Historia oficial.doc

35
Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura AS DITADURAS MILITARES NO CINEMA ARGENTINO E BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DE A HISTÓRIA OFICIAL E PRA FRENTE BRASIL Ricardo Normanha Ribeiro de ALMEIDA1 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (Prolam – USP); Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE – Unicamp) / Bolsista CAPES; Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH – Unicamp); [email protected] [email protected] Resumo: De forma sucinta, o que se pretende desenvolver neste trabalho é a compreensão das formas de representação das ditaduras militares do Brasil (1964 – 1985) e da Argentina (1976 – 1983) nas produções cinematográficas de ficção destes dois países. Para isso é necessário efetivar uma abordagem histórica dos períodos em questão, além da análise das obras de cinema dentro do espectro da narrativa fílmica, estabelecendo relações entre esta narrativa fílmica e os processos históricos. Foram escolhidos dois filmes para análise, um de cada país: História Oficial (Argentina, 1985) de Luis Puenzo e Pra frente Brasil (Brasil, 1983) de Roberto Farias Palavras-chaves: Regimes militares; História do Brasil; História da Argentina; cinema; política. 1. Introdução A escolha pelos períodos de regime militar se dá por sua relevância histórica, que lhe concede papel crucial no imaginário da população de Brasil e Argentina. Foram períodos marcados pelo terror de Estado imposto pelos militares que estavam no poder e pela tentativa de organização de uma resistência a estes regimes. Hoje, nos dois países, a memória deste tempo de horror ainda é forte e definitivamente norteadora da atuação política de diversos setores da sociedade. Considerando o cinema, documental ou ficcional, e a produção de imagens em geral como um importante elemento para a compreensão da contemporaneidade, elegi esta forma midiática como objeto de análise de um período histórico. Mais especificamente, o cinema de ficção foi uma opção, dentre muitas outras, para refletir sobre as ditaduras militares que assombraram a América Latina, sobretudo o Cone Sul. As obras cinematográficas a serem analisadas para a confecção deste trabalho são filmes de ficção produzidos no Brasil e Argentina logo após o fim dos regimes militares nestes países, ou pelo menos, nos instantes finais destes períodos. Com base Vol. 1, nº 6, Ano VI, Dez/2009 ISSN – 1808 -8473 129 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

Transcript of Historia oficial.doc

Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura AS DITADURAS MILITARES NO CINEMA ARGENTINO E BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DE A HISTÓRIA OFICIAL E PRA FRENTE BRASIL Ricardo Normanha Ribeiro de ALMEIDA1 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (Prolam – USP); Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE – Unicamp) / Bolsista CAPES; Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH – Unicamp); [email protected] [email protected] Resumo: De forma sucinta, o que se pretende desenvolver neste trabalho é a compreensão das formas de representação das ditaduras militares do Brasil (1964 – 1985) e da Argentina (1976 – 1983) nas produções cinematográficas de ficção destes dois países. Para isso é necessário efetivar uma abordagem histórica dos períodos em questão, além da análise das obras de cinema dentro do espectro da narrativa fílmica, estabelecendo relações entre esta narrativa fílmica e os processos históricos. Foram escolhidos dois filmes para análise, um de cada país: História Oficial (Argentina, 1985) de Luis Puenzo e Pra frente Brasil (Brasil, 1983) de Roberto Farias Palavras-chaves: Regimes militares; História do Brasil; História da Argentina; cinema; política. 1. Introdução A escolha pelos períodos de regime militar se dá por sua relevância histórica, que lhe concede papel crucial no imaginário da população de Brasil e Argentina. Foram períodos marcados pelo terror de Estado imposto pelos militares que estavam no poder e pela tentativa de organização de uma resistência a estes regimes. Hoje, nos dois países, a memória deste tempo de horror ainda é forte e definitivamente norteadora da atuação política de diversos setores da sociedade. Considerando o cinema, documental ou ficcional, e a produção de imagens em geral como um importante elemento para a compreensão da contemporaneidade, elegi esta forma midiática como objeto de análise de um período histórico. Mais especificamente, o cinema de ficção foi uma opção, dentre muitas outras, para refletir sobre as ditaduras militares que assombraram a América Latina, sobretudo o Cone Sul. As obras cinematográficas a serem analisadas para a confecção deste trabalho são filmes de ficção produzidos no Brasil e Argentina logo após o fim dos regimes militares nestes países, ou pelo menos, nos instantes finais destes períodos. Com base Vol. 1, nº 6, Ano VI, Dez/2009

ISSN – 1808 -8473 129 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

nas informações que consegui coletar até o momento, os filmes mais representativos desse período de declínio e fim dos regimes autoritários são Pra frente Brasil (1983), de Roberto Farias e A história oficial (1985), de Luis Puenzo. 2. O período histórico Os processos históricos pelos quais passaram a América Latina apontam para uma desastrosa, porém intensa presença de uma militarização do poder político. Essa presença hegemônica do poder militar é bastante complexa de se explicar. Há um sem número de explicações não históricas e essencialista que apontam que essa hegemonia é herança da dominação ibérica. Ainda dentro desta vertente de explicações, surge também a versão que atribui esse fenômeno à incapacidade latino-americana para a democracia, também como fruto da influência de Portugal e Espanha. Partindo para análises mais históricas, emergem explicações sobre a presença militar na América Latina como consequência da participação das forças armadas nos processos de independência, no século XIX. Mas, ressalta Rouquié (1984), muitos dos países que tiveram suas independências comandadas pelas forças armadas e que passaram pelo “caudilhismo”, não foram acometidos por regimes militares no século XX. Há também explicações que tentam associar militarismo com o subdesenvolvimento. Essa é uma tendência muito grande nos estudos sobre o tema. Coloca-se a necessidade de autoritarismo para a acumulação de capital, como preconizam alguns teóricos da modernização. No entanto, diversos indicadores demonstram que a intervenção militar em alguns países não propiciou um desenvolvimento econômico significativo. Além disso, outros países que viviam sob o julgo militar no Cone Sul não podiam ser considerados atrasados economicamente. Brasil e Argentina, como membros da América Latina, sofreram com os processos de militarização do poder político. E, apesar destes processos serem semelhantes até por sua localização temporal, é fundamental estabelecermos algumas características que os diferenciam, tendo em vista, por exemplo, os antecedentes históricos de cada um. Além disso, percebe-se na história de cada um destes países um distanciamento mútuo. Ambos tinham relações mais fortes com os países centrais do Ocidente do que entre eles. Assim, Brasil e Argentina se percebem, historicamente, como diferentes. Apenas recentemente, após a transição democrática dos anos 80 e 90, Vol. 1, nº 6, Ano VI, Dez/2009 ISSN – 1808 -8473

130 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

alguns laços, sobretudos os comerciais, aproximaram estes dois países. Segundo Boris Fausto e Fernando Devoto (2004), ao se realizar uma análise comparativa entre Brasil e Argentina não se chega nem à conclusão de que são duas “histórias e vidas paralelas” nem de que existe um “destino histórico comum” (pp.25). De qualquer forma, os estudos comparativos entre Brasil e Argentina apontam para uma heterogeneidade das dimensões públicas e políticas destes países. No entanto, o Estado surge como um elemento unificador, desempenhando um papel central na construção de Brasil e Argentina. Já a sociedade civil nestes países não se submete a nenhuma forma de homogeneização, tendo em vista que se define pelas experiências concretas, vividas pelos povos de cada país. De forma geral, como nos indica Fausto e Devoto, a sociedade argentina se coloca como protagonista dos processos históricos e sociais deste país, enquanto que no Brasil este papel principal é desempenhado pelo Estado. Alain Rouquié nos revela que desde a década de 1930 o “fator militar” já é considerado um participante legítimo da vida política da América Latina. Assim, o golpe de 1976 na Argentina não foi nenhuma surpresa. Este país viveu sob a tutela marcial desde os anos 30, ainda que de forma descontínua. Mesmo quando civis ocupavam a Presidência, eleitos pelo voto “democrático” (fazendo muitas ressalvas a este termo), os militares exerciam forte influência sobre o poder político. Beired (1996) afirma que a partir de 1930, dois novos atores entram em cena na vida política argentina: nacionalistas e militares. Em 1930, a sociedade argentina assiste uma intervenção militar que coloca fim a uma era de ampla participação política que perdurava desde 1916. A partir daí há uma grande sucessão de regimes civis e militares, ou mistos. Até 1973, a grande preocupação que ronda a alternância no poder argentino é a preocupação em promover uma integração das massas sem que isso representasse riscos para o status quo. Os sucessivos golpes almejavam barrar qualquer tipo de ascensão popular promovida pelo peronismo. Os diversos presidentes que chegam ao poder a partir da década de trinta, sendo eles militares ou civis, são vigiados por um exército dividido entre o conservadorismo militar e o peronismo. A atuação das forças armadas está além da simples intervenção em momentos especiais e revela-se muito mais uma atuação de um partido militar. O último período de regime militar na Argentina tem início na noite de 24 de março de 1976, quando o general Jorge Rafael Videla assume o cargo deixado pela presidente Isabelita Perón. Nesta data se dá o início do mais sangrento período da Vol. 1, nº 6, Ano VI,

Dez/2009 ISSN – 1808 -8473 131 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

história recente argentina, que José Meirelles Passos (1986) chama de “a longa noite dos generais”. Para o governo que se instalava na casa Rosada a partir desta data, a severa repressão era uma condição sine qua non para combater o espectro da esquerda e do peronismo e para instaurar uma nova ordem econômica e social. Acusados de terroristas, inúmeras organizações políticas entraram na ilegalidade, como centrais sindicais e partidos políticos. Para o general Videla, terrorista não era apenas aquele que portava uma arma ou ameaçasse explodir uma bomba, mas também aqueles que difundissem idéias contrárias à civilização Cristã Ocidental. Para efetivar sua proposta de “combate ao terror” os militares argentinos realizaram uma excêntrica caça às bruxas contra os diversos grupos de oposição, dando destaque para os operários e a juventude. A experiência militar no Brasil é bastante diferente. Tradicionalmente as Forças Armadas, que sempre estiveram presentes nos principais momentos da nossa história política, apenas intervinham de forma a garantir a “democracia” e a institucionalidade. Foi assim na derrubada do Império e Proclamação da República, na queda da República Oligárquica e na destituição do Estado Novo em 1937. Essa atuação militar antes do golpe de 1964 confere às Forças Armadas o status de “poder moderador”, tendo em vista que a intervenção só se daria no sentido de evitar crises e garantir o equilíbrio no cenário político. É uma atuação não-ativa e não-criadora, mas que busca a manutenção de uma ordem estabelecida. É portanto um poder conservador. Esta participação não autoritária das forças armadas na história brasileira, muitas vezes toma a conformação de uma participação democrática. No entanto, vale ressaltar que mesmo não sendo necessariamente autoritárias, as intervenções militares na cena política muitas vezes se configuraram contra um regime democrático constitucional, como percebe-se em 1937 na criação do Estado Novo, em 1954 contra o governo de Getúlio Vargas e em 1961 na tentativa de impedir que João Goulart assumisse a presidência. Assim, podemos dizer que, diferente da Argentina, o Brasil não estava “acostumado” com a tutela marcial do Estado. É claro que, como em outros países da América Latina, o fator militar foi sem dúvida um elemento crucial na história política do Brasil. Mas isso não impediu que o Golpe Militar de março/ abril 2 de 1964 pegasse muita gente de surpresa. Os anos 50 e 60 no Brasil foram de intensa atividade política. O grau de mobilização da população em geral era muito alto, se comparado com outros 2 O uso dos dois meses (março e abril) para datar o Golpe Militar de 1964 justifica-se pelo fato deste ter explodido em 31 de março e se efetivado no dia 1º de

abril daquele ano, quando o Presidente João Goulart deixa o cargo de presidente em Brasília. Vol. 1, nº 6, Ano VI, Dez/2009 ISSN – 1808 -8473 132 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

períodos da história. Roberto Schwarz (2001) afirma que o Brasil, neste período, estava irreconhecivelmente inteligente. Festivais de cultura popular e de contestação política brotavam nos mais diversos cantos do país. No entanto, esta mobilização, ainda segundo Schwarz não conferia organização suficiente para os trabalhadores e para as organizações de esquerda. O golpe militar não encontrou a menor resistência, nem no momento de tomar de assalto o poder, nem nos primeiros anos que sucederam o março / abril de 64. Pode-se dizer que este golpe foi desferido contra uma proposta de reformulação da política brasileira. O Governo João Goulart apoiava-se em alguns setores da sociedade a fim de colocar em prática um plano de reformas de base, que incluía as reformas agrária, urbana, eleitoral e educacional. E como os setores da sociedade que apoiavam a política de Jango não foram suficientes para impedir o Golpe Militar de 64, a queda do presidente foi inevitável. O Regime Militar no Brasil pode ser dividido em, pelo menos, três períodos: o primeiro que vai de março de 1964 a dezembro de 1968; o segundo de dezembro de 1968 a 1979 e o último de 1979 a 1985. O primeiro período compreende a etapa do Regime que ainda buscava se consolidar; as liberdades estavam restringidas mas ainda havia certo espaço para se opor; havia perseguições e prisões, mas não podia-se dizer que se tratava de um regime de orientação fascista. Após a promulgação do Ato Institucional número 5, em dezembro de 1968, o país entra em um de seus períodos mais duros, quando aconteciam prisões, quase sempre seguidas de sessões intermináveis de torturas que diversas vezes terminavam em mortes. Neste período o pouco que restava de liberdade foi parar nos porões dos quartéis e do DOPS. A impressa viu-se obrigada a se calar. A oposição viu-se obrigada a resistir, mesmo que isso significasse o risco de se entrar numa luta armada pela derrubada do regime. O terceiro momento da Ditadura Militar se inicia na concessão de anistia aos presos e exilados políticos, quando o regime, encurralado, viu-se obrigado a ceder. Põe fim a este período a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio Eleitoral, em 1985. Mesmo que de forma indireta, elegia-se o primeiro civil em mais de duas décadas, para ocupar o cargo de presidente da república. 3. História e cinema Vol. 1, nº 6, Ano VI, Dez/2009 ISSN – 1808 -8473 133 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

Para compreendermos a relação que se estabelece entre os períodos históricos e as produções de cinema e também as formas como a história é representada no cinema, faz-se necessário recorrer a alguns autores como Marcos Napolitano e Roberto Rosenstone. Em Fontes audiovisuais – a História depois do papel, Napolitano revela que o uso de fontes audiovisuais são vistas quase sempre sob duas perspectivas: 1) como testemunhos diretos e objetivos dos fatos históricos e 2) como produtos de subjetividade absoluta e meras impressões estéticas dos fatos. O que nos alerta o autor é que, independente do caráter objetivo ou subjetivo, as fontes audiovisuais devem ser tomadas como mecanismos de representação da realidade. A ótica objetivista deriva do fenômeno audiovisual conhecido como “efeito de realidade”, facilmente perceptíveis nos filmes de ficção e documentário e também nos produtos jornalísticos. Já a perspectiva subjetivista decorre da natureza estética e polissêmica das obras audiovisuais que nos causam a “ilusão de subjetividade”. O autor ressalta que os filmes de ficção caminham nos espaço intermediário entre o objetivismo e o subjetivismo, isto é, entre o efeito de realidade e a ilusão de subjetividade. Para ele, o cinema tem um duplo sentido: um é o caráter ficcional / artístico, que o coloca no status de documento estético; outro é relacionado à sua natureza técnica e a sua capacidade de registrar, associando-o ao fetichismo de realidade e objetivismo. Desta forma, as imagens produzidas pelo cinema, mesmo que sejam ficcionais, criam uma “realidade”. Dentro deste contexto há a discussão se uma obra audiovisual é mais ou menos fiel à realidade concreta. Mas para o autor, o que realmente importa não é o grau de fidelidade, mas sim os motivos que levam as opções de omissão, adaptação, falsificação desta realidade. A questão da fidelidade é importante para se analisar o audiovisual enquanto documento histórico, mas não pode ser o elemento absoluto desta análise. A análise das fontes deve ser combinada com a análise de contextos e fatores externos à obra. O melhor é combinar os códigos internos das fontes audiovisuais e a representação da realidade histórica. Para se utilizar as fontes audiovisuais para a análise histórica, não se pode deixar de lado as especificidades técnicas da linguagem e os gêneros narrativos destes documentos. Para tanto, faz-se necessário realizar dois tipos de decodificação: a primeira é a decodificação técnico-estética; a segunda é a decodificação representacional. Tudo isso nos leva à constatação de que a finte audiovisual é mais do que uma simples “ilustração” ou “complemento soft” das outras fontes mais “objetivas” Vol. 1, nº 6, Ano VI, Dez/2009 ISSN – 1808

-8473 134 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

que o historiador usa. Até porque, ressalta Napolitano, o audiovisual como documento histórico apresenta as mesmas armadilhas que o documento escrito, por exemplo. O historiador deve estar sempre atento ao intenso jogo que há entre objetividade e subjetividade, tanto no audiovisual quanto nos documentos escritos. Já Rosenstone, em História em Imagens, História em Palavras – reflexões sobre as possibilidades de plasmar a história em imagens, busca entender a relação do historiador com o cinema histórico. Segundo o autor essa relação se inicia com uma situação dúbia para o historiador: mistura entusiasmo pela atração do meio audiovisual e desconcerto pela insatisfação que muitas vezes as obras audiovisuais causam no historiador. Mas essa mistura entre entusiasmo e desconcerto leva a uma busca de idéias para o equilíbrio intelectual entre os campos do conhecimento audiovisual e histórico. Há que se ressaltar que, de fato, os meios audiovisuais apresentam sérios limites para se narrar a História. Afinal, o cinema, por exemplo, tende a comprimir o passado em algo linear e fechado. Não há espaço, muitas vezes, para a sutileza do texto escrito. No entanto, vivemos num momento em que há uma supremacia das imagens[2]3, e o cinema desempenha papel fundamental para a compreensão da história. Isso implica numa certa redução do interesse pela história escrita. Nesse contexto, o cinema se apresenta como uma verdadeira tentação, atraindo mais audiência e atenção do que as fontes escritas da história. Mas é possível transformar adequadamente o discurso escrito num discurso visual? 3 Ver discussões sobre a supremacia da imagem em textos como O Príncipe Eletrônico de Octávio Ianni e A Sociedade do Espetáculo de Guy Debord, entre outros. Segundo o historiador R. J. Raack (apud Rosenstone) as imagens são mais adequadas para explicar a história pois a escrita é linear e incapaz de mostrar um mundo multidimencional. Assim, segundo Raack, somente o cinema pode recuperar as vivências do passado. Por outro lado, o filósofo Jan Jarvie (apud Rosenstone) afirma que as imagens transmitem pouca informação e por isso não dá conta do debate historiográfico. De uma forma geral, podemos afirmar que estes autores partem de noções diferentes do que é história. Para Raack, a história é uma via para aumentar nosso conhecimento e por isso o cinema desempenha esse papel muito bem. Ele crê que os filmes têm a capacidade de transmitir muitas informações. Já Jarvie parte de uma concepção mais acadêmica de história e defende a idéia de que a velocidade do cinema não nos deixa tempo para os debates e reflexões necessários para a compreensão da história. Além disso, no cinema não há espaço para todos os elementos chaves para esta Vol. 1, nº 6, Ano VI, Dez/2009 ISSN – 1808 -8473 135 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

compreensão. Assim, o filme mostra-se, segundo Jarvie, como uma perigosa farsa e cabe ao historiador “corrigir” essas imperfeições. Apontando para os dois autores citados, Rosenstone questiona se todas as informações que o filme consegue transmitir podem ser assimiladas adequadamente pelo público e se essas informações implicam um conhecimento válido da história. Outro questionamento é feito sobre a importância do debate historiográfico entre diferentes historiadores. Esse debate é tão importante ao ponto de se tornar parte substancial de um trabalho histórico? Rosenstone responde: Não. Agora, discorrendo sobre os filmes dramáticos que tenham como tema fatos históricos, o autor afirma que neles, de forma geral, há mais drama do que história. Por outro lado, há os dramas históricos que dão mais ênfase ao processo geral e não aos conflitos individuais dos personagens. No entanto, para que isso ocorra, muitas vezes algumas informações ficam de fora do produto audiovisual. Vale ressaltar também que mesmo com essa quantidade menor de informação, os filmes podem tem a capacidade de tocar mais o espectador, pois privilegia a informação visual e emocional, unindo os aspectos do “ver” e “sentir”. Essa informação visual e emocional, alerta o autor, pode alterar, ainda que sutilmente o conceito de passado. Sobre os documentários, pode-se afirmar que, assim como os filmes dramáticos, muitas vezes eles focalizam dentro de um processo histórico a figura de um indivíduo, ou um grupo pequeno na totalidade histórica. Por isso, o documentário não pode ser visto como um reflexo direto da realidade. Além disso, o documentário histórico apresenta algumas limitações enquanto fonte histórica. Esses documentários necessitam de imagens do fato, o que nem sempre é possível de se encontrar, e também necessitam criar o movimento perpétuo de sua narrativa. Desta maneira, pode-se cair numa armadilha do documentário histórico que consiste na impressão de continuidade e ligação das imagens o que nem sempre correspondem à realidade. Para causar determinado efeito, o documentário coloca em sequências imagens não-sequenciais. Não trata-se de uma mentira, mas um artifício para se alcançar determinado fim. De maneira geral, podemos dizer que da mesma maneira como o registro escrito, a história visual pode variar de acordo com os tipos de narrativa, as diversas formas de se fazer um relato, as múltiplas possibilidades de um discurso histórico, enredos, gêneros, linguagem e etc. Há tanto para a histórica escrita quanto para a história visual um certo condicionamento do produto final às convenções narrativas e linguísticas. No Vol. 1, nº 6, Ano VI, Dez/2009 ISSN

– 1808 -8473 136 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

entanto, alerta Rosenstone, as normas de verificação são diferentes para os dois tipos de histórica colocados aqui. As variáveis narrativas e linguísticas não podem ser as mesmas para analisar um filme e um texto. No caso específico dos filmes de ficção, um elemento importante a se colocar em pauta no momento da análise é a atuação dos atores. Os atores, mais do que meros recitadores de um texto, emprestam significados aos personagens. Neste processo ocorre algo parecido com uma invenção do ator, mas não implica necessariamente na violação da histórica real. Esse tipo de análise em relação à posição a atuação do ator, logicamente, não é possível quando se analisa uma obra escrita. Portanto, os métodos de análise das palavras é diferente do método de análise das imagens. A história em imagens inclui elementos desconhecidos para a história escrita. Rosenstone nos coloca diante do fato de que devemos observar e procurar pela história no cinema para além de Hollywood e dos documentários. Ressalta que a produção de filmes históricos tem aumentado cada vez mais entre os diretores de diversos países. Essas novas produções apresentam a história a partir de várias possibilidades de interpretação, e não como uma visão única e incontestável. Isso é um reflexo claro do fato de que o cinema oferece novas possibilidades de representar a história. 4. Cinema e ditadura militar no Brasil e Argentina Tendo em vista o caráter repressor das ditaduras militares do Brasil e Argentina não apenas no campo político, mas também no campo cultural, não é de se estranhar que a produção cinematográfica destes países durante os regimes autoritários concentrava suas temáticas em diversos assuntos, exceto aqueles que feriam a autoridade do regime ou que suscitassem questionamentos ao poder estabelecido. Isso não equivale a dizer que cineastas e autores de cinema não intencionavam questionar os governos ditatoriais, mas sim que essa intenção era quase sempre censurada pelos órgãos oficiais. Além disso, o risco que um cineasta corria ao realizar uma produção que ousava discutir o regime era tão grande que poucos resistiram; muitos foram obrigados a se calar; outros tantos optaram pela saída do país. Nas palavras do diretor Roberto Farias, falando sobre os filmes que ele realizou com Roberto Carlos: “(...) me senti plenamente realizado, muito embora eu estivesse fazendo filmes que fossem pura Vol. 1, nº 6, Ano VI, Dez/2009 ISSN – 1808 -8473 137 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

diversão, puro entretenimento. Até porque naquela época não dava pra fazer outra coisa”4. No presente momento, não cabe aqui traçar um panorama sobre a atuação de cada diretor durante os regimes militares brasileiro e argentino. Mas sem dúvida, este é um estudo de suma importância para a compreensão da produção cinematográfica sobre este período histórico. 4 Este trecho faz parte de uma entrevista de Roberto Farias para o programa Luz, Câmera, Canção do Canal Brasil. Disponível em

http://www.youtube.com/watch?v=RZmAddyYJcU O foco deste trabalho, como já mencionado, é a análise de alguns dos filmes lançados após o fim da ditadura militar, como é o caso do filme argentino A histórica Oficial, lançado em 1985, ou obras realizadas no período de últimos suspiros dos regimes antidemocráticos, como é o caso de Pra frente Brasil, lançado em 1983. O contexto de lançamento de cada um dos filmes é consideravelmente diferente. O filme argentino insere-se no contexto de revisão do período histórico antecedente. A ditadura militar argentina vê seu fim no ano de 1983. Em tese, o filme foi realizado num momento de liberdades, onde a censura não existia, ou pelo menos não deveria existir. Vale dizer que na Argentina o fim da ditadura foi mais abrupto do que no Brasil. Além disso, a revisão deste período foi imediata, isto é, o regime militar foi amplamente condenado pela sociedade. Em 1985, já havia se instaurado um tribunal para se julgar os altos comandantes das forças armadas que cometeram atrocidades durante o regime de exceção. Em 1986, numa experiência inédita na América Latina, o Tribunal de Justiça de Buenos Aires condenou cinco dos mais altos comandantes do Exército. Já o filme brasileiro foi lançado e produzido num momento de declínio do regime militar, mas antes de seu fim definitivo, que só se dá em 1985 com a eleição de Tancredo Neves. Como citado acima, a partir de 1979 a ditadura militar brasileira entra num momento de abertura política e de concessões democráticas. Mas vale dizer que em 1983 o presidente da república ainda era um militar, e um dos mais carrancudos, João Baptista Figueiredo. Este mesmo general afirmava que preferia o cheiro de seus cavalos ao cheiro do povo. Muito provavelmente, a abertura política era mais uma consequência inevitável das relações sociais do que uma vontade do presidente. 4.1 A história Oficial e Pra frente Brasil Antes de iniciar os comentários sobre os filmes escolhidos, vale expor aqui uma breve biografia de cada diretor, Luis Puenzo e Roberto Farias. Vol. 1, nº 6, Ano VI, Dez/2009 ISSN –

1808 -8473 138 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

Luis Puenzo nasceu em 19 de fevereiro de 1946 em Buenos Aires. Tem uma longa produção de comerciais na Argentina. Em 1968 funda a sua própria produtora de cinema chamada Luis Puenzo Cinema, que em 1974 muda de nome e passa a se chamar Cinemanía S.A. Durante a ditadura militar argentina, assim como vários outros cineastas e artistas, foi obrigado a se exilar nos Estados Unidos, onde continuou a trabalhar com cinema. Sua mais reconhecida obra é A história Oficial, de 1985, filme ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro neste mesmo ano. Este mesmo filme rendeu uma série de outros prêmios para o diretor e também para Norma Alejandro, como melhor atriz no Festival de Cannes de 1986. A produção de Puenzo para o cinema não é nem tão vasta e nem tão reconhecida, exceto pelo filme A história Oficial. Dentre seus outros títulos podemos citar Luces de mis sapatos (1973) e o recente La puta e la ballena (2004). Roberto Farias é nascido em Nova Friburgo, Rio de Janeiro, em 27 de março de 1932. Começou sua carreira no cinema na Companhia Atlântica como assistente de direção. Estreou como diretor com o filme Rico ri à toa de 1957. Torna-se um dos mais conhecidos e respeitados cineastas brasileiros em 1960, com o filme Cidade Ameaçada e consolida seu prestígio com Assalto ao trem pagador, de 1962. Ainda na década de 1960, cria junto com seus irmãos a RF Farias, uma das mais importantes produtoras de cinema do país. No final desta mesma década, torna-se mais popular com um trilogia de filmes estrelada por Roberto Carlos. Foi o primeiro cineasta a assumir a direção da Embrafilme. Teve uma extensa produção para a televisão com minisséries e outros programas. Dentre as produções mais conhecidas estão as minisséries Noivas de Copacabana (1992), Menino do Engenho (1993) e Decadência (1995). Além disso, também dirigiu alguns episódios do programa Você Decide. É um autor de cinema muito reconhecido e ganhador de diversos prêmios. Sua obra mais premiada é Pra frente Brasil. 4.1.a A História Oficial O filme gira em torno da vida de uma professora de história, acostumada a ensinar apenas a história oficial dos livros didáticos, apenas a história dos vencedores e heróis. É alheia à verdadeira história de seu país, é à sua própria história familiar. Desconhece a origem de sua filha adotiva e o caráter de seu marido. Aos poucos, Vol. 1, nº 6, Ano VI, Dez/2009 ISSN –

1808 -8473 139 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

instigada a conhecer um pouco de sua própria vida, Alícia vai levando alguns choques de realidade, até descobrir que a história não é apenas aquela que está nos livros didáticos. Bem adequado ao padrão melodramático, o filme não busca contar a história da Ditadura Militar argentina. Através de um drama particular, reflete sobre algumas das atrocidades cometidas pelo regime autoritário, como as torturas, assassinatos, sequestros e adoções ilegais de bebês de militantes opositores ao regime. Apesar de estar dentro do padrão melodramático, não pode ser colocado no mesmo grupo de filmes como Olga (2004), de Jayme Monjardim, que não por acaso é mais conhecido como diretor de novelas, nem com Titanic (1997), de James Cameron, um clássico recente da categoria melodrama hollywoodiano. A história Oficial é um filme que busca, através da estética do melodrama, refletir e colocar em pauta o caráter sanguinário e fascista da ditadura militar argentina. Sutilmente, coloca o dedo na ferida da classe média que passou ilesa ao golpe e manteve-se alheia aos fatos até quando lhe foi conveniente. A partir disso, é possível estabelecer algumas reflexões sobre alguns elementos do filme. Comecemos pelas alegorias representadas pelos personagens centrais. A protagonista Alícia pode ser vista como a classe média argentina alheia e alienada ao que acontecia em seu país. Quando percebe que algo a afeta diretamente, resolve agir. Roberto, marido de Alícia, é a figura da repressão, e talvez, até do próprio regime autoritário. Ele está plenamente ciente de que a adoção de Gaby é ilegal. É explicitamente anti-comunista e contra qualquer tipo de posição de esquerda (facilmente percebido na cena em que Roberto discute com seu pai, num almoço de família). O Padre, a quem Alícia procura para saber mais sobre sua história familiar, pode ser visto como uma representação da própria Igreja Católica que em muito momentos declarou-se apoiadora do regime comandado pelos generais argentinos. Como foi muito comum em diversos contextos da história, sobretudo latino-americana, o Padre/Igreja sabe de tudo, mas não faz nada. O professor de literatura, colega de Alícia, é uma alegoria da intelectualidade de esquerda. Apesar de tomar posicionamento, muitas vezes restringe sua militância às palavras e à verborragia. Diverte-se com a situação de Alícia: “nada mais comovente do que uma burguesa com culpa”. Anna, amiga de Alícia é a sua própria representação. Ela é, tanto como personagem, tanto como alegoria, a militância de esquerda que sofreu a perseguição e a repressão do governo ditatorial e seus aparelhos de combate à subversão. Exilada, sofre com os traumas que adquiriu nas Vol. 1, nº 6, Ano VI,

Dez/2009 ISSN – 1808 -8473 140 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

sessões de tortura. Outras duas personagem são suas próprias alegorias. A avó, Sara, que procura pela filha de sua filha é o símbolo do próprio movimento das Avós e Mães da Praça de Maio. E Gaby, filha adotiva de Alícia, que representa justamente os desaparecidos e filhos de desaparecidos políticos. Além disso, podemos citar de passagem a figura dos estudantes que tentam estudar a história que os livros não contam. Vale lembrar que essa figura é importante para o contexto da ditadura argentina pois uma grande parte dos desaparecidos, sequestrados, presos, torturados e assassinados eram adolescentes, como pode ser visto no filme La noche de los lápices (1986), de Héctor Olivera. Há também os executivos amigos de Roberto, que compartilham dos posicionamentos do regime que privilegiou os interesses de uma classe historicamente já privilegiada. A família de Roberto, sobretudo seu pai, podem ser lidos como os históricos movimentos populares argentinos, de esquerda ou ligados aos peronismo. Ao contrário de outros filmes sobre o tema, A História Oficial não coloca cenas explícitas de tortura ou outros crimes cometidos pelos agentes do Estado autoritário. Os relatos destes crimes estão presentes nas oralidades de alguns personagens, como Anna e Sara. Neste sentido, a tortura se dissolve no fluxo de consciência. Não é vista diretamente pelo espectador, mas nem por isso deixa de ser percebida e sentida. Sem dúvida, o impacto de um relato de tortura através da oralidade é diferente do impacto de imagens de tortura, como no filme Pra frente Brasil. Há, porém, uma correlação entre dois momentos do filme que tornam mais explícita as ações criminosas do regime. Anna relata com detalhes a invasão de seu apartamento pelos agentes da ditadura. Quase que seguindo o passo-a-passo do relato de Anna, o quarto de Gaby é invadido por seus amigos e primos, que brincavam no dia de seu aniversário. Essa correlação entre o relato oral de Anna e a cena da invasão do quarto de Gaby configura um dos elementos que traz Alícia para a realidade. Ela vê sua filha sofrendo da mesma forma que sua amiga Anna sofrera. A presença das Avós da Praça de Maio, sobretudo nos momentos finais do filme dão indicações de uma possível mensagem que o filme transmite. Este movimento das Avós, muito conhecido e atuante até hoje é o símbolo da resistência da memória. A ditadura acabou, mas o aconteceu está vivo na memória da sociedade. O papel deste movimento e também do filme que eternizou a atuação destas Avós, é preservar a memória. Deixar que a sociedade esqueça o que aconteceu é repetir a canção que Gaby Vol. 1, nº 6, Ano VI, Dez/2009

ISSN – 1808 -8473 141 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

canta ao longo do filme: “no país do não-me-lembro, dou três passos e me perco”. 4.1.b Pra frente Brasil O filme de Roberto Farias trata de um dos momentos mais pesados da ditadura militar brasileira. A história se passa no ano de 1970, quando os militares estavam no auge da efetivação de seu Estado terrorista. Toda a trama se desenvolve no mesmo espaço de tempo que a participação da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo deste ano, no México. Como já é recorrente nos debates sobre a ditadura militar, é praticamente um senso-comum que o governo militar usou a conquista do tricampeonato mundial de futebol para encobrir as atrocidades do regime. Além disso, o próprio nome do filme é uma menção direta à música que celebrou a campanha vitoriosa da seleção na Copa do Mundo. O cartaz do filme traz uma ironia crítica à expressão Pra frente Brasil ao escrever Brasil ao contrário, de traz pra frente. Sinteticamente, o filme discorre sobre vida de uma família comum de classe média que se vê diante do sumiço misterioso de Jofre. Este personagem, vivido por Reginaldo Faria, irmão do diretor, é confundido com um militante de esquerda e sofre as intensas sessões de tortura praticadas por um grupo de combate à “subversão”. Não há nenhuma menção no filme, mas pode-se comparar a atuação desse grupo com o Comando de Caça aos Comunistas, que agia no Brasil durante o regime militar. Com o desaparecimento de Jofre, sua família passa a perceber que a situação do país não era nada daquelas maravilhas anunciadas pelo governo. Neste momento histórico, o Brasil passava por um período de intenso crescimento econômico, como é explicado pelo diretor na abertura do filme com o letreiro inicial. Diante desta percepção da realidade a família de Jofre, especificamente sua esposa Marta e seu irmão Miguel resolvem agir de forma contundente para encontrar Jofre. Assim como em A história oficial, podemos estabelecer algumas relações entre os personagens do filme com os agentes sociais daquele período. Tanto Jofre quanto sua família são membros de uma classe média que permaneceu alheia à situação política do Brasil. Dr. Geraldo, chefe de Jofre e Miguel representa a burguesia nacional que não só se acomodou com o regime mas também colaborou e se beneficiou com as práticas do governo militar. Dr. Geraldo financia o grupo que sequestra e tortura Jofre. Ao mesmo tempo tem facilidades nas licitações de construção de estradas pelo Brasil, já que este Vol. 1, nº 6, Ano VI,

Dez/2009 ISSN – 1808 -8473 142 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

era um momento de crescimento econômico. Barreto é o torturador de Jofre e se caracteriza pela rigidez e intolerância, como o próprio regime militar. Mariana, caso amoroso de Miguel, é uma militante de esquerda que entra para a luta armada e é a voz da consciência crítica ao imobilismo da classe média. Assim como seus companheiros de militância representa algumas debilidades dos setores da esquerda brasileira que não conseguiram um grau suficiente de organização e respaldo social para barrar o caminho dos militares que dominavam a cena política. Há também a figura de Rubens, colega de trabalho de Jofre e Miguel. Rubens ilustra um setor da sociedade que mesmo sabendo o que realmente ocorria no país, optou pelo imobilismo e pela não envolvimento nestas questões. Estas são algumas das alegorias possíveis de se estabelecer. Há outros tantos personagens que poderiam ser tratados com mais cuidado, mas esta tarefa pode se tornar demasiadamente extensa e desnecessária para o momento. Durante vários momentos do filme ouve-se um rádio que traz informações sobre política, economia e esporte, sobretudo futebol. A entonação e a ênfase com que estas notícias são tratadas é a mesma, independente do assunto. Em alguns momentos as notícias de futebol ganham uma acentuação, demonstrando um pouco do que foi a superexploração deste acontecimento (Copa de 1970) para desviar a atenção do público. O rádio está presente em todo o filme e nos contextualiza dando referências temporais, como a data dos jogos da seleção, notícias de economia pontuais, etc. Devemos tratar também dos vários elementos contidos no filme passivos de análise, ainda que correndo o risco de deixar de tratar de alguns deles. A tortura, tema central do filme, é tratada de forma explícita. São diversas as cenas e as sugestões de tortura durante o filme. Jofre aparece num gradiente de desfiguração após as várias sessões de tortura. Em cada cena seu corpo está mais machucado, até a sua última cena em que ele já aparece morto. Há também menções diretas às práticas de espionagem utilizadas pelos agentes do regime militar. Em vários momentos em que os personagens falam ao telefone mostra-se um grande gravador. Outro elemento que julgo importante é o foco dado pela câmera numa máquina de escrever na delegacia de polícia. Esta máquina é manipulada freneticamente por um funcionário da delegacia que escreve o que um policial dita. Trata-se de um termo que comprova que Marta e Miguel estiveram na delegacia para prestar depoimento. O ritmo alucinante dos toques nas teclas da máquina e a formalidade do texto ditado coloca em evidência que por trás daquele regime autoritário havia todo um aparato burocrático, rigidamente organizado que Vol. 1, nº 6, Ano VI, Dez/2009 ISSN – 1808 -8473 143 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

sustenta a máquina de terror da ditadura militar. Nota-se também ao longo do filme dois momentos em que há a presença de artigos religiosos (Bíblia, crucifixo e imagens de santos). Estes artigos estão na casa de Geraldo (chefe, apoiador do regime) e na delegacia em que Miguel é detido. Uma possível leitura da presença destas imagens nestas cenas é o posicionamento da Igreja Católica frente ao golpe de 1964. De forma geral, a Igreja foi uma apoiadora do regime militar e do combate à “subversão”. É claro que figuras notáveis da Igreja foram atuantes combatentes do regime, como Frei Beto, Frei Tito e Dom Paulo Evaristo Arns, entre outros. A violência do Estado militar brasileiro é justificada por um personagem, o delegado que interroga Miguel, pelo “momento difícil” pelo qual o país passa e pelo longo histórico do uso da violência, “desde os tempos do Getúlio”. Além disso, há uma importante menção no filme que trata da possível participação de agentes externos na ditadura militar brasileira. As aulas de tortura assistida pelos empresários que financiavam a caça aos “subversivos” é ministrada por um falante da língua inglesa. Está muito presente no debate sobre a ditadura militar a participação ativa de membros da CIA e do governo dos Estados Unidos no treinamento de agentes do regime brasileiro, inclusive no treinamento de torturadores. O filme Pra frente Brasil encaixa-se também na categoria de melodrama por utilizar alguns elementos típicos da linguagem melodramática. A angústia pela perda do marido faz com que Marta apareça quase sempre chorando e explicitando em sua expressão facial este sentimento de perda. O filme faz com que o acontecimento que atingiu um grupo de pessoas nos remeta à situação geral do país. É uma individualização de um período histórico que toma do particular elementos para se compreender o impacto deste momento na sociedade (Capuzzo, 1999). Como se pode perceber, ambos os filmes analisados tem como tema o processo de conscientização de uma classe média que permaneceu durante muito tempo estranha à realidade social e política de seus países. Tanto a família de Jofre quanto Alícia passam a perceber que viviam sob um regime autoritário e terrorista quando esta realidade lhes bate à porta. Para demonstrar este processo pelo qual passam as personagens centrais dos filmes, é utilizada linguagem do melodrama, ainda que de forma distinta. Como mencionado anteriormente, não tratam-se de melodramas da mesma ordem que as telenovelas e algumas obras do cinema hollywoodiano. São filmes que, a partir da estética melodramática buscam retratar dramas individuais que são Vol. 1, nº 6, Ano VI, Dez/2009 ISSN – 1808 -8473 144 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

reflexo direto de uma realidade histórica. A história oficial e ainda mais intenso dentro da categoria melodrama, já que evita cenas de tortura ou perseguições. Já Pra frente Brasil mescla o gênero melodramático com uma estética de filmes policiais. Também como já foi citado, são filmes realizados em contextos diferentes e retratam realidades diferentes. Lançado após o fim da ditadura militar, A história oficial descreve os últimos momentos do regime argentino. Pra frente Brasil é elaborado ainda durante a vigência do governo dos militares e trata do ano de 1970, auge da repressão política. Porém, ambos são filmes exemplares para se tratar do tema. Não é por acaso que são os filmes mais premiados de seus diretores. Cada um ao seu modo, revelam a desumanidade do Estado de terror implantado pelas forças armadas do Brasil e da Argentina e buscam apontar perspectivas para um futuro sem autoritarismo e de consolidação democrática. Abstract: In summary, what we want to develop in this work is to understand the representation forms of the military dictatorships in Brazil (1964 - 1985) and Argentina (1976 - 1983) in the fiction film productions in these two countries. It requires an historical approach of the periods in question, besides the film analysis inside the spectrum of film narrative, connecting these film narrative and the historical processes. Two films were chosen for analysis, one from each country: História Oficial (Argentina, 1985), by Luis Puenzo and Pra frente Brasil (Brazil, 1983), by Roberto Farias. Keywords: Military regimes, Brazilian history, Argentinean history, cinema, politics. REFERÊNCIAS Bibliografia BEIRED, José Luis Bendicho. Breve História da Argentina. São Paulo: Ática, 1996. CAPUZZO, Heitor. Lágrimas de luz: o drama romântico no cinema. Belo Horizonte: UFMG, 1999. FAUSTO, Boris e DEVOTO, Fernando J. Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850 - 2002). São Paulo: Editora 34, 2004. GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. NAPOLITANO, Marcos. “Fontes audiovisuais: a história depois do papel” IN: PINSKY, Carla (org). Fontes históricas. São Paulo, Contexto, 2005. PASSOS, José Meirelles. A Noite dos Generais - Bastidores do terror militar na Argentina. São Paulo: Brasiliense, 1986. ROSENSTONE, Roberto. História em Imagens, História em Palavras – reflexões sobre Vol.

1, nº 6, Ano VI, Dez/2009 ISSN – 1808 -8473 145 Baleia na Rede Revista online do Grupo Pesquisa em Cinema e Literatura

as possibilidades de plasmar a história em imagens. O olho da história. n. 5, p. 105 – 116, 1998. ROUQUIÉ, Alain. O Estado Militar na América Latina. São Paulo: Alfa-Omega, 1984. SANTOS, Joel Rufino dos. História do Brasil. São Paulo: Marco, 1979. SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política. São Paulo: Paz e Terra, 2001. Fontes Wikipédia, a enciclopédia livre (pt.wikipedia.org) www.cinemanacional.com (Argentina) www.adorocinemabrasileiro.com.br (Brasil) www.imdb.com Filmografia A História Oficial: Título Original: La historia oficial/ Argentina: 1985/ Direção: Luis Puenzo /Roteiro: Luis Puenzo e Aída Bortnik /Produção: Oscar Kramer / Música: Atilio Stampone Fotografia: Félix Monti / Pra frente Brasil: Brasil, 1983 /Direção: Roberto Farias Roteiro: Roberto Farias, baseado em argumento de Reginaldo Faria e Paulo Mendonça. Produção: Rogério Farias / Música: Egberto Gismonti / Fotografia: Dib Luft e Francisco Balbino Nunes. Recebido para avaliação em 29/05/09

Aceito para publicação em 27/09/2009

Filme: A História Oficial

Aluno (a): Alessandro Mildo Gonçalves Ferreira, Fransergio Perini de Oliveira,

Nádia Mangolini, Mayara Miranda e Rafael Vaz de Souza.

Docente responsável: Maurício Cardoso

 

 

 

Ficha Técnica

Título original: La Historia Oficial

Gênero: Drama

Ano de Lançamento (Argentina): 1985

Duração: 112 min

Direção: Luis Puenzo

 

A História Oficial, dirigido por Luis Puenzo, conta a história de Alicia, uma professora de

História de classe média que, em plena ditadura militar da Argentina, parece viver

normalmente e acreditar nas informações transmitidas pelo governo ditatorial.

O filme coloca em evidência uma Alicia que depois de ser confrontada por seus alunos e

depois da chegada de sua velha amiga Ana (que havia sido exilada pelo regime) começa a

perceber que as coisas vão além do que diz a “versão oficial”. Alicia descobre que Ana havia

sido torturada pela ditadura e passa a desconfiar que sua filha adotiva possa ser uma filha de

prisioneiros políticos, torturados ou assassinados que acabavam por ser levadas para adoção.

Ao buscar a origem de sua filha, Alicia entra em conflito com o marido, que parece ter

alguma relação com o aparelho repressor da época. Nesse aspecto, ela passa a ter contato

com a realidade política argentina em 1983: protestos de pessoas à procura de familiares

desaparecidos (conhecemos as mães e avós da Plaza de Mayo*).

Ao final de sua jornada Alicia acaba por abrir os olhos para a verdadeira história que o ocorre

diante de si. Lançado em 1985, A História Oficial é o início da construção de uma memória,

que a princípio teve a tarefa de lembrar problemas ainda não solucionados: pessoas ainda

“desaparecidas”, pessoas eternamente marcadas pelo trauma da tortura causada pelo

estado, e pessoas que tiveram suas famílias destruídas. A Narrativa do filme é extremamente

interessante se pensarmos no papel de uma professora de História dentro da escola. A

imagem de uma historiadora que desconhece o que se passa em seu país, assim como o

retrato de uma classe média que decide fechar os olhos para a realidade, serve como ponto

de discussão sobre o papel que cada pessoa possui na sociedade e o que ela faz para mudá-

la ou não. A mudança pela qual passa a personagem central (Alicia) é mote para mostrar aos

alunos dentro da sala de aula, como a tomada de consciência de alguém é fator decisivo na

construção de um país. Inicialmente alheia à realidade de seu país, Alicia consegue ir além

do que se via nos jornais e livros didáticos e muda de “lado” ao entrar em contato com o que

talvez seja o mais simbólico impacto da opressão ditatorial: as mães e avós que tiveram seus

filhos e netos presos ou raptados pela repressão. Vencedor do Oscar de melhor filme

estrangeiro, o filme de Luis Puenzo nos lembra que sempre é possível abrir os olhos e

enxergar além da história oficial.

*Site das Avós da Plaza de Mayo: http://www.abuelas.org.ar

Orientador: 

Prof. Dr. Maurício Cardoso

Disciplina: 

FLH0421 - Ensino de História: Teoria e Prática

Filmes

Construção da memória

ditadura

filme

História Oficial

Estética da Tortura: sobre "A História Oficial"

“A História Oficial” não é um grande filme apenas porque aborda um assunto difícil. Mas porque evidencia a profunda solidão da tortura. Esta solidão é possível, porque existe uma estética, ainda atual, orientada à tortura. Um mundo privado. A idéia, todavia, é indagar sobre a possibilidade de uma outra estética, mais pública. Por certo, ela não será instituída pelo segredo político. Apenas conhecendo a crueldade, podemos pensar em evitá-la. O artigo é de Cesar Kiraly.Cesar Kiraly (*)

Mas, qual é a estética da tortura? Ela nos remete a ambientes brancos de assepsia, quando

pensamos na tortura médica. Naquela que orienta a política por enunciados pseudocientíficos

e que se vale dos oponentes do regime (oponentes étnicos ou ideológicos) para

experimentar crueldades. Ou a porões sujos, ambientes sombrios, de paredes mofadas e

rudimentos de aparelhos elétricos, para os choques, e tinas d’água, para os afogamentos. Há

também uma estética da tortura religiosa, com instrumentos de madeira, fogo, óleo quente

etc. Mas nos interessa aqui o segundo tipo de estética da tortura: porque ela concerne à

tortura militar. A máquina de morte e dor americana, recentemente, atualizou a estética da

tortura militar com dispositivos de plástico. Mas quero tratar da tortura militar das décadas

finais do século XX. Aquela praticada pelos franceses na Argélia, pelas ditaduras latino-

americanas, inclusive, é a estética das torturas militares no Brasil [1].

Contudo, essa estética da tortura militar é sustentada por uma outra estética: aquela da

sinestesia cheirosa da vida ordinária. Nesse caso, retratado no filme “A História Oficial”,

trata-se de uma vida ordinária bastante específica, a da classe média alta argentina,

extensível, com pequenas alterações, à classe média brasileira. Por certo, que a sustentação

pode significar conluio, e estou de acordo com essa tese, a vida confortável e apática, e

orientada por certa concepção imoral de ordem, permitiu os horrores da tortura. Mas quero ir

um pouco mais longe e dizer que a vida privada latino-americana, certo tipo de vida privada,

constitui uma grande imagem da qual a tortura faz parte. Quero dizer: trata-se de um mesmo

plano. Habituamo-nos a ver a tortura como um contra-plano do plano classe-média, de

orientação militar, no que concerne ao modo de viver. Mas penso que isso equívoco e tenho

“A História Oficial” do meu lado.

Nesse extraordinário trabalho do diretor Luiz Puenzo, ganhador do Oscar de melhor filme

estrangeiro em 1986, representa-se a vida de uma pacata professora de História, que casada

com um homem pertencente à classe média militar (ele não é militar, mas pertence a essa

forma de vida), desconfia que sua filha adotiva, trazida pelo marido, seria uma das crianças

desaparecidas, em virtude da tortura e morte de mulheres, durante a ditadura argentina. O

plano é único: escolas arrumadas, sofás com estampas, copos de whisky, homens

conversando de um lado e mulheres do outro, empregadas domésticas etc. Mas ao invés de

cindir o plano, Puenzo faz com que a tortura esteja na vida ordinária: ele o faz apontando

para (1) uma ausência e (2) uma resistência. E transfere esse duplo sentido da tortura para a

composição das imagens. O torturado é aquele que está (1) ausente e consiste naquele que

sofre porque (2) resiste.

Mas a relação entre ausência e resistência transita. Na escola o tema da tortura e dos

desaparecimentos está ausente, a professora resiste a admitir o que lhe diz um aluno, que a

História é escrita por assassinos, e os alunos resistem a esta ausência. No movimento social,

das Mães da Praça de Maio, os filhos estão ausentes e elas resistem ao silêncio. Apenas a

personagem efetivamente torturada (Ana) resiste a essa duplicidade, quando incitada a

participar da imagem social da tortura, vale-se de um tropo cético: “por que não vão à

merda”?

Este genial plano único fica ainda mais evidente, porque quase não existe nenhum recurso

imagético ao passado, não se mostra pessoas sendo torturadas. A tortura está sempre na

voz e nos silêncios. Dentre as cenas que exploram esse espírito, sem dúvida, a mais

importante é aquela que mostra a conversa das duas amigas; a professora de História e

amiga torturada tomam licor de ovo, e riem sobre assuntos do passado. Ao que a amiga

torturada, num mundo de torturadores, começa a lembrar de seu passado recente: casa

arrombada, surras, humilhação e estupros. Essa rememoração se inicia ainda sob risada, que

se amainam aos poucos. O riso de ebriez cede espaço para algo de mais ambivalente. Como

estar do lado, escutar, de quem sofreu, sem questionar a própria posição histórica no

momento em que aquele sofrimento era provocado? Como estar próximo? O sofrimento do

torturado, narrado numa estética da tortura, que apesar do decurso do tempo está quase

inalterada, é constrangedor. A saída imoral consiste em perguntar: o que ela fez para

merecer isso? Mas não era uma subversiva? Ao que pode ser adicionada uma conclusão

imoral: afinal, ela foi presa por algum motivo. Mais a manutenção da estética: mas por que

falar disso, depois de tanto tempo?

“A História Oficial” não é um grande filme apenas porque aborda um assunto difícil. Mas

porque evidencia a profunda solidão da tortura. Esta solidão é possível, porque existe uma

estética, ainda atual, orientada à tortura. Um mundo privado. A idéia, todavia, é indagar

sobre a possibilidade de uma outra estética, mais pública. Por certo, ela não será instituída

pelo segredo político. Apenas conhecendo a crueldade, podemos pensar em evitá-la.

[1] Estranhamente a imprensa de países torturadores, como a imprensa americana, impede a

formação de uma estética de seus nacionais sendo torturados; esta estética, imagino, seria

repleta de elementos grotescos, parece que o impedimento dessa estética, que nos coloca

como vítimas, serve para que continuemos algozes. Talvez algo desse tipo explique a pouca

repercussão pública dos torturados no Brasil e a insistente prática de tortura em nossas

instituições. Por alguma lógica macabra parece que existe preferência em nos vermos como

torturadores do que como torturados. Nada mais coerente com isso do que a idéia de

ditabranda. Ela nos impede de estarmos do lado dos torturados.

Cesar Kiraly é coordenador executivo do Laboratório de Estudos Hum(e)anos do IUPERJ.

Oficial, de Luis Puenzo

O filme A História Oficial (Luis Puenzo,

1985) é surpreendente. A surpresa, aliás, é o leitmotiv desse

filme. Pode uma professora de história não saber nada do

que se passa em seu país?

O filme trata da descoberta dessa mulher (Alicia) – que é um

emblema das mulheres e seus sofrimentos; como a

maternidade ou sua impossibilidade, da vulnerabilidade

ante a violência de um homem, e é emblema também dessa

classe média que não gosta de mudanças que, como a

personagem mesma diz, “faria qualquer coisa para não

perder suas conquistas, para que tudo ficasse como está.”

Em um ponto de sua vida, perto do aniversário de cinco

anos de sua filha adotiva (Gaby), alunos começam a lhe

perturbar: “a história é escrita por assassinos”, diz um

estudante exaltado.

Nesse mesmo momento de sua vida, aparece um professor

de literatura, com pequenas sutilezas, que a considera do

lado do “vocês”; de repente a personagem percebe que

ocupa um lugar, que está em um lado da história. Esse

professor foi sutilmente demitido da faculdade onde

lecionava, depois que seu apartamento foi invadido e nada

sutilmente destruído.

Em um

reencontro anual com as colegas de faculdade, aparece uma

amiga depois de muitos anos, afastada da Argentina e, pela

primeira vez, conta as circunstâncias que lhe fizeram fugir:

fora presa e torturada por 36 dias, em um lugar cheio de

pessoas nas mesmas condições que a sua, vendo, ainda, os

filhos dos presos serem levados embora.

Diante de tantos relampejos, Alícia percebe suas verdades

ruírem, começa a conhecer uma outra história que não a

que estava acostumada a ensinar; começa a “apropriar-se

de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento

de um perigo”.

Alícia inicia um caminho sem volta, porque não é tarefa

simples fingir não ver o que realmente vimos ou não saber o

que descobrimos.

Sua transformação, sutil, vai aparecendo no novo penteado,

na desconfiança em relação ao marido, na aproximação com

o cunhado, que é o oposto do irmão. As brigas entre seu

marido e o sogro se enchem de sentido. O pai diz ao filho:

“Pelo menos, eu tenho a consciência limpa” - será que o

desgosto de ter um filho colaborador da ditadura argentina

pode se equipar ao sofrimento do filho torturado em seus

porões?

Como a história,

o enredo do filme se repete. Se, quando menina, Alícia

esperava pelos pais que nunca voltariam porque estavam

mortos, Gaby espera e balança na mesma cadeira por uma

verdade que talvez não virá.

No relacionamento do professor de literatura com essa

professora de história, dela com seu marido, com a filha,

com o mundo ao seu redor, além de surpresa há muita

esperança. A História Oficial é um filme que tem um

discurso positivo no sentido de narrar uma história em que

é possível mudarmos de lado, quando percebemos que o

lado em que estamos pode ser o errado. Além de um certo

otimismo, há um apelo para que se perca qualquer

inocência; e para pensarmos que talvez as coisas pelas

quais estamos dispostos a nos sacrificar para que continuem

assim, deveriam, na verdade, ser radicalmente

transformadas.

POSTADO POR ALESSANDRO DE PAULA : QUINTA-FEIRA,

OUTUBRO 23, 2008

A História Oficial, relata com riqueza de detalhes o momento mais sombrio da história da Argentina, uma das mais sangrentas ditaduras da América Latina. Na sequência do golpe militar por aqui, em 64, o Brasil passou a ocupar um papel de correia de transmissão da política dos eua. Qualquer movimento independente que surgisse na América Latina, os militares brasileiros ajudavam a planejar um golpe militar nos países vizinhos, inclusive emprestando "especialistas" em torturas, como denunciam mais de uma dezena de filmes sobre as ditaduras em todos esses países, um deles é "Chove Sobre Santiago" outro filme importantíssimo, não tão premiado como a História Oficial.

A História Oficial é o único filme latino americano a ganhar um Oscar de melhor filme, foi o filme mais premiado da história da América Latina e com certeza faz parte dos melhores filmes da década de 80.

O filme conta a história de uma professora alienada, casada com um dirigente do regime que se dá muito bem, enquanto toda a Argentina está passando fome, vários trabalhadores e estudantes perseguidos e desaparecidos, incluindo os filhos de mulheres grávidas, quando além matar as mães sob tortura, os sanguinários ainda davam seus filhos para militares ou apoiadores do regime que não podiam ter filho, ou vendiam para famílias abastadas que não se opunham ao fato e em alguns casos, ignoravam que esses filhos eram tirados das mães que acabavam morrendo nos porões da ditadura militar Argentina.

O filme teve a importância de denunciar para o mundo o que estava acontecendo na Argentina, as mães e avós da Plaza de Mayo. Quando estive em Buenos Aires, fiz questão de conhecer, pois até hoje, 30 anos depois, ainda se manifestam na praça em frente à Casa Rosada (Palácio do Governo Argentino), para que não sejam esquecidos seus filhos e netos desaparecidos. Hoje em dia uma vez por semana, às 5as feiras, na época era diário, quando a imprensa mundial era proibida de cobrir os acontecimentos por lá, só depois do começo da abertura e o lançamento do filme, e também sua premiação no Oscar é que o mundo passou a conhecer melhor o sofrimento da população portenha.

FICHA

"A História Oficial" Título original: La historia oficial País/Ano: ARG, 1985Duração: 112 minutos

Héctor Alterio - Roberto Norma Aleandro - Alicia Chunchuna Villafañe - Ana Hugo Arana - Enrique Guillermo Battaglia - JoseChela Ruíz - SaraPatricio Contreras - Benitez María Luisa Robledo - NataAníbal Morixe - MillerJorge Petraglia - Macci Analia Castro - Gaby Daniel Lago - DanteAugusto Larreta - GeneralLaura Palmucci - Rosa

Direção: Luis Puenzo

Genero: Drama

Favoritos Página Inicial - Recomendar - Cadastre-se para receber a newsletter e participar de sorteios © Este site 1997-2008 by Projeto Autobahn

Desde 1993, o ponto de encontro dos fãs dos anos