História Do Direito II

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HISTÓRIA DO DIREITO RESUMOS DAS MATÉRIAS INTRODUÇÃO A divisão histórica do direito português em períodos tem sido encarada a partir de critérios diversos. De acordo com o pensamento do Prof. Almeida Costa (tese adoptada no curso), distinguem-se, desde os alvores da nacionalidade até à época presente, três ciclos básicos : a) o período da individualização do direito português; b) o período do direito português de inspiração romano-canónica; c) o período da formação do direito português moderno. O período da individualização do direito português , decorre da fundação da nacionalidade (concretamente do ano em que D. Afonso Henriques se intitulou rei), aos começos do reinado de Afonso III, isto é, desde 1140 até 1248 ; à independência política de Portugal não correspondeu, de imediato, uma autonomia do direito; assiste-se, por isso, neste período, à introdução lenta das fontes tipicamente portuguesas. O período do direito português de inspiração romano- canónica , inicia-se em meados do século XIII prolongando-se até à segunda metade do século XVIII ; corresponde-lhe a força da penetração do chamado direito comum (“ius commune”); subdivide-se em dois períodos: a época da recepção do direito romano renascido e do direito canónico renovado (direito comum ) e a época das Ordenações . O período da formação do direito português moderno , tem o seu começo com o consulado do Marquês de Pombal (associando- se esta viragem jurídica a dois importantes factos: a Lei da Boa Razão, em 1769 e o da Estatutos da Universidade, em 1772), até à actualidade; subdivide-se em três períodos: a) a época do jusnaturalismo racionalista ; b) a época do individualismo (também designada por época liberal); c) a época do direito social . I - PERÍODO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS 1 1

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HISTRIA DO DIREITO - 2 FREQUNCIA

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HISTRIA DO DIREITO RESUMOS DAS MATRIAS

INTRODUO

A diviso histrica do direito portugus em perodos tem sido encarada a partir de critrios diversos. De acordo com o pensamento do Prof. Almeida Costa (tese adoptada no curso), distinguem-se, desde os alvores da nacionalidade at poca presente, trs ciclos bsicos: a) o perodo da individualizao do direito portugus; b) o perodo do direito portugus de inspirao romano-cannica; c) o perodo da formao do direito portugus moderno. O perodo da individualizao do direito portugus, decorre da fundao da nacionalidade (concretamente do ano em que D. Afonso Henriques se intitulou rei), aos comeos do reinado de Afonso III, isto , desde 1140 at 1248; independncia poltica de Portugal no correspondeu, de imediato, uma autonomia do direito; assiste-se, por isso, neste perodo, introduo lenta das fontes tipicamente portuguesas. O perodo do direito portugus de inspirao romano-cannica, inicia-se em meados do sculo XIII prolongando-se at segunda metade do sculo XVIII; corresponde-lhe a fora da penetrao do chamado direito comum (ius commune); subdivide-se em dois perodos: a poca da recepo do direito romano renascido e do direito cannico renovado (direito comum) e a poca das Ordenaes. O perodo da formao do direito portugus moderno, tem o seu comeo com o consulado do Marqus de Pombal (associando-se esta viragem jurdica a dois importantes factos: a Lei da Boa Razo, em 1769 e o da Estatutos da Universidade, em 1772), at actualidade; subdivide-se em trs perodos: a) a poca do jusnaturalismo racionalista; b) a poca do individualismo (tambm designada por poca liberal); c) a poca do direito social.

I - PERODO DA INDIVIDUALIZAO DO DIREITO PORTUGUS

Inicia-se com a fundao da nacionalidade, em 1140, prolongando-se at ao reinado de D. Afonso III. uma fase caracterizada pela continuao bsica do quadro jurdico estabelecido, ou seja, pela ascendncia das fontes do direito leons (recorde-se que Portugal resulta do desmembramento do Reino de Leo), que se mantiveram em vigor nos primrdios da nacionalidade; alguns exemplos dessas fontes de direito do Reino de Leo: 1 - Cdigo Visigtico: as aluses a este normativo encontram-se em algumas citaes anteriores e posteriores nacionalidade, e, tanto podem dizer respeito a meras reminiscncias ou frmulas eruditas dos tabelies no tradutoras de uma verdadeira aplicao daquela fonte, como, pelo contrrio, serem testemunhos de vigncia efectiva dos seus preceitos; o ambiente jurdico da poca era propcio a tais discrepncias; as referncias a esta fonte comeam a escassear a partir do incio do sculo XIII, devendo-se tal ocorrncia, oposio de preceitos consuetudinrios locais e, sobretudo, medida que a legislao geral e a eficcia do direito romano-cannico se foram incrementando. 2 - Leis dimanadas das Crias e dos Conclios reunidos em Leo, Coiana e Oviedo: outras fontes de direito anteriores nacionalidade que se mantiveram no territrio portugus (destacam-se a Cria de Leo em 1017 e os Conclios de Coiana em 1055 e Oviedo em 1115); Cria, filiao da Aula Rgia visigtica, era um rgo auxiliar do rei que tinha, por isso, um carcter eminentemente poltico; os Conclios caracterizavam-se pela sua natureza eclesistica; contudo, os altos dignitrios da Igreja, no raras vezes, tinham assento nas Crias, o que se percebe facilmente face s circunstncias da poca.(espcies de assembleias, as crias do origem mais tarde s Cortes. Normas gerais resultantes dessas assembleias tiveram vigncia em Portugal. (CRIAS: era um rgo auxiliar do rei que tinha, portanto, um carcter eminentemente poltico. / CONCLIOS: natureza eclesistica. Os altos representantes da igreja participavam tambm das reunies da cria.) Para diferenciar estas assembleias, era necessrio atender-se entidade convocante, s matrias tratadas e sano das decises que se tomavam. De qualquer das formas, as leis que provinham destas assembleias tratam-se de fontes de Direito que se aplicaram no territrio portugus.

3 - Forais de terras portuguesas anteriores independncia: tambm continuaram a ter eficcia, depois da fundao da nacionalidade, os forais outorgados pelos monarcas leoneses (exemplos: S. Joo da Pesqueira, Penela, Paredes, Ancies, Santarm, Linhares) a algumas localidades que se vieram a transformar em territrio portugus; recorda-se a definio de foral ou carta de foral, como o diploma concedido pelo rei, ou por um senhorio laico ou eclesistico, a determinada terra, contendo normas que disciplinam as relaes dos povoadores ou habitantes, entre si, e destes com a entidade outorgante; o foral representa a espcie mais significativa das chamadas cartas de privilgio, distinguindo-se das cartas de povoao, justamente, por se dirigirem a um destinatrio concreto; primeiramente, observa-se documentos muito rudimentares, que se baseiam fundamentalmente em contratos agrrios colectivos, onde avulta o intuito de povoar o que est ermo, ou, to-s, atrair mo-de-obra para locais j habitados - so as cartas de povoao (so uma espcie de contratos de adeso); Alexandre Herculano adopta, a respeito desta matria, uma posio restritiva do conceito de foral; na sua perspectiva, apenas se qualifica de forais, os diplomas que conferem existncia jurdica a um municpio, indiciada que seja, por uma qualquer magistratura prpria e privativa; Paulo Mera, contesta este ponto de vista, desvalorizando a questo das magistraturas municipais; daqui se conclui, que o contedo dos forais so variveis podendo disciplinar diferentes matrias: liberdades e garantias das pessoas e dos bens dos povoadores; impostos e tributos; composies e multas devidas pelos diversos delitos; imunidades colectivas; servio militar; encargos e privilgios dos cavaleiros vilos; nus e provas judiciais; aproveitamento de terrenos comuns; citaes, arrestos e fianas; em suma, incluem-se principalmente normas direito pblico. 4-O costume: conservou entre ns a sua vigncia anterior; o direito privado, designadamente, tinha como fonte principal ou quase exclusiva o costume, que prosseguia a linha das normas consuetudinrias leonesas; o conceito de costume, nesta poca, era utilizado em sentido muito amplo ou residual; isto , abrange todas as fontes de direito tradicionais que no tenham carcter legislativo; incluem-se as sentenas da Cria Rgia (posteriormente designadas costumes da Corte), de juzes municipais, de juzes arbitrais (nomeados por acordo das partes) cujas decises revestiam precedentes vinculativos e pareceres de juristas consagrados.

NOTA:

- Diviso dos forais de acordo com Alexandre Herculano: concelhos rudimentares - apenas existem magistrados ou fiscais; concelhos imperfeitos - j existe um magistrado judicial (so imperfeitos atendendo forma de apresentao e estruturao de rgos do municpio); concelhos perfeitos ou completos - magistratura colegial d dois ou mais juzes (estes declaram a existncia do direito e possuam capacidade coerciva).

Ao lado destas antigas fontes de direito, herdadas como se referiu do Estado leons, comearam a surgir outras tipicamente portuguesas, se no quanto ao seu contedo, pelo menos, do ponto de vista formal (e a penas formal, na medida de em que ainda no se pode falar de uma identidade cultural e, muito menos ainda, de uma conscincia jurdica - a autonomia material surgiria, apenas, com as Ordenaes). A elas se deve a progressiva individualizao ou autonomizao do sistema jurdico do nosso pas. Fontes de direito posteriores fundao da nacionalidade:

A saber: 1 - Leis gerais dos primeiros monarcas: os primrdios da nacionalidade no permitiram aos monarcas (certamente mais preocupados com problemas decorrentes da consolidao da independncia, da definio dos limites territoriais e aces de fomento), dispensar muito tempo a matrias legislativas conducentes, de imediato, constituio de uma personalidade relevante ao direito portugus; contudo, sabe-se por via indirecta (referncia em bulas papais) da existncia de uma lei de D. Afonso Henriques; de igual modo relativamente a Sancho I; com Afonso II surge a legislao laboral e comea a desenhar-se a tendncia de o monarca sobrepor as leis aos preceitos consuetudinrios que se considerem inconvenientes; tais disposies apresentam uma certa ligao e sistematizao, no formando, contudo, um corpo legislativo unitrio - so, todavia, um conjunto de preceitos organizados com algum mtodo; aqui se inclui uma norma, na qual se consagra uma soluo para dirimir conflitos surgidos entre o direito cannico e as leis do Reino em que se d primazia ao primeiro. 2 - Forais: compensando a escassez de leis gerais, abundam nesta poca, as fontes de direito local, onde assumem particular relevncia os forais e as cartas de povoao; tal facto tem uma explicao lgica: as preocupaes de conquista e de povoamento das terras constituam, em ltima anlise, uma defesa contra as investidas sarracenas e as ameaas leonesas - os forais e as cartas de povoao so, sem dvida, at Afonso III, uma das mais importantes fontes de direito portugus. 3-Concrdias e concordatas: so acordos efectuados entre o rei e as autoridades eclesisticas, comprometendo-se, reciprocamente, a reconhecer direitos e obrigaes relativos ao Estado e Igreja; distinguem-se aqueles dois conceitos da seguinte forma: as concrdias derivam de negociaes entre o rei e as autoridades eclesisticas nacionais; as concordatas (ainda hoje assim se denominam) implicam negociaes com o Papa.

Resulta do exposto, que o direito portugus, at meados do sculo XIII, teve uma base consuetudinria e foraleira; por outro lado, o esforo de fomento social e econmico conduzia difuso de fontes de direito local, assumindo relevo, as cartas de povoao e os forais. Trata-se assim, de um sistema jurdico rudimentar, altamente influenciado por uma amlgama de culturas, donde se destacam os preceitos do chamado direito romano vulgar (em virtude da permanncia romana na Hispnia), de influncias cannicas (indirectamente, por via da legislao romana posterior a Constantino, directamente, na poca medieval), costumes germnicos (influncia de Suevos e de Visigodos), influncia rabe e outras, como a franca, motivada principalmente pelas colnias estabelecidas no solo peninsular. Acresce uma referncia ao empirismo que presidia criao jurdica, orientada, no mbito do direito privado, fundamentalmente, pelos tabelies, atravs dos contratos e outros actos que elaboravam, no existindo, via de regra, preceitos gerais individualizadores dos vrios institutos - so as chamadas escrituras tabelinicas, redigidas de acordo com a vontade concreta dos outorgantes que modelam os negcios jurdicos.

Impe-se uma aluso aos contratos de explorao agrcola e indstrias conexas, visto que constituam uma das traves mestras da vida econmica e social medieva; destacam-se duas importantes modalidades: a enfiteuse (mais tarde tambm designada por aforamento ou emprazamento), que consistia num contrato pelo qual se operava a repartio, entre os contraentes, daquilo a que a cincia do direito chamaria mais tarde domnio directo e domnio til de um prdio; o primeiro pertencia ao senhorio e traduzia-se essencialmente na faculdade de receber do forerio ou enfiteuta, a quem cabia o domnio til, uma penso anual (foro ou cnon), em regra consistindo numa parte proporcional dos frutos que o prdio produzia; este instituto teve uma vasta importncia para o cultivo das terras ainda no arroteadas ou insuficientemente produtivas, visto que caracterizava o negcio o encargo assumido pelo agricultor de aplicar diligente esforo no seu aproveitamento; entre as faculdades compreendidas no domnio til do enfiteuta contava-se a de alienar a respectiva posio a terceiro, com ou sem direito de preferncia do senhorio; a complantao, derivava igualmente das mesmas necessidades econmico-sociais e jurdicas; contudo, o trabalho e a propriedade da terra equilibram-se de modo diverso; o proprietrio de um terreno cedia-o a um agricultor para que o fertilizasse, em regra, com a plantao de vinhas ou de outras espcies duradouras; uma vez decorrido o prazo estabelecido, que variava de quatro a oito anos, procedia-se diviso do prdio entre ambos, geralmente em partes iguais.

Alm destes institutos, que se dirigiam explorao agrcola ou a indstrias conexas, desenvolveram-se, um pouco mais tarde, outros dois negcios que, embora tendo igualmente a terra por objecto, desempenharam uma relevante funo de crdito ou financeira. A saber: o contrato de compra e venda de rendas (mais tarde denominado por censo consignativo), ao abrigo do qual, o proprietrio de um prdio, carecido de capitais, cedia a uma pessoa que deles dispusesse, em compensao de determinada soma para sempre recebida, o direito a uma prestao monetria anual imposta como encargo sobre esse prdio; o negcio representava uma forma de investimento que teve funo anloga ao emprstimo a juros, sem que fosse proibido pela usura; o penhor imobilirio, que previa a transmisso do prdio pelo proprietrio-devedor ao seu credor com vrios objectivos: desde o de pura funo de garantia e de compensao da cedncia do capital, at ao de lhe proporcionar o reembolso progressivo da dvida, que se ia amortizando com o desfrute do prdio.

NOTA:

- ao desenvolvimento destes dois institutos (compra e venda de rendas e penhor imobilirio) no foi estranha a proibio cannica e civil da usura ou mtuo oneroso.

II - PERODO DO DIREITO PORTUGUS DE INSPIRAO ROMANO-CANNICA

1. POCA DA RECEPO DO DIREITO ROMANO RENASCIDO E DO DIREITO CANNICO RENOVADO (DIREITO COMUM)

1.1. O direito romano justinianeu desde o sculo VI at ao sculo XI

Entra-se neste perodo num ciclo da histria jurdica portuguesa profundamente influenciada pela revitalizao do direito romano justinianeu, que se inicia em Itlia ainda durante o sculo XI; marco relevante desta poca, sem dvida alguma, o novo interesse terico e prtico pelas colectneas do Corpus Iuris Civilis; a este fenmeno se atribui o nome de renascimento do direito romano. Esta designao no inteiramente pacfica, porquanto a terminologia renascimento faz pressupor que o direito romano justinianeu tenha deixado, em absoluto, de ser conhecido, estudado e aplicado (o direito justinianeu vigorou sempre no Imprio do Oriente e ter sobrevivido em alguns locais do Ocidente). As colectneas justinianeias chegaram ao mundo ocidental por volta do sculo VI, sendo conservadas e at analisadas nos centros de cultura eclesistica; contudo, isto no significa que durante os primeiros sculos medievos, tenham conseguido uma divulgao notria ou alcance efectivo. , justamente para assinalar o contraste entre essa modesta difuso ou indiferena, e o interesse decisivo que o seu estudo, j com antecedentes no sculo XI, assume do sculo XII em diante, que se explica e mesmo justifica a qualificao de renascimento do direito romano; o ponto de partida de uma longa e diversificada evoluo que conduziria cincia jurdica moderna.

1.2. Pr-renascimento do direito romano

As causas conducentes ao renascimento do direito romano inserem-se num quadro complexo de antecedentes; evoquemos algumas dessas causas:

a) a restaurao do Imprio do Ocidente, o chamado Sacro Imprio Romano-Germnico, cujo sistema jurdico encontrava as suas razes no direito romano justinianeu; sob a gide da Igreja, operou-se, no s essa renovao poltica, mas tambm a aplicao do direito das colectneas justinianeis s matrias temporais; o direito romano justinianeu vai, a partir da morte de Carlos Magno, assumir um relevante papel no robustecimento da posio imperial perante o Papado; o perodo das querelas volta da questo do Estado, da sua funo social e das formas de governo e da orgnica interna da prpria Igreja;

b) o universalismo da f e do esprito de cruzada, que unifica os homens acima das fronteiras, da raa e da histria; a exaltao da romanidade, entre os sculos XI e XII, em consequncia da interpretao crist do mundo, associada a um progresso geral da cultura;

c) a influncia dos factores econmicos, traduzida no aumento geral da populao, o xodo do campo, as potencialidades de uma economia citadina com o seu carcter monetrio, a sua indstria, o seu comrcio, as novas classes sociais; em suma, colocavam-se ao direito questes de redobrada complexidade.

Em concluso, podemos afirmar, que motivos de natureza poltica, religiosa, cultural e econmica, apontavam para o incremento do estudo do direito romano justinianeu; neste contexto, forma-se uma dinmica que se aceleraria no sculo XII com os juristas bolonheses. Na Pennsula Ibrica, a recepo do direito romano renascido atrasou-se relativamente generalidade da Europa; os esforos e os sintomas pr-renascentistas do direito romano, reconduzem-se essencialmente Itlia, o que se compreende, dado que noutras regies ocidentais, o direito justinianeu nunca tivera promulgao oficial, o que o tornava desconhecido.

1.3. Renascimento propriamente dito do direito romano com a Escola de Bolonha ou dos Glosadores

O verdadeiro renascimento do direito romano, isto , o seu estudo sistemtico e a divulgao, em largas dimenses, da obra jurdica justinianeia, inicia-se apenas no sculo XII, com a Escola de Bolonha. Deve-se a Irnrio, o grande mrito de autonomizar o ensino do direito (at ento misturado no conjunto da disciplinas que compunham o saber medieval, nomeadamente a lgica e a tica), nas tambm estudar os textos justinianeus numa verso completa e originria, superando os extractos e os resumos da poca precedente. A Escola de Bolonha no nasceu logo como uma Universidade; limitou-se a constituir um pequeno centro de ensino baseado nas preleces de Irnrio (a candeia do direito, conforme seu cognome); deste modo, ia formando discpulos e o seu prestgio transps as fronteiras de Itlia, o que fez atrair inmeros estudantes dos mais variados locais; assim nasce a Universidade, que se veio a tornar no plo europeu de irradiao da cincia jurdica. A Escola de Bolonha recebe, tambm, as designaes de Escola Irneriana e de Escola dos Glosadores; a primeira homenageia o fundador, enquanto a segunda deriva do mtodo cientfico ou gnero literrio fundamental utilizado por Irnrio e seus sequazes, que era a glosa.

Os Glosadores estabeleceram uma diviso das vrias partes do Corpus Iuris Civilis (a quem prestam um respeito sagrado) diferente da originria (ver nota abaixo); esta diviso deveu-se, por um lado, ao facto, das colectneas justinianeias no terem sido conhecidas ao mesmo tempo, e, por outro lado, variedade e amplitude muito diversas dessas colectneas, pelo que a diviso tambm se justificava a fim de facilitar o seu ensino em cadeiras autnomas.

A glosa, como j se referiu, constituiu o principal instrumento de trabalho dos juristas da Escola dos Glosadores; a glosa consistia num processo de exegese textual j antes utilizado em domnios culturais estranhos ao direito, que de incio se cifrava num pequeno esclarecimento imediato, via de regra, numa simples palavra ou expresso, com o objectivo de tornar inteligvel algum passo considerado obscuro ou de interpretao duvidosa; eram ntulas ou apostilas to breves que se inseriam entre as linhas dos manuscritos que continham os preceitos analisados - chamavam-se por isso, glosas interlineares. Com o decurso do tempo, estas interpretaes tornaram-se mais completas e extensas: passaram a referir-se tambm, no apenas a um trecho ou a um preceito, mas a todo um ttulo; escreviam-se por isso, nas margens dos textos - da adveio a designao de glosas marginais.

As glosas constituram apenas um ponto de partida. Ao lado destas, os Glosadores consoante a sua preferncia e o seu flego, dedicavam-se a outros meios tcnicos a que se d breve conta: as regulae iuris ou generalia e brocarda (princpios ou dogmas jurdicos fundamentais), os casus (meras exemplificaes de incio, exposies interpretativas mais tarde), as dissensiones dominorum (entendimentos de autores diversos sobre questes jurdicas), as quaestinoes (as diversas opinies, favorveis e desfavorveis, de certos problemas jurdicos controversos), as distinctiones (anlise dos vrios aspectos em que o tema jurdico em apreo podia ser decomposto) e as summae (abordagem completa e sistemtica dos temas, apenas ao alcance do Glosadores mais famosos, superando a littera que tinha representado o seu primitivo objecto de estudo).

Um aspecto determinante, a propsito do mtodo de trabalho dos Glosadores, o respeito sagrado que tinham pelo Corpus Iuris Civilis; estudaram-no com uma finalidade prtica: a de esclarecer as respectivas normas de forma a poderem aplic-las s situaes concretas; deslumbrava-os a perfeio tcnica dos preceitos da colectnea justinianeia, que consideravam a ltima palavra em matria legislativa; o papel do jurista, nesta perspectiva, deveria reduzir-se ao esclarecimento de tais preceitos com vista soluo das hipteses que superasse e muito menos contrariasse as estatuies a contidas; neste esforo interpretativo, (os Glosadores) nunca se conseguiram desprender suficientemente da letra dos preceitos romanos, chegando a construes inovadoras. neste ltimo contexto que se lhes dirigem algumas crticas: atribui-se-lhes uma profunda ignorncia nos domnios filolgico e histrico; desconheceram as circunstncias em que as normas do direito romano haviam surgido, e isso, levou-os, por vezes, a interpretaes inexactas ou manuteno de realidades desfasadas com os novos tempos; compreende-se que assim tenha sucedido, se recordarmos a sua grande preocupao de estudar os textos justinianeus genunos e as dificuldades de penetrao do sentido desses textos.

A Escola dos Glosadores teve o perodo ureo no sculo XII. A partir do sculo XII, comearam a ser visveis os sinais de decadncia; as finalidades a que se haviam proposto estavam esgotadas; j no se estudava directamente o texto da lei justinianeia, mas glosa respectiva; faziam-se glosas de glosas. O legado cientfico acumulado por geraes sucessivas de juristas vem a ser compilada na Glosa Ordinria, Magna Glosa ou apenas Glosa; Acrsio, um dos expoentes mximos deste movimento, o seu autor; procedeu a uma seleco das glosas anteriores relativas a todas as partes do Corpus Iuris Civilis, conciliando ou apresentando criticamente as opinies discordantes mais credenciadas; da em diante, as cpias do Corpus Iuris Civilis apresentam-se acompanhadas da glosa acursiana; a importncia desta obra reflecte-se no facto de ser aplicada nos tribunais dos pases do Ocidente europeu ao lado das disposies do Corpus Iuris Civilis; entre ns, constituiu fonte subsidiria de direito conforme disposio expressa nas Ordenaes. Com a Magna Glosa encerra-se um importante ciclo da cincia do direito; vai seguir-se-lhe um perodo de transio para uma nova metodologia que se inicia verdadeiramente no sculo XIV; os juristas deste perodo intermdio recebem a designao de ps-acrursianos ou ps-glosadores.

NOTA:

- Diviso do Corpus Iuris Civilis adoptada pelos Glodadores:

1 - Digesto Velho - Livros I a XXIII, mais os dois primeiros ttulos do Livro XXIV2 - Digesto Esforado - Livros XXIV (desde o ttulo III9 at ao Livro XXXVIII

3 - Digesto Novo - Livro XXXIX a Livro L (fim do Digesto)

4 - Cdigo (codex) - nove livros

5 - Volume Pequeno - trs livros.1.4. Difuso do direito romano justinianeu e da obra dos Glosadores

Dois importantes motivos esto na origem da difuso do direito romano justinianeu e da obra dos Glosadores: a permanncia de estudantes estrangeiros em Bolonha e a fundao de Universidades nos vrios Estados europeus. A fama de Irnrio e seus continuadores expandiu-se rapidamente; Bolonha tornou-se, em pouca dcadas, o centro para onde convergia um nmero avultado de estudantes oriundos de diversos pases europeus, muito dos quais eram j possuidores de uma razovel formao jurdica; de volta s suas terras, e graas especializao obtida em Bolonha, no raras vezes, atingiam posies cimeiras no campo do ensino ou da vida jurdica; em concluso, pode-se afirmar com segurana, que a introduo do direito romano renascido nos vrios pases europeus, mais do que a imposies dos poderes pblicos, foi sobretudo atravs da aco de juristas de formao universitria adquirida em Bolonha, que encontrou o seu veculo difusor. Todavia, um outro facto concorreu decisivamente para a difuso romanstica; se inicialmente, era necessrio ir a Itlia fazer a aprendizagem jurdica, pouco a pouco, ela tornou-se possvel nos diversos pases europeus; com efeito, assiste-se durante os sculos XII e XIII, criao progressiva de Universidades, onde se cultivam os ramos do saber que ento constituam o ensino superior; entre estes, figurava o direito cannico e o direito romano das colectneas justinianeias; saliente-se a propsito, que nesta altura a designao Universidade no tinha ainda o significado actual de escola superior, mas sim o de corporao de mestres e escolares; a origem das Universidades dspar: as primeiras surgiram espontaneamente, como que consuetudinariamente (ex consuetudine); outras resultaram de um desmembramento ou separao de uma outra (ex secessione); finalmente, outra ainda, encontra a sua gnese, na iniciativa de um soberano (ex privilegio). A Pennsula Ibrica no constituiu excepo a este princpio; eram indicadores de introduo do direito romano renascido, j nos finais do sculo XII, as regies hispnicas que tinham maior contacto com o resto da Europa - seria o caso da Catalunha; contudo, e em bom rigor, apenas ao longo do sculo XIII, que o movimento romanstico atingiu verdadeiramente os pases aqum-Pirenus; em Portugal, no obstante o conhecimento dos textos dos Glosadores por parte de alguns colaboradores dos nossos primeiros reis (Mestre Alberto, chanceler de Afonso Henriques, o Mestre Julio e o Mestre Vicente, so disso exemplo), por fora de algum relacionamento com a Itlia e a Frana, no se pode ainda falar de um novo surto jurdico ou de uma recepo efectiva da romanstica e da canonstica medievais; esta recepo do direito romano renascido foi, portanto, um movimento progressivo e moroso; mais rpido e eficaz nos meios prximo da corte e dos centros de cultura eclesistica do que nos pequenos ncleos populacionais; para que se possa falar de efectiva recepo do direito romano renascido, torna-se necessria a prova de que este tenha entrado definitivamente na prtica dos tribunais e do tabelionato, que exercia influncia concreta na vida jurdica do pas.

1.5. Factores de penetrao do direito romano renascido na esfera jurdica hispnica e portuguesa

Importa agora referir alguns elementos determinantes na penetrao do direito romano renascido nos estados Peninsulares; de um modo geral, a recepo desse direito fez-se a partir das mesmas causas verificadas noutros pases europeus, assumindo desde logo particular relevncia, as j aludidas presenas de estudantes peninsulares em Bolonha e a criao de universidades; citemos ento, sucintamente, essas causas:

a) Estudantes peninsulares em escolas jurdicas italianas e francesas e jurisconsultos estrangeiros na Pennsula - existem testemunhos de uma presena significativa (desde os comeos do sculo XIII) de estudantes peninsulares, com predomnio de eclesisticos, em centros italianos e franceses do ensino de direito (as preferncias, contudo, recaiam na Universidade de Bolonha); dentro destes legistas e canonistas, vulgarmente apelidados de letrados, atinge particular notoriedade um jurista portugus: Joo de Deus; estes letrados, semelhana do que acontecia com alguns famosos jurisconsultos estrangeiros que ascendiam, muitas vezes, a chanceleres e conselheiros dos monarcas, acabavam por ocupar lugares destacados do ensino, na carreira eclesistica e na poltica;

b) difuso do Corpus Iuris Civilis e da Glosa - naturalmente, que os estudantes quando regressavam do estrangeiro, traziam consigo, via de regra, os textos relativos disciplina que cultivavam; compreende-se deste modo, a enorme difuso e multiplicao do Corpus Iuris Civilis e da respectiva Glosa; tal ocorrncia, veio a revelar-se como um instrumento determinante e histrico no incremento do direito comum;

c) ensino do direito romano nas Universidades - o surto universitrio no tardou a espalhar-se Pennsula; entre ns, sabe-se que foi no tempo de D. Dinis que surgiu o Estudo Geral (discute-se a data exacta da sua criao, que deve ter ocorrido entre 1288 e 1290); a sede da Universidade foi transferida diversas vezes entre Lisboa e Coimbra, mas o que importa salientar que os cursos jurdicos ocuparam desde o comeo uma posio destacada no mbito do nosso Estudo Geral (recorde-se a bula do Papa Nicolau IV, de 9 de Agosto de 1290, que confere nossa Universidade, a possibilidade de licenciar em direito cannico e direito civil, podendo os diplomados ensinar em toda a Cristandade);

d) legislao e prtica jurdica de inspirao romansitica - releva-se a importncia da influncia do direito comum nas leis e noutras fontes jurdicas nacionais, bem como, ao nvel da prtica jurdica, com particular incidncia no domnio tabelinico.

e) obras doutrinais e legislativas de contedo romano - enquadram-se no movimento global de difuso romanstica peninsular, algumas obras jurdicas, de ndole doutrinal e legislativa, inicialmente escritas em castelhano e posteriormente traduzidas para portugus, o que revela a sua importncia, inclusive como fontes subsidirias; salienta-se o Fuero Real, que basicamente consistiu numa compilao das normas jurdicas municipais baseada em preceitos do Cdigo Visigtico, e, as Siete Partidas, que constituram uma exposio jurdica de carcter enciclopdico, essencialmente inspirada no sistema de direito comum romano-cannico.

1.6. Escola dos Comentadores

Durante o sculo XIV desenvolveu-se uma nova metodologia jurdica - a Escola dos Comentadores, assim chamada porque os seus representantes utilizavam o comentrio como instrumento de trabalho caracterstico; semelhana do que ocorreu com os Glosadores a respeito da glosa. Dois aspectos explicam o aparecimento desta nova orientao do pensamento jurdico: a decadncia da Escola dos Glosadores e o prestgio e a generalizao do mtodo dialctico ou escolstico; esta nova filosofia, caracteriza-se, antes do mais, por uma aberta utilizao da dialctica aristotlica no estudo do direito: os novos esquemas de exegese dos textos legais so agora acompanhados de um esforo de sistematizao das normas e dos institutos jurdicos muito mais perfeito do que o dos Glosadores; encara-se a matria jurdica, predominantemente, de uma perspectiva lgico-sistemtica e no, sobretudo, exegtica; para tanto, articulam-se parmetros analticos, filolgicos e sintticos; a atitude do Comentadores foi de grande pragmatismo - voltaram-se para a dogmtica dirigida soluo dos problemas concretos; em vez de estudarem os prprios textos romanos, aplicaram-se, de preferncia, s glosas e, depois, aos comentrios sucessivos que sobre elas iam sendo elaborados; ao lado de tais elementos, socorreram-se de outras fontes, designadamente de costumes locais, dos direitos estatutrios e do direito cannico, chegando assim, criao de novos institutos e de novos ramos de direito; o perodo mais criativo dos Comentadores decorre dos comeos do sculo XIV aos meados do sculo XV, e, tem em Brtolo o seu mximo intrprete; assim como Irnrio simboliza o sculo XII e Acrsio o sculo XIII, Brtolo o jurisconsulto mais famoso do sculo XV, quer pela sua extensa produtividade, quer pela influncia que exerceu; os seus comentrios adquiriram prestgio generalizado, tornando-se, no raras vezes, fonte subsidiria de direito no ordenamento jurdico de vrios pases europeus (em Portugal, as Ordenaes determinaram a sua aplicao supletiva ao lado da Glosa de Acrsio).

Os aspectos bsicos da metodologia dos Comentadores foram a utilizao dos esquemas mentais dialcticos ou escolsticos, o afastamento crescente da estrita letra dos textos justinianeus, interpretados ou superados de maneira desenvolta, a utilizao de um sistema heterogneo de fontes de direito e o acentuado pragmatismo das solues. Tudo isto contribuiu decisivamente para um avano significativo da cincia jurdica e a sua maior conformidade s necessidades da poca; daqui resultaram os alicerces de instituies e novas disciplinas que no tinham assento no direito romano: direito comercial e martimo, direito internacional privado, direito civil, direito penal e direito processual.

Ao longo da segunda metade do sculo XV, inicia-se o declnio dos Comentadores; o seu mtodo escolstico tinha permitido descobrir o verdadeiro esprito (ratio) dos preceitos legais; no entanto, logo que se passou a um emprego rotineiro, conduziu estagnao e mera repetio de argumentos e de autores; segue-se um perodo de uso e abuso do princpio da autoridade e o excesso de casusmo; os juristas perderam a preocupao da originalidade, limitando-se agora, a enumerar e citar, a propsito de cada problema, no s todos os argumentos favorveis e desfavorveis a determinada soluo, mas tambm a lista de autores num e noutro sentido - a opinio comum ou mesmo a opinio mais comum, assim obtida, era considerada a exacta.

1.7. O direito cannico e a sua importncia

Abordou-se at agora o problema do renascimento do direito romano e da correspondente recepo em Portugal. Cabe de seguida, aludir renovao simultnea verificada no mbito do direito cannico e influncia que exerceu entre ns.

1.8. Conceito de direito cannico

Entende-se por direito cannico, o conjunto de normas jurdicas que disciplinam as matrias da competncia da Igreja Catlica; entre outras designaes que tem recebido, destaca-se a de direito eclesistico; as fontes de direito cannico, quanto ao seu modo de formao, podem ser de duas espcies; a saber:

a) Fontes de direito divino - constitudas pela Sagrada Escritura (Antigo e Novo Testamento) e pela Tradio (ensinamentos e preceitos de Jesus Cristo no consignados por escrito, mas s transmitidos oralmente);

b) Fontes de direito humano - s fontes atrs citadas, acrescentou-se o costume (influncia romana), j pertencente aos modos de formao do direito humano; so inmeras, a partir do sculo IV, as normas jurdico-cannicas derivadas das fontes de direito humano: os decretos ou decretais dos pontfices romanos (quanto forma podem ser bulas, breves, etc.); as leis ou cnones dos conclios ecumnicos; os diplomas emanados de autoridades eclesisticas infra-ordenadas (bispos, superiores de ordens religiosas); concrdias ou concordatas (acordos entre o monarca e a Santa S; a doutrina e a jurisprudncia, integradas, respectivamente, pela obra cientfica dos canonistas e pelas decises da jurisdio eclesistica.

1.9. O direito cannico anteriormente ao sculo XII

Em geral qualificado como perodo do direito cannico antigo; a uma primeira fase caracterizada pela quase exclusividade das chamadas fontes de direito divino, seguiu-se o progresso do costume e das outras fontes de direito humano; no admira, que a breve trecho, se sentisse a necessidade de colectneas que reunissem e sistematizassem essas normas; exemplos mais importantes: os Capitula Martini (563) e a Collectio Hispana, tambm conhecida por Collectio Isidoriana (633); esta ltima, mandada elaborar pelo Concilio de Toledo, recebeu mais tarde aprovao oficial do Papa Alexandre III para a Igreja hispnica; continha normas dos conclios peninsulares, entre os quais se contam os de Braga que assim passaram ao Decreto Graciano; o desenvolvimento do direito cannico postulava uma crescente necessidade do seu estudo.

1.10. Movimento renovador do direito cannico

Verifica-se a partir do sculo XII em diante uma grande renovao na esfera do direito cannico; representa um facto histrico paralelo ao incremento dado ao estudo do direito romano, que encontra idnticas ou aproximadas causas justificativas; no se afigura, contudo, considerar correcto que existiu um renascimento canonstico (qualificativo j objecto de reticncias relativamente ao direito romano), dado que, em boa verdade, nunca houve qualquer quebra de continuidade na evoluo jurdico-cannica, ou seja, o direito da Igreja sempre conheceu uma linha de progresso; nesta poca, ocorre to-s um impulso de transformao normativa e dogmtica que, ao lado do sucedido com o direito romano justinianeu, teve os seus pressupostos no sculo XI; dois vectores caracterizam, de facto, a renovao canonstica:

a) Colectneas de direito cannico - tendncia para a uniformizao e centralizao deste sistema jurdico - o Decreto de Graciano, elaborado por volta de 1140, significa um marco importante na evoluo do direito cannico: Joo Graciano, monge e professor em Bolonha, procurou fazer uma sntese e compilao dos princpios e normas vigentes, numa perspectiva de coordenar, harmonizar e esclarecer preceitos de diversas provenincias, agrupando-os de forma sistemtica e no cronolgica ou geogrfica (preocupao de autonomizao do direito cannico perante a teologia); seguiram-se as Decretais de Gregrio IX, que so uma colectnea de normas pontifcias posteriores obra de Graciano, promulgadas pelo Papa em 1234, divididas em cinco livros, que revogam as disposies cannicas subsequentes ao Decreto nela no includas; o Decreto e as Decretais completavam-se, numa relao idntica ao que acontecia entre Digesto e Cdigo, em sede de direito romano; continuaram a publicar-se numerosas epstolas pontifcias, das quais se destacam o Livro Sexto ou Sexto de Bonifcio VIII (a designao deriva da sua complementaridade relativamente s Decretais, que eram compostas por cinco livros) e as Clementinas, editadas pelo Papa Clemente V, decorrido o Conclio de Viena (Frana), em 1311/1312, que se emanou a compilao dos cnones dele resultantes, acrescentados de decretais prprias; encerram esta srie mais duas compilaes de ndole privada: por volta de 1500, deram-se estampa, pela primeira vez, as quatro colectneas atrs referidas, acrescidas com os decretais posteriores a 1317, agrupando-as em seces distintas: numa, as de Joo XXII - Extravagantes de Joo XXII, e noutras, as dos Papas subsequentes - Extravagantes Comuns. As referidas colectneas de direito cannico, no seu conjunto, vieram a integrar o Corpus Iuris Canonici, que corresponde ao complexo das obras jurdicas romano-justinianeias inseridas no Corpus Iuris Civilis, tornou-se corrente a partir de 1580, quando Gregrio XIII aprovou a verso revista de tais compilaes anteriores.

b) renovao da cincia do direito cannico - as colectneas de direito cannico organizadas do sculo XII ao sculo XIV demonstram uma extraordinria actividade legislativa da Igreja. Confrontam-se assim, dois ordenamentos de direito comum, isto , bsicos e de vocao universal: o direito cannico e o direito romano; as relaes entre o Imprio e a Igreja, assinalam nesta poca, o problema poltico nuclear, com evidentes reflexos sobre a relevncia a atribuir aos dois sistemas normativos; esta querela desenvolvida entre canonistas e civilistas no se limitou ao campo da especulao; envolveu, igualmente, aspectos prticos; todavia, a actualizao normativa do direito da Igreja, pautou-se, essencialmente, pelos mesmos caminhos cientficos percorridos pelos seguidores do estudo do direito romano; isto , a construo do direito cannico teve lugar mediante o emprego sucessivo da metodologia dos Glosadores e do Comentadores; dito de outro modo, os processos de exegese, em especial as glosas e os comentrios, que os legistas utilizavam em face dos textos romanos foram transpostos para a interpretao das colectneas de direito cannico, nomeadamente do Decreto e das Decretais; consoante os canonistas se dedicavam primeira ou segunda dessas fontes, era-lhes dada, respectivamente, a designao de decretistas ou decretalistas.

1.11. Penetrao do direito cannico na Pennsula Ibrica

A renovao legislativa e doutrinal do direito cannico no tardaria a difundir-se pela Europa; desde cedo teve reflexos aqum - Pirinus; recorde-se que os peninsulares que se haviam deslocado aos centros italianos e franceses de ensino do direito eram na sua maioria eclesisticos, a quem as respectivas instituies proporcionavam grandes facilidades para incio ou prosseguimento de tais estudos no estrangeiro; embora se dedicassem ao estudo do direito romano, cuja dogmtica se lhes tornava necessria, orientavam-se, sobretudo, para o estudo do direito cannico; longa a lista dos decretistas e dos decretalistas com o cognome de hispanos: o caso paradigmtico (j anteriormente citado) de Joo de Deus; opera-se, igualmente, a uma divulgao considervel dos textos de direito cannico, bem como, se inclui o ensino do mesmo nas Universidades peninsulares;

este sistema jurdico aplicava-se, quer nos tribunais eclesisticos, quer nos tribunais civis ou seculares - existia, de facto, uma organizao judiciria da Igreja, ao lado da organizao judiciria do Estado; Importa, todavia, estabelecer algumas distines no mbito de aplicao do direito cannico naquelas duas vertentes:

a) nos tribunais eclesisticos - o direito cannico, apresentava-se antes de tudo, como o ordenamento jurdico prprio dos tribunais eclesisticos; a competncia destes fixava-se em funo de dois fundamentos: em razo de matria, onde se integram as questes inerentes ao matrimnio, aos bens da Igreja, aos testamentos com legados e demais benefcios eclesisticos, e, em razo da pessoa, que determinava que certas pessoas apenas podiam ser julgadas por estes tribunais (os clrigos, ainda que a contraparte no possusse a mesma qualidade);

b) Nos tribunais civis - discute-se quanto a saber se alguma vez vigorou, entre ns, como fonte imediata e mesmo prevalecente sobre o direito nacional; a opinio generalizada manifesta-se em sentido afirmativo, com base numa deciso tomada por D. Afonso II, em 1211, no decurso da Cria de Coimbra; em todo o caso, ainda que tenha sido, num primeiro momento, direito preferencial, o sistema jurdico-cannico passaria, a breve prazo, ao plano de fonte subsidiria, portanto, que s intervinha na ausncia do direito ptrio.

1.12. O direito comum

Designa-se direito comum (ius commune), o sistema normativo de fundo romano que consolidou com os Comentadores e constitui, embora no uniformemente, a base da experincia jurdica europeia at finais do sculo XVIII; alude-se, ainda, a direito comum romano-cannico, ou, em paralelo, a direitos comuns (iura communia), o que salienta a relevncia deste segundo elemento (ius canonicum); deste modo, a expresso, tanto se encontra usada, restritivamente, para abranger apenas o sistema romanstico, como, num sentido amplo, que compreende tambm outros segmentos integradores, muito em especial o cannico, mas no esquecendo o germnico e o feudal; ao direito comum contrapunham-se os direitos prprios (iura propria), quer dizer, os ordenamentos jurdicos particulares (direitos locais ou dos vrios Estados, normalmente justificados por razes de natureza poltica e econmica); de um modo geral, durante os sculos XII e XII, o direito comum, pelo menos num plano terico, sobreps s fontes que com ele concorreram; nas centrias seguintes assiste-se a um perodo de aparente equilbrio, pois os direitos prprios foram-se afirmando como fontes primaciais dos respectivos ordenamentos e o direito comum tendeu a passar aos simples posto de fonte jurdica subsidiria; o termo desse ciclo, d-se nos incios do sculo XVI com a independncia plena do ius proprium, que se torna a exclusiva fonte normativa imediata, assumindo o ius commune o papel de fonte subsidiria apenas merc da autoridade ou legitimidade conferida pelo soberano, que personificava o Estado.

1.13. Fontes do direito portugus desde os meados do sculo XIII at s Ordenaes Afonsinas

a) Legislao geral transformada na vontade do monarca - importa agora, referir as fontes do direito portugus deste perodo, ou seja, anterior s Ordenaes Afonsinas, que marcam a autonomizao progressiva em face das ordens jurdicas dos outros Estados peninsulares. A partir de Afonso III, parece existir uma supremacia das leis gerais no quadro das fontes de direito; todavia, era ainda o costume que configurava o grande lastro jurdico da poca, no obstante a lei passar a ter o predomnio entre os modos de criao dos preceitos novos - a est uma evidente influncia romano-canonstica: os dois aspectos denunciam um nexo de reciprocidade; a recepo, maxime, do direito romano justinianeu veio favorecer a actividade legislativa do monarca, e, vice-versa, o desenvolvimento da legislao geral fomentou a divulgao dos preceitos do direito romano e do direito cannico; o surto legislativo resulta grandemente da autoridade rgia; a difuso dos princpios romanos do primado dos poderes pblicos ilimitados do monarca nas esferas executiva, legislativa e judiciria, para isso muito concorreram; o caminho da centralizao poltica, em que o rei polariza a criao do direito: a lei passa a ser no s um produto da vontade do soberano, mas ainda a sua actividade normal - vive-se, nesta poca, o apogeu das constituies imperiais (vid estud do Direito Romano - 1 semestre) - a lei a vontade do monarca e ele est acima dela; a lei deixa de ser uma fonte espordica e transforma-se no modo corrente de criao de direito; o monarca passa a recorrer ao apoio tcnico de juristas de formao romanstica ou canonstica; tornou-se frequente a utilizao de tabelies para dar publicidade aos preceitos legais; consoante a importncia da lei, variava o seu prazo e a sua periodicidade; tambm o incio da vigncia da lei no obedecia a um regime uniforme; prtica corrente era a da aplicao imediata; contudo, conhecem-se diplomas em que se fixava uma vacatio legis mais ou menos extensa;

b) Resolues rgias - tratavam-se de providncias legislativas tomadas pelo monarca (independentemente das que ele proclamava nas Cortes), perante solicitaes ou queixas que lhe eram presentes; sempre que continham normas a observar para futuro, estava-se perante autnticas leis do ponto de vista substancial; apenas diferiam dos diplomas que o rei elaborava de motu proprio pelo processo de formao;

c) Decadncia do costume como fonte de direito - face a estas circunstncias, fcil de perceber a crescente perda de importncia do costume como fonte de criao de direito novo, plano em que cedeu a primazia lei; os jurisconsultos passam a considerar os preceitos consuetudinrios, no j, apenas, na perspectiva de uma manifestao tcita do consenso do povo, mas, tambm, como expresso da vontade do monarca; ou seja: se o rei no publica leis contrrias ao costume, revogando-o, porque tacitamente o aceita.

d) Forais e foros ou costumes - a importncia dos forais manteve-se com D. Afonso III e D. Dinis; contudo, a partir de D. Afonso IV, praticamente deixaram de se outorgar forais, em benefcio de uma outra e relevante fonte de direito local: os foros ou costumes; d-se o nome de foros ou costumes a certas compilaes medievais concedidas aos municpios ou simplesmente organizadas por iniciativa destes; tratam-se de codificaes que estiveram na base da vida jurdica do concelho, abrangendo normas de direito poltico e administrativo, normas de direito privado, como as relativas a contratos, direitos reais, direito da famlia e sucesses, normas de direito penal e de processo; so na verdade fontes de alcance muito vasto, que do incio a uma nova era na codificao do direito peninsular, porquanto, no obstante as deficincias da tcnica prprias da poca, j se procuram expor neles duma maneira completa e ordenada as normas de direito consuetudinrio, fixando-as com preciso e dispondo-as num sistema; os elementos utilizados na elaborao destas colectneas tinham provenincia diversa: ao lado de efectivos preceitos consuetudinrios, encontram-se sentenas de juzes arbitrais ou de juzes concelhios, opinies de juristas, normas criadas pelos prprios municpios a respeito de polcia, higiene e economia, e at mesmo normas jurdicas inovadoras de natureza legislativa; convir observar que os foros ou costumes se agrupam em famlias e que o estudo dessas reas jurdicas de fixao do direito consuetudinrio medieval apresenta, sob vrios aspectos, grande interesse histrico;

e) Concrdias e concordatas - resta salientar que sempre persistiram mltiplos diferendos, entre o clero e a realeza, aps a subida ao trono de D. Afonso III; da que aumentassem os acordos que lhes punham termo, quer celebrados com as autoridades eclesisticas do Reino, quer directamente com o Papado;

f) Direito subsidirio - apenas a partir das Ordenaes Afonsinas, o legislador estabeleceu uma regulamentao completa sobre o preenchimento de lacunas; at ento, o problema era deixado ao critrio dos juristas e dos tribunais; quando as fontes jurdicas portuguesas no forneciam soluo para hipteses concretas, recorria-se em larga escala ao direito romano e ao direito cannico, assim como ao direito castelhano; na generalidade, os juzes apresentavam-se no preparados para um acesso directo s fontes romano-cannicas; da, que numa primeira fase, se hajam utilizados textos de segunda mo, quer dizer, influenciados por essas fontes; assim se explica, que circulassem no nosso pas, com o carcter de fontes subsidirias, certas obras de provenincia castelhana; a aplicao supletiva destas obras apenas derivava da autoridade intrnseca do contedo romano-cannico que lhes servia de alicerce; tanto assim, que a sua utilizao abusiva (especialmente das Partidas), em detrimento dos preceitos genunos de direito romano e de direito cannico, foi objecto, de protestos levados at ao rei. Entendia-se, em sntese, que as fontes subsidirias se circunscreveriam ao direito romano e ao direito cannico, onde quer que se contivessem; comearam, ento lentamente, a proceder-se traduo de alguns importantes textos legislativos (as Decretais de Gregrio IX em 1359 e o Cdigo de Justiniano, acompanhado da Glosa de Acrsio e dos Comentrios de Brtolo, em 1426); o monarca determinou, inclusive, que se fizessem resumos interpretativos dos vrios preceitos, sempre que se tornassem necessrios, com o objectivo de evitar discrepncias jurisprudenciais. No houve o intuito de promover o direito romano a fonte imediata de direito, mas to-s de assegurar a sua correcta aplicao a mero ttulo subsidirio; todavia, muitas tero sido as preteries indevidas das normas jurdicas nacionais, bem como, tambm so frequentes, no mbito subsidirio, as sobreposies de fontes indirectas s que proporcionavam o conhecimento genuno dos preceitos romansticos e canonsticos.

NOTA:

- o direito castelhano no era reconhecido como direito subsidirio embora na prtica se verificasse o recurso a esse direito castelhano.1.14. Colectneas privadas de leis gerais anteriores Ordenaes Afonsinas

O progressivo acrscimo de diplomas avulsos tornava necessria a sua compilao: todas as publicaes anteriores s Ordenaes Afonsinas apresentam o trao comum de no terem sido objecto de promulgao; apenas duas chegaram at ns; o saber:

a) Livro das Leis e Posturas - a mais antiga; a sua elaborao situa-se nos fins do sculo XIV ou princpios do sculo XV; no se encontra nesta obra o propsito de coordenar a legislao, mas apenas o de coligi-la; daqui se infere da ausncia de um plano sistemtico e da repetio de alguns textos, em diversos lugares, com variantes significativas.

b) Ordenaes de D. Duarte - trata-se de uma colectnea privada que deriva o nome por que conhecida do simples facto de ter pertencido biblioteca de D. Duarte, o qual lhe acrescentou um ndice da sua autoria e um discurso sobre as virtudes do bom julgador.

1.15. Evoluo das instituies

Produziu-se nesta poca, uma crescente penetrao das normas e da cincia dos direitos romano e cannico, com progressiva substituio do empirismo que predominava na vida jurdica da fase precedente; mostram-se significativas as alteraes realizadas nos domnios do direito pblico e na esfera do direito privado; a defesa da ordem jurdica torna-se encargo exclusivo do Estado; verifica-se a ciso entre o direito civil e o processo criminal, sobrepondo-se, no segundo, o sistema inquisitrio, ou seja, de actuao oficiosa, ao antigo sistema acusatrio; no mbito do direito criminal, de acordo com uma progressiva publicizao, observa-se certa tendncia para o predomnio das penas corporais, em detrimento das penas pecunirias, acentuando-se assim, o seu fim repressivo; em sede de direito privado, verificam-se profundas modificaes nas instituies familiares e sucessrias; despontam igualmente novas doutrinas, quer sobre contratos e obrigaes, quer sobre os modos de aquisio da propriedade, a posse, a enfiteuse, as servides, a hipoteca, o penhor e outros institutos; as influncias do direito cannico manifestam-se tambm na famlia, mas so mais expressivas nos domnios da posse, do usucapio e do direito e processo criminais.

NOTAS:

- por influncia do direito romano, surge a ideia dos recursos; os novos meios de tutela (preferencialmente documentais) vo estimular o aparecimento dos recursos para instncia jurdico superior.

2. POCA DAS ORDENAES

2.1. Ordenaes Afonsinas

Surgem na sequncia de insistentes pedidos formulados em Cortes, no sentido de ser elaborada uma colectnea do direito vigente que evitasse as incertezas derivadas da grande disperso e confuso das normas, com graves prejuzos para a vida jurdica e a administrao da justia. D. Joo I viria a atender a esses pedidos, mas apenas em 1446/1447 (no possvel afirmar uma data exacta), se procede publicao das Ordenaes, em nome de D. Afonso V (recorde-se que os trabalhos duraram os reinados de D. Joo I e de D. Duarte, cabendo ao Infante D. Pedro, regente na menoridade de D. Afonso V, o papel de grande impulsionador da concluso da obra); difcil se torna precisar o incio da sua vigncia, dada a inexistncia na poca, de uma regra definida sobre a forma de dar publicidade aos diplomas legais e o incio da correspondente vigncia. Com as Ordenaes Afonsinas procurou-se, essencialmente, sistematizar e actualizar o direito vigente; na sua elaborao, utilizam-se diversas espcies de fontes anteriores: leis gerais, resolues rgias, concrdias, concordatas e bulas, inquiries, costumes gerais e locais, estilos da Corte e dos tribunais superiores, e, ainda normas extradas das Siete Partidas e preceitos de direito romano (leis imperais ou direito imperial), de direito cannico (santos cnones ou decretal) e aluses ao direito comum. Quanto tcnica legislativa, empregou-se, via de regra, o estilo compilatrio; isto , transcrevem-se na ntegra, as fontes anteriores, declarando-se depois os termos em que esses preceitos eram confirmados, alterados ou afastados; noutras passagens da obra (o Livro I, por exemplo), recorreu-se ao estilo decretrio ou legislativo, que consiste na formulao directa das normas sem referncia s suas eventuais fontes anteriores. Talvez por influncia dos Decretais de Gregrio IX, as Ordenaes Afonsinas encontram-se divididas em cinco livros, correspondendo a cada um, certo nmero de ttulos, com rubricas indicativas do seu objecto, e estes, frequentemente, acham-se divididos em pargrafos.

NOTA:

- sistematizao das Ordenaes Afonsinas:

Livro I - 72 ttulos - regimento dos cargos pblicos.

Livro II - 123 ttulos - bens e privilgios da Igreja e direitos reais.

Livro III - 128 ttulos - processo civil, executivo e recursos.

Livro IV - 112 ttulos - direito civil (obrigaes, coisas, famlia, sucesses).

Livro V - 121 ttulos - direito e processo criminal.

As Ordenaes Afonsinas assumem uma importncia destacada na histria do direito portugus. Constituem a sntese do trajecto que, desde a fundao da nacionalidade, ou, mais aceleradamente, a partir de D. Afonso III, afirmou e consolidou a autonomia do sistema jurdico nacional no conjunto peninsular; alm disso, representam o suporte da evoluo subsequente do direito portugus; conforme se verificar, as Ordenaes que se lhes seguiram, a bem dizer, pouco mais fizeram do que, em momentos sucessivos, actualizar a colectnea afonsina; no apresentando, contudo, uma estrutura orgnica comparvel dos modernos cdigos e se encontre longe de revelar uma disciplina jurdica completa, trata-se de uma obra que nada fica a dever quando comparada com outras compilaes da poca elaboradas noutros pases europeus. A sua publicao liga-se ao fenmeno geral da luta pela centralizao poltica; por outro lado, perceptvel uma acentuada independncia do direito prprio Reino em face do direito comum, subalternizado no posto de fonte subsidiria por mera legitimao da vontade do monarca. As Ordenaes Afonsinas oferecem investigao histrica, um precioso auxiliar, no sentido de melhor conhecer certas instituies, pelo menos de um modo to completo e em aspectos que escapam nos documentos em avulso da prtica.

2.2. Ordenaes Manuelinas

Duraram pouco tempo as Ordenaes Afonsinas. J em 1505 se advogava a sua reforma. Com efeito, nesse ano, D. Manuel encarregou trs destacados juristas da poca (Rui Boto, Rui da Gr e Joo Cotrim), de procederem actualizao das Ordenaes do Reino, alterando, suprimindo e acrescentando o que entendessem necessrio. Dois motivos, se apresentam geralmente, como justificativos desta deciso de D. Manuel: a introduo da imprensa, em finais do sculo XV, em diversas vilas e cidades do pas, facilita a difuso da obra, o que a concretizar-se, afigurava-se lgico que apenas ocorresse aps uma cuidada reviso da colectnea; por outro lado, admite-se que um reinado pautado por momentos altos na gesta dos descobrimentos, estimulasse D. Manuel a ligar o seu nome a uma reforma legislativa de vulto. Depois de algumas atribulaes prprias de um empreendimento desta natureza, a edio definitiva das Ordenaes Manuelinas acaba por ter lugar em 1521 (ano em que morre D. Manuel), impondo-se, atravs de Carta Rgia de 15 de Maro de 1521, e a fim de evitar possveis confuses, a total destruio, num prazo de trs meses, das anteriores colectneas (esta destruio refere-se s vrias fases por que passou a elaborao desta obra, e, no s Ordenaes Afonsinas), sob pena de multa e degredo. Estas Ordenaes Manuelinas conservam a estrutura bsica dos cinco livros, integrados por ttulos e pargrafos; a distribuio das matrias semelhante da colectnea afonsina, assinalando-se, todavia, algumas diferenas de contedo (exemplos: a supresso dos preceitos aplicveis aos Mouros e aos Judeus, que entretanto tinham sido expulsos do pas, assim como das normas autonomizadas nas Ordenaes da Fazenda, a incluso da disciplina da interpretao vinculativa da lei, atravs dos assentos da Casa da Suplicao e algumas importantes alteraes produzidas em matria de direito subsidirio); no se pode falar de uma profunda e radical alterao do direito portugus, mas to-s, meros ajustamentos de actualizao; em termos formais, a obra marca um importante progresso de tcnica legislativa, que se traduz, sobretudo, no facto de os preceitos se apresentarem sistematicamente redigidos em estilo decretrio, ou seja, como de normas novas se tratasse; a esta vantagem corresponde um menor interesse para a reconstituio do direito precedente.

2.3. Coleco das Leis Extravagantes de Duarte Nunes do Lio

A dinmica legislativa acelerada, tpica da poca, teve como efeito que, a breve prazo, as Ordenaes Manuelinas se vissem rodeadas por inmeros diplomas avulsos; estes no s revogavam, alteravam ou esclareciam muitos dos seus preceitos, mas tambm dispunham sobre matrias inovadoras; a isto acresciam as interpretaes vinculativas dos assentos produzidos na Casa da Suplicao: eis as fundadas razes que estimulavam a imperiosa elaborao, pelo menos, de uma colectnea que constitusse um complemento sistematizado das Ordenaes, permitindo a certeza e a segurana do direito. Coube ao Cardeal D. Henrique, regente na menoridade de D. Sebastio, a escolha de Duarte Nunes do Lio, data procurador da Casa da Suplicao e possuidor de larga experincia, com vista organizao de um repositrio do direito extravagante que vigorava fora das Ordenaes Manuelinas. A colectnea (que ficou conhecida por Coleco das Leis Extravagantes de Duarte Nunes do Lio), compe-se de seis partes e disciplina matrias vrias tais como, os ofcios e os oficiais rgios, as jurisdies e os privilgios, os delitos, a fazenda real e uma lei importante de D. Joo III sobre os trmites dos processos nos tribunais; a verso final da obra, em lugar de procurar transcrever textualmente as leis e os assentos, optou por efectuar resumos ou excertos da essncia dos diversos preceitos, permitindo assim, uma consulta mais cmoda; claro que os preceitos resumidos valiam, doravante, com o sentido que se continha na sua verso sinttica. O legislador bem podia alterar o contedo dos textos condensados, mas autolimitou-se; a preocupao de fidedignidade dos extractos, insistentemente repetida no alvar de aprovao, indicava o caminho para solucionar as dvidas interpretativas que surgissem: seria o da consulta dos originais.

2.4. Ordenaes Filipinas

A Coleco das Leis Extravagantes no passou de uma obra intercalar. Impunha-se, igualmente, uma reformulao das Ordenaes Manuelinas. Foi assim, de um modo natural, que Filipe I, alis na sequncia de outras providncias tomadas na esfera do direito (destaque para a substituio da Casa do Cvel, que funcionava em Lisboa, pela Relao do Porto, a que o monarca concedeu regimento e para uma lei de reformao da justia), incumbiu alguns juristas renomados, entre 1583 e 1585, de iniciarem os trabalhos preparatrios conducentes actualizao da colectnea Manuelina; acrescia uma razo de natureza eminentemente poltica: relevar o respeito de Filipe I pelas instituies portuguesas, empenhando-se na sua actualizao dentro da tradio jurdica do Pas. Neste contexto, apenas no reinado de Filipe II, atravs da Lei de 11 de Janeiro de 1603, iniciam a sua vigncia (as Ordenaes Filipinas), constituindo o mais duradouro monumento legislativo operativo em Portugal (entre ns, apenas foram integralmente revogadas pelo Cdigo Civil de 1867, e, no Brasil, isso apenas sucederia em 1 de Janeiro de 1916). As Ordenaes Filipinas conservam a estrutura tradicional dos cinco livros, subdivididos em ttulos e pargrafos; mantm, igualmente, o contedo dos livros. Procedeu-se, via de regra, reunio, num nico corpo legislativo, dos dispositivos manuelinos e dos muitos preceitos subsequentes que se mantinham em vigor; a introduo de algumas normas de inspirao castelhana, (poucas, diga-se em abono da verdade), no permitem que se retire o carcter predominantemente portugus das Ordenaes Manuelinas; merece destaque, contudo, a mudana das matrias relativas ao direito subsidirio do Livro II para o Livro III, o que deixa entender uma nova filosofia de enquadramento das questes inerentes ao problema da integrao das lacunas, sem que tal ocorrncia, tenha revestido qualquer modificao intrnseca nos respectivos critrios de preenchimento. Acresce referir, uma modificao de contedo relevante: nas Ordenaes Filipinas, pela primeira vez, se inclui um conjunto de preceitos sobre o direito de nacionalidade (os naturais do Reino, de acordo com esses novos preceitos, no se determinam, exclusivamente, por recurso aos conhecidos critrios do princpio do territrio - ius soli e do princpio do sangue - ius sanguinis, mas tambm pela conjugao de ambos, porventura, com predomnio do primeiro). As Ordenaes Filipinas foram confirmadas e revalidadas por D. Joo IV, em Lei de 29 de Janeiro de 1643, na sequncia de um genrico sancionamento de toda a legislao promulgada durante o governo castelhano.

Os compiladores filipinos tiveram, sobretudo, a preocupao de rever e coordenar o direito vigente, reduzindo-se ao mnimo as inovaes; pretendeu-se assim, uma simples actualizao das Ordenaes Manuelinas; s que o trabalho no foi realizado mediante uma reformulao adequada dos vrios preceitos, mas apenas aditando o novo ao antigo; da subsistirem normas revogadas ou cadas em desuso, verificarem-se frequentes faltas de clareza e, at, contradies resultantes da incluso de disposies opostas a outras que no se eliminaram. A ausncia de originalidade e os restantes defeitos mencionados receberam, pelos fins do sculo XVIII, a designao de filipismos; essas imperfeies encontram difcil explicao fora da ideia de um respeito propositado pelo texto manuelino (propsito j atrs manifestado em relao ao respeito de Filipe I pela tradio jurdica portuguesa); bastar recordar os juristas que, seguramente, participaram nos trabalhos preparatrios para reconhecermos a sua capacidade de realizao de obra isenta, ao menos, de alguns dos graves inconvenientes assinalados.

2.5. Legislao extravagante. Publicao e incio da vigncia da lei.

A colectnea filipina ver-se-ia, sem demora, alterada ou complementada por um ncleo importante e extenso de diplomas legais avulsos: a chamada legislao extravagante; saliente-se, antes do mais, que o conceito de lei utilizado nesta poca, num sentido muito mais amplo do que aquele que se lhe atribui no direito moderno (basta pensar, que ainda se ignorava o princpio da separao dos poderes); ao tempo, qualificava-se a como lei, de um modo geral, toda e qualquer manifestao da vontade soberana destinada a produzir alteraes na ordem jurdica estabelecida; espcies de diplomas que vigoravam na poca:a) Cartas de lei e alvars: eram os mais importantes, na medida em que passavam pela chancelaria rgia; quanto ao formulrio, as cartas de lei comeavam pelo prprio nome do monarca (exemplo: Dom Manoel per graa...), ao passo que os alvars continham a simples expresso Eu ElRei...; alm disso, criou-se a prtica de, na assinatura, aparecer, respectivamente, ElRei ou apenas Rei; no que respeita durao, deviam promulgar-se em carta de lei as disposies destinadas a vigorar mais do que um ano e atravs de alvar as que tivessem vigncia inferior; desde sempre, contudo, foram-se sucedendo as excepes a estes princpios, pelo que no tardou o aparecimento dos chamados alvars de lei, alvars com fora de lei ou em forma de lei.

b) Decretos: so menos relevantes do que as figuras anteriores; no se iniciam pelo nome do monarca; dirigiam-se, as mais das vezes, a um ministro ou ao tribunal, pelo que, via de regra, terminavam com uma expresso endereada ao destinatrio; no obstante, visarem em primeira anlise, determinaes respeitantes a casos particulares, como o decurso do tempo, acabariam por conter alguns preceitos inovadores.

c) Cartas rgias: constituam verdadeiras cartas, isto , epstolas dirigidas a pessoas determinadas, que comeavam pela indicao do destinatrio, mas cujo formulrio variava consoante a sua categoria social; terminavam como os alvars (o monarca assinava-as somente com Rei).

d) Resolues: os diplomas em que o monarca respondia s consultas que os tribunais lhe apresentavam, normalmente acompanhadas dos pareceres dos juzes respectivos; embora visassem casos especficos, tendencialmente viram a ter aplicao analgica.

e) Provises: os diplomas que os tribunais expediam em nome e por determinao do monarca; levavam assinatura dos secretrios de Estado de que dimanavam; as que eram subscritas pelo prprio monarca, por vezes, confundiam-se com os alvars quanto ao seu valor legislativo; neste sentido, tomavam o nome de provises reais ou provises em forma de lei.

f) Portarias e avisos: tratavam-se de ordens expedidas pelos secretrios de Estado em nome do monarca; distinguiam-se, entre si, pelo facto de as portarias serem diplomas de aplicao geral; ao passo que os avisos de destinavam a um tribunal, a um magistrado, a uma corporao ou at a um simples particular.

No que respeita publicao e incio da vigncia da lei, as Ordenaes Afonsinas no expressam qualquer norma nesse sentido, no obstante essa ser uma das atribuies do chanceler-mor; as Ordenaes Manuelinas abordaram directamente a questo, atribuindo ao chanceler-mor, a competncias para a publicao das leis, bem como, para o envio dos traslados respectivos aos corregedores das comarcas; esta incumbncia, foi confirmada por D. Joo III atravs de um novo regimento da chancelaria-mor; as Ordenaes Filipinas limitaram-se a repetir o preceito. Durante largo tempo, manteve-se a prtica das cmaras promoverem a transcrio, em livros expressamente destinados para o efeito, os diplomas gerais e os de interesse local; do mesmo modo, os tribunais dispunham de livros prprios para o registo das leis.

Somente pelo finais de 1518 (Alvar de 10/12/1518), se providenciou acerca do incio da vigncia das leis: estas teriam eficcia, em todo o Pas, decorridos trs meses sobre a sua publicao na chancelaria e independentemente de serem publicadas nas comarcas; o preceito transitou para as Ordenaes Manuelinas, mas reduzindo-se o prazo de vacatio legis a oito dias quanto Corte; entendia-se, que nos restantes diplomas (ou seja, os no submetidos chancelaria), a sua vigncia comeava na data da sua publicao; as Ordenaes Filipinas conservaram estes prazos; recorde-se que, pela chancelaria, apenas passavam as cartas de lei e os alvars; acrescia uma dificuldade visvel: o conhecimento efectivo das leis no Ultramar; da que se estabelecesse, a partir de 1749, que as leis apenas se tornassem obrigatrias para os territrios ultramarinos depois de publicadas nas cabeas das comarcas.

2.6. Interpretao da lei atravs dos assentos

O problema da interpretao da lei com sentido universalmente vinculativo para o futuro foi disciplinado por um diploma da segunda dcada do sculo XVI; os seus dispositivos incluram-se nas Ordenaes Manuelinas e passaram s Ordenaes Filipinas; a interpretao autntica da lei constitua uma faculdade do monarca; conhecem-se numerosos diplomas interpretativos de preceitos anteriores; tambm era frequente o rei presidir s reunies dos tribunais e logo a decidir as dvidas interpretativas que se levantavam; na origem do referido diploma (Alvar de 10/12/1518) de D. Manuel I, que confere tais funes Casa da Suplicao, encontra-se o facto de se ter perdido o uso do soberano presidir a essas sesses dos tribunais superiores, em virtude da complexidade crescente da administrao, onde se analisam as vrias modalidades de assentos; determinou-se, igualmente que, surgindo dvidas aos desembargadores da Casa da Suplicao sobre o entendimento de algum preceito, tais dvidas deveriam ser levadas ao regedor do mesmo tribunal; este convocaria os desembargadores que entendesse e, com eles, fixava a interpretao que se considerasse mais adequada; o regedor das Casa da Suplicao poderia, alis, submeter a dvida a resoluo do monarca, se subsistissem dificuldades interpretativas; as solues definidas eram registadas no Livro do Assentos e tinham fora imperativa para futuros casos idnticos; surgem deste modo, os assentos da Casa da Suplicao como jurisprudncia obrigatria; trata-se do antecedente histrico dos assentos dos tribunais que esto na cpula da organizao judiciria, maxime do Supremo Tribunal de Justia. A Casa da Suplicao era o tribunal do Reino que acompanhava a Corte, mas acabaria por se fixar em Lisboa; na mesma cidade funcionava a Casa do Cvel, que constitua uma segunda instncia, competente para conhecer dos recursos das causas cveis de todo o Pas, ressalvadas as sentenas proferidas no local onde se encontrasse a Corte e cinco lguas em redor, cuja apelao iria ao tribunal da Corte, assim como para conhecer dos recursos das causas criminais provenientes de Lisboa e seu termo; com vista a descentralizar os tribunais de recurso, Filipe I, em 1582, indo ao encontro de solicitaes anteriores, deslocou a Casa do Cvel para o Porto, transformando-a na Relao do Porto; a nova Casa de Relao do Porto funcionava como tribunal de segunda instncia, quanto s comarcas do Norte, e, matria crime; e o mesmo se verificava em matria cvel, excepto se o valor da causa ultrapassasse determinado montante (alada), hiptese em que existiria possibilidade de recurso para a Casa da Suplicao; mantinha-se assim, alguma subalternidade da Relao do Porto perante a Casa da Suplicao; em todo o caso, esse tribunal ficou com grande autonomia face s comarcas do Norte, pelo que os desembargadores da Relao do Porto se arrogaram o direito de proferir tambm assentos normativos, embora nenhum texto legal lhes atribusse tal competncia; daqui resultaram naturais confuses e contradies interpretativas; esta prtica viria estender-se s Relaes criadas no Ultramar; isto , todas elas passaram a tirar assentos interpretativos. Apenas no sculo XVIII se ps cobro a este abuso; a chamada Lei da Boa Razo, de 18 de Agosto de 1769, estabeleceu que s os assentos da Casa da Suplicao teriam eficcia interpretativa.

2.7. Estilos da Corte. O costume

As Ordenaes indicam, como fontes de direito nacional, ao lado da lei, os estilos da Corte e o costume; nunca se apurou uma doutrina rigorosa quanto distino destas duas fontes de direito, tanto que mais que apresentavam o trao comum de ambas se alicerarem no uso, ou seja, serem fontes de natureza no legislativa; para certos autores, o costume resultava da colectividade, ao passo que o estilo seria introduzido pela prtica de entidades pblicas, nomeadamente pelos rgos judiciais; segundo outra corrente, que se baseava na matria disciplinada, os estilos circunscreviam-se aos aspectos de processo (praxe de julgar), deles se autonomizando os costumes, em sentido prprio, de direito substantivo, que pudessem surgir no mbito do tribunal (contedo da deciso). Entre ns, o conceito de estilo adquiriu o sentido generalizado de jurisprudncia uniforme e constante dos tribunais superiores; devia obedecer aos seguintes requisitos: 1) no se apresentar contrrio lei; 2) tivesse prescrito, quer dizer, possusse uma antiguidade de dez anos ou mais; 3) fosse introduzido, pelo menos, atravs de dois actos conformes de tribunal superior (alguns autores sustentam a ideia de serem necessrios trs actos judiciais).

O costume constituiu a fonte predominante do sistema jurdico dos comeos da nacionalidade, vindo a ceder essa posio lei a partir do sculo XIII; contudo, as Ordenaes a ele se referem expressamente; determinada a sua observncia a par da lei e dos estilos das cortes; isto , o costume mantinha a eficcia de fonte de direito, tanto se fosse conforme lei (secundum legem), ou para alm desta (praeter legem) ou se a contrariasse (contra legem). Todavia, importa observar algumas alteraes produzidas ao longo de sucessivos textos; as Ordenaes Afonsinas limitam-se a consagrar a vigncia do costume do Reino antigamente usado; as Ordenaes Manuelinas, estabelecem uma nuance: por um lado, releva-se a validade dos costumes locais no mesmo plano dos costumes gerais; por outro lado, restringem a observncia do costume, local ou geral, como fonte imediata de direito, aos casos em que a doutrina romanstica e canonstica admitisse a sua vigncia (o legislador aproximou-se dos fundamentos e dos requisitos de validade que a cincia jurdica da poca estabelecia em relao ao costume); nada pacficos se apresentavam os requisitos de validade da fora vinculativa do costume; a doutrina canonstica, aceitava a existncia de um costume contrrio lei, desde que se respeitasse os preceitos da ordem pblica; duas questes que estacavam no mbito desses requisitos de validade: a da antiguidade, exigia-se, em regra, um perodo de durao igual ou superior a dez anos, excepto se o costume fosse contra legem, para que o canonistas apresentavam o prazo mnimo de quarenta anos, e a do nmero dos actos necessrios demonstrao da sua existncia, sobre a qual variavam as opinies entre um e dez actos, mostrando-se mais seguida a que se contentava com dois actos, maxime de natureza judicial.

2.8. Direito subsidirio

Entende-se por direito subsidirio, um sistema de normas jurdicas chamadas a colmatar as lacunas de outro sistema; ser direito subsidirio geral ou especial, consoante se preencham lacunas de uma ordem jurdica na sua totalidade, ou to-s de um ramo do direito ou simples instituio; o problema do direito subsidirio encontra-se ligado ao das lacunas e mesmo ao das fontes do direito; o seu relevo encontra-se dependente de dois pressupostos: por um lado, a ausncia, tanto de um sentido de verdadeira autonomia dos diversos ordenamentos jurdicos, como da pretenso de uma auto-suficiente totalidade unitria de regulamentao jurdica do domnio ou campo do direito a que o ordenamento se destina; por outro lado, a possibilidade, em coerncia com o pressuposto anterior, de remeter o julgador para quaisquer ordenamentos jurdicos disponveis. Destes pressupostos, resultou durante largo perodo de tempo (praticamente at ao sculo XIX), que os juzes, perante a imperfeio ou a insuficincia dos sistemas jurdicos nacionais, sempre pudessem recorrer a um direito subsidirio, ou um qualquer direito pressuposto, ou mesmo, a uma outra fonte formal de direito, no sentido de ultrapassar as lacunas, em claro prejuzo do seu contributo pessoal para a constituio de direito por via integrativa.

Os postulados poltico-jurdicos e cientfico-matemticos que animaram o pensamento do sculo XIX, no se compatibilizam com aquela atitude passiva dos juzes; exige-se agora, dogmtica jurdica, o enfrentamento directo e explcito do problema das lacunas; isto , no apenas o problemas dos meios, dos critrios e dos mtodos do seu preenchimento, mas o problema das lacunas em si mesmo; concorda-se, universalmente hoje num ponto: o problema s pode ser resolvido atravs da interveno constitutivamente integrante do julgador; ou seja, sempre o julgador ter uma relativa liberdade integradora, j que haver que dar resposta jurdica aos casos de verdadeira lacuna mediante uma deciso normativamente a constituir para alm dos dados formais do direito. Neste quadro, lcito dizer-se que o problema das lacunas, em bom rigor, s surge actualmente; quer dizer, esgotadas que sejam as possibilidades directas ou indirectas (remissivas) de aplicao imediata de um prvio direito constitudo, de uma fonte formal de direito. O problema, enquanto problema especfico, apresenta-se hoje em funo dos limites e da autonomia completa dos ordenamentos jurdicos; aqum desses limites, o que pode surgir a remisso normativa intra-sistemtica de um sector ou parte diferenciada do sistema jurdico global para outro sector ou parte do mesmo sistema, que com o primeiro tem particulares relaes no seio do sistema global em que ambos participam, com vista a suprir assim as formais carncias prescritivas, seja voluntrias ou involuntrias, do parcial e dependente ordenamento remetente - nisto se cifra o actual relevo do direito subsidirio. Daqui se infere, que a importncia do direito subsidirio aumenta medida que se recua no tempo; ou seja, o seu relevo particularmente sentido nos ordenamentos que vigoravam em pocas em que a escassez e a imperfeio, eram as notas dominantes desses ordenamentos jurdicos; assim se justificavam as frequentes investidas a ordenamentos estrangeiros; este facto, desempenhou, todavia, um importante factor de aproximao jurdica e cultural dos povos, que bem se revelam na histria do direito portugus.

Analisemos, agora algumas fontes de direito subsidirias segundo as Ordenaes Afonsinas: nas colectneas afonsina que se estabeleceu, entre ns, um quadro sistemtico das fontes de direito; no mesmo plano das leis do reino, aparecem os estilos da Corte e os costumes antigamente usados: eram estas as fontes imediatas. Apenas quando a elas no se pudesse recorrer, se tornava lcito o uso do direito subsidirio, cujas principais fontes eram:

1) Direito romano e direito cannico este direito representava o primeiro recurso possvel, na impossibilidade de utilizao das j referidas fontes imediatas: aplicavam-se normas do direito romano, sempre que as questes revestiam um carcter temporal, excepto se da sua aplicao resultasse pecado; no mbito do direito cannico, integravam-se as questes de natureza espiritual, e, ainda, as questes de raiz temporal conducentes ao pecado.

2) Glosa de Acrsio e opinio de Brtolo - na impossibilidade de solucionar a questo atravs dos direitos romano e cannico, devia atender-se Glosa de Acrsio e, em seguida, opinio de Brtolo ainda que outros doutores se pronunciassem de modo diverso.

3) Resoluo do monarca - sempre que, atravs dos sucessivos elementos indicados, no se conseguisse disciplina para o caso omisso, impunha-se a consulta ao rei, cuja estatuio valeria, de futuro, para todos os feitos semelhantes; este mesmo procedimento era solicitado, quando a hiptese considerada, no envolvendo matria de pecado, nem sendo disciplinada pelos textos de direito romano, tivesse solues diversas no direito cannico e nas glosas e doutores das leis.

Vejamos agora, algumas alteraes introduzidas pelas Ordenaes Manuelinas e pelas Ordenaes Filipinas: os preceitos afonsinos sobre o direito subsidirio passaram fundamentalmente s Ordenaes Manuelinas e destas para as Ordenaes Filipinas; contudo, sofreram ampla remodelao: desde logo, e como j se referiu anteriormente, assume particular importncia, a incluso da matria no livro dedicado ao direito processual; esta transposio significa que o problema do direito subsidirio deixou de ser disciplinado a propsito das relaes entre a Igreja e o Estado, deslocando-se para o mbito do processo; conforme cita Braga da Cruz, detecta-se a, a ruptura da ltima amarra que ligava a questo do direito subsidirio ideia anterior de um conflito de jurisdies entre o poder temporal e o poder eclesistico, simbolizados, respectivamente, pelo direito romano e pelo direito cannico.

Todavia, as mudanas substanciais aparecem logo nas Ordenaes Manuelinas; a vigncia subsidiria do direito romano justificada pela sua autoridade intrnseca e no por qualquer espcie de submisso do Reino portugus ao Imprio; basicamente, so duas as diferenas essenciais de contedo que separam, no mbito do direito subsidirio, as Ordenaes Manuelinas e as Ordenaes Filipinas do precedente texto afonsino: 1) quanto aplicao dos textos de direito romano e de direito cannico, deixa-se de referir a distino entre problemas jurdicos temporais e espirituais; apenas se consagra o critrio do pecado, que fornecia o nico limite prevalncia subsidiria do direito romano sobre o direito cannico, qualquer que fosse a natureza do caso omisso; 2) a respeito da Glosa de Acrsio e da opinio de Brtolo, cuja ordem de precedncia se conserva, estabelece-se o requisito de a comum opinio dos doutores no contrariar essas fontes; relativamente a Brtolo, a restrio seria definida to-s pelos autores que tivessem escrito depois dele.

NOTA.

- Alguns autores, perante a filtragem exercida pela comum opinio dos doutores em relao Glosa de Acrsio e opinio de Brtolo, entenderam que aquela, constitua, em si mesma, uma fonte subsidiria; isto , na ausncia de direito nacional, de direito romano e de direito cannico, caberia recorrer opinio comum, antes da Glosa de Acrsio e da opinio de Brtolo.

No obstante a clareza patenteada pelo legislador, no sentido de hierarquizar as fontes de direito, a verdade que ao longo de praticamente trs sculos (at reforma pombalina), a vida jurdica portuguesa pautou-se por alguma confuso, gerada na maior parte das vezes, pelo uso e abuso das fontes subsidirias: no raro o direito ptrio era substitudo pelo direito romano, designadamente pelo prevalecimento da regra hermenutica (odiosa limitanda, favorabilia amplianda) de que as regras jurdicas do Pas deveriam receber interpretao extensiva ou restritiva, consoante se apresentassem conformes ou no a esse direito; abusava-se da opinio e comum e chegou-se, inclusive, a recorrer ao direito castelhano, que se encontrava fora das fontes de direito subsidirias.

2.9. Reforma dos forais

A anlise que tem vindo a ser feita, relativamente s fontes de direito, no ficaria completa sem uma aluso aos forais (importantes e antigas fontes de direito local); fcil ser de perceber, que a dinmica da vida jurdica, ao longo do perodo das Ordenaes, os tornaram profundamente desactualizados e mesmo obsoletos; o progressivo robustecimento do poder do rei e a uniformizao jurdica, alcanada atravs da legislao geral, iam determinando o declnio das instituies concelhias, bem ntido ao longo do sculo XV; os forais perdiam o alcance anterior, transformando-se em meros registos dos tributos dos municpios; uma parte do seu contedo estava revogada pela legislao geral; as referncias a pesos, medidas, e moedas tinham cado em desuso; a actualizao das prestaes, merc da desvalorizao monetria, originava incertezas e contrariedades. Perante este quadro, e aps sucessivas solicitaes a diferentes monarcas, concluiu-se em 1521, uma profunda reforma dos forais, imposta por D. Manuel I; deste modo surgem os forais novos ou manuelinos, por contraposio aos forais velhos, que eram os anteriores; os forais, alis em nmero reduzido, concedido depois da reforma de D. Manuel I so chamados de novssimos.

2.10. Humanismo jurdico

sabido que o Humanismo e a Renascena constituem dois fenmenos marcantes da evoluo do esprito europeu: restaurao dos textos da antiguidade clssica, seguiram-se transformaes gerais nos campos das artes, das cincias, da cultura e da filosofia; estiveram subjacentes motivos polticos, religiosos, sociais e econmicos. No mbito do humanismo renascentista inclui-se, tambm, uma natural reviso crtica da cincia do direito: essa nova mentalidade enforma a orientao da chamada Escola dos Juristas Cultos, Escola dos Jurisconsultos Humanistas; Escola Histrico-Crtica e, ainda, Escola Cujaciana. A ecloso desta nova directiva do pensamento jurdico prende-se a dois factos essenciais: o progresso do humanismo renascentista j referido e a decadncia da obra dos Comentadores (verificada durante a segunda metade do sculo XV).

A no preparao e o menosprezo dos Comentadores quanto aos aspectos histricos provocaram viva censura dos espritos cultos da poca; a deselegncia do seu estilo no se tornava menos chocante. Eis o quadro em que surgiu o humanismo jurdico quinhentista; esta nova corrente viria a desenvolver-se sob diversas tendncias: desde as filiolgico-crticas, at que reivindicava a liberdade e autonomia do jurista na exegese da lei, portanto perante a opinio comum ou a interpretao mais aceite; em qualquer caso, o postulado bsico reportava-se ao livre exame das fontes romanas. Esta atitude representou uma viragem profunda em face do pensamento dos Comentadores. Comeou a encarar-se o direito romano como uma das vrias manifestaes da cultura clssica. Trs nomes esto intimamente ligados corrente humanista: o italiano Alciato, o francs Bud e o alemo Zasio. Entre ns, Antnio de Gouveia, natural de Beja e que cedo fez os estudos em Paris. Tendo Itlia como ponto de partida, em Frana que a Escola Humanista conhece a sua mxima expresso; na Universidade de Bourges que Alciato inaugura o ensino do direito romano segundo a nova metodologia (1527/1532), que o humanismo jurdico conseguiu incremento decisivo. A poca de Cujcio (1522/1590) corresponde ao apogeu da Escola Humanista; nascido em Toulouse, depressa se torna a referncia jurdica do sculo; marca a sua extensa obra, uma rigorosa exegese histrica e filolgica do direito romano, de que resultou a consequente relativizao deste. Contudo, nem mesmo em Frana o humanismo jurdico conseguiu um triunfo absoluto sobre o bartolismo; um pouco por toda a Europa se levantaram vozes crticas Escola Huamanista; iria assistir-se, do sculo XVI ao sculo XVII, a um debate entre o mtodo jurdico francs (mos gallicus) e o mtodo jurdico italiano (mos italicus); tem-se destacado que os humanistas se envolveram demasiado na especulao pura e que, por isso, construram, sobretudo, um direito terico, de tendncia erudita, enquanto os processos dos Comentadores levaram a um direito prtico, quer dizer, utilizao do sistema romano com o esprito jurdico de encontrar solues para os casos concretos; esta sntese do contraste das duas escolas , pelo menos, tendencialmente exacta. Cumpre, desta forma, o humanismo jurdico um ciclo efmero; no venceu os critrios enraizados; contudo, lanaram-se inegveis sementes que o iluminismo viria a frutificar.

2.11. Literatura jurdica

Este captulo no precisa de ser estudado profundamente. O Dr. Vieira Cura sugeriu uma leitura superficial das pginas 320 a 327.

Houve juristas portugueses que aceitaram com maior ou menor evidncia os rumos do humanismo jurdico; tiveram, contudo, uma aco irrelevante no quadro nacional, tanto na ptica da construo cientfica, como da realidade prtica. No que diz respeito orientao humanista que reivindicava fundamentalmente a liberdade e a autonomia interpretativa dos textos, reconhece-se que no conseguiu uma sorte muito diversa: os seus reflexos em Portugal foram espordicos.

Os principais jurisconsultos portugueses do perodo que vai desde o sculo XVI aos meados do sculo XVIII costumam sistematizar-se em trs categorias: civilistas, canonistas e os cultores do direito ptrio (podiam ser comentadores, casustas e praxistas).

2.12. O ensino do direito

a) Antes de D. Joo III o ensino jurdico em Portugal recua fundao do Estudo Geral dionisiano; a confirmao da bula pontifcia de 9 de Agosto de 1290, j alude obteno dos graus acadmicos em direito cannico e direito romano. Tanto D. Joo III como D. Manuel I procuraram melhorar o nvel dos nossos estudos superiores, chamando s ctedras da Universidade alguns professores estrangeiros de nomeada e proporcionando subsdios pecunirios aos estudantes que pretendessem deslocar-se aos centros culturais de alm - fronteiras: em 1431 aparecem j expressos os graus universitrios de bacharel, licenciado e doutor: os primeiros, depois de concluda a instruo preparatria da Gramtica e da Lgica, cursavam durante trs anos, defendendo, seguidamente, em acto pblico as concluses; se pretendessem a licenciatura (o grau acadmico mais difcil de obter) estavam obrigados a uma frequncia complementar de quatro anos, antes de se submeterem aos respectivos exames; a colao do grau de doutor, era uma acto essencialmente solene onde as provas tinham reduzida importncia.

b) Instalao da Universidade de Coimbra a Universidade foi definitivamente fixada em Coimbra por D. Joo III no ano de 1537; a razo decisiva teve a ver com a profunda reforma do ensino universitrio iniciada pelos dois monarcas que o precederam; impunha-se organizar, um ensino digno da poca