Imobilismo Em Movimento - Da__ Abertura Democratica Ao Governo Dilma - Nobre_ Marcos

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Imobilismo em movimento de Marcos Nobre.

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    Sumrio

    Abertura

    Desigualdades e pemedebismo na nova modernizao brasileira

    1. Do declnio do nacional-desenvolvimentismo estabilizao: 1979-94

    2. A desigualdade no centro da disputa: o sistema poltico polarizado dos anos fhcO primeiro mandato (1995-8)O segundo mandato (1999-2002)

    3. O social-desenvolvimentismo e o fim da polarizao:de Lula a DilmaA primeira fase (2003-5)Do mensalo ao final do segundo mandato (2006-10)O governo de ajuste de Dilma Rousseff: algumas pistas

    Consideraes finais, perspectivas: as Revoltas de Junho e tendncias do novo modelo desociedade

    Agradecimentos

    Cronologia

    Breve bibliografia de referncia

    Anexo Pemedebismo e lulismo:

  • um debate com Andr Singer

    Notas

    Abertura

    Este livro terminava de ser escrito quando eclodiram as Revoltas de Junho de 2013. A redao finalfoi adiada e passei a me dedicar a escrever um breve livro eletrnico de interveno, lanado no finaldo mesmo ms de junho, Choque de democracia. Razes da revolta.

    uma experincia comum reler um livro e encontrar nele significados que no tinham surgidoquando da primeira leitura. Sinal de que mudamos entre as duas leituras, sinal de que o mundomudou nesse intervalo e de que nossa ateno nos permite acompanhar essa mudana e descobrirsentidos antes encobertos. Mas muito especial e mesmo extraordinrio passar por uma experinciacomo essa no momento de terminar de escrever um livro, em um perodo de duas, trs semanas.

    As Revoltas de Junho conferiram ao que eu j tinha escrito at ento uma vitalidade e um sentidoque passa longe do trivial e do normal. Abriram novos horizontes, perspectivas de ao e de reflexoat ento adormecidos. E, pela primeira vez em vinte anos, romperam a blindagem do sistemapoltico contraa sociedade.

    s Revoltas, tentativa de entend-las e de levar adiante seu legado democrtico, dedico este livro.

    julho de 2013

    Desigualdades e pemedebismona nova modernizao brasileira

    Com a passagem do governo fhc para o governo Lula, deu-se a primeira alternncia de poder notraumtica da redemocratizao brasileira. O sistema de votao a urna eletrnica conta com aconfiana do eleitorado. Os trs Poderes, com todas as suas mazelas e deficincias, com suasescaramuas e cotoveladas, bem ou mal, funcionam. Formalmente, pelo menos, a redemocratizaoparece assim encerrada. Parece possvel dizer que o pas vive uma normalidade democrtica.

    E, no entanto, essas formalidades cumpridas, por importantes que sejam, no correspondem a umavida poltica substantivamente democratizada. A democracia no pas, tudo somado, ainda muitopouco democrtica de fato. Porque democracia no apenas funcionamento de instituies polticasformais, no apenas um sistema poltico regido formalmente por regras democrticas. Democracia uma forma de vida que se cristaliza em uma cultura poltica pluralista, organizando o prprio cotidianodas relaes entre as pessoas.

    O pas grande, rico, extremamente desigual, com uma cultura poltica de baixo teor democrtico. Eas perguntas que assombram nesse caso no podem ser outras seno: o que pode explicar

  • desigualdades to persistentes? O que pode explicar um bloqueio duradouro ampla participao ediscusso democrticas? Como o sistema poltico consegue manter sob controle os conflitos de umasociedade assim desigual? sua maneira e nos seus limites, este livro pretende contribuir para aconstruo de respostas a essas perguntas cruciais. Pretende narrar os pouco mais de trinta anos dehistria poltica que vo do ltimo governo da ditadura militar, o do general Joo Baptista Figueiredo(1979-85), at a eleio de Dilma Rousseff, em 2010.

    Com o declnio da ditadura militar, em ambiente de redemocratizao, a abismal desigualdadebrasileira se tornou insustentvel. Uma lgica diferente de distribuio de renda, de poder, derecursos naturais e de reconhecimento social se configurou e se estabeleceu pouco a pouco a partirda dcada de 1980. Configurou-se um novo modelo de sociedade, internamente vinculado democracia. Ainda que reprimida por dcadas de ditadura e por uma cultura poltica autoritria, apopulao pobre e miservel no deixaria de usar o poder de sua mobilizao e de seu voto paracombater desigualdades de todos os tipos. Por outro lado, do ponto de vista da elite no poder, passoua ser essencial pelo menos o controle da velocidade e da amplitude de diminuio dasdesigualdades, especialmente, em um primeiro momento, das desigualdades de renda e de poder.Uma maneira, enfim, de controlar o passo de implantao do novo modelo de sociedade que nasciacom a redemocratizao.

    Uma das teses centrais deste livro a de que um dos mecanismos fundamentais desse controle estem uma cultura poltica que se estabeleceu nos anos 1980 e que, mesmo se modificando ao longo dotempo, estruturou e blindou o sistema poltico contra as foras sociais de transformao. Seu embriofoi a unidade forada contra a ditadura militar (1964-85), que enformou o processo deredemocratizao. Na primeira metade dos anos 1980, essa unidade forada veio sob a forma deuma unio de todas as foras progressistas para derrotar o autoritarismo, que se imps ento comosendo indispensvel.

    Com exceo do pt, todos os partidos participaram da eleio indireta de janeiro de 1985, nochamado Colgio Eleitoral, controlado pelas foras da ditadura. Tancredo Neves foi eleito presidente.Morto em abril do mesmo ano sem ter sido empossado, deixou no cargo o seu vice, Jos Sarney,quadro histrico de sustentao da ditadura militar, indicado pelo pfl (em 2007, a sigla mudou o nomepara dem), que se filiou ao pmdb por razes meramente formais da legislao. Mesmo com Sarneyna presidncia, o progressismo continuou a representar a ideologia oficial de uma transio mornapara a democracia, controlada pelo regime ditatorial em crise e pactuada de cima por um sistemapoltico elitista.

    A primeira crise enfrentada por essa blindagem se deu durante a Constituinte (maro de 1987 aoutubro de 1988), quando essa unidade forada deu de cara com movimentos e organizaessociais, sindicatos e manifestaes populares que no cabiam nos canais estreitos da aberturapoltica. Sob o comando do chamado Centro, bloco suprapartidrio que contava com maioria deparlamentares do pmdb, o sistema poltico encontrou uma maneira de neutraliz-los, apostando naausncia de uma pauta unificada e de um partido (ou frente de partidos) que canalizasse asaspiraes mudancistas. Nasceu a a primeira figura da blindagem do sistema poltico contra asociedade, a que dou o nome de pemedebismo, em lembrana do partido que capitaneou a transiopara a democracia.

    O progressismo tambm prevaleceu no impeachment de Collor, em 1992. Mas o perodo ps-impeachment deu origem a uma segunda figura do pemedebismo, que deixou para trs a ideologiaunificadora da unio das foras progressistas. A resposta do sistema poltico ao processo deimpeachment no foi uma reforma radical que o abrisse para a sociedade. Pelo contrrio. Fincou-secomo verdade indiscutvel que Collor tinha cado porque no dispunha de apoio poltico suficiente noCongresso, porque lhe teria faltado governabilidade. Surgiu nesse momento a exigncia, a partir deento inquestionvel, de que esmagadoras maiorias suprapartidrias, segundo o modelo do Centroda Constituinte, seriam indispensveis no apenas para bloquear movimentos como o doimpeachment, mas para que fosse possvel governar.

    Foi assim que o sistema se preservou sem mudar, fortalecendo sua lgica de travamento de grandestransformaes, reprimindo as diferenas sob uma nova unidade forada. Foi assim que a partir de

  • 1993 foi sendo construdo o acordo da governabilidade, segunda figura da blindagem do sistemapoltico contra a sociedade, segunda figura do pemedebismo.

    Aps o impeachment, os canais de expresso das foras de oposio ao pemedebismo seestreitaram. A fora das ruas que derrubou Collor foi substituda pouco a pouco pelo clamor daopinio pblica. E a opinio pblica foi substituda pela opinio da grande mdia. Para obrigar osistema a mudar, pouco que fosse, era necessrio produzir campanhas intensivas de dennciasvocalizadas pela grande mdia. At o final do mandato de Itamar Franco, em 1994, as ferramentas deblindagem foram sendo produzidas, testadas e aperfeioadas. Seu desenvolvimento se deu ao longodos dois mandatos consecutivos de fhc (1995-2002).

    Apesar de o pt ter se mantido durante mais de uma dcada como representante por excelncia doantipemedebismo, o mesmo figurino se repetiu no perodo Lula, aps o escndalo do mensalo, em2005. Vendo-se acossado pelo fantasma do impeachment, o governo Lula aderiu ideiapemedebista de construo de supermaiorias parlamentares. Depois do mensalo, no restante doperodo Lula, completou-se o desenvolvimento das ferramentas de blindagem pemedebistas, cujouso continuou de maneira ainda mais ostensiva sob a presidncia de Dilma Rousseff, a partir de2011.

    O clamor da opinio pblica j no conseguia provocar sequer arranhes nessa blindagem dosistema poltico. Cada vez mais questionada, a prpria mdia deixou de desempenhar o papel decanalizar a insatisfao. Parecia que o pas tinha se conformado com um sistema poltico fechado emsi mesmo, impotente diante do fechamento dos canais de protesto capazes de furar o bloqueio. Atque veio junho de 2013, com sua rejeio incondicional do pemedebismo, trao comum diversidade das Revoltas.1

    Uma das tarefas deste livro ser tentar mostrar como se deu a construo dessa cultura polticaestruturante da redemocratizao brasileira, o pemedebismo. No se trata de restringir essa culturapoltica prtica de um nico partido. Denominar assim a cultura poltica dominante deve-se ao fatode seu modelo ter sido primeiramente gestado no perodo em que o pmdb teve posio dedominncia, na dcada de 1980. Depois disso, a partir da dcada de 1990, j refuncionalizado, opemedebismo se destacou do partido em que foi gestado inicialmente, passando a moldar o sistemapoltico de maneira mais ampla.

    Mas, seria possvel perguntar, o pemedebismo no seria simplesmente uma descrio da polticacomo ela , tal como efetivamente praticada mundo afora? No seria a poltica pemedebista por todaparte? No parece fcil encontrar contrapartidas exatas do pemedebismo em outros lugares, aindaque se possam talvez fazer aproximaes. fato que o perodo que se convencionou chamar deneoliberal e que teve seu auge na dcada de 1990 provocou uma aglutinao mundial de foraspolticas majoritrias em torno de um novo centro poltico, carregado de receitas e prescriesideolgicas prprias da cartilha da globalizao. E esse novo centro estreitou o horizonte dasdiscusses e das alternativas de ao, como ficou gravado no bordo atribudo primeira-ministrainglesa Margaret Thatcher ao caracterizar sua prpria poltica neoliberal: No h alternativa. Mas,ao mesmo tempo, esse fenmeno mundial no se d da mesma forma em toda parte.

    Para encontrar contrapartidas do pemedebismo em outros sistemas polticos, seria preciso verreunidos pelo menos cinco elementos fundamentais: o governismo (estar sempre no governo, sejaqual for ele e seja qual for o partido a que se pertena); a produo de supermaiorias legislativas, quese expressam na formao de um enorme bloco de apoio parlamentar ao governo que, pelo menosformalmente, deve garantir a governabilidade; funcionar segundo um sistema hierarquizado devetos e de contorno de vetos; fazer todo o possvel para impedir a entrada de novos membros, demaneira a tentar preservar e aumentar o espao conquistado, mantendo pelo menos a correlao deforas existente; bloquear oponentes ainda nos bastidores, evitando em grau mximo oenfrentamento pblico e aberto (exceto em polarizaes artificiais que possam render mais espaono governo e/ou dividendo eleitoral). Encontrar contrapartidas exatas que contenham todos esseselementos simultaneamente no tarefa bvia.

    Estabelecido o pemedebismo como uma cultura poltica peculiar, uma segunda pergunta que se

  • poderia fazer aqui seria a seguinte: mas se o apoio poltico est, por assim dizer, venda, e se osdiferentes grupos lutam entre si pelo melhor acordo possvel, por que, ento, os governossimplesmente no negociam no varejo o apoio, quebrando os diferentes partidos e mesmo asbancadas suprapartidrias?

    Isso s seria possvel sem a lgica de formar enormes blocos no Congresso para garantir agovernabilidade. Quando governos tentam fazer acordos no varejo, encontram sempre a resistnciadessa lgica de Centro, a exigncia de aceitar primeiro o superbloco de apoio, o apoio a granel,por assim dizer, para, s ento, estar autorizados a fazer acordos no varejo. o sistema polticoenquanto tal que impe a exigncia de que, no limite, todas as foras polticas representadas noCongresso estejam no governo. Uma contraprova pode ser encontrada no episdio do mensalo, em2005, que marca o final da tentativa da primeira fase do perodo Lula de negociar apoio no varejopoltico, sem antes estabelecer um acordo com um superbloco parlamentar.

    A cultura poltica pemedebista impe a supermaioria antes de dar incio s disputas por espaodentro do superbloco governista. A competio no se d apenas entre partidos, nem somente dentrode cada partido, na luta por espao dentro de uma mquina partidria especfica, j estabelecida eem funcionamento. Ela se d, antes de tudo, no interior do prprio superbloco pemedebista. E issoinclui diferentes constelaes de grupos, que se aliam ou no conforme seus interesses de veto oude chantagem ao governo.

    Partidos so configuraes precrias e instveis de correlaes de foras no interior dopemedebismo. No de estranhar, portanto, a importncia da formao de bancadassuprapartidrias no Congresso Nacional: bancada da bola, da bala, ruralista, evanglica, religiosaetc. Conquistar espao no pemedebismo no significa apenas conquistar um quinho do Estado noqual seja possvel reproduzir uma mquina poltica, seja de um partido, seja de um grupo poltico.Significa tambm conquistar direito de veto a iniciativas potencialmente prejudiciais cota de que sedispe como scio do condomnio. (Insisto na expresso condomnio pemedebista porque pensoser mais adequada para descrever o sistema poltico do que a habitualmente utilizada, opresidencialismo de coalizo, que pode dar a entender que se trata de um sistema com uma culturapoltica muito mais efetivamente democrtica do que a que se tem de fato.)

    Da mesma maneira como o governismo est internamente ligado formao do superbloco, tambmas demais marcas caractersticas do pemedebismo so mal-entendidas quando isoladas do conjunto.Seria possvel dar muitos exemplos da estrutura de vetos pemedebista, mas me limito a um. No inciodo governo Dilma Rousseff, o Ministrio da Educao vinha preparando material pedaggico decombate discriminao e violncia contra homossexuais, travestis e transgneros, conhecidocomo kit anti-homofobia. No mesmo momento, em maio de 2011, o ministro da Casa Civil, AntonioPalocci, estava enfrentando acusaes pblicas de evoluo irregular de seu patrimnio durante oexerccio do mandato de deputado federal, entre 2007 e 2010, vinculadas compra de umapartamento de luxo em bairro nobre da cidade de So Paulo. A bancada religiosa no Congresso(composta de representantes de quase todos os partidos) imediatamente rebatizou pejorativamente omaterial de kit gay e ameaou convocar Palocci para explicar a evoluo de seu patrimnio.Ameaou ainda obstruir a pauta da Cmara e criar uma Comisso Parlamentar de Inqurito (cpi) parainvestigar a contratao pelo ministrio da ong que elaborou a cartilha. A presidente determinou quefosse suspensa a distribuio do material. E o partido lder do condomnio pemedebista, o pt, abriumo naquele momento de uma bandeira histrica de seu programa poltico.

    E, no entanto, apesar de numerosos nas disputas polticas de bastidores, so poucos os casos devetos que chegam luz da discusso pblica. Na lgica pemedebista, a grande maioria dos casos deveto permanece na sombra dos gabinetes. dessa maneira que a cultura poltica pemedebista seconstitui em um complexo sistema de travas mudana. E a produo de mudanas depende dacapacidade no de enfrentar diretamente os vetos, mas pelo menos de contorn-los. Exemplo decontorno de vetos foi o reconhecimento da unio estvel homoafetiva para fins tributrios por meio deuma resoluo de um rgo do Executivo, a Receita Federal, ocorrido em 2010, confirmadoposteriormente, em maio de 2011, pelo Judicirio, por julgamento do Supremo Tribunal Federal (stf).

    Olhando as datas em retrospectiva, v-se que a reao da bancada religiosa ao kit anti-homofobia foi

  • tambm reao a um movimento que vinha do Executivo e do Judicirio para legalizar unieshomoafetivas, contornando os vetos presentes no Legislativo, em que as propostas de lei nessesentido tinham fracassado. O reconhecimento da unio estvel homoafetiva levou casaishomossexuais a reivindicar a converso da unio em casamento, ttica de luta que se espalhou porvrios estados. Em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justia decidiu que todos os cartrios dopas estavam obrigados a habilitar pessoas do mesmo sexo a se casarem, sem a necessidade nemmesmo de passar pelo reconhecimento prvio de uma unio estvel.

    comum ouvir que movimentos de contorno de veto como esses representariam uma judicializaoda poltica ou o exerccio de um ativismo judicial. Como se o Judicirio estivesse indo alm do queseria o seu domnio prprio, invadindo competncias que pertenceriam ao Legislativo e mesmo aoExecutivo. Nessa viso, o Judicirio teria j uma espcie de espao predeterminado de atuao, fixo,imvel e imutvel, estabelecido sabe-se l por que mente iluminada, que sabe de antemo como ascoisas devem ser, independentemente das disputas polticas concretas. De acordo com essa visoprivilegiada, o Judicirio brasileiro seria, no final das contas, algo como uma porta dos fundos dosistema poltico.

    Quando se afasta uma viso redutora como essa, o Judicirio passa a ser entendido como integrantepleno do sistema poltico, tanto quanto o Legislativo ou o Executivo, com a especificidade que lhe prpria, mas ele tambm atuando segundo a lgica pemedebista que domina o sistema. mais umespao em que so lanadas iniciativas, esperando que elas sejam capazes de contornar vetos. Como recurso tambm figura to cambiante, mas por vezes decisiva, da opinio pblica. Dependendodas circunstncias, do grau de organizao dos grupos de veto e de sua capacidade efetiva deexerc-lo, decide-se pela concentrao de esforos na continuidade da ao ou pelo recuo. Amaioria esmagadora dos bales de ensaio no prospera. Nem chega a ver a luz do debate pblicomais amplo. claro que coisa muito diferente seria observar em operao um Judicirio que noestivesse submetido lgica pemedebista mais ampla do sistema poltico. Mas no o que se deuna longa redemocratizao brasileira.

    Se se quiser um exemplo de sucesso no contorno de vetos no mbito do Executivo, a figura de Lula emblemtica. Sua capacidade de operar com sucesso no ambiente pemedebista ficou evidenciadaem algumas das iniciativas que se tornaram marcas de seu governo: a poltica de aumentos reais dosalrio-mnimo, a do Programa Bolsa Famlia, ou da expanso do acesso ao crdito. Benefcioscontra os quais ningum se ops publicamente, ou seja, que no encontraram vetos e que s por issoprosperaram no comeo. Foram iniciativas que no dependeram de complexas negociaespartidrias.

    Lula emblema da representao poltica para estratos sociais historicamente marginalizados darepresentao tambm porque, em boa medida, conseguiu traduzir nos termos do pemedebismoavanos sociais aguardados havia muito tempo. Soube garantir, por palavras e atos, que a parcelahistoricamente marginalizada tinha passado a fazer parte do condomnio pemedebista, tinha ganhadodireito a veto. Pouco a pouco, com a consolidao das instituies democrticas e de avanossociais concretos, esse veto pde se expressar tambm sob a forma do voto: favorecendocandidaturas que impeam o bloqueio ou o recuo no projeto de diminuio da pobreza e dasdesigualdades. Em outras palavras, estratos historicamente marginalizados foram pela primeira vezefetivamente includos no sentido peculiar que tem a incluso em uma cultura poltica de fundocaracterizada pelo pemedebismo.

    No se trata de uma incluso na qual quem antes estava margem passa a exercer cidadania plena,conquistando enfim direitos sociais e reconhecimento social de tratamento igual, como iguaisintegrantes do espao pblico. Como tambm no se trata de dizer, ao contrrio, que no aconteceuincluso alguma. Em um sistema poltico dominado pelo pemedebismo, enganoso utilizar alinguagem da incluso cidad sem a devida qualificao, sem mostrar as formas especficas desubordinao e de hierarquizao que da se seguem. Cidadania significa nesse caso ser a favor degeneralidades abstratas e sem consequncias prticas efetivas (como sade, educao, emprego,segurana e moradia para todos) e ser muito concretamente contra mudanas especficas emrelao a padres de distribuio de poder, de renda, de reconhecimento social.

  • A histria de todo esse complexo arranjo social comeou com a modernizao acelerada eprofundamente desigual ocorrida durante a ditadura militar, que transformou radicalmente o pas, aomesmo tempo que impediu que os mltiplos e variados resultados sociais dessa transformaoencontrassem expresso poltica pblica, democrtica, que pudessem se organizar de maneiramenos fragmentria do que sob o guarda-chuva da oposio ao regime.

    Modernizar aceleradamente um pas das propores e com as desigualdades do Brasil sob umaditadura significou no apenas impedir o confronto aberto e democraticamente regrado de suasgigantescas diferenas. Cristalizou tambm uma forma conservadora de lidar com as diferenas edesigualdades, mesmo depois do fim da ditadura, mesmo j em ambiente democrtico. Este livro seocupa de contar essa histria.

    Este livro est dividido em trs perodos. O primeiro, de 1979 a 1994, o perodo em que ocorrem acriao e a consolidao do pemedebismo como marca caracterstica conservadora do sistemapoltico. Em seguida, narra-se o perodo que vai de 1994 a 2002, do Plano Real at o final dosegundo mandato de fhc, em que esse conservadorismo remodelado para aceitar umatransformao mais profunda do que a lgica pemedebista normalmente suportaria, umaacomodao em que um sistema em dois polos constitudo. E, por fim, o perodo de 2003 a 2010,que compreende os dois mandatos de Lula e a eleio de Dilma Rousseff presidncia, e em que,ao longo do segundo mandato de Lula, desaparece o sistema em dois polos, restando apenas opemedebismo e seu condutor nico, o pt.

    Cada um dos perodos , por sua vez, subdividido segundo suas prprias lgicas dedesenvolvimento, com exceo da primeira fase, at 1994, que analisada em bloco (mesmo se soconsiderados os seus sucessivos governos, desde o ltimo da ditadura militar at o governo ItamarFranco, passando pelas presidncias de Jos Sarney e de Fernando Collor de Mello). O perodo fhcse divide em seus dois mandatos presidenciais, j que a aguda desvalorizao do real, que marcauma nova etapa, ocorreu em janeiro de 1999, logo no incio do segundo mandato. O perodo Lula-Dilma foi dividido em duas grandes fases: do incio do primeiro mandato de Lula, em 2003, at oepisdio do mensalo, em 2005; e do mensalo at o final do segundo mandato, em 2010 (sendoque, do ponto de vista da poltica econmica, essa segunda fase tem dois momentos distintos: antese depois da ecloso da crise econmica mundial, em 2008). Correspondentemente, ser mostradocomo a cultura poltica de fundo que estrutura as disputas vai se transformando em cada um dessesperodos. Se no se trata de confundir o pemedebismo com o partido que lhe deu origem, fato que opmdb o fio condutor mais adequado para contar o processo de transformaes por que passou acultura poltica pemedebista entre as dcadas de 1980 e 2010.

    Restringir a narrativa apenas aos partidos lderes, aos polos do sistema poltico (pelo menos at oprimeiro mandato de Lula), pt e psdb, significa tambm aceitar a iluso analtica tpica da narrativapoltica: a de que se entende a sucesso de eventos, governos e decises olhando apenas para oscondutores do bloco no poder. Nessa iluso, a poltica fica reduzida ao sistema poltico, polticainstitucional, poltica partidria e relao formal entre os poderes Executivo, Legislativo eJudicirio. E, como bem demonstraram as Revoltas de Junho de 2013, poltica e democracia somuito mais amplas e profundas do que isso.2

    No se pretende aqui de modo algum reduzir a poltica ao sistema poltico, poltica institucional,oficial, governamental, partidria, de Estado. Democracia no deve ser entendida de maneiralimitada, simplesmente em termos de um regime poltico, ligado a uma forma e sistema de governodeterminados. Democracia uma forma de vida, uma moldura sempre mvel e flexvel em que seencontram padres de convivncia e interao com que moldamos o cotidiano. Tambm por isso, ademocracia s pode se sustentar nos termos de uma cultura poltica flexvel o suficiente para suportarquestionamentos radicais, no se fixando em um conjunto determinado de valores imposto sociedade como um todo. Uma cultura poltica democrtica tem de estar em constanteaprofundamento e difuso pelo conjunto da vida social.

    Poltica envolve esferas pblicas formais e informais de discusso, padres de reconhecimentosocial, possibilidades concretas de desenvolvimento de projetos de vida pessoais e coletivos. Apoltica est no cotidiano da vida social em suas muitas dimenses. A mesma observao vale, alis,

  • para o sistema econmico. Tanto o sistema poltico como o econmico devem ser entendidos aquicomo expresses limitadas de processos mais profundos que ocorrem naquela esfera usualmentechamada de sociedade.

    A maneira como este livro pretende ao menos mitigar a iluso analtica de centrar a narrativa apenasnos sistemas poltico e econmico justamente tom-los como expresses, mesmo que limitadas, deprocessos sociais mais profundos. Isso se d aqui por meio das ideias mais amplas de modelo desociedade e de cultura poltica. Modelo de sociedade, cultura poltica so formas enraizadas navida social, nas instituies polticas formais, na economia, no cotidiano. So noes que balizamvises de mundo, que legitimam a maneira como se distribuem riqueza, poder, recursos ambientais,reconhecimento social. Um modelo de sociedade no apenas um programa econmico nemsomente uma maneira determinada de entender a poltica, mas um padro de regulao social maisamplo. E essa maneira abrangente de regular a vida social se expressa em uma cultura polticadeterminada.

    Mostrar, por exemplo, o descompasso entre uma cultura poltica pemedebista que domina o sistemapoltico e um novo modelo de sociedade que exige uma nova cultura poltica que j se instalou,mas ainda no se aprofundou significa apontar para transformaes de grande alcance, que foramassimiladas apenas parcialmente tanto pelo sistema poltico como pelo sistema econmico. Aunidade do perodo ps-Real em relao ao perodo anterior est em que suas duas grandes fases a do governo de fhc, de um lado, e a de Lula e de Dilma, de outro tiveram por objetivo dirigir opemedebismo, e no reformar radicalmente o sistema poltico. nesses termos que enunciam seusdiferentes projetos.

    Ao mesmo tempo, colocando a inflao sob controle, o perodo fhc fez com que, finalmente, adesigualdade abissal do pas fosse explcita e diretamente para o centro do debate e da disputapoltica. Ao colocar como elemento central e explcito de seu governo a diminuio dasdesigualdades, o perodo Lula acabou por consolidar um novo modelo de sociedade. A partir da, oque passou a estar em causa foi o aprofundamento ou no desse modelo, bem como a velocidadeem que esse processo pode se dar.

    Apesar de todas as travas e barreiras erguidas pelo pemedebismo contra uma mudana no modelode sociedade, a longa redemocratizao brasileira foi aos poucos criando e consolidando um novomodelo desse tipo, chamado neste livro social-desenvolvimentismo, dotado de uma cultura polticaque permeia a vida social muito alm do pemedebismo. a histria desse imobilismo emmovimento que se trata de contar aqui.

    De forma indita, firmou-se um modelo de sociedade ligado internamente democracia. Segundo onovo modelo de sociedade, social quer dizer democrtico, tanto no sentido de um regime degoverno como no sentido mais profundo do combate s diversas formas de desigualdade, de noimpor ao conjunto de cidados, aos muitos povos que habitam o territrio (os indgenas,essencialmente) um modelo determinado de levar a prpria vida como obrigatrio e inescapvel. Osocial-desenvolvimentismo no aceita como inevitveis para o desenvolvimento do pas padres dedesigualdade indecentes, medidos por qualquer padro disponvel. Como tambm no aceita quedesenvolvimento econmico signifique devastao ambiental ou um sistema poltico estruturalmentecorrupto.

    Segundo o novo modelo, s desenvolvimento autntico aquele que politicamente disputadosegundo o padro e o metro do social, quer dizer, aquele em que a questo distributiva, em que asdesigualdades de renda, de poder, de recursos ambientais, de reconhecimento social passampara o centro da arena poltica como o ponto de disputa fundamental. sua maneira peculiar eziguezagueante, em uma interpretao coletiva penosamente construda, foi essa a concretizao deuma imagem de sociedade presente no texto da Constituio Federal de 1988. Esse modelo desociedade no pertence, portanto, a um nico governo ou partido, mas um projeto coletivo, gestadodurante a longa transio para a democracia.

    O pemedebismo, a cultura poltica de fundo contra a qual foi moldado a duras penas o novo modelode sociedade, obstrui e bloqueia o seu pleno desenvolvimento. O surgimento e a consolidao do

  • social-desenvolvimentismo se deram apesar de uma cultura poltica pemedebista. Na novamodernizao social-desenvolvimentista, h um descompasso entre o modelo de sociedade que seconsolidou e a cultura poltica que ainda domina o sistema poltico, que no o expressa em toda asua amplitude e novidade, marcada que ainda est pelo pemedebismo da longa transio brasileirapara a democracia.

    Este livro se pe entre a penosa construo do projeto social-desenvolvimentista e seurebaixamento, a cada vez, pela lgica bloqueadora do pemedebismo. Aceitar como dado que opasso que se verificou at aqui seja o nico possvel, tomar como inevitvel que o feito at aqui sejao mximo que permite um suposto realismo poltico, essa a ideologia que emperra odesenvolvimento do novo modelo de sociedade. E essa ideologia que se trata de pr a descoberto.Como o fizeram, nas ruas, as Revoltas de Junho de 2013.

    Selecionei da multido de processos e acontecimentos apenas aquilo que entendi ser o maisrelevante para apresentar meu relato. A bibliografia de referncia se pretende meramente indicativa.Tambm evitei o quanto possvel interromper a narrativa com indicaes bibliogrficas detalhadas enotas extensas. Assinalei apenas publicaes que foram importantes para algum aspecto central doargumento em determinados momentos do texto.

    A base para a redao deste livro se encontra em anlises realizadas principalmente depois de 1998,publicadas tanto em revistas acadmicas como na internet e em jornais. No cabe listar uma a umatodas essas publicaes, mas importante pelo menos um registro geral: uma colaborao semanalpara o jornal Folha de S.Paulo (durante as eleies de 2006 e ainda entre 2007 e 2010), em quepubliquei tambm artigos mais longos, no caderno Ilustrssima; uma colaborao regular para arevista eletrnica Trpico (entre 2004 e 2006); vrios artigos publicados na revista do Cebrap, NovosEstudos, entre 1992 e 2012; textos e entrevistas para os jornais Valor Econmico (incluindo ocaderno Eu&Fim de Semana) e O Estado de S. Paulo (no caderno Alis); e dois ensaios mais longospublicados pela revista piau. Por fim, mas no por ltimo, o breve livro eletrnico de interveno queproduzi a convite da Companhia das Letras, Choque de democracia. Razes da revolta, lanado nofinal de junho de 2013. A todas essas instituies e publicaes, agradeo, primeiramente, por teremacolhido as intervenes e ainda por terem permitido que pudessem ser utilizadas como base deapoio para a produo do texto apresentado aqui.

    1. Do declnio do nacional-desenvolvimentismo estabilizao: 1979-94

    Em ambiente inflacionrio generalizado, como foi o caso do perodo de 1979 a 1994, ganhar exceo bastante rara. Para a esmagadora maioria, o objetivo primordial perder o menos possvel.Perder menos margem lucro, menos receita financeira ou de aluguel, menos salrio, do que osdemais grupos. Na corrida de preos, grupos empresariais, bancos, agricultores, categorias detrabalhadores fazem todo o possvel para atingir antes a linha de chegada, que a da menor perdapossvel. Quando o controle da inflao precrio, a linha de chegada nunca atingida de fato. Acorrida inflacionria permanente.

    O desempenho dos competidores nessa corrida depende de muitos fatores que no apenas osestritamente econmicos. Depende da capacidade de organizao, articulao e agregao polticae social que demonstram. Bases mais organizadas de trabalhadores conseguem fazer greves epressionar o sistema poltico por medidas de proteo, como aumentos automticos de salriosquando a inflao ultrapassa determinado patamar. Empresas monopolistas, oligopolistas ou mesmoestratgicas do ponto de vista do desenvolvimento do pas renem-se em associaes formais einformais para pressionar o governo por financiamento barato, privilgios de mercado e outras formasde proteo. Bancos se adaptam situao e tiram proveito dela de vrias maneiras.

  • Essas muitas disputas inflacionrias ficaram particularmente acirradas com o declnio da ditaduramilitar de 1964 e o incio da redemocratizao. Durante toda a dcada de 1980, o dia de recebimentodo salrio era tambm o de fazer a compra do ms, dia de enorme tumulto nos supermercados. Nodia seguinte, o mesmo salrio j no conseguiria comprar as mesmas coisas. (Na Argentina, porexemplo, na mesma dcada de 1980, os preos chegaram a ser reajustados durante o dia, no meiode uma compra, por exemplo.) Quem tinha conta bancria e bom nvel de renda tentava proteger-secom aplicaes financeiras de rendimento dirio, o ento chamado overnight. Toda a dvida doprprio pas era como que refinanciada integralmente a cada dia, a cada noite.

    Uma sucesso de planos econmicos tentou sem sucesso controlar a inflao de maneira duradoura.At que, em 1994, com o Plano Real, esse objetivo foi alcanado. Mesmo com os ndices de inflaotendo permanecido altos, quando comparados com os de outros pases, no houve desde entodescontrole inflacionrio. No quadro a seguir, fica ntida a diferena entre o perodo 1980-94,marcado pelo descontrole inflacionrio chegando at hiperinflao, com taxas mensais acima de50% ao ms, no final do governo Sarney , e o perodo de estabilizao econmica, a partir de 1994.

    No perodo anterior a 1994, os momentos de queda abrupta das taxas de inflao correspondem aosdiferentes planos de estabilizao econmica: Cruzado (i e ii, fevereiro e novembro de 1986,respectivamente), Bresser (junho de 1987), Vero (janeiro de 1989), Collor (1 e 2, maro de 1990 ejaneiro de 1991, respectivamente). Meses aps a decretao dos diferentes planos, a inflao jvoltava a subir, ameaando se tornar hiperinflao. Esse grfico mostra mais do que as taxasmensais de inflao: mostra tambm que conseguir colocar a inflao sob controle foi, durante quinzeanos, o problema central e primordial, tanto do ponto de vista poltico como do econmico.

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    O descontrole inflacionrio era expresso de muitos elementos, simultaneamente. Mostrava a crisede um modelo de modernizao que tinha sido adotado no pas desde os anos 1930 e que expunhafraturas estruturais. Expressava disputas pela distribuio de poder, riqueza e reconhecimento socialentre grupos sociais que tinham ficado reprimidas durante a ditadura militar e que passaram a ganhara esfera pblica. Por muito tempo a desigualdade sustentvel brasileira se apoiou em umcrescimento econmico que produziu melhora geral dos padres de vida e em um controle repressivodos movimentos de carter democratizante. O descompasso flagrante entre a melhora geral dospadres de vida e a melhora substancialmente superior do padro de vida da elite do pas foisustentado durante muito tempo pela represso poltica estatal direta. Mas no s. A represso diretase apoiou tambm em uma cultura poltica autoritria que se disseminou por vrios setores dasociedade.

    O modelo de sociedade abrangente que se consolidou a partir dos anos 1930, conhecido comonacional-desenvolvimentismo, moldou a modernizao acelerada do pas at a dcada de 1980.Desencadeado e dirigido pelo Estado, pretendia alcanar no apenas a produo de um mercadointerno de importncia, mas tambm a criao de instituies adequadas modernidade. Amodernizao deveria alcanar a cultura e a prpria vida cotidiana, transformando tambm asrelaes pessoais e a esfera privada, segundo um conjunto determinado de valores modernos.3

    Tratava-se de produzir uma cultura poltica centrada na emergncia da nao autntica, de umaintegrao social que se daria pelo pertencimento no apenas a um pas, mas a uma histria e a umconjunto de valores determinado, a ser partilhado por todos os membros. Valores que incluam nosomente o civismo e o nacionalismo, mas uma extensa lista de relaes de subordinao,inferioridade e dependncia da maior parte da populao. Um conjunto de valores que,sintomaticamente, no inclua a democracia como um de seus componentes fundamentais. Pelocontrrio, na maior parte do tempo em que esteve em vigncia, o nacional-desenvolvimentismocoincidiu com ditaduras e/ou coronelismo e clientelismo. O que no impediu que o prprio projetonacional-desenvolvimentista tenha tido verses mais tericas do que prticas, bem verdade

  • democrticas e pluralistas, especialmente no perodo democrtico de 1945 a 1964.

    A ditadura militar deu continuidade, sua maneira, ao nacional-desenvolvimentismo. A inflaofuncionava como importante mecanismo de manuteno de desigualdades, tendo sido como queoficializada pelo golpe de 1964 por meio do instituto da correo monetria, que a incorporou aoscontratos e aos preos de maneira geral como elemento permanente. Em uma economia fechada, ainflao se amoldou ao objetivo de promover rpido crescimento (e, com ele, uma melhora geral dospadres de vida) sem alterar os padres historicamente desiguais de distribuio de renda do pas.Ao contrrio dos mais ricos, os mais pobres no tinham como se proteger dos efeitos deletrios dainflao.

    A meta fundamental era promover um desenvolvimento econmico o quanto possvel autnomo,realizado sob forma de um projeto de industrializao capaz de criar um mercado interno deimportncia, de maneira a mitigar e eventualmente superar a condio de dependncia de um pasque, apesar de suas dimenses continentais, tinha uma economia fundada exclusivamente naexportao de bens primrios, de recursos naturais que serviam de matria-prima para a produoindustrial de outros pases. Uma das principais estratgias adotadas pelo nacional-desenvolvimentismo foi a chamada poltica de substituio de importaes, em que as reasconsideradas estratgicas eram estimuladas e protegidas da competio de produtos importados pormeio de barreiras tarifrias e generosos subsdios estatais.

    Em termos econmicos, a opo que prevaleceu a maior parte do tempo foi entregar mercado internoem troca de capital externo, ou seja, facilitar a instalao no pas de empresas transnacionais quetrariam capital e teriam em troca acesso privilegiado ao mercado nacional. A preocupao inicial noera dar ao pas capacidade efetiva de inovar, de produzir de forma autnoma novas tecnologias, mascriar localmente uma rede de produo que conseguisse acompanhar, mesmo que com atraso, asinovaes que eram produzidas nos pases mais avanados.

    O diagnstico era que o capital local era insuficiente para permitir uma estratgia de desenvolvimentocontnuo e sustentado, sendo de fundamental importncia conseguir financiamento externo. Nobastava, entretanto, obter capital por meio da instalao de transnacionais no pas. Era necessrioigualmente tomar emprstimos garantidos pelo Estado brasileiro, que se endividava para cumprir atarefa de desenvolver aqueles elementos da cadeia de produo que no eram atrativos paraempresas transnacionais: a indstria de base e a infraestrutura, essencialmente.

    A continuidade dessa forma de modernizao foi solapada, em sua faceta econmica, pela abruptainterrupo da entrada de capital externo no Brasil no final da dcada de 1970. Essa interrupo estligada a eventos econmicos de relevncia mundial. Em primeiro lugar, os dois choques dopetrleo, de 1973 e de 1979. Entre outubro de 1973 e janeiro de 1974, o preo do barril subiu de2,90 para 11,75 dlares. Em 1979, o preo mdio do barril vai a quarenta dlares, permanecendonesse patamar at meados da dcada de 1980. Em segundo lugar, nesse perodo que ocorretambm o chamado choque Volcker, segundo o nome do diretor-presidente do Federal Reserve dosEstados Unidos, que elevou as taxas de juros de maneira abrupta e significativa (de uma mdia de11,2% ao ano, em 1979, para at 20% ao ano, em junho de 1981).

    Do lado poltico, a capacidade do regime militar de controlar e reprimir movimentos pr-redemocratizao diminuiu paulatinamente ao longo da segunda metade da dcada de 1970. Ocrescimento exponencial do nmero de greves e manifestaes pela redemocratizao minou aditadura tambm em suas bases polticas e sociais de sustentao. Da mesma forma, tambm nessemomento, perdeu em intensidade, no nvel internacional, a Guerra Fria, que opunha os dois grandesblocos, liderados pelas ento superpotncias Estados Unidos e Unio Sovitica.

    O resultado do primeiro choque do petrleo, em 1973, foi o fortalecimento da Petrobras queapenas mais de trinta anos depois viria a atingir patamares prximos da autossuficincia naproduo. Tambm foram no mesmo sentido a deciso de construir usinas hidreltricas de grandeporte, como Itaipu, e o acordo nuclear Brasil-Alemanha, de 1975, que foi concretizado de maneiralenta e precria na usina nuclear de Angra dos Reis, cujos resultados esto bem longe de serpositivos. O projeto energtico mais inovador foi lanado em 1975, quando da criao do Programa

  • Nacional do lcool (Pr-lcool), de produo de lcool combustvel a partir da cana-de-acar, cujomomento de maior sucesso ocorreu apenas nos anos 2000, quando os carros com motor flexpassaram a dominar as vendas do mercado automobilstico.

    Independentemente do carter errtico da poltica energtica do pas ao longo do tempo, o fato que,em 1979, o pas produzia pouco menos de 20% de seu consumo de combustveis.4 J a partir de1973, passou a ser crucial aumentar o valor das exportaes e diversificar a pauta dos produtosexportados, de maneira a garantir um fluxo de dlares suficiente para fazer frente tanto aos custos daimportao de combustveis quanto dvida externa. Esses dois elementos passaram a serdeterminantes para o rumo da poltica econmica. Foi quando surgiram, por exemplo, medidasrestritivas ao consumo interno de combustvel, como o fechamento de postos aos sbados edomingos e a limitao de velocidade nas estradas.

    A brutal elevao das taxas de juros pelo Federal Reserve americano na sequncia do segundochoque do petrleo bloqueou toda e qualquer possibilidade de refinanciamento da dvida em dlares no apenas para o Brasil, mas para a Amrica Latina em seu conjunto. Os resultados foramrecesso (em 1981, o pib retraiu 4,25%), maxidesvalorizaes da moeda, moratrias (ou recurso aofmi), deteriorao fiscal e altas e crescentes taxas de inflao. Em 1982, a dvida externa lquida dopas estava no patamar de 69 milhes de dlares (contra 31 milhes em 1978), com exportaes daordem de 20 milhes de dlares (contra 12 milhes em 1978). Apesar desse enorme esforoexportador (Exportar o que importa, no slogan que consagrou o ltimo governo militar, sob aliderana do ento ministro do Planejamento, Delfim Netto), a trajetria de crescimento da dvidaapontava para um estrangulamento da capacidade de financiamento do pas.

    Com o declnio da Guerra Fria e a consequente reorganizao da correlao geopoltica de foras, aAmrica Latina deixou de desempenhar papel central para assumir um lugar bastante secundrio naagenda do pas hegemnico na regio: os Estados Unidos. Se, por um lado, isso veio de par com aabsoluta novidade da fundao de um partido da nova esquerda, o pt sem alinhamento fosse aoento chamado socialismo real, ao bloco sovitico, fosse social-democracia europeia , por outro,foi tambm um momento em que o continente ficou deriva, isolado, sem coeso interna e s voltascom problemas estruturais sem soluo em horizonte visvel.

    Na sua verso ditatorial ps-1964, o nacional-desenvolvimentismo dependia de uma sucesso degovernos autoritrios que, a partir de 1979, tinha se tornado insustentvel. Do lado econmico, omodelo dependia de um padro tecnolgico de produo relativamente estvel, um padro quepudesse ser importado, mesmo que em verses j obsoletas nos pases centrais. E esse padrotecnolgico passava ento por nada menos que uma revoluo. O nacional-desenvolvimentismo dopas refazia, com atraso, cada um dos passos que j tinham sido dados pelas naes maisdesenvolvidas. Mas isso s era possvel porque toda inovao tecnolgica era apenas um acrscimoem relao a um modelo de produo que permanecia estvel em suas bases fundamentais.

    Tudo isso foi minado pela revoluo da microeletrnica de fins da dcada de 1970. Tudo o que seconhece como informtica ou tecnologia da informao significou uma mudana estrutural na baseda produo. A partir desse momento, um avano no desenvolvimento no era mais possvelsimplesmente mediante a importao do equipamento necessrio para criar uma verso atrasada dopadro de produo dos pases centrais. Mesmo para ficarem em atraso em relao a estes, ospases em desenvolvimento tinham de realizar com seus prprios recursos nada menos que umarevoluo no modelo de produo. E um salto como esse no parecia estar ao alcance dessespases, especialmente aqueles muito endividados. No havia recursos nem para importar em grandeescala esses novssimos produtos nem para financiar a reorganizao da nova base produtiva. Muitomenos para produzir rapidamente a necessria capacidade autnoma de inovao, que inclua, entreinmeras outras coisas, um sistema educacional no apenas muito mais abrangente, mas dequalidade muitssimo superior ao existente.

    Boa parte dos pases em desenvolvimento tinha perdido no mais o bonde, mas j o software dahistria. No momento em que uma verdadeira revoluo produtiva estava em marcha mundialmente,passar quinze anos em uma permanente crise da dvida condenou o pas a um atraso considervelno seu desenvolvimento. Um dos sinais do fosso que separava a lgica nacional-desenvolvimentista

  • das novas realidades econmicas mundiais foi a aprovao, no final de 1984, da chamada Lei deInformtica. Resultado de um expressivo acordo suprapartidrio que incluiu mesmo setoresmilitares de sustentao direta do perodo ditatorial , a lei previa uma reserva de mercado, peloperodo de oito anos, inicialmente, para empresas de capital nacional, de maneira a desenvolver aindstria microeletrnica no pas. A lei foi o ltimo grande suspiro da poltica de substituio deimportaes e contribuiu decisivamente para sacramentar um atraso tecnolgico do pas de pelomenos quinze anos em vrios e diferentes setores da economia.

    Entretanto, olhar o modelo apenas em sua faceta econmica no explica toda a histria. No apenaspela deficincia estrutural e histrica no campo da educao. Afinal, mesmo sendo flagrante einegvel, a escassez de recursos no foi o nico fator que impediu a mudana. Porque o que estavaem questo era nada menos que o abandono de todo um modelo de sociedade, partilhado at entotanto por defensores da ditadura como por seus opositores, sendo que estes pensavam ser possvelmanter o modelo, mas incorporando agora a democracia como um novo elemento de base.

    A redemocratizao liberou uma impressionante quantidade de novas e velhas demandas porservios pblicos, participao poltica e acesso ao fundo pblico, um amplo leque de movimentos edemandas sociais reprimidos pela ditadura, que surgiram tambm como resultado dastransformaes sociais e econmicas de grande magnitude ocorridas entre os anos 1960 e 1980.Essas mltiplas e diferentes reivindicaes pressionaram o Estado, em todos os nveis, paraaumentar substancialmente o nvel de gastos. Essa coincidncia de crise de financiamento externo,recesso e presso social por aumento de gastos pblicos fez com que um combate econmicoortodoxo inflao (com poltica monetria restritiva e diminuio drstica do gasto pblico) nosurgisse como opo, apesar de assim o exigirem os sucessivos acordos com o fmi celebrados enunca cumpridos na dcada de 1980.

    Depois de cinquenta anos de rpido crescimento econmico, a redemocratizao trouxe presses depeso por parte de estratos sociais historicamente marginalizados da disputa por fundos pblicos.Sindicatos, movimentos por reforma agrria, sade, moradia, iluminao pblica, creches, acesso justia, transporte, toda uma mirade de demandas ocupou simultaneamente o espao pblico embusca de ver atendidas suas reivindicaes. Ao mesmo tempo, quebrou-se a aliana tcita no interiordos prprios estratos privilegiados, historicamente favorecidos pelo mecanismo de manuteno doarranjo de desigualdade, mas a partir dali tambm prejudicados pelo descontrole inflacionrio, aindaque em muito menor medida na comparao com os demais estratos sociais.

    O resultado foi a persistncia de taxas de inflao elevadas, smula de uma conjuno de elementosestruturais, locais, conjunturais, mundiais. A inflao j no podia desempenhar seu papel central noarranjo de desigualdade brasileiro. E a coincidncia de declnio da ditadura militar, derrocadapoltica, econmica e social do modelo nacional-desenvolvimentista e redemocratizao fez com quea desigualdade perdesse paulatinamente suas bases de sustentao tradicionais. Primeiro, porque,de mecanismo de manuteno do arranjo de desigualdade, a inflao fora de controle passou aameaar a sobrevivncia do prprio pas.

    O fracasso do primeiro plano de estabilizao econmica, o paradigmtico Plano Cruzado, de 1986,mostrou que as fraturas dos pilares histricos do arranjo nacional-desenvolvimentista eram jprofundas demais para poder ser remediadas, que era o prprio modelo de sociedade em vigordurante cinco dcadas que tinha se tornado insustentvel. Traduzido em termos econmicosconcretos, tornou-se cada vez mais claro que no era possvel controlar a inflao sem controle dogasto pblico e sem centralizao da poltica econmica e, subsidiariamente, sem alguma forma deabertura econmica, mesmo que tambm controlada.

    Para se ter uma ideia da dificuldade de controlar o gasto pblico, suficiente dizer que, at 1994,governos estaduais tinham relevantes instrumentos de poltica econmica, independentemente dogoverno central, com poder suficiente para bloquear qualquer possibilidade de poltica econmicacoerente, homognea, unificada e eficaz que permitisse sair do pntano nacional-desenvolvimentista.Do lado da abertura econmica, os tmidos ensaios tentados na dcada de 1980 como a aberturapara o investimento, por exemplo foram feitos na margem e por polticas especficas de ministriosda rea econmica. O impasse se configurou por completo j em fevereiro de 1987, com a

  • declarao de moratria do pagamento da dvida externa, anunciada pelo ento ministro da Fazenda,Dilson Funaro, substitudo no cargo pouco tempo depois, em maio do mesmo ano, por Luiz CarlosBresser Pereira.

    Foi um crescimento econmico movido a inflao (com todos os problemas que a acompanham) quepermitiu que reivindicaes sociais vindas com a redemocratizao fossem em alguma medidaatendidas. A inflao foi fiadora de uma redemocratizao morna e lenta nos anos 1980,representando o adiamento da soluo de problemas estruturais ao mesmo tempo que permitia umacesso altamente seletivo e restritivo, certo de novos grupos sociais esfera poltica e disputa pelo fundo pblico. O que, no por ltimo, mostra que, apesar da derrocada econmica, osmilitares e a elite diretamente beneficiada pela ditadura, de maneira mais geral conseguirammanter um relativo controle do ritmo da transio.5

    A coincidncia histrica de altas taxas de inflao, redemocratizao e crise do modelo dedesenvolvimento nacional-desenvolvimentista moldou um sistema poltico caracterizado pelafragmentao poltica, que no , em princpio, um mal em si. Governos relativamente homogneos eestveis se sustentam em sistemas partidrios fragmentados. mais difcil, entretanto, que issoocorra em um sistema no apenas fragmentado, mas fragmentrio, como o caso brasileiro. Com aagravante de que a fragmentao tem a ainda o sentido peculiar de impor pesadas travas atransformaes de vulto.

    A origem dessa cultura poltica conservadora remonta ditadura militar de 1964. De cima e na marra,por meio do Ato Institucional no 2, de outubro de 1965, foram extintos os partidos polticos entoexistentes. Ao mesmo tempo, as exigncias para a criao de siglas eram de tal ordem dispor deum mnimo de vinte senadores (de um total de 66) e de 120 deputados (de um total de 350) que, naprtica, era possvel a criao de apenas dois partidos. Surgiu assim um sistema bipartidrio do tipooposio versus situao, mdb (Movimento Democrtico Brasileiro) versus Arena (AlianaRenovadora Nacional), siglas vigentes at o final da dcada de 1970. Reformadores de gabinete ede caserna pretendiam com isso superar a fragmentao de interesses e as disparidades regionais diagnosticadas como os grandes males da realidade brasileira e criar algo como a verdadeiraunidade da nao. O resultado ruinoso conhecido. O que bem menos conhecido o papel queteve esse projeto autoritrio na moldagem da cultura poltica brasileira a partir da redemocratizaodos anos 1980.

    Em lugar da produo de um sistema poltico efetivamente organizado em dois polos, o que aengenharia ditatorial conseguiu produzir foram confederaes de grupos polticos, confederaes departidos. Isso obrigou as siglas oficialmente toleradas a se organizarem internamente de maneira apermitir a convivncia de agremiaes e tendncias no apenas heterclitas, mas, muitas vezes,adversrias. As estruturas partidrias resultantes tinham de produzir alguma unidade apesar de suasincompatibilidades internas.

    Estava em pleno vigor o consenso forado do nacional-desenvolvimentismo, que compunha o panode fundo indiscutvel sobre o qual se dava o debate e se formavam as divergncias. O que s veiocolaborar para que os programas partidrios fossem peas retricas, cujo nico sentido real era aunidade forada contra ou a favor da ditadura. Essa unidade forada no se deu apenas em relaos antigas formaes partidrias existentes antes do golpe de 1964, das quais provinha a grandemaioria dos lderes nacionais dos partidos consentidos, mas teve efeito tambm sobre as novasforas polticas que se formaram durante o perodo ditatorial.

    A ditadura militar transformou profundamente o pas. No s pelas altas taxas de crescimento do pib,especialmente entre 1968 e 1973 (o que a propaganda oficial chamava de Milagre Econmico),quando ficaram entre 10% e 14%. Tambm porque nesse perodo ditatorial que o processo deurbanizao adquire uma velocidade indita. O Censo de 2010 registrou nmeros de 85% depopulao urbana contra 15% para a populao rural. Mas (ainda que os nmeros possam variar),em meados da dcada de 1960, essa diviso era ainda aproximadamente pela metade, sendo quevinte anos depois, em meados da dcada de 1980, a proporo j era aproximadamente de um terode populao rural para dois teros de urbana.

  • Essa coincidncia de altas taxas de crescimento econmico e acelerado processo de urbanizao apenas um dos muitos possveis exemplos de um panorama em que uma modernizao foradalevou a uma reconfigurao da sociedade em todos os seus aspectos, tendo como resultado, porexemplo, a extino ou a ressignificao de formas de sociabilidade tradicionais, assim como acriao de novas instituies sociais de maneira mais ampla. E, no entanto, transformaes desseporte no encontraram expresso no sistema poltico estabelecido, repressivamente mantidosegundo um bipartidarismo artificial.

    O que de fato ocorreu foi certa adaptao das estruturas partidrias existentes, por vocao e pornecessidade, a um modelo de gerenciamento de ideias, interesses e foras sociais capaz de darconta das diversidades e das desigualdades produzidas pelas transformaes do desenvolvimentoautoritrio. No foram os sonhados partidos uniformes e homogneos dos reformadores ditatoriais,mas partidos que trouxeram para dentro de si a fragmentao, de tal maneira, por sua vez, que suaprpria lgica de funcionamento se tornou fragmentria. Em suma, partidos nacionais brasileira.

    Durante a dcada de 1970, foram criadas algumas expresses caractersticas para designar eestigmatizar quem no tivesse uma posio poltica verdadeiramente oposicionista ditadura:chamava-se de fisiolgico quem trocasse sua atuao poltica por cargos e benesses; chamava-sede adesistas integrantes da oposio que praticavam a fisiologia, j que isso significava na prticaapoiar a ditadura. Foi provavelmente nesse mesmo quadro de pensamento que surgiu a expressobinico, como ficaram rotulados pela oposio os prefeitos de capitais e governadores de Estadoindicados pelo partido governista. Mas tambm assim ficaram conhecidos aqueles senadoresadicionais, cadeiras criadas pela ditadura e ocupadas diretamente por seus apoiadores e que, apartir do Pacote de Abril, de 1977, que fechou o Congresso, garantiam maioria governista noapenas no Senado, mas igualmente no Colgio Eleitoral, responsvel pela escolha do presidente. Amanuteno em funcionamento nesses moldes repressivos do Congresso Nacional foi certamenteum fator importante a explicar o surgimento de uma cultura poltica conservadora j em ambiente deredemocratizao, na dcada de 1980.

    Por contraposio, eram chamados autnticos aqueles sobre os quais no pesava suspeita deadesismo ou fisiologia. A partir da dcada de 1980, o fisiologismo (como prtica, no como discurso,evidentemente) deixou de ser um estigma e passou a ser a marca caracterstica do prprio pmdb, quese especializou em ser o partido que est sempre no poder, seja qual for o governo. Mas isso aindano suficiente para caracterizar o modo de operao desse fisiologismo, que ponto essencial aser explicado.

    Quando do retorno do pluripartidarismo, aprovado em fins de 1979, o mdb passou a se chamar pmdbe ganhou o importante problema de saber como no se esvaziar, de como manter dentro da legendacorrentes, tendncias e mesmo partidos inteiros que tinham pouco a ver entre si alm da unidade daluta contra a ditadura. Para conseguir manter dentro de uma mesma sigla partidria correntes etendncias to heterogneas, a nova sigla consolidou um sistema interno de regras de disputa cujosprimeiros ensaios j tinham sido realizados na dcada de 1970.

    Esse conjunto de prticas foi a base sobre a qual se construiu a cultura poltica dominante ao longoda redemocratizao. Pelo destaque adquirido pelo pmdb, na dcada de 1980, ela chamada nestelivro de pemedebismo. O nome no quer dizer que se trate de uma prtica restrita apenas ao pmdb,mas foi esse partido que primeiro a moldou e consolidou, ainda nos anos 1980, quando deteve,formalmente pelo menos, domnio absoluto da poltica brasileira.

    Sua caracterstica mais geral e marcante estar no governo, seja qual for o governo e seja qual for opartido a que se pertena, como parte de um condomnio de poder organizado sob a forma de umsuperbloco parlamentar. Mas um bloco dessas propores necessita de regras internas de arbitragemde conflitos para continuar operando. por isso que essa cultura poltica dominante pode ser descritade maneira simples como um sistema de vetos hierarquizado. um modo de fazer poltica quepromete franquear entrada a quem assim o desejar. Funda-se na promessa evidentementeirrealizvel de, no limite, engolir e administrar todos os interesses e ideias presentes na sociedade,sem que haja perdedores que fiquem sem compensao. E garante a quem entrar que, se conseguirfora eleitoral, e em proporo a essa fora, ganhar direito a disputar espao, dentro da mquina

  • partidria e dentro do pemedebismo do sistema poltico, e a reivindicar e receber posies noaparelho do Estado.

    A depender do espao que conseguir conquistar dentro da mquina partidria a partir do capitaleleitoral inicial de que partiu, o grupo organizado ganha a prerrogativa de vetar iniciativas queentenda lhe serem contrrias. Sob o pemedebismo, o exerccio cotidiano da poltica no tem a ver,primordialmente, com ser favorvel a estas posies ou partilhar de uma viso determinada do quedeva ser o pas (mesmo que se possa encontrar nesse caldo de cultura uma ou outra ilha depensamento sobre o pas); tem a ver fundamentalmente com a conquista da capacidade de vetariniciativas alheias ou, o que o mesmo, de bloquear qualquer tentativa de mudar a correlao deforas, impedindo uma piora da posio relativa do grupo afetado.

    Um grande salto no tempo, rumo ao pemedebismo caracterstico da dcada de 2000, pode ajudar ailustrar esse modo de operar. No poucas vezes, as disputas tpicas do pemedebismo tornam maisvantajoso trocar de partido, ou mesmo fundar outro, do que simplesmente se contentar com a cota descio do pemedebismo de que j se dispe. Trocar de legenda ou fundar um partido (tambmmediante fuso de partidos j existentes) significa alterar a correlao geral de foras dentro dopemedebismo, significa buscar uma cota maior do condomnio. Sob o pemedebismo, buscam-sesempre vlvulas de escape para fugir aos vetos, mantenedores do status quo, em tentativas de mudara correlao de foras.

    Em 2007, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu uma interpretao da fidelidadepartidria que bloqueou em grande medida a possibilidade das constantes trocas de partido, atento mecanismo importante de fuga de vetos. Foi quando se passou a utilizar como vlvula deescape a criao de novas legendas (inclusive mediante fuses de partidos j existentes). A isso seseguiu uma reao mudana da correlao de foras, com a iniciativa parlamentar, em 2013, deimpedir o acesso de novas legendas parte proporcional do fundo partidrio e de tempo de televisoantes que a nova agremiao tivesse disputado uma eleio. Em suma: a lgica mais profunda dopemedebismo aquela que vai da sstole da fragmentao partidria distole do bloqueio alterao da correlao de foras existente.6

    Tambm o Judicirio, como legtimo integrante do sistema poltico, opera segundo essa mesmalgica. O stf (Supremo Tribunal Federal) e o tse (Tribunal Superior Eleitoral) funcionam de fato comofreio e contrapeso importantes no jogo entre os poderes. Mas segundo uma lgica pemedebista quetambm os caracteriza. Quando entendem que o sistema ameaa operar unicamente segundo adistole do bloqueio alterao da correlao de foras existente, tomam decises em favor dafragmentao partidria. E vice-versa. Foi esse o liberalismo que se conseguiu produzir no pas. Aozelar por uma interpretao predominantemente liberal da Constituio e da legislao eleitoral, stfe tse produzem, na verdade, um liberalismo brasileira, fundado no movimento pendular prprio dopemedebismo, funcionando como contrapeso sstole fragmentria e como freio distole dobloqueio das correlaes de foras vigentes.

    O poder de veto, em importncia e em frequncia de exerccio, vem antes mesmo da ocupao deespao no aparelho do Estado. Vetar indicaes ou iniciativas vem antes de indicar ou de semovimentar a favor de propostas essencialmente porque o exerccio do veto mantm o status quo,porque tem por objetivo travar a correlao de foras no estado em que se encontra. Destinado aevitar a competio por parte de qualquer outro grupo ou tendncia, uma ttica permanentementedefensiva, com o objetivo de preservar o espao conquistado. A prioridade de cada grupoestabelecido antes bloquear qualquer mudana na correlao de foras vigente do que ampliar seuespao de poder.

    Mas bvio tambm que mudanas ocorrem. E, tambm por isso, no se trata de um sistema devetos sem mais. Em primeiro lugar, porque se trata de um sistema de vetos hierarquizado. O processode veto tem rbitros, organizados segundo a hierarquia partidria. Em cada caso, cabe em princpioao rbitro ao dirigente partidrio que, na hierarquia, se encontra acima do nvel em disputa decidir tanto sobre o poder de veto pretendido como sobre seu alcance e possveis alternativas.7

    Sob o pemedebismo, o agente poltico constri e faz parte de uma rede em que seu papel

  • desemperrar e/ou manter o quanto possvel desemperrados os caminhos burocrticos que permitemo acesso de seu grupo a fundos e servios pblicos. Quanto mais alta sua posio na hierarquiapartidria, mais ampla sua viso do conjunto da rede. E maior, portanto, sua capacidade tambmpara decidir sobre vetos.

    Voltemos agora dcada de 1980 para apresentar em maior detalhe as transformaes por quepassaram, no perodo de 1979 a 1994, tanto o pmdb quanto a cultura poltica a que deu origem.Desde que a ditadura militar declinou, o pmdb no se construiu mais por oposio a um inimigo,fosse real ou imaginrio, mas por um discurso inteiramente andino e abstrato, sem inimigos,prometendo funcionar como um sistema de ingresso em princpio universal em que se pode obter odireito tanto a um quinho correspondente no Estado como a vetos seletivos.

    O marco inaugural desse longo processo pode ser posto nas eleies de 1982, em que, pela primeiravez desde o golpe militar de 1964, os governadores de estado foram escolhidos por eleio direta. Oresultado dessas eleies deu incio a uma poltica dos governadores, que s comeou a declinar apartir das eleies presidenciais de 1994.8 A partir de 1983, com a posse dos governadores eleitospelo voto direto, essas figuras de ordem de grandeza at ento indita com poder, pela primeiravez em dezoito anos, sobre quinhes importantes do aparelho de Estado passaram a fazer parteda dinmica partidria. Tornaram-se, juntamente com seus aliados e representantes diretos, asfiguras mais destacadas das cpulas partidrias. A partir desse momento, todo um complexo eintrincado sistema de vetos em formao passou a ter nos governadores rbitros incontestes, aosquais se somava (mas sem lhes ameaar a liderana) a tradicional cpula parlamentar, liderada peloento presidente do pmdb, Ulisses Guimares.

    Com o pluripartidarismo, havia quem achasse que o sentido do mdb tambm havia se esgotado. Foicom esse pensamento, por exemplo, em fevereiro de 1980, que o ento deputado pelo partidoTancredo Neves fundou o Partido Popular (pp). O novo partido pretendia reunir quadros dos doispartidos vigentes durante a ditadura, oferecendo assim uma alternativa claramente conservadorapara a transio democrtica. O movimento no foi bem-sucedido, e j em 1983 Tancredo Neves sefiliou ao pmdb para se candidatar ao governo de Minas Gerais. Sinal de que o pmdb guardava umcapital poltico de altssimo valor. Por um lado, mostrou-se capaz, entre outras coisas, de aglutinar osinteresses de uma elite assustada com a possibilidade de transformaes radicais. Por outro, tinha aseu favor o diagnstico ento bastante difundido de que dispersar as foras reunidas no partidonaquele momento poderia significar tambm colocar inteiramente nas mos dos militares a transiodemocrtica. A antiga Arena tinha se tornado pds (posteriormente ppr, ppb e pp) e havia conseguidomanter a maior parte de seus quadros. Com a derrota no Congresso, em 1984, da emenda que previaeleies diretas para a presidncia, ficou mantido o Colgio Eleitoral como rgo encarregado deeleger indiretamente o presidente, em 1985. O Colgio Eleitoral de maioria governista, acrescente-se poderia vir a escolher o nome civil apontado pelo pds, que, aps uma acirrada disputa interna,optou pelo nome do ento governador de So Paulo, Paulo Maluf.

    Tendo decidido participar desse processo indireto, o pmdb, no por acaso, escolheu um governadorcomo seu candidato, o ento governador de Minas Gerais, Tancredo Neves. Ao receber o apoio doPartido da Frente Liberal (pfl), racha da base de sustentao do regime militar, o que garantiu suaeleio indireta, Tancredo de certa maneira realizou aquele que tinha sido o frustrado projeto defundao do pp, em 1980. Uma eventual presidncia de Tancredo Neves poderia ter vindo a alterar apoltica dos governadores e a correlao de foras que lhe era prpria. Mas a doena, que o impediude tomar posse aps a vitria no Colgio Eleitoral (em janeiro de 1985), e sua morte, trs mesesdepois (em abril do mesmo ano), acabou por levar presidncia o vice-presidente eleito em suachapa, Jos Sarney, quadro histrico de sustentao da ditadura militar, indicado pelo pfl. Ao setornar presidente, Sarney tornou-se tambm dependente ao extremo do pmdb, ao qual tinha se filiadopor razes meramente formais.

    Essa circunstncia acabou por conferir enorme peso poltico aos governadores ao longo da dcadade 1980. E a coincidncia pouqussimo acidental entre as eleies de 1986 e o lanamento do PlanoCruzado s fez reforar esse modo de operar, j que nesse ano o pmdb conquistou todos osgovernos estaduais, com exceo de Sergipe. A lgica claramente eleitoreira do plano de combate inflao deu ao pmdb esmagadora vitria tambm com uma bancada expressiva na Cmara dos

  • Deputados, que conquistou 260 cadeiras de um total ( poca) de 487. No bastasse isso, o pfl, oprincipal aliado na Aliana Democrtica na eleio de Tancredo Neves, obteve nada menos que 118cadeiras. Das 49 cadeiras em disputa para o Senado, o pmdb conseguiu 38.

    Ser o partido majoritrio no Congresso significou tambm ser o majoritrio na Assembleia NacionalConstituinte, eleita simultaneamente no mesmo pleito de 1986 e empossada em fevereiro de 1987. Oque teve por resultado adicional o fortalecimento do polo parlamentar, que se firmou comocontraponto do polo dos governadores dentro do partido. O jogo de poder no interior do pmdb passoua se dar primordialmente, portanto, entre o polo dos governadores e o polo parlamentar, sendo quesolues de compromisso eram encontradas sempre em consonncia com a lgica de vetos quecaracteriza o partido.

    O governo Sarney, que j vinha tutelado desde o incio, tornou-se a partir da inteiramentedependente do pmdb, tanto dos governadores de estado como da elite congressual UlissesGuimares frente, como presidente da Cmara dos Deputados e, consequentemente, daAssembleia Nacional Constituinte. Entre 1983 e 1994, pode-se dizer que a disputa entre osgovernadores, de um lado, e a elite congressual, de outro, teve carter de compromisso entre os doispolos, em um movimento pendular. Se Tancredo Neves, governador de Minas, foi o candidatoescolhido pelo partido para concorrer eleio indireta presidncia em 1985, Ulisses Guimaresconseguiu a indicao em 1989, assim como em 1994 foi a vez do ento governador de So Paulo,Orestes Qurcia.

    Mas, mesmo abstraindo desse arranjo interno pendular, necessrio insistir que, tomadaisoladamente, a poltica dos governadores mal compreendida quando pensada apenas em termosde uma estadualizao dos partidos, correntes ou dos grupos organizados como se se tratasse deuma volta aos partidos da Primeira Repblica, da Repblica Velha segundo a pecha da Revoluode 1930. Essa diviso do poder partidrio foi antes efeito imediato do fato de que eleies estaduaisdiretas tiveram lugar antes de uma eleio presidencial direta. Conjugado morte de TancredoNeves, em 1985, antes de tomar posse na presidncia, e ao governo Sarney, tutelado pela cpulapartidria, o fato de a volta das eleies diretas ter comeado pelos governos estaduais acabousendo decisivo para o futuro do pas.

    Mudou imediatamente a correlao partidria de foras no interior do pmdb. Porque, alm disso, aposse na presidncia de um trnsfuga do partido oficial da ditadura militar fez com que a posiopresidencial no tivesse peso poltico suficiente para alterar o jogo de foras em vigor. Pelo contrrio,apenas passou a exigir a reincluso no cabo de guerra de um polo que nunca tinha deixado de estarpresente e que, com a Constituinte, voltou a ganhar um destaque que tinha perdido antes daseleies para os governos estaduais, em 1982: o polo parlamentar. Mesmo se boa parte dosparlamentares dependia para sua sobrevivncia poltica da subordinao ao poder do governador deseu estado, o polo parlamentar, com a dominncia no processo constituinte, conseguiu certaindependncia e poder prprios.

    A caracterstica mais geral dessa correlao de foras pemedebista da dcada de 1980 suaorientao para impedir transformaes profundas, especialmente em um momento em que umareorientao radical do padro de sociedade do pas se impunha. Em um modelo poltico como esse,leva a melhor quem tem maior poder de veto, o que inclui posies estratgicas slidas,encasteladas no Estado, ocupao eficiente da mdia, com colonizao do debate pblico, poder defogo para chantagear a poltica pblica do momento, ou uma combinao desses elementos.9

    Essa figura primeira do pemedebismo, aquela consolidada na dcada de 1980: uma cultura polticadotada de mecanismos de administrao de conflitos que, dado seu peculiar sistema de vetos, secaracteriza por travar mudanas profundas, mesmo que tenham se tornado urgentes, prementes emvista de problemas estruturais postos a descoberto. Tambm o processo constituinte e o prprio textoconstitucional resultante espelharam sua maneira a cristalizao dessa dominncia pemedebista.Se, a partir dos anos 2000, com todas as transformaes legislativas e de interpretao jurdica porque passou, a Constituio Federal de 1988 terminou por se tornar base e referncia para um novomodelo de sociedade, diferente do nacional-desenvolvimentismo, essa no foi a viso quepredominou no momento de sua promulgao. Ao ser promulgada, a Constituio Federal de 1988

  • no se apresentou primeiramente como uma sada para os impasses de um nacional-desenvolvimentismo j caduco, mas antes como sua cristalizao.

    O texto constitucional foi, a princpio, o resultado do brutal descompasso entre um sistema polticoelitista e conservador e uma macia, variada, indita e organizada mobilizao popular, nos anos1980, especialmente visvel no perodo da Constituinte. O emblema do pemedebismo dominante noperodo constituinte foi o chamado Centro, enorme bloco suprapartidrio que, de fato, determinoucomo nenhum outro o processo e seu resultado final. Essa a primeira figura consolidada dopemedebismo tal como se constituiu na dcada de 1980.

    Mas, em meio confuso muito interessada do pemedebismo e de uma continuidade artificial donacional-desenvolvimentismo, ficaram ao mesmo tempo gravadas na Constituio algumas dasbases do que viria a ser o projeto social-desenvolvimentista, o novo modelo de sociedade queapenas no perodo Lula surgiu de forma mais claramente cristalizada, passando a orientar aautocompreenso do pas de maneira mais ampla a partir de ento. Foram esses elementos social-desenvolvimentistas da Constituio Federal que, pouco a pouco, foram tomando o primeiro plano,deixando para trs as marcas nacional-desenvolvimentistas que a caracterizaram inicialmente. Atransio para a democracia foi tambm uma transio para um novo modelo de sociedade, ereconstruir esse processo de dupla face tarefa fundamental deste livro em seu conjunto, paracolocar o imobilismo em movimento.

    Pouco a pouco, comearam a se redefinir as relaes do pas com o capital internacional. Aps otrauma da moratria de 1987, a renegociao em termos relativamente favorveis da dvida externarealizada por meio do Plano Brady assim conhecido em referncia a um dos principais mentoresdo acordo, o ento secretrio do Tesouro dos Estados Unidos, Nicholas F. Brady , em 1989, psfim a dez anos de crise e deu incio a uma pacificao das relaes financeiras externas. Tambmnesse momento teve incio certa flexibilizao do fluxo de capitais externos, apoiada por umalegislao que foi se tornando cada vez mais liberal, culminando com a eleio de fhc, em 1994.

    Do lado dos movimentos sindicais, populares e de trabalhadores no se encontrava fora polticasuficiente para romper as barreiras do sistema, para confrontar a elite tradicional com um modelo desociedade alternativo ao nacional-desenvolvimentismo. Um dos elementos impeditivos centrais paraa produo de tal projeto alternativo, que contemplasse efetivao de direitos e redistribuio derenda a favor dos mais pobres, foi justamente o processo da Constituinte de 1988.

    Uma transio morna para a democracia, controlada pelo regime ditatorial em crise e pactuada decima por um sistema poltico elitista, deu de cara com movimentos e organizaes sociais, sindicatose manifestaes populares que no cabiam nos canais estreitos da abertura poltica de ento. Comono era possvel controlar todos esses movimentos, o sistema poltico, especialmente sob aorganizao do Centro, encontrou outra maneira de neutraliz-los, apostando na ausncia de umapauta unificada e de um partido (ou frente de partidos) que canalizasse as aspiraes mudancistas.

    Na ausncia de um polo com legitimidade e respaldo para concentrar e unificar as novasreivindicaes populares sob a homogeneidade de um programa poltico coerente como veio a sero pt (Partido dos Trabalhadores) aps a eleio de 1989 , o processo constituinte sob a gide dopmdb e do Centro imps-se fragmentao das reivindicaes de transformao. Na ausncia deum programa poltico unificado no campo popular e com a dominncia da fragmentaohierarquizada do pmdb, o objetivo primordial de cada movimento social passou a ser conseguirinserir no texto constitucional o tema que lhe concernia mais diretamente, sozinho ou em alianaheterognea com outros grupos. Mas, de qualquer maneira, em uma lgica bastante fragmentria.10

    Muitas vezes considerada como o perodo do ajuste estrutural nova etapa do capitalismo mundial, adcada de 1980 foi, na verdade, a do adiamento do ajuste mediante descontrole inflacionrio efechamento da economia. No de estranhar, portanto, que esse adiamento estrutural, sob o domniodo pemedebismo, tenha levado logo adiante paralisia e a uma situao econmica e polticacatica. O fim da dominncia pemedebista na dcada de 1980 pode ser posto na humilhante derrotade Ulisses Guimares na eleio presidencial de 1989, que obteve apenas 4,43% dos votos. Aomesmo tempo, levou vitria daquele que se apresentou nessa eleio como um representante do

  • antipemedebismo, Fernando Collor de Mello. Collor e o pmdb da dcada de 1980 so os dois ladosde uma mesma moeda. O pmdb travamento e impasse; Collor o presidente que se prope adestravar o pas de um s golpe, em um voluntarismo alucinado e salvacionista. Os dois lados,aparentemente opostos, chegam ao mesmo resultado: crise poltica e econmica crnicas. Que, comCollor na presidncia, se estende por quase dois anos.

    Collor renunciou no final de 1992, ainda em meio ao processo de impeachment que corria noSenado, sob a direo do ento presidente do stf, Sidney Sanches. Tudo comeou com umaentrevista de seu irmo Pedro Collor revista Veja em maio de 1992, na qual acusava o tesoureirode campanha de Collor, Paulo Csar Farias, de trfico de influncia e corrupo. A dennciaprovocou a criao de uma Comisso Parlamentar de Inqurito (cpi), cujos desdobramentosresultaram na abertura do processo de impeachment do presidente.

    Do ponto de vista dos protestos de rua, o desdobramento emblemtico foi a mobilizao estudantilpelo afastamento de Collor, no que ficou conhecido como o Movimento dos Caras-pintadas, emreferncia pintura dos jovens rostos como forma de protesto. Foi nesse perodo tambm que seconstituiu de maneira um pouco mais formalizada o Movimento pela tica na Poltica, ampla frente decombate ao pemedebismo que encontrou no processo de impeachment o seu momento de maiorressonncia. Chegou a reunir aproximadamente novecentas entidades em coalizo, sendo que seumanifesto inicial, uma Declarao ao povo, foi divulgado em maio de 1992.

    O debate do impeachment se concentrou em temas que tinham sido os principais slogans decampanha de Collor em 1989: combate corrupo e aos privilgios de ocupantes de cargospblicos (que, na eleio presidencial, Collor tinha chamado de caa aos marajs). Mas seu panode fundo foi bem mais amplo. Para comear, incluiu o chamado confisco da poupana do PlanoCollor 1 (maro de 1990) um bloqueio de percentual bastante elevado dos recursos em contasbancrias, realizado pela ento ministra da Economia, Zlia Cardoso de Mello. Esse movimentodesastrado teve como resultado que, no ano de 1990, o pib retraiu 4,35%. E o Plano Collor 2 (janeirode 1991), implementado por um novo ministro da Economia, Marclio Marques Moreira, manteve apoltica recessiva, fazendo com que, em 1992, o pib tivesse retrao de 0,5%, aps um crescimentode apenas 1% no ano anterior. O outro componente decisivo do pano de fundo do Movimento ForaCollor foi o de uma Constituio que, promulgada em 1988, no saa do papel.

    No obstante a patente relevncia e amplitude do movimento pelo impeachment, no houve de fatoum debate pblico sobre o choque de capitalismo que representou o projeto poltico de Collor, umprograma acelerado e desastrado de liberalizao da economia e do Estado. O que mostra uma vezmais que a oscilao pendular entre o bloqueio pemedebista e o voluntarismo insensato noresolveu o problema de fundo, que era o da derrocada do modelo nacional-desenvolvimentista.

    Foi tambm nesse momento que surgiu um dos mais importantes slogans do debate pblico daredemocratizao, a palavra de ordem da tica na poltica, que se imps durante pelo menos dezanos como referncia obrigatria para aes que recusavam tanto o pemedebismo quanto ovoluntarismo salvacionista. difcil, entretanto, falar de um movimento efetivamente organizado einstitucionalizado. Da mesma forma, o prprio slogan era altamente abstrato, exprimindo umasensao um tanto vaga de que era necessria uma mudana radical do sistema poltico. Aindaassim, no se deve diminuir a sua importncia no debate pblico e nas disputas eleitorais atmeados dos anos 2000.

    Se serviu como ponto de apoio importante para o governo de unio nacional de Itamar Franco, oMovimento pela tica na Poltica nunca conseguiu de fato se traduzir em termos institucionaisconcretos. Acabou se mostrando um slogan vazio, um movimento de rejeio em bloco poltica, emlugar de uma rejeio a um modo determinado de funcionamento do sistema poltico, resvalando paraa antipoltica. Se acabou desaparecendo do debate pblico, parece ter encontrado um sucedneo jum pouco menos abstrato (mas ainda de baixa politizao) no adjetivo republicano, que passou aresumir a ideia de rejeio ao pemedebismo em termos de um republicanismo ou de umfuncionamento republicano das instituies.

    Pela mesma poca, em sentido contrrio ao chamamento da tica na poltica, comea a se firmar o

  • mote da governabilidade do pas em termos claramente pemedebistas. Se, no momento daaprovao da Constituio, em 1988, o ento presidente Jos Sarney havia declarado que elatornaria o pas ingovernvel, aps o terremoto Collor, a exigncia de um Centro, de umaamplssima aliana poltico-parlamentar para a sustentao de qualquer governo se estabeleceucomo natural para quase todo o conjunto do sistema, com a notvel exceo, naquele momento, do pte seus aliados histricos. E foi essa a tendncia que acabou por prevalecer nos governos eleitos quese seguiram: pouco a pouco, tanto o pmdb como, de maneira mais geral, o pemedebismo se tornaramsinnimo de governabilidade.

    No perodo da Constituinte, a estratgia conservadora de conteno das demandas portransformaes rpidas e profundas foi a criao do Centro, sob a liderana do pmdb. A partir doimpeachment de Collor, essa estratgia se transfigurou progressivamente na ideologia de que, parano cair, para no sofrer um processo de impeachment, qualquer governante precisaria contar comsupermaiorias parlamentares de apoio. No apenas uma maioria, mas uma supermaioria, um blocoparlamentar de tal dimenso que no pudesse ser sequer desafiado por foras oposicionistas. Umasupermaioria que estivesse no governo, qualquer que fosse ele. Essa ideologia faz parecerimpensvel a formao de um governo dotado de escassa maioria no Congresso, ou mesmo de umgoverno minoritrio, mas com apoio popular. A ideologia da necessidade de uma supermaioriaparlamentar a figura do pemedebismo tal como se espalhou pelo sistema poltico dos anos 1990em diante.

    Apesar de o pemedebismo ter se espalhado como lgica dominante, a dominncia mesma que teve opartido que lhe deu origem, o pmdb, no se estendeu para alm da dcada de 1980. Nunca mais opmdb conseguiu bancadas no Congresso como as obtidas nas eleies de 1986 como, alis,nenhum outro partido conseguiu desde ento. Em 1994, o Plano Real representou um planoeconmico de novo tipo, fundado em uma aliana disposta a sustent-lo e que, na sua origem, nocontou com o apoio do pmdb. E o pt acabou se fortalecendo o suficiente para se colocar comoalternativa eleitoral vivel.

    A Constituinte recebeu e aceitou muitas das demandas e as inscreveu na Constituio de 1988. Masfez com que esses dispositivos constitucionais dependessem de leis complementares para serefetivamente implementados. Ou seja, com uma ou outra exceo notvel (a criao do SistemaUnificado de Sade, o sus, frente), tomou de volta para si o poder de deciso de fato. Vem da aviso da Constituio como mero conto de fadas, como carta de intenes sem efeitos prticos.Acontece que a histria no terminou a, como no termina a histria de Constituio alguma mundoafora.

    Severamente limitadas ou simplesmente bloqueadas pelo pemedebismo dominante, as energias detransformao represadas foram se acumulando e, progressivamente, ao longo da dcada de 1990,passaram a se concentrar no pt. Isso no significa que o partido como tal se confunda com essasenergias de transformao social, que o superam de muito. Se se quiser buscar uma cristalizaoinstitucional dessas reservas de energia transformadora, seu lugar antes a Constituio de 1988 e aluta por sua efetivao do que um partido ou organizao social em especial.

    Desde o seu nascimento, o pt tinha a pretenso de ser um partido nacional. Pretendia unificar o pasde baixo, a partir dos movimentos sociais e sindicais que combatiam a desigualdade em suasdiversas formas. A ideia era simples e direta: construir um pas democrtico s possvel se foremeliminadas as desigualdades. E isso inclua combater de frente um sistema poltico dominado pelopemedebismo, que busca apenas acomodar e gerenciar as desigualdades. No por acaso, convinha-lhe tambm perfeitamente o rtulo de partido representante por excelncia da tica na poltica.

    No momento em que, com apenas 16,08% da votao, Lula conseguiu ir ao segundo turno na eleiopresidencial de 1989, contra Collor, o movimento de concentrao de foras sociais em torno do pt seintensificou. Ao mesmo tempo, ocorreu um declnio da militncia de base caracterstica dos anos1980, que foi substituda por uma profissionalizao do pt na dcada de 1990, acompanhada daampliao do nmero de parlamentares em todos os nveis e da conquista de prefeituras importantes.Nesse momento, o pt se tornou o lder inconteste e exclusivo da esquerda. Tornou-se o fieldepositrio das energias de transformao em larga medida barradas pela pemedebizao.

  • Depois da aventura de Fernando Collor, a lgica pemedebista dominante desde a redemocratizaoj tinha voltado a dar as cartas. Mas, a partir dali, o modelo inaugurado pelo pmdb j no pertenciasomente quele partido, mas tinha se tornado o modelo de organizao e ao de quase todos ospartidos brasileiros. Cristalizou um modo de operao do sistema poltico em que o pemedebismoseria inevitvel, pea fundamental do lamentvel bordo da governabilidade que perpassa todos osgovernos desde ento. Quase todo partido brasileiro pretende, no fundo, ser grande ou pequeno um pmdb. A exceo da histria naquele momento foi, uma vez mais, o pt, que, entre outrascoisas, se recusou a participar do governo de unio nacional proposto por Itamar Franco, vice-presidente que completou o mandato de Collor aps o impeachment.

    Pelo menos desde o lanamento do Plano Real at as eleies de 2006, o psdb (Partido da SocialDemocracia Brasileira) foi a outra exceo ao pemedebismo. Fundado em 1988 como uma ciso nopmdb, o psdb nasceu do diagnstico construdo durante o processo constituinte de que umsistema poltico sob o domnio do pmdb jamais conseguiria realizar os ajustes estruturais que sefaziam necessrios. Os tucanos se apresentavam como um conjunto de quadros bem formados quepoderiam liderar e dirigir o pemedebismo rumo a um novo modelo de desenvolvimento. O que j sematerializou em parte na eleio presidncia da Repblica de 1989, quando o desempenho docandidato do partido, o ento senador Mrio Covas, pde ser considerado bastante bom, tendo obtidoo quarto lugar na eleio, com 10,78% dos votos atrs de Collor (28,52%), Lula (16,08%) e LeonelBrizola (15,75%).

    Em um discurso pronunciado no Senado em junho de 1989, Covas defendeu uma tese que acabouse tornando uma espcie de slogan informal de sua campanha: a ideia de que o pas precisaria deum choque de capitalismo. Entre outras coisas, o discurso dizia o seguinte:

    Hoje, com a acelerao das transformaes tecnolgicas, geopolticas e culturais que o mundo estatravessando, a opo manter-se na vanguarda ou na retaguarda das transformaes. com esseesprito de vanguarda que temos que reformar o Estado no Brasil. Tir-lo da crise, reformulando suasfunes e seu papel. Basta de gastar sem ter dinheiro. Basta de tanto subsdio, de tantos incentivos,de tantos privilgios sem justificativas ou utilidade comprovadas. Basta de empreguismo. Basta decartrios. Basta de tanta proteo atividade econmica j amadurecida.

    Mas o Brasil no precisa apenas de um choque fiscal. Precisa tambm de um choque de capitalismo,um choque de livre-iniciativa, sujeita a riscos e no apenas a prmios. [...]. O Estado brasileirocr