Homem Livre - Jacinto Luigi de Morais Nogueira

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Homem Livre. Onde era que eu estava com a cabeça quando acreditei que tudo aquilo poderia me tornar em um homem livre? Era mais uma infinita manhã de segunda; era o início de mais uma infinita semana de trabalhos e obrigações. O sonho não era mais sonhado do jeito que eu gostava e, se eu quisesse sonhá-lo mais um pouco, teria que enfrentar a arrogância de outra pessoa que teria que enfrentar a estupidez e a arrogância de outra, superior... Levantei decidido; banhei-me conformado e tomei café confuso. Fui e, assim, dei continuidade àquela vida mecânica que um dia me fiz acreditar que me faria feliz. Era sempre aquela rotina e desconheço o tal dia que pensei que isso era bom. Talvez estivesse louco no dito dia. Talvez estivesse mesmo bêbado ou ingênuo. Não sei. Talvez estivesse apenas cego. Sentia-me estranho ao ter que seguir violentando quase tudo que acreditei ser possível deixar de lado. Estar com pessoas que gostamos pelo tempo que gostaríamos; dormir um pouco mais; sumir quando precisar sumir sem ter que pedir ou sem sentir preocupação com a opinião e as reações de alguém; gostar do que comer e comer o que gostar; conhecer e descobrir sem limites para desvendar; sofrer sem medo de magoar; magoado sem medo de ser incompreendido; fragilizado sem medo de ser cobrado; confuso sem medo de ser testado; amigo sem medo de ser traído; confiante sem medo de ser decepcionado; livre sem medo de ser obrigado. Nem sei ao certo onde encontrava tempo para tecer aquelas considerações pois parece que nossas obrigações já são feitas com o intuito de nos deixar o tempo livre necessário apenas para revigorar forças para o imutável dia seguinte. Acho que o sentido que segui já não fazia tanto sentido quanto antes e o vazio era cada vez maior no meu amanhecer. Embora aquilo que escolhi como profissão estivesse me realizando, havia momentos que me faziam precisar de algo além daquilo. Momentos de cansaço, de angústia, de solidão, momentos de amor, momentos de descobertas eram alguns instantes em que aquela repetição do dia-a-dia podia impedi-los ou dificultá-los. Era necessário conciliar obrigações. Obrigações da alma versus obrigações condicionadas vindas nem sei de onde. Ora, há momentos em que se precisa sair e brincar com seu filho, há momentos em que se precisa amar, há outros para ajudar, alguns para ser ajudado, muitos para evoluirmos. Há momentos necessários para mudarmos, e outros para nos reerguermos. E

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Homem Livre.

Onde era que eu estava com a cabeça quando acreditei que tudo aquilo poderia

me tornar em um homem livre?

Era mais uma infinita manhã de segunda; era o início de mais uma infinita semana de trabalhos e obrigações. O sonho não era mais sonhado do jeito que eu gostava e, se eu quisesse sonhá-lo mais um pouco, teria que enfrentar a arrogância de outra pessoa que teria que enfrentar a estupidez e a arrogância de outra, superior... Levantei decidido; banhei-me conformado e tomei café confuso. Fui e, assim, dei continuidade àquela vida mecânica que um dia me fiz acreditar que me faria feliz. Era sempre aquela rotina e desconheço o tal dia que pensei que isso era bom. Talvez estivesse louco no dito dia. Talvez estivesse mesmo bêbado ou ingênuo. Não sei. Talvez estivesse apenas cego.

Sentia-me estranho ao ter que seguir violentando quase tudo que acreditei ser possível deixar de lado. Estar com pessoas que gostamos pelo tempo que gostaríamos; dormir um pouco mais; sumir quando precisar sumir sem ter que pedir ou sem sentir preocupação com a opinião e as reações de alguém; gostar do que comer e comer o que gostar; conhecer e descobrir sem limites para desvendar; sofrer sem medo de magoar; magoado sem medo de ser incompreendido; fragilizado sem medo de ser cobrado; confuso sem medo de ser testado; amigo sem medo de ser traído; confiante sem medo de ser decepcionado; livre sem medo de ser obrigado. Nem sei ao certo onde encontrava tempo para tecer aquelas considerações pois parece que nossas obrigações já são feitas com o intuito de nos deixar o tempo livre necessário apenas para revigorar forças para o imutável dia seguinte. Acho que o sentido que segui já não fazia tanto sentido quanto antes e o vazio era cada vez maior no meu amanhecer.

Embora aquilo que escolhi como profissão estivesse me realizando, havia momentos que me faziam precisar de algo além daquilo. Momentos de cansaço, de angústia, de solidão, momentos de amor, momentos de descobertas eram alguns instantes em que aquela repetição do dia-a-dia podia impedi-los ou dificultá-los. Era necessário conciliar obrigações. Obrigações da alma versus obrigações condicionadas vindas nem sei de onde. Ora, há momentos em que se precisa sair e brincar com seu filho, há momentos em que se precisa amar, há outros para ajudar, alguns para ser ajudado, muitos para evoluirmos. Há momentos necessários para mudarmos, e outros para nos reerguermos. E

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quase sempre ninguém compreende isto. E você tem que ser um modelo sem o direito de ser dinâmico, de sofrer mudanças, de estar em conflito. Querem que eu seja uma máquina? Talvez até eu tivesse me convencido de que poderia ser uma. Fui derrotado. Não consegui.

E aquele foi mais um grito da vida dentro de mim e pedia que eu lembrasse, um pouco que fosse, dela. Pedia que lembrasse que ela é maravilhosa mesmo sendo olhada por várias outras janelas; há vários pontos de vista. Dizia que eu era inteligente o suficiente para vê-la bela e talvez até criá-la bela sem precisar me violentar.

E me é fiel, não desiste de mim. E me mostra na alegria e também na dor que o caminho pode estar errado. E me dá coragem para enfrentar o desconhecido.

Agora estou indo para o meu trabalho. Agora continuo mecânico. Agora continuo acomodado. Agora me entrego à mesmice. Agora estou destruindo mais um pouco do tempo que me resta. Até o dia em que ela grite mais uma vez seu grito surdo de compaixão.

Jacinto Luigi de Morais Nogueira

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Fortaleza, 29 de maio de 2002.