HOMENAGEM A VERGÍLIO FERREIRA - uc.pt · A tragédia da vida está presente em todos os romances...

14
HOMENAGEM A VERGÍLIO FERREIRA

Transcript of HOMENAGEM A VERGÍLIO FERREIRA - uc.pt · A tragédia da vida está presente em todos os romances...

HOMENAGEM A VERGÍLIO FERREIRA

MEMORIA DE VERGÍLIO FERREIRA

Aquelas pálpebras pesadas — a última vez que as vi foi num ângulo da sala onde o escritor firmara, pouco antes, o termo de doutoramento honoris causa pela Universidade de Coimbra. O cerimonial cessava; cessava o cortejo das vénias e dos abraços protocolares. Por instinto, por cansaço, Vergílio Ferreira tinha-se alheado: e olhava, sem ver, com aquelas pálpebras pesadas, as pessoas que debandavam, à sua frente, corredor fora, a caminho de casa.

Quem poderá dizer o que pensava, no apartamento — voluntário ou involuntário — daquele instante? Em Coimbra pensaria, talvez, e na sua capa de estudante e na sua guitarra e no seu violino; e em Sandra, natural­mente, o eco inefável de uma balada e de um meneio gentil. Sandra existiu, Presença-Ausência e Amor constantes como o orvalho da mocidade, o bran-cor da neve, da sua neve, na Estrela, o muro agreste do seminário, as casas de Évora, a luz ofuscante de Corinto e a velatura iridiscente do grande Mar Interior. Como também aquele trasplante, nunca assimilado, para a capital; e os livros que cresciam, de Coimbra para Évora, de Évora para Lisboa, depois pelo mundo fora; e a glória e as querelas e a inveja; e a dolente lassi­dão, da carne apenas, que anelava ao sono, sem sonhos, da eternidade. A Grande Dona acelerava o passo e já batia, perto, mais perto, à porta das meninges. A realização? A realização continuava adiada, para outra página ainda, por escrever. Escrever, escrever, escrever sempre! Que a escrever queria entrar no paraíso.

Tudo isto pensariam, ou algo mais, aquelas pálpebras pesadas. Enquanto o olhar pairava, já distante, sobre as folhas, umas brancas, outras negras, dispersas na sua secretária. A secretária em que a morte o abateu.

Por isso não ousei aproximar-me; por isso respeitei aquele instante de isolamento. Em que serpeava, talvez, o rio da sua vida. Ou coalhava, ao invés, o pântano do nada, em que mergulham e se afogam todas as frustrações.

A noite. O silêncio. Um sorriso, quem sabe! Mas aquelas pálpebras pesadas diziam a tragédia da vida.

22

338 MEMORIA DE VERGILIO FERREIRA

A tragédia da vida está presente em todos os romances de Vergílio Ferreira. Quando os teorízadores da literatura repartem as suas obras de ficção em três fases — a neo-realista, a existencialista, a do trágico huma­nista —, é lícito afirmar que todas se poderiam epigrafar com o dístico sofocliano de Alegria breve (citado na língua original): «Muitas são as coi­sas espantosas: nenhuma é mais espantosa que o homem.» E, porque espan­tosa, infinitamente lábil e amarga. Píndaro o afirmou e Vergílio Ferreira o repetiu na epígrafe (também em grego) de outro livro, Rápida, a sombra: «O homem é o sonho de uma sombra.» Só não ousou acrescentar a espe­rança, branda, do poeta: «Mas quando os deuses dirigem para ele o brilho da sua luz, um fúlgido clarão o circunvolve — e a vida é doce como o mel.»

A vida nunca foi doce como o mel, desde O caminho fica longe (1939, publicado em 1943) até Cartas a Sandra (1996), passando por alguns romances memoráveis como Manhã submersa (1953), Aparição (1959), Cântico final (1960), Estrela polar (1962), Alegria breve (1965), Nítido nulo (1971), Rápida, a sombra (1974), Signo sinal (1979), Para sempre (1983), Até ao fim (1987), Em nome da terra (1990), Na tua face (1993). Nem poderia ser doce como o mel, quando se tomam confessadamente por mestres a Esquilo, Sófocles, Lucrécio, Virgílio, Marco Aurélio, Santo Agos­tinho, Pascal, Dostoievski, Malraux, Jaspers e Heidegger. Como justificar a vida humana que decorre sob o signo da Mudança? Através de uma Ordem Universal que transcende o tempo. Ε o grande tema de Aparição, um dos seus romances maiores, cujo impacto, na literatura portuguesa, Gaspar Simões comparou ao de O crime do padre Amaro de Eça de Queirós. Alegria breve vive a procura de um encontro (adiado, mas possível) entre o Amor e a Verdade: com «a esperança de um mundo novo que o Filho — que o narrador talvez tenha tido — há-de construir, dando corpo à transforma­ção anunciada pela neve genesíaca que cobre a aldeia abandonada» (Hélder Godinho). Mas já em Cântico final, através da imagem da Senhora da Noite, que tem as feições de Elsa, Mário morituro conseguia, mercê da Arte, vencer a Disjunção, recuperar a Estrela Polar, unir a mulher amada, e ausente, à Ordem Universal. Vida e morte, as memórias redolentes da infância e da juventude, a dissolução progressiva do corpo, a projecção actuante de um Amor que não morre — são os temas centrais dos últimos romances, os mais arreigados também na comoção do leitor: e bastará citar esses admiráveis Para sempre e Em nome da terra. Sandra existiu, como existiram um Eu e um Tu unidos na Arte, na Beleza — e na Eternidade.

Romance e ensaio andaram sempre ligados no pensamento de Vergílio Ferreira: se o mundo do nosso tempo é, por excelência, o mundo dos pro­blemas, ao romance compete, principalmente, a revelação desses problemas.

MEMORIA DE VERGÍLIO FERREIRA 339

Por isso, a par e passo com a sua actividade romanesca, o escritor publicou numerosos e importantes ensaios. Entre eles, é justo realçar Invocação ao meu corpo (1969), dedicado a seus pais, porquanto o livro constitui uma espécie de summa poético-especulativa da cultura e do sentir do nosso tempo. Nele se contém — como salienta José Rafael de Meneses — «uma cosmogonia, uma antropologia, uma estética e, fundamentalmente, uma ética».

O escritor, que longamente resistira à tentação do diário, acabou por ceder-lhe nos nove volumes de Conta-corrente (1980-94), a que juntou um volume independente, de índole algo diversa, Pensar (1992). O diário de Vergílio Ferreira será «o reino de todos os excessos, com relevo para o excesso da paixão pela escrita» (Fernanda Irene Fonseca): mas constitui, ao mesmo tempo, uma reinvenção poética do quotidiano, «o périplo — como diz o autor — de uma vida à busca da palavra».

A palavra. Aquela palavra que, em Para sempre, a mãe teria dito ao morrer e o filho não ouviu. Aquela palavra que teria dado a chave do enten­dimento e do encontro. Ficou assim: proferida talvez, mas inescutada. Ε a felicidade se esvaiu. Ε a porta do Paraíso se fechou.

Aquelas pálpebras pesadas — não tornei a vê-las nesta vida. Quando cheguei à grande colmeia, desumana, em que Vergílio Ferreira habitava, o corpo do escritor jazia, para sempre, encerrado no caixão e pousado já no carro funerário. Do passeio, apenas seis, sete pessoas o olhavam, em silên­cio. Ε em silêncio partiu, por um sol macio de quase-primavera, a caminho da Estrela, da sua Estrela, onde nascera. Ε a caminho também da Ordem Universal, onde Presença e Ausência, Amor e Beleza, Instante e Eternidade formam um só.

WALTER DE MEDEIROS

HOMENAGEM A CARLOS ALBERTO LOURO FONSECA

344 MEMORIA DE CARLOS ALBERTO LOURO FONSECA

de Louro Fonseca na categoria de professor auxiliar, parecer esse que obteve a aprovação unânime do Conselho Científico da Faculdade de Letras de Coimbra e foi depois sucessivamente renovado. Trata-se de um caso raro, que muitos não conheceram nunca em pormenor, pelo que aqui se deixa registado para honrar a memória de quem recebeu esta distinção.

Os trabalhos que o Dr. Louro Fonseca foi publicando estão quase todos ligados à docência, em que era, como dissemos, exímio. Estão neste caso as numerosas versões prefaciadas e comentadas de clássicos latinos: o Pro Archia de Cícero, incluído, juntamente com outros discursos do Arpinate, num volume da Biblioteca Integral Verbo (Lisboa, 1974) e três comédias de Plauto (Amphitruo, 4.a ed., 1993); Miles Gloriosus, 3.a ed., 1987); Menaechmi, 2.a ed., 1989). Ocupam um lugar à parte, pelo papel que desempenharam no ensino das Línguas Clássicas, a Iniciação ao Grego (2.a ed., 1987) e Sic Itur in Vrbem. Iniciação ao Latim (6.a ed., 1992).

Estes dois manuais provam a igual facilidade do autor in utraque lín­gua, através de um dos novos métodos hoje usados para a sua docência — mesmo para os chamados "late beginners" — que consiste na combinação entre textos, exercícios e questionários na própria língua e gravuras. Ε aqui temos outra das capacidades do Dr. Louro Fonseca, revelada não só nestas obras com em inúmeras capas de livros e revistas que ficaram a dever-se-lhe: a sua invulgar habilidade para o desenho. Quando, para corresponder a um insistente pedido de professores do ensino secundário que tomaram parte num dos vários colóquios didácticos organizados em Coimbra, foi criado, em 1984, o Boletim de Estudos Clássicos, nunca, em vinte e dois cadernos publicados, deixou de estar presente a sua colaboração (que geralmente abrangia mais de metade do volume) com longas e divertidas históricas em banda desenhada ou com exercícios sintácticos.

Este brevíssimo perfil do professor ficaria muito incompleto se omitís­semos uma menção de outros dotes artísticos: o saber musical, a que ficaram a dever-se sessões da Associação Portuguesa de Estudos Clássicos, como a da audição comentada de uma ópera de tema grego (Os Troianos de Berlioz); e o gosto pelo teatro, de que derivaram brilhantes encenações de partes de O Díscolo de Menandro, de O Soldado Fanfarrão de Plauto, de uma apresentação (de sua autoria) de Os Dois Meneemos, levados à cena, no Teatro da Faculdade de Letras, pelo Grupo da Universidade de Trier, perante uma sala cheia de jovens do ensino secundário, vindos de várias partes do País, que assim puderam seguir com gosto a obra representada no original latino.

A confluência de tantos dotes artísticos e literários com um excepcio­nal domínio do Grego e do Latim (e a sua facilidade em se exprimir em

MEMORIA DE CARLOS ALBERTO LOURO FONSECA 345

qualquer destas línguas, em prosa e em verso, tornou-se proverbial), conju­gados com uma afabilidade e disponibilidade raras, fizeram do Dr. Louro Fonseca uma figura inesquecível no Grupo de Estudos Clássicos, que lhe prestou homenagem num número do Boletim a ele dedicado. A revista Humanitas, a cuja comissão redactora ele pertenceu e que ostenta, desde há alguns anos, uma capa de sua autoria, não podia deixar de, comovidamente, lembrar as suas excelsas qualidades.

Μ . H. ROCHA PEREIRA

PROFESSOR ARTHUR DALE TRENDALL (1909 - 1995)

Nascido em Auckland, Nova Zelândia, matriculado primeiro em Matemática na Universidade de Otago, Dunedin, estudou em Cambridge sob a orientação de um grande helenista, A. F. S. Gow, mas foi a sua primeira viagem à Itália, sobretudo a Paestum, e o contacto com a personalidade e a obra de Sir John Beazley, em Oxford, que marcou definitivamente a sua área de especialização — os vasos da Itália do Sul e da Sicília, em que atingiu o lugar cimeiro.

A divisão dos estilos da Magna Grécia em Apúlio, Pestense, Lucânio, e Campaniense, a que veio juntar-se por último o Siciliano, até aí só par­cialmente esboçada, tornou-se um dado adquirido após a publicação dos seus estudos (cerca de vinte e cinco livros e inúmeros artigos), de que salientamos apenas as grandes obras de referência: Paestan Pottery (London 1936), continuado por "Paestan Pottery: a Revision and a Supplement", Papers of the British School at Rome 20 (1952) 1-53, e "Paestan Addenda", ibidem 27 (1959), 1-37; The Red-Figured Vases of Lucania, Campania and Sicily, 2 vols. (Oxford 1967); Illustrations ofGreek Drama (London 1971, de par­ceria com T. B. L. Webster); The Red-Figured Vases of Apúlia (Oxford 1978), em colaboração com Alexander Cambitoglou, igualmente co-autor dos três suplementos (London, Institute of Classical Studies, 1991 e 1992); Red-Figure Vases of South Italy and Sicily. A Handbook (London 1989). Um total de cerca de dez mil vasos analisados sob o ponto de vista da forma, estilo e tema, e centenas deles atribuídos a pintores individuais ou a oficinas.

Tudo isto seria muito e seria suficiente para colocar o Professor Trendall entre os maiores especialistas de cerâmica grega de todos os tempos. Mas ele fez bem mais. Ao começar a trabalhar, em 1939, no Instituto de Estudos Helénicos da Universidade de Sydney, e sobretudo ao ocupar a recém-criada cátedra de Arqueologia em 1948, não só inaugura esses estudos no Novíssimo Mundo, como atrai a eles uma série de jovens, ao mesmo tempo que renova o Nicholson Museum e enriquece outros, entre os quais a Galeria Nacional de Victoria (vejam-se a sua confereencia inaugural, na Academia de Humanidades Australiana, Twenty Years of

348 PROFESSOR ARTHUR DALE TRENDALL

Progress in Classical Archaeology (Sydney 1979) e, antes disso, "Attic Vases in Austrália and New Zealand", Journal of Hellenic Studies 71 (1951), 178-193. Todo este despertar da Austrália e da Nova Zelândia, objectivado na aquisição e formação de colecções e na atracção de outros estudiosos a Sydney, como Alexander Cambitoglou, colocou aquela parte do mundo na rota dos especialistas. E, simultaneamente, obteve outro efeito não menos importante: ao tornar-se Presidente da University House em Canberra, levou consigo para essa nova capital o gosto pelo cultivo das Humanidades, que aí faltava por completo1. Por último, a sua acção esten-deu-se à Universidade de La Trobe, na área de Melbourne, onde residiu mais de vinte e cinco anos.

Com o desaparecimento de A. D. Trendall, a Arqueologia Clássica perde uma das suas mais altas figuras e um mestre que, pelo seu saber e pela sua quase lendária disponibilidade, era, em toda a formosa e esquecida etimologia do termo, um humanista.

Μ . H. ROCHA PEREIRA

1 Devo o conhecimento deste e de mais alguns dados da biografia do Professor Trendall à notícia publicada por John R. Green e lan McPhee em Die Antike Welt 27 (1996), 67-68, porquanto, embora tenha tido a honra de conhecer pessoalmente o grande especialista e de com ele trocar correspondência sobre vasos da Magna Grécia durante umas dezenas de anos, nunca a sua modéstia deixou sequer entrever a importância decisiva da sua actuação académica.