Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em...

24
57 Resumo Este artigo analisa a questão da preservação das edifi- cações históricas hospitalares que, ao manterem seu uso original, tiveram sua arquitetura alterada para se adequar aos padrões contemporâneos de atendimento hospitalar, muitas vezes de forma irreversível. Como estudo de caso será utilizado o Hospital Evandro Chagas, edifício eclé- tico construído na primeira década do século XX, inserido no Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos, loca- lizado no campus da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. O texto é parte do projeto de mestrado que busca aprofundar o conhecimento sobre a edificação através da pesquisa de dados históricos, arquitetônicos e cons- trutivos, bem como das alterações sofridas ao longo de sua existência. Este estudo visa a gerar subsídios impor- tantes para definir as diretrizes para a elaboração de fu- turos projetos de intervenção, levando em consideração os princípios contemporâneos da preservação do Patrimônio Cultural. Palavras-chave Patrimônio cultural da saúde, preservação, arquitetura pavilhonar Abstract This article analyzes the preservation issue of historic hospital buildings that although kept their original use, had their architecture changed to fit contemporary standards of hospital care often irreversibly. As a case study it will be approached the Evandro Chagas Hospital, an Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações no edifício 1. Mestranda em Preservação e Gestão do patrimônio cultural das ciências e da saúde (COC/FioCruz) e arquiteta e urbanista (DPH/ COC/FioCruz). Contato: giovanna. [email protected]. 2. Doutor em Urbanismo, Prourb/FAU/ UFRJ. Arquiteto e urbanista, coor- denador do Mestrado Profissional em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde (COC/FioCruz). Contato: [email protected]. Giovanna Martire 1 Renato Gama-Rosa Costa 2 Evandro Chagas Hospital: an analysis of the transformations in the building.

Transcript of Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em...

Page 1: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

57

Resumo Este artigo analisa a questão da preservação das edifi-cações históricas hospitalares que, ao manterem seu uso original, tiveram sua arquitetura alterada para se adequar aos padrões contemporâneos de atendimento hospitalar, muitas vezes de forma irreversível. Como estudo de caso será utilizado o Hospital Evandro Chagas, edifício eclé-tico construído na primeira década do século XX, inserido no Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos, loca-lizado no campus da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. O texto é parte do projeto de mestrado que busca aprofundar o conhecimento sobre a edificação através da pesquisa de dados históricos, arquitetônicos e cons-trutivos, bem como das alterações sofridas ao longo de sua existência. Este estudo visa a gerar subsídios impor-tantes para definir as diretrizes para a elaboração de fu-turos projetos de intervenção, levando em consideração os princípios contemporâneos da preservação do Patrimônio Cultural.

Palavras-chave Patrimônio cultural da saúde, preservação, arquitetura pavilhonar

Abstract This article analyzes the preservation issue of historic hospital buildings that although kept their original use, had their architecture changed to fit contemporary standards of hospital care often irreversibly. As a case study it will be approached the Evandro Chagas Hospital, an

Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações no edifício

1. Mestranda em Preservação e Gestão do patrimônio cultural das ciências e da saúde (COC/FioCruz) e arquiteta e urbanista (DPH/COC/FioCruz). Contato: [email protected].

2. Doutor em Urbanismo, Prourb/FAU/UFRJ. Arquiteto e urbanista, coor-denador do Mestrado Profissional em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde (COC/FioCruz). Contato: [email protected].

Giovanna Martire1 Renato Gama-Rosa Costa2

Evandro Chagas Hospital: an analysis of the transformations in the building.

Page 2: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

58

eclectic building built in the first decade of the twentieth century, inserted in the Arquitectural Historical Nucleus of Manguinhos, located on the Oswaldo Cruz Foundation campus in Rio de Janeiro. The text is part of the master’s project that seeks to deepen the knowledge about the building through the research of historical, architectural and constructive data, as well as of the alterations suffered throughout its existence. This study aims to generate important subsidies to define the guidelines for the elaboration of future intervention projects, taking into account the preservation contemporary principles of the Cultural Patrimony.

Keywords Cultural heritage of health, preservation, architecture pavilhonar

IntroduçãoO Hospital Evandro Chagas, construído na primeira década do século XX e originalmente denominado Hospital de Manguinhos ou Oswaldo Cruz, é uma das edifica-ções que compõem o Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos da Fundação Oswaldo Cruz, localizado em Manguinhos, na zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.

A permanência de seu uso original até os dias de hoje representa um grande desafio para a preservação do edifício, tendo em vista os padrões contemporâneos de atendimento hospitalar, que exigem um tipo de infraes-trutura que o edifício não mais comporta.

Desde sua inauguração, em 1918, o Hospital Evandro Chagas passou por diversas adaptações para atender às normas de saúde e ao público crescente. Para isso, foram necessárias alterações em sua configuração arquitetônica original e em seu entorno imediato. Tais alterações, que visaram a melhorias em sua funcionalidade, comprome-teram aquilo que de mais importante o edifício possuía: a materialização das diretrizes conceituais da época de sua construção. O interior foi compartimentado e abriga quartos para pacientes, centro de terapia intensiva,ele-vador, novas dependências para os médicos e enfermeiras, necrotério, sala de autópsias, serviços administrativos, setor de limpeza, departamentos de pesquisas, refeitório, cozinha e outros serviços distribuídos pelos pavimentos da

Page 3: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

59

edificação. Suas fachadas não sofreram grandes perdas em sua unidade estética, mas apresentam vários ele-mentos, como telefones públicos, tubulações de oxigênio e hidrogênio, aparelhos de ar condicionado de janela, uni-dades condensadoras, grandes tanques de gases hospita-lares, expurgos, tubulações de água e esgoto, entre várias outras intervenções percebidas.

Segundo Cesare Brandi (2004, p.48-49), “o mais grave, em relação à obra de arte, não é tanto aquilo que falta, quanto o que se insere de modo indevido”. A in-serção de elementos estranhos às instâncias estética e histórica da edificação compromete a unidade potencial da obra. E por se tratar de um sítio histórico, deve ser considerada a espacialidade do ambiente, para que de modo algum a inserção de um elemento estranho rompa com a unidade do conjunto arquitetônico.

A preservação de hospitais enquanto testemunho histórico importante para a sociedade, ainda é um desafio, face a grande questão que envolve o seu uso e ocupação, em constante transformação. É possível a modernização de suas instalações em face das melhorias na assistência em saúde, sem alterar de modo irrecuperável os aspectos arquitetônicos considerados relevantes no reconheci-mento de uma tipologia histórica?

Para discutir a preservação do Hospital Evandro Chagas é necessário o aprofundamento nas discussões contemporâneas sobre a preservação das edificações re-conhecidas como patrimônio da saúde, tanto por sua ar-quitetura como verdadeiro testemunho histórico quanto por seu uso como hospital desde sua origem até os dias atuais.

Este artigo pretende discutir o uso e a ocupação do Hospital Evandro Chagas, com vistas à sua preservação, reconhecendo os seus valores enquanto patrimônio da saúde, como parte do projeto de dissertação de mestrado profissional que tem como um dos objetivos a análise dos elementos materiais e imateriais considerados impor-tantes para a identificação de valores, que auxiliarão na declaração da significância cultural da edificação; critério que deverá ser adotado para enfatizar a necessidade da sua preservação, e que também poderá subsidiar a elabo-ração das diretrizes necessárias para o desenvolvimento de futuros projetos de intervenção.

Page 4: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

60

Uma das etapas do projeto e que será explorada neste artigo diz respeito ao levantamento da história do hospital, dos aspectos construtivos que determinaram o programa arquitetônico da edificação e as alterações so-fridas ao longo dos anos a fim de se adequar às ques-tões normativas e ao avanço das ciências médicas e da saúde. Essas informações permitirão a organização de um inventário sobre a edificação, que será uma importante fonte de consulta para pesquisas sobre arquitetura da saúde bem como projetos de intervenção e restauração da edificação.

História

A Fundação Oswaldo Cruz teve sua origem no antigo Instituto Soroterápico Federal, no decreto oficial de 25 de maio de 1900. O objetivo do Instituto era a criação de soros contra a peste bubônica – doença que se disseminou no Brasil no final do século XIX. Quando Oswaldo Cruz as-sumiu a direção do Instituto em 1902, as instalações exis-tentes originárias da antiga fazenda de Manguinhos pre-cisavam ser reformadas para atender ao seu projeto sani-tarista que seria implantado nas cidades brasileiras. Para isso, um conjunto arquitetônico foi projetado pelo arqui-teto português Luiz Moraes Junior com modernas insta-lações onde seriam produzidas as vacinas contra as prin-cipais doenças que assolavam as cidades na época (febre amarela, varíola, peste bubônica).

O primeiro conjunto de prédios construídos foi implantado sobre uma das colinas do terreno de 35 mil metros quadrados, tendo como edificação principal o Pavilhão Mourisco (1905-1918) que foi ocupado por modernos laboratórios. Outros prédios construídos foram o Pavilhão da Peste, Cavalariça, Biotério, Pombal e o Aquário. Desse conjunto também faria parte o Hospital Oswaldo Cruz, cujo primeiro projeto elaborado em 1907, não foi executado. Segundo Jaime L. Benchimol (1990, p.213), não existe referência deste projeto na documen-tação histórica do Instituto Oswaldo Cruz.

O segundo projeto de Luiz Moraes Junior para o então Hospital de Manguinhos, datado de 21 de janeiro de 1912, previa a construção de um grande complexo hospi-talar integrado por seis pavilhões que abrigariam pesquisas

Page 5: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

61

avançadas e serviços de assistência para pacientes com doenças infecciosas. Nesse mesmo ano, a liberação de verbas para pesquisas sobre a doença de Chagas possibi-litou o início da construção do que viria a ser o primeiro e único pavilhão construído. Em 1913, com o embasamento em granito e estrutura metálica parcialmenteconcluídos, a obra foi paralisada devido à falta de recursos. A con-clusão desse primeiro pavilhão só aconteceria um ano após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome.

Em 1940, com o falecimento de Evandro Chagas, outro importante pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz e filho de Carlos Chagas, sucessor de Oswaldo Cruz na direção do Instituto, o hospital passa a ser chamado de Hospital Evandro Chagas em sua homenagem.

Análise da arquitetura do Hospital

O Hospital Evandro Chagas é uma edificação eclética, com projeto concebido a partir da adoção de princípios estabe-lecidos no século XIX e que regulamentavam a arquitetura dos prédios hospitalares da época, como veremos a seguir.

Sua arquitetura se configura em um bloco central ladeado por duas alas simétricas, tendo sido construído em um pavimento com porão e sótão, andares técnicos que tinham como finalidade a circulação e ventilação do ar para as enfermarias, ainda favorecidas por grandes va-randas, permitindo ampla iluminação interna. A publi-cação de O Instituto Oswaldo Cruz − Resumo Histórico, lançada em 1918 -− ano de inauguração do hospital - assim o descrevia:

Annexo ao Instituto, situado no próprio terreno da fazenda, está sendo concluído um hospital para estudo de doenças do Brasil. Sua construção obedece ás mesmas normas adoptadas nas edificações de Manguinhos, com as adap-tações pertinentes aos serviços hospitalares. E’ dividido em 2 enfermarias, nas quaes se podem alojar com todo o con-forto 30 ou 40 doentes. Além disso, há 4 quartos indepen-dentes, que servirão de isolamento. Será um nosocômio modelar, de incalculaveis vantagens para os estudos e pes-quizas originaes, em que tanto se tem illustrado o pessoal do Instituto. (Dias, 1918, p. 50).

Page 6: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

62

O prédio do Hospital Evandro Chagas é uma edifi-cação simples em termos de elementos arquitetônicos de-corativos, podendo apenas notá-los nos ornamentos me-tálicos que compõem as varandas, “com seu gracioso ren-dilhado em ferro – talvez o traço decorativo mais expres-sivo das fachadas”. (Benchimol, 1990, p.217).

A atenção com os procedimentos assépticos se mostra ainda na inexistência dos ângulos retos loca-lizados nas interseções das paredes, tetos e pisos. E, também, na escolha dos azulejos, pisos cerâmicos e pin-tura mural, revestimentos adotados nas superfícies, faci-litando a limpeza constante de todo o ambiente com so-luções antissépticas como recomendavam as normas hi-

giênicas da época, resultado das investigações oriundas da bacteriologia.

Tendo como análise as questões descritas anterior-mente, é necessário destacar que o projeto do Hospital Evandro Chagas foi concebido a partir da adoção dos princípios estabelecidos no final do século XIX, com os es-tudos de Pasteur, como controle, organização do espaço, circulação do ar e métodos assépticos, que regulamen-taram a arquitetura dos edifícios hospitalares em confi-guração pavilhonar e de isolamento.

A preocupação com a circulação do ar veio inicial-mente das formulações científicas feitas pela Academia de Ciências de Paris na proposta para a reconstrução do Hôtel-Dieu, destruído por um incêndio em 1772. Tendo em vista, que os hospitais existentes naquela época eram

Figura 1. Hospital Evandro Chagas − 1940 – (DPH/COC/FioCruz)

Page 7: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

63

estruturas ultrapassadas, com instalações insalubres e que junto a outros espaços de aglomeração humana, se tornaram grandes produtores de doenças no tecido urbano adensado das cidades (Benchimol, 2016), foi necessário que o projeto para o novo hospital francês fosse concebido em uma configuração mais adequada às questões modernas para o tratamento das doenças.

Essa nova configuração, então chamada de modelo higienista, que favorecia sobretudo a iluminação natural e a ventilação cruzada, teve como um dos seus expoentes, o médico francês Jacques-René Tenon (1724-1916), que publicou em 1788, “Memoires sur les hôpitaux de Paris”, que se consolidou como uma análise dos espaços nosoco-miais da época, com destaque para as plantas arquitetô-nicas e o foco na funcionalidade de suas instalações hos-pitalares. Seus estudos sobre esses ambientes levaram-no a concluir o dimensionamento ideal dos espaços, de acordo com os usos e os serviços, de forma a garantir o tratamento eficaz aos doentes e reduzir a mortalidade. Nesse aspecto, para Tenon, segundo Kleber Silva, era fundamental ao considerar o projeto de arquitetura dos hospitais, pensar no homem:

mais especificamente do homem doente: sua estatura re-gula o comprimento do leito, a largura das salas; seu passo, menos longo, menos libre que aquele do homem são, de-termina a altura dos degraus, como a largura da maca, na qual o transportamos, determina a largura das escada-rias do Hospital. Além disso, estabelecendo mais ou menos ar num determinado tempo, segundo o qual as doenças obrigam a inspirações mais ou menos frequentes, mais ou menos profundas, ele precisa de salas de dimensões dife-renciadas (...) Ele também estabeleceu uma relação estreita entre o corpo e o espaço e entre o paciente e o hospital, fundando um verdadeiro raciocínio ergonômico, funcional. (Silva, 2001, p.5)

Michel Foucault, ao analisar os estudos de Tenon, afirmava que a questão sobre os hospitais não era sim-ples, e não deveria ser pensada apenas em seu aspecto espacial, porque segundo ele, “o hospital” deixava “de ser uma simples figura arquitetônica” para fazer “parte de um fato médico-hospitalar” que deveria ser estudado “como

Page 8: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

64

são estudados os climas, as doenças etc.” (Foucault, 1979, p.58).

Dessa forma, tornava-se uma tarefa das mais com-plexas produzir um programa hospitalar único que fosse capaz de responder todas as questões inerentes ao trata-mento das doenças. Foucault afirmava ainda, sobre o tra-balho de Tenon, a relevância do estudo “empírico sobre esse novo objeto ou esse objeto interrogado e isolado de maneira nova − o hospital” que seria “capaz de dar ideia de um novo programa de construção”. (Foucault, 1979, p.58).

A renovação e a circulação do ar eram uma questão das mais importantes nos séculos XVIII e XIX. A teoria dos miasmas, ou teoria infeccionista, descoberta um século antes, defendia que as doenças eram propagadas pelo ar contaminado, principalmente devido à falta de higiene das cidades na época, conforme já dito anteriormente. A so-lução então foi recomendar a circulação constante do ar no intuito de viabilizar a sua renovação. Para isso, aglo-merados urbanos foram reorganizados de forma a fa-vorecer essa questão da renovação do ar, que implicava ainda na adoção de medidas higiênicas, principalmente em relação ao saneamento ambiental. Foi necessário re-pensar as cidades nas questões referentes ao acúmulo de lixos e dejetos, com intuito de se evitar os ambientes in-salubres. Segundo Maria Clélia Lustosa Costa, nesse novo cenário muitos hospitais foram transferidos para as áreas periféricas das cidades. (Costa, 2013)

Além da questão da teoria dos miasmas, a noção de contágio entendia que as doenças eram propagadas devido ao contato com pessoas infectadas e quaisquer objetos por elas manipulados. Fez-se necessário pensar em medidas drásticas para impedir a contaminação da população. Na questão urbana, foram iniciadas vaci-nações obrigatórias e isolamento de áreas urbanas que pudessem oferecer riscos de contaminação. Nos ambientes públicos de grande concentração de pessoas foi necessário realizar a desinfecção dos espaços e, no caso dos hospitais, isolamento dos doentes com períodos de quarentena (Costa, 2013).

As descobertas de Louis Pasteur sobre a propa-gação das doenças por meio da transmissão dos germes,

Page 9: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

65

no século XIX, trouxe uma nova abordagem nos novos projetos para os hospitais, que passam a ser concebidos a partir da separação dos doentes por patologias em pavi-lhões específicos. Estes, preparados para impedir o con-tágio e combater a transmissão das doenças, faziam uso principalmente da assepsia dos ambientes. O hospital foi sendo desenvolvido até ser configurado em uma grande estrutura composta por vários pavilhões distribuídos de forma separada, mas integrados por áreas de circulação. Nessa nova configuração do hospital, que ficou conhecida como modelo pavilhonar, os pavilhões foram construídos em terrenos distantes dos centros urbanos, privilegiando a incidência do sol e a circulação de ventos.

Segundo Renato Gama-Rosa Costa (2011, p.59), essa separação, em que “imperava o princípio do isola-mento, onde cada doença e cada doente eram isolados, no interior de diferentes pavilhões” ficou conhecido como sistema Tollet (1894). Annick Opinel (2007) analisa estas tipologias e descreve a organização interna de forma a evitar possíveis contatos entre as pessoas doentes:

O princípio da organização baseia-se na dispersão dos pa-vilhões no terreno e na construção de uma galeria subter-rânea que constitui a ligação física entre os pavilhões dos pacientes e os serviços gerais. Um pavilhão dedicado à ob-servação dos pacientes que chegam, possibilita, como para o hospital Pasteur, a lavagem e desinfecção dos pacientes e seus pertences e a admissão de pacientes limpos em camas limpas. Uma atenção particular é dada à circulação do ar, adaptada ao sistema Tollet. Este sistema, que favorece a aeração natural e a ventilação dos quartos dos pacientes, baseia-se no princípio de uma forma ogiva para as salas, com paredes pintadas, sem ângulos e cantos, para impedir o pó. A ventilação é assegurada por entradas, que são ati-vadas em certos pontos por queimadores de gás e retrans-mitidas por saídas que evacuam o ar poluído pelo telhado. (Opinel, 2007, p.99)

O projeto para o Hospital Evandro Chagas foi en-comendado por Oswaldo Cruz para o arquiteto português Luiz Moraes Júnior, com a recomendação que seguisse as mesmas características do Hospital Pasteur, fundado em 1887. O partido pavilhonar adotado no hospital de

Page 10: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

66

Oswaldo Cruz, projetado inicialmente como um grande complexo de seis edificações, tornava possível uma utili-zação dos espaços de forma a organizar os pacientes por doenças. E é possível perceber as características do hos-pital francês e seu modelo higienista no projeto de Luiz Moraes, principalmente no que tange a questão da cons-tante renovação de ar. A única edificação construída do conjunto pavilhonar planejado foi implantada em uma das colinas do terreno do antigo Instituto Oswaldo Cruz. As premissas desse sistema se fazem notar na preocu-pação com o isolamento no tratamento dos doentes e na questão da orientação das fachadas, nesse caso, voltadas para os ventos dominantes na cidade do Rio de Janeiro, o que permitia que as enfermarias distribuídas em dois salões com trinta leitos cada, fossem ventiladas pelas grandes janelas que cobrem as fachadas.

Também é possível afirmar que a configuração das enfermarias do Hospital Evandro Chagas remetia ao que ficou conhecido como enfermaria Nightingale, baseada na publicação da enfermeira Florence Nightingale, Notes on hospitals. Suas observações contribuíram para esta-belecer as configurações ideais das enfermarias a época, tendo como diretrizes quatro questões importantes. A primeira chama a atenção para a aglomeração de muitas pessoas doentes em um mesmo espaço físico, citando como exemplo o Hôtel Dieu, que antes de sua recons-trução, possuía em um único andar, 550 leitos. O hos-pital chegou a ter mais de 7 mil doentes, e muitas vezes estes dividiam leitos, colocados muito próximos uns aos outros, ocasionando uma mortalidade de 1 a cada 4 pa-cientes. Para Florence, era “um alerta a ser feito”, para que não se permitisse reproduzir, mesmo que em pequena escala, a mesma estrutura defeituosa ou mal gerenciada que conduz para a tão terrível perda de vidas. A próxima questão de Nightingale diz respeito justamente a defi-ciência de espaços por leitos. Segundo ela, a área utili-zada pelo paciente deveria ser ventilada, pois era essen-cial para a sua recuperação, levando em conta não apenas a distância imediatamente acima dos pacientes, mas so-bretudo as entre os leitos adjacentes e opostos. Isso se refletia diretamente na terceira questão em que a defi-ciência de ventilação impedia a diluição e o transporte das emanações para longe dos pacientes. A deficiência de

Page 11: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

67

luz era a quarta questão. A luz era capaz de promover a recuperação dos pacientes, segundo Florence, que advo-gava, ainda, que toda a grande construção deveria ser er-guida de forma a receber diretamente luz solar, uma regra que deveria ser seguida por todos os grandes hospitais da época. (Nightingale, 1863, p.11-19).

Com base nessas questões, Nightingale desenvolveu a configuração ideal de uma enfermaria, adotada por Luiz Moraes no projeto para o Hospital Evandro Chagas. É possível perceber essa semelhança ao analisar Miquelin (1992) quando esse descreve as enfermarias Nighintgale como:

basicamente um salão longo e estreito com os leitos dis-postos perpendicularmente em relação às paredes peri-metrais; um pé direito generoso, e janelas altas entre um leito e outro de ambos os lados do salão garantiam ven-tilação cruzada e iluminação natural. As instalações sa-nitárias ficavam numa das extremidades com ventilação em três faces do bloco. Locais para isolamento de paciente terminal, escritório da enfermeira-chefe, utilidades, copa e depósito ocupavam o espaço intermediário entre o salão e o corredor. (Miquelin,1992, p.46-47).

O médico e bacteriologista Louis Martin3 (1864-1946) descreve um sistema de aquecimento e circulação de ar bastante sofisticado que foi instalado no Hospital Pasteur. Tal qual o hospital francês, um sistema seme-lhante foi projetado para o hospital Evandro Chagas, sendo neste caso, utilizada a tecnologia para a climati-zação dos espaços internos, conforme descreve Henrique Aragão:

No porão foram instaladas máquinas refrigeradoras e uma câmera frigorífica com tubulações nas quais esfriava o ar a ser lançado por meio de grandes ventiladores e largos condutores de madeira para dentro das enfermarias, à temperatura desejada, automaticamente regulada. A re-frigeração chegou a funcionar com satisfatório resultado (...) Ela foi, sem dúvida, precursora em matéria de ar-con-dicionado, assunto que somente muitos anos depois pôde

3. De 1900-1909 foi nomeado médico residente do Hospital Pasteur, onde abre um curso de enfermagem para as irmãs da congregação de Saint-Joseph-de-Cluny, as primeiras enfermeiras do hospital. Em 1903, viaja para Londres para aprender os métodos de ensino das enfer-meiras inglesas, consideradas então as melhores do mundo. Foi diretor adjunto do Hospital Pasteur de 1917 a 1934 e diretor de 1934 a 1940.

Page 12: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

68

alcançar a solução prática e relativamente econômica atualmente em uso. (Aragão apud Benchimol, 1990:216)

Outro ponto importante que se destaca em uma análise arquitetônica da construção diz respeito à preocu-pação com a assepsia. Conforme dito anteriormente, com Pasteur teve início uma nova concepção na utilização dos espaços hospitalares de forma a controlar ao máximo os vetores de contaminação abundantes em tais ambientes. Tal preocupação aparece no projeto original da edifi-cação do Hospital Evandro Chagas, na configuração das enfermarias e na existência de espaços destinados a iso-lamentos de casos mais graves como podemos verificar a ilustração abaixo. As discussões sobre o tombamento

Em 29 de julho 1985, o então presidente da FioCruz, Sérgio Arouca, por meio de um ofício ao diretor do an-tigo Sphan4, Glauco Campello, formalizava o interesse da instituição na preservação do seu patrimônio histórico (Pavilhão Mourisco e edifícios anexos), bem como na pro-teção de sua área verde. No ano seguinte, foi organizado

um relatório propondo a extensão de tombamento para a área paisagística do campus e para o tombamento do edi-fício do Hospital Evandro Chagas.Em seu relatório, o coordenador técnico da Comissão de Projetos da Fundação Nacional Pró-Memória5 (FNPM), Edgard Jacintho, expressa a necessidade de tombamento da edificação, descrevendo-a como:

Figura 2. Detalhe da planta baixa original (DPH/COC/FioCruz)

4. No ano de 1990, o Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural – IPHAN, sucedeu a Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN, nas competên-cias previstas no Decreto-Lei n° 25, de 30 de novembro de 1937, no Decreto-Lei n° 3.866, de 29 de novembro de 1941, na Lei n° 4.845, de 19 de novembro de 1965 e na Lei n° 3.924, de 26 de julho de 1961.

Page 13: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

69

(...) protótipo de arquitetura hospitalar de excepcional inte-resse histórico e artístico, na sua exclusividade, por apre-sentar uma das primeiras tentativas feitas no País para a solução do problema de climatização no trópico neste gê-nero de estabelecimento assistencial. (Fundação Nacional Pró-memória, 1985, p.1)

Ainda em 1986, foi elaborada a proposta de ex-tensão de tombamento onde se requeria a inserção do edifício do Hospital Evandro Chagas na relação de pré-dios tombados da FioCruz. Seu relator − Fortunato Ferraz Gominho Filho, arquiteto da 6ª DR/Sphan − expôs a neces-sidade de se solucionar a ausência do hospital no processo de tombamento do Pavilhão Mourisco, Pavilhão da Peste e Cavalariça. Após duas visitas a FioCruz, Fortunato disse comungar com os pensamentos de Jacintho (da Fundação Nacional Pró-Memória) e afirmou que as suas “propostas são eminentemente sérias, atuais e necessárias” (Sphan, 1985) no que diz respeito à adição do hospital ao elenco dos edifícios tombados. Em sua proposta, ele afirmava que para o tombamento do Hospital Evandro Chagas em es-fera nacional eram necessários todos os dados requeridos para o cadastramento da edificação.

No ano de 1997, um memorando emitido pelo Iphan analisava o pedido de tombamento da edificação do Hospital Evandro Chagas em um texto que discorria sobre a sua importância com base no relatório de Jacintho e apontou a existência de informações imprecisas, manifes-tando uma preocupação pelo estado de conservação do hospital, devido a realizações de pequenas obras. Diante disso, o Iphan solicitou que fosse feito um estudo mais aprofundado sobre a edificação (Iphan, 1997).

A partir de 1997, mesmo com a determinação do Iphan de que seriam necessários estudos mais aprofun-dados sobre o edifício, foi concedido o tombamento pro-visório do Hospital Evandro Chagas. Ainda nesse ano, o Iphan se mostrou preocupado com as intervenções e des-caracterizações que o edifício vinha passando.

Mesmo após o seu tombamento provisório, a edifi-cação do hospital continuou passando por inúmeros pro-cessos de alteração, provenientes das necessidades do uso hospitalar. Em uma rápida visita ao hospital é possível ob-servar uma série de problemas relativos à modernização

5. Fundação que tem como finali-dade contribuir para o inventário, a classificação, a conservação, a proteção, a restauração e a revita-lização dos bens de valor cultural e natural existentes no país.

Page 14: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

70

das suas instalações, desde a utilização de equipamentos de ar condicionado, instalados de maneira imprópria nas esquadrias de ferro fundido, até a instalação de grandes tanques de oxigênio na fachada posterior da edificação. Nesta análise, faz-se necessário mencionar as alterações ocorridas no interior do hospital, como a excessiva com-partimentação de seu espaço interno e a ocupação do sótão e porão, ambos com reduzido pé direito.

No ano de 2008, o Iphan solicitou ao então pre-sidente da FioCruz que os novos projetos arquitetônicos e urbanísticos fossem encaminhados para aprovação do próprio Instituto de salvaguarda do patrimônio após a obrigatoriedade da realização de um Plano Diretor da área tombada do campus Manguinhos. Dessa forma, então, o Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Casa de Oswaldo Cruz propôs a atualização do Plano Diretor realizado em 1988 e o desenvolvimento, junto com a Direção da Administração do Campus (Dirac)6, de um Plano de Preservação para a Área de Interesse Histórico e Paisagístico da FioCruz, com o objetivo de auxiliar na pre-servação da memória urbanística e paisagística do con-junto histórico do campus Manguinhos, o que incluía o hospital Evandro Chagas.

Em 2009, para reverter as ações de descaracteri-zação na edificação e seu entorno, o DPH elaborou uma proposta de intervenção na área do então Instituto de Pesquisas Clínicas Evandro Chagas (Ipec)7 com a fina-lidade de complementar a proposta original do Plano Diretor desenvolvido pela Dirac.

As modificações incluídas na nova proposta do DPH consideraram alguns pontos importantes, tais como: cla-reza visual do bem tombado, percursos e impacto visual e prevenção contra problemas futuros. O documento dis-serta sobre os problemas de estacionamento no entorno imediato da edificação, a construção de novos edifícios, ações que vão de encontro às recomendações do Iphan, finalizando com a proposta de um compromisso para o futuro, a fim de que essas ações para a preservação da área tombada não se restrinjam ao presente.

Além das questões mencionadas, o Iphan iden-tificou, na análise da proposta para o processo de tombamento, a ausência de informações aprofundadas e organizadas sobre o Hospital, tornando, dessa forma,

6. Atual Coordenação Geral de Infraestrutura dos Campi (Cogic).

7. Atual Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI).

Page 15: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

71

fundamental reunir os dados da edificação em um in-ventário arquitetônico, contribuindo com as ações de va-lorização do patrimônio cultural da saúde, que segundo Juliane Serres, no texto “Preservação do patrimônio cul-tural da saúde no Brasil: uma questão emergente”,

é formado por uma diversidade de elementos, desde concepções médico-sanitárias plasmadas na arquitetura até documentos textuais e iconográficos que permitam preservar a memória dessas instituições e de seus usuá-rios. Preservar os antigos hospitais, documentá-los, coloca em evidência essa importante instituição da sociedade. Patrimonializar, em muitos casos, pode servir para salvar o que existe desses locais, pode ser uma estratégia para preservar as memórias dessas instituições, das pessoas envolvidas, da própria saúde e permitir constantes leituras e releituras com base nesses indícios, além de ampliar, efeti-vamente, o campo patrimonial. (Serres, 2015, p.1424)

Algumas considerações à guisa de conclusão

As alterações sofridas ao longo dos anos a fim de adaptar-se às normas vigentes da medicina e da saúde e por outro lado a valorização da sua arquitetura impõem desafios fundamentais na preservação e na valorização de edifica-ções hospitalares enquanto patrimônio da saúde.

Essas edificações de uso hospitalar, construídas para atender às necessidades das políticas de saúde pública de uma determinada época, chegam aos dias atuais carregando o peso das adaptações das diversas modernizações ocorridas ao longo de sua existência. Essas adaptações têm como objetivo o cumprimento das exigências das normas que estabelecem critérios para a solução das questões referentes à estrutura e organização dos hospitais. No entanto, as normas não consideram que as antigas construções hospitalares, dotadas de valor his-tórico e por isso limitadas por sua arquitetura, tenham mais restrições para se adequar às questões referentes a contemporaneidade. Essas questões impõem desafios fun-damentais na preservação e na valorização de edificações hospitalares enquanto patrimônio da saúde.

Page 16: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

72

No estudo de caso analisado, a edificação apre-senta sinais evidentes de incapacidade física para abrigar o atual hospital lá instalado, que busca qualidade no atendimento à população. Não só porque precisa atender às exigências do processo de tombamento a cargo do Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), mas também porque as alterações físicas necessárias para a adequação do edifício às normas hospitalares vigentes causam inevitáveis descaracterizações, que podem ter como consequência o desaparecimento de um período importante da história da Fundação Oswaldo Cruz, insti-tuição da qual faz parte e da história da saúde no Brasil.

Figura 3. Planta baixa atual – levantamento feito em 2017 (DPH/COC/FioCruz).

Figura 4. Fachada frontal – Hospital Evandro Chagas – 2017 (DPH/COC/FioCruz).

Page 17: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

73

Figura 5. Fachada posterior – Hospital Evandro Chagas – 2017 (DPH/COC/FioCruz).

Figura 6. Situação encontrada em várias esquadrias do Hospital – 2017 (DPH/COC/FioCruz).

As sucessivas alterações vêm descaracterizando a edificação em alguns de seus elementos específicos, pos-sibilitando a perda daquilo que tornou a sua arquitetura tão importante na época da construção e ainda atual-mente: os conceitos técnicos adotados que deram origem a um exemplar sofisticado da arquitetura hospitalar do início do século XX e único representante do sistema pavi-lhonar idealizado por Oswaldo Cruz para o então Instituto Oswaldo Cruz (IOC), hoje Fundação Oswaldo Cruz.

Suas características físicas, bem como sua intencio-nalidade projetual, precisam ser levadas em consideração em uma proposta de reintegração deste patrimônio, que respeite e possibilite sua preservação. Essa intencionali-dade do projeto para o espaço arquitetônico, segundo o arquiteto Josep Maria Montaner,

é o produto da complexa articulação e produção de estru-turas geométrico-topológicas que dialogam, durante esse processo de elaboração, com outros textos, enunciados e proposições, expressando formas-pensamento, cujo signi-ficado encontra lugar na condição específica da arquite-tura como espaço criado. (Montaner, 2002).

Page 18: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

74

Tendo em vista que o uso atual traz sérias dificul-dades em relação a preservação das características defi-nidas pela intencionalidade do projeto original da edifi-cação, torna-se necessário um estudo de novas formas de ocupação que levem em consideração o seu caráter tipo-lógico. O arquiteto Cyro Lyra quando trata da questão do uso, afirma que:

Se para a proteção de um edifício de valor cultural não houver outra solução senão sua destinação para uma função diversa do original, impõe-se como primeira questão a avaliação da pertinência do uso pretendido em face da preservação do monumento. Em outras palavras, deve-se verificar se a nova função é condizente com as vocações daquela tipologia arquitetônica e, o mais impor-tante, com a vocação daquele monumento. Embora reuti-lizações completamente diversas das funções originais te-nham salvado do desaparecimento muitos monumentos, pode-se considerar que tais fatos foram excepcionais, pos-suindo cada tipo arquitetônico um leque finito de vocações de uso. (Lyra, 2016, p.57)

Considerando a afirmação, é preciso então analisar um futuro uso da edificação de forma a respeitar as suas características consideradas fundamentais e que darão significado à própria existência do bem edificado como monumento testemunho de um tempo. Françoise Choay afirma que o reuso, analisado apenas como forma mera-mente de ocupação, que consiste:

em reintegrar um edifício desativado a um uso normal, subtraí-lo a um destino (...) é certamente a forma mais pa-radoxal, audaciosa e difícil de valorização do patrimônio. (...), o monumento é assim poupado aos riscos do desuso para ser exposto ao desgaste e usurpações do uso: dar-lhe uma nova destinação é uma operação difícil e complexa, que não deve se basear apenas na homologia com sua des-tinação original. Ela deve, antes de mais nada, levar em conta o estado material do edifício, o que requer uma ava-liação do fluxo dos usuários. (Choay, 2006, p.219)

Carbonara (1997) defende também a questão de (re)utilização de uma edificação histórica como forma de

Page 19: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

75

valorização, possibilitando o investimento em ações de preservação, e assim, sendo preciso considerar, que é a conservação do bem e não o uso, que deve merecer es-forços e prevalecer. Beatriz Kühl, ao enfatizar as palavras do teórico italiano, afirma que, “quando o uso é a tal ponto incompatível com as características e com o papel memo-rial da construção”, torna-se necessário “fazer uma nova obra para a utilização desejada e que se preserve o edi-fício original tal como estava” (Kühl, 2009, p. 207-214). Os projetos de intervenção não devem

adaptar um dado edifício a um novo uso preestabelecido ou submetê-lo a transformações massificadas nem sempre de acordo com suas particularidades (…) e (…) não basta que o novo uso leve em conta apenas os aspectos mate-riais, de distribuição espacial, documentais, se não for o uso condigno com o próprio significado do bem e perti-nente ao local e situação em que se insere e a comunidade a que se volta. (Kühl, 2009, p. 207-214).

Kühl afirma ainda que os usos voltados a cultura não necessariamente são os mais apropriados, podendo um uso, que a princípio não é essencialmente similar ao uso original, ser mais adequado por respeitar criteriosa-mente os aspectos reconhecidos como fundamentais na preservação da edificação (Kühl, 2009, p. 207-214).

As questões sobre os aspectos fundamentais na preservação de uma edificação também são tema de dis-cussão de Cesare Brandi, quando discute a “polaridade das estâncias estética e histórica” de uma edificação e que ambas devem ser consideradas associadamente quando do “momento metodológico do reconhecimento da obra de arte”. Carbonara, analisando a questão brandiana, ex-plica que:

se restaura somente aquilo que é julgado digno de ser transmitido pelo próprio valor histórico-documental ou ar-tístico, ou seja, tudo aquilo que é antigo (mesmo indepen-dente da sua beleza, somente pela própria historicidade) e tudo que é belo ou artístico (independentemente do fato que seja ou não antigo, somente pela própria esteticidade). (Carbonara, 1997, p. 372)8

Page 20: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

76

Certamente, numa proposta para uma nova forma de ocupação, que busca a conservação do patrimônio edi-ficado, seja o uso escolhido compatível historicamente ou não com a função original, será necessária uma análise segundo rigorosos critérios baseados principalmente na valoração de aspectos fundamentais que revestem de sig-nificado o patrimônio edificado. Segundo Randall Mason, estes aspectos, sob forma de valores, são utilizados tanto como “referência às qualidades e características visto nas coisas, em especial as características positivas (reais e po-tenciais)9” mas também “como moral, como princípios ou outras ideias que servem como guias para a ação (indivi-dual e coletiva)”10 (Mason, 2002, p.7).

Para Françoise Choay, “quando se trata de dar des-tinação aos velhos edifícios” como hospitais, o assunto torna-se ainda mais complexo (Choay, 2006 p.221), prin-cipalmente devido às questões de infraestrutura mo-derna, que demandam projetos específicos com nível téc-nico apurado e profissionais com experiência em intervir em edifícios históricos, o que em muitos casos, devido ao custo e ao tempo necessários para elaborar propostas, in-viabilizam os projetos. Por outro lado, as intervenções ne-cessárias para a modernização dos espaços implicam na questão da autenticidade, alterando aspectos simbólicos da arquitetura.

A Carta de Veneza, redigida em 1964, ao mencionar a autenticidade dos monumentos, explica que:

Portadoras de mensagem espiritual do passado, as obras monumentais de cada povo perduram no presente como o testemunho vivo de suas tradições seculares. A humani-dade, cada vez mais consciente da unidade dos valores hu-manos, as considera um patrimônio comum e, perante as gerações futuras, se reconhece solidariamente responsável por preservá-las, impondo a si mesma o dever de transmi-ti-las na plenitude de sua autenticidade. (Carta de Veneza, preâmbulo.)

Tendo em vista a descrição acima, é possível de-terminar a relevância de edificações com essas carac-terísticas no cenário brasileiro do patrimônio da saúde. Justamente algumas dessas características estão em risco, face as novas políticas públicas da saúde e das

8. Tradução livre para “si restaura solo ciò che si é giudicato meri-tovole d’essere tramandato per il próprio valore storico_documen-tario o artístico, ossia tutto ciò che é antico (anche independente-mente dalla sua “beleza”, per la sola storicità) e tutto cio che é “bello” o artístico (independentemente dal fato che sia o no antico, pela sola esteticitá).” (Carbonara, 1997, p. 372)

9. Tradução livre para: “in reference to the qualities and characteris-tics seen in things, in particular the positive characteristics (actual and potential)”

10. Tradução livre para: “in reference to the qualities and characteris-tics seen in things, in particular the positive characteristics (actual and potential)”

Page 21: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

77

normatizações dos ambientes hospitalares que deter-minam adequações dos espaços para cumprimento de di-mensionamentos mínimos, além da infraestrutura neces-sária para o funcionamento. Por exemplo, a Normativa nº 50, documento técnico de 2002 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária que regula o planejamento, progra-mação, elaboração e avaliação de projetos físicos de es-tabelecimentos assistenciais de saúde, ao tratar de obras de reforma e suas adequações, afirma que “quando esgo-tadas todas as possibilidades sem que existam condições de cumprimento integral desta norma, devem-se privile-giar os fluxos de trabalho/material/paciente”. (RDC nº 50, 2002). De fato, por mais simples que isso possa parecer, a manutenção dos fluxos de um uso hospitalar implica ne-cessariamente adaptações internas e externas, obrigando um estudo mais aprofundado sobre os impactos na arqui-tetura do hospital, que é o que se propõe nosso projeto, afinal. No entanto, para tal artigo, optamos por problema-tizar essa questão, sem defender propostas quanto ao uso. Na dissertação, pretende-se apontar as diretrizes de uso e ocupação, respeitando a preservação das características e dos valores inerentes a edificação.

Page 22: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

78

Referências Bibliográficas

BENCHIMOL, J.L. (coord.). Manguinhos, do sonho à vida – A ciência na Belle Époque. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, 1990.

BENCHIMOL, J.L. Arquitectura y microbiología en los tiempos de Oswaldo Cruz. In: SERVÍN, M.L.G. (org.). Registro del sistema arquitectónico de pabellones en hospitales de América Latina. v. 2. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2016, p. 39-54.

BRANDI, C. Teoria da Restauração. Cotia: Ateliê Editorial, 2014.

BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC nº 50. 2002

CARBONARA, G. Avvicinamento al Restauro. Teoria, storia, monumenti. Liguori Editore. 1997.

CARTA DE VENEZA. II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos, 1964. In: I. CURY, (Org.). Cartas patrimoniais. Brasília: IPHAN, 2000.

CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. 3.ed. São Paulo: Unesp, 2006.

_______. As questões do Patrimônio. Antologia para um combate. Lisboa.2015.

COSTA, M.C.L. O discurso higienista definindo a ci-dade. The hygienist discourse defining the citie. Fortaleza, Mercator, n. 29, 2013, p. 51-67.

COSTA, R.G.R. Arquitetura e saúde no Rio de Janeiro. In: PORTO, A. et al. História da Saúde no Rio de Janeiro. Instituições e patrimônio arquitetônico (1808 –1958). Rio de Janeiro: FioCruz, 2008.

DECLARAÇÃO DE AMSTERDÃ. Congresso do Patrimônio Arquitetônico Europeu, 1975. In: I. CURY, (Org.). Cartas Patrimoniais. Brasília: IPHAN, 2000.

DEPARTAMENTO DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO / COC / FIOCRUZ. Relatório da Proposta para o Plano de Preservação para a Área de Interesse Histórico e Paisagístico da FioCruz. Maio, 2009.

DIAS, E. O Instituto Oswaldo Cruz. Resumo Histórico. (1899 – 1918). Rio de Janeiro: Manguinhos, 1918.

FIOCRUZ. Ofício nº 268/85-PR. In: Processo de Extensão de Tombamento do Núcleo Arquitetônico

Page 23: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

79

Histórico de Manguinhos. Processo nº 1.037 – T -80. Volume II. 1985.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

FUNDAÇÃO NACIONAL PRÓ-MEMÓRIA. Relatório de Edgard Jacintho da Silva, de 20/12/85. In: Processo de Extensão de Tombamento do Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos. Processo nº 1.037 – T -80. Volume II. 1985.

IPHAN. MEMO Nº 1.019/97, de 26/11/97. In: Processo de Extensão de Tombamento do Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos. Processo nº 1.037 – T -80. Volume II. 1985.

KÜHL, B. Preservação do Patrimônio Arquitetônico da Industrialização. Problemas Teóricos de Restauro. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.

LYRA, C.C. A importância do uso na preservação da obra de arquitetura. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA. UFRJ, 2006

______. A preservação do patrimônio edificado. A questão do uso. Brasília: Iphan, 2016.

MARTIN L. Le fonctionnement de l’hôpital Pasteur. Revue d’hygiène et de police sanitaire. 1903, p. 236-281.

MASON, R. Fixing historic preservation: a constructive critique of “significance”. In: Places, a Forum of Environmental Design. v.16, n.1, 2004.

_______. Assessing Values in Conservation Planning: Methodological Issues and Choices. In: DE LA TORRE, M. (ed.). Assessing the Values of Cultural: Research Report. Los Angeles: The Getty Conservation Institute, 2002.

MIQUELIN, L.C. Anatomia dos edifícios hospitalares. São Paulo: CEDAS, 1992.

MONTANER, J.M. Las formas del Siglo XX. Barcelona. Gustavo Gili. 2002.

NIGHTINGALE, F. Notes on Hospitals. London: Longman, Green, Longman, Roberts, and Green, 1863.

OLIVEIRA, B.T. (coord.); COSTA, R.G.R.; PESSOA, A.J.S. Um lugar para a Ciência: a formação do campus de Manguinhos. Rio de Janeiro: FioCruz, 2003.

Page 24: Hospital Evandro Chagas: uma análise das transformações …...após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, sendo então ba-tizado com seu nome. Em 1940, com o falecimento de Evandro

80

OPINEL, A. The Pasteur hospital as an element of Emile Roux’s anti-diphtheria apparatus (1890-1914). Paris: Institut Pasteur, 2007.

SÉRVIN, M.L.G. (org). Registro del Sistema Arquitectónico de Pabellones en hospitales de America Latina. 1ed. México, 2014. (v.1).

________. Registro del Sistema Arquitectónico de Pabellones en hospitales de America Latina. México, 2016. (v.2).

SILVA, K.P. A ideia de função para a arquitetura: o hos-pital e o século XVIII. Disciplina ou formação do pensamento: a Razão das Luzes, Tenon e o Hospital. São Paulo, ano 01, n. Arquitextos 012.07, Vitruvius, maio 2001 . Disponível em: <http://www.vitruvius .com.br/revistas/read/arquitextos/01.012/893>.

SPHAN. Informação nº 65/86. Carta de Fortunato Ferraz Gominho Filho. 17/02/86. In: Processo de Extensão de Tombamento do Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos. Processo nº 1.037 – T -80. Volume II. 1985.

TOLEDO, L.C. Feitos para curar. arquitetura hospi-talar e processo projetual no Brasil. 2002. Dissertação (Mestrado). Rio de Janeiro: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Data de recebimento: 31/10/2017

Data de aprovação: 03/05/2018