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A Historiografia Lingüística: Rumos Possíveis

Jarbas Vargas Nascimento 0. Considerações Iniciais

O interesse que o objeto língua conquistou no interior das ciências humanas, ultimamente, tem sido de tal importância que impulsionou o aparecimento de múltiplas abordagens, ampliando o campo da Lingüística e da História. Embora em bases diferentes, observamos um consenso entre os estudiosos, na medida em que tomam a língua em sua função de interação social, como processo e produto da atividade histórica do homem. Como processo e produto histórico, queremos dizer que a língua resulta de cada instante de interação entre o passado e o presente em meio ao contexto sociocultural. Não encontramos razões para dizer que os fenômenos históricos e lingüísticos, situados em momentos e espaços geográficos diferentes, apresentem as mesmas características e mereçam a aplicação de critérios similares no processo de leitura do documento e do mundo onde se inserem.

Com base nessas e outras reflexões, objetivamos refletir, neste capítulo, a respeito dos fundamentos da Historiografia Lingüística que, na atualidade, se conceitua, conforme considerações apontadas por Konrad Koerner (1995, 1996), como uma maneira de reescritura de fatos da história da língua, por meio de princípios. Esclarece, ainda, o autor que a Historiografia Lingüística opera com questões de periodização, de contextualização e com temas relativos à prática lingüística efetiva, com o intuito de identificar diferentes fases de desenvolvimento da língua ou de períodos mais longos. K. Koerner realça, também, que a Historiografia Lingüística lida com questões que envolvem os fatores externos que influem ou podem ter causado algum impacto no pensamento lingüístico.

A nossa intenção é delinear o aparato teórico-metodológico da Historiografia Lingüística, dando a conhecer seu campo e alcance, seu caráter de cientificidade e suas orientações para a análise da língua em uso em documentos escritos.

Nascida em decorrência do desenvolvimento da Lingüística Histórica, a Historiografia Lingüística se constitui como ciência em ascensão no âmbito da Lingüística, integra o universo das áreas de conhecimento que concebem a língua em sua relação com a história e a realidade social, mas não se confunde com a História da Lingüística, nem com a História da língua, nem com História das Idéias Lingüísticas, nem com a Historiografia da Lingüística. Embora essas áreas de conhecimento se rotulem diferentemente, apresentem perspectivas, princípios, características e procedimentos diferentes, assumam como eixo comum a língua e sua vinculação com fatores históricos e socioculturais, não se opõem, não se mostram estanques, tampouco se apresentam hierarquicamente ordenadas. Em outras palavras, elas se distinguem por singularizarem um modo específico de tratamento da língua. Além disso, seus pesquisadores tendem a refrear um possível distanciamento entre essas áreas, na busca de explicitar uma interdisciplinaridade necessária entre elas. O fato de essas ciências terem um mesmo fio condutor leva-nos a compreender não somente os processos que permeiam uma abordagem histórica da língua, mas também aponta-nos a complexidade dos estudos historiográficos.

Entendemos que os avanços e as atuais tendências nas ciências, sobretudo na Lingüística, tornam-se mais amplos, quando encontram possibilidades de interlocução com outras ciências sociais, em especial, a História, gerando novos métodos e técnicas de investigação da língua em fontes documentais. Bastante

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decisivo é o fato de que essas alianças implicam diferentes modos de ver o objeto língua – lugar de concretização das dimensões históricas, culturais e identitárias de um grupo social – e a maneira como exige que o pesquisador considere, no processo de interpretação, as contribuições advindas de todos os lados. Estas situações nos fazem perceber não somente a originalidade da abordagem historiográfica, mas também a ocorrência de uma efetiva mudança de paradigma no interior da Lingüística.

Tais considerações indicam que é nosso objetivo trazer à tona a discussão de alguns elementos da abordagem histórica da língua, ligada a novos paradigmas da contemporaneidade e procurar dar respostas a questões relativas às bases teórico-metodológicas da Historiografia Lingüística e, concomitantemente, mapear as possibilidades de caracterizá-la como ciência no contexto da Lingüística atual, direcionando, de certa forma, dispositivos que possam subsidiar análises de documentos nessa área de conhecimento. 1. As bases epistemológicas da Historiografia Lingüística

A partir das questões acima descritas, torna-se necessário explicitarmos que a Lingüística, desde o seu nascimento, se constituiu como uma ciência histórica, fato que nos faz compreender a necessidade de não perdermos esse fio condutor. Desse modo, podemos verificar que os precursores da Historiografia Lingüística foram incorporando novos aspectos à abordagem da língua e estabelecendo relações gerais com as transformações que ocorrem com o homem e a língua na história.

Assim sendo, o argumento central deste capítulo se alicerça no princípio de que, hoje, mais do que nunca, com a importância dada à linguagem nas ciências sociais, de modo particular, na Lingüística e na História, podemos vislumbrar diversas maneiras de abordagem da língua, fato que permite ao pesquisador lançar um olhar inovador, ou seja, prioritariamente multidisciplinar, sobre esse objeto de estudo e adotar uma nova metodologia no exame da língua. Ao tomá-la como produto histórico-social, configura-se essa perspectiva nos domínios de articulação, em essência, da Lingüística e da História, que se apresentam como duas áreas distintas de conhecimento, mas que, aliadas e aliando-se a outras ciências que tratam do homem, são capazes de dar conta da descrição, explicação e interpretação dessa articulação, gerando conhecimentos novos. Ainda que esse não seja o único tratamento possível, a Historiografia Lingüística tende a ganhar importância, principalmente se observarmos seu alcance e amplitude. Não há dúvida de que a adoção da inter e multidisciplinaridade e a valorização das condições sócio-históricas de produção lingüística constituem fatores determinantes para a compleição da Historiografia Lingüística.

Dito isto, fica claro que o surgimento de um novo paradigma não impede que as ciências, sejam elas quais forem, se reorganizem, assumindo novos enfoques pela reordenação de seu campo teórico, enfim, avancem em relação aos conhecimentos até então adquiridos.

Umberto Eco (1993:70), ao tratar da interpretação de textos, afirma:

Thomas Kuhn observa que, para ser aceita como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que as outras teorias da lista, mas não precisa necessariamente explicar todos os fatos de que trata. Acrescentarei, porém, que

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também não deve explicar menos que as teorias anteriores.

Seja como for, desde 1970, temos assistido a debates em torno de questões que envolvem a língua inserida em determinado período ou em fases de mudanças e em articulação com fatores socioculturais. Impulsionados pela noção de paradigma colhida, inicialmente de forma distorcida, da obra de Thomas S. Kuhn (1962), A Estrutura das Revoluções Científicas, alguns pesquisadores, àquela época, tentaram construir um quadro epistemológico em que se incluíssem questões históricas e historiográficas da língua. Boaventura de Souza Santos (1987:10) expressa assim a concepção de paradigma, com base em T. S. Khun:

O termo é usado pelo autor para designar um modelo global de racionalidade científica que admite variedade inter, mas que se distingue e defende, por via de fronteiras ostensivas e ostensivamente policiadas, de duas formas de conhecimento não científico potencialmente perturbadoras e intrusas: o senso comum e as chamadas humanidades ou estudos humanísticos.

Aquele otimismo epistemológico gerado pela revolução científica, porém de

transição paradigmática, gerou grandes desdobramentos que levaram a unir, contextualizar e globalizar os conhecimentos até aquele momento fragmentados e compartimentados. Além disso, incentivou eventos culturais internacionais e produziu efeitos produtivos sobre as teorias de linguagem. No entanto, todo esforço empreendido não redundou em uma metodologia para a Historiografia Lingüística, tendo em vista a sua não homologação por toda a comunidade científica.

Talvez seja exatamente o fato da adoção da interdisciplinaridade pretendida pelo novo paradigma das ciências, na década de 1970, e, ainda em vigência, no ambiente intelectual da atualidade, o grande desafio para a consolidação da Historiografia Lingüística, cuja denominação resulta da interação da Lingüística e da História. Ressaltamos que se somam à História, nesse processo de interação, outras áreas de conhecimento, tais como a Sociologia, a Filosofia, a Antropologia, a Psicologia, por exemplo.

Os estudos históricos e lingüísticos, hoje, partilham com a maioria das ciências humanas. Esse processo de interação entre as diferentes áreas de conhecimento foi descrito por Edgar Morin (2001), quando realça que as pesquisas em ciências sociais, evidentemente nelas incluídas a Lingüística e a História, exigem uma visão ampla e um enfoque em profundidade do problema a ser perseguido, mas, acima disso, um enfoque que ultrapasse as fronteiras históricas de cada uma das áreas. Assim sendo, a abordagem fragmentada da ciência pode resolver um problema, mas, muitas vezes, ocasiona a perda da sabedoria no conhecimento. A cultura humanística, de certa forma, é uma cultura genérica que, pelas vias da filosofia, alimenta a inteligência geral. A cultura científica, de natureza diferente, caracteriza as áreas de conhecimento e acarreta diferentes descobertas, mas, necessariamente, precisa estabelecer parcerias entre elas.

Mesmo integrada à vida acadêmica, a noção de interdisciplinaridade carece, ainda, de uma clarificação e conseqüente afirmação no interior da História Intelectual, a fim de que não fique no esquecimento e dificulte ao pesquisador o diálogo e as parcerias possíveis entre as diferentes áreas de conhecimento. Faz-se necessário mostrar que não

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há nada de errado no comportamento interdisciplinar, muito pelo contrário: as contribuições do lingüista para o historiador, e vice versa, têm sido fundamentais, na medida em que, delimitadas as fronteiras de ambas as especificidades, os pesquisadores possam interpretar representações inscritas no documento escrito, decorrentes de atitudes de diálogo e de troca de resultados de pesquisas.

Definida a relação dialogal da Lingüística com a História, que se cruzam, se relacionam e se complementam, trazemos à reflexão Serafim da Silva Neto (1952:13), quando afirma:

As línguas são resultados de complexa evolução histórica e se caracterizam, no tempo e no espaço, por um feixe de tendências que se vão diversamente efetuando aqui e ali. O acúmulo e a integral realização delas depende de condições sociológicas, pois, como é sabido, a estrutura da sociedade é que determina a rapidez ou lentidão das mudanças.

Decorre disso que as mudanças na língua estão correlacionadas às que ocorrem no contexto sócio-histórico e isso demanda que consideremos, na abordagem historiográfica, seu caráter individual e social. Ora, as mudanças lingüísticas se expressam em fatos reais. Acontece, por conta disso, que os usuários da língua manifestam todos os seus sentimentos lingüisticamente. Em geral, não objetivam alterar a língua, mas colocá-la em uso efetivo; razão por que a língua muda no uso, o que a leva à inovação e à mudança. Esse processo de mudança lingüística em meio às condições históricas de seu uso exige que assumamos uma nova concepção de descrição lingüística, ou mesmo que a neguemos, uma vez que nessa descrição deve estar incluída a história.

Pela exigência de integração das condições histórico-sociais e pela aceitação de um procedimento inter e multidisciplinar em Historiografia Lingüística (daqui para frente HL), torna-se possível conciliar perspectivas lingüísticas, históricas e socioculturais e agregar valores no processo de compreensão e interpretação do documento. Este dado faz com que o pesquisador construa, a partir de cada ciência, um determinado modo de agir, assuma conceitos e metodologias próprias a elas, armazene informações científicas acerca do desenvolvimento humano e social, o que redunda em certa complexidade de seu trabalho e em várias historiografias lingüísticas. Não pensamos que deva haver uma única abordagem em HL, isto é, uma exigência de homogeneidade na forma de tratamento histórico da língua, o que, aliás, seria até anticientífico. O fato de privilegiarmos aqui a HL não significa absolutizá-la, tratando-a como a única possibilidade de explicação da língua. A razão primordial por que a elegemos é por vê-la, hoje, como um paradigma alternativo de abordagem lingüística e isso é apenas por um juízo de valor.

Como ciência lingüística, a HL tende a romper o dogma reducionista de mera descrição dos fenômenos lingüísticos. Ela trata das relações complexas em que a Lingüística e a História se organizam entre si, de forma convergente, no tratamento da língua. A complexidade desta interdisciplinaridade permite o conhecimento da língua e do homem e de tudo que com eles se relaciona. Nesta perspectiva, a HL nasce com o propósito de inserir a língua no universo humano, não para a isolar, mas para situá-la nesse universo, para integrar e fazer convergir para ela os elementos que a envolvem. Nessa perspectiva, o fato de a Lingüística e a História não serem regidas por leis, não

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serem deterministas, contribui eficazmente para que HL se consolide com base no diálogo e nas inter-relações, adquirindo cientificidade em torno dessas particularidades.

Sem dúvida, a HL, de acordo com o que entendemos, parte do princípio de que a língua, enquanto produto histórico-cultural, torna-se simultaneamente veículo e expressão de dados socioculturais que pressupõem um olhar histórico. O fato de voltar ao passado por meio da reatualização dos dados impressos nos documentos conduz-nos a compreender o sentido primeiro, a desvelar o social e a produzir uma interpretação do homem e do passado dele e da língua. Neste sentido, a HL permite-nos sistematizar lingüisticamente os dados do passado, tornando-os memória, ao mesmo tempo em que se abre ao homem para reconstituir no/pelo documento os fatos passados, impossíveis de reconstituição pelo processo de rememorização. Isso posto, fica evidente que a HL visa a oferecer um modelo teórico que dê conta de descrever e explicar o lingüístico e o histórico organizados no documento.

Enquanto registro das atividades do homem, o positivismo do fim do século XIX esclarecia que o documento escrito, de modo particular, o oficial, assumia um peso de prova histórica. Essa objetividade era garantida pela posição que aquela corrente externava, ao postular fidelidade do texto aos fatos da realidade. Por isso, desprezava-se qualquer possibilidade de influências implícitas na ação do produtor do documento, fato que fez com que se entendesse o documento escrito como reflexo fiel da realidade. Em decorrência disso, apregoava-se que o melhor historiador era aquele que fosse capaz de registrar com maior fidelidade o acontecimento. As outras formas de registro, em que se mantinha maior subjetividade, eram tratadas como marginais.

Mais tarde, a Escola dos Annales altera essa concepção positivista de História, no mesmo instante em que postula que o histórico se faz a partir das ações humanas e integra o documento escrito a outros de natureza diversa, alterando a relação historiador vs documento. Por conta disso, a Escola esclarece que o documento não fala por si próprio, mas necessita de questionamentos para ser compreendido. Assim, o ponto de partida para a pesquisa histórica passa do documento para o problema. Para essa corrente, a objetividade do conhecimento histórico é garantida pelo método, enquanto as marcas de autoria se refletem no tema, na seleção e ordenação do documento e, principalmente, na metodologia, responsável pela cientificidade de sua pesquisa.

É importante afirmar que, pela HL, de modo particular, por sua atitude multidisciplinar e por sua preocupação hermenêutica, podemos identificar, no documento, as pistas que podem revelar melhor a sociedade, o homem e a língua. Isso equivale a dizer que o pesquisador se torna capaz de depreender o que está materializado no documento e, por sua experiência atual, reconhecer, de maneira mais ampla, os elementos da realidade passada e compreender mais profundamente a si mesmo, o contexto em que vive e programar-se para o futuro. Por isso, não basta ao historiógrafo da língua ter bom conhecimento das teorias e das metodologias em Lingüística. Além desse domínio específico, é indispensável que tal pesquisador tenha conhecimento profundo da história intelectual e apreenda as contribuições de outras ciências, a fim de exercer, com eficiência, seu ofício. Para nossos interesses, faz-se necessário esclarecer, também, que o historiógrafo da língua deve recorrer ao documento escrito para realizar sua pesquisa, fazendo dele fonte de conhecimento da sociedade, do homem e da língua do passado como possibilidade de entendimento do presente.

Não seria exagero afirmar aqui que a consolidação das bases da HL, cujo campo abarca a reconstituição do passado representado em documentos escritos e a descrição e explicação das continuidades e descontinuidades observadas na história da língua, impõe, segundo K. Koerner (op.cit.:36): grande demanda de preparo intelectual,

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amplitude de escopo e profundidade de saber, exigindo um conhecimento quase enciclopédico da parte do pesquisador, dada a natureza multidisciplinar dessa atividade.

Mais do que isso, ao buscar a interpretação do documento na perspectiva que estamos afirmando, o historiógrafo da língua deve saber que sua especificidade não se prende somente à dimensão lingüística do documento, lugar onde se organiza e se enquadra um modo de compreensão da realidade, mas também se estende ao território do contexto intelectual, espaço extralingüístico por meio do qual se pode chegar ao conhecimento do histórico e do social. Queremos dizer que o pesquisador em HL precisa conhecer o todo, mas de forma metodologicamente organizada. Para isso, é determinante, além daquelas competências, a capacidade de síntese e a de seleção, bem como uma formação intelectual adequada para interpretar fontes documentais e relacionar os dados com suas possíveis interconexões.

Pela necessidade de integrar a HL no interior das ciências e, de modo particular, nas tendências da Lingüística contemporânea e consolidar uma epistemologia adequada à investigação nessa área, devemos buscar uma maneira de abordagem da língua, privilegiando sua dimensão histórico-social. Além disso, torna-se necessário quebrar a dicotomia sincronia/diacronia e considerar essa oposição apenas um ponto de vista metodológico no processo de análise documental.

Por um lado, em HL, é possível fazer um recorte no processo de mudança que sofre a língua, a fim de apreendê-la no tempo e em sucessivos espaços de tempo em que mudanças e regularidades são perceptíveis. Isto quer dizer que, a cada momento, a língua manifesta uma atualidade no mesmo instante em que se revela como um produto da história. De outro lado, a oposição continuidade vs descontinuidade não se constitui como dois estados divergentes, mas convergentes e direcionam o exame e a interpretação das marcas lingüísticas no contexto de sua história. Trata-se de uma atividade que faz do historiador um lingüista e do lingüista um historiador, ambos voltados para a compreensão do passado da língua e do homem. Esta bifurcação dialógica deixa transparecer o modo como a HL opera a produtividade lingüístico-histórica na interpretação do documento.

A preocupação com a tarefa do pesquisador é referendada por K. Koerner, quando reitera que o historiógrafo da língua deve apresentar dados empíricos, em uma perspectiva adequada a esses novos paradigmas, que se apresentam como rupturas no interior das ciências sociais. É por esse comportamento que o pesquisador terá condições de explicar mais conscientemente os fatos passados impostos aos documentos e oferecer uma interpretação mais próxima do que acontece hoje com o homem e a língua.

Levando-se em conta que o historiógrafo da língua busca, constantemente, em seu ofício, explicações para as mudanças e continuidades que se observam na língua, faz-se necessário que consideremos, por conseguinte, a língua não como sistema fechado em si mesmo, mas como uma práxis, determinada por fatores sócio-histórico-culturais. O que, na verdade, queremos afirmar com isso é que a realidade concreta em que vive o homem caracteriza-se como um espaço social mediado pela prática lingüística. E, nesse sentido, a língua é mais do que uma simples expressão do pensamento ou uma mera atividade comunicativa.

Embora encontremos em Ferdinand de Saussure esclarecimentos para aqueles que postulam uma concepção estática de língua – a língua é em si mesma um sistema imutável –, podemos observar que, por essa perspectiva, a língua que não muda não é a mesma exposta aos fatores externos, ou seja, aquela constituída pela historicidade e concretizada pela interação humana.

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Vale ressaltar que é necessária e natural na língua a mudança. Negar as mudanças na língua significa acatar uma redução na compreensão do objeto lingüístico. As alterações nos costumes, nas idéias, em todos os setores da vida humana e, por conseguinte, no mundo, impõem, naturalmente, transformações lingüísticas. A mudança resulta, nessa perspectiva, de transformações históricas, indicadoras de necessidades socioculturais. Nesta direção, discutindo a dinâmica social e sua influência na língua, isto é, concebendo a língua como fenômeno indissociável da história, da cultura e da sociedade, S. da Silva Neto (1986:18) declara:

A língua é um produto social, é uma atividade do espírito humano. Não é, assim, independente da vontade do homem, porque o homem não é uma folha seca ao sabor dos ventos veementes de uma fatalidade desconhecida e cega. Não está obrigado a prosseguir na sua trajetória, de acordo com leis determinadas, porque as línguas seguem o destino dos que a falam, são o que delas fazem as sociedades que as empregam.

Na realidade, o que percebemos é que as mudanças se operam,

concomitantemente, na língua, na sociedade e no homem. Assim sendo, a língua não é apenas um instrumento ou um meio de comunicação; ela se manifesta como uma prática social, em sentido estrito, visto que o termo “social” se refere, em essência, ao homem. Todavia, a língua não é simplesmente um fato social entre outros ou como outros, ela é o próprio fundamento de tudo o que é social, já que o homem se define em relação a outros homens, isto é, no estabelecimento de relações num mundo de relações. Além disso, a aceitação de língua como práxis social faz com que o historiógrafo da língua abandone a simples observação dos fatos lingüísticos e assuma uma metodologia específica para tratamento desse objeto. Na realidade, a língua se abre a um encadeamento de múltiplos fatores que se conjugam e interagem. O conhecimento do mundo e de língua que se pretende buscar no documento precisa fundamentar-se em modelo epistemológico que combine, no processo de interpretação do documento, o autor, o texto com suas influências implícitas e explícitas, o leitor, entre outros fatores. A aceitação dessa postura pode intervir na apreensão do que encerra a fonte documental.

Talvez fosse importante enfatizar, mais uma vez, que, enquanto prática social, portanto dinâmica, a língua se constitui para cumprir uma função própria do ser humano e, como conseqüência, deve corresponder às expectativas do homem e atender às suas necessidades nas relações humanas, tornando-se, por conta disso, um produto histórico em atividade. Nesta perspectiva, a língua não coincide com o sistema para se adequar ao tempo cultural, social e histórico. As transformações decorrentes das interações com a exterioridade não significam uma degeneração, como postulavam alguns estudiosos do século XIX, entre eles o alemão August Schleicher, nem progresso ou aperfeiçoamento, como defendia já no final daquele século o dinamarquês Otto Jaspersen. As línguas mudam, porque têm história, constituem uma realidade em constante transformação no tempo, afirma Eugênio Coseriu, (1979:57).

A tentativa de acomodar a epistemologia da HL no interior da Lingüística sem negligenciar sua característica inter e multidisciplinar, levou alguns pesquisadores a estabelecerem marcos de relacionamento, a priori, com a História e, a posteriori, com a História Intelectual, a Filosofia, a Filosofia das Ciências, a Sociologia e outras áreas das ciências humanas. Do que acenamos, anteriormente, podemos deduzir que os

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conhecimentos resultantes da aproximação da Lingüística com outras ciências sociais abrem-se a uma análise que não se prende unicamente à Lingüística, mas também ao espaço da contextualização em que podemos apreender o histórico, o social e os dados de compreensão do mundo, da sociedade e do homem. Assim, o historiógrafo da língua, ao dialogar com áreas correlatas de conhecimento, oferece perspectivas diferentes em função das especificidades de cada uma dessas áreas. O importante é a abertura que se deve ter em HL para a familiarização com as diversas teorias e práticas lingüísticas, bem como suas transformações, adaptações em função de progressos científicos.

A evidência do debate atual sobre as parcerias que a HL faz com outras áreas de conhecimento levou alguns pesquisadores a certo avanço face ao desenvolvimento dessa área de conhecimento. Exemplo disso ocorre, quando da tentativa de estabelecer pontos de contatos entre a HL e a História das Idéias. Embora as discussões tenham sido valiosas, K. Koerner observa que a falta de uma epistemologia definida para a História das Idéias revelou-se pouco proveitosa ao historiógrafo da língua, já que, muitas vezes, os pesquisadores daquela área se valeram do pós-estruturalismo francês e, no processo de interpretação do documento, apoiaram-se nas fontes e terminologias do presente antes de reconstruir o passado, ocasionando, por conseguinte, distorções.

Para caracterizar bem essa questão, consideramos que a especificidade da Lingüística, como ramo de conhecimento e, dado seu objeto – a língua – apreendido em todas as suas manifestações, exige mais do que uma aproximação com a História das Idéias ou a História da Filosofia. Ainda que seja verdade o que acabamos de afirmar, vale lembrar que, se pretendermos ter uma compreensão ampla do clima intelectual geral de uma época na qual determinadas teorias são desenvolvidas, a contribuição da História das Idéias torna-se imprescindível. De modo geral, podemos dizer que a História das Idéias amplia a noção de clima intelectual, na medida em que integra as teorias lingüísticas no contexto geral da época, inclusive, acatando como parte da constituição do clima intelectual a ação dos indivíduos que promovem atividade científica em determinado período.

Tendo em vista as observações antecedentes, apresentamos, a seguir, os princípios de análise em HL, que devem nortear pesquisas em fontes documentais em diferentes períodos da história da sociedade, do homem e da língua. Para K. Koerner (1995), a pesquisa historiográfica se constitui como uma construção, arquitetada por um controle de operação sucessiva estabelecido pela aplicação dos princípios da contextualização, da imanência e da adequação teórica. 2. Propondo princípios para a Historiografia Lingüística

De 1980 até hoje, a tendência à pesquisa historiográfica apresenta-se visível,

pois têm acontecido diversos encontros culturais nacionais e internacionais, publicações de teses e artigos científicos, bem como surgido grupos de pesquisas e acontecido debates sobre o campo, princípios de investigação e a metodologia da HL. Embora as discussões tenham avançado substancialmente, em virtude da explicitação de conceitos básicos, podemos dizer que, se não se chegou a uma unanimidade em pesquisa em HL, ao menos, abriram-se perspectivas totalmente novas e pertinentes ao tratamento histórico da língua. Faz-se necessário realinhar os alicerces da HL, a fim de consolidar seu suporte teórico-metodológico, considerando a natureza de seu objeto de estudo, sua complexidade e o fato de sua natureza inter e multidisciplinar. É bem verdade que o

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surgimento de trabalhos de mestrado e doutorado, tendo como suporte a HL, expandiu-lhe a perspectiva de abordagem e, obviamente, tem apresentado novos ordenamentos à pesquisa lingüística.

Entre as questões abertas, isto é, ainda em discussão, incluem-se problemas de procedimentos de pesquisas, de periodização, de contextualização, de identificação das concepções lingüísticas vigentes e passadas, até mesmo de implicações histórico-filosóficas na produção do documento e de influência implícitas ou explícitas de fatores de diferentes ordens, enfim, temas que podem dar margem a novos direcionamentos para uma pesquisa efetiva em HL. A simples explicitação desses termos já nos revela a complexidade da pesquisa historiográfica na atualidade.

O campo em que situamos a HL é marcado pelo fato de que a apreensão do objeto língua em uma perspectiva histórica e interdisciplinar permite-nos decidir que modelos descritivos podem ser aplicados nessa área de conhecimento. Sabemos que a HL não visa à evolução das idéias lingüísticas, ao longo do tempo, o que caberia, a meu ver, à Historiografia da Lingüística ou até mesmo à História das Idéias Lingüísticas. Não é nosso desejo abordar, em detalhe, cada uma dessas áreas de conhecimento, mas temos consciência de que a metodologia que apresentam objetiva fazer mais compreensíveis ao homem os fenômenos histórico-lingüísticos.

Tendo como fundamental a questão da perspectiva histórica de abordagem da língua, a HL se constitui pela inter e multidisciplinaridade e tem a ver com o desenvolvimento do saber lingüístico no tempo. Neste sentido, a HL seleciona as diferentes práticas lingüísticas, tais como a gramática e a história de seu ensino, a eloqüência, a compilação lexicográfica até as comparações entre línguas. Abarca, também, interesse pelas gramáticas gerais, as origens das línguas e sua abordagem enquanto fenômeno tipicamente humano. Cabe, ainda, acrescentar os seus aspectos descritivos, os diversos modelos lingüísticos e seus métodos de ensino, entre outros, apenas para acenar o quanto a HL se acha comprometida com o homem e a língua.

Uma questão já resolvida é que os estudos históricos e historiográficos têm pautado suas pesquisas em documentos oficiais e não oficiais do passado, sem desprezar os documentos, muitas vezes reconhecidos como “marginais”, como por exemplo, cartas pessoais, manuais escolares, vocabulários práticos, que se tornaram muito importantes por difundirem informações do conhecimento lingüístico e social. Não há dúvida de que o grande número de fontes não oficiais deve ser tomado como documento de análise, principalmente, se observarmos o quanto tais textos revelam as ações humanas.

Retomemos a questão dos princípios em HL, alvo desse tópico. K. Koerner (1995:34), ao tratar da questão dos princípios em HL, traz à tona a discussão sobre o recurso científico da metalinguagem.

Quando se trata de determinado assunto em Historiografia Lingüística, o pesquisador não pode fugir à questão da metalinguagem, especialmente quando, ao discutir teorias de períodos passados, estiver ao mesmo tempo tentando torná-las acessíveis ao leitor do presente e tentando não distorcer sua intenção e significados originais. Ao menos que o único objetivo do historiógrafo seja colecionar antiguidades, isto é, descrever conceitos desenvolvidos muitos anos atrás unicamente nos próprios termos utilizados, ele

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será tentado a usar um vocabulário técnico moderno na sua análise. Este procedimento, entretanto, tem levado a inúmeras distorções na HL, e qualquer historiógrafo perspicaz deve perceber as armadilhas e voltar-se para a questão da metalinguagem, isto, é a linguagem empregada para descrever idéias passadas sobre a linguagem e a Lingüística.

Para o autor, o uso de terminologia do presente ou de termos técnicos da

modernidade para interpretar o passado, seja da língua ou da Lingüística, gera problemas que podem ser solucionados pela metalinguagem. Assim, podemos diminuir possíveis equívocos advindos do não uso do vocabulário técnico moderno na análise de documentos, se nos valermos da metalinguagem que, no campo da Lingüística, já ganhou um aprofundamento. As primeiras noções de metalinguagem surgiram de discussões entre filósofos e matemáticos e, posteriormente, na Literatura, sempre designada como um procedimento para descrever idéias passadas sobre a linguagem e a Lingüística.

Para as perspectivas da HL, a metalinguagem se caracteriza como um recurso científico indispensável ao tratamento da língua, tornando-se, por conseguinte, uma ferramenta para o historiógrafo da língua, que identifica e descreve em documentos do passado o passado da língua e do homem, sem se esquecer que ele, o pesquisador, é um homem da modernidade. Para Marly de Souza Almeida (2003:92)

A metalinguagem pode ser esse recurso e

está ao alcance de vários ramos do saber, uma vez que tudo pode ser transformado em linguagem. No que diz respeito à HL, a metalinguagem vai além das fronteiras de um conjunto de tecnologias para descrever as línguas em seus usos ou funções. É um conceito-chave enquanto diferenciador da linguagem, para que não se confundam os dois níveis em que ela permite operar: enquanto objeto de investigação e enquanto técnica de observação.

Entre o passado e o presente há diferenças substanciais que não podem ser

confundidas pelo pesquisador em HL. É preciso não descuidar dos dados e concepções do passado e tentar validá-los no interior do documento. Assim sendo, faz-se necessário um entendimento claro das diferenças que separam o passado do presente, pois a maneira como o historiógrafo da língua operacionaliza a metalinguagem, determina o sucesso ou o fracasso da pesquisa.

A aplicação de teorias modernas para a interpretação do passado pode produzir um efeito distorcido na informação, ao mesmo tempo em que pode gerar interferências e inferências não autorizadas pelas pistas presentes no texto e no contexto em que o documento foi produzido. Ocorrem, ainda, possíveis interferências, quando o leitor moderno altera o significado de enunciados da história por associação, por exemplo, em um mesmo texto de elementos do passado e da atualidade. O recurso da metalinguagem pode ser um refreador dessa atitude e a ele devem ser somados, segundo K. Koerner, três princípios, que devem ser evocados sucessivamente como dispositivo metodológico, capaz de garantir a cientificidade da pesquisa historiográfica.

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A operacionalização dos três princípios, após o emprego do recurso da metalinguagem, tem como objetivo colocar o passado em relação ao próprio passado e, posteriormente, ao presente, a fim de que o historiógrafo da língua, de forma metódica, possa depreender no documento aquilo que o produtor revela, ou seja, as influências implícitas e explícitas advindas do contexto em que o documento foi produzido, para que, no processo de interpretação, considere aquele momento sociocultural e a partir dele faça aproximações com a atualidade.

a) Princípio de contextualização - diz respeito ao levantamento do clima de

opinião da época em que o documento foi produzido. Isso significa que o documento a ser analisado não pode ser destituído de seu contexto histórico-cultural, das concepções lingüísticas, sócio-econômicas e políticas em circulação à época de sua produção. À inserção temporal do documento, bem como às condições em que foi elaborado devem ser somados o autor, o tipo, a organização, além do editor, capa, tiragem, prefácio, introdução, sumário Todos esses elementos, entre outros, servem de referência para que o leitor relacione-as a todas as informações e atribua sentidos ao documento. O princípio da contextualização visa a dar sentido às informações materializadas no documento. Tudo isso reforça o fato de que a operacionalização desse princípio torna evidente o conteúdo do documento, no mesmo instante em que ajuda o historiógrafo da língua a perceber detalhadamente os dados ali materializados e sua relação com historicidade.

b) Princípio de imanência - diz respeito ao levantamento de informações e ao

estabelecimento de um entendimento amplo do documento, tanto no que concerne às teorias lingüísticas, quanto às abordagens em História, ambas em circulação no momento de produção, tendo em vista que o documento materializa as concepções histórico-intelectuais da época. Esse princípio visa a levar o pesquisador em HL a “recordar” o passado e a não interferir com concepções, dados e terminologias atuais no processo de investigação do documento selecionado. Na verdade, para compreender o documento, é preciso apreendê-lo em todos os seus aspectos simultaneamente: refazer sua trajetória, investigar os fatores vigentes nos acontecimentos históricos, dar-lhe atualidade e vida integral novamente. O princípio de imanência produz um efeito restaurador do passado e possibilita a compreensão do documento e, somado ao princípio de contextualização, constitui-se como uma diretriz segura para a operacionalização do processo de interpretação que se consolida pela prática do princípio que apresentaremos a seguir.

c) Princípio de adequação teórica – diz respeito à possibilidade de o historiógrafo

da língua comparar códigos com descrições verbais e reatualizar o documento, aproximando-o, no processo de interpretação, das teorias e terminologias atuais, a fim de que o homem moderno possa compreendê-lo com mais facilidade. Esse princípio requer que o pesquisador, a priori, tenha compreensão do passado, presente no documento e, posteriormente, interprete, à luz de tendências modernas, os dados registrados nele. Processa-se por esse princípio uma atividade hermenêutica, cujo objetivo é realçar os fatos do passado, mediados pelas preocupações do presente, para torná-los, na atualidade, socialmente úteis e necessários ao homem.

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A proposta de operacionalização desses três princípios, postulados por K. Koerner, determina um aparato metodológico para a HL. O pressuposto básico dessa metodologia para análise de documentos históricos pressupõe que o historiógrafo da língua esteja atento a todos os aspectos que possam levá-lo a um entendimento amplo do conteúdo do documento.

Entretanto, em face da relação passado e presente, Hyden White (1992:36) declara:

... a própria afirmação de se ter distinguido um mundo passado de um mundo presente de reflexão e práxis social, e de ter determinado a coerência formal daquele mundo passado, implica uma concepção da forma como o conhecimento do mundo presente também deve tomar, na medida em que é contínuo com aquele mundo passado. O compromisso com uma forma particular de conhecimento predetermina os tipos de generalizações que se pode fazer acerca do mundo presente, os tipos de conhecimento que se pode ter dele, e conseqüentemente os tipos de projetos que é lícito conceber para mudar esse presente ou para mantê-lo indefinidamente em sua forma vigente.

As fontes documentais não se configuram como um espelho fiel da realidade,

entretanto, estão abertas à interpretação do historiógrafo da língua, que também compõe com elas a história. As aproximações dos dados do contexto e os elementos da dimensão interna da língua permitem-nos desvendar, revelar e sistematizar as interações materializadas no documento. Além disso, as informações passadas, impressas no documento, surgem para o historiógrafo da língua não só como representativa de uma época, mas também como uma possibilidade de reconstituição de uma realidade para, primeiramente, recuperá-la e depois traduzi-la para a ciência de nosso tempo. 3. O Argumento de influência em Historiografia Lingüística

Entre os diversos temas ainda em discussão no âmbito da HL e que suscitam pesquisas está a questão do argumento de influência, que selecionamos para reflexão neste capítulo. O argumento de influência engloba, enquanto possível categoria de análise historiográfica do documento, além de outros fatores, o contexto sociocultural, marcado por interferências implícitas e explícitas apreendidos pelo escritor por uma atitude de transformação e assimilação de idéias em circulação no momento de elaboração do documento. Sob esse aspecto, podemos salientar que as influências se organizam a partir de implicações advindas da centralização de idéias e teorias veiculadas anteriormente e no momento de produção do texto e que, de alguma maneira, se reconstroem no interior do documento, e pode ser compartilhado com o conhecimento de mundo do historiador. Nossa hipótese é que o documento se caracteriza como um lugar onde estão representadas diferentes visões de mundo que se fundem. Por isso, as influências, que se fazem ali presentes e que, na maioria das vezes são difíceis de identificação, provocam correlações e diálogo com as situações e posições assumidas pelo produtor e sempre devem ser consideradas no processo de

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interpretação. Nessa direção, o documento escrito apresenta-se como ponto de convergência de influências e experiências individuais e sociais e que são decisivas, pois intervêm no processo de descrição e explicação dos fatos histórico-lingüísticos, o que amplia os domínios de observação para o historiógrafo da língua.

O documento, de forma alguma, está isento de influências e se constitui a partir da presença delas, articulando-as e tornando possível, pela língua a edificação de fatos históricos. Enquanto manifestação escrita, o documento se estabelece como um espaço de interlocução e de transformação de diferentes influências, que ali se fazem presentes, impondo, por conseguinte, para a sua compreensão e interpretação, uma necessidade de exploração metódica de todos os dados lingüisticamente manifestados. Para esclarecer melhor essa questão, podemos dizer que o documento é uma composição que resulta das relações de múltiplas influências em circulação fora e dentro dele, as quais, historicamente, se bifurcam, condensam-se e se sustentam por uma atitude de assimilação consciente ou não do autor.

Embora saibamos que uma multiplicidade de idéias atravessa a história e, inclusive, um determinado período histórico, assinalado por avanços nas diversas áreas de conhecimento, nem sempre é possível chegar a conclusões plausíveis acerca das influências recebidas pelo historiador/autor e dos reflexos delas no documento. Sem dúvida, o documento se organiza, antes de tudo, no âmbito cultural de uma sociedade e, como tal, pressupõe um conjunto de influências que são compartilhadas pelo grupo social. Isto significa dizer que, no momento em que um autor elabora um documento, consciente ou inconscientemente, suas teorias e idéias se constituem a partir de suas experiências individuais, mas é também constituída em consonância com o clima intelectual em que esse produtor se formou e em que ele vive, abrangendo, por sua vez, influências do passado e do presente. Disto decorre que o documento se apresenta como blocos de influências que se organizam para garantir a unidade do documento.

O importante na concepção de influências é o questionamento que se pode fazer sobre quais são as primeiras e como elas se integram ao documento para construir sentidos e de que forma o autor se aproveita delas na organização do conteúdo de seu texto. A influência não apenas interfere na língua, mas também no conteúdo do documento, visto que essa interferência nos possibilita caracterizar a influência enquanto uma ação histórica vinculada ao conjunto dos fatos que permeiam a vida cotidiana e que constituem a memória.

A partir dessas considerações iniciais, pretendemos estabelecer uma referência à questão do argumento de influência, sendo útil para tal tarefa examinar esse assunto no interior das discussões epistemológicas sobre a natureza da Historiografia Lingüística, tomando como base as reflexões de Konrad Koerner (1989). O autor esclarece que o termo “influência”, no interior da Historiografia Lingüística, encontra-se mal conceituado, tendo em vista que, ainda que seja utilizado por muitos pesquisadores, nenhum deles o conceitua, mas o emprega com abrangência ampla, causando deturpações, quando do processo de interpretação do documento. Sabe-se que, para interpretar com maior precisão um documento, sempre se faz necessário recorrer, não somente aos dados internos, mas também aos externos a ele. Não é que haja uma subordinação entre eles, ao contrário, devem ser operados simultaneamente, pois são interdependentes e permitem verificar correlações, que ultrapassam a simples semelhança, pois aqueles dados refletem influências contextuais compartilhadas.

Consciente de que o argumento da influência mereça uma avaliação mais cuidadosa e na tentativa de abordar o assunto e apontar novos rumos à questão, no quadro dos estudos historiográficos, K. Koerner se propõe a não apresentar um conceito de influência, mas a discutir três exemplos em que se pode evidenciar um conhecimento de mundo representativo da influência de autores do passado em outros do presente, cuja remissão às idéias e teorias por eles apontadas permitem ilustrar o problema em

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debate. Para tal, o autor toma a influência de Joahann Gottfried Von Herder (1744-1803) em Wilhelm von Humboldt (1767-1835), a de Charles Darwin (1809-1882) em August Schleicher (1821-1868) e, por fim, a de Emile Durkheim (1858-1917) em Ferdinand de Saussure (1857-1913).

A escolha desses autores se deveu, segundo K. Koerner, às discussões teóricas desenvolvidas por eles no que diz respeito à natureza da linguagem e que nos remetem ao final do século XIX e início do século XX, quando há uma mudança de paradigma nos estudos lingüísticos. Esse período foi marcado pela gramática histórico-comparativa que atinge o seu apogeu, fornecendo, inclusive, condições para que F. de Saussure elevasse os estudos lingüísticos à categoria de ciência. Nesse sentido, as possíveis discussões sobre a natureza da linguagem e as propostas apresentadas por W. von Humboldt, A. Schleicher e F. de Saussure impulsionaram os estudiosos a indagarem e desvendarem que fontes influenciaram direta e indiretamente as idéias e concepções desses autores.

Depreendemos da proposta de K. Koerner, embora ele não entre em detalhes, que sempre é preciso ter presente no processo de interpretação do documento, devemos valer não somente da visão de mundo do historiador/produtor, mas também das influências do contexto histórico que ele apropria e incorpora em seu texto. O reconhecimento e a aceitação dessa postura não nos levaria a rejeitar ou a excluir as possíveis evidências de influências, mas, muito pelo contrário, levaria o historiógrafo da língua a fazer delas algo adequado.

Tratando da influência de J. G. von Herder sobre W. von Humboldt, K. Koerner esclarece que a comprovação de influências, possíveis de serem detectadas nos documentos produzidos por W. von Humboldt são inúmeras, principalmente se observarmos que algumas idéias sobre a natureza da linguagem, anteriormente expressas por J. G. von Herder, ainda se faziam presentes no final do século XIX, constituindo parte do clima intelectual da época. Dessa maneira, inferimos das reflexões de K. Koerner que as idéias e valores, bem como os aspectos sócio-político-culturais, internalizados pelos indivíduos e compartilhados pela sociedade, tornam-se influenciadores tanto no processo de produção como de interpretação e de ressonância das informações impressas nos documentos.

Na visão de K. Koerner, há uma diferença no que tange aos pontos que motivaram as discussões sobre as influências recebidas por W. von Humboldt em relação às recebidas por A. Schleicher. Embora as discussões girem em torno das influências percebidas nas propostas relativas à natureza da linguagem em ambos os autores, K. Koerner afirma que, em A. Schleicher, elas são mais evidentes, tendo em vista o comprometimento de suas idéias com o materialismo darwinista. Esta tendência à inserção da teoria lingüística no interior da teoria evolucionista dos seres vivos contaminou as abordagens sobre a língua, reivindicando para ela o mesmo estatuto evolucionista determinado às espécies vivas.

Entre os argumentos apontados por K. Koerner, observamos que, ainda que, em A.Schleicher, se possa encontrar, ora influências da filosofia idealista, ora do positivismo e do darwinismo, isso não foi tido como consensual. Muitos dos estudiosos discutiram as abordagens de A. Schleicher de segunda mão, sem ter ido à fonte, ou seja, sustentados por outros autores, que produziram comentários e análises de suas obras. Todavia, tornou-se possível acatar a influência de C. Darwin exatamente porque a segunda metade do século XIX é marcada por forte influência evolucionista. Cabe, também, ressaltar que se havia espalhado pelo contexto social a idéia de que os fenômenos lingüísticos eram comprovadamente evolutivos, portanto, similares ao desenvolvimento do próprio homem.

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Nessa perspectiva, mesmo sabendo da veiculação do modelo naturalista na abordagem da língua, K. Koerner insiste que a verificação da influência resulta do exame da fonte primária, considerando-a, por isso, o espaço privilegiado para a observação das influências internas ou externas. Procurando dar conta dessa reflexão, a concepção de influência que poderíamos depreender da posição de K. Koerner nos leva a considerá-la como um produto resultante do processo de socialização e que, de certa forma, é garantida pelo historiador/produtor no momento de elaboração do documento. Assim, o documento torna-se um lugar de imbricamento de influências que se abrem à construção dos sentidos.

O terceiro exemplo proposto por K. Koerner refere-se à influência de E. Durkheim em F. de Saussure, tomando, como nos autores anteriores, o argumento de que ele, também, desenvolveu conceitos relativos à natureza da língua e da linguagem. Considerando a produção intelectual de E. Durkheim e sua contribuição cultural, tendo em vista que suas teorias sociológicas foram amplamente difundidas no final do século XIX e meados do século XX, houve razões para dizer que F. de Saussure tenha sido influenciado por ele, principalmente quando enuncia a dicotomia langue/parole. Tal informação se alicerçava na premissa de que as reflexões de F. de Saussure sobre a natureza da linguagem se pautavam na influência de E. Durkheim, já que, para o fundador da lingüística, a langue apresenta um caráter social.

Mesmo não confirmando uma influência explícita de E. Durkheim em F. de Saussure, em virtude de o próprio pai da Lingüística, por um lado, não ter jamais mencionado o nome de E. Durhkeim em suas obras, por outro, não há como contestar a influência que F. de Saussure recebera de William Dwight Whitney de quem ele mesmo admite explicitamente ser admirador. Para reforçar essa observação, K. Koerner (op. cit: 39.) esclarece:

Saussure também trabalhou na biblioteca da universidade, classificando cuidadosamente os livros novos que chegavam para a Faculdade de Letras e Ciências Sociais (cf. Muret 1915:46). Portanto, é razoável assumir que Saussure tinha uma idéia do que estava acontecendo naquele tempo nos campos da filosofia, psicologia, sociologia e outros, incluindo política econômica, um assunto ao qual ele se referiu muitas vezes em suas palestras.

Por fim, podemos entender que K. Koerner revela ser bem provável que haja eco das concepções de E. Durhkeim e outros estudiosos em F. de Saussure, pois as idéias do sociólogo impregnaram o clima de opinião da época. Vale lembrar que, naquele momento, elogiava-se não somente a brilhante trajetória intelectual de E. Durhkeim, mas, sobretudo, sua excepcional contribuição para a Sociologia. É preciso não perder de vista também a importância das abordagens sociológicas, no final do século XIX, quando se voltou contra o tradicionalismo e se reforçou o nacionalismo. Salientamos, ainda, que no início do século XX, se divulgavam novos elementos de investigação científica adequados à ciência Lingüística, que acabara de nascer. E. Durhkeim já havia postulado a importância do social na abordagem de qualquer fenômeno, fato que pode ter causado impacto em F. de Saussure, ao aceitar uma função social para a langue, por exemplo.

O objetivo inicial de K. Koerner consistia em fazer exemplificações em torno de alguns autores, cujos argumentos propostos deixam transparecer influências de idéias

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em circulação no instante de produção de suas obras. Ressalta, ainda, o autor a necessidade de maiores esclarecimentos sobre a questão da influência em HL, bem como a necessidade de conceituá-la e incluí-la como uma categoria de análise fundamental para a interpretação do documento.

Por trás de toda essa discussão, K. Koerner propõe critérios que podem subsidiar o estabelecimento de um conceito do termo “influência”, permitindo, portanto, sua aplicação na pesquisa historiográfica. E destaca, primeiramente, que a verificação da formação intelectual de um autor é significativa no processo de investigação de possíveis influências em suas idéias e teorias, pois permite estabelecer relações entre o que ele assimilou de sua formação e do clima intelectual em manifestação. Neste sentido, cartas familiares, correspondências, histórico escolar e cursos universitários que um autor tenha feito podem servir de fontes ao historiógrafo, afirma K. Koerner.

Além disso, há que estabelecer paralelos textuais entre teorias e entre conceitos, a fim de que se possam fazer remissões às fontes, bibliográficas ou sociais, em que o autor se inspirou para a sua produção. Por fim, K. Koerner esclarece que a evidência mais importante a favor da influência recebida por um autor está na referência explicita às idéias e concepções de um autor ou de trabalhos de outros. E alerta sobre a necessidade de ir à fonte primária e constatá-la, antes de qualquer declaração de influências não passíveis de comprovação. As dificuldades apontadas nos exemplos propostos por K. Koerner, principalmente aquelas que revelaram distorções, podem ser resolvidas se observados os critérios propostos.

Vemos que a problemática da influência não se deixa esgotar no domínio único e exclusivo de observações superficiais, pois ela se situa no ponto de interseção do individual e do social. Assim, no processo de verificação da formação intelectual do historiador, o cotidiano, meio no qual as influências se cristalizam, desenvolvem e repercutem, configura-se uma relação entre o interno e o externo, os valores pessoais do produtor e os de seu tempo. Nesse sentido, o documento se abre ao pesquisador, que deve ser capaz de estabelecer relações entre a visão de mundo ali apresentada e o clima intelectual passado e presente. As influências individuais e contextuais se manifestam ao historiógrafo da língua pelo universo onde se articulam e em que se desvendam no processo de fazer história.

Por tudo que apontamos acima, a concepção de argumento de influência em HL deve ser observada na análise do documento. O que geralmente acontece com o historiógrafo da língua é um esquecimento de que o produtor e ele mesmo estão contaminados por diferentes influências que, associadas a outros fenômenos, interferem no processo de interpretação do documento. Considerações Finais Os tópicos aqui apresentados são evidentemente muito sumários e, por isso, não se esgotam e nem tampouco esclarecem todas as questões epistemológicas e metodológicas da HL. Não era nossa intenção. Quisemos apenas evocar orientações que se fazem possíveis de aplicabilidade àqueles que pesquisam nessa área. Propositadamente, negligenciamos abordar outros temas internos à HL, tais como, metalinguagem, documento com suas modalidades e questões de leitura, mudança vs continuidade, evolução vs revolução, crônica vs história que estão por merecer discussões bem amplas no âmbito da Historiografia Lingüística.

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É inevitável, pela conseqüente aproximação entre Lingüística e História, a consideração da importância que o historiógrafo da língua deva dar aos avanços das ciências sociais. A questão mais importante para a epistemologia da HL é o enfoque do objeto lingüístico em si que deve ser estudado como fonte de conhecimento. De qualquer maneira, a HL está aí, constrói sua história, propõe uma pesquisa inter e multidisciplinar pertinente e exige de seu pesquisador, no processo de investigação, conhecimento lingüístico em diversos níveis, profundo conhecimento histórico e uma visão ampla de cultura. Na atividade de interpretação, as marcas textuais, associadas a dados histórico-culturais, conferem, sem dúvida, fidedignidade ao documento como fonte de construção e legitimação do saber histórico e, por conta disso, é que ele se faz ponto de partida para a pesquisa em HL, uma área de conhecimento promissora no campo da Lingüística. Bibliografia ALMEIDA, Marly de Souza. Metalinguagem e Identidade Lingüística Brasileira na Sátira Poética de Oswald de Andrade. Tese de doutoramento. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2003. COSERIU, Eugênio. Sincronia, diacronia, História. São Paulo; Presença, 1979. DUPUY, Jean-Pierre. Nas origens das ciências cognitivas. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: UNESP, 1996. ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993. FARACO, Carlos Alberto. Lingüística Histórica. São Paulo: Ática, 1998. LARA, Luís Fernando. Une critique du concept de métalangage. Folia Lingüística 23:3/4.384-404., 1989. KOERNER, Konrad. Toward a Historiography of Linguistics: Selected essays. Amsterdam: John Benjamins, 1978. ___________________. Progress in Linguistic Historiography. Amsterdam: John Benjamin, 1980. _________________. Practicing Linguistic Historiography. Selected essays. Amsterdam & Philadelphia: John Benjamins, 1989. _________________. Professing Linguistic Historiography. John Benjamin Amsterdam/Philadelphia, 1995. _________________. Questões que persistem em Historiografia Lingüísticas. Revista da ANPOLL, número 2, p 45-70, tradução Cristina Altman,1996. KHUN, Thomas S. A estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 2001. MENDES, José M. Amado. A História como ciência. 3.ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1993. MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória, 5.ed.,Rio de Janeiro:Bertrand,2001. NASCIMENTO, Jarbas Vargas. Bases Teórico-Metodológicas da Historiografia Lingüística. São Paulo: PUC/SP, 2002. mimeografado. SILVA NETO, Serafim da Silva. Capítulos da História da Língua Portuguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Nova presença, 1986. SOUSA SANTOS, Boaventura de. Um Discurso sobre as Ciências. 13.ed.,Porto:Afrontamento, 2002.

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