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Tiragem: 10500 País: Portugal Period.: Quinzenal Âmbito: Lazer Pág: 25 Cores: Cor Área: 25,40 x 30,00 cm² Corte: 1 de 4 ID: 64598481 25-05-2016 MARCOS BORGA Ricardo Nabais No futuro, podemos controlar a cor de uma parede ou a sua emissão de luz. Ou ainda ter um objeto pequeno, descartável, capaz de fazer um diagnóstico médico. Aos 51 anos, a tecnologia saída dos seus laboratórios pode revolucionar o mundo. As multinacionais, atentas, já lhe foram bater à porta. E os prémios são em catadupa – a medalha Blaise Pascal para as Ciências dos Materiais é o mais recente – sendo ainda finalista do Prémio Europeu do Inventor Elvira Fortunato A revolução é um chip de papel o O ano ainda não chegou a meio e Elvira Fortunato (EF) não tem mãos a medir. A investigadora portu- guesa, com entrada recente no altar mediático, integra um grupo de sete conselheiros científicos da Comissão Europeia, o Scientific Advice Mechanism, de que é vice- -presidente. O grupo tem em mãos algumas das decisões mais impor- tantes na política científica dos 28. E a 7 de junho volta a reunir-se, na reitoria da Universidade Nova de Lisboa. Mas a azáfama parece não ter fim: ainda este mês, EF rece- beu a prestigiada Medalha Blaise Pascal para a Ciência dos Materiais, atribuída pela Academia Europeia de Ciências, e soube que é finalista, com Rodrigo Martins, do Prémio Europeu do Inventor. A 9 de junho, numa cerimónia a realizar em Lisboa, conheceremos os vencedores. Na verdade, o impacto das desco- bertas do grupo de Elvira Fortunato e Rodrigo Martins, o CENIMAT (Centro de Investigação em Materiais) da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, não é de agora. Mas 2016 está a ser em cheio, uma espécie de concentrado de recompensas para a investigadora e professora universitária, nascida em Almada a 22 de julho de 1964, e com uma vida sempre pautada pelo “ri- gor” e pela impossibilidade de dizer a palavra ‘impossível’. Sob a batuta de Elvira, surgiram tecnologias novas e amigas do am- biente, como transístores e microchips de papel, que substituem o silício por materiais orgânicos, mais baratos e recicláveis, e que poderão ser aplicados em objetos do dia-a-dia. Prova disso foi o interesse de multinacionais como a Samsung no trabalho do CENIMAT e um projeto com a Merck, entre outros. Jornal de Letras: No início deste ano foi convidada para um cargo europeu de grande responsabilidade. Elvira Fortunato: Fui selecionada para integrar esse grupo novo na Comissão Europeia, o Scientific Advice Mechanism, que foi criado no âmbito da presidência de Jean- -Claude Juncker. É um grupo de sete cientistas europeus. E aí não estou propriamente a falar de ciência per se, mas de políticas científicas e con- selhos na área da ciência. Isso já me catapultou para uma posição mais acima, não a da ciência propriamente dita, mas para o campo das decisões científicas. O grupo já iniciou as atividades? Começou em janeiro, já tivemos três reuniões. Não posso falar muito delas, há temas que são confiden- ciais. As decisões de domínio público estão na nossa página na internet. Trabalhamos em várias áreas. Mas um assunto que está a ter alguma urgência, porque é preciso fazer legislação europeia nesse sentido, vai ser abordado num workshop no dia 7 de junho, na reitoria da Universi- dade Nova de Lisboa. Conseguimos trazê-lo para cá, também por meu intermédio, como vice-presidente do grupo. Era uma aluna aplicada, mas não tinha uma média alta de acesso à universidade. O curso de Engenharia de Materiais foi a sua primeira escolha? Não. A primeira era Engenharia do Ambiente, também aqui na Faculda- de de Ciências e Tecnologia. E é de Almada, portanto passou aqui grande parte da vida... Sim. Aliás, também houve coinci- dências. Acabei o 12.º em 1982 e esta faculdade começou aqui em 1981. Na verdade, nunca planeei o meu per- curso, na minha vida as coisas têm acontecido de forma natural. Nunca defini muitas metas. Parecia que a faculdade tinha sido feita a pensar em si. (risos) Realmente, hoje acho que se calhar até foi melhor não ter entra- do para Engenharia do Ambiente. A Engenharia de Materiais era uma licenciatura nova e hoje em dia é extremamente importante em todas as áreas. Ela acaba por estar mais escondida do que as outras, mas os materiais são importantíssimos em tudo, desde a engenharia civil, a trabalhar com materiais ambien- talmente corretos, tentamos usar tecnologias de baixo custo, não po- luentes, baixas temperaturas. Agora trabalhamos muito com nanopartí- culas, coisas que têm de ser sinteti- zadas – também há muita química relacionada – e tentamos que essas químicas sejam ‘verdes’, que não sejam utilizados solventes perigosos. No fundo, não fez um desvio assim tão grande em relação à sua primeira escolha... É verdade. Também gosto muito da parte da biologia, e agora estamos a trabalhar com bactérias, que produzem materiais que nós usamos. Hoje em dia, a ciência está a ser muito transversal. Há muitas áreas que acabam por tocar umas nas outras. Daí também todos os prémios que temos tido. A inovação surge muito pela mistura de áreas diferentes. Se fossemos todos da mesma área, se calhar quando víssemos um telemóvel, olhávamos todos da mesma forma para ele. Portanto, o grau de inovação, aquele valor acrescentado que queremos colocar num telemóvel, seria minimizado. Se eu tiver uma equipa de várias áreas, todos vão olhar para o telemóvel com olhos diferentes. O valor que vamos conseguir acrescentar vai ser muito maior. A nossa equipa tem, exatamente, químicos, engenheiros de materiais, biólogos… E o responsável do grupo é engenheiro eletrotécnico. O nosso core business são materiais semicondutores com aplicação na eletrónica. Nos últimos anos, o debate em torno da inovação tem sido feito pela valorização da ciência aplicada em detrimento da investigação. Essa discussão faz sentido? Não concordo muito com ela. Acho que ambas estão ligadas. E isso tem a ver com a própria evolução da ciência. Não há ninguém, hoje, que não faça investigação com uma meta. Quando se fala mais em ciência fundamental ou em mais ciência aplicada, isso tem a ver com o tempo que se demora. O objetivo até pode ser similar, mas o tempo da fundamental, se calhar, vai ser maior. O da aplicada é mais ime- diato. Mesmo nós, aqui, fazendo uma investigação mais aplicada, também temos investigadores no grupo que A inovação surge muito pela mistura de áreas diferentes. Se eu tiver uma equipa de várias áreas, todos vão olhar para o telemóvel com olhos diferentes. O valor que vamos conseguir acrescentar vai ser muito maior Elvira Fortunato”A palavra ‘impossível’ não entra no laboratório” medicina, a eletrónica – até para as artes. Lá está, de certo modo foi um acaso, mas isso contribuiu para eu ter chegado onde cheguei. A primeira escolha, do Ambiente, surgiu por alguma razão idealista? Se calhar. Aliás, hoje em dia temos muitas preocupações ambientais no trabalho que fazemos, nos materiais que usamos para fazer transístores ou sensores, por exemplo. Procuramos

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País: Portugal

Period.: Quinzenal

Âmbito: Lazer

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Ricardo Nabais

No futuro, podemos controlar a cor de uma parede ou a sua emissão de luz. Ou ainda ter um objeto pequeno, descartável, capaz de fazer um diagnóstico médico. Aos 51 anos, a tecnologia saída dos seus laboratórios pode revolucionar o mundo. As multinacionais, atentas, já lhe foram bater à porta. E os prémios são em catadupa – a medalha Blaise Pascal para as Ciências dos Materiais é o mais recente – sendo ainda finalista do Prémio Europeu do Inventor

Elvira FortunatoA revolução é um chip de papel

oO ano ainda não chegou a meio e Elvira Fortunato (EF) não tem mãos a medir. A investigadora portu-guesa, com entrada recente no altar mediático, integra um grupo de sete conselheiros científicos da Comissão Europeia, o Scientific Advice Mechanism, de que é vice--presidente. O grupo tem em mãos algumas das decisões mais impor-tantes na política científica dos 28. E a 7 de junho volta a reunir-se, na reitoria da Universidade Nova de Lisboa. Mas a azáfama parece não ter fim: ainda este mês, EF rece-beu a prestigiada Medalha Blaise Pascal para a Ciência dos Materiais, atribuída pela Academia Europeia de Ciências, e soube que é finalista, com Rodrigo Martins, do Prémio Europeu do Inventor. A 9 de junho, numa cerimónia a realizar em Lisboa, conheceremos os vencedores.

Na verdade, o impacto das desco-bertas do grupo de Elvira Fortunato e Rodrigo Martins, o CENIMAT (Centro de Investigação em Materiais) da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, não é de agora. Mas 2016 está a ser em cheio, uma espécie de concentrado de recompensas para a investigadora e professora universitária, nascida em Almada a 22 de julho de 1964, e com uma vida sempre pautada pelo “ri-gor” e pela impossibilidade de dizer a palavra ‘impossível’.

Sob a batuta de Elvira, surgiram tecnologias novas e amigas do am-biente, como transístores e microchips de papel, que substituem o silício por materiais orgânicos, mais baratos e recicláveis, e que poderão ser aplicados em objetos do dia-a-dia. Prova disso foi o interesse de multinacionais como a Samsung no trabalho do CENIMAT e um projeto com a Merck, entre outros.

Jornal de Letras: No início deste ano foi convidada para um cargo europeu de grande responsabilidade.

Elvira Fortunato: Fui selecionada para integrar esse grupo novo na Comissão Europeia, o Scientific Advice Mechanism, que foi criado no âmbito da presidência de Jean--Claude Juncker. É um grupo de sete cientistas europeus. E aí não estou propriamente a falar de ciência per se, mas de políticas científicas e con-selhos na área da ciência. Isso já me catapultou para uma posição mais acima, não a da ciência propriamente dita, mas para o campo das decisões científicas.

O grupo já iniciou as atividades?Começou em janeiro, já tivemos três reuniões. Não posso falar muito delas, há temas que são confiden-ciais. As decisões de domínio público estão na nossa página na internet. Trabalhamos em várias áreas. Mas um assunto que está a ter alguma urgência, porque é preciso fazer legislação europeia nesse sentido, vai ser abordado num workshop no dia 7 de junho, na reitoria da Universi-dade Nova de Lisboa. Conseguimos trazê-lo para cá, também por meu intermédio, como vice-presidente do grupo.

Era uma aluna aplicada, mas não tinha uma média alta de acesso à universidade. O curso de Engenharia de Materiais foi a sua primeira escolha?Não. A primeira era Engenharia do Ambiente, também aqui na Faculda-de de Ciências e Tecnologia.

E é de Almada, portanto passou aqui grande parte da vida...Sim. Aliás, também houve coinci-dências. Acabei o 12.º em 1982 e esta faculdade começou aqui em 1981. Na verdade, nunca planeei o meu per-curso, na minha vida as coisas têm acontecido de forma natural. Nunca defini muitas metas.

Parecia que a faculdade tinha sido feita a pensar em si.(risos) Realmente, hoje acho que se calhar até foi melhor não ter entra-do para Engenharia do Ambiente. A Engenharia de Materiais era uma licenciatura nova e hoje em dia é extremamente importante em todas as áreas. Ela acaba por estar mais escondida do que as outras, mas os materiais são importantíssimos em tudo, desde a engenharia civil, a

trabalhar com materiais ambien-talmente corretos, tentamos usar tecnologias de baixo custo, não po-luentes, baixas temperaturas. Agora trabalhamos muito com nanopartí-culas, coisas que têm de ser sinteti-zadas – também há muita química relacionada – e tentamos que essas químicas sejam ‘verdes’, que não sejam utilizados solventes perigosos.

No fundo, não fez um desvio assim tão grande em relação à sua primeira escolha...É verdade. Também gosto muito da parte da biologia, e agora estamos a trabalhar com bactérias, que produzem materiais que nós usamos. Hoje em dia, a ciência está a ser muito transversal. Há muitas áreas que acabam por tocar umas nas outras. Daí também todos os prémios que temos tido. A inovação surge muito pela mistura de áreas diferentes. Se fossemos todos da mesma área, se calhar quando víssemos um telemóvel, olhávamos todos da mesma forma para ele. Portanto, o grau de inovação, aquele valor acrescentado que queremos colocar num telemóvel, seria minimizado. Se eu tiver uma equipa de várias áreas, todos vão olhar para o telemóvel com olhos diferentes. O valor que vamos conseguir acrescentar vai ser muito maior. A nossa equipa tem, exatamente, químicos, engenheiros de materiais, biólogos… E o responsável do grupo é engenheiro eletrotécnico. O nosso core business são materiais semicondutores com aplicação na eletrónica.

Nos últimos anos, o debate em torno da inovação tem sido feito pela valorização da ciência aplicada em detrimento da investigação. Essa discussão faz sentido?Não concordo muito com ela. Acho que ambas estão ligadas. E isso tem a ver com a própria evolução da ciência. Não há ninguém, hoje, que não faça investigação com uma meta. Quando se fala mais em ciência fundamental ou em mais ciência aplicada, isso tem a ver com o tempo que se demora. O objetivo até pode ser similar, mas o tempo da fundamental, se calhar, vai ser maior. O da aplicada é mais ime-diato. Mesmo nós, aqui, fazendo uma investigação mais aplicada, também temos investigadores no grupo que

A inovação surge muito pela mistura de áreas diferentes. Se eu tiver uma equipa de várias áreas, todos vão olhar para o telemóvel com olhos diferentes. O valor que vamos conseguir acrescentar vai ser muito maior

Elvira Fortunato”A palavra ‘impossível’ não entra no laboratório”

medicina, a eletrónica – até para as artes. Lá está, de certo modo foi um acaso, mas isso contribuiu para eu ter chegado onde cheguei.

A primeira escolha, do Ambiente, surgiu por alguma razão idealista?Se calhar. Aliás, hoje em dia temos muitas preocupações ambientais no trabalho que fazemos, nos materiais que usamos para fazer transístores ou sensores, por exemplo. Procuramos

Page 2: ID: 64598481 25-05-2016 Corte: 1 de 4 Elvira Fortunato A ... · uma alteração dos cristais líquidos para outras tecnologias e a Merck escolheu-nos a nós como laborató - rio de

Tiragem: 10500

País: Portugal

Period.: Quinzenal

Âmbito: Lazer

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trabalham em temas mais fundamen-tais. Podemos ter um trabalho mais aplicado, como fazer um protótipo a partir de uma célula fotovoltaica e que se pode pôr em pouco tempo no mercado. E isso acontece também com a eletrónica de papel, que tem uma aplicabilidade mais imediata. Traba-lhamos muito com indústrias, com as quais temos projetos diretos. E a fonte de financiamento são os projetos…

Trabalham com indústrias? Internacionais?Sim. Uma das coisas que nos catapul-tou foi exatamente, em 2006, quando tínhamos um projeto com uma grande empresa, a Samsung. Neste momento estamos também com um projeto grande nessa área com a Merck.

Na área das ciências da vida?Na área da eletrónica. Usamos cristais líquidos em tudo o que seja displays [ecrãs de telemóvel, por exemplo]. Qualquer ecrã destes usa cristal lí-quido e 80% desses cristais vendidos no mundo são da Merck. Está a haver uma alteração dos cristais líquidos para outras tecnologias e a Merck escolheu-nos a nós como laborató-rio de referência para testar novos materiais que estão a desenvolver nas áreas das eletrónicas aplicadas a ecrãs. Não foram para Oxford ou para Cambridge, estão cá.

Mas também têm outras atividades…Temos um exemplo pequenino, mas emblemático. A nossa ativi-dade principal não é a prestação de serviços, mas tendo nós aqui as tecnologias e as infraestruturas, podemos pô-las ao serviço de quem precisa – as empresas que estão sediadas em Portugal, sejam portu-guesas ou não. Há tempos tivemos uma solicitação de uma empresa do Norte que faz a montagem dos airbags para os BMW. Estava a haver um problema com os módulos, que tinham uma mola com um defeito. Os airbags abriam, mesmo sem existir colisão. As molas vinham de uma empresa alemã muito concei-tuada na área dos materiais metáli-cos e os alemães disseram logo que eram os portugueses que estavam a fazer a montagem errada. Nós não trabalhamos muito em metais pro-priamente ditos, mas trabalhamos com materiais e somos reconhe-cidos. Fomos contactados por essa empresa para tentar ver qual era o problema. Dissemos que sim, pedi-mos que nos enviassem uma mola boa e uma mola má e identificámos o problema. Vimos que o processo tecnológico de fabrico da mola que partia não estava a ser bem feito. Enviámos o material de volta e essa empresa portuguesa enviou-o para a Alemanha, e os alemães mudaram de fornecedor.

Deram a mão à palmatória.Isso até foi anunciado na imprensa. Não foi só o nosso contributo, mas queremos e podemos ajudar.

Fizeram um pouco de CSI dos materiais, nesse caso.Sim (risos), e continuamos a fazer.

Estamos em vias de assinar um projeto grande, também com uma empresa nacional, que ainda não po-demos revelar, para avaliar processos de fabrico, materiais defeituosos.

E como chegaram a essas empresas?Tem a ver com a excelência do nosso trabalho. Quando os responsáveis da Samsung vieram cá, perguntaram--lhes se vinham passar férias a Por-tugal. Não é comum um coreano vir cá ver transístores… Foi através dos artigos que publicamos em revistas e jornais de elevada qualidade, das conferências.

Bastou isso, não houve uma campanha adicional?Não. É única e exclusivamente mérito científico. Daí ser muito importante não só publicarmos, mas publicar em revistas de topo. Acabámos de lançar uma publicação nova do gru-po Nature, em parceria com a nossa Faculdade (de Ciências e Tecnologia da Un. Nova), na área dos materiais, das nanotecnologias. Não há mais nenhum jornal de topo que tenha sido negociado com uma universida-de portuguesa.

E quando começa a publicação?Em outubro/novembro.

Com a raridade de matérias-primas no mundo, o vosso trabalho é também importante porque criam alternativas para as substituir?Nós trabalhamos com materiais abundantes na natureza e com tec-nologias ambientalmente corretas.

A eletrónica transparente faz parte dessa filosofia?É exatamente a eletrónica em que a Samsung está a trabalhar, já há protótipos e alguns equipamentos que utilizam, em vez do tradicional silício, estes óxidos metálicos. Mas é preciso ver que o silício é dos materiais mais abundantes na Terra – a seguir ao oxigénio – e quando acabar, acaba o planeta (risos). O problema é que, para transformarmos o silício, temos de usar altas tempera-turas. Isso tem de ser feito em fornos especiais e os materiais que estamos a utilizar vêm da própria composição do papel. São recicláveis como se recicla o papel. O que estamos a fazer é substituir em aplicações de baixo custo o silício por outros materiais que têm impacto elevado. E não há nada mais fácil do que termos um pa-pel, que além disso é fácil de reciclar. A imagem que se associou ao vosso transístor é a de a Bíblia poder caber numa folha de papel. Como é possível?Isso já implica o recurso a nanotec-nologias. Mas uma das coisas que nos caracteriza em termos de grupo e que nos dá prazer, é utilizar objetos banais, do dia-a-dia, para aplicações completamente diferentes. Usamos o papel, estes óxidos de zinco que são usados em protetores solares, e que são excelentes cicatrizantes – o Halibut, o Lauroderme, os cremes da Mustela... E usamos isso tudo, ou o papel, para fazer eletrónica.

Como surgiu a ideia?Uma das tendências do grupo era processar estes materiais à tempera-tura ambiente, porque se trabalhava muito bem em materiais flexíveis – ecrãs, sensores, depositados em plásticos. Para colocar esses revesti-mentos em plástico, temos de o fazer a frio, senão o próprio plástico der-rete. Ora o papel também era flexível e também tinha essas propriedades. Então, por que não usar o papel? O primeiro papel que usámos era vulgar, não era para fazer transís-tores, nem existia. Entretanto, com o conhecimento que adquirimos, conseguimos saber qual é o melhor papel para o transístor ou o ecrã em papel que queremos produzir. Como somos experimentalistas, avançá-mos. Imaginemos o jornal do Harry Potter, que interagia com o leitor

através de um display. Ora para o fazer, só podia funcionar se tivesse transístores. Por isso, como pode-mos imaginar fazer um transístor? Essa foi uma das ideias, tentar ex-plorar o papel como componente do próprio transístor.

Quando o processo começou a dar resultado, ficaram surpreendidos?Por acaso, inicialmente até pensá-mos que não ia resultar. Não há nada como experimentar, porque os ma-teriais às vezes surpreendem-nos. Às vezes, teoricamente, parece que não vão funcionar.

Essa tecnologia tem muitas aplicações?É quase um filão. É uma mina.

No futuro, com estes materiais, poderemos ter, por exemplo, um papel de parede que permita que ela emita luz. Ou podemos controlar-lhe a cor. Podemos vir a deixar de precisar de computadores e passamos a ter interfaces noutros objetos.

No fundo, podem aumentar o tamanho dos ecrãs e aumentar a capacidade de eles armazenarem informação?Podemos desenvolver displays para outras áreas, em várias superfícies ativas. Noutros contextos, podere-mos ir para África com tecnologias descartáveis de muito baixo custo que permitam fazer diagnósticos, usando o papel. Mas podemos ima-ginar várias outras coisas. Acho que este prémio pode trazer esse

conforto a quem quer investir. E há ainda outra tecnologia importante que vai necessitar desta eletrónica de baixo custo, a chamada internet das coisas.

De que se ouve falar muito, mas ninguém consegue definir...Vamos ter, num futuro já imediato, tudo a comunicar connosco. Não podemos ter eletrónica convencional nesses produtos todos. Ela até pode ter uma eficiência menor, não precisa de um microprocessador super-rá-pido, precisa é de sinais que sejam passados por produtos para telemó-veis, porque as coisas têm de falar umas com as outras.

Quando falamos da internet das coisas, falamos da capacidade de interagir com qualquer objeto que nos rodeia?Sim. A diferença é que a eletrónica vai estar mais dispersa, deixa de estar concentrada num aparelho (um computador ou um telemóvel) e vai estar descentralizada.

Podemos chegar perto de uma árvore, num jardim, e ela pode dizer-nos, por exemplo, o tempo que vai estar amanhã num ecrã instalado no tronco.Talvez (risos). Tudo isto é muito in-tuitivo. E parece que se guia muito

Digo aos meus alunos que não há maus materiais, são todos bons. Depende da aplicação. O caixote do lixo do laboratório está sempre vazio

Elvira Fortunato ‘Criar uma ‘eletrónica transparente’

O ano de 2008 foi um marco indelével. Até hoje, não parou de cirandar pela Europa, numa espécie de ponte aérea desenfrea-da que a vida dos investigadores científicos se tornou nos últimos anos. Elvira Fortunato não foge à regra desde que recebeu, naquele ano já longínquo, uma bolsa do European Research Council (ERC) no valor de 2,5 milhões de euros. Hoje faz parte de um seleto grupo de sete cientistas convidado a integrar o Scientific Advice Mechanism da Comissão Europeia, grupo de conselheiros científicos à escala europeia de que é vice-presidente.

Mas o ponto de chegada é aquele onde sempre passou toda a vida – nasceu em Almada, em 1964, estudou em Almada do básico até ao ensino superior e hoje está no CENIMAT (Centro de Investigação em Materiais) da sua faculdade de sempre, a de Ciências e Tecnologia da Nova, situada no Monte da Caparica, naquele concelho da Margem Sul de Lisboa.

É lá que coordena equipas responsáveis pelo tal projeto que a elevou ao estrelato mediáti-co – a eletrónica transparente, que atraiu desde logo um colosso como a Samsung, que hoje não quer outra coisa para ecrãs. Expliquemos: o silício integra hoje quase todos os chamados displays (ecrãs de telemóveis ‘touch’, por exemplo) e o que o grupo de Elvira encontrou é um material substituto, mais ecológico e mínimo em dimen-sões. Conseguiu criar transístores com uma camada de papel como material isolante.

Isto significa que é possível criar uma ‘eletrónica transpa-rente’ e reutilizar um material tão vulgar quanto o papel (é evidente que não é um papel qualquer, mas adaptado para o efeito). Aplicações futuras? Poderemos ter paredes que mu-dam de cor com o toque de um comando. Ou meios alternativos – muito mais rápidos e descar-táveis – de diagnóstico médico em países ou em situações de grave falta de meios. Ou algo tão prosaico quanto embalagens de alimentos ou de medicamentos que mudam de cor quando acaba a validade…

O campo de ação desta eletrónica parece ser tão vasto quanto a imaginação poderá per-mitir. É a tal ‘inovação’ que tanto se apregoa como tábua de salva-ção económica – e quase mística – do país. Elvira Fortunato em-prega-a com todo o significado, à letra, como um mantra.

A incrível almadense

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pela intuição para o desenvolvi-mento da sua carreira. Sempre foi assim?

Foi. Oiço muito os conselhos que me dão, mas sigo sempre a mi-nha intuição. E sou um bocado tei-mosa também. Às vezes há coisas na ciência que são moda. Aqui não gostamos muito de seguir por essas áreas, gostamos de fazer diferente daquilo que em geral é feito.

Quando lhe dizem ‘não dá’, ‘não podemos fazer’, como reage?Costumo dizer que a palavra ‘im-possível’ não entra aqui. Digo aos meus alunos que não há maus materiais, são todos bons. De-pende da aplicação. Imaginemos que vamos fazer umas lentes para uns óculos, mas as lentes não são transparentes, têm porosidade. Não deito fora esse material, ele pode ser bom para um filtro ou para outra aplicação. O caixote do lixo do laboratório está sempre vazio. Falou do espírito de curiosidade e de teimosia que é preciso ter. Disse que isso lhe foi passado pelo seu pai. Sim, acima de tudo o rigor, era uma pessoa muito exigente, era preciso fazer as coisas bem feitas, com me-tas.

E tem uma irmã mais nova. Também é cientista?Não, é farmacêutica.

Como é que a família encara a sua tão rápida ascensão?Estão todos muito contentes. Nas-ci aqui em Almada, mas a minha família é toda de Alcanena, no distrito de Santarém, e como é um meio mais pequeno, isso é mais in-tenso, notório. Mas também tenho tido feedback aqui em Almada. Ainda hoje recebi uma comunica-ção, não sei se de uma deliberação da Câmara Municipal, que nos faz um grande elogio.

Este novo cargo e os prémios têm-na desviado do trabalho no laboratório?Neste momento, quando estou em Portugal, faço um acompanha-mento grande, passo muito tempo nos laboratórios. Na investigação científica às vezes o que faz com que haja uma luzinha é um deta-lhe. E é preciso estar presente para se ver esses detalhes.

Crê que hoje a ciência é das poucas áreas em que de facto existe uma União Europeia?...Neste momento existe o maior orçamento aprovado dos últimos programas da UE. É maior que o americano. E há duas áreas, a do grafeno e do cérebro, que absorvem quase metade dessa verba.

Acredita que estes materiais podem abrir caminho à tal recuperação económica da Europa por que tanto se anseia?Espero que sim. O que fazemos aqui é uma gota de água, mas pode ser uma via. J

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A cientista a quem foi agora atribuída a medalha Blaise Pascal, vice-presidente do Scientific Advise Mechanism da CE e finalista do Prémio Europeu do Inventor, fala-nos das extraordinárias descobertas que podem vir aí, do seu trabalho e da sua vida PÁGINAS 25 A 27

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