado como ator e locus fundamental neste campo, quer por sua atuao mais direta na regulamentao das condies de trabalho de forma geral, quer por seu poder normativo no que se refere higiene, medicina e segurana do trabalho, de forma especfica. Em 1932, foi organizado o Departamento Nacional do Trabalho (DNT), criandose uma seo voltada organizao, higiene e segurana do trabalho, que no ano seguinte resultaria na Inspetoria do Trabalho. Porm, somente aps a promulgao do Regulamento do DNT, em meados de 1934, comeou o funcionamento normal da Inspetoria como rgo de fiscalizao das leis trabalhistas5. Neste momento, foram nomeados os trs primeiros mdicos do trabalho com a funo de inspecionar as fbricas, fazer inquritos sobre condies de trabalho e pesquisas sobre molstias profissionais. Em 1938, foi criado o Servio de Higiene Industrial junto Inspetoria do Trabalho, demonstrando, de certa forma, a necessidade de ampliao das aes no campo da higiene e da medicina do trabalho. Com a reforma do DNT, em 1942, reforavase o espao e a importncia do campo da higiene do trabalho, criandose a Diviso de Higiene e Segurana do Trabalho (DHST), em substituio ao Servio de Higiene Industrial6. Nesse sentido, consideramos a criao da Diviso um momento importante do processo de consolidao do campo da medicina do trabalho no Brasil, atravs da complexificao das suas aes e do maior nmero de profissionais trabalhando diretamente nas suas atividades. importante ressaltar o contexto de criao da mesma, ao longo da 2 Guerra Mundial, e o papel que estas polticas voltadas para o trabalho/trabalhador exerciam como respostas tanto a demandas internas (movimento dos trabalhadores e de redemocratizao do pas) como a presses internacionais (temor ao comunismo, deliberaes da Organizao Internacional do Trabalho, etc.). A histria da atuao dos mdicos do trabalho no Brasil ao longo dos anos 30, 40 e 50 do sculo XX est, por um lado, diretamente inserida no conjunto da tecnoburocracia do ps30, portadora de um discurso de competncia tcnica, fundamental nova relao que se estabelecia entre o Estado e a sociedade e, ao mesmo tempo, diretamente vinculada constituio do campo da medicina do trabalho. Consideramos os mesmos como agentes constituintes primordiais deste novo campo de saber e que, para tanto, construram sua competncia/capacidade/ legitimidade atuando em diversas instituies e utilizandose de diversos veculos: atividades profissionais; publicaes; eventos cientficos; associaes; instituies de ensino, entre outros. Passaremos agora a analisar um espao de construo desta nova especialidade: a Associao Brasileira de Medicina do Trabalho.

A criao da Associao Brasileira de Medicina do TrabalhoA Associao Brasileira de Medicina do Trabalho (ABMT) foi criada em fins de 1944, tendo tido seu estatuto elaborado em janeiro de 1945. O grupo dos primeiros especialistas em medicina do trabalho trabalhava no MTIC e foi o responsvel pela fundao da ABMT, nas dependncias do Ministrio. Quer dizer, eram funcionrios do MTIC, utilizavam o prdio do prprio Ministrio e criavam uma entidade que, por um lado, estava relacionada e, por outro, os afastava da sua rotina de trabalho, dandolhes a oportunidade de desenvolver e promover atividades mais voltadas pesquisa e divulgao. Seria um sinal de que no tinham espao dentro do Ministrio para desenvolver e publicar seus trabalhos e suas pesquisas, para trazer especialistas renomados, para buscar apoio para a realizao de eventos e publicaes? Ou seria, na verdade, a busca de uma certa autonomia e espao cientfico, de maior liberdade de expresso do conhecimento, em detrimento do exclusivo cumprimento de tarefas rotineiras? Julgamos que ambas tenham sido razes e motivos para o envolvimento destes profissionais na criao da ABMT, mas ao mesmo tempo no podemos deixar de reconhecer o apoio direto do Ministrio iniciativa, seja ao ceder espao, seja ao patrocinar e apoiar os eventos realizados, por exemplo. Desta forma, no nosso entender, o prprio Ministrio considerava a ABMT como uma espcie de extenso da j referida DHST. Contando com um ncleo inicial de 35 mdicos e cinco engenheiros, todos oriundos da DHST, a Associao destacava como seu objetivo primordial, o estudo, a discusso e a divulgao dos assuntos referentes medicina do trabalho. De acordo com a Ata de fundao da Associao Brasileira de Medicina do Trabalho, estavam presentes no dia 14 de dezembro de 1944, no Auditrio do MTIC, sesso para discusso e aprovao do Estatuto e Regimento Interino, eleies da Diretoria e diversas Comisses da ABMT, os seguintes mdicos e engenheiros: Dcio Parreiras, Adele Nascimento, Abelardo B Tavares, Vitor Hugo Mendes da Costa, Hugo Alqueres, Lira Cavalcanti, Mariana de Brito, Thalita do Carmo Tudor, entre outros7. Uma das mais envolvidas participantes da ABMT, Thalita do Carmo Tudor mdica formada pela Faculdade Nacional de Medicina em 1937 que participou dos primeiros cursos de medicina do trabalho oferecidos no pas: Medicina e Trabalho nas Indstrias de Guerra, em 1943 e Toxicologia e Higiene Industrial, em 1946, tendo ingressado no MTIC em 1944, participando ativamente das atividades da Associao8 ressaltou que a grande finalidade da Associao, no momento da sua criao, fora difundir, entre os mdicos e engenheiros, recmadmitidos na DHST do MTIC, os conhecimentos da nova especialidade, a Medicina do Trabalho. Entre as inmeras atividades promovidas pela ABMT, destacaramse a publicao de uma revista especializada, a Revista Mdica do Trabalho, e a promoo de reunies cientficas e de eventos cientficos. Logo aps a sua criao, j em 1945, a ABMT passou a integrar o Bureau Internacional de Segurana do Trabalho, com sede em Montreal, Canad e o Bureau Internacional do Trabalho, da Organizao Internacional do Trabalho. Tendo sido criada de dentro da DHST, a Associao de alguma forma buscava fazer um trabalho muitas vezes complementar ao do Ministrio, fazendose presente em organizaes internacionais, organizando eventos cientficos, trazendo convidados de renome para palestras e conferncias. Assim, agia a ABMT no sentido de criar competncia e de legitimar este novo campo de saber cientfico e a sua comunidade.

A Revista Mdica do TrabalhoEm dezembro de 1945, no momento da eleio da nova diretoria, foi criada a Revista Mdica do Trabalho, cuja publicao s foi iniciada no ano seguinte. De acordo com o primeiro editorial:

A Revista Mdica do Trabalho, rgo da ABMT traz como lema o de bem servir de intrprete a todos os que se dedicam nobre cincia do trabalho, a todos os que desejarem colaborar com os elevados propsitos na valorizao do nosso proletariado, contribuindo para a grandeza e supremacia do Brasil no vasto setor industrial9. Interessante neste mesmo editorial a noo de que o prprio indivduo deveria ser o responsvel pelo seu bemestar, enfocando para alm da sua sade individual, o bem da nao: O indivduo deve trabalhar com a noo de que est procurando tanto o seu bem estar como o progresso e a grandeza de sua ptria, convencido de que no mais um nmero perdido naquela massa annima e suarenta de tempos idos, sem expresso e faminto de justia. Deve trabalhar sabendo que est agindo em benefcio prprio, no de seu pas e no da humanidade9. A revista possua sees dedicadas a artigos em Patologia do Trabalho (com destaque para assuntos relativos a doenas profissionais), Higiene do Trabalho e Segurana do Trabalho. Possua ainda as sees Variedades, Legislao e Noticirio, que no apareciam obrigatoriamente em todos os nmeros. Parecenos que a circulao da revista foi curta, s tendo sido localizados exemplares durante os anos de 1946 a 1951, no acompanhando, de certa forma, a atuao da Associao, que prossegue com suas atividades at os dias de hoje. Tudo indica ter sido uma publicao com bom nvel de circulao, pois era alvo de citaes em outros trabalhos e de comentrios nos eventos cientficos. Em nota publicada em 1948, quando do aniversrio de mais um ano da publicao, reforouse o seu objetivo como rgo de divulgao: Ao se instalar no Rio de Janeiro a Associao Brasileira de Medicina do Trabalho, foi juntamente com ela criado um rgo de publicidade que divulgasse no nosso meio, em linguagem acessvel a empregados e empregadores, as noes essenciais de higiene e segurana do trabalho, bem como difundisse, no pas e no estrangeiro, os trabalhos tcnicos dos estudiosos da medicina do trabalho no Brasil10. Optamos em apresentar no quadro 1 dados biogrficos do mdico do trabalho Zey Bueno, cuja histria profissional e intelectual em muito nos demonstra a articulao entre o MTIC, as polticas pblicas do momento e a atuao da ABMT:

Como podemos observar, Dr. Zey Bueno, membro do grupo dos primeiros mdicos da Inspetoria do Trabalho do MTIC, sciofundador da ABMT, autor de vrios artigos publicados na Revista do Trabalho e em outros peridicos e organizador de eventos cientficos, um bom exemplo para visualizarmos a articulao entre estas organizaes e iniciativas constituintes da especialidade medicina do trabalho no Brasil ao longo dos anos de 1940 e 1950.

Entre os autores com maior nmero de artigos, destacavamse os mdicos do MTIC. Os artigos sobre medicina do trabalho, acidentes do trabalho e doenas do trabalho apareceram em maior nmero, conforme o grfico 1.

Destacase, entre os principais temas trabalhados: condies de trabalho, alimentao dos operrios, ensino e formao em medicina do trabalho, seleo e readaptao profissional, acidentes do trabalho e doenas profissionais e do trabalho. Um nmero expressivo de artigos estava relacionado com a anlise das condies de trabalho nos estabelecimentos industriais, fosse atravs de inquritos ou de pareceres e relatrios de inspeo. Eram os inspetores mdicos do MTIC que produziam tais trabalhos, relatando os ambientes de trabalho vistoriados e por muitas vezes indicando medidas preventivas e/ou corretivas aos problemas encontrados, demonstrando desta forma conhecimento e competncia tcnica no campo da medicina e da higiene do trabalho. A revista funcionava neste sentido como espao para a divulgao das aes do MTIC e das atividades realizadas por seus especialistas (Figura 1).

Para alm de ser um espao de divulgao das aes do MTIC, a revista tambm abria espao para os servios de empresas e fbricas. Na anlise dos exemplares da revista, localizamos um grande nmero de propagandas de vrias fbricas, entre as quais podemos destacar a Amrica Fabril, a Companhia de Fiao do Rio de Janeiro, a Fbrica Beija Flor e a Fbrica Distincta e Sanis. O tema dos acidentes do trabalho estava presente direta e indiretamente em grande parte dos artigos que discutiam as condies de trabalho de determinados ramos de atividades, bem como aqueles que apresentavam os princpios da medicina do trabalho, mas tambm foi objeto de artigos especficos, como, por exemplo, o trabalho do Dr. Zey Bueno11. O objetivo principal do artigo era a defesa das polticas de preveno dos acidentes. O autor criticava diretamente as companhias de seguro pela ausncia de um trabalho preventivo, limitandose as mesmas ao pagamento de indenizaes e prestao de uma incipiente assistncia mdica. O artigo do Dr. Paulo Motta Filho, da DHST do MTIC, enfocava o tema dos acidentes do trabalho e a responsabilidade das indstrias frente aos mesmos. Destacava a importncia da atuao da DHST, do mdico da fbrica, do engenheiro, da comisso interna de preveno de acidentes, do inspetor de segurana e dos mestres e contramestres nas campanhas de preveno. Sobre as atividades do Ministrio, faz o seguinte comentrio: Por mais que se esforce o Ministrio do trabalho, pela Diviso de Higiene e Segurana do Trabalho, na propaganda em jornais e revistas, cartazes, prelees e projees educativas, sempre v, no decurso de um ano, grande

nmero de acidentes catalogados uns por imprudncia de operrios e outros por displicncia de empregadores12. Com o objetivo de divulgar a importncia da medicina do trabalho, a DHST organizou, em meados dos anos 40, uma Campanha de Irradiao Nacional sobre o tema, na qual mdicos da Diviso fariam palestras em diferentes estados sobre diversos aspectos da especialidade, vrias destas foram publicadas na Revista Mdica do Trabalho. A mdica Adele Nascimento realizou palestra na Rdio de Salvador, na qual destacou que "a referida Diviso acaba de empreender patritica campanha com irradiao nacional, no sentido de se aumentar a produo pela maior segurana do trabalho, garantida pelo combate sistemtico dos acidentes e infortnios"13. A questo de fundo da palestra estava, no nosso entender, embebida da mais pura ideologia corporativa, na medida em que afirmava ser a principal finalidade do Ministrio do Trabalho, no que tangia medicina do trabalho, buscar o perfeito equilbrio do trabalhador, possibilitando a ampla colaborao com os patres e a maior produo com o menor desgaste possvel, visando, sobretudo, ao crescimento da ptria/nao. A referncia ao aumento da produo um argumento constante ao longo dos artigos analisados, muitas vezes com o objetivo de valorizar a importncia das atividades desempenhadas pela medicina do trabalho e por seus profissionais e tambm como forma de buscar a adeso dos empresrios a tais aes que na maioria das vezes implicavam em gastos e investimentos por parte dos mesmos. Em editorial dedicado a esta temtica, Hugo Firmeza enfatizava o maior rendimento econmico decorrente de tais iniciativas no campo da medicina do trabalho: Interessandose pela higiene da sua indstria, observando de perto as condies sanitrias do ambiente de trabalho, verificando a sua influncia sobre a sade do trabalhador, instituindo normas de higiene industrial, tudo isso atravs do mdico especializado em medicina do trabalho, o empregador estar adotando meios seguros de proteo; proteo para o operrio, que ter, assim, sade e produzir mais; proteo para a sua indstria que, produzindo, aumentar o seu rendimento econmico14. Em um outro editorial da Revista Mdica do Trabalho, Hugo Firmeza voltava a enfatizar os prejuzos que a fadiga do trabalhador acarretava na produo. Apontava como uma das principais causas de tal estado o trabalho irracional, que no levava em conta as caractersticas orgnicas de cada operrio e defendia que para solucionar tais problemas era fundamental a atuao do mdico especializado: Para sanar as conseqncias da fadiga sobre o operrio e sobre o trabalho em si, isto , para evitar as doenas, os acidentes e o decrscimo de produo que o cansao acarreta, a melhor soluo cada estabelecimento industrial ter um mdico especializado em higiene do trabalho15. Dessa forma, o grande objeto da medicina do trabalho no seria somente a sade dos trabalhadores, mas tambm o patrimnio dos empresrios e a riqueza da nao. Assim, inserido neste contexto de desenvolvimento e crescimento das "riquezas da nao", os mdicos do trabalho acabavam por participar diretamente deste processo na medida em que estavam, de um certo modo, cuidando do capital humano das indstrias e das atividades comerciais. Este objetivo da medicina do trabalho foi alvo de um discurso do Dr. Abelardo Tavares, em 1951, ao entregar a presidncia da ABMT para o presidente eleito, Dr. Zey Bueno: Lamentavelmente, a Medicina do Trabalho, entre ns, ainda ensaia os primeiros passos, porque s tardiamente foi que nos apercebemos da sua existncia e das suas extraordinrias vantagens. Iniciada, porm, a tarefa, urge no abandonla, nem descurla, mas, antes, incentivla e prestigila,

para que a semente lanada, em terreno frtil, germine e frutifique, para honra dos seus pioneiros e para a grandeza da nossa Ptria16. Esta no era uma viso uniforme entre os grupos empresariais, mas j demonstrava um certo apoio de algumas categorias que passavam a perceber o quanto as precrias condies de trabalho, os acidentes e as doenas resultantes dos mesmos podiam interferir negativamente nos ndices de produtividade dos negcios. Assim, ao cuidar da sade do trabalhador, no o deixando adoecer nem tampouco se acidentar, os mdicos do trabalho estariam protegendo peas fundamentais do processo de produo econmica. Neste contexto, ganham destaque e importncia os servios mdicos nas indstrias, tema que iremos trabalhar a seguir. Rubens Bastos, mdico da DHST, destacava em seu artigo que os mdicos do trabalho possuam uma viso mais ampla do que a do mdico clnico, em funo do seu olhar de sanitarista, atento s questes da preveno e da melhoria das condies de trabalho. Afirmava o autor que o mdico de empresa deveria conhecer com detalhes as indicaes e contraindicaes dos ofcios existentes e as patologias profissionais decorrentes dos mesmos, devendo sempre agir no sentido da preveno. Destaca a importncia de estes mdicos desenvolverem programas de educao no ambiente de trabalho e de manterem contato com a DHST. De qualquer maneira, porm, esses servios devem estar obrigados a trabalhar em contato com a DHST que no futuro, ao lado dos servios mdicos, viria a funcionar exclusivamente como um supervisor e rgo de consulta. Quando atingssemos essa fase, a equipe mdica da DHST se libertaria da rotina, que ficaria entregue queles servios e que praticamente seria muito mais proveitosa para a massa operria, que estaria constantemente assistida, dedicandose a um programa de cunho eminentemente cientfico, com estudos dos nossos mltiplos problemas de medicina industrial. Transformarseia num verdadeiro Instituto Nacional do Trabalho17. Uma massa operria constantemente assistida por profissionais especializados em promover a sade e o bemestar dos trabalhadores: trabalhadores sos. Este era o ideal proposto e desejado pelo mdico do MTIC que tinha tambm outros planos para os tcnicos da DHST: a criao de um instituto de pesquisas em medicina do trabalho, deixando transparecer que as atividades rotineiras desenvolvidas pela Diviso estariam afastando os mdicos deste ideal.

A ABMT e os eventos cientficosOutro importante espao de atuao da ABMT foi a organizao e promoo de congressos e eventos cientficos que reuniam os especialistas nos temas da medicina, higiene e segurana do trabalho, espaos privilegiados da divulgao e atualizao do conhecimento cientfico. A Associao realizava tambm as j mencionadas reunies cientficas mensais, que eram palestras conferidas por mdicos convidados e por mdicos e engenheiros do prprio MTIC. Em 1949, por iniciativa da Associao Brasileira de Medicina do Trabalho, realizouse o I Congresso Brasileiro de Higiene e Segurana do Trabalho, no Rio de Janeiro, de 28 de novembro a 03 de dezembro, com patrocnio da Confederao Nacional das Indstrias, o qual foi obtido atravs do Presidente de Honra do congresso, o Deputado Euvaldo Lodi, responsvel pelo apoio da referida confederao publicao dos anais do evento (Figura 2).

No discurso de abertura do congresso, Dr. Rubens Bastos, presidente da Comisso Executiva, destacava o papel e a importncia dos primeiros mdicos voltados ao campo da medicina e higiene do trabalho e do evento na organizao da especialidade: Pela primeira vez se renem os tcnicos em higiene e segurana do trabalho do Brasil para estudar e debater as mltiplas e importantes questes que dizem respeito sua especialidade. [...] uma grande fortuna que aqueles mesmos idealistas de quinze anos atrs Edison Cavalcanti, Zey Bueno, Hugo Alqueres e a pessoa que vos fala que constituram o ncleo de pioneiros da medicina do trabalho aplicada em nosso pas, [...] estejam no prtico deste Congresso para dar as boas vindas18. Os trabalhos apresentados foram divididos nos temas Assistncia Social, Alimentao do Trabalhador, Trabalho de Menores, Segurana do Trabalho e Higiene do Trabalho. Entre os assuntos do tema Higiene do Trabalho, destacavamse os relativos s doenas profissionais, ao conceito de higiene do trabalho, ao papel do servio mdico industrial, importncia dos exames mdicos e da proteo ao trabalho do menor e da mulher. O Dr. Raimundo Estrela apresentou um interessante trabalho discutindo o conceito brasileiro de higiene do trabalho, no qual enfatizava que a indefinio do conceito era uma questo para vrios pases, havendo grupos que no distinguiam a higiene da medicina do trabalho, outros que viam na higiene, alm do aspecto preventivo, o aspecto clnico curativo e outros que os consideravam campos distintos.

Esses desentendimentos naturalmente atingiram tambm as atribuies dos mdicos que servem no setor trabalhista. Mdicos do trabalho, mdicos de fbrica, mdicos da indstria? Higienistas industriais, sanitaristas do trabalho ou da indstria; inspetores mdicos do trabalho? Como denominlos? A denominao apropriada est, porm, na dependncia do critrio com que se encara a higiene e a medicina do trabalho19. O autor declarava sua opo em seguir a "orientao doutrinria" do MTIC, que exerce funes da higiene do trabalho, de carter preventivo, tais como a fiscalizao dos ambientes e a proteo sanitria dos trabalhadores e da medicina do trabalho. Segundo Estrela, os mdicos do ministrio seriam mais verdadeiramente "higienistas do trabalho", achando assim que seria uma certa incongruncia do mesmo denominlos "mdicos do trabalho". Esta era uma discusso importante entre os que atuavam no campo da higiene e medicina do trabalho, havendo a defesa de diversas denominaes e espaos de atuao por parte de diferentes grupos e instituies. O prprio congresso era denominado Congresso de Higiene e Segurana do Trabalho, enquanto a entidade promotora do mesmo era a Associao Brasileira de Medicina do Trabalho, cujos principais integrantes eram inspetores mdicos do trabalho da Diviso de Higiene e Segurana do Trabalho do MTIC. Entre as resolues aprovadas no I Congresso Brasileiro de Higiene e Segurana do Trabalho estava a recomendao de rever o Captulo V da Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT) dedicado ao tema da Higiene do Trabalho. Alm disso, foi proposta a criao de uma cadeira de medicina do trabalho no currculo das faculdades de medicina por considerarse a especialidade como de fundamental importncia ao ensino mdico no pas. Consideramos no ser um fato sem importncia estarem reivindicando o status de uma cadeira prpria, na medida em que tal reconhecimento seria, na verdade, tambm o reconhecimento da existncia e da relevncia da especialidade e dos seus profissionais. Outra iniciativa da ABMT foi a realizao da II Semana Brasileira de Preveno de Acidentes e Higiene do Trabalho, ocorrida no Rio de Janeiro, em agosto de 1949, contando com patrocnio da Prefeitura do Distrito Federal e da Diviso de Higiene e Segurana do Trabalho do MTIC. Estiveram presentes na solenidade de abertura, o ento Ministro do Trabalho, Indstria e Comrcio, Dr. Honrio Monteiro, o prefeito do Distrito Federal, General ngelo Mendes de Morais, o representante da Organizao Internacional do Trabalho no pas, Dr. Afonso Bandeira de Mello e vrios industriais. O evento contou com exposies, concursos de cartazes e uma srie de palestras sobre o tema nas mais diferentes rdios do pas, muitas das quais foram publicadas na Revista Mdica do Trabalho.

Consideraes finaisO conjunto das publicaes apresentadas, os temas trabalhados, o nvel de conhecimentos especficos que os mesmos deixam transparecer, as constantes referncias s publicaes internacionais contemporneas e o fato de membros da Associao terem destaque como especialistas do campo, nos permitem afirmar o papel de destaque da ABMT, atravs especialmente da Revista Mdica do Trabalho e da promoo dos seus congressos e eventos cientficos, no processo de consolidao do campo da medicina do trabalho ao longo das dcadas de 40 e 50 do sculo XX. Neste sentido, analisar as primeiras dcadas de atuao da Associao Brasileira de Medicina do Trabalho nos permitiu indicar o papel dos mdicos do trabalho como agentes primordiais do processo de construo e consolidao desta nova especialidade mdica, a medicina do trabalho. Para tanto, estavam construindo competncia e adquirindo legitimidade e autoridade, trabalhando em agncias do Estado (em especial, do Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio), criando e participando de organizaes cientficas, com destaque para a Associao Brasileira de Medicina do Trabalho, e utilizandose de

diferentes meios para divulgar seu conhecimento, atravs da apresentao de trabalhos em congressos e da publicao em peridicos, entre outras tantas atividades. Analisando o papel dos especialistas mdicos do trabalho na constituio e consolidao de uma especialidade, tal como estudado por Srgio Carrara2, podemos ressaltar a importncia da ABMT ao longo do processo de construo da medicina do trabalho no Brasil e a importncia da sua relao direta e indireta com o MTIC, fornecendo pistas e indcios para a anlise das polticas pblicas em sade e trabalho no Brasil ao longo dos anos de 1940 e 1950.

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Artigo apresentado em 17/12/2006 Aprovado em 14/05/2007 Verso final apresentada em 06/06/2007

* Trabalho apresentado no simpsio "Histria dos trabalhadores da sade em uma perspectiva comparada", 02 a 05 de abril de 2006.